EXMA. SRA. DRA. JUÍZA DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DA COMARCA DE SÃO SEBASTIÃO DO CAÍ:

 

 

 

 

 

"O apoio e a proteção à infância e à juventude devem figurar, obrigatoriamente, entre as prioridades dos governantes. Essa exigência constitucional demonstra o reconhecimento da necessidade de cuidar de modo especial dessas pessoas, por sua fragilidade natural ou por estarem numa fase em que completam sua formação. Importante assinalar que não ficou por conta de cada governante decidir se dará ou não apoio prioritário às crianças e aos adolescentes. Reconhecendo-se que eles são extremamente importantes para o futuro de qualquer povo, estabeleceu-se como obrigação legal de todos os governantes dispensar-lhes cuidados especiais." (Dalmo de Abreu Dallari)

 

 

 

O MINISTÉRIO PÚBLICO, por seu Promotor de Justiça signatário, no exercício de suas atribuições legais, na qualidade de Curador da Infância e Juventude, vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência propor a presente

 

 

AÇÃO CIVIL PÚBLICA, com pedidos de LIMINAR, contra o

 

 

MUNICÍPIO DE SÃO SEBASTIÃO DO CAÍ, pessoa jurídica de direito público interno, na pessoa do seu representante legal, Prefeito Léo Klein, com endereço na Prefeitura de São Sebastião do Caí, pelo seguintes fatos e fundamentos:

 

I – DOS FATOS:

 

Por plúrimas razões (dificuldades financeiras, crise de valores disseminada por todos os quadrantes pátrios, violência banalizada nos meios de comunicação e entretenimento, desagregação familiar, inigualável nível de desigualdade social, entre outros), em nosso País cada vez mais crianças e adolescentes são quase que impelidos à prática de atos infracionais.

 

No Município de São Sebastião do Caí, como cediço, a situação não é diferente, pelo contrário, até mesmo por ser uma espécie de pólo regional, atrai para si toda sorte de desvalidos que para cá migram na (vã) esperança de ter uma vida melhor, aumentando o bolsão de miséria que existe ao seu redor, precisamente de onde saem fatia expressiva dos autores dos atos infracionais.

 

Esse movimento migratório - notadamente nefasto aos interesses do País, e que, portanto, deveria ser arrefecido por políticas públicas tendentes a fixar as famílias em suas raízes e a lhes proporcionar instrumentos de subsistência - não raro, é estimulado por maquiavélicos políticos que dele se aproveitam para entornar a marginal massa de manobra (bem vista somente em épocas eleitorais...), que passa a (sobre)viver dos parcos serviços sociais prestados pelos Municípios.

 

Nesse contexto - em que se encontra boa parte, senão a maioria, da população do Brasil - padecem especialmente as crianças e adolescentes, vítimas frágeis e vulneradas pela omissão da família, da sociedade e, principalmente, do Estado, no que tange ao asseguramento dos direitos elementares da pessoa humana.

 

Diante dessa indisfarçavel e envergonhante realidade, os constituintes pátrios consagraram em somente um artigo constitucional (227) o que deveria ter "prioridade absoluta" em nossa nação: a infância e juventude.

 

Esse preceito de vanguarda, não há como se negar, estava - e está - em conflito com nossa longínqua realidade histórica, marcada precisamente pelo olvido dos interesses de nossa infância e juventude. Ocorre que, pelo menos ao nosso viso, seu objetivo era justamente este, criar um tensionamento entre norma realidade, no intuito de forjar a transformação social, pois como argutamente captou Hesse1, a Constituição deve ser real e jurídica, ou seja, deve expressar um ser e um dever ser.

 

Posteriormente, o legislador infraconstitucional deu densidade normativa à aludida ordem constitucional, ao proclamar o Estatuto da Criança e do Adolescente, materializando a intenção de dar atenção diferenciada à população infanto-juvenil, demonstrando estar ciente de que se a tratasse de forma igual à população adulta, estaria perpetuando a desigualdade e exaltando a injustiça, conforme célebre máxima de Rui Barbosa.

 

Dessa sorte, como forma de tentar estabelecer almejada isonomia material, entendeu indispensável que as crianças e adolescentes perseguidos e marginais (vale dizer, aqueles que estão à margem dos lucros e benefícios produzidos pela sociedade) viessem a receber, legalmente, um tratamento desigual, privilegiado, consagrado na doutrina da proteção integral, cujo objetivo é precisamente pormenorizar o que se encontra genericamente indicado no texto constitucional.

 

Vale dizer, seja por justiça natural ou até mesmo por solidariedade (muito embora, nesses tempos (pós)modernos, a primeira expressão pareça ser bizantina e a segunda esquizofrênica), a lei quer que todas – insista-se, todas - as crianças e adolescentes brasileiros possam exercitar os direitos - elementares ao reconhecimento da cidadania - que até hoje somente parte dessa população detém.

 

Mas o Estatuto não se limitou a dar expectativa de um futuro melhor para os desafortunados. Em que pese as invectivas que partem daqueles que obram com ignorância ou má-fé, é evidente que ao lado de um elenco de direitos insculpidos, também alcançam as crianças e adolescentes todos os deveres e obrigações contemplados no ordenamento jurídico pátrio, estando sujeitos a responder pelos atos anti-sociais e ilícitos que praticam, notadamente quando atingem a categoria de atos infracionais (ou seja, a conduta descrita na lei penal como crime ou contravenção).

Assim, bem ao contrário do que parcela apreciável dos formadores de opinião propagam, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não significa a impunidade, condescendência ou rompimento com o princípio da autoridade.

 

Pelo contrário, a lei é clara no sentido de que nenhum adolescente a que se atribua a prática de conduta estabelecida como crime ou contravenção deixará de ser julgado pela Justiça da Infância e da Juventude (ou, em se tratando de criança, pelo Conselho Tutelar, no caso sujeito às chamadas medidas protetivas, elencadas no art. 101 do ECA), sendo que, caso comprovada a conduta ilegal, e considerando sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, será responsabilizado pelos seus atos, recebendo a suficiente e necessária medida socioeducativa (art. 112, do ECA), que vai desde a advertência, passando pela obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a inserção em regime de semiliberdade, até a internação. E aqui, um parêntese: seguramente a noção errônea de impunidade que envolve o sistema de atendimento de jovens em conflito com a lei constitui um dos maiores obstáculos a plena efetivação do Estatuto em todo o País.

 

De sorte que, a proposta da doutrina da proteção integral, ao mesmo tempo em que, como lembra Mário Volpi2 "consolida e reconhece a existência de um novo sujeito político e social que, como portador de direitos e garantias, não pode ser tratado por programass isolados e políticas assistencialistas, mas deve ter para si atenção prioritária de todos, constituindo-se num cidadão", inaugura uma nova idéia acerca da responsabilização do adolescente autor de ato infracional, assegurando-lhe todas as garantias processuais e penais, tratando-o como àquele a que se destinam medidas sócioeducativas (frisei), que, embora comportem aspecto de natureza coercitiva, já que são punitivas aos infratores, responsabilizando-os socialmente por seus atos, são tendentes a corrigir o seu processo de desenvolvimento, inserindo-o na vida social, retirando-o da marginalidade e proporcionando-lhe a possibilidade de realização pessoal e participação comunitária, com a formação de valores positivos, fundamentais ao auto-reconhecimento de cidadania.

 

Dito de outro modo, recordando novamente Mário Volpi 3, medidas que, considerando sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, garantam-lhe um tratamento severo, porém digno, sendo consistentes o suficiente "para que ele possa tomar consciência de que existem formas mais eficientes de garantir suas necessidades básicas e de que a exigência dos seus direitos precisa acontecer de forma organizada e socialmente viável."

 

Todavia, para levar adiante este propósito, o Estatuto da Criança e do Adolescente introduziu um novo paradigma de gestão do sistema e de divisão social do trabalho, marcados não só pela participação comunitária, mas também pela descentralização administrativa, pela desjudicialização do atendimento, pela articulação em rede, pela atuação integrada entre os organismos operadores do sistema (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Polícia Civil, Polícia Militar, Conselho Tutelar, Conselho de Direitos, entidades governamentais e não-governamentais que executem medidas de proteção especial e socioeducativas) e, sobretudo, pela municipalização do atendimento, implicando em uma redefinição necessária dos diversos papéis e responsabilidades institucionais.

 

Note-se que nesta (re)definição de papéis, reservou-se exclusivamente ao Poder Judiciário o julgamento dos conflitos juridicamente relevantes na área da infância e da juventude, sendo aquilo que pertence à execução das medidas, incumbiu-se ao Poder Executivo a missão de implementá-las e coordená-las.

 

Daí, sobreveio uma divisão lógica: Ao Estado atribuiu-se a tarefa de velar pela execução da medidas socioeducativas que importassem em privação de liberdade (semiliberdade e internação). Já no que tange as medidas socioeducativas não privativas de liberdade (especialmente a de reparação do dano, prestação de serviços à comunidade e de liberdade assistida), passou-se ao Município, pelas suas peculiaridades e pelos fins a que estavam visando, notadamente de fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, o encargo pela sua efetivação, incumbindo-lhe a implementação dos procedimentos técnicos de intervenção sócio-econômica, psicológica ou pedagógicas relativas a este atendimento.

 

Evidentemente que, do elenco de medidas socioeducativas, as que se mostram com as melhores condições de reverter uma trajetória delitiva são aquelas que não implicam privação da liberdade, cujo caráter é essencialmente pedagógico e privilegia a perspectiva de inserção social. Daí a importância da responsabilidade do Município.

