O pedagógico na educação infantil - uma releitura

 

 

Maria Isabel Edelweiss Bujes

 

 

Os controles socialmente induzidos através da regulação do espaço e do tempo contribuem, ao interiorizar-se, para ritualizar e formalizar as condutas, incorporam-se na própria estrutura da personalidade, ao mesmo tempo que orientam uma determinada visão de mundo já que existe uma estreita inter-relação entre os processos de subjetivação e objetivação. (Varela, 95, p. 38)

 

Introdução

A discussão sobre a identidade da educação infantil tem constituído um tema desafiador para aqueles/as que se têm dedicado a ela como objeto de estudo mas também para os/as que militam politicamente para seu reconhecimento como direito das crianças brasileiras e de suas famílias.

A incursão a que me proponho, neste trabalho, é limitada nas suas pretensões e no seu escopo. Buscarei examinar preliminarmente as concepções que associam as operações de educar e cuidar como representativas dos programas institucionais voltados para o atendimento à criança pequena, em creches e pré-escolas (como de resto, também, diga-se de passagem, em outras formas de atendimento). Mostrarei também como tais formas de conceber o que cabe à educação infantil, foram associadas às perspectivas que classificam tais iniciativas como educativas ou assistenciais. Por último, argumentarei que advogar pela introdução do pedagógico, como solução, no sentido de superar o caráter discriminatório, pejorativo e moralizador de muitas das iniciativas classificadas como assistenciais, supõe uma interpretação limitada e unívoca do que se toma como pedagógico, impossibilitando que outras vozes e outros entendimentos da questão possam vir à discussão.

O objeto deste trabalho é, portanto, a produção discursiva sobre o pedagógico nas instituições de educação infantil. Na eleição desses discursos sobre o pedagógico nas creches e pré-escolas como objeto de estudo, tomo-os como guias que dotam de determinados sentidos a realidade educacional.

Valho-me para esta análise, especialmente, das formulações de Michel Foucault e de alguns estudos que aplicam suas idéias ao campo da educação como os de Alvarez-Uria, Gore, Jones, Larrosa, Popkewitz, Silva, Varela, Veiga-Neto, Walkerdine[1].

O que pretendo colocar em destaque é como alguns mecanismos de poder-saber se articulam através de discursos, obscurecendo a possibilidade de compreensões alternativas de uma dada questão/problema. Tais mecanismos acabam por instituir regimes de verdade que definem "as ações e os eventos que são plausíveis racionalizados ou justificados num dado campo" (Gore, 1994, p.10).

Assim, aquilo que se concebe como verdade, ao não receber contestações funciona para controlar e regular, produzindo efeitos circulares como disse Foucault: "A verdade está circularmente ligada a sistemas de poder que a produzem e a apoiam e a efeitos de poder que ela induz e a reproduzem" (Foucault, 1993, p.133).

 

A trilha

Olhar outra vez para os mecanismos de nossas instituições educacionais, questionar a "verdade" de nossos próprios e cultivados discursos, examinar aquilo que faz com que sejamos o que somos, tudo isso abre possibilidades de mudança. (Gore, 1994, p.17)

 

Especialmente a partir da década de 70, quando se verifica uma rápida expansão da cobertura, inúmeras críticas foram feitas às instâncias governamentais, denunciando o caráter discriminador da manutenção de diferentes redes de socialização para as crianças menores de sete anos. Também tornaram-se lugar comum as denúncias da manutenção pelo Estado, sob a sua sombra ou por seu beneplácito, através de subvenções diretas ou indiretas, de iniciativas de atendimento de baixíssima qualidade: quer pelas condições materiais do equipamento - creche ou pré-escola - quer pela falta de qualificação dos recursos humanos ou da proposta institucional. No entanto, houve sempre um discurso justificador para estas práticas. Seria o caráter de urgência nas soluções para os problemas da infância (ou da infância problema) que acabaria por impor iniciativas de caráter predominantemente assistencial/custodial. Estas adquiriam a condição de um mal menor: ante a magnitude do problema era preferível pouco do que nada. E se este pouco se constituía em programas marcados por um caráter paternalista, moralizador, discriminador, de qualidade questionável, era porque:

via de regra a política de atendimento à criança pequena [vinha] sendo utilizada com um sentido nitidamente desmobilizador de que o discurso avançado se serve para dissimular a manutenção de práticas retrógradas, obtendo favores e votos com custo relativamente baixo e, com isto, ajudando a manter o atávico desinteresse que certas camadas dirigentes nutrem pelos problemas da maioria da população. (Garcia,1993,p.139)

