EXMA. SRA. DRA. JUIZA DA INFANCIA E DA JUVENTUDE COMARCA DE SANTA MARIA-RS

 

 

 

 

 

 

O MINISTÉRIO PÚBLICO, com base no art. 201, V, da Lei n0 8.069/90, propõe AÇÃO CIVIL PÚBLICA, contra o MUNICÍPIO DE SANTA MARIA-RS, pelos seguintes fatos e fundamentos:

 

 

1.     OS FATOS:

 

Por razões várias (incapacidade de o Estado combater o tráfico, desagregação familiar, imitação, crise de valores, entre outros), cada vez mais, adolescentes - e até mesmo crianças - vêm consumindo substâncias alcoólicas e tóxicas em geral.

 

Em Santa Maria/RS, os problemas decorrentes do uso abusivo de drogas assume contornos estarrecedores. Pais sentem-se impotentes diante de filhos viciados. Os órgãos encarregados de atendimento, do mesmo modo, não conseguem dar satisfatório encaminhamento a esses casos, ante a inexistência de serviços e programas na Cidade.

 

As conseqüências da incapacidade de o Município enfrentar realmente o problema são inúmeras e significativas: delinqüência, fuga do lar, abandono ou mau aproveitamento escolar, crise familiar, etc.

 

Os Conselhos Tutelares, órgãos encarregados por lei de atenderem a essas situações, mostram-se impossibilitados de realizar um trabalho razoável, devido à inexistência de apoio especializado na área.

 

Em Santa Maria, salvo o atendimento fornecido pelo Conselho Municipal de Entorpecentes (trabalho de orientação) e pela Pastoral de Auxílio Comunitário ao Toxicômano/PACTO (destinado a adolescentes do sexo masculino com mais de 15 – quinze - anos de idade), praticamente nenhum outro programa existe. O Hospital Universitário limita-se a desintoxicar os pacientes, sem prestar qualquer outro serviço.

 

Diante deste quadro, os Conselhos Tutelares encaminharam ao Ministério Público, ofícios (docs. anexos), solicitando a tomada de medidas cabíveis para a criação e colocação em funcionamento de programa de orientação e atendimento a alcoólatras e toxicômanos.

 

São inúmeros os infantes e jovens dependentes ou que fazem uso abusivo de drogas. Apenas para exemplificar, há o caso do adolescente ... (Processo n0 205), que não vem tendo o atendimento adequado: os responsáveis pela PACTO, não o admitiram no programa, o Conselho Tutelar, não obteve atendimento a ele e, apesar de proposta ação buscando a aplicação de medida protetiva, até o momento a situação permanece a mesma (docs. anexos). Nem mesmo junto à FEBEM de Porto Alegre, conseguiu-se atendimento a (...). A família, apesar de empenhada em auxiliar na recuperação do menino, sente-se impotente, pela falta de orientação especializada e de tratamento razoável.

 

Face a esse quadro, nada resta ao Ministério Público, senão, buscar compelir, pela via judicial, o Poder Público local, a criar e manter em funcionamento programa eficiente de auxilio, orientação e tratamento para alcoólicos e toxicômanos, como forma de assegurar cumprimento a direitos definidos pela Constituição Federal e leis outras.

 

 

2.     OS DIREITOS A SEREM RESGUARDADOS:

 

Dispõe a Constituição Federal:

 

“Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violên­cia, crueldade e opressão.

 

Parágrafo 1º - O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não-governamentais (...);

 

Parágrafo 3º - O direito à proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

 

VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente, dependente de entorpecentes e drogas afins.

 

Além disso, estabelece:

 

“Art. 196 – A Saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas, que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente prescreve:

 

“Art. 7º - A criança e o adolescente têm direito à proteção, à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.

 

“Art. 101 - Verificada qualquer das hipóteses do art. 98, a autori­dade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:

 

VI- inclusão em programa oficial ou comunitário de auxilio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.