 

Ocorre que dentre estas medidas, apenas as de reparação do dano e de prestação de serviços à comunidade vêm sendo implementadas no Município de São Sebastião do Caí – salienta-se - mercê principalmente da abnegação e denodo do Poder Judiciário.

 

Já a medida de liberdade assistida é praticamente impossível sua aplicação, tão-somente porque o demandado - relegando ao olvido o regramento constitucional e infraconstitucional - até hoje não implementou o devido programa de municipalização das medidas sócioeducativas em meio aberto, frustando sua efetivação.

 

A prestação de serviço a comunidade, por sua vez, em que pese cumprida junto à Municipalidade, é feita de maneira informal e, porque não dizer, ilegal, na medida em que não é feita qualquer espécie de avaliação, social ou psicológica, da situação do adolescente, tampouco de suas habilidades e aptidões, apenas sendo lançado ao exercício de trabalhos braçais de cunho puramente expiatório. Na verdade, na execução desta medida, há um desvirtuamento do seu caráter pedagógico, na medida em que a escolha e o controle das atividades exercidas é feito por pessoas não comprometidas com o processo de ressocialização, de modo que, além de permitir a fraude e a indolência, a infreqüência e a evasão são tardiamente comunicadas ao Juizado, permitindo que na mente do adolescente perpetue-se o sentimento de impunidade e de que vale a pena não cumprir as leis, afinal "não dá nada".

 

E assim os dias passam, aumentando-se o círculo vicioso da desídia - violência – desídia – violência, até que a sensação de impunidade - irrigada pela omissão ora indigitada - chegue ao ponto de fazer a sociedade, acuada, (re)clamar – não raro com o coro profano dos omissos – pelo Estado Polícia, mediante "tolerância zero", traduzida pela internação dos adolescentes em conflito com a lei, mesmo todos sabendo que essa medida é a que tem as piores chances de produzir resultados positivos e que a segregação é o coroamento da inexistência de um projeto social justo e solidário.

 

Com efeito, sabidamente os adolescentes internados acabam cada vez mais distanciados da possibilidade de um desenvolvimento sadio, pois convivendo em ambientes, de regra, promíscuos e aprendendo as normas próprias dos grupos marginais (especialmente no que tange a responder com violência aos conflitos do cotidiano), a probabilidade (quase absoluta) é de que os adolescentes acabem inseridos na chamada "escola do crime", passando a se reconhecerem, sim, tal como epitetados pela sociedade, ou seja, "bandidinhos" "sem jeito", enfim, como pessoas cuja história de vida, passada e futura, resta indelevelmente ligada à delinqüência. Desta fortuna, quando do desinternamento, certamente estar-se-á diante de cidadãos com estirpe piorada, ainda mais predispostos a condutas violentas voltadas açoitar a própria sociedade.

 

E note-se que no Município de São Sebastião do Caí a situação é particularmente assustadora, pois, com uma população de pouco mais de 20.000 habitantes, além de ser majoritariamente responsável pelos 79 (setenta e nove) procedimentos de apuração de ato infracional que tramitam atualmente nesse Juizado, dele também são oriundos os 06 (seis) adolescentes internados na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo - FASE, por determinação desse Juizado (frise-se, sintomaticamente, todos por atos contra o patrimônio), número completamente desproprocional à sua população, conforme cotejo que pode ser feito a partir do levantamento feito junto ao número de adolescentes internados naquela instituição.

 

Desta feita, tendo em mira este novo desenho institucional, e a realidade posta no Município de São Sebastião do Caí, o Ministério Público encetou esforços no sentido de ampliar e qualificar a oferta dos serviços de atendimento socioeducativo a adolescentes autores de atos infracionais, objetivando que o Município assumisse sua responsabilidade, cumprindo destacar, nesse toar, que a via judicial foi a última alternativa que restou ao Ministério Público para fazer valer as normas que determinam a municipalização das medidas sócioeducativas em meio aberto, pois, como bem é de conhecimento de Vossa Excelência, primeiramente foi tentada a mobilização social, promovendo-se uma reunião com todas a ditas "forças vivas da comunidade", frustrante oportunidade em que, mesmo após o esboço do quadro fático e jurídico delineado nessa petição, não houve manifestação positiva da sociedade local e muito menos do requerido.

 

Posteriormente, quando já instaurado o necessário Inquérito Civil Público, tombado sob o número 58/02, o qual acompanha a presente ação, o Município foi contatado mediante reiteradas missivas. Entretanto, este, em sua derradeira manifestação, na pessoa do Senhor Prefeito Municipal, Léo Klein, afirmou taxativamente não ter interesse em assumir a implementação de um projeto municipal para a aplicação das medidas socioeducativas em meio aberto, muito embora o referido mandatário, em reunião informal com o Ministério Público e esse Juizado, tivesse prometido o contrário.

 

Diante disso, como dito, não restou outra alternativa ao Ministério Público senão lançar mão da via judicial para fazer valer as normas que determinam a municipalização das medidas sócioeducativas em meio aberto, no Município de São Sebastião do Caí. Por outro lado, apenas em arremate, cumpre consignar que todos os demais Municípios da Comarca assumiram perante o Ministério Público o compromisso de firmar Convênio com Poder Judiciário, pelo qual assumirão a implementação de um projeto municipal para a aplicação das medidas socioeducativas em meio aberto.

 

 

II - DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS EM MEIO ABERTO:

 

 

Como cediço, o Estatuto da Criança e do Adolescente construiu um novo modelo de responsabilização do adolescente autor de ato infracional, introduzindo novas modalidades de medidas socioeducativas e aprimorando outras já existentes, previstas no vetusto Código de Menores.

 

Tais medidas encontram-se delineadas no seu art. 112:

 

"Art. 112 - Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:

I - advertência;

II - obrigação de reparar o dano;

III - prestação de serviços à comunidade;

IV - liberdade assistida;

V - inserção em regime de semiliberdade;

VI - internação em estabelecimento educacional;

VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI."

 

Tais medidas podem ser divididas em dois grupos diferenciados. No primeiro, àquelas "não privativas de liberdade", também denominadas em "meio aberto", a saber: advertência, reparação do dano, prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida. No segundo, àquelas "privativas de liberdade", a saber: semiliberdade e internação.

 

As primeiras, modo sintético, ensejam ao adolescente uma reflexão da sua problemática estando em contato direto com o seu meio, com suas origens, fortalecendo seus vínculos familiares e comunitários. Com a aptidão de gerar melhores efeitos pedagógicos que as medidas privativas de liberdade, o jovem é convidado a analisar sua realidade e a identificar os fatores que influenciaram sua atitude comportamental, assim como avaliar as conseqüências dela resultantes para sua vida passada e futura. Noutras palavras, tais medidas buscam uma efetiva participação do jovem em sociedade, incentivando-o a rediscutir seu projeto de vida, capaz de estimulá-lo a romper com a prática ilegal e anti-social antes desenvolvida.

 

As segundas, em resumo, são medidas de contenção extrema, com a limitação do jus ambulandi e o conseqüente rompimento temporário dos vínculos familiares e sociais. O jovem é retirado do convívio de seus pares e encaminhado a um estabelecimento exclusivamente preparado para recebê-lo, onde permanecerá por determinado período. São recomendadas nas hipóteses em que o infrator revela não estar conscientizado dos limites exigidos para a convivência social, demonstrando um pernicioso comportamento, com total ausência de senso crítico e desprezo pelo outrem. Regra geral, são reservadas às condutas de maior gravidade, marcadas pela violência e pela grave ameaça à pessoa, assim como àqueles jovens que, após serem contemplados com as medidas em meio aberto, estas não surtiram qualquer efeito, e voltaram a trilhar o caminho da delinqüência

 

Interessa na presente demanda as medidas não privativas de liberdade, especialmente as de reparação do dano, de prestação de serviços à comunidade e a de liberdade assistida, capituladas nos arts. 116, 117, 118 e 119, do ECA.

 

A medida de reparação do dano encontra-se delineada no art. 116. Reza o citado comando:

 

"Art. 116 - Em se tratando de ato infracional com reflexos patrimoniais, a autoridade poderá determinar, se for o caso, que o adolescente restitua a coisa, promova o ressarcimento do dano, ou, por outra forma, compense o prejuízo da vítima.

 

Parágrafo único. Havendo manifesta impossibilidade, a medida poderá ser substituída por outra adequada."

 

 

Nesta medida o jovem responde pelo que fez como uma ação restituidora. Pressupõe a existência de um dano, notadamente patrimonial, e se exaure na restituição do bem ou no ressarcimento do prejuízo feita pelo infrator.

 

O jovem é conduzido a reconhecer seu erro e a repará-lo. A reparação, na forma de devolução do bem, o mesmo ou similar, ou de um desfalque financeiro em sua renda, é a forma de educá-lo e conscientizá-lo do seu comportamento.

 

A rigor, resolve-se de imediato, com a compensação do prejuízo sofrido pela vítima.

 

Já as outras duas, prolongam-se no tempo.

 

A medida de prestação de serviços à comunidade vem sedimentada no art. 117:

 

"Art. 117 - A prestação de serviços comunitários consiste na realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não excedente a seis meses, junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem como em programas comunitários ou governamentais.