Questionava-se o caráter de guarda, de natureza voltada para os cuidados primários, das instituições e a constituição de um sistema dual, com duas concepções de serviços, aquelas que se consideravam como de caráter assistencial e outras às quais se atribuía um cunho educacional.

Fúlvia Rosemberg e Maria Malta Campos[2] contribuíram para fazer avançar esta discussão, advogando que os programas voltados para o atendimento às crianças pequenas deveriam se revestir de um duplo caráter: educar e cuidar. Colocaram também em relevo a associação entre estas duas características e os tipos de serviços referidos acima. Mostraram como uma perspectiva integrada de educação e de cuidados, para a qual foi cunhada na realidade norte-americana a expressão educare - que funde os verbos educar e cuidar, em inglês - tornaria "mais fácil a superação da dicotomia entre o que se costuma chamar de assistência e de educação" (Campos, 1994, p.35). No entendimento das autoras as atividades ora seriam mais voltadas para os cuidados, ora penderiam para o polo da educação. Uma, no entanto, não podendo prescindir da outra, havendo uma dimensão educativa nos cuidados e vice-versa, sendo tais dimensões, portanto, indissociáveis.

Em documento recentíssimo, que coloca em discussão os referenciais curriculares para a educação infantil, no entanto, isto é visto de outra perspectiva: Contemplar o cuidado na esfera da instituição da educação infantil significa compreendê-lo como parte integrante do educar... (Brasil, 1988, p.23). Esta segunda perspectiva de como são vistas as dimensões de educação e cuidados subordina a segunda à primeira ao invés de integrá-las, conforme a proposição de Campos e Rosemberg.

O que pretendo discutir neste trabalho não é nem uma possível assimetria entre as dimensões citadas, nem a prevalência de uma sobre a outra, nem o caráter não integrado das perspectivas de educação e cuidados, nos programas institucionais voltados para o atendimento das crianças pequenas, especialmente as das classes populares, em creches e pré-escolas. Voltar-me-ei, muito mais, para analisar aquilo que se propõe como solução para os problemas atrás enunciados. É interessante notar que mesmo que variem as formas como se entendem as questões que acabei de enumerar, há uma notável identidade na solução proposta ou na identificação do que falta às instituições de educação infantil para que elas passem a se constituir como realmente educativas: a exigência de que se lhes passe a imprimir uma direção pedagógica, encontrando-se aí o mapa da trilha.

 

Novos caminhos : as instituições de educação infantil

Em conhecido artigo intitulado "Maquinaria Escolar", Varela e Alvarez-Uria (1992) apontam as condições sociais de aparecimento de uma série de instâncias que, no seu entender, permitiram o surgimento da escola nacional, a saber: a definição de um estatuto da infância; a emergência de espaços próprios para a educação; o surgimento de um corpo de especialistas, bem como de teorias e tecnologias específicas; a destruição de outros modos de educação e a imposição da obrigatoriedade escolar que acaba por institucionalizar a escola.

Poder-se-ia dizer que, com exceção da obrigatoriedade legal, todas as outras explicações ajustam-se também ao surgimento da hoje chamada educação infantil. Esta surge no contexto de mudanças sociais, políticas e econômicas profundas que ocorrem na Europa e que vão consolidando novos arranjos sociais e encaminhando novas compreensões acerca dos papéis dos sujeitos e das instituições da sociedade.