 

A seu turno, determina a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul:

 

“Art. 241 - A saúde é direito de todos e dever do Estado e do Município, através de sua promoção, proteção e recuperação. Art. 260 - O Estado desenvolverá política e programas de assistência e proteção à criança, ao adolescente e ao idoso, portadores ou não de deficiência, com a participação de entidades civis, obedecendo aos seguintes preceitos:

 

II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependentes de entorpecentes e drogas afins...”.

 

Por fim, a Lei Orgânica do Município de Santa Maria/RS, em seu art. 152, praticamente repete o definido no art. 241 da Constituição Estadual.

 

Como se vê, tanto a Constituição Federal e a nossa Constituição Estadual, como o ECA, contém inúmeros dispositivos protetivos de interesses de crianças e adolescentes no que pertine à oferta de serviços de saúde, inclusive a alcoólatras e toxicômanos.

 

Embora os dispositivos mencionados, principalmente os constantes da Lei Maior do País e da Constituição Estadual, possam parecer meros enunciados genéricos, com conteúdo apenas programático, têm aplicação plena, exigindo dos administradores da coisa pública, atenção a seus preceitos.

 

Ruy Ruben Ruschel, em seu artigo “Da Eficácia dos Direitos Sociais Previstos em Normas Constitucionais”, publicado na Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul nº 33, ano 1994, lançando mão de lições de José Joaquim Gomes Canotilho e de Celso Antônio Bandeira de Mello, preleciona, à pág. 37:

 

“Quem se conserva ligado à idéia de Constituição como cobertura ideológica do status quo, não compreende a natureza evocadora,, da Constituição, o seu pedaço de ‘utopia concreta’,

o seu apelo a tarefas de conformação política(estrutura programática).

 

“A Constituição não é um simples ideário. Não é apenas a expressão de anseios, de aspirações, de propósitos. É a transformação de um ideário, é a conversão de anseios e aspirações em regras impositivas. Em comandos. Em preceitos obrigatórios para todos: órgãos do Poder e cidadãos...”.

 

Por outro lado, Olympio de Sá Sotto Maior Neto, em seu artigo “O Ministério Público e a Proteção a Interesses Individuais, Coletivos e Difusos Relacionados à Infância e Juventude”, publicado na Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul nº 29, ano de 1993, págs. 102 a 110, assevera que o ECA se encontra edificado sobre duas pilastras básicas. Uma delas, “consiste no desiderato de garantir à infância e juventude, direitos prometidos na Constituição Federal, impedindo transformarem-se em letras mortas (...) de não permitir que os direitos mencionados na Carta Magna acabem postergados ou transmudados em meras declarações retóricas”.

 

Não se pode olvidar que os direitos afetos a infantes e jovens, devem ser atendi­dos com “absoluta prioridade” pelo Poder Público. Ou seja, nada é mais urgente que a criação de programas e serviços, para beneficiar o desenvolvimento sadio e harmonioso de crianças e adolescentes.

 

Wilson Donizetti Liberati, em sua obra “Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente”, SP, Malheiros Editores, 1993, pág. 16, ao analisar o art. 4º do ECA, assim se pronunciou:

 

“Por ‘absoluta prioridade’ devemos entender que, a criança e o adolescente, deverão estar em primeiro lugar na escala de preocupação dos governantes; devemos entender que, primeiro, devem ser atendidas as necessidades das crianças e adolescentes (...)”.

 

“Por ‘absoluta prioridade’, entende-se que, na área administrativa, enquanto não existissem creches, escolas, postos de saúde, atendimento preventivo e emergencial às gestantes, dignas mora­dias e trabalho, não se deveria asfaltar as ruas, construir praças, sambódromos, monumentos artísticos, etc., porque a vida, a saúde, o lar, a prevenção de doenças, são mais importantes que as obras de concreto, que ficam para demonstrar o poder do governante”.

