PROMOÇÃO DA CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA
Luiz Carlos de Barros Figueiredo
Juiz da 2ª Vara da Infância e da Juventude de Recife-PE.
A priorização da convivência familiar e comunitária é
uma das pedras basilares da chamada Doutrina da Proteção Integral, incorporada
à Convenção Internacional dos direitos das crianças, da qual o Brasil é
signatário juntamente com os mais importantes Países do Mundo.
O legislador constituinte
brasileiro trouxe para a nossa Carta Magna os seus conceitos fundamentais, os
quais foram complementarmente detalhados no Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei nº 8069/90).
Infelizmente, como tantas
outras coisas no Brasil, o que se observa é um profundo hiato entre a vontade
da Lei e a realidade. Qualquer pessoa que circule nas grandes cidades
brasileiras, ou mesmo nas de médio porte, sem precisar do apoio de pesquisa
cientifica, observará um sem número de Crianças e Adolescentes perambulando sem
qualquer perspectiva de um futuro digno. Muitos deles, eufemisticamente chamados
de “Meninos de rua” já não têm qualquer referência familiar; outros tantos
conhecidos como “Meninos na rua” quase não têm mais laços familiares, que
paulatinamente vão se afrouxando até resultar na 1a. situação.
A indisponibilidade de
educação, saúde, profissionalização emprego, alimentação adequada, transporte,
lazer, moradia, etc., e de todos os direitos mínimos da cidadania, por si só,
consubstanciam situação de marginalidade (no sentido de que estão à margem do
patamar mínimo de sobrevivência com dignidade), e, como tal, inegavelmente,
induzem à prática da delinqüência e de atos anti-sociais (marginal no sentido
penal do termo).
Não é preciso lembrar as
causas primárias deste quadro, como o modelo econômico centralizador e
inadequado, a falta de uma política rural e urbana que gera incentivo ao êxodo
rural, às distorções regionais, falta de políticas básicas e de geração de
emprego e renda, etc. - Não basta denunciar esta situação grotesca. É preciso
conjugar o “verbo” com a “ação”, mesmo que consciente se esteja que a atuação
se dará muito mais nos efeitos que nas causas (a propósito, veja-se o magnífico
exemplo que o gigante Betinho vem dando à sociedade brasileira em sua campanha
contra a fome e pela cidadania).
Dentro deste contexto, se propõe
um programa amplo envolvendo os poderes constituídos, em diferentes níveis e
esferas, e a sociedade civil organizada, nos moldes a se garantir que a
promoção da convivência familiar e comunitária não seja “letra morta da lei”,
mas uma realidade em nosso País. Como se observará em alguns pontos da
proposta, em Pernambuco, aquelas de responsabilidade direta do Judiciário já
estão sendo implantadas ou em vias de implantação.
O primeiro e fundamental
passo diz respeito à instalação e funcionamento de um serviço de busca à
família.
Como é óbvio, implica em
discernir casuisticamente a situação de cada uma das crianças/adolescentes
encontradas nas ruas (existência ou não de parentes próximos; prática ou não de
atos infracionais; uso ou não de drogas; escolaridade; experiência anterior de
trabalho, etc.). Existindo a família, o passo seguinte será a sua localização,
gerando um trabalho de aproximação e convencimento de retorno ao lar e
fortalecimento dos vínculos familiares. Disso decorrerá, por certo, a necessidade
do uso de equipamentos comunitários básicos para suprir as necessidades
detectadas, tanto as emergências quanto as mais perenes (postos de saúde para
tratamento de doenças; escolas para ensino regular; cursos profissionalizantes;
tratamento de drogaditos; identificação de meios geradores de empregos e renda,
ou, até mesmo, em ações que não constituem medidas protetivas específicas, como
regularização da posse de terra, de documentação pessoal, etc.).
Sendo preponderante a causa
econômica, e nem sempre sendo possível a colocação do adolescente ou seus
familiares (mercado retraído e/ou baixa qualificação), far-se-á indispensável a
inclusão em programa comunitário ou oficial de auxilio (vide Art. 23 e 101, IV,
do Estatuto). A inexistência ou insuficiente
oferta deste tipo de serviço não deve servir para esmorecer o verdadeiro
atuante nessa área. Ao contrário, deve motivá-lo à busca de organização das
comunidades e para cobrar das autoridades constituídas a sua disponibilidade.
Pergunta crucial diz respeito a - “quem seria o agente executor deste programa,
que engloba tanto atividades operacionais como de articulação?”.
