O PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO NA
EDUCAÇÃO INFANTIL: A CONSTRUÇÃO DO SILÊNCIO E DA SUBMISSÃO
Eliane
dos Santos Cavalheiro
Resumo: Este trabalho procura compreender a socialização, no que tange às relações étnicas estabelecidas no espaço da pré-escola e no espaço familiar. A fim de desenvolver a análise desejada, foi realizada uma pesquisa de campo de maneira a, através da observação sistemática do cotidiano escolar, aprender como são estabelecidas as relações interpessoais entre professores e alunos. Além disso, foram realizadas entrevistas com o corpo docente, com as crianças e seus familiares, buscando compreender como percebem, entendem e elaboram a formação multi-étnica da sociedade brasileira. Verificou-se a predominância do silêncio nas situações que envolvem racismo, preconceito e discriminação étnicos, o que permite supor que a criança negra, desde a educação infantil, está sendo socializada para a submissão.
Palavras-chave: Socialização; Racismo; Preconceito; Discriminação; Identidade étnica.
A discussão sobre as relações étnicas em território brasileiro representa uma questão necessária para a promoção de uma educação igualitária, compromissada com o desenvolvimento de todos os cidadãos. Esta é uma discussão impreterível na medida em que o sistema de ensino mostra-se inadequado para o segmento negro (1) da população. De acordo com diversos estudos realizados nas escolas brasileiras, o racismo aflora de inúmeras formas, ocultas ou não (2). Desse modo, conseguir lançar alguma luz sobre os conflitos étnicos no âmbito da educação escolar representa uma necessidade para a configuração de uma sociedade democrática.
No tocante à educação infantil, há um número reduzido de pesquisas que têm como preocupação a diversidade étnica existente na sociedade e, diante disso, as relações interpessoais estabelecidas nesse nível escolar. As pesquisas já realizadas confirmam a existência de problemas decorrentes do racismo, preconceito e discriminação étnicos, destacando a existência destes na relação interpessoal entre os adultos e adultos/crianças. Esses trabalhos não sinalizam, porém, a existência de discriminação entre as crianças (OLIVEIRA, 1994; GODOY, 1996).
A compreensão da dinâmica das relações multi-étnicas no âmbito da educação infantil representa, um recurso de avanço no combate ao racismo brasileiro, e às desigualdades predominantes na sociedade. O entendimento desta questão no cotidiano da educação é condição sine qua non para se arquitetar um projeto novo de educação que possibilite a inserção social o desenvolvimento igualitário dos indivíduos. Tal fato contribuiria para desenvolver nas pessoas um pensamento menos comprometido com a visão dicotômica de inferioridade/superioridade dos grupos étnicos. A possibilidade de as crianças receberem uma educação igualitária, desde os primeiros anos escolares, representa um dever de toda a sociedade, pois as crianças dessa faixa etária ainda são desprovidas de autonomia para aceitar ou negar o aprendizado proporcionado pelos mediadores, tornando-se vítimas indefesas dos preconceitos e estereótipos difundidos no dia-a-dia.
O processo de socialização é compreendido como fundamental para o desenvolvimento humano. O conceito é utilizado neste estudo nos termos em que o definiram BERGER & LUCKMAN, 1976. A socialização torna possível à criança a compreensão do mundo, por meio das experiências vividas, ocorrendo paulatinamente a necessária interiorização das regras afirmadas pela sociedade. Nesse início de vida a família e a escola serão os mediadores primordiais, apresentando/significando o mundo social. As idiossincrasias estarão determinando as diferenças pessoais, pois esse processo não é simplesmente ensinado: a criança mostra-se um parceiro ativo, podendo procurar novas informações em outros lugares. Deste modo, as atitudes e comportamentos sociais não serão obrigatoriamente cópias fiéis das atitudes e comportamentos de seus mediadores. Dizer isto não significa, porém, diminuir o papel dos mediadores, nem desconsiderar o fato de as crianças se identificarem com os seus familiares: pais, irmãos mais velhos e outros adultos. Elas podem, inconscientemente, copiar a conduta do adulto como elas vêem o adulto atuando à sua volta.
Assim, esse processo na primeira infância implica conhecer as atitudes e os comportamentos dos familiares, adultos e jovens, mas também ao conjunto de normas, regras e crenças praticados e valorizados pelo grupo, que possibilitarão a sua introdução na sociedade. Como afirma GOMES (1990), haveria uma:
"(...) imperiosidade de analisar os três ângulos da questão: o mundo social imediato a ser interiorizado pela criança; a família que, além de ser mediadora, tem especificidades que a distinguem de qualquer outra; a criança que, sujeito da aprendizagem social, interiorizará o mundo mediado a partir de suas próprias idiossincrasias e de maneira singular e solitária” (GOMES, 1990, p. 59).
Não se concebe um desenvolvimento proporcionado exclusivamente pela educação formal, como também não se entende esse desenvolvimento sendo realizado unicamente pelo grupo familiar. Afinal, juntas, escola e família são responsáveis pela formação do indivíduo. Não se pode valorizar a escola em oposição à educação familiar e vice-versa. Em ambos espaços, o contato com outras crianças de mesma idade, com outros adultos não pertencentes ao grupo familiar, com outros objetos de conhecimento vai possibilitar outros modos de leitura do mundo. Toda essa nova experiência pode ser muito positiva para o desenvolvimento da criança.