 

Alguns tribunais, atentando aos princípios antes indicados, já vêm determinando ao Poder Público, a criação de programas para atendimento de menores.

 

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por sua 3ª Câmara Cível, ao apreciar a Apelação Cível nº 44.569, de Lages, assim decidiu:

 

“AÇÃO CIVIL PÚBLICA - OMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL EM IMPLEMENTAR OS PROGRAMAS DE AUXÍLIO CONTIDOS NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - REMESSA DESPROVIDA.

 

Exsurge caracterizada a omissão ensejadora da utilização da ação civil pública, a não implementação, por parte da edilidade, dos programas de assistência, previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente”.

 

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, do mesmo modo, ao julgar a Apelação nº 62, determinou:

 

“Demonstrada que restou a precariedade dos estabelecimentos existentes, cumpre ao Distrito Federal, dar cumprimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que regulamentou o art. 227 da Constituição Federal, fazendo constar do Orçamento de 1994, dotação para a construção de casas destinadas ao internamento de menores infratores, bem assim a estabelecimentos que reco­lham os mesmos em medida de semi-liberdade, uma vez que a própria Carta Magna determina, seja dada prioridade absoluta à matéria”.

 

“Não pode o Poder Judiciário, determinar ao Poder Executivo, a forma de administrar estes estabelecimentos, indicando-lhes os cargos que devem constar de seus quadros funcionais”.

 

À evidência, não cabe ao Poder Judiciário, determinar como será implementado o programa, vez que se trata de matéria afeta à discricionariedade administrativa, em princípio. Contudo, deve o mesmo ser eficiente e completo, atendendo aos serviços de auxilio, orientação e tratamento, conforme determinação do ECA. Além disso, deve contar com uma equipe de profissionais especializados das mais diversas áreas (médicos, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, enfermeiros, entre outros).

 

 

3.     A POSSIBILIDADE (NECESSIDADE) DE PRONUNCIAMENTO JUDICIAL:

 

Não são poucos os casos em que pretensões como a deduzida na presente ação, vêm sendo fulminadas por juízes ou tribunais, sob a alegação da impossibilidade de ingerência do Poder Judiciário na esfera discricionária do Poder Executivo. Felizmente, porém, novos ventos sopram, apontando soluções mais ousadas e cívicas, pela atuação de julgadores empenhados em não deixar leis de alcance social significativo passarem à condição de ornamento normativo, carente de eficácia prática.

 

Judá Jessé de Bragança Soares, em seu artigo “Instrumentos Processuais no Estatuto da Criança e do Adolescente”, publicado na Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul nº 29, ano 1993, págs. 144 a 155, após afirmar que o “art. 75 do CC dá a certeza de que haverá sempre um instrumento apropriado para tomar efetivo o direito assegurado pelo ordenamento jurídico”, conclui:

 

Os direitos assegurados na Constituição e nas leis encontram, no processo judicial, o meio necessário e suficiente para a garantia coercitiva de sua efetividade, podendo o lesado ou as pessoas extraordinariamente legitimadas, provocar a ação do Poder Jurisdicional para, através do devido processo legal, restabelecer a ordem jurídica quando algum daqueles direitos seja violado ou ameaçado”.

 

Ruy Ruben Ruschel, em seu artigo já referido, às págs. 39 e 40, assim enfrentou o problema:

 

“Um dos maiores obstáculos à implementação dessa tese, resulta de como se tem entendido o princípio da separação dos Poderes. Os juristas tradicionais inclinam-se a conferir ao princípio, valor mais absoluto que atualmente tem”.

 

“Na verdade, a separação nunca assumiu um caráter rígido:

Se faltarem vontade política e eficiência prática dos demais Poderes, resta ao Judiciário, ocupar o espaço aberto, conquistando-o até fixar seus próprios limites. Se não o fizer quando invocado caso a caso, estará tomando uma postura conservadora, timorata ante as ‘doutrinas consolidadas’ (na verdade superável), cúmplice da histórica iniqüidade que infelicita nosso povo”.