 

Parágrafo único. As tarefas serão atribuídas conforme as aptidões do adolescente, devendo ser cumpridas durante jornada máxima de oito horas semanais, aos sábados, domingos e feriados ou em dias úteis, de modo a não prejudicar a freqüência à escola ou à jornada normal de trabalho."

 

 

Constitui a medida com o mais forte apelo comunitário e educativo.

 

O adolescente ao cumpri-la de modo legal e correto, além de estar interagindo em seu contexto sócio-cultural, integra-se em "redes de relações mais amplas e diversificadas". Estas redes de relações se constituem em elemento adequado à reformulação do desempenho de sua conduta, no sentido de levá-lo a entender o significado das relações sociais em que está envolvido, internalizando os códigos de comportamento vigentes.

 

O trabalho, não se pode olvidar, constitui-se em uma atividade privilegiada e transformadora, na medida em que assume um caráter educativo, "e sempre será uma fonte inesgotável de aprendizagem, não só por seu caráter criativo, produtivo e de expressão, mas também por se desenvolver circunscrito a determinadas relações sociais. Assim a atividade de trabalho sociabiliza o homem explicitando as normas e os limites sociais dominantes. Além disso, a atividade produtiva do homem é "a matriz a base da formação da consistência crítica e transformadora das relações sociais"4.

 

Como bem ressaltou Aldaíza Sposati5 esta medida "será cada vez mais efetiva na medida em que houver o adequado acompanhamento do adolescente e de sua família pelo órgão executor, o apoio da organização social que o recebe, a dimensão social do trabalho realizado, sem rivalizar com a escolarização e promovendo o real desenvolvimento de suas aptidões. Nessa medida está presente a possibilidade do jovem construir um lugar novo para si mesmo na comunidade, além da possibilidade de transformar sua rotulação de "problema" para "solução", a partir do desenvolvimento de suas habilidades, reforçando seu protagonismo juvenil."

 

Por sua vez, a medida de liberdade assistida tem seus marcos referencias demarcados nos arts. 118 e 119, verbis:

 

 

"Art. 118 - A liberdade assistida será adotada sempre que se afigurar a medida mais adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente.

 

§ 1º - A autoridade designará pessoa capacitada para acompanhar o caso, a qual poderá ser recomendada por entidade ou programa de atendimento.

 

§ 2º - A liberdade assistida será fixada pelo prazo mínimo de seis meses, podendo a qualquer tempo ser prorrogada, revogada ou substituída por outra medida, ouvido o orientador, o Ministério Público e o defensor.

 

Art. 119 - Incumbe ao orientador, com o apoio e a supervisão da autoridade competente, a realização dos seguintes encargos, entre outros:

I - promover socialmente o adolescente e sua família, fornecendo-lhes orientação e inserindo-os, se necessário, em programa oficial ou comunitário de auxílio e assistência social;

II - supervisionar a freqüência e o aproveitamento escolar do adolescente, promovendo, inclusive, sua matrícula;

III - diligenciar no sentido da profissionalização do adolescente e de sua inserção no mercado de trabalho;

IV - apresentar relatório do caso."

 

A intervenção educativa desta medida manifesta-se no acompanhamento sistemático e personalizada do adolescente e de sua família, e busca garantir os aspectos de proteção, inserção comunitária, resgate e manutenção de vínculos familiares, freqüência escolar e inserção no mercado de trabalho e/ou cursos profissionalizantes e formativos.

 

A liberdade assistida, porquanto se desenvolve direcionada a interferir na realidade familiar e social do adolescente, tencionando resgatar, mediante apoio técnico, as suas potencialidades, com o acompanhamento, auxílio e orientação, a promoção social do adolescente e de sua família, bem como a inserção no sistema educacional e no mercado de trabalho, destaca-se no estabelecimento de projeto de vida capaz de produzir ruptura com a prática de delitos, reforçados que restarão os vínculos do adolescente, seu grupo de convivência e a comunidade, como verdadeira fórmula de prevenção da criminalidade, mediante a efetiva distribuição do trabalho, da educação, da cultura, da saúde, vale dizer, com a participação de todos nos benefícios produzidos pela sociedade.

 

Note-se que, do ponto de vista socioeducativo, esta modalidade assume a característica de se constituir em uma alternativa para que o adolescente encontre "no próprio meio social, no convívio com o alter que necessita de solidariedade, o caminho pedagógico de reconhecimento de sua conduta indevida e a convicção de próprio valor como ser humano", para se fazer eco às sábias palavras de Cury, Garrido e Marçura6.

 

Na opinião da assistente social Ruth Pistori7 "A Liberdade Assistida é, inegavelmente, a melhor medida para o adolescente. Ele fica na família, é acompanhado, orientado no seu "habitat", tendo a oportunidade de viver e repensar sua postura social, familiar e comunitária. Mesmo os que reincidam e foram internados guardam, dos casais a mais grata recordação porque se sentiram amados e respeitados, não obstante haverem desviado o caminho."

 

Por todas estas peculiaridades, a privilegiar que o jovem cumpra as medidas aplicadas em seu local de origem, é que o Estatuto outorgou ao Município a responsabilidade pela sua execução, articulando-as com suas políticas setoriais, em rede, garantindo sua aproximação da escola, da profissionalização, do lazer, dos esportes, da cultura, e, sobretudo, do apoio da família e da comunidade onde reside. E tal responsabilidade o requerido insiste em não assumir.

 

 

III - DO DIREITO:

 

A Constituição Federal, reorganizando a Federação Brasileira, atribuiu ao Município una nova personalidade jurídica, reconhecendo definitivamente como membro da Federação, ao lado da União e dos Estados, em pé de igualdade.

 

É o que verte do caput do seu art 1º:

 

 

"Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:"

 

 

Por sua vez, ao regular sua organização político-administrativa, assegurou autonomia a cada ente federativo. É o que se acha inserido no caput do art. 18:

 

"Art. 18 - A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição."

 

Todavia, tendo como inspiração esta independência em cada uma das esferas estatais, prosseguiu a Carta Magna estabelecendo variados níveis de competência. É o que vem prescrito no art. 204:

 

Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:

I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social;

II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis." (g.n.)

 

Diante disso, a Lei Maior da República não só cristalizou a autonomia dos Municípios, como também disciplinou a descentralização político-administrativa e as atribuições de cada ente federado, com destaque especial na participação comunitária. E foi mais longe, foi taxativa ao enunciar que caberá às esferas estadual e municipal a execução dos respectivos programas de atendimento.

 

Por fim, como não poderia deixar de ser, invoca-se o emblemático artigo 227 da Carta Magna:

 

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo aos seguintes preceitos:

I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil;

II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.

§ 2º A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.

§ 3º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7º, XXXIII;

II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas;

III - garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola;

IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica;

V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade;

VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado;

VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins.

§ 4º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.

§ 5º A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros.

§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

§ 7º No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se-á em consideração o disposto no art. 204." (g.n.)

 

 

E aqui, em seu § 7º, já grifado, consagrou especificamente que, no que tange aos programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, caberá a coordenação e as normas gerais à esfera federal, e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal. (grifei)

 

Como não poderia ser diferente, a Lei nº 8.069/90, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente, palmilhando pelos caminhos traçados pela Constituição, dando densidade normativa à sua orientação, cuidou no seu art. 88 em consolidar definitivamente a "municipalização" como uma das diretrizes fundamentais das políticas de atendimento dos direitos das crianças e adolescentes.

 

"Art. 88. São diretrizes da política de atendimento:

I - municipalização do atendimento;

II - criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais;

III - criação e manutenção de programas específicos, observada a descentralização político-administrativa;

IV - manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do adolescente;

V - integração operacional de órgão do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social, preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização do atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional;

VI - mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade." (g.n.)

 

Indubitavelmente o Estatuto elegeu "o município como espaço territorial onde as ações e serviços de atenção cotidiano aos adolescentes podem ser conectados e processados de modo a se complementarem uns aos outros. De fato, os cidadãos não habitam a nação; habitam o município pequeno, ou o microterritório de um município grande. É nesse espaço, portanto, que as ações ganham visibilidade na execução de seus procedimentos e nos resultados que alcançam."8

 

Ou seja, é o Município o locus por excelência para implementação das políticas de proteção especial e das políticas socioeducativas.

 

É ele, como realça Munir Cury9:

 

"(...) com suas estruturas e recursos locais, costumes e tradições, que se pode avaliar a maior e melhor adequação dos hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, ás exigências pedagógicas do adolescente autor de infração penal, submetido à medida socioeducativa de Prestação de Serviços à Comunidade. Da mesma forma, é somente no Município, dotado do seu perfil próprio de condições de escolaridade e cultura, família, socialidade e trabalho, que poderá surgir a figura ideal do orientador prevista e exigida para o êxito da medida socioeducativa de Liberdade Assistida.

 

Por fim, para reforçar ainda mais a necessidade da municipalização é oportuno lembrar que os programas de medidas socioeducativas em meio aberto serão fiscalizados pelo Judiciário, pelo Ministério Público e pelos Conselhos Tutelares (Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 95), significando que cabe aos respectivos representantes municipais desenvolver tais iniciativas e deveres. Para essa atividade fiscalizatória, tão somente as autoridades e habitantes locais terão condições de avaliar, considerando o contexto e as condições de vida da população, as eventuais medidas aplicáveis previstas pelo art. 97 do mesmo diploma legal.