As instituições de Educação Infantil organizam e formalizam uma aprendizagem que já se iniciou na família e que vai ter continuidade nas suas experiências com a sociedade. Assim, não só a família se torna responsável pela aprendizagem da vida social, embora represente, inicialmente, o elo mais forte que liga a criança ao mundo. "Ao final do processo de socialização a criança não só domina o mundo social circundante, como já incorporou os papéis sociais básicos - seus e de outros, presentes e futuros mas, acima de tudo, já adquiriu as características fundamentais de sua personalidade e identidade" (GOMES, 1990, p.60).
Numa sociedade como a brasileira, na qual predomina uma visão preconceituosa, historicamente construída a respeito do negro e, em contrapartida, a identificação positiva do branco, a identidade estruturada durante o processo de socialização terá por base a precariedade de modelos satisfatórios e a abundância de estereótipos negativos sobre negros. Isso leva a supor que uma imagem desvalorativa de negros, bem como a valorativa de indivíduos brancos, possa ser interiorizada, no decorrer da formação dos indivíduos, por intermédio dos processos socializadores. Desse modo, cada individuo socializado era nossa sociedade poderá internalizar representações preconceituosas a respeito do grupo sem se dar conta disso, ou até mesmo se dando conta por acreditar ser o mais correto.
Diante das idéias expostas, torna-se importante o conhecimento sobre a qualidade do processo de socialização vivenciado pelas crianças em seu grupo familiar e nas escolas por elas freqüentadas, para que se possa responder às seguintes indagações: em que medida a socialização, promovida atualmente nas escolas e nos lares, contribui para a construção de uma sociedade democrática, livre de desigualdades tão gritantes entre negros e brancos? Qual tipo de cidadão está sendo formado nas escolas e nas famílias?
A pesquisa que serviu de base ao presente artigo foi projetada tendo em vista o acompanhamento do indivíduo no convívio social, em suas relações multi-étnicas no espaço pré-escolar e no espaço familiar. Foram construídas as seguintes hipóteses: a) O educador da pré-escola brasileira apresenta dificuldades para perceber os problemas que podem aparecer nas relações entre crianças pertencentes a diferentes grupos étnicos; b) As crianças em idade pré-escolar já interiorizam idéias preconceituosas que incluem a cor da pele como elemento definidor de qualidades pessoais; c) O silêncio do professor, no que se refere à diversidade étnica e às suas diferenças, facilita o desenvolvimento do preconceito e a ocorrência de discriminação no espaço escolar.
A partir dessas hipóteses, interessava observar adultos e crianças interagindo na situação escolar; importava presenciar e assistir à intervenção das professoras (3), caso houvesse alguma, durante e após as ocorrências conflituosas. Para isso, foi tomada como principal fonte de coleta de dados a observação sistemática de elementos participantes do pré-escolar cotidiano - corpo docente, discente e demais funcionários. O roteiro que norteou toda a coleta de dados pautava-se, principalmente, na observação da relação professor/aluno, aluno/professor e aluno/aluno. Desses relacionamentos foram selecionados aspectos importantes como por exemplo: a) Expressão verbal - falas positivamente valorativas (elogiosas) ou negativamente valorativas (depreciativas) - explícita ou implícita - sobre algum indivíduo, sobre sua cultura ou sobre o grupo étnico; b) Prática não verbal - Atitudes que demonstrassem a aceitação ou rejeição do contato físico proposto pelas crianças e seus professores - através de abraço, beijo, carinho ou olhar e comportamentos que evidenciassem afeição ou ainda as tentativas de aproximação ou afastamento entre os indivíduos; c) Prática pedagógica das professoras, se positiva, negativa ou invisível , no que diz respeito aos materiais utilizados (cartazes, livros, revistas, desenhos ou outro meio qualquer) em relação à variedade étnica brasileira.
Essa observação sistemática, realizada no período de 8 meses, semanalmente, em três salas de aula, possibilitou o estudo de: a) alguns procedimentos de crianças e adultos diante da diversidade étnica; b) os valores atribuídos pelo profissional de educação à sua clientela; os valores atribuídos pelas crianças aos seus pares; c) e, de ambas as partes, atitudes e práticas que evidenciassem a presença de discriminação e preconceito na pré-escola. Em uma segunda etapa, foram entrevistados profissionais da escola, alunos e seus familiares. Nas entrevistas, a preocupação básica foi levantar os efeitos das relações multi-étnicas, na sociedade brasileira e na vida dos entrevistados. Assim, os depoimentos possibilitaram compreender um pouco mais a socialização das crianças no que tange ao fator étnico. A união das duas etapas, ampliou a compreensão do processo de socialização desenvolvido na educação infantil.
Convivência multi-étnica na escola: uma
realidade esquecida?
Um olhar sobre o cotidiano escolar dá margem à compreensão de uma relação harmoniosa entre adultos e crianças; negros, brancos: todos, aparentemente, usufruindo as mesmas oportunidades. A escola representaria, assim, um espaço positivo que respeitaria as crianças, possibilitando-lhes um desenvolvimento sadio. Essa mesma percepção têm as profissionais que lá se encontram. Para todas, o cotidiano da educação infantil é um espaço que proporciona um desenvolvimento igualitário às crianças.
Entretanto, não são encontrados no meio de circulação das crianças cartazes ou livros infantis que expressem a existência de crianças não-brancas na sociedade brasileira. Nesse espaço, também não há falas que apontem para a percepção da existência da diversidade étnica no espaço escolar, e nem na sociedade.