 

Partindo do disposto no art. 3ºda Constituição Federal, Diomar Ackel Filho, em seu artigo “A Discricionariedade Administrativa e a Ação Civil Pública”, publicado em RT 657/51, preleciona:

 

“A Administração, na consecução dos objetivos do bem comum, tem deveres e obrigações, assim como se investe de faculdades e direitos. Ao implementar os atos que lhe competem, espelhados na condução dos serviços e obras públicas, sempre tem em mira, determinados fatos, traduzidos como realidade social, em que devem ser sopesados como imperativos a executar ou carências a suprir. Nesse desiderato, o agente público necessita avaliar essas realidades, dando azo, então, ao seu discrimen. Ao fazê-lo, por vezes, o administrador avalia equivocadamente o contexto divorciando-se do bem comum, ou mantendo-se culposa ou deliberadamente na contemplação distorcida da verdade social, omite-se, negligencia, prevarica”.

 

“É, então, que surge a possibilidade de correção do desvio ou da omissão praticada por via dos mecanismos de controle da atividade administrativa, entre as quais avulta em importância o Poder Judiciário, pela eficácia vinculativa de sua atuação”.

 

A tutela jurisdicional da espécie não representa uma interferência indébita que contrarie a regra da divisão dos poderes. É sabido que a harmonia dos poderes exige uma interdependência recíproca...”.

 

A jurisprudência, como se referiu, já vem retificando o entendimento doutrinário antes alinhado.

 

A Oitava Câmara Cível de Férias G do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, à unanimidade, ao apreciar a Apelação Cível nº 201.109-1, assim decidiu:

 

“Não se deve negar ao Ministério Público a legitimidade ativa ad causam, na defesa do cumprimento das normas constitucionais, sob o argumento da independência entre os poderes. São independentes, enquanto praticam atos administrativos interna corporis. Não são independentes para, a seu talante, desobedecerem à carta Política, às leis e, sob tal pálio, permanecerem cada um a seu lado, imunes à reparação das ilegalidades(Lex 155/98).

 

Outrossim, a Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao julgar a Apelação Cível nº 44.569-SC, com base em doutrina de Rodolfo de Camargo Mancuso, pronunciou-se da seguinte forma:

 

“Não se trata de inchamento do Poder Judiciário, porque quando ele outorga tutela aos interesses meta individuais, não está desenvolvendo atividade de ‘suplência’, é sua própria atividade, de outorgar tutela a quem a pede e merece. No caso dos interesses difusos, a intervenção judicial é hoje considerada fundamental; não é que esse Poder esteja a invadir a seara dos outros: será, antes, um sinal de que os outros não estão a tutelar esses interesses, obrigando os cidadãos a recorrerem diretamente à via jurisdicional...”.

 

O culto magistrado gaúcho Eugênio Facchini Neto, ao julgar o Processo nº 4.284/649 da Vara da Infância e da Juventude de Passo Fundo, apreciou exaustivamente a questão em tela. Da sentença merece transcrição a seguinte passagem:

 

“Cumpre deixar claro que o signatário devota intenso respeito às atividades legislativa e administrativa, pois delas depende, na realidade, a possibilidade concreta de consecução do bem comum. E evidente que, no exercício de tais atividades, os agentes dos demais poderes se defrontam com situações fáticas que comportam várias alternativas de atuação. Como todos (administradores, legisladores, juízes), somos humanos, é patente a possibilidade de que as opções feitas pelos agentes estatais estejam erradas. Assenta-se, assim, como premissa maior, que existe a natural possibilidade de que o administrador e os legisladores embora legitimados pelas urnas e imbuídos de boa-fé e espírito público, venham a errar, por ação ou omissão”.