Ariès situa pelo final do século XVII a consolidação definitiva do processo de escolarização:

 

A escola substitui a aprendizagem como meio de educação. Isso quer dizer que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do contato com eles. A despeito das muitas reticências e retardamentos, a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio. Começou, então, um longo processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia até nossos dias; e ao qual se dá o nome de escolarização (Ariès, 1981, p.10).

 

Sem dúvida, mesmo que apenas mais recentemente, a educação da criança pequena insere-se no mesmo projeto de educação moderna, um aparato que nos últimos trezentos anos foi construído no sentido de assegurar a governamentalidade (Veiga-Neto, 1994). O governo das crianças precisa ser exercido, desde a mais tenra idade, numa paisagem social que a partir da revolução industrial, vem consolidar novos arranjos familiares e novas exigências às mulheres trabalhadoras, afastando-as do contato continuado com a sua prole. Por governo entendo, a partir de Foucault, a possibilidade de estruturar o campo de ação dos outros, isto é "uma atividade dirigida a produzir sujeitos, a moldar, a guiar ou a afetar a conduta das pessoas de maneira que elas se tornem pessoas de um certo tipo" (Marshall, 1994, p.28).

A constituição de novos saberes, especialmente nas chamadas ciências humanas, e também a criação de instituições específicas, para o atendimento das crianças pequenas, configuram-se como instrumentais ao projeto de governo das populações. O projeto para universalizar e tornar científica a educação é um empreendimento de cunho iluminista. Torna-se difícil pensar a educação fora do contexto do predomínio da Razão, de conformidade com os cânones do Iluminismo: "A educação institucionalizada é um dos mecanismos pelos quais a Razão se instala e se difunde" (Silva, 1994, p.155). A educação significa, pois, nesta perspectiva, a produção da racionalidade e a educação infantil não escapa a este projeto.

O processo que já vinha ocorrendo no campo da educação desde o Renascimento, ao qual Júlia Varela denomina de pedagogização dos conhecimentos, se erige com base numa nova concepção do sujeito infantil, com uma marcada separação entre o mundo do adulto e da criança que culminaria com o enclausuramento desta última, pondo em marcha novas experiências educativas.

É do interior dessas práticas que vão se extrair e consolidar saberes de caráter pedagógico: saberes relacionados com a manutenção da ordem e da disciplina, com o estabelecimento de níveis de conteúdo e com a invenção de novos métodos de ensino que tiveram seus começos na gestão e no governo dos jovens[3].O arcabouço teórico que pretende vir a erigir-se como uma ciência educacional é, pois, tanto produzido nestes novos arranjos institucionais como condição de possibilidade de novas formas de fazer educação, numa operação circular como aquela analisada por Foucault e descrita ao final da seção de introdução.

 

Dando rumos à jornada: os saberes pedagógicos

 

[ Uma inércia fortemente encastelada no campo pedagógico]... é  a ocultação da própria pedagogia como operação constitutiva, isto é, como produtora de pessoas e a crença  arraigada de que as práticas educativas são meras "mediadoras ", onde se dispõem os "recursos" para o "desenvolvimento" dos indivíduos. (Larrosa, 1994, p.37)

 

Inúmeros são os trabalhos que, ao longo das duas últimas décadas especialmente trataram de dar contornos mais precisos àquilo que mais recentemente se convencionou chamar de educação infantil. Tomo como objeto de análise, nesta seção, três propostas representativas da vertente crítica e que identifica o pedagógico como via para a efetivação dos propósitos de uma educação infantil cuja marca seja a da eqüidade.   

