DA
INCONSTITUCIONALIDADE DO ART.5º, PAR. ÚNICO C/C
ART.1.635, INCISO II, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL, À LUZ DO ART.227, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DA
DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE
Murillo José Digiácomo
Promotor de Justiça, PR.
Dentre as
mais significativas inovações introduzidas pelo novo Código
Civil brasileiro, instituído pela Lei nº 10.406/2002, em vigor a partir
de 11 de janeiro de 2003, se encontra a alteração da idade na qual a pessoa
atinge a plena capacidade para prática dos atos da vida civil, que foi reduzida
de 21 (vinte e um) para 18 (dezoito) anos.
Festejada
por muitos, a referida inovação legislativa veio trazer alento àqueles que
sustentavam a falta de justificativa para que jovens maiores de 18 (dezoito) e
menores de 21 (vinte e um) anos de idade que mantinham uma vida completamente
independente de seus pais ou responsável ainda necessitassem de sua assistência
para prática dos atos da vida civil.
A opção do
legislador procurou levar em conta a evolução da sociedade e maior freqüência
das relações civis envolvendo jovens maiores de 18 (dezoito) anos de idade,
buscando ainda coerência com outros Diplomas Legais que, por exemplo, também
fixam em 18 (dezoito) anos a idade para o exercício regular de atividades laborativas, sem restrições[1], para o voto obrigatório[2]
e para responsabilidade penal[3].
O
legislador civil, no entanto, não parou por aí, tendo de maneira expressa
também reduzido, para 16 (dezesseis) anos, a idade através da qual é possível
ao relativamente incapaz obter a emancipação, permitindo ainda que esta
escapasse por completo ao controle judicial.
Nesse
sentido, dispõe o art.5º, par. único, do novo Código
Civil:
Art.5º. A
menoridade cessa aos 18 (dezoito) anos completos, quando a pessoa fica
habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
Parágrafo
único. Cessará, para os menores, a incapacidade:
I – pela
concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento
público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz,
ouvido o tutor, se o menor tiver 16 (dezesseis) anos completos;
II – pelo
casamento;
III – pelo
exercício de emprego público efetivo;
IV – pela
colação de grau em curso de ensino superior;
V – pelo estabelecimento
civil ou comercial, ou pela inexistência de relação de emprego, desde que, em
função deles, o menor com 16 (dezesseis) anos completos tenha economia própria.
Uma análise
desavisada da referida inovação legislativa e seu cotejo com o disposto no
art.9º, do revogado Código Civil de 1916 que antes regulava a matéria, pode
conduzir à conclusão de que estamos também diante de uma “evolução natural” do
instituto da emancipação, e que portanto não haveria qualquer problema em, por
exemplo, facultar aos pais a concessão da plena capacidade a seus filhos, tão
logo estes completassem os 16 (dezesseis) anos.
Ocorre que,
na forma da Constituição Federal de 1988, Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança
e do Adolescente e da normativa internacional que as inspira, uma pessoa com
idade inferior a 18 (dezoito) anos é considerada criança ou adolescente[4], estando sujeita à proteção especial e integral
por parte do Poder Público, da sociedade e, em especial, de sua família, à qual se impõe uma série de
obrigações que, por serem fixadas por normas de direito público, de caráter
cogente, não podem ser colocadas ao talante exclusivo do particular, como seria
o caso quando da aplicação de semelhante permissivo estabelecido pelo Código
Civil de 2002, como melhor veremos adiante.
A situação
daí resultante gera um evidente conflito
entre a citada norma de Direito Privado prevista na
nova Lei Civil e todo um arcabouço jurídico criado no sentido da proteção integral de crianças e
adolescentes, regulado por normas de Direito Público, que aponta para a inadequação, incoerência e
incompatibilidade daquela para com estas, que devem prevalecer em razão do
respaldo constitucional que possuem, ex
vi do disposto no art.227, caput,
da Constituição Federal.
Tal constatação
decorre do cotejo entre as conseqüências
da emancipação de adolescentes previstas na Lei Civil, em especial no que diz
respeito à figura de seus pais, e as demais normas que regulam a matéria
estabelecidas pela citada Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do
Adolescente, com fundamento na Constituição Federal e normativa internacional, levando à inevitável conclusão que a
emancipação precoce de adolescentes, em especial quando resultante de singela
“concessão” de seus pais, é inconstitucional.