 

Poder-se-ia dizer que somente o Município possui as condições básicas estruturais e humanas para a aplicação das medidas em meio aberto. Também sob este aspecto, o Estado poderá assessorá-lo, mas nunca substituí-lo.

 

Foi sábia a Constituição Federal de 1988.

 

Não menos, o Estatuto da Criança e do Adolescente.(...)."

 

 

A jurisprudência pátria, por sua vez, não discrepa do entendimento até aqui delineado pelo Ministério Público, confira-se.

 

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, v.g, por sua 3ª Câmara Civil, ao apreciar a Apelação Cível nº 44.569, de Lages, assim decidiu:

 

"AÇÃO CIVIL PÚBLICA - OMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL EM IMPLEMENTAR OS PROGRAMAS DE AUXÍLIO CONTIDOS NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - REMESSA DESPROVIDA. Exsurge caracterizada a omissão ensejadora da utilização da ação civil pública, a não, implementação, por parte da edilidade, dos programas de assistência previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente."

 

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, do mesmo modo, ao julgar a Apelação nº 62, determinou:

 

"Demonstrada que restou a precariedade dos estabelecimentos existentes, cumpre ao Distrito Federal dar cumprimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente que regulamentou o art. 227 da Constituição Federal, fazendo constar do Orçamento de l994 dotação para a construção de casas destinadas ao internamento de menores infratores, bem assim a estabelecimentos que recolham os mesmos em medida de semiliberdade, uma vez que a própria Carta Magna determina seja data prioridade absoluta à matéria." (g.n.)

 

 

E, como não poderia deixar de ser, o próprio Tribunal gaúcho acolhe esse entendimento:

 

"É legal e exigível a obrigação do Município de oferecer programas de atendimento em regime de abrigo e em condições de receber crianças e adolescentes submetidos a medidas de proteção. A providência é singela e não necessita prazo prolongado, sendo a multa pelo descumprimento o único mecanismo capaz de arrecadar recursos". (Reexame Necessário 597 051 358, 8ª Câmara Cível)

 

Inclusive, rogando escusas pela demonstração de vaidade, tal entendimento foi reafirmado recentemente em precedente jurisprudencial originado a partir de Ação Civil Pública também proposta pelo Promotor de Justiça signatário.

 

ECA. POLÍTICA DE ATENDIMENTO. MUNICIPALIZAÇÃO. CONTRATAÇÃO DE PSICÓLOGO. É de responsabilidade do Município de Roca Sales a manutenção de um profissional da área de psicologia ou psiquiatria, para propiciar o atendimento gratuito, em medida de proteção, às crianças e adolescentes inseridas no tratamento. Aplicação dos artigos 86 e 88 do ECA, art. 241da Constituição Estadual e art. 227 da Constituição Federal. Ação civil pública julgada procedente. Sentença confirmada em reexame necessário." (Reexame Necessário nº 70005275268, 8ª Câmara Cível, Encantado, Rel.Des. José Siqueira Trindade, J. 12.12.2002)."

 

Comporta destacar, por fim, que na 49ª Reunião do Conselho de Supervisão de Infância e Juventude, datada de 21 de junho de 2002, que reúne os Magistrados titulares dos diversos Juizados Regionais da Infância e da Juventude em que se encontra dividido geograficamente o Estado do Rio Grande do Sul, após debater o tema, aprovou, por unanimidade, proposição, consubstanciada no Enunciado nº 2, assim ementado:

 

"Enunciado nº 2 do CONSIJ - EXECUÇÃO DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS EM MEIO ABERTO. É de responsabilidade do Poder Executivo Municipal, e não do Poder Judiciário, promover execução do atendimento de adolescentes em cumprimento de medidas sócio-educativas de meio-aberto, nos termos do art. 88, inc. I do Estatuto da Criança e do Adolescente."

 

 

IV - DA ANTECIPAÇÃO DA TUTELA:

 

À ótica do direito instrumental, a presente demanda tem espeque do artigo 213 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que assim dispõe:

 

Art. 213. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 1º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citando o réu.

§ 2º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.

§ 3º A multa só será exigível do réu após o trânsito em julgado da sentença favorável ao autor, mas será devida desde o dia em que se houver configurado o descumprimento. (g.n.)

 

Note-se, nesse diapasão, que os requisitos do relevante fundamento da demanda e o justificado receio de ineficácia do provimento final (periculum in mora), exprimem-se pela matéria versada na testilha: a defesa da infância e juventude.

A rigor, ostentar-se-ia despicienda maior argumentação sobre a presença desses requisitos, os quais despontam, sem maiores elucubrações teóricas, no plano da vida, diante do risco palpável, intuitivo, de que, a cada momento em que a omissão do requerido se perpetua, avulte as conseqüências funestas daí advinda, havendo o esvaziamento do direito material a ser tutelado, ensejando, mediante simples elaboração de um juízo reflexivo, a conclusão no sentido de que a opção pela demora, pela postergação da prestação jurisdicional, somente levará à conclusão de que não foi iniciado o desfazimento do quadro de lesividade tão-logo era possível e necessário, por falta de vontade, resultado de entendimento não recepcionado pelo sistema constitucional, ou, então, por incompreensão da relevante dimensão da preventiva proteção da infância e juventude, fruto de inércia intelectual, sendo qualquer dos dois motivos, depoente em desfavor do prestígio da função jurisdicional.

 

Ajusta-se, aqui, perfeitamente, a lição do Professor e Doutor Plauto Faraco de Azevedo10 quando afirma: "Qualquer juiz, não importa a instância em que atue, "a fortiori" o juiz constitucional, precisa arrimar-se na técnica jurídica para decidir, com a clara consciência da necessidade de um juízo político, em que se incluem o senso de conveniência e de oportunidade e a prefiguração dos resultados da decisão".

 

Assim, é preciso repensar o ordenamento jurídico, e, reafirmando o caráter instrumental do processo, elevar o prestígio da função jurisdicional, mormente à luz de um arcabouço normativo pátrio, muito próximo do ideal, em termos de Direito Infanto-Juvenil.

 

Note-se que, por outro lado, que embora a norma não exija, é plausível o entendimento de que o fundamento relevante e o justificado receio e ineficácia do provimento final devem estar conectados à verossimilhança da alegação e à prova inequívoca, (fumus boni iuris) exigidos no art. 273 do Código de Processo Civil.

 

Sem embargo, tais requisitos, reputa-se, vêm evidenciados no corpo desta petição, oportunidade em que se demostrou que há total amparo legal para que o Município, imediatamente, forneça aos menores a proteção de que necessitam. Despicienda tautologia.

 

Salienta-se, que no caso vertente a decisão liminar deve fixar astreintes, pois uma decisão judicial tão importante e tão relevante para a sociedade não pode correr o risco de não ser cumprida ou, ainda, de ser analisado, pelo ente municipal demandado, através dos interesses fazendários mais emergentes, a viabilidade de não execução com o pagamento de uma multa que não tenha o efetivo caráter coercitivo.

 

A realidade atual urge ser alterada no mais curto espaço de tempo, obrigando o administrador a não recuar nesse propósito, sob pena de institucionalizar-se, de vez, o descaso para com os adolescentes infratores autores de atos infracionais. Assim, a multa pecuniária diária deve ser a suficiente e necessária a afastar qualquer estudo técnico-orçamentário da viabilidade de não cumprimento mediante o pagamento de uma multa razoável, mas que atenda aos interesses prioritários.

 

Além disso, requer-se que a pena diária, pelo não cumprimento da decisão judicial, tenha o seu valor sempre atualizado pelo índice vigente de correção monetária e que possa ser igualmente renovada para os anos subseqüentes, caso se façam necessárias novas liminares, como, ainda, seja aplicada na sentença final, revertendo-se em benefício do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, com destinação específica para a criação do programa ora postulado.

 

 

V - DOS PEDIDOS:

 

EX POSITIS, requer o Ministério Público:

 

a) o DEFERIMENTO de LIMINAR, inaudita altera parte, determinando ao Município que no prazo de 60 (sessenta) dias, elabore e apresente ao Juízo da Infância e da Juventude desta Comarca, idôneo projeto para implementação de programa de atendimento a adolescentes autores de atos infracionais, sujeitos à jurisdição do Juizado da Infância e da Juventude da Comarca de São Sebastião do Caí, em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto de obrigação de reparar o dano, de prestação de serviços à comunidade e de liberdade assistida, tal como previstas no art. 112, incisos II, III e IV, e regulamentadas pelos arts. 116 a 119 da Lei nº 8.069/90;

 

b) o DEFERIMENTO de LIMINAR, inaudita altera parte, determinando ao Município que inclua na lei de orçamento e na lei diretrizes orçamentárias para o ano de 2004, assim como nos seguintes, os valores necessários para implementação e manutenção do referido projeto destinado à implementação de programa de atendimento a adolescentes autores de atos infracionais, sujeitos à jurisdição do Juizado da Infância e da Juventude da Comarca de São Sebastião do Caí, em cumprimento de medidas sócioeducativas em meio aberto de obrigação de reparar o dano, de prestação de serviços à comunidade e de liberdade assistida;

 

c) a fixação de multa diária, para o caso de descumprimento das decisões liminares referidas nos itens "a' e "b", em valor a ser definido por este Juízo, o qual, sugere-se, não seja inferior a R$ 2.000,00 (dois mil reais), multa esta a ser recolhida ao Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Município de São Sebastião do Caí, com destinação específica para a criação do programa ora postulado, consoante estabelecem os arts. 11 e 12, § 2º, ambos da Lei nº 7.347/85, o art. 644 do Código de Processo Civil, e o art. 213, § 2º, da Lei nº 8.069/90;