A primeira delas, encontra-se no capítulo 1 do livro Creche: crianças, faz de conta e cia. As autoras afirmam, nessa obra, que seu propósito: 

 

é discutir com o educador que trabalha com as crianças na creche o que seria uma pedagogia para esta instituição: seus objetivos, seus fundamentos, suas formas de realização. Para isso é preciso decidir que conceito de criança e que definição de Homem se está defendendo. Partimos de uma visão sócio-interacionista do desenvolvimento humano. Nessa visão o homem é um ser em constante mudança na interação que estabelece com seu  meio, que é simbólico, histórico, portanto ideológico.(Oliveira,1992, p.105)

 

Em Com a pré-escola nas mãos, é no capítulo da conclusões que encontro esta segunda síntese que serve aos propósitos a que me proponho:

 

                Apresentamos, assim, neste volume, um possível caminho para a educação de crianças. Este não é um modelo curricular; muito menos um método; é, sim, uma das alternativas pedagógicas voltadas para uma educação democrática e para a construção e exercício da cidadania.

                A partir dos fundamentos teóricos que orientam a proposta... e do conhecimento de quem são as crianças... propusemos formas de organização dos conteúdos e das metodologias de trabalho..., apontamos estratégias concretas para a organização do tempo e do espaço..., penetrando na dinâmica das práticas escolares....(Kramer, 1991, p.105)

 

E é na contracapa de Revisitando a pré-escola que se encontram estas sugestivas palavras, que constituem o terceiro exemplo que trago para esta análise:

 

            Revisitar a pré-escola é reencontrar no pedagógico a dimensão política de um espaço dos mais ricos, onde o desenvolvimento e a aprendizagem infantis podem experimentar um acelerado ritmo na construção do conhecimento. Trata-se de tentar intervir para a superação de concepções redutoras do papel da pré-escola, buscando construir uma nova escola de educação infantil aberta aos olhos curiosos das crianças ávidas por conhecer o mundo(Garcia, 1993, contracapa).

 

Alguns elementos-chave se distinguem nessa minha tentativa de buscar encontrar um sentido mais ou menos comum, uma regularidade, nestes discursos. A pedagogia na educação infantil ou o eixo pedagógico das ações supõe traçar um caminho, uma rota para nelas intervir. Ela se destina a crianças curiosas ou ávidas por conhecer o mundo ou que precisamos identificar ou decidir quem são -- empreitada para a qual contamos a priori com um arsenal teórico em que estão presentes formas de entendimento sobre os seus interesses, necessidades, mas também sobre seu processo de desenvolvimento e suas formas de construir significados para o mundo que as cerca e, acima de tudo, sobre o seu destino social.

Pode-se perceber nas formulações que tomo como referências para esta análise que a informar o pedagógico existe "um conjunto mais ou menos integrado de concepções de sujeito. (...) uma série de teorias sobre a natureza humana. [Nas quais] as formas de relação da pessoa consigo mesma são construídas, ao mesmo tempo, descritiva e normativamente" (Larrosa,1994, p.43). Assim, as teorias sobre a natureza humana não apenas definem o que é o homem e o que constitui o sujeito plenamente desenvolvido mas também, por oposição, os critérios patológicos ou de imaturidade em relação ao seu pleno desenvolvimento. A pedagogia é vista, então, como um espaço de mediação e as práticas pedagógicas "como espaços institucionalizados onde a verdadeira natureza da pessoa humana -- autoconsciente e dona de si mesma -- pode desenvolver-se..." (ib., 1994,p.44).

Esta, portanto, não é uma intervenção qualquer. Em que pese a necessidade de um ajuste às crianças concretas com que se defrontam educadoras/es, existem pressupostos básicos a orientar as estratégias de seleção de conteúdos e de metodologias, de organização do tempo e do espaço. Estes pressupostos se fundam nos sistemas teóricos da psicologia do desenvolvimento, segundo os quais as crianças se desenvolvem em estágios progressivos, numa seqüência fixa, válidos para todas as crianças, numa progressão considerada universal. As práticas pedagógicas, portanto, se destinam a promover o desenvolvimento infantil através de estratégias que visam sua individualização e normalização.

O que também parece distinguir a concepção do pedagógico, no enquadramento explicitado nestas propostas, é o caráter histórico e político que se propõe para as práticas da educação da criança pequena e certamente a crença no seu poder transformador (a criança como ativa construtora e transformadora do mundo que a cerca).