Como ponto
de partida para a análise da inconstitucionalidade do art.5º, par. único, do novo Código Civil, máxime na parte em que faculta
aos pais, por singela manifestação de vontade consignada em instrumento público
e ao arrepio de homologação judicial, a emancipação de seus filhos a partir dos
16 (dezesseis) anos de idade, devemos considerar que o art.227, caput, da Constituição Federal, ao
relacionar as instituições convocadas para defesa dos direitos infanto-juvenis,
não por acaso, colocou a família em
primeiro lugar, a ela assegurando, por outro lado, “especial proteção” por
parte do Estado (latu sensu)[5].
Atendendo
ao comando de nossa Carta Magna, a legislação infraconstitucional, notadamente
a Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente[6] e a Lei nº 8.742/93 – Lei Orgânica da Assistência Social[7], estabeleceram uma série de
mecanismos de proteção e amparo à família, tendo como um dos objetivos
precípuos assegurar à criança e ao adolescente o direito fundamental (e
constitucional, posto que previsto no art.227, caput, da Constituição Federal) à convivência familiar, que na forma do art.19, da Lei nº 8.069/90,
deve ser exercido preferencialmente no seio da família de origem ou biológica.
Importante
frisar que o mencionado direito à convivência familiar é considerado pela Lei
nº 8.069/90 e pela Constituição Federal um direito inerente à criança e ao adolescente, não podendo
ser portanto objeto de livre disposição por parte de seus pais.
Devemos
considerar que o Estatuto da Criança e do Adolescente, de maneira proposital e
como decorrência da regra contida no seu art.19, acima mencionado, não
contemplou o instituto da “delegação do pátrio poder”[8] que era previsto pelo revogado
Código de Menores de 1979 em seus arts.21 a 23, tendo
por outro lado estabelecido, em seu art.129, uma série de medidas destinadas aos pais de crianças e/ou adolescentes que se encontrem em situação de risco,
visando a manutenção destes junto à sua família de origem e o fortalecimento dos vínculos familiares
existentes, verdadeiro princípio que
norteia a aplicação de toda e qualquer medida de proteção (conforme art.100 da
Lei nº 8.069/90).
Em verdade,
com a incorporação ao Direito Positivo brasileiro, a nível constitucional, dos
ditames da “Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente” que
norteia todo conteúdo e interpretação da Lei nº 8.069/90 e legislação
correlata, o hoje chamado “poder familiar”, enquanto exercido
em relação a crianças e adolescentes não mais admite “atos de disposição” ou
“renúncia” quanto aos deveres que lhe são inerentes, cabendo ao Poder Público
garantir que os pais os cumpram de maneira integral e responsável[09].
De acordo
com a sistemática estabelecida pelo art.227, da Constituição Federal e
regulamentada pela Lei nº 8.069/90 e Diplomas afins, portanto, o “poder familiar”, mais do que nunca,
assumiu nítidos contornos de instituto de Direito Público, cujo exercício
representa um verdadeiro múnus público
do qual os pais não podem se escusar.
Ocorre que
o advento do citado art.5º, par. único, da nova Lei Civil, e sua conjugação com
o art.1.635, inciso II, do mesmo Diploma Legal subverte toda essa concepção publicista do instituto do “poder familiar” exercido em relação a crianças e adolescentes,
acabando por afrontar ao disposto no art.227, da Constituição Federal e “Doutrina
da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente” que o inspira, não
podendo prevalecer no mundo jurídico.
Com efeito,
dispõe o novo Código Civil, em seu art.1.630 que “os filhos estão sujeitos ao poder
familiar[10],
enquanto menores”.
Por
definição, o “poder familiar”se constitui no "conjunto de direitos e deveres que os pais
possuem em relação a seus filhos", sendo que o Estatuto da Criança
e do Adolescente reproduz alguns dos deveres relacionados na Lei Civil[11] em no entanto tornar sem efeito os
demais, que subsistem apesar de não terem sido expressamente relacionados na
legislação tutelar.