Contudo, as professoras baseiam-se na cor da pele de seus alunos para diferenciá-los: "a moreninha", "a branquinha", "aquela de cor”, "a japonesinha". Essa diferenciação, constantemente empregada pelas professoras, não representaria, a meu ver, um problema se não vigorasse, no país, uma hierarquia étnica. De todo modo, cabe considerar que esses comentários feitos na presença das crianças podem ser por elas interiorizados, sem o acompanhamento crítico dos adultos à sua volta, visto é falado sobre essa questão.
Mesmo assim, a escola de educação infantil é idealizada como um espaço neutro: o espaço de convivência ideal e livre de preconceitos. As crianças são, para as professoras, indivíduos distantes do preconceito étnico, já que não se percebe nas suas atitudes diárias indícios que denunciem a interiorização da discriminação e do preconceito étnico.
Entretanto, a resposta de uma menina de seis anos à minha pergunta ("As crianças brincam com você?") contradiz a fala das professoras e mostra-nos que, em idade pré-escolar, é possível perceber diferenças de tratamento e associá-las a origem étnica.
"(..) só quando eu trago brinquedo. Porque eu sou preta. A Catarina branca um dia falou: ‘Eu não vou ser tia dela (da própria criança que está narrando)'. A gente estava brincando de mamãe. A Camila que é branca não tem nojo de mim". (E as outras crianças têm nojo de você?) "Têm".
O modo das professoras conceberem o cotidiano escolar e as relações interpessoais nele dificulta a percepção dos conflitos e, inclusive, a realização de um trabalho sistemático que propicie o entendimento da diversidade humana. Visto que para as professoras, as crianças nessa faixa de idade não "percebem" as diferenças étnicas e, se as "percebem", não se "imporiam com elas". Soma-se a isso a idéia de que tratar desse tema é algo desnecessário e "cansativo", como mostra o exemplo:
"Eu sempre falo da história do negro. Mas só em relação à data comemorativa. (...) A gente aproveita para lidar com as datas comemorativas, por exemplo, Dia da Abolição. Ao invés de trabalhar, necessariamente, o negro, a lei Áurea, aquela coisa toda, a gente vai no dia das raças (...) Senão, fica uma coisa muito cansativa". (professora branca).
Nesse caminhar, pouco valor é atribuído à presença da criança negra na escola, fator que pode levá-la a se reconhecer como participante de um grupo inferior e a entender, posteriormente, que o pertencimento a este grupo lhe é desfavorável. Tal situação também pode levar a criança branca a se reconhecer participante de um grupo racial superior, de forma equivocada.
Diante desse ambiente que ignora a presença da criança negra, a harmonia sai de cena, cedendo espaço para acontecimentos que transformam a plena aceitação de todos por todos em momentos de tensão e conflitos. Mas para as professoras, o que há é criança com problemas familiares, o que interfere na escola, tornando-as, quase sempre, agressivas. Para algumas professoras, as crianças reproduzem na escola o modelo das relações predominantes em suas famílias, assim o preconceito é algo que vem de casa.
No que concerne a existência do racismo e seus derivados na sociedade, ocorreu uma contradição. A maioria das professoras pareceu percebê-los, porém os efeitos prejudiciais às vítimas e a existência desses dentro da escola foram negados enfaticamente.
Entre esse emaranhado de idéias conflituosas sobre o racismo brasileiro e as relações multi-étnicas estabelecidas no cotidiano da educação infantil, o racismo revelou-se de forma primária e estereotipada na concepção das professoras. A repulsa ao cheiro dos negros apareceu como uma justificativa para a existência do racismo, ou seja, "o mau cheiro" do negro apareceu como o grande causador do racismo. Assim:
"(...) o preconceito de raça, se você pensar bem, geralmente é em matéria de cheiro. Uma pessoa que é negra, a pele, a melanina faz com que o cheiro fique mais forte. Hoje em dia, esse preconceito de cheiro já melhorou muito com os produtos modernos das nossas indústrias - os desodorantes, as minâncoras da vida (pomadas). Estes tipos de anti-transpirantes fazem com que não exista o cheiro. Não havendo o cheiro, não existe o porquê de o branco não conversar com o preto e vice-versa".
A professora entrevistada destacou a questão do cheiro e classificou o indivíduo negro como possuidor de um cheiro desagradável. Para ela é "natural" o mau cheiro do negro, associando-o à sujeira. O cheiro assume, no discurso, a totalidade do indivíduo, o que representa uma característica do estereótipo que se torna uma verdade absoluta, inquestionável.
Torna-se, então, impossível não se questionar em qual categoria estariam inseridas as crianças negras com as quais a professora se relaciona no seu dia-a-dia? Qual o tipo de relação que ela estabelece com essas crianças? E diante disso, o que podem as crianças negras e brancas compreender sobre si próprias e sobre as outras?
Contraditoriamente, as professoras ao relatarem os conflitos do dia-a-dia, destacaram situações que sinalizam a existência do problema étnico: segundo as professoras, é comum e constante uma criança referir-se a outra por meio de rótulos, tais como : "negrinho feio'', “negrinho nojento'', "pretinha suja''. Diante destes estereótipos, as crianças negras são recusadas para formarem par nas filas, nas brincadeiras, nas festas juninas.
No que diz respeito ao comportamento do professor em relação a esses conflitos, o depoimento de uma menina negra é bastante elucidativo. Segundo ela, as crianças a xingam:
"(...) de preta que não toma banho. Só porque eu sou preta elas falam que eu não tomo banho. Ficam me xingando de preta cor de carvão. Elas me xingaram de preta fedida. Eu contei para a professora e ela não fez nada".