 

d) que a medida liminar tenha previsão de possibilidade de renovação para os anos subseqüentes, com valores corrigidos monetariamente;

 

e) após, a citação do demandado, na pessoa de seu representante legal, nos termos do art. 285 do Código de Processo Civil, para, querendo, oferecer contestação, no prazo legal, sob pena de confissão e revelia;

 

f) a produção de todos os meios lícitos de provas que se afigurarem necessários, em especial o depoimento pessoal do representante legal do demandado, sob pena de confissão;

 

g) a juntada do Inquérito Civil nº XXX, em anexo;

 

h) ao final, a PROCEDÊNCIA da ação, para condenar o Município à obrigação de fazer, consistente em que seja condenado a criar e manter projeto destinado ao atendimento de adolescentes autores de atos infracionais, sujeitos à jurisdição do Juizado da Infância e da Juventude da Comarca de São Sebastião do Caí, em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto de obrigação de reparar o dano, de prestação de serviços à comunidade e de liberdade assistida, tal como previstas no art. 112, incisos II, III e IV, e regulamentadas pelos arts. 116 a 119 da Lei nº 8.069/90;

 

i) a cominação, na sentença, para caso de descumprimento da condenação final, de multa diária (astreintes), em valor nunca inferior ao deferido em liminar, sempre com previsão de correção monetária para se garantir o real valor e o poder de coerção, que deverá reverter ao Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Município de São Sebastião do Caí, com destinação específica para a criação do programa ora postulado;

 

j) a condenação do demandado aos ônus de sucumbência.

 

Valor da causa: à evidência, inestimável.

 

São Sebastião do Caí, 04 de abril de 2003.

 

Charles Emil Machado Martins,

Promotor de Justiça.

 

 

1 A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO, Sérgio Fabris Editor, 1991, p. 15),

2 SEM LIBERDADE, SEM DIREITOS – A PRIVAÇÃO DA LIBERDADE NA PERCEPÇÃO DO ADOLESCENTE, Cortez Editora, 2001, p. 34.

3 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE COMENTADO: COMENTÁRIOS JURÍDICOS E SOCIAIS, CURY, Munir et al (Coord.), Malheiros, 1996, p. 304.

4 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ANOTADO, RT, 1991, p.51.

5 SUGESTÕES Á MUNICIPALIZAÇÃO DO ATENDIMENTO EM MEIO ABERTO. Internet.

6 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ANOTADO, RT, 1991, p.11.

7 LIBERDADE ASSISTIDA COMUNITÁRIA – AJUDANDO O ADOLESCENTE A ASSUMIR SUA LIBERDADE. Internet.

8 GESTÃO MUNICIPAL DOS SERVIÇOS DE ATENÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE. Série Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente nº 4. IEE/Instituto de Estudos Especiais da PUC/SP, p. 14.

9 A RESPONSABILIDADE DOS MUNICIPAIS PELA APLICAÇÃO DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS EM MEIO ABERTO. Publicação do Governo do Estado de São Paulo e FEBEM/SP, Imprensa Oficial/SP, 2001, p. 17.

10 CRIAÇÃO JUDICIAL DO DIREITO, RT, p. 156

 

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Ø      ACP - criação de programas de internação e semiliberdade (com sentença)

 

Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da Vara da Infância e da Juven-tude da Comarca de Passo Fundo:

 

 

 

 

 

O MINISTÉRIO PUBLICO, por sua agente signatária, forte no art. 129, inc. III, da Constituição Federal e no art. 201, inc. V do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº8.069/90), vem, perante V. Exa., promover a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA contra o ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, pes-soa jurídica de direito público interno, legalmente represen-tada pelo Exmo. Sr. Governador do Estado. ALCEU DE DEUS COLLA-RES, com endereço no Palácio Piratini, Praça dos Três Poderes, Porto Alegre, em razão dos seguintes fundamentos:

 

 

 

I - EXPOSIÇAO DO PROBLEMA:

 

 

1. 0 Estatuto da Criança e do Adolescente (L. nº 8.069/90) prevê uma série de medidas sócio—educativas tendentes a reinserirem o autor de ato infracional no contexto social de molde a que venha a ser reconhecido como cidadão na plenitude de seus direitos e deveres.

 

 

2. Excepcionalmente, o adolescente poderá ser contemplado com alguma das medidas privativas de liberdade previstas no inc. V e VI do art. 112 do ECA, quais sejam as

 

 

 

 

medidas de inserção em regime de semi-liberdade e de internação.

 

3. 0 legislador estatutário foi pródigo ao apontar os direitos do adolescente privado da liberdade (art. 124) bem como as obrigações das entidades que desenvolvam pro-gramas de semi-liberdade ou internação (arts. 94 e 120, parág. 2°)

 

4. Dentre os direitos assegurados ao ADO-LESCENTE PRIVADO DE LIBERDADE, foi inserida a permanência na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsáveis (art. 124, inc VI), cujo objetivo é faci-litar o processo de ressocialização e recuperação do adoles-cente. com a preservação de seus vínculos familiares e sua identidade social e cultural.

 

5. Inspirado no dispositivo supracitado, o legislador estadual aprovou e o Poder Executivo sancionou a Lei nº 9.896/93, de 09 de junho de 1993, pela qual foram cria-dos no âmbito estadual oito Juizados Regionais da Infância e da Juventude, tendo por uma das sedes a Comarca de Passo Fun-do

 

6 Dentre as competências afetas aos jul— gados regionais encontra—se a:

 

"execução das medidas de internação e semi-liberdade, quando n3o houver programa específico na Comarca de origem" (alínea 'c" do art. 2Q).

 

7. Na Resolução nº 99/93 do e. Conselho da Magistratura, ficou explicitada a base territorial do Jui-zado Regional da Infância e da Juventude com sede em Passo Fundo como abrangente das seguintes comarcas: Arvorezinha, Ca— razinho, Casca, Constantina, Erechim, Espumoso, Frederico Westphalen, Gaurama, Getúlio Vargas, Guaporé, Ibirubá, Iraí, Lagoa Vermelha, Marau, Marcelino Ramos, Não—Me—Toque, Nonoai,

 

 

 

 

 

 

Panambi, Planalto, Ronda Alta, Sananduva, Santa Bárbara do Sul, São José do Ouro, Sarandi, São Valentim, Seberi, Soleda-de, Tapejara e Tapera.

 

8. De se concluir, portanto, que o cumpri-mento da tarefa a cargo do Juizado Regional insculpida na alí-nea "c" do art. 2Q da Lei Estadual nº 9.896/93 só poderá ocor-rer quando, ao menos nas comarcas—sedes de Juizado Regional, existam programas de internação e de semi-liberdade.

 

 

II HISTÓRICO DOS FATOS

 

 

1. 0 Município de Passo Fundo conta com um terreno e prédio destinados implantação de unidades direcionadas efetivação dos referidos programas, ora integrados ao complexo do Patronato de Menores, mas completamente abandona-dos por força de indefinição política, representado mais um caso escancarado de DESPERDÍCIO DO DINHEIRO PÚBLICO.

 

2. O complexo arquitetônico construído em terreno da FEM (Fundação Educacional do Menor) foi projetado para acolher a extinta UNIDADE TERAPEIJTICA do Juizado de Meno-res de Passo Fundo, instituída através de um convênio entre o Ministério da Justiça e o Governo do Estado do Rio Grande do Sul, em 1986, através do Programa "Ruas em Paz". visando já naquela época a descentralização dos Juizados de Menores nas "cidades—pólos" a nível de Estado.

 

3. De 1987 a 1988, a chamada "Unidade Te— rapêutica" permaneceu fechada, começando suas atividades em 1989, quando, através da FEM, foram encaminhados projetos es-pecíficos ~ FEBEM e FUNABEM. Aprovados, os projetos propicia-ram a aquisição dos equipamentos necessários para o início do atendimento ao infrator.

 

4. Durante o ano de 1990. apesar das dificuldades por que passava, a Unidade Terapêutica continuou fun-cionando, sempre inspirando questionamentos a respeito da efe-tividade de seu trabalho e quanto à sua vinculação ao trabalho do Patronato de Menores (sustentado pela FEM). De se destacar. já nesse período, o papel da Prefeitura Municipal de Passo Fundo como principal fonte de recursos para o funcionamento, mesmo precário, da instituição.

 

 

5. Em 1991 a situação agravou—se devido à escassez de verbas em todos os níveis do poder estatal. Após várias reuniões com lideranças comunitárias, foram contratados um novo diretor para a Unidade e um psicólogo com 20h.

 

6. 0 ano de 1992 foi o último de funciona-mento da entidade. Durante esse ano, por falta de definição de uma proposta pedagógica coerente e adaptada à nova lei (Esta-tuto da Criança e do Adolescente), a Unidade passou por seu período de maior padecimento, chegando a contar com o seguinte quadro de pessoal: um diretor, um psicólogo, um casal de ca-seiros, um marceneiro—instrutor e um policial militar à paisa-na cedido para a FEM.