Os deveres
inerentes ao “poder familiar” são
previstos pelo art.22 do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como pelo
art.1.634 do Código Civil de 2002, tendo por base o disposto no art.229 da
Constituição Federal.
São eles
(conforme arts.21 e 22, da Lei nº 8.069/90 e
art.1.634, do Código Civil de 2002):
a) Deveres de guarda,
sustento e educação (devendo esta ser entendida não apenas a
educação escolar, mas sim em toda amplitude do preconizado pelo art.205 da Constituição Federal - "...visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho"), compreendendo os deveres de
"assistência" e "criação" previstos pelo art.229 da mesma
Carta Magna;
b) Conceder-lhes ou negar-lhes o consentimento para
casarem;
c) Nomear-lhes tutor, por testamento, na forma da Lei
Civil;
d) Representá-los até os 16 anos e assisti-los após essa
idade, suprindo-lhes o consentimento[12];
e) Reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
f) Exigir que lhe prestem obediência e respeito;
g) Cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
Como
sabemos, na forma da Lei, o descumprimento,
doloso ou culposo dos deveres
inerentes ao “poder familiar” acima relacionados, torna os pais faltosos
sujeitos a sanções administrativas e
mesmo criminais[13]
(conforme arts.129,
238 e 249, da Lei nº 8.069/90 e arts.136 e 244 a 247,
do Código Penal, dentre outras), enfatizando assim a natureza pública e indisponível do instituto.
Em casos
extremos, após comprovada a grave e injustificável
violação, por parte dos pais, dos deveres inerentes ao “poder familiar”, e demonstrado de forma cabal e inequívoca a
absoluta inviabilidade da permanência ou retorno da criança ou adolescente a
sua família natural, na forma do disposto no art.24, da Lei nº 8.069/90 deverá ser deflagrado procedimento obrigatoriamente contraditório com vista à suspensão ou destituição daquele,
procedimento este previsto expressamente pelos arts.155
a 163 da Lei nº 8.069/90[14].
Uma vez
destituído ou suspenso o “poder familiar”,
deve a criança ou adolescente ser colocado em família substituta a título de
guarda, tutela ou adoção, cabendo a tutores e guardiães
deveres equivalentes aos decorrentes do “poder
familiar”[15]. Com tal medida, fica garantida a
permanência da criança ou do adolescente num ambiente familiar, onde receberá
toda orientação e assistência, tanto do ponto de vista material quanto moral e
emocional a que tem direito.
Consoante
acima ventilado, se por um lado a Lei impõe uma série de obrigações aos pais,
detentores do “poder familiar”, em
relação a seus filhos[16], prevendo inúmeras sanções para o
caso de seu descumprimento, por outro, como decorrência dos já citados art.226,
caput e §7º, da Constituição Federal,
estabeleceu diversos mecanismos voltados à sua proteção, através das já mencionadas medidas de proteção e voltadas
aos pais ou responsável, previstas nos arts.101,
inciso IV e 129, incisos I a IV, da Lei nº 8.069/90 (respectivamente)[17] e outras similares contidas na Lei
Orgânica da Assistência Social[18].
O objetivo
de todo esse arcabouço jurídico, repita-se, não é
outro senão garantir que crianças e adolescentes recebam diretamente de seus
pais[19] a orientação, cuidado e
assistência de que necessitam para seu desenvolvimento sadio, ainda que para
tanto aqueles tenham de contar com apoio externo, por meio de entidades
governamentais e não governamentais.
Como
podemos observar, toda sistemática estabelecida pela lei e pela Constituição
Federal para a prometida proteção
integral dos direitos de crianças e adolescentes tem por verdadeiro pressuposto a participação de seus pais
no processo, não lhes sendo lícito renunciar ou delegar a terceiros e/ou mesmo a instituições[20] os mencionados deveres que são inerentes ao exercício do “poder familiar”.