A ausência de atitude por parte da professora sinalizou para a menina que ela não poderia contar com a cooperação de sua professora, visto que ela nada fez.
Entre os espaços existentes na escola, o parque representou o espaço no qual foi possível presenciar situações concretas de preconceito e discriminação entre as crianças. O parque é o local na escola onde as crianças têm a liberdade de escolher seus parceiros e decidir quanto tempo permanecerão brincando com eles. Distantes da professora, elas podem dizer o que bem entendem.
Situações conflituosas ocorreram nesse espaço nos momentos em que algo era disputado: poder, espaço físico ou companhia. Tais conflitos demonstram que o preconceito e a discriminação ocorrem naturalmente nos momentos em que uma criança deseja vencer uma outra que faz parte do grupo. Assim, nos momentos de disputa, o preconceito e a discriminação apareceram como uma poderosa arma capaz de paralisar sua vítima. Nessas situações constatou-se que as crianças expressavam com bastante tranqüilidade comentários depreciativos a respeito das crianças negras. E, diante do preconceito e da discriminação, as crianças negras permaneceram caladas, optando por se dirigir a outro grupo, ou brincar sozinhas em seu canto, como se nada tivesse acontecido. Segundo penso, a inação por parte da criança negra revela um misto de medo, dor, impotência que a impede de se defender.
O silêncio permanente das professoras a respeito das diferenças étnicas no espaço escolar, somado ao silêncio das crianças negras sobre a ocorrência de conflitos, parece conferir às crianças brancas o direito de repetir seus comportamentos, pois elas não são criticadas ou denunciadas, podendo utilizar essa estratégia como trunfo em qualquer situação de conflito.
Embora a escola esteja cheia de ironias, em muitos momentos essa ironia apresenta-se de forma trágica e desumana. Algumas situações permitem concluir que é demasiado preocupante o modo como as crianças negras são mencionadas no cotidiano da escola. O episódio abaixo parece exemplar:
No parque, duas turmas (Fase I e III) brincavam juntas. A professora da fase I encontrou uma trança de "canecalon". Ela se dirigiu à outra professora que tem em sua turma duas alunas que usam cabelos desse estilo, e lhe disse: "As suas alunas estão perdendo os cabelos! Ou será que tem alguém arrancando? Já pensou, deve doer bastante, porque é grudado no cabelo delas. Guarda para as mães colocarem no lugar''. A professora pegou a trança e ambas riram da situação. As crianças à sua volta presenciaram toda a cena.
Entendo que esse tipo de situação pode decorrer do modo desagradável com o qual algumas professoras se referem livremente aos seus alunos negros. Essa forma de agir, até mesmo na presença das crianças, pode levá-las a entender que também podem reproduzir tais atitudes, visto que suas professoras o fazem.
Também no parque observei diversas situações de tratamento irônico em relação às crianças negras. Cena feita estava muito próxima das duas professoras e de diversas crianças. Perguntei para uma professora sobre dois irmãos gêmeos. "Os meninos gêmeos são seus alunos?" A professora respondeu: "Ah, os filhotes de São Benedito?" Perguntei-lhe: "Por que filhotes de São Benedito?". Ela respondeu: "Dois negrinhos, assim desse tamanho?." Depois de ter falado desse modo, ela procurou disfarçar o seu comentário e terminou falando mal do comportamento dos gêmeos.
Mas em sua entrevista, a professora fez uma referência semelhante. Ela disse que chamava dois de seus alunos negros de: ''(...) filhote de São Benedito, porque eles eram o cão em forma de gente. Eles atormentaram o ano inteiro''.
A ideologia, ao promover o estereótipo, leva o sujeito estereotipado a internalizar sua imagem negativa, idealizada corri o objetivo de inferiorizá-lo e oprimi-lo (SILVA, 1995).
Porém, para a professora, o seu modo de adjetivar pejorativamente as crianças representa um tratamento normal. Em momento algum ela parece compreender que pode estar ferindo a criança e determinando a sua identidade. Simplesmente ela não questiona o significado que suas "metáforas" podem ter para as crianças que as ouvem.
Quando, durante a entrevista, eu perguntei o que ela achava que sentiam as crianças que a ouviam, ela respondeu:
"Nada. Não, porque eu os chamo de 'filhotes de São Benedito', eu falo: 'Ah seu filho da puta, safado, porque você aprontou. Não me encha o saco!’ Nessa hora eles sabem que eu estou muito furiosa, se eu pudesse eu dava um tapa na bunda. Então, o que eu falar não tem outra conotação, exceto a de que eu estou muito "pê...” (...) Outra coisa é outra coisa. Mas, naquela hora, ela entende profundamente o que eu estou falando."
Porém, isso não garante dizer que as crianças não recebam seus comentários de forma negativa. Esses comentários são prejudiciais à formação da identidade de qualquer criança. Dissimulações, piadas, ironias encobrem um preconceito latente e favorecem a cristalização de idéias preconceituosas. O depoimento acima, também, revela o modo perverso pelo qual as crianças podem ser tratadas no espaço escolar por seus professores.
Há ainda, outros fatos que chamaram a minha atenção, levando-me a conceber o professor como aquele que, de forma constante, difunde a desvalorização das características estéticas das crianças negras. Diversas vezes presenciei comentários das professoras que, penso, repercutiram negativamente na auto-estima das crianças, expondo-as à humilhação.