 

7. Tentando salvar a proposta, quando ain-da funcionava a Unidade Terapêutica, foi organizada uma Comissão Interinstitucional para reformulá—la. Essa união de esfor-ços redundou no Projeto "Adolescente Infrator" (fls. 09/26 do Inquérito Civil incluso), o qual foi entregue em mãos ao então Secretário da Justiça, do Trabalho e da Cidadania, Dr. Geraldo Nogueira da Gama, em agosto de 1992. pela Promotora signatá-ria, pela Gerente Regional da FEBEM (Profa. Selma Costamilan) e pela Presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Crian-ça e do Adolescente (Profa. Noely Albuquerque).

 

8. Apesar da boa receptividade do projeto. nenhuma notícia alvissareira chegou à Gerência local da FEBEM no sentido de sua encampação pelo Governo do Estado.

 

9.Fechada a Unidade Terapêutica, ainda em 1992, a Gerência da FEBEM procurou pressionar a Presidência da entidade para uma solução e obteve como resposta uma proposta de consórcio entre Estado e Município, cuja cópia consta às fls. 45/48 do incluso Inquérito Civil.

 

10. Também dessa proposta não se logrou a celebração de um convênio, devido à não aceitação por parte do Município de Passo Fundo, o qual ficaria evidentemente sobre-carregado na manutenção do programa.

 

11. Após diversas tratativas entre o Muni-cípio de Passo Fundo e o Governo do Estado, através da Presi-dência da FEBEM, foi firmado entre as partes um "Termo de Concessão de Uso" gratuito da sede da Unidade Terapêutica pelo Município de Passo Fundo, direito de uso esse que caducaria se o concessionário não utilizasse o prédio para recuperação de menores no prazo de seis meses a contar da assinatura do Con-vênio, que ocorreu em 18 de fevereiro de 1994.

 

12. Até o presente momento, a Prefeitura Municipal de Passo Fundo não implantou qualquer programa no referido complexo arquitetônico, tendo ocorrido. "ipso facto", a cessação do direito de uso.

 

13. Dessa síntese histórica, emerge que a Comarca de Passo Fundo já conta com um bom começo para a im— plantação de programas regionalizados de atendimento ao infra-tor privado de liberdade. Há um excelente terreno; três exce-lentes prédios e alguns equipamentos, como televisão, video— cassete, oficina de marcenaria (atualmente usufruída pelo Pa— tronato de Menores) e um veículo utilitário da marca Fiat.

 

14. Exaurida a via suasória, da qual a Promotoria da Infância e da Juventude de Passo Fundo sempre participou ativamente, em 21 de março de 1994. foi instaurado

o inquérito Civil n° 1/94, com o fim de apurar a "omissão do poder público em criar, instalar e manter programas de atendimento em regime de internaçâo e de semi-liberdade, de caráter regional" na futura sede do Juizado Regional de Passo Fundo (já criado por lei, mas ainda não instalado).

 

15. Das peças que integram o precitado In-quérito, presume-se, de um lado, a omissão do Governo do Esta-do do Rio Grande do Sul no atendimento às previsões legais pertinentes ao adolescente infrator privado de liberdade e, de outro, a necessidade premente da implantação dos programas destacados no parágrafo anterior.

 

16. Em informações prestadas à signatária, o Prof. Ricardo Queiroga, então presidente da FEBEM, foi cate-górico ao afirmar a inexistência de qualquer projeto insti-tuindo programas de semi-liberdade ou internação em Passo Fundo (fls. 70/71 do Inquérito multireferido).

 

 

 

17. A seu turno, na mesma correspondência,

 

O Sr. Presidente informou que, naquela oportunidade, em 29 de março de 1994, existiam 23 adolescentes cumprindo medidas pri-vativas de liberdade na Capital do Estado, provenientes de 12 das 29 Comarcas que integram o Juizado Regional de Passo Fun-do. Provavelmente, hoje, o número deve ser bem maior.

 

18. Em resposta a Oficio—Circular oriundo desta Curadoria, os Juizes das 29 Comarcas que futuramente ira compor o Juizado Regional de Passo Fundo noticiaram a to-tal inexistência em suas comarcas de qualquer tipo de programa dirigido ao adolescente privado de liberdade.

 

19. Outrossim, trouxeram números ainda mais contundentes quanto à necessidade de implantação dos pro-gramas ora vindicados. Se não, vejamos:

 

Ibirubá: dois adolescentes encaminhados à internação, em Porto Alegre;

 

Soledade: sete;

 

Carazinho: quatro;

 

Getúlio Vargas: um;

 

Guaporé: três;

 

Não—Me—Toque: um;

 

Espumoso: um;

 

Arvorezinha: um;

 

Lagoa Vermelha: um;

 

Casca: um;

 

Erechim: três;

 

Frederico Westphalen: dois;

 

Passo Fundo: cinco.

 

O total de adolescentes oriundos das co-marcas jurisdicionadas pelo Juizado Regional de Passo Fundo, segundo os dados obtidos no Inquérito Civil nº 1/94 é de trinta, o que só comprova a imprescindibilidade da implantação dos programas.

 

 

III — DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL NA IMPLANTAÇÃO E MANUTENÇÃO DOS PROGRAMAS DE ATENDIMENTO AO ADOLESCENTE INFRATOR PRIVADO DE LIBERDADE:

 

 

1. A leitura isolada dos dispositivos que compõem a lei—instrumento conhecida por "Estatuto da Criança e do Adolescente" leva—nos, à primeira vista, a crer inexistir qualquer previsão legal que responsabilize o Estado—membro pe-la irnplementação dos programas de semi-liberdade e internação.

 

2. Entretanto, a análise sistemática de seus dispositivos conduz o intérprete à conclusão oposta, ora sustentada nesta demanda.

 

3. Aos municípios compete a criação e manutenção dos programas de caráter local, mais especificamente aqueles destinados ao atendimento das crianças e adolescentes contemplados com medidas específicas de proteção aplicadas pelo Conselho Tutelar. Ao Estado, cabe a estrutura dos progra-mas de caráter regional, especialmente aqueles que, pela alta especialização de pessoal e aparelho técnico elevado, demandem despesas elevadas para sua manutenção.

 

 

4. Sob a inspiração da "Teoria das Esca-las", idealizada por DIOGO LORDELLO DE MELLO. podemos afirmar que. seguindo uma ESCALA FINANCEIRA, as tarefas que exigem grande volume de dinheiro certamente não poderão ser suporta-das pelo município. Da mesma forma, a ESCALA GEOGRAFICA impõe que os programas de ârnbito regional sejam custeados pelos en-tes políticos de maior abrangência. E, por fim, a ESCALA TÉC-NICA, que é a que tem por base as condições do aparelho técni-co do ente federativo, inviabiliza que programas que requeiram "psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, etc.", como os destinados ao funcionamento de "entidade de para jovens infratores" (Liberati e Cyrino, "in" "Conselhos e Fun-dos no Estatuto da Criança e do Adolescente", p. 69, Malheiros Editores), sejam arcados pelos municípios.

 

 

 

5. Nesse sentido, afigura—se extremamente elucidativa a orientação do CBIA contida na publicação "Vale a Pena Lutar — Diretrizes Básicas e Missão Institucional do

 

CBIA":

 

"A execução direta de programas e ações de atendimento por parte do poder público es-tadual deve concentrar—se naquelas modali-dades de atendimento mais especializadas, cus-tosas e complexas que por suas características, fogem ao perfil técnico. administrativo e político institucional das ações desenvolvidas ao nível dos municípios".

 

 

6. Além de os municípios não terem condições de financiar tais programas. devido a suas limitações de ordem financeira, o Estado historicamente os assumiu através da FEBEM, fundação essa que tem tradição e experiência no atendimento ao adolescente infrator.

 

 

7. Não fossem tais argumentos suficientes, o próprio CONSELHO ESTADUAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADO-LESCENTE (CEDICA), órgão encarregado, a nível estadual, de formular a política estadual de atendimento aos direitos da criança e do adolescente (L. 9.831, de 19 de fevereiro de 1993). Já deliberou sobre o assunto, editando a RESOLUÇAO n°1/94, publicada no DOE de 26.08.94, nos seguintes termos:

 

 

 

"Compete ao Poder Executivo Estadual criar, instalar e manter os programas de atendimento em regime de internação e de semi-liberdade, destinado ao atendimento do adolescente autor de ato infracional. privado de liberdade.

 

Os programas deverão ser instalados de forma regionalizada, tendo por sede os municípios dos Juizados regionais da Infância e da Juventude, criados pela Lei Estadual nº 9.896, de 09 de junho de 1983, nas cidades de Novo Hamburgo. Pelotas,. Santa Maria, Caxias do Sul, Passo Fundo. Santo Angelo, Uruguaiana, Santa Cruz do Sul e Osório.

 

Deverá o Poder Executivo Estadual propor a estrutura dos referidos programas, bem como a criação dos cargos e das funções necessária á implementação.

 

Deverá o Poder Executivo Estadual prever, no orçamento para o exercício de 1995, os recursos necessários instalação e à manutenção dos programas de que trata esta resolução" —grifei.

 

 

8. Por ser o CEDICA um órgão público normativo, deliberativo e controlador das políticas e das ações estaduais voltadas para a infância e a formular e controlar a política de atenção aos direitos da criança e do adolescente, definindo prioridades e acompanhando a elaboração da proposta orçamentária do Estado, NÃO PODE O ESTADO DO RIO GRANDE FAZER TABULA RASA DA PRECITADA RESOLUÇÃO, sob pena de, assim o fazendo, estar negando vigência a dispositivos constitucionais (art. 227, parágrafo 7º, combinado com o art. 204, inc. II) e infraconstitucionais (art. 88, inc. II, do ECA).