O desenvolvimento da racionalidade e da consciência crítica são conceitos muito caros ao pensamento moderno. O sujeito e sua consciência são centrais, nesta perspectiva, e a crença na autonomia como finalidade da educação está presente nas declarações de intenção da maioria das propostas pedagógicas dirigidas para a educação infantil, como está sintetizado nas diretrizes pedagógicas do documento do MEC "Política de educação infantil"[4] : "... a criança é concebida como um ser humano completo ..., embora em processo de desenvolvimento ... Ela é um ser ativo e capaz, motivado pela necessidade de ampliar seus conhecimentos e experiências e de alcançar progressivos graus de autonomia frente às condições de seu meio". 

As propostas para a educação infantil, em seu eixo político, conforme as formulações tomadas para análise neste trabalho, se definem por seu caráter democrático, não discriminatório -- propondo-se que possam atingir a todas as crianças -- e por sua pretensão emancipatória, uma vez que o acesso aos bens culturais não só funcionaria como equalizador como permitiria a libertação dos sujeitos infantis dos liames da injustiça e da opressão.

O que veio sendo examinado, até agora, caberia sem riscos nesta formulação de Narodowski, para quem a pedagogia:

 

enquanto produção discursiva destinada a normatizar e explicar a produção de saberes no âmbito educativo-escolar, dedica seus esforços para fazer destes pequenos "futuros homens de proveito", ou "adaptados à sociedade de maneira criativa", ou "sujeitos críticos e transformadores", etc. A pedagogia obtém na infância sua escusa irrefutável de intervenção para educar e reeducar na escola, para participar na formação dos seres humanos e dos grupos sociais. (...) Como se verá mais adiante, a pedagogia se erige como uma metanarrativa, em estreita conexão com a narrativa de uma infância desejada numa sociedade desejada.(Narodowski, s.d., p.24)

 

Uma pedra (ou várias) no caminho

O que quis enfatizar ao examinar as propostas que apresentei acima é o caráter de regulação social das chamadas práticas pedagógicas, seu caráter ativo na produção dos sujeitos infantis; como, através de sutis conexões, o processo de individualização está associado aos modos de educação e como as tecnologias de produção de subjetividades específicas associam-se às regras de constituição dos campos do saber (Varela, 1995).

A educação infantil não escapa ao tipo específico de poder que Foucault chamou de poder disciplinar. A disciplinarização do corpo e a sua inserção num espaço individualizado, classificatório, combinatório são operações típicas das creches e pré-escolas.

A experiência do enclausuramento, desde muito cedo, submete o sujeito infantil, estabelecendo-lhe um lugar determinado, a convivência com pares da mesma idade, a restrição do movimento fora do espaço da sala de convivência, definindo condutas apropriadas ou não: "Às crianças de nossas creches não é dado o direito de pedir colo, sujar-se, brincar na água..., brincar na areia..., acordar antes do tempo, rasgar o livro, fazer barulho..."( Bujes e Hoffmann, 1989, p.46). A restrição ao uso do corpo, vem em nome de uma organização institucional a ser mantida: "cada criança tem seu lugar determinado; aos 'amiguinhos' não é permitido sentarem juntos para não conversarem" (Bujes et al.,1991, p.35). Os exemplos que acabo de citar, servem para mostrar como relações específicas de poder incidem sobre os corpos infantis, utilizando tecnologias próprias de controle.

Mas, seguindo Foucault, a disciplina se faz também por um controle do tempo. Ela estabelece uma sujeição do corpo ao tempo, com o objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo de eficácia. E neste nível inicial se faz não pelo controle minucioso de cada operação, como vai ocorrer mais tarde na escola, mas pelo controle dos ritmos que estabelece "um tempo para coisa e cada coisa a seu tempo". Não se permite ao sujeito infantil que escape a disposições massificadoras que parcelarizam seu tempo e estabelecem que mesmo as necessidades de cunho fisiológico devem ajustar-se  a um esquema prévio de organização temporal: "Percebe-se um autoritarismo desmesurado na rotina institucional presente no pré-estabelecimento dos horários de higiene, sono e alimentação sem considerar as necessidades das crianças ou acontecimentos extraordinários. Rotinas inflexíveis!" (Bujes e Hoffmann, 1989, p.47)

No entanto, o poder disciplinar não se exerce apenas através da manipulação do tempo e do controle minucioso das operações do corpo, ele tem na vigilância um dos seus principais instrumentos de controle.