Constantemente, é comum observamos no cotidiano escolar, que as professoras procuram manter preso os cabelos de suas alunas. Para isso, as professoras se dirigem às suas alunas, assim : "Você precisa falar para a sua mãe prender o seu cabelo. Olha só que coisa armada'' ou ainda: "Quem mandou você soltar esse cabelo? Não pode deixar solto desse jeito. Por que soltou? Ele é muito grande e muito armado. Precisa ficar preso!”
Ao presenciar essas situações, nas quais a obrigação de manter preso o cabelo crespo foi imposta às meninas negras, imaginei como essa idéia estaria sendo assimilada pelas crianças. Entendo que, de alguma maneira, essas experiências poderiam contribuir para a cristalização de uma forma de pensar as características estéticas da criança negra. Tal hipótese se confirmou dias depois. Queria saber o nome de uma menina e perguntei a uma criança negra, que disse: "Qual? Aquela descabelada?” Aproveitando-me dessa fala, perguntei a ela quem mais eram as meninas descabeladas, e ela apontou quatro meninas negras.
Esses acontecimentos representam apenas um detalhe do cotidiano pré-escolar, porém são reveladores de uma prática que pode prejudicar severamente crianças negras.
Assim, o modelo de beleza branca poderia estar se tomando desejável, passando, então, as crianças não brancas a admirar e desejar para si esta estética. A menina Denise (negra) fala-me sobre o fato de não mais querer ser "preta": "É, eu disse para ela (à professora) que eu não queria ser preta, eu queria ser como a Angélica (4). Ela é bonita!".
Assim, foi possível reconhecer um desejo de mudança do próprio corpo, um sentimento de recusa ao seu grupo étnico e o desejo de pertencer ao grupo branco, indicando um sentimento de vergonha de ser do jeito que se é - negro.
A familiaridade com a dinâmica da escola permitiu perceber a existência de um tratamento diferenciado e mais afetivo dirigido às crianças brancas. Isso foi bastante perceptível quando analisado o comportamento não-verbal que ocorreu nas interações professor/aluno branco, caracterizadas pelo natural contato físico acompanhado de beijos, de abraços e de toques.
Isso foi bastante visível no horário da saída, quando os pais começavam a chegar para pegar seus filhos. Observando o término de um dia de aula, foi possível contabilizar um número três vezes maior de crianças brancas sendo beijadas pelas professoras em comparação às crianças negras: dez crianças brancas para três negras (5).
Também durante as atividades, foi possível constatar a existência de um tratamento mais afetivo em prol da criança branca. Desse modo, na relação com o aluno branco as professoras aceitaram o contato físico através de abraço, beijo ou olhar, evidenciando um maior grau de afeto.
O contato físico demonstrou ser mais escasso na relação professor/aluno negro. As professoras ao se aproximarem das crianças negras mantinham, geralmente, uma distância que inviabilizava o contato físico. É visível a discrepância de tratamento que a professora dispensa à criança negra, quando a comparamos com a criança branca.
Situações como essas induzem a pensar que com as crianças brancas, as professoras manifestam maior afetividade, são mais atenciosas e acabam até mesmo por incentivá-las mais do que às negras. Assim, podemos supor que, na relação professor/aluno, as crianças brancas recebem mais oportunidades de se sentirem aceitas e queridas do que as demais.
Também se repetia muito o convite das professoras às suas alunas brancas: "Ai, que menina mais linda, quer ser minha filha? Daí, você ia morar na minha casa".
Nota-se estar implícita, nesses comentários das professoras, não a necessidade de as crianças brancas receberem um novo lar, mas sim a possibilidade de o receberem, ou de pelo menos, no campo afetivo, já o terem. Faz-se necessário mostrar que a atenção, o cainho e o afeto são distribuídos de maneira desigual, e a categoria étnica regula o critério de distribuição.
Assim, nessa distribuição desigual de afetos, o professor convidava para morar em sua casa sempre o mesmo tipo de criança, como que seguindo um modelo estético de aceitação. Portanto, reproduz a valorização étnica predominante na vida social. E o faz sem se importar com as crianças à sua volta. Pode-se, então, imaginar o sofrimento de uma criança branca ao não ser convidada, ela própria, para morar com a professora. Pode-se, também, pensar no sofrimento de uma criança negra, não somente por não receber ela própria o convite, mas também por nunca assistir a essa mesma cena sendo protagonizada por criança negra. Essas atitudes das professoras podem diminuir a possibilidade de as crianças negras se sentirem queridas por elas.
Constata-se, porém, que o toque físico é bastante freqüente na relação aluno/aluno, como também são mais freqüentes as propostas de contato físico entre crianças negras e brancas e vice-versa.
Esse fato leva à compreensão de que não há uma rigidez de atitudes por parte das crianças, mesmo considerando que elas já interiorizaram um sentimento preconceituoso. Este fato não as impede de propor e permitir o contato físico entre si, resultando, como os exemplos demonstraram, em uma troca de carinho e era momentos de convivência pacífica.
Por trás da premissa "todos somos iguais", largamente propagada pelas professoras, detecta-se uma tênue diferença nos elogios recebidos pelas crianças, quando eram avaliadas suas atividades. Os elogios tecidos pelas professoras podem ser divididos em dois grupos, a saber:
1° grupo - Elogio à criança:
a) "Você é maravilhosa. Parabéns!"
b) "Você é muito inteligente!"
c) "Está bonito, menino sabido!"