A titulo de exemplo,
referencio que em Porto Alegre-RS, esta tarefa vem sendo executada, com enorme
sucesso, pelo Poder Judiciário. Em Curitiba-PR, o denominado programa
“SOS-Criança” é gerido pela justiça, com a participação direta da Prefeitura.
Sem deixar de reconhecer o
mérito das Ações em ambas as cidades, em especial no caso de Porto Alegre, não
acredito que seja essa boa alternativa, quando confrontada com a lógica
gerencial do sistema macro constante do estatuto.
A Lei nº 8069/90 prevê a
criação dos denominados Conselhos Tutelares, “encarregados pela sociedade de
zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos
nesta lei”.
No sistema legal anterior,
tal tarefa era de competência da Justiça, Embora quase nunca exercida (some-se
o poder inerente de julgar + o de executar + o de editar portarias de caráter
geral, veja-se que a Justiça de menores queria ser, ao mesmo tempo, Judiciário,
Executivo e Legislativo). O fracasso do modelo e a convicção de que problemas
sociais devem ser resolvidos na própria sociedade e que o papel do Judiciário é
de equilibrar as divergências e decidir as pretensões resistidas levaram o
legislador a incluir este novo colegiado no sistema gerencial do modelo.
Cientes das dificuldades de
implantação, por contrariar tantos interesses estabelecidos, o legislador
previu que enquanto não instalados suas atribuições fossem exercidas pela
autoridade Judiciária. Lamentavelmente, na prática, a idéia de uma alternativa
provisória pensada na lei tem servido de mais um obstáculo ao surgimento dos
Conselhos Tutelares, pois enseja para alguns a manutenção do “STATUS QUO ANTE”
e a conservação do Poder controlador. Dois bons exemplos não podem servir de
paradigma de contraponto às centenas de casos em que o fracasso é patente.
A implantação dos Conselhos
tutelares e a assunção por eles de todas as atribuições é marco importante no
resgate da cidadania.
Os programas municipais e
Estaduais com denominação de “SOS-Crianças” ou similar, as ações públicas ou
não governamentais em medidas protetivas devem continuar, não autônomas e
independentes como hoje, mas como linha auxiliar (espécie de Secretária
Executiva dos Conselhos, quando forem instalados, ou do Judiciário enquanto tal
não ocorrer). O sucesso das intervenções depende de uma política una e
coerente com as necessidades de cada
comunidade, que deve brotar do organismo encarregado de sua execução segundo a
Lei.
O segundo passo diz respeito
a um programa de manutenção de criança em abrigo.
Como é óbvio, o esforço do
item anterior pode não resultar em êxito. Inexistência de familiares; sua não
localização; ambiente familiar inadequado; incompatibilidades insuperáveis
entre a criança/adolescente e a família sempre existirão, além daquelas vítimas
de negligência, maus-tratos, exploração, etc.. Para onde encaminha-los,
enquanto não se acha uma solução definitiva para os seus casos, ou mesmo onde
ficarão eles caso esta solução não seja encontrada?.
A alternativa de Lei é o
abrigo.
Entretanto, é preciso se ter consciência
de que os abrigos configurados no Estatuto não podem mais continuar como os
antigos “depósitos de menores”, governamentais ou não, encontrados em quase
todas as cidades brasileiras.
Fazem parte de nova filosofia
alguns conceitos básicos, como por exemplo: abrigo deve ter características de
provisoriedade e excepcionalidade, utilizável como forma de transição para
colocação em família substituta; não pode funcionar como local de privação de
liberdade (isto não quer dizer “porta aberta” e “liberou geral” como pensam
alguns, pois, similarmente os nossos filhos estão abrigados nas nossas casas e
se submetem, como pessoas em desenvolvimento, sem plena maturidade, às regras
de convivência familiar, dentre as quais as de não se ausentar sem prévio
acerto ou autorização. Apenas a lei não permite a contenção forçada e
compulsória, sendo tarefa do educador convencer que a permanência é vantajosa
para o abrigado); precisa ser previamente cadastrado; assegurar os direitos
estabelecidos na lei e obedecer às regras específicas de funcionamento contidos
no Estatuto (além disso, seu dirigente se equipara, para todos os efeitos
legais, ao guardião).
Tudo isso deve ser conjugado
com a lógica da municipalização (e não “prefeituralização”) do atendimento.