Desejosos todos de viver em um Estado efetivamente Democrático, surge também evidente que deve haver alguma forma de possibilitar a revisão de tais (possíveis) erros. Sabe-se, porém, da quase impossibilidade de se corrigir uma falha oriunda do Legislativo (quando de sua atividade típica) e da enorme dificuldade de se corrigir falhas oriundas do Executivo, mediante con­troles e mecanismos internos a esses poderes. A solução albergada pelo sistema, portanto, é o controle de tais ‘erros’ ou ‘falhas’ (cometidas quer por ação, quer por omissão) pelo Poder Judiciário. O controle judicial de tais atividades é feito de forma pública (já que o processo não corre em segredo de justiça, as parte interessadas têm o direito constitucional de expor cabalmente as suas razões, qualquer decisão deve ser fundamentada e comporta ela revisão pelas instâncias recursais)”.

 

“Assim, quando o Judiciário vem a ser provocado por qualquer do povo (mediante ações populares, ações civis públicas e mandados de segurança coletivo, dentre outros remédios processuais, de perfil constitucional, cabíveis) ou pelo Ministério Público (a quem foi atribuída institucionalmente, pelo legislador constituinte, a tarefa de defender os interesses públicos em geral, bem como os interesses coletivos e difusos), para analisar a possibilidade de ter havido algum erro por parte dos agentes dos demais poderes, tal fato deve ser encarado com a maior naturalidade, pois é esta a forma de funcionar um sistema realmente democrático”.

 

A atuação do Judiciário deve ser vista como urna forma de colaborar para a real identificação do interesse público - que deve ser o único fim buscado pelos integrantes dos três poderes. Não se trata, portanto, de uma atividade propriamente censória ou punitiva, mas sim de um mecanismo previsto no sistema democrático para tentar garantir que o bem público realmente seja alcançado sempre”.

 

Destarte, não resta dúvida acerca da possibilidade de pronunciamento do Poder Judiciário a respeito da questão. Aliás, há necessidade de tal manifestação, ante a inércia do Município em, por si só, criar o programa de atendimento a crianças e adolescentes, dependentes de entorpecentes e drogas afins.

 

 

4.       A  AÇÃO CIVIL PUBLICA:

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe:

 

“Art. 208 — Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não-oferecimento ou oferta irregular:...

 

VII — de acesso às ações e serviços de saúde (...);

 

Art. 212— Para a defesa dos diretos e interesses protegidos por esta Lei, são admissíveis todas as espécies de ações pertinentes.

 

Art. 213— Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resulta­do prático equivalente ao do adimplemento.

 

Parágrafo 1º -...

 

Parágrafo 2º  ...O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou da sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito (...).

 

Art. 224 — Aplicam-se subsidiariamente, no que couber, as disposições da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985.

 

Dos dispositivos transcritos, verifica-se que, para a proteção de direitos de crianças e adolescentes, são admitidos quaisquer tipos de ação. Contudo, parece ter sido a ação civil pública escolhida como o instrumento mais adequado, ao menos em se tratando de pretensão aforada pelo Ministério Público.

 

José Luiz Mônaco da Silva, em comentário ao art. 208 da Lei Menorista, esclarece:

 

“Uma vez tisnados os direitos previstos tanto na Constituição Federal quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, o legislador arma a sociedade de poderes para, em prol sobretudo de um número determinável ou indeterminável de crianças e adolescentes, expurgar quaisquer ilegalidades cometidas, tais como o não oferecimento (ou oferecimento deficiente) de ensino obrigatório, atendimento educacional especializado aos portadores físicos e mentais, tudo de acordo com o rol compreendido no art. 208 que, convém registrar, é meramente exemplificativo, a teor de seu parágrafo único.

 

Como se vê do caput do art. 208, o simples oferecimento irregular de serviços na área social já é suficiente para autorizar a propositura das ações previstas no Capítulo VII, de tal maneira que o Estatuto, acertadamente, não foi ao extremo de condicionar o exercício da ação à inexistência desses serviços (...).