Ocorre que,
consoante acima ventilado, contrariando tal orientação, que resultou de uma
contínua evolução legislativa e do pensamento humano, encontrando profundas
raízes na supramencionada “Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao
Adolescente”, que como vimos serviu de inspiração ao art.227, de nossa
Carta Magna, o citado art.5º, parágrafo único, do novo Código Civil permite que
os pais, por simples ato unilateral de vontade, traduzido em instrumento
público que dispensa a necessidade de intervenção ou homologação pela
autoridade judiciária, emancipem seus filhos maiores de 16 (dezesseis) anos e,
por via de conseqüência, provoquem a extinção do “poder familiar” que exercem em relação a eles, bem como de todos os
deveres correspondentes ao referido múnus.
É o que se extrai
da análise do art.1.635, inciso II, do novo Código Civil:
Art.1.635.
Extingue-se o poder familiar:
I – ... ;
II – pela
emancipação, nos termos do art.5º, parágrafo único;
... .
Com efeito,
extinguindo-se o “poder familiar”,
também cessam, ipso jure, as obrigações a que aludem os
citados art.22, da Lei nº 8.069/90; art.1634, do Código Civil e art.229, da
Constituição Federal, ressalvada a obrigação alimentar, no caso de comprovada
necessidade, ex vi do disposto no
art.1.694 e seguintes também da Lei Civil.
Ocorre que,
como vimos acima, os deveres inerentes ao “poder familiar” vão muito além da
singela prestação de assistência material e/ou a representação/assistência para prática dos atos da vida
civil, pois também (e com maior relevância) compreendem a convivência familiar,
a orientação e educação no sentido mais amplo da palavra, o apoio moral e
emocional a que toda criança ou adolescente tem direito, que a partir da
emancipação não mais poderão ser exigidos dos pais.
A situação
resultante da incidência do art.5º, par. único, da
nova Lei Civil acaba sendo mais prejudicial ao adolescente emancipado do que se
verificava à época em se admitia a “renúncia” ou “delegação” do “poder familiar”, pois era então possível
colocá-lo em família substituta, a título de guarda ou tutela, o que com a
extinção do “poder familiar” e
obtenção, de forma precoce e indevida, da plena capacidade civil, não mais será
possível[21].
Importante
observar que o aludido permissivo legal, além de dispensar expressamente a
intervenção da autoridade judiciária para seu exercício e aperfeiçoamento,
também não prescinde – por incrível que possa parecer – do próprio
consentimento do adolescente, que assim pode se ver “emancipado” até mesmo
contra a sua vontade.
Desnecessário
tecer maiores comentários acerca da situação teratológica daí resultante, que
faculta aos pais a emancipação de filhos ainda adolescentes que lhes causem
inconvenientes, se eximindo assim, por ato unilateral de vontade e, ao menos a priori, alheio ao controle judicial[22], de todas as obrigações legais e
constitucionais inerentes ao “poder
familiar” que com tal medida se extingue[23], abandonando à própria sorte aqueles que têm o dever de
proteger.
As
conseqüências deletérias de práticas semelhantes, tanto para os adolescentes[24] emancipados quanto para a sociedade
são mais do que evidentes, não sendo admissível, repita-se, que um dispositivo
contido na Lei Civil, que visa resguardar pretensos interesses de natureza
privada, se contraponha a todo um arcabouço jurídico composto por normas de
Direito Público erigido no sentido da proteção
integral de crianças e adolescentes, que como dito alhures tem como
verdadeiro pressuposto a
participação ativa e decisiva dos pais[25]
no processo.
Permitir
que os pais emancipem seus filhos ainda adolescentes
por simples instrumento público, é desconsiderar todos os séculos de evolução
que sofreu o instituto do “pátrio poder”, hoje chamado “poder familiar” e, mais recentemente, o Direito da Criança e do
Adolescente, tornando sem efeito (se fosse isto possível) todas as normas de
proteção instituídas pela Lei nº 8.069/90 e Diplomas afins, com base nada menos
que na Constituição Federal e normativa internacional.