2° grupo - Elogio à tarefa:
a) "Está bonita a sua lição!"
b) "Isso. Está certo!"
c) "Deixe-me ver a sua lição. Está bonita!"
Situações como essas sinalizam diferentes formas de avaliar as crianças em suas atividades, tudo realizado de modo muito sutil. Porém, a análise dos dados mostra que a criança negra vive uma incessante busca de ''vir a ser" elogiada de forma mais profunda, ou seja, deseja receber elogios para si, deseja ouvir que ela é maravilhosa, inteligente, sábia, tanto quanto foi dito às outras crianças. Assim, o objeto do elogio não seria a lição ou qualquer outra atividade e sim ela própria, o que constitui um dado significativo para sua auto-estima. Compreendo ser diferente um elogio que valorize a pessoa, de um que valorize apenas a atividade por ela realizada.
Julgando a ação das professoras diante das crianças, tem-se a evidência de que os tratamentos são diferenciados e que estas diferenciações são percebidas pelas próprias crianças. Nesse sentido, pode-se afirmar que as crianças brancas são privilegiadas na relação professor/aluno, pois conseguem, com mais freqüência, identificar-se positivamente com as professoras. Por outro lado, esse processo pode resultar na falta de identificação por parte das demais crianças presentes na sala de aula.
Os depoimentos dos familiares revelaram muito sobre a percepção das desigualdades na sociedade brasileira. Os depoimentos dos indivíduos negros, ao mesmo tempo em que revelam a visão de mundo, os conceitos e a forma predominante de relações sociais de cada um deles, revelam, também, que essas experiências são crivadas pelo fator étnico. Em contrapartida, os depoimentos dos indivíduos brancos pouco revelam acerca da percepção e incidência do preconceito e da discriminação em suas vidas.
Observa-se, então, que existe uma diferença bastante acentuada entre os depoimentos dos integrantes do grupo negro e os depoimentos dos integrantes do grupo branco. Para os negros, o reconhecimento do preconceito se dá de modo concreto e os prejuízos podem ser contabilizados. Como demonstrou uma mulher negra:
"Nós éramos todas amigas da mesma idade. Às vezes elas estavam conversando, só entre elas, brancas, eu chegava, elas falavam: 'Eu não chamei você, preta, só tem branca na rodinha. Não tem preta!’”
Assim, os indivíduos negros vão relembrando suas experiências e os prejuízos com o preconceito na sociedade brasileira. Os episódios cotidianos mostraram-se permeados de situações conflituosas que marcam profundamente cada um. Os negros percebem claramente a desigualdade de direitos e as diferenças derivadas da condição étnica quando se candidatam a um emprego. Para esses, a experiência escolar também parece repleta de acontecimentos prejudiciais, o que dificulta a aquisição de uma identidade positiva, ao mesmo tempo em que lhes confere o lugar daquele que não é bem vindo e aceito no grupo. Como narrou uma mãe negra ao afirmar que:
"O professor mandou a prova para a minha amiga, em casa. E para mim não. Porque eu era negra. E ele me detestava. Ele me reprovou. Eu comecei a me prejudicar, porque eu sabia que tinha acontecido isso por causa do racismo (...) eu comecei a ficar retraída, com vergonha de ser negra".
Desse modo, percebe-se que são inúmeras as dificuldades derivadas da cor da pele. O preconceito cria impedimentos para o exercício da cidadania. Diante da sua existência, cada um vai vivendo da melhor forma que é possível viver.
Uma entrevistada negra apontou a existência de um tratamento diferenciado para as mães brancas na escola de sua irmã. Ela atribui à cor de sua pele o mal atendimento dispensado a ela pela professora de sua irmã.
Entretanto, bem diferente é a percepção que as famílias brancas têm do problema étnico no Brasil. O branco apenas vê o preconceito e não sofre, diretamente, as conseqüências dele.
Os depoimentos deixaram transparecer a dificuldade das entrevistadas em classificar as crianças amigas de seus filhos como negras. Sem dúvida, as entrevistadas, apontaram para a existência do preconceito na sociedade atual. Entretanto, percebe-se que a temática étnica é camuflada até mesmo no cotidiano familiar. Dessa maneira, a criança não é educada para respeitar e conviver com as diferenças, sobretudo com as diferenças étnicas. As falas expressam uma certa insegurança e até mesma uma falta de questionamento anterior sobre preconceito e discriminação.
Assim, os informantes demonstraram que a socialização das crianças é realizada levando pouco em conta a questão multi-étnica existente na sociedade brasileira e as implicações dela decorrentes. É marcante o fato de os integrantes das famílias compreenderem que as crianças, nessa faixa etária, já possuem conhecimentos que remetem à situação da discriminação.
Assim, partindo dessa premissa, os familiares demonstraram perceber a necessidade de se conversar sobre o preconceito e sobre as diferenças étnicas com as crianças. A maioria desses familiares acredita que uma preparação para a convivência com a diversidade étnica seja favorável. Nas famílias negras tal conhecimento apareceu como uma forma de a criança receber referências positivas e fortalecer sua auto-estima. Para a maioria deles, a família deveria preparar a criança, conversando efetivamente sobre a questão étnica, desde pequena, ao redor dos seis anos de idade.
Quanto a quem cabe conversar sobre preconceito com a criança, não houve uma única indicação. Assim, ora a família aparecia como aquela que deve desempenhar esse papel, ora esse papel era transferido para a escola.