 

IV — DA PERTINENCIA DA PRETENSAO DEDUZIDA:

 

 

1. 0 Constituinte de 1988 erigiu a questão infanto—juvenil à condição de PRIORIDADE ABSOLUTA (art. 227), princípio esse incorporado à legislação ordinária através do art. 4Q do Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

2. Quando a lei fala em PRIORIDADE ABSOLUTA quer com isso dizer que a criança e o adolescente deverão estar em primeiro plano dentre o leque de preocupações dos governantes. "Essa exigência constitucional demonstra o reconhecimento da necessidade de cuidar de modo especial das pessoas que, por sua fragilidade natural ou por estarem numa fase em que se completa sua formação, correm maiores riscos. A par disso, é importante assinalar que não ficou por conta de cada governante decidir se dará ou não apoio prioritário às crianças e aos adolescentes. Reconhecendo—se que eles são extremamente importantes para o futuro de qualquer povo, estabeleceu-se como obrigação legal de todos os governantes dispensar-lhes cuidados especiais" (DALMO DE ABREU DALLARI, "in" Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 25, Malheiros Editores).

 

3. Para uma melhor compreensão do princípio-garantia constitucional da PRIORIDADE ABSOLUTA, devemos nos desgarrar de uma visão ultrapassada da Constituição como um diploma tendente a sociais e econômicas e, nas palavras de CANOTILHO, devemos encará-la como um "pedaço de utopia concreta, o seu apelo a tarefas de conformação preservar o "status quo" vigente, tão maculado pelas desigualdades política (estrutura programática)" (Direito Constitucional, p. 18, Coimbra, Liv. Almedina, 1980).

 

 

 

 

 

4. Do papel para a realidade há um caminho a trilhar, trajetória essa que vem sendo capitaneada pelo Ministério Público, como órgão institucionalmente incumbido de ajuizar ações civis públicas para a proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e adolescência (art. 201, inc. V. do ECA). Desse dispositivo emerge cristalina a legitimidade do Ministério Público para a presente ação.

 

5. Confirmando em parte sentença que julgou procedente ação ajuizada pelo Ministério Público contra

 

o Governo do Distrito Federal destinada à implantação dos programas ora vindicados e de outros tendentes a cumprir medidas previstas no ECA, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios reconheceu a prioridade na prática. Do voto do Des. Relator, Luiz Cláudio de Almeida Abreu, extraem—se as seguintes palavras:

 

"Do estudo atento desses dispositivos legais e constitucionais, presume—se que não é facultado à Administração alegar falta de recursos orçamentários para a construção dos estabelecimentos já aludidos, uma vez que a Lei Maior exige prioridade absoluta—grifos do original—(art. 227) e determina a inclusão de recursos no orçamento. Se. de fato, não os há, é porque houve desobediência, consciente ou não, —pouco importa— aos dispositivos constitucionais precipitados. encabeçados pelo parag. 72 do art. 227' (Apelação. Cível nº 62, de 16 de abril de 1993, acórdão 3.835).

 

No mesmo aresto, que pode ser considerado um "leading case", ficou positivado:

 

"Pois é chegado o momento de concretizar a prioridade, de se passar do projeto à ação. E imperioso que se consignem no orçamento local recursos necessários à edificação das obras reclamadas pela Promotoria da Infância e da Juventude; que estes estabelecimentos sejam dotados de instrumental necessário à execução das medidas de recuperação previstas em lei e que pessoal em número suficiente receba treinamento adequado para esta delicada tarefa.

 

Tudo isto é ônus que a lei impôs ao Executivo. N3o executada de ofício a tarefa a que esta obrigada a administração local, cabe ao Judiciário exigir—lhe o pronto cumprimento da lei, para o que se mostra perfeita e adequada a presente ação civil pública, cuja procedência é inequívoca".

 

6. Quanto à competência para a propositura desta demanda, o art. 209 do ECA reza:

 

"As ações previstas neste Capítulo certo propostas no foro do local onde ocorreu ou deva ocorrer a ação ou omissâo, cujo juízo terá competência para processar a causa, ressalvadas a competência da Justiça Federal e a competência original dos Tribunais Superiores"

7. Essas ações são as enumeradas, exemplificativamente, no art. 208, cujo parágrafo único abarca também as ações tendentes, por exemplo, à concretização dos direitos assegurados ao adolescente a que se atribua a autoria de ato infracional e que esteja privado de liberdade (art. 124 do ECA). Nesse sentido, vale a consulta ao que diz ADAO BONFIM BEZERRA, em "Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado", p. 648, Malheiros Editores).

 

 

 

8. Ora, a omissão do Poder Público

 

 

 

 

estadual em criar e instalar os programas para o adolescente autor de ato infracional privado de liberdade verifica—se na base territorial do Juizado Regional de Passo Fundo. Como ainda não foi instalado esse Juizado, cabe ao juízo da Comarca—sede o processamento e julgamento desta ação.

 

 

V - DO PEDIDO:

 

 

Considerando as razões exaustivamente expostas, requer o Ministério Público:

 

a) a citação do Estado do Rio Grande Sul para contestar, querendo, a presente ação;

 

b) a produção de todas as provas direito admitidas;

 

c) finalmente, a procedência da ação para condenar o demandado no cumprimento da obrigação de fazer consistente em incluir no orçamento verba suficiente para criar, instalar e manter em funcionamento programas de internação e de semil-iberdade para adolescentes a que se atribua a autoria de ato infracional, circunstância essa reconhecida pelos juízos que integrarão o Juizado Regional da Infância e da Juventude, com a observância das normas previstas nos arts. 94 e 124 do ECA;

 

d) a fixação de um prazo, não superior a seis meses contados do início do exercício orçamentário, para o início das obras de edificação ou de reforma do complexo arquitetônico da extinta Unidade Terapêutica do Juizado de Menores de Passo Fundo, sob pena de pagamento de multa diária no valor mínimo de R$ 10.000.00 por dia de atraso.

 

Valor da causa: inestimável, devido e natureza do direito pretendido.

 

Passo Fundo, 29 de novembro de 1994.

 

N. termos,

 

 

p. deferimento

 

 

 

 

 

 

Ana Maria Moreira Marchesan,

 

Curadora da Infância e da Juventude

 

 

 

Rol de Testemunhas:

Noely Albuquerque. ex—presidente do Conselho Municipal de Di-reitos da Criança e do Adolescente, residente na R. Uruguai,

1811, Passo Fundo.

Selma Costamilan, Gerente Regional da FEBEM.

 

 

 

SENTENÇA

 

 

Processo n.º 4284/649

Natureza: Ação civil pública

Autor: Ministério Público

Réu: Estado do Rio Grande do Sul

Prolator: Eugênio Facchini Neto

Data: 1º de agosto de 1995.

 

_________________________________

 

 

Vistos, etc

 

 

O MINISTËRIO PÚBLICO, através de sua Cu-radora da Infância e da Juventude, ajuizou AÇÃO CIVIL PÚBLICA contra o ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, alegando, resumidamen-te, que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, de for-ma excepcional, a aplicação de medidas privativas de liberda-de a adolescentes infratores, revestindo tais medidas de Ca-ráter sócio-educativas tendentes à reinserção do autor do ato infracional no contexto social, sempre com absoluto respeito aos direitos previstos na legislação pertinente em favor do adolescente privado da liberdade.

 

 

Dentre tais direitos foi elencada a per-manência do infrator na mesma localidade onde reside ou na-quela mais próxima. Visando tal desiderato, a legislação gaú-cha previu a divisão territorial do Estado em oito Juizados Regionais da Infância e da Juventude, um dos quais com sede em Passo Fundo. Este juizado é competente para a execução das medidas de internação e semi-liberdade envolvendo adoles-centes de todas as cidades que compõe sua ampla base territor-ial.

 

 

Todavia, Passo Fundo não dispõe de área adequada para a contenção dos adolescentes necessitados de tais medidas, pois está desativada a antiga Unidade Terapêu-tica em virtude de desencontros das políticas municipal e es-tadual relativa a esse setor. Tal "Unidade Terapêutica', de qualquer sorte, necessitaria de ampliação e reestruturamento para que pudesse atender às necessidades ampliadas do Juizado Regional.

 

Entendendo que compete ao Estado do Rio Grande do Sul o aporte de recursos necessários para a cria-ção, instalação e manutenção de programas de internamento e de semil-iberdade de adolescentes infratores, pretende a con-denação do réu a incluir no orçamento verba suficiente para tanto, fixando-se prazo não superior a 6 meses para início das obras, contados do início do exercício orçamentário.

 

 

O pedido veio instruído com os documentos de fls. 16 a 135, que compõe o inquérito civil público pre-viamente instaurado.

 

 

O requerido apresentou contestação às fls. 148/156, entendendo, preliminarmente, ser inepta a ini-cial, por falta de precisão quanto aos programas, necessários ao atendimento de adolescentes infratores, cuja implantação é pleiteada. Defende, ainda, que se trata de atividade discri-cionária do Estado, infensa a apreciação judicial, para que seja preservada a harmonia entre os Poderes. Assim, cabe pri-vativamente ao Executivo definir as prioridades da área, de-cidindo onde aplicar o dinheiro público. Por isso, pretende a rejeição da demanda.

 

 

O autor replicou às fls. 158/162, reba-tendo a preliminar argüida e, no mérito, reafirmando suas posições.