 

A oferta irregular refere-se tanto ao aspecto quantitativo quanto ao aspecto qualitativo (...).

 

Em todos esses casos, fere-se de morte o disposto no art. 208, inc. I da Carta Magna, coincidentemente o mesmo artigo previsto no ECA (art. 208, inc. I), situação que comporta a adoção de medidas judiciais, levadas o termo por meio do exercício da chamada ação civil pública (em sua obra “Estatuto da Criança e do Adolescente - Comentários”, SP, RT, 1994, págs. 362 e 363).

 

 

5.       A LEGITIMIDADE ATIVA:

 

A legitimidade do Ministério Público para a propositura da presente ação é indiscutível. Decorre do art. 127 e do art. 129, III, ambos da Constituição Federal, do art. 25, IV, “a”, da Lei nº 8.625/93 e do art. 201, V, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Mais especificamente, o art. 210, I, da Lei Menorista define ser atribuição do Parquet promover ações cíveis fundadas em interesses coletivos e difusos de crianças e adolescentes.

 

Olympio de Sá Sotto Maior Neto, no seu artigo já citado, afirma que:

 

 os Promotores e Procuradores de Justiça passaram a ter o dever funcional de atuarem no sentido de garantir a efetivação das normas estabelecidas em favor das crianças e adolescentes(pág. 107).

 

Mais adiante, na pág. 108, refere que o Ministério Público:

 

 “deve agora atuar como verdadeiro agente político, interferindo positivamente na realidade social e, através de exame do conteúdo ideológico das normas jurídicas, dar a prevalência para a efetivação daquelas que signifiquem proposta de libertação do povo, internalizando no espaço oficial do Judiciário as reivindicações sociais na forma de conflitos coletivos, politizados e valorizados sob a ótica das classes populares”. Arremata, ainda na pág. 108, esclarecendo que sua atuação não raras vezes implicará em cobrar das autoridades públicas uma atuação mais eficiente no fornecimento às crianças e adolescentes de educação, saúde, profissionalização, lazer etc, vez que sua tarefa obriga preferência ao interesse público primário (ou seja, o interesse do bem geral), em contraposição às vezes com o interesse público secundário (ou seja, o modo pelo qual os órgãos governamentais vêem o interesse público)”.

 

 

6.       A LEGITIMIDADE PASSIVA:

Estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente:

 

“Art. 86 — A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

 

Art. 87 — São linhas de ação da política de atendimento:

 

“I — políticas sociais básicas...

 

Art. 88 — São diretrizes da política de atendimento:

 

I — a municipalização do atendimento;

 

II — ...

 

III — criação e manutenção de programas específicos, observadas a descentralização político-administrativa...”.

 

A Lei 8.069/90 foi responsável por uma mudança radical de postura no enfrentamento de problemas afetos a crianças e adolescentes. Agora, os programas para atendimento devem contar com o apoio do Poder Público e da comunidade, em ações integradas, bem como observar os princípios da municipalização e da descentralização.

 

Isto significa que a sociedade é co-responsável pelos programas alcançados aos menores, em suas mais diversas áreas. Busca-se evitar, assim, a conhecida “prefeiturização” dos serviços postos à disposição. Contudo, isto não significa que, ante a necessidade de criação de algum programa de atendimento, possa o Poder Público local, omitindo-se, aguardar a iniciativa da comunidade. Cumpre-lhe criar a estrutura básica de atendimento, com o apoio de entidades privadas, sempre que possível. Cumpre-lhe, também, adotar medidas com vistas à mobilização social, sempre que necessário.