É, por fim,
desconsiderar o próprio fato
incontestável de que adolescentes
de 16 (dezesseis) ou 17 (dezessete) anos de idade, por mais que queiram
contra-argumentar alguns[26] ainda não estão preparados para a
prática sistemática e desassistida dos atos da vida
civil, pois na forma da Lei e da Constituição Federal, e não por acaso, são
considerados “pessoas em desenvolvimento”, que como tal têm o direito
inalienável de receber a contínua assistência de adultos, de preferência seus
próprios pais, aos quais deve o Estado garantir a orientação, o amparo, o
tratamento – e se necessário a cobrança e responsabilização – regulamentares, e
jamais tolerar a pura e simples
“renúncia” a suas indelegáveis obrigações, como resultado da aplicação,
desavisada ou deliberada, da norma contida no art.5º, par. único (notadamente
em seus incisos I e II), da Lei Civil.
Não seria
surpresa alguma se a indigitada e malsinada inovação legislativa promovida pela
Lei Civil desse margem a decisões judiciais, e mesmo a
futuras alterações legislativas no sentido de permitir, por exemplo, que adolescentes
maiores de 16 (dezesseis) anos de idade, emancipados ou não, exerçam atividades
hoje consideradas proibidas pelas normas trabalhistas, conduzam veículos
automotores ou situações ainda piores, trazendo prejuízos, repita-se, não
apenas a eles próprios mas a toda sociedade.
No mesmo
diapasão, a equivocada, inconstitucional e despropositada emancipação de
adolescentes a partir dos 16 (dezesseis) anos de idade, por singela concessão
de seus pais, irá fornecer farta “munição” e
argumentos para os partidários da redução da idade penal, se tornando o ponto
de partida para um retrocesso sem precedentes no Direito Positivo brasileiro,
no que diz respeito à atenção e proteção à criança e ao adolescente, outrora (e
ainda hoje) considerado um dos mais avançados do mundo.
Faz-se
mister, portanto, e em caráter de urgência,
que a situação resultante da conjugação dos arts.5º,
par. único, inciso I e 1.635, inciso II, ambos do Código Civil de 2002, seja
formal e expressamente declarada inconstitucional
à luz do disposto nos arts.226, 227 e 229, todos da
Constituição Federal de 1988, não sendo mais admissível que os pais, por
simples ato de vontade, alheio ao controle judicial e ao consentimento de seus
filhos, os emancipem após estes atingirem os 16 (dezesseis) anos de idade.
Solução
semelhante deve também atingir o disposto no art5º,
par. único, incisos III, IV e V, também da Lei Civil,
na medida em que o simples fato de um adolescente passar a exercer emprego
público efetivo, colar grau em curso superior (situação de difícil ocorrência
na prática, convenhamos), se estabelecer civil ou comercialmente, ou ainda
celebrar contrato de trabalho, de modo que venha a ter economia própria, não
podem “habilitá-lo” automaticamente para prática de atos da vida civil e muito
menos, desobrigar seus pais (ou tutor) dos encargos que lhes são inerentes, que
como dito acima vão muito além da prestação de assistência material, que parece
ter sido a única preocupação da Lei Civil[27].
O ideal
seria a imediata supressão do
referido art.5º, par. único[28] e do inciso II, do art.1.636, ambos do Código Civil de 2002,
seja por alteração legislativa promovida junto ao próprio Código Civil, seja
como resultado de ação direta de inconstitucionalidade que nesse sentido venha
a ser manejada por quem de direito.
Nada
impede, porém, que o Poder Judiciário desde logo e no exercício do chamado
“controle difuso” da constitucionalidade das normas, reconheça, incidenter tantum e de
forma sistemática, a inconstitucionalidade dos citados dispositivos e dos
efeitos que se pretenda ver produzidos em razão de sua aplicação, evitando
assim, o quanto possível, os potenciais malefícios causados aos “adolescentes
emancipados”, categoria de pessoas que, na forma da Lei e da Constituição
Federal não pode existir[29].
Notas:
[1] Conforme
inteligência dos arts.402 a 441, da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.
[2] Conforme
art.14, §1º, inciso I, da Constituição Federal de 1988.
[3] Conforme
inteligência do art.27 do Código Penal e do art.228, da Constituição Federal.