 

O cotidiano da creche é um espaço de liberdade vigiada. Um tempo não produtivo. Fora a rotina estreita, as ordens estritas, se vigia a criança para que "cresça" guardada, alimentada, protegida. (ib., 1989, p.48)

 

O poder não atua do exterior, segundo Roberto Machado, "ele trabalha o corpo dos homens, manipula seus elementos, produz seu comportamento, enfim fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e manutenção da sociedade industrial, capitalista" (Machado, 1993, p.xvii).

O interessante na análise de Foucault é a maneira como ele articula esses mecanismos e relações de poder, no nível mais molecular, não apenas com a produção de subjetividades e correlatamente com a produção de um corpo de saberes, mas também com o nível mais geral de poder constituído pelo aparelho do Estado.

No entanto, estas relações e o caráter produtivo das práticas sociais, em geral, e das práticas pedagógicas, em particular, não são tornados explícitos. São representativas de um pensamento que oculta este  caráter produtivo as idéias de Sara Pain (apud Angotti, 1994, p.55) para quem:

 

Nem a origem, nem a rápida progressão da educação pré-escolar respondem a uma necessidade social propriamente educativa.

Em resumo, seja porque a pré-escola compensa uma mudança na organização social e constitui então uma ajuda familiar muito mais próxima à criação do que à educação; seja porque serve de "ante-sala" à educação sistemática, criando uma modalidade intermediária entre o jogo e a aprendizagem, em conseqüência, a função educativa específica dos estabelecimentos pré-escolares não está ainda claramente estabelecida.

 

Muitos/as intelectuais brasileiros/as concordam com a autora que a origem dessas instituições não corresponda a uma necessidade social de ordem "propriamente educativa". Estudos realizados no Brasil[5] sublinham a ênfase de natureza assistencial, médico-higienista, como impulsionadora das iniciativas e dos primeiros períodos de existência das creches, especialmente, na realidade brasileira.

Kuhlmann Jr. (1991), no entanto, contesta o privilegiamento às concepções de natureza médico-higienista, afirmando que "as propostas de atendimento não foram monopólio daqueles interesses, daquele corpo profissional". O autor situa a assistência à infância como resultado de uma articulação de forças jurídicas, empresariais, políticas, médicas, pedagógicas e religiosas em torno de interesses sustentados por três influências básicas: a médico-higienista, a jurídico-policial e a religiosa. Portanto, ele é contra a polarização que coloca de um lado o caráter assistencial, opondo-o ao educacional. Argumenta que os estudos referidos anteriormente identificam etapas, localizando primeiro a médica, depois a assistencial, "culminando nos dias de hoje, na etapa educacional, entendida como superior, neutra ou positiva. Toma-se como pedagógico um modelo ideal, deixando de atribuir esta característica a concepções diferenciadas" (Kuhlmann Jr., 1991, p.18).

O que pretendo argumentar é que o surgimento da educação infantil institucionalizada, especialmente das creches, no Brasil -- como um fenômeno social -- foi articulando interesses, que se não tinham, de saída, a justificá-los uma necessidade social propriamente educativa (e a minha hipótese é de que sempre a tiveram), foram, ao longo de sua história, organizando esses interesses de modo a representar posições de grupos em situação de vantagem na estrutura social. Mais uma vez recorro a Kuhlmann Jr. (1998, p.4):

 

O que cabe avaliar e analisar é que, no processo histórico de constituição das instituições pré-escolares destinadas à infância pobre, o assistencialismo, ele mesmo, foi configurado como uma proposta educacional específica para esse setor social, dirigida para a submissão não só das famílias, mas também das crianças das classes populares. (......) O fato dessas instituições carregarem em suas estruturas a destinação de uma parcela social, a pobreza, já representa uma concepção educacional .