 

A este respeito, calha a lição de Wilson Donizetti Liberati e Públio Caio Bessa Cyrino, na obra “Conselhos e Fundos no Estatuto da Criança e do Adolescente”, SP, Malheiros Editores, 1993, pág. 72:

 

“importa dizer, no entanto, que, embora não seja exclusiva do Poder Público, essa obrigação lhe é própria. Não pode o Poder Público, sob o argumento de que municipalizar não é prefeiturizar, omitir-se de criar instrumentos, aparelhos sociais e burocráticos, ou inviabilizar o atendimento de crianças e adolescentes, deixando tudo para a iniciativa privada e filantrópica.

 

As obrigações típicas e próprias do Poder Público local devem ser por ele assumidas, pois municipalizar significa que a política de atendimento será formulada e executada, geograficamente, no Município, considerando suas peculiaridades locais.

 

Quando o art. 86 do ECA afirma que ‘a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios’, reconhece e determina que o Poder Público deverá criar ‘programas e ações’, que, em articulação ou convênio com entidades não governamentais, irão constituir uma rede de atendimento tutelar.

 

Embora municipalizar não seja prefeiturizar, o Poder Público local tem a obrigação primeira de criar mecanismos e instrumentos que viabilizem o atendimento infanto-juvenil e, juntamente com as entidades não governamentais, instituir o ‘sistema municipal de atendimento’.

 

Se ocorrer a omissão do Poder Público, compete aos órgãos legitimados no art. 210 do Estatuto a provocação do Poder Judiciário, que concederá a prestação jurisdicional para criar ou fazer funcionar os programas de atendimento.

 

Por outro lado, a municipalização e a descentralização do atendimento significam que se devem priorizar ações locais, prestadas por quem tenha conhecimento imediato da realidade social. Eventualmente, em se tratando de programas com alcance regional, a responsabilidade por sua criação é do Estado. À União, cabe pouco mais que o repasse de verbas.

 

Felício Pontes Jr., em sua obra “Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente”, SP, Malheiros Editores, 1993, pág. 14, aduz:

 

“Concretamente, isso significa que União não pode, de forma alguma, elaborar e executar programas que visem ao atendimento dos direitos infanto-juvenis, sob pena de ferir o princípio constitucional da descentralização político-administrativa e o princípio estatutário da municipalização. Constata-se, assim, que a função primordial atribuída à União não está na elaboração e execução de projetos que visem ao atendimento dos direitos de crianças e adolescentes, e sim no repasse dos recursos técnicos e financeiros aos Estados e municípios, os quais formularão a política social para a infanto-adolescência por meio dos respectivos Conselhos de Direitos, ocasião em que fica estabelecido o órgão estadual e municipal de execução.

 

Em respeito à diretriz da municipalização, o Estado apenas formula e executa os projetos de nível regional, sempre articulado com os municípios envolvidos.

 

Portanto, como se trata de programa de interesse estritamente local, cabe ao Município de Santa Maria criá-lo e mantê-lo em funcionamento, com a colaboração da comunidade, se possível - como já se referiu, a maneira pela qual será o serviço implementado é da discricionariedade do Poder Público.

 

7.       OS PEDIDOS:

 

EX POSITIS, requer o Ministério Público:

 

a)                        a citação do demandado, na pessoa de seu representante legal (art. 12, II, do Código de Processo Civil), para, se quiser, oferecer contestação no prazo legal;

 

b)                       a produção de todos os meios lícitos de provas que se afigurarem necessários;

 

c)                        ao final, a procedência da ação, para condenar o Município de Santa Maria à obrigação de fazer, consistente em incluir no orçamento verba suficiente, criar e manter em funcionamento programa de auxilio, orientação e tratamento a crianças e adolescentes alcoólatras e toxicômanos, no prazo de 6 meses, a contar do início do exercício orçamentário, sob pena de pagamento de multa diária no valor de R$ 5.000,00, a ser revertida para o Fundo Municipal da Criança e do Adolescente, e sem prejuízo de outras providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

 

Causa de valor inestimável.

 

Santa Maria, 17 de dezembro de 1995.

 

 

Bruno Heringer Júnior,

Promotor De Justiça.