[4] Nesse
sentido, merecem especial destaque a Declaração Universal dos Direitos da
Criança; as Regras Mínimas das Nações Unidas Para a Administração da Justiça da
Infância e Juventude – Regras de Beijing, que de
maneira expressa, em seu item 2.2 define “jovem” como sendo “toda
criança ou adolescente que, de acordo com o sistema jurídico respectivo, pode
responder por uma infração de forma diferente do adulto” (estabelecendo
assim uma vinculação entre a idade da responsabilidade penal e os conceitos de
“criança”, “adolescente” e “jovem”), além, é claro, da Convenção das Nações
Unidas sobre Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações
Unidas em 20/11/89 (cujo texto foi adotado no Brasil pelo Decreto n° 99.710, de
21 de novembro de 1990, após a análise pelo Congresso Nacional, que a aprovou -
Dec. Legislativo n° 28, de 14/09/90), que também de maneira expressa, já em seu
art.1º, estabelece que “...considera-se como criança todo
ser humano com menos de dezoito anos de idade...”, ressalvada expressa
disposição em contrário existente em legislação específica aplicável a essa
categoria de cidadãos. No Brasil, como dito acima, esta legislação especial é o
próprio Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069/90, que em seu
art.2º fixa os parâmetros da infância e da adolescência. A respeito do tema,
vale observar o disposto no art.5º, §2º, da Constituição Federal, segundo o
qual aos direitos e garantias individuais relacionados em nossa carta Magna
somam-se outros inseridos nos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte. Assim sendo, por força do disposto no art.60,
§4º, também de nossa Lei Maior, devemos considerar que as regras que
estabelecem o direito de toda pessoa com idade inferior a 18 (dezoito) anos em
receber a especial e integral proteção por parte da família, da sociedade e do
Estado, ex vi do disposto nos arts.4º, caput, da Lei nº 8.069/90 e art.227, caput, da Constituição Federal, são
insuscetíveis de alteração ou supressão, ainda que por emenda constitucional,
pelo que por óbvio também não podem sê-lo por mera Lei Ordinária, como é o caso
da Lei Civil. Verifica-se, pois, que embora a Constituição Federal de 1988 não
estabeleça de forma expressa os limites da adolescência, estes foram claramente
fixados pela Lei Ordinária (Lei nº 8.069/90, em seu art.2º, caput) com base na normativa
internacional, consoante acima mencionado, bem como assimilados por toda
sistemática adotada por nossa Carta Magna com vista à proteção integral dessa categoria de cidadãos. Não resta qualquer
dúvida, portanto, que nos termos da Constituição Federal de 1988, reputam-se “crianças
e adolescentes”, de maneira indistinta, todas as pessoas com idade
inferior a 18 (dezoito) anos, que são consideradas penalmente inimputáveis pelo
seu art.228 e, para todos os efeitos, “sujeitos às normas da legislação especial”
(verbis).
No mesmo sentido, nossa Constituição Federal de maneira clara dispõe que tais
pessoas com idade inferior a 18 (dezoito) anos são destinatárias de especial e
integral proteção por parte da família, sociedade e do Poder Público,
fundamentalmente por se encontrarem “em desenvolvimento” (verbis), tanto
físico quanto mental, emocional e espiritual (inteligência do art.3º, caput e incisos I a VII, em especial o
inciso IV, de nossa Carta Magna), situação que, tanto de fato quanto de
direito, as torna incapazes de assumirem as responsabilidades decorrentes de
sua emancipação e/ou de dispensarem a assistência (em
todos os sentidos) por parte de seus pais ou responsável. Inexiste, por outro
lado, e jamais houve, qualquer vinculação entre a condição de “adolescente” e a
capacidade civil da pessoa, tanto que, na forma da Lei, a adolescência se
inicia aos 12 (doze) anos de idade, e o adolescente, até atingir os 16
(dezesseis) anos de idade, é considerado absolutamente
incapaz, para a prática dos atos da vida civil.
[5] “Art.226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”
(verbis).
[6] Conforme arts.4º, caput, primeira parte; 19; 22; 23 e par.
único; 25; 87, incisos I, II e IV; 88, inciso II; 92,
inciso I; 100; 101, incisos I e IV e 129, apenas para citar alguns.
[7] Conforme arts.2º,
incisos I e II e 23, par. único, dentre outros.
[8] Que o novo
Código Civil hoje denomina “poder familiar”.
[9] Nesse
sentido, vide dentre outras o enunciado do art.226, §7º, da Constituição
Federal.