Talvez a transferência da responsabilidade para a escola possa resultar da compreensão que os pais têm do papel desta instituição como educadora formal de cidadãos, além da dificuldade e do incômodo em se falar sobre esse assunto. É interessante notar o modo como os integrantes do grupo familiar vêem a escola de seus filhos. Para eles, a escola possui mais aspectos positivos, o que lhes dá a certeza de a criança estar sendo bem acolhida pelos profissionais que nela trabalham.
Para as famílias negras, já não há um consenso sobre a escola. Há quem se sinta acolhido. Se, por um lado, ela pode ser vista com bons olhos e transmitir um sentimento de acolhimento, por outro, dá margem para que lhe teçam críticas quanto ao seu modo de atender e avaliar as crianças.
Ainda no que se refere ao cotidiano escolar, quer as famílias negras quer as famílias brancas não percebem a existência de tratamentos diferenciados. Todos sentem que suas crianças são tratadas de forma igual por parte das profissionais da escola.
No ambiente familiar as diferenças étnicas ganham diversas explicações dos adultos, que, diante da percepção das crianças tentam, na medida do possível, responder às suas interrogações. Porém, muitas vezes, as informações são passadas juntamente com os preconceitos e estereótipos adquiridos pelos adultos em sua trajetória de vida:
Apesar da visão limitada que os pais têm sobre a responsabilidade da escola na discussão da diversidade étnica, Sueli demonstrou grande percepção das possibilidades de o espaço escolar ser um centro de debate e valorização da cidadania dos negros. A base do raciocínio desenvolvido por ela aponta a disseminação de informações sobre o negro como a melhor estratégia para se combater o preconceito.
Nas falas das entrevistadas, temos a revelação do silêncio da criança negra posteriormente à situação de preconceito. Constata-se, assim, que algumas das crianças negras que passaram por conflitos étnicos no cotidiano escolar não levaram o problema para o lar, para os seus familiares.
O fato de as crianças não comentarem com seus familiares sobre os conflitos na escola pode estar ligado à costumeira ausência desse assunto no meio familiar. O que pode dar às crianças a idéia de que esse assunto deve ser trancafiado, escondido.
Conclusão: a construção da submissão no
processo de socialização
Ao final, este trabalho revela-nos que, no que tange ao espaço escolar, as crianças estão tendo infinitas possibilidades para a interiorização de comportamentos e atitudes preconceituosas e discriminatórias contra os negros. Encontramos na escola, educadoras que se dizem (e se sentem) compromissadas com o seu fazer profissional, mas que se mostram desatentas para as suas ações, principalmente, quando questionadas sobre as relações interpessoais estabelecidas no cotidiano escolar. Paralelamente, nas famílias, encontramos adultos e jovens preparando seus membros para a vida social desconsiderando o caráter multi-étnico da população, o pertencimento a um grupo específico e, mais ainda, desconsiderando o racismo secular que ainda impera na sociedade brasileira.
O silêncio que atravessa os conflitos étnicos na sociedade é o mesmo silêncio que sustenta o preconceito e a discriminação no interior da escola. Nela, de modo silencioso, ocorrem situações que podem influenciar a socialização das crianças, mostrando-lhes, infelizmente, diferentes lugares sociais para pessoas brancas e negras. A escola oferece aos alunos, brancos e negros, oportunidades diferentes para se sentirem aceitos, respeitados e positivamente participantes da vida escolar e da sociedade brasileira. A origem étnica condiciona um tratamento diferenciado na escola.
Não há como negar que o preconceito e a discriminação constituem um problema que afeta em maior grau a criança negra, visto que ela sofre direta e cotidianamente humilhações, maus tratos, agressões e injustiças que afetam a sua infância e comprometem todo o seu desenvolvimento futuro. Mesmo considerando os atos das professoras como inconscientes em relação às crianças negras, não podemos perder de vista que atitudes, como as citadas ao longo do trabalho, magoam e marcam, provavelmente, a criança pela vida afora.
A linguagem não-verbal, realizada também no espaço escolar, expressa por meio de comportamentos sociais, atitudes e disposições, transmite valores marcadamente preconceituosos e discriminatórios, desfavorecendo o conhecimento a respeito do grupo negro. Essa linguagem não-verbal só pode ser captada no seu cotidiano. Ou seja, há na escola uma linguagem que fala pelo silêncio, pelo gesto, pelo comportamento, pelas atitudes, pelo tom de voz, pelo tipo de tratamento, o papel e o lugar guardados ao negro na sociedade (GONÇALVES, 1985).
Pode-se afirmar que as experiências vividas na escola - marcada por humilhações - contribuem para condicionar os negros ao fracasso, à submissão e ao medo. Nesse contexto, para a criança negra torna-se difícil a construção de uma identidade positiva. A rejeição demonstrada pelas professoras faz eclodir um sentimento que pode conduzir ao desenvolvimento de uma baixa auto-estima e de um conceito negativo.
Simultaneamente, a criança branca é levada a cristalizar um sentimento de superioridade, visto que diariamente, recebe provas fartas dessa premissa. A escola, assim, atua na difusão do preconceito e da discriminação. Tais práticas, embora não se iniciem na escola, contam com o seu reforço, a partir das relações diárias, na difusão de valores, crenças, comportamentos e atitudes de hostilidade em relação ao grupo negro.