Dessa forma, no conjunto articulado de ações voltadas para a política de
atendimento, deve se buscar paulatinamente o afastamento do Estado federado
desta linha de atuação (não abertura de novas unidades para tal fim, por
exemplo) e o fortalecimento de novas unidades; assunção das antigas com aporte
financeiro de união e dos Estados, etc.). É importante o registro de que deve
ser também abandonada a idéia dos grandes estabelecimentos que só geram
promiscuidade e insuficiência da prestação dos serviços, para dizer o mínimo.
O terceiro passo diz respeito
à busca de família substituta.
Sendo a convivência familiar
um direito assegurado na Lei, e malogrando as tentativas para permanência na
família natural, é vital para o sistema a existência de um vigoroso programa de
colocação em família substituta, especialmente para os que se encontram
abrigados em entidades de atendimento.
Disso decorre, em primeiro
plano, o afastamento de conceitos arraigados, mas absolutamente incompatíveis,
a saber: adoção não pode ser encarada como ato de caridade; adoção
não vai resolver problema social da pobreza no País.
A adoção nada mais é do que uma fórmula legal para se
dar uma família a quem não tem. Desta forma, a busca deve se dirigir para a
melhor família para a melhor criança e vice-versa.
Isto implica na necessidade
de um prévio cadastramento das crianças e dos pretendentes e na formulação de
critérios objetivos que permitam identificar o melhor adotando para os melhores
adotantes. Quanto maior a comarca, mais aperfeiçoado deve ser este sistema, não
sendo aceitável que onde existem muitos candidatos ainda se utilize o injusto
sistema da simples ordem de inscrição.
Nem sempre é possível aos
Juízes disporem de equipes técnicas para fazerem as entrevistas, visitações,
análises, acompanhamentos e emissão de pareceres. Neste particular, o apoio
voluntário da sociedade civil, ou a participação de técnicos das prefeituras,
etc., pode ser a alternativa viável.
No caso de Recife,
encontra-se implantado um sistema informatizado, cujo nível de sofisticação é
compatível com a realidade local. A Portaria conjunta nº 01/93 dos juízes de
ambas as Varas da capital define criteriosamente as prioridades. A equipe
técnica, embora diminuta, esta habilitada para a função - Não se concede
Adoções para crianças cujos pais não foram previamente Destituídos do Pátrio
Poder, nem para pessoas que não estejam cadastradas. Mesmo as exceções legais
(adoção unilateral de filhos de companheiras/esposas; parentes próximos; guarda
de fato de longo tempo, etc.) são submetidos a um cadastramento especial para
evitar a burla.
Estas providências, além de
assegurarem o critério justo de escolha, inibem a atuação de atravessadores e
exploradores - Exatamente pela prévia decretação de perda de pátrio poder, a
presença de advogado é facultativa, à falta de lide (pretensão resistida).
É básico também o
entendimento de que se a Lei prevê 3 (três) formas de colocação em família
substituta (Guarda, Tutela e Adoção), não parecendo ser lícito a imposição ao
casal de apenas ter acesso à última das formas mencionadas. De um lado é comum
que pessoas que apenas obtiveram Guarda ou Tutela voltem posteriormente para
requererem a Adoção; De outro, inegavelmente é melhor que a criança fique no
seio familiar na condição de guardada ou tutelada, do que permanecer nas ruas
ou em um abrigo. Mais uma vez vale aqui a competência e o profissionalismo para
convencimento de que a Adoção é a solução mais completa.
Seja por razões sociais,
culturais, econômicas, climáticas, alimentares, religiosas etc., é indiscutível
que a concessão deva priorizar o residente no município; não sendo possível, no
Estado; na Região Geográfica; no Brasil e, por fim, em última instância, em
Adoção Internacional.
Não é demais lembrar que a
excepcionalidade de Adoção Internacional é matéria Constitucional e legal
(Estatuto), também recomendada na normativa internacional (convenção da ONU) e
nos Estatutos da Associação Internacional dos Juízes de Menores e de Família.
Quanto a este aspecto, apesar
de restrição legal, o que sempre se observou foi não a exceção para o
estrangeiro, mas, ao contrário, um certo favorecimento, especialmente quando se
tratava de Crianças de tenra idade.
A utilização desbragada do
sistema legal anterior (cumulação do verificatório simples + adoção), sem
prévia destituição do Pátrio Poder, em uma interpretação meramente gramatical e
apressada do Artigo 166 Parágrafo único do Estatuto (se esquecendo - SIC - dos
Art. 169 e 31) manteve as facilidades para os estrangeiros, com as mães se
apresentando e dizendo que queriam entregar seus filhos aquele casal de outro
País. Como se conheceram? Quais vantagens econômicas receberam as mães e os
intermediários?