 

Finalmente (mas nem tanto)

 

A razão e a racionalidade são centrais aos esforços para melhorar nossas condições humanas. Minha preocupação com a regulação tampouco imputa o mal ao processo de controle ou sugere algum bem transcendente através de sua erradicação. Minha estratégia de investigação consiste em tornar a razão e a racionalidade objetos de questionamento.(Popkewitz, 1994, p.178)

 

Ao finalizar ainda de forma esquemática este trabalho, desejo de certa forma retomar e colocar em discussão duas questões. Em primeiro lugar, o fato de a educação infantil constituir-se numa etapa considerada por muitos como necessária, com função social definida na constituição do sujeito como ser pensante, racional, comprometida com o projeto de autonomia intelectual dos sujeitos e por extensão de sua autonomia moral. Em segundo, a inquestionabilidade e a penetrabilidade deste discurso.

Em relação à primeira, lembro que a criança foi fabricada como aprendiz, no marco da Modernidade. "O efeito das transformações nas relações institucionais, nas tecnologias e sistemas de idéias foi o de mudar a forma como a identidade devia 'ser vista', compreendida e como se devia agir sobre ela". (Popkewitz, 1994, p.178)

As creches e pré-escolas, segundo este raciocínio, constituíram formas institucionais cujo objetivo foi o de resolver problemas de administração social, num quadro de múltiplas transformações. Como estratégias de intervenção, serviram a propósitos de estabelecer novas estruturas mentais e alcançar novos objetivos de bem estar social. Seu aparecimento serviu a um imperativo de governo das populações e se deu no quadro de novos raciocínios populacionais relacionados preferencialmente com a saúde e a educação, como tecnologias para produzir sujeitos, moldando-os, guiando-os, afetando suas condutas pessoais.

A educação da infância faz parte, portanto, de um sistema de idéias, um raciocínio que nem sempre existiu. A categoria "infância" e as operações correlatas à sua constituição como fenômeno social, como objetos de escrutínio, nos levam a afirmar que as instituições de educação infantil se encontram precisamente naquele ponto de intersecção entre conhecimento e poder. À invenção desta nova categoria correspondem também novas formas de intervenção social para seu controle e regulação. É preciso lembrar especialmente que o processo civilizatório, nesta forma de pensar, estaria ameaçado ou comprometido pelos pobres e arruaceiros. A creche, neste contexto, tem um propósito salvacionista.

Os saberes pedagógicos, portanto, servem como estratégias relacionadas às práticas do Estado, implicados em sistemas de regulação, associados à noção moderna, científica, de formação do cidadão racional. Não interessa tanto identificar que poder estabelece a creche, que arco de alianças se constituem para isso, mas identificar como este poder se exerce. O que fica quase sempre elidido nos discursos sobre o pedagógico é seu papel produtivo, seu caráter ativo na produção de determinados tipos de subjetividades.

A concepção de pedagógico -- como algo que falta a algumas instituições, como um estágio desejável de aperfeiçoamento, de progresso, é falaciosa porque se erige como o único entendimento, ou como um significado unívoco para o termo. Constituída no marco iluminista, que concebe o conhecimento e o saber como fonte de esclarecimento, libertação e autonomia, a pedagogia é vista como instrumento para a libertação dos sujeitos do jugo opressor de estruturas injustas e massificadoras e não como tecnologia para individualizar e normalizar sujeitos, num processo de constituição de identidades pessoais e sociais

O que o discurso crítico da educação infantil, que toma o pedagógico como eixo diferenciador esquece (obscurece) é que nem as pedagogias psicológicas são tão revolucionárias e desinteressadas, nem a pedagogização dos conhecimentos pode ser entendida apenas em relação ao conhecimento oficial corporificado na experiência escolar. A cada rede de socialização infantil corresponde não apenas um corpo de saberes, considerado como digno de ser veiculado pelas instituições, como também concepções particulares do que é ser criança, um corpo de agentes com cultura própria e representações acerca de seu trabalho e de instâncias que se ocupam da seleção e organização dos saberes, de sua hierarquização e censura. Isto ainda não estaria completo se não indicássemos a existência de todo um aparato disciplinar e organizacional para levar a efeito as experiências educativas.