[10] Apesar do
respeito que nutre em relação ao legislador, o autor não pode deixar de mencionar
que a mudança da tradicional designação “Pátrio Poder”, cuja origem remonta
ao Direito Romano, pelo termo “Poder Familiar” que o Código Civil
passou a adotar em seus arts.1.630 a 1.638 foi das mais infelizes, além de absolutamente
desnecessária, na medida em que há muito já estava aquele termo completamente
dissociado de sua concepção original (baseada numa família patriarcal), sendo
já utilizado, sem qualquer problema, para designar a família moderna, onde as
responsabilidades e prerrogativas em relação aos filhos são compartilhadas
entre o homem e a mulher. Os adeptos da mudança se esqueceram que,
hodiernamente, o termo “Pátrio Poder” não mais dizia
respeito apenas à pessoa do pai, mas
também à mãe, sendo certo que, tanto na linguagem leiga quanto técnica, ambos
são genericamente chamados de pais
(ou será que também será proposta a criação de um novo termo para que possamos
nos referir a eles?).
[11]
Interessante observar que não houve alteração, neste aspecto, do Código Civil
de 2002 em relação ao de 1916.
[12] O art.146
da Lei nº 8.069/90, que trata do acesso
à justiça, estabelece que os relativamente incapazes serão assistidos e os
absolutamente incapazes serão representados na forma prevista na legislação
civil ou processual.
[13] Podendo
mesmo haver a aplicação simultânea (embora em procedimentos distintos) de
sanções penais e sanções administrativas sem que isto importe em bis in idem, dada natureza jurídica
diversa entre ambas.
[14]
Importante observar que em razão de o “poder
familiar” não comportar renúncia
por parte dos pais, o procedimento deflagrado para sua suspensão ou destituição
é considerado uma "ação de estado",
pois versa sobre um direito indisponível,
reclamando assim a aplicação do disposto no art.320, inciso II do Código de
Processo Civil. Assim sendo, ainda que não contestado o feito, obrigatoriamente terá de ser ele instruído,
bem como devidamente comprovada a
presença da alegada CAUSA de suspensão
ou destituição (tal qual o previsto no art.22 da Lei nº 8.069/90 e art.1634
do Código Civil de 2002), sendo inaplicáveis
os efeitos da revelia, previstos no
art.319 do citado Diploma Processual Civil
[15] Quanto
aos adotantes, uma vez que a adoção lhes confere a condição de pais do adotado (valendo observar a
vedação a designações discriminatórias relativas à filiação prevista no
art.227, §6º, da Constituição Federal), com ela também passam a desfrutar do “poder familiar” em relação a este.
[16] Assim
como, mutatis mutandis, na
falta destes aos guardiães e tutores em relação a
seus pupilos.
[17] Às quais,
por sua vez, devem corresponder programas específicos de atendimento previstos
nos arts.88,
inciso III e 90, incisos I e II, do mesmo Diploma Legal.
[18] A
proteção ao regular e responsável exercício do “poder familiar”, deve ser proporcionada através de políticas públicas adequadas,
articuladas entre governo e sociedade e elaboradas conjuntamente pelos
Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e da Assistência Social em
todos os níveis.
[19] Ou na
falta destes de uma pessoa adulta que venha a se tornar por eles responsável.
[20] Razão
pela qual o abrigamento de crianças e adolescentes é
expressamente definido pelo art.101, par. único, da
Lei nº 8.069/90 como “medida excepcional e temporária” e
mesmo para criança que esteja abrigada é por verdadeira questão de princípio
garantida, na forma do art.92, inciso I, do mesmo Diploma Legal, a “preservação
dos vínculos familiares”, como forma de permitir o retorno ao convívio
familiar da forma mais rápida possível.
[21] Já se
considerava que a guarda, face a inteligência do
art.2º, par. único, da Lei nº 8.069/90, somada à
ausência de qualquer disposição estatutária expressa para sua permanência em
relação a pessoas entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos de idade, se
extinguia com o atingimento dos 18 (dezoito) anos de
idade mesmo antes do advento do novo Código Civil, sendo que a tutela, na forma
do disposto nos arts.1728 e 1763, inciso I deste
mesmo Diploma Legal, somente tem lugar enquanto durar a incapacidade do
tutelado, também extinguindo-se ipso jure com sua
emancipação.