Fazendo cessar esta
aberração, em Pernambuco foi criada em 04/93 pelo Provimento nº 03/93 a
Comissão Estadual Judiciária de Adoção, a CEJA-PE, instalada em 15 de Julho de
1993, da qual tenho a honra de ser seu primeiro Presidente.
Nenhum estrangeiro pode mais
adotar em nosso Estado sem estar munido do Laudo de Habilitação da CEJA-PE.
Os brasileiros são
cadastrados facultativamente, fato que serve para realmente se aplicar a ordem
de prioridade antes aludida. (existência de pretendentes em Comarca distinta
daquela onde a criança encontra-se disponível).
As Adoções se fazem apenas em
favor dos estrangeiros habilitados, após exaustiva análise, e para
crianças/adolescentes cadastradas.
Árduo vem sendo o trabalho,
especialmente na 1a. fase, pois o Provimento assegurou o direito adquirido aos
estrangeiros que já estavam cadastrados nas Comarcas, impedindo nova análise
pela equipe técnica da CEJA-PE. O grau de exigências colocadas nos novos
pedidos é um sinal vigoroso de que estes cadastramentos antigos, no mais das
vezes, deixavam a desejar. Entretanto, agora no início de 1994, praticamente já
não existem na lista de espera candidatos que haviam sido cadastrados nas
Comarcas do interior, e, no caso da Capital, desde 1987, a análise para
deferimento das inscrições já era criteriosa, de sorte que são mínimos os
riscos de falha para estes casos.
As portas para os traficantes
de crianças foram fechadas, mas a simples implantação de tais Comissões não é,
por si só, assecuratória de banimento de irregularidades. É preciso a constante
vigilância para se assegurar que não existem “válvulas de escape” para
irregularidades. Notícias se têm de que em alguns Estados de federação a
Comissão apenas criou uma aparência de legalidade, quando intermediários
circulam pelas Comarcas munidos de Laudo de Habilitação (o que lhes dá uma
força adicional), identificando criança especifica para casal certo. Em outro
caso, o grau de interferência da CEJA é tão forte, que invade o campo do Juízo
natural, eivado, assim, de inconstitucionalidade. De outra parte, cabe o
registro que no Rio Grande do Sul, mesmo não existindo formalmente uma CEJA
como preconizada no Art. 52 do Estatuto, um colegiado formado por Juizes tem
cumprido satisfatoriamente este papel.
O sistema informatizado
pernambucano, fruto de análise dos erros e acertos das outras experiências, tem
funcionando a contento, interligado ao sistema de colocação em família
substituta da Capital, e recebendo informações mensais dos Juizes das Comarcas
do interior.
A CEJA-PE também cadastra as
entidades nacionais e internacionais que trabalham com Adoção, e a experiência
tem demonstrado um maior controle de qualidade nas Adoções intermediadas por
Instituições sérias previamente cadastradas. Cabe referenciar que a
Pré-convenção da ONU já indica aos Países signatários que apenas defiram
Adoções internacionais para casos intermediados por Instituições regularmente
inscritas em seus Países de origem.
Todo esse esforço no sentido
de que a vontade de Lei de priorizar a permanência no Brasil deve ser
concomitante a uma campanha de divulgação na mídia para estimular os
brasileiros a se inscreverem como pretendentes a Adoção (tal foi feito em
Olinda-PE, nos anos de 1987/1988, com excelentes resultados).
Além disso, Pernambuco, pelo
seu Egrégio Tribunal de Justiça, encaminhou à Assembléia Legislativa um Projeto
de Lei criando Varas Regionalizadas da Infância e da Juventude, seguindo os
passos do Rio Grande do Sul, que, com certeza, pela especialização dos
Magistrados, Promotores, técnicos e serventuários de Justiça, facilitarão as
prestações Jurisdicional na área da Infância e da Juventude como um todo e na
questão especifica de colocação em família substituta.
Finalmente, fora do âmbito do
Judiciário, é importante o registro de êxito de programas denominados de
“casas-lares”, nas quais devem prioritariamente ser incluídas
crianças-adolescentes em vias de colocação em família substituta, pois a
vivência em um ambiente familiar ou com aparência de família, serve
maravilhosamente como estágio preparatório para o seu futuro estágio de Vida.
E-mail: lcbf@fisepe.pe.gov.br