O que quero enfatizar, ao final, retomando algo que já examinei mais atrás, é que educar e cuidar sempre estiveram associados, como parte de projetos que são e permanecem diferenciados. A cisão não se dá entre tais processos, não está na sua pretensa desarticulação, mas em como são vistos os sujeitos infantis como constituintes de redes de socialização com propósitos diferenciados.

Se concordamos que é a origem social e não o recorte  institucional que inspira a diversidade de objetivos, das mais diferentes instituições que se dedicam à educação infantil, certamente podemos também coincidir em que todas as experiências aí levadas a efeito tenham propósitos educacionais, mesmo que diferenciados.

Isto certamente ocorre porque a educação dispensada às diferentes classes ou aos diferentes grupos sociais implica em: diferentes concepções de espaço-tempo, diferenciadas formas de exercício de poder, formas diferentes de saber, portanto diferentes formas de produção de subjetividades, como nos ensinou Júlia Varela (1995).

Em qualquer caso não escapamos às práticas de regulação que são constituídas no domínio pedagógico. O que cabe ter clareza é que o discurso do pedagógico, que toma como central o desenvolvimento cognitivo -- o desenvolvimento de formas de raciocínio cada vez mais complexas, identificado com os padrões da racionalidade ocidental -- representa o projeto de determinado grupo social. Ao tomar esse mesmo discurso para justificar o domínio dos saberes identificados como "patrimônio da cultura", pelos grupos sociais em posição de desvantagem na estrutura social, supondo tal prática como emancipadora dos "oprimidos", estamos usando um argumento falacioso.

É preciso levar em conta que o padrão de distribuição e de circulação dos recursos simbólicos na sociedade é também reproduzido em outras áreas, especialmente na distribuição de recursos propriamente educacionais. Supor então que a partir de condições tão diversificadas -- de qualificação e de exercício profissional, de oportunidades de aperfeiçoamento, de conservação de prédios e equipamentos, de disponibilidade e qualidade do material didático, de financiamento para este nível de ensino -- frente a realidades sociais tão díspares se efetive um mesmo projeto educacional é, no mínimo, uma posição discutível.

O que pretendo afirmar é que o discurso da qualidade, da igualdade, e da busca da eqüidade que orientam a concepção do pedagógico, tomado como avanço na luta pela institucionalização de oportunidades educativas para as crianças pequenas, não tem um sentido unívoco, muito menos transparente. Suponho que ele mais acoberta do que revela.

Sob a aparência de um projeto único, aparentemente consensual, se conduzem práticas de educação das crianças pequenas que produzem uma diversidade enorme de sujeitos sociais, com suas marcadas sensibilidades, disposições e consciência sobre as questões do mundo social.

A questão que cabe enunciar para concluir é: Não estará o atual foco no pedagógico (e no currículo) na educação infantil, como instrumento para a qualificação deste nível de ensino e como promessa que leve à consecução da cidadania, servindo apenas como estratégia para acobertar os interesses e os objetivos -- as relações poder-saber -- que orientam os projetos e as políticas para a infância?

 

 

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Notas

[1] Estas contribuições encontram-se especialmente, mas não exclusivamente, no livro organizado por Tomaz T. da Silva O sujeito da educação: estudos foucaultianos.

[2] Para  maiores detalhes, ver Educar e cuidar, de M.M. Campos.

[3] ver Varela e A.-Uria, op. cit..

[4] Ver Brasil: Política Nacional de Educação Infantil, p.16.

[5] Para a identificação de alguns destes estudos, ver  Kuhlmann Jr., 1991.