Podemos considerar o fato de que na escola, as professoras reproduzem o padrão tradicional da sociedade. Como sujeito, é compreensível, embora não seja aceitável, mas não como profissionais da educação. A escola tem oferecido uma quantidade ínfima de ações que levem a entender a aceitação positiva e valorizada das crianças negras no seu cotidiano, o que ameaça a convivência de crianças em pleno processo de socialização.
No lar, diante das pessoas próximas à família, a criança é respeitada nas suas características étnicas; seu comportamento não é recriminado nem ela é vítima de humilhações constantes. No lar, o silêncio quer acalentar, proteger do sofrimento que, sabemos, virá ao seu encontro. Assim, a família protela, por um tempo maior, o contato com o racismo da sociedade e com as dores e perdas dele decorrentes.
O silêncio escolar grita inferioridade, desrespeito e desprezo. No lar o silêncio "silencia" um sentimento de impotência frente ao racismo da sociedade que se mostra hostil e forte. No lar o silêncio "silencia" a dificuldade que se tem em se falar de sentimentos que remetem ao sofrimento. No lar o silêncio "silencia" o despreparo do grupo para o enfrentamento do problema, visto que essa geração também aprende e apreendeu o silêncio e foi a ele condicionada na sua socialização.
Não se pode deixar por conta de um silêncio criminoso, crianças sofrendo diariamente situações que as empurram e as mantêm em permanente sentimento de exclusão da vida social e, pior ainda, em permanente sentimento de culpa pelos tratamentos a elas destinados. Isso porque, atribuindo a si mesma a causa do seu sofrimento, a criança precocemente expropriada do direito de reagir, de indignar-se, dificilmente conseguirá (re)significar os acontecimentos.
Silenciar diante dessa realidade não apaga magicamente as diferenças. Porém, permite que cada um construa, a seu modo e imaginação, um entendimento a respeito do outro que lhe é diferente. Este entendimento, pautado nas experiências vividas como as que foram mostradas, conforme a divisão étnica e o papel a ser executado pelo indivíduo. Não se possibilitam, desse modo, alternativas exeqüíveis de transformação da realidade.
O silêncio da escola sobre a questão étnica tem permitido que seja ensinada, a todas as crianças, uma falsa superioridade branca em beleza, cultura, inteligência e poder. Para as crianças negras, a escola tem-se mostrado omissa quanto ao dever de reconhecê-las positivamente no cotidiano escolar, o que conduz para o seu afastamento do quadro educacional. Esse afastamento inviabiliza a construção de uma escola democrática, que amplie as oportunidades educacionais, que re-elabore uma visão critica acerca da sociedade, que possibilite a elevação cultural e científica das camadas populares (LIBÂNEO, 1986).
Da forma como se tem dado o processo de socialização da nova geração constitui um obstáculo à mudança do quadro de racismo na sociedade brasileira.
Muito há para ser feito a fim de que os negros tenham uma participação mais justa na educação, na política e na economia, para desfrutarem da plena cidadania, negada a esse segmento social.
Uma forma mais correta de preparar a nova geração para a vida social seria informar sobre os atuais problemas sociais predominantes nos diversos países e, sobretudo, na sociedade em que vivem.
Para reverter a situação de sofrimento a que parcela significativa de crianças negras vem sendo submetida, faz-se necessária e urgente a elaboração de alternativas pedagógicas que concorram, efetivamente, para inclui-las positivamente no sistema formal de ensino, garantindo o direito constitucional à Educação plena, pública e de qualidade.
O racismo cultivado durante décadas requer programas de incentivo junto às escolas, os quais visem a combater o preconceito e a corrigir as desigualdades causadas por práticas discriminatórias seculares.
Diante do emaranhado de problemas subjacentes às relações étnicas, cabe a nós, formuladores de opinião - professores, educadores e pesquisadores críticos - pensar e lutar por práticas que objetivem a inclusão positiva de crianças e de jovens negros na estrutura educacional e de emprego.
Notas:
(1) Optamos pela grafia "negro" em razão de sua
utilização histórica. As denominações utilizadas pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatísticas (IBGE) - preto, pardo, branco e amarelo – não
contemplam a perspectiva de análise desta pesquisa. Consideramos
"negros" os "pretos e pardos", segundo as definições do
IBGE.
(2) A partir de dados extraídos das PNAD, ROSEMBERG
(1987) constatou que, no Brasil, o alunado negro, em comparação ao alunado
branco, apresenta um índice maior de exclusão e reprovação escolar. O índice de
reprovação na 1a série do primeiro grau, por exemplo, é 12% maior
entre as crianças negras. Muitos outros trabalhos também evidenciam o fato de o
sistema formal de educação ser desprovido de elementos propícios à
identificação positiva de alunos negros com o sistema escolar. Outros estudos
demonstram a necessidade de uma ação pedagógica de combate ao racismo e aos
seus desdobramentos, tais como preconceito e discriminação étnicos. Para uma
melhor compreensão sobre este problema consultar: PINTO, 1987; CUNHA Jr., 1992;
OLIVEIRA, 1992 e etc.
(3) No decorrer da análise será utilizada a palavra
no feminino, devido ao tato de haver
somente mulheres trabalhando na referida escola.
(4) A menina se refere à apresentadora da Rede Globo.
(5) Observação realizada em junho de 1997. Havia na sala
22 crianças, sendo 10 negras e 12 brancas.
Fonte:
CAVALLEIRO, E. S. O Processo de Socialização na Educação Infantil: Construção do Silêncio e da Submissão. Rev. Bras. Cresc. Desenv. Hum. São Paulo, 9(2), 1999.