[22] Evidente
que, como decorrência do verdadeiro princípio insculpido
no art.5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, seria possível ao adolescente,
ao Ministério Público ou outro legitimado, recorrer ao Poder Judiciário para o
fim de anular a emancipação promovida para fins escusos (diga-se com o fim
deliberado de prejudicar o adolescente e eximir os pais de obrigação legal),
porém a subjetividade de tal situação e efeitos deletérios em alguns casos
irreparáveis que fatalmente iriam surgir enquanto não fosse a mesma revertida
não recomendariam, ainda que constitucional fosse a norma questionada, sua
permanência no mundo jurídico. Destaque-se ainda, a propósito, a preocupação
eminentemente preventiva do
consignado no art.227, da Constituição Federal e “Doutrina da Proteção Integral à
Criança e ao Adolescente” que o inspira.
[23]
Ressalvado, como dito alhures, o dever alimentar, no caso de comprovada
necessidade.
[24] E para todos
demais efeitos, inclusive para fins de proteção do Estado, consoante alhures
mencionado, estes ainda como tal deverão ser considerados, já que a
conceituação jurídica do que vem a ser um “adolescente” (e mesmo a
aplicabilidade da Lei nº 8.069/90, quer a estes, quer a pessoas maiores de 18
anos de idade, na forma do disposto em seu art.2º, par. único),
jamais esteve relacionado à idéia da capacidade civil, tendo raízes muito mais
profundas, que como dito abrange a normativa internacional. A própria sistemática
concebida pela Constituição Federal para proteção
integral de crianças e adolescentes tem por pressuposto lógico (e mesmo
“histórico”) a conceituação destes como pessoas de idade inferior a 18
(dezoito) anos, independentemente de sua capacidade civil, que jamais foi
sequer cogitada para fins de incidência ou não do art.227, da Constituição
Federal.
[25] Ou de um
responsável adulto, nos casos em que é necessária a colocação em família
substituta.
[26] Que
confundem “formação”, acima de tudo sob o ponto de vista emocional, ético e
moral (ou educacional, no sentido mais amplo da palavra), com a singela
“possibilidade de acesso à informação”, que muitos adolescentes possuem,
informação esta que não raro muito mais “deforma” do que “forma” a consciência
e a personalidade do jovem.
[27] Para a
hipótese de casamento (art.5º, par. único, inciso II,
do Código Civil), em que na prática haverá a constituição de uma nova família,
de modo a não afrontar os ditames da “Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao
Adolescente” retro-invocados, de lege ferenda sugere-se a expressa ressalva de
que sua efetivação não importa na supressão dos deveres inerentes ao “poder familiar” enquanto o cônjuge for
ainda adolescente.
[28] Que
talvez pudesse subsistir apenas em relação ao casamento, com a ressalva acima
proposta ou similar, que venha a preservar os deveres parentais
para com o filho, mesmo casado, enquanto adolescente.
[29] Em última
análise, ainda que não se reconheça, ad argumentandum tantum, a
inconstitucionalidade dos textos legais citados, seria necessário, em caráter
emergencial, a edição de nova Lei ou dispositivo legal específico, que viesse a
estabelecer, de maneira expressa, que a emancipação do adolescente a partir dos
16 (dezesseis) anos de idade não importaria na extinção dos deveres inerentes
ao “poder familiar” (assim como os
decorrentes de tutela ou guarda), que precisam ser mantidos íntegros, ainda que
sob outro título ou fundamento, até o jovem completar 18 (dezoito) anos de
idade. O que não se pode permitir, repita-se, é a subsistência, no mundo
jurídico, da situação decorrente da conjugação dos arts.5º,
par. único e 1.635, inciso II, do Código Civil, de
graves e indesejadas (creio também impensadas, pelo legislador) conseqüências
para o adolescente e para nossa sociedade, que precisa aprimorar – e jamais
suprimir – as regras e mecanismos de proteção a essa categoria de cidadãos
ainda em desenvolvimento.