 

 

Foram juntados novos documentos, perti-nentes à situação debatida — fls. 167/172 (protocolo de in-tenções firmado pela própria Secretaria do Trabalho, Cida-dania e Assistência Social do Rio Grande do Sul, comprometendo-se a criar, instalar e manter os programas de atendi-mento em regime de internação e semi-liberdade nos Juizados Re-gionais), fls. 175/181 ("Carta de Porto Alegre", onde tal compromisso é reafirmado) e fis. 198/199, em que a FEBEM re-vela que não há previsão para a construção dos centros de atendimento especializado de adolescentes infratores, já que "os recursos financeiros determinarão o ritmo das ações".

 

 

Embora o Ministério Público insistisse na inquirição das testemunhas arroladas na inicial, tenho que, como bem ponderou o Procurador do Estado, a matéria fática cuja compreensão é necessária ao deslinde da lide é incontro-versa, motivo pelo qual é cabível o julgamento do feito no estado em que se encontra.

 

 

E O RELATÓRIO. DECIDO.

 

 

A preliminar de inépcia da inicial deve ser afastada, uma vez que a inicial é suficientemente clara ao indicar os programas regionalizados de atendimento ao in-frator privado de liberdade, especialmente tendo em vista que o Estatuto da Criança e do Adolescente é minucioso ao estabe-lecer quais são tais programas, Assim, a simples menção a tal diploma legal serviria para demonstrar o propósito da presente demanda. Afasta-se, portanto, a preliminar.

 

 

Por outro lado, embora não formalmente questionada, deve ser afirmada a legitimidade ativa do Minis-tério Público para a presente demanda, já que tal afirmação guarda pertinência com a questão de fundo que será logo mais abordada

 

 

A própria Constituição Federal, em art. 129, III, prevê expressamente que:

 

 

"Art. 129, São funções institucionais do Ministério Público:

III - promover o inquérito civil e a ação Ci-vil pública, para a proteção do patrimônio pú-blico e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;"

 

 

Também a Lei 8.625/93 — Lei Orgânica Na-cional do Ministério Público — e o Código de Defesa do Consu-midor (que alterou dispositivos da Lei da Ação Civil Pública) conferem legitimação ativa ao Ministério Público para agir na defesa do interesse público genericamente considerado.

 

 

No caso específico da presente demanda, a legitimação é expressa no art. 210, inc. I, do ECA, que esta, que estabelece que "Para as ações cíveis fundadas em; interesses cole-tivos ou difusos, consideram-se legitimados concorrentemente:

I - o Ministério Público;"

 

 

Afora o embasamento legal de tal legitimidade ativa, a questão pode ser enfocada em um plano mais amplo, a nível teoria política.

 

 

De fato, há muito já se abandonaram - a nível de teoria — os cânones da chamada democracia represen-tativa, pelo seu caráter meramente formal e retórico. Seus postulados, gestados há mais de dois séculos, em época de acentuado individualismo (político e econômico), apontavam para a idéia de suficiência do caráter representativo do go-verno. Ou seja, bastava que os dirigentes tivessem sido esco-lhidos pelo sufrágio universal para que, ipso facto, toda a atividade governamental desenvolvida posteriormente estivesse antecipadamente justificada e legitimada. E a idéia de sobe-rania popular haurida, como se sabe, em Jean Jacques ROUS-SEAU, segunda a qual o PODER não encontraria sua justificati-va em preceitos divinos, nem seria mera positivação da força bruta; mas refleteria a vontade direta dos vários integrantes do corpo social, que cederiam parte de sua natural liberdade para a formação do Estado, através de um pressuposto Con-trato Social.

 

 

Hoje evoluímos para a democracia participativa, na qual a idéia de "governo4do povo, pelo povo e para o povo" (na conhecida fórmula norte—americana) não se esgota no gesto da escolha dos governantes (administradores e legis-ladores), mas implica uma efetiva participação no próprio processo de tomada de decisões. Pretende—se que o cidadão, nesse conceito, não mais se limite a votar para em seguida se recolher à sua esfera privada, assumindo uma condição de mero expectador e destinatário dos atos d.o poder, sem ter qualquer participação no seu próprio exercício. Se descontente com os atos dos seus eleitos, não teria ele outra alternativa senão aguardar as próximas eleições para deixar de votar nos mes-mos. Até lá, seria um cidadão passivo. Ao contrário, espera-se atualmente que o povo participe ativamente do processo de tomada de decisões, sendo não apenas um mero destinatário dos atos do Poder, mas um co-partícipe do mesmo.

 

Não se pretende, com tal idéia, remontar à chamada democracia grega, impraticável nos nossos dias. Busca-se, ao contrário, que o povo se aglutine e se organize, de forma a poder influir junto aos administradores e aos le-gisladores, nas questões que lhe dizem respeito. Surge, as-sim, o conceito de cidadania ativa.

 

 

Muitas vezes é difícil ou impraticável a influência direta junto a tais autoridades. Afora as hipóte-ses em que a imprensa toma partido nas questões e inicia al-guma campanha para que alguma atividade seja encetada ou sus-tada, a mobilização popular, por si só, em inúmeros casos é insuficiente para influenciar os agentes eleitos do poder. Daí porque, em todo o mundo çivilizado, mecanismos proces-suais foram criados para que o povo possa exercer essa in-fluência através do Poder Judiciário, um órgão que tem por missão institucional e estrutural ouvir as razões das preten-sões apresentadas e prover sobre as mesmas, aplicando o di-reito objetivo aos casos concretos. Dentre esses mecanismos, avultam a ação popular e a ação civil pública.

 

 

Por outro lado, reconhecendo o legislador que existem naturais barreiras (desde as econômicas até as psicológicas) que dificultam a organização e mobilização po-pular, outorgou ele legitimação a certas entidades ou instituições, reconhecendo-lhes representatividade para levar à análise de um outro órgão do Poder, o Judiciário, anseios e pretensões que não são meramente individuais, mas metaindividuais, quais os interesses difusos, coletivos e públicos.

 

 

A representatividade destas instituições normalmente não tem caráter eleitoral. E o caso do conhecido exemplo do 'ombudsman' do direito escandinavo.

 

 

No caso brasileiro, o constituinte enten-deu de outorgar ao Ministério Público tal representatividade. Assim, o Ministério Público tem representatividade institu-cional, derivada da carta basilar da nação, para zelar pelos interesses acima delineados, Inclusive propondo as ações ju-diciais necessárias para garantir tal zelo.

 

No mérito, a pretensão posta na inicial deve ser acolhida.

 

 

A alegação básica do contestante é no sentido de que se diante de atuação de poder discricionário do Estado, que não pode ser discutido pelo Poder Judiciário. Assim, em tal ótica, caberia ao Estado, isto é, ao chefe do Poder Executivo do momento decidir se, quando e onde irá construir ' instalações necessárias ao abrigo de adolescentes infratores aos quais se tenha imposta medida privativa de li-berdade,

 

 

Tal enfoque — da ilimitação e incontrola-bilidade do exercício do chamado poder discricionário — efe-tivamente foi observado cegamente na pátria tupiniquim ao longo de décadas. Todavia, mais recentemente tal posiciona-mento vem sendo objeto de críticas doutrinárias acesas, com alguma ressonância na jurisprudência.

 

 

De fato, vive-se (ou busca-se viver) num Estado de Direito, cuja característica maior é sujeitar-se o próprio Estado (em qualquer de suas manifestações) aos parâ-metros da legalidade (a nível de normas constitucionais, nor-mas ordinárias e atos normativos inferiores). Deste esquema, certamente, não poderá fugir agente estatal algum, esteja ou não no exercício de poder discricionário.

 

 

E patente, em direito administrativo, que enquanto o particular pode fazer tudo aquilo que não lhe é legalmente proibido, a Administração só pode fazer o que lhe é normativamente permitido. Logo, como diz o grande adminis-trativista CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, "a relação exis-tente entre um indivíduo e a lei é meramente uma relação de não contradição, enquanto que a relação existente entre a Ad-ministração e a lei, é não apenas uma relação de não contra-dição, mas é também uma relação de subsunção" (in "Discricio-naridade e controle judicial", S.P., Malheiros Editores, 1992, p. 13).

 

Se isso é verdade, como pensamos que se-ja, todo e qualquer desempenho administrativo deve estar es-tritamente subordinado à lei. Assim, como diz o mesmo publi-cista, "o 'poder' discricionário jamais poderia resultar da ausência de lei que dispusesse sobre dado assunto, mas tão somente poderá irromper como fruto de um certo modo pelo qual a lei o haja regulado, porquanto não se admite atuação administrativa que não esteja previamente autorizada em lei" (op. loc. cit.)

 

 

Pois bem, ainda dentro da mesma linha de raciocínio, sabe-se que a atividade administrativa caracteri-za-se menos como um poder do que como um dever, encaixando-se na idéia jurídica de função. Função, em linguagem jurídica, designa um tipo de situação jurídica em que existe, previamente assinalada por um comando normativo, uma finalidade a cumprir e que deve ser obrigatoriamente atendida por alguém, mas no interesse de outrem, sendo que, este sujeito — o obri-gado — para desincumbir—se de tal dever, necessita manejar poderes indispensáveis à satisfação do interesse alheio que está a seu cargo prover. Daí, como diz o mesmo Celso Antônio,

 

 

 

"uma distinção clara entre a função e a faculdade ou o direito que alguém exercita em seu prol, Na função, o sujeito exercita um poder, porém o faz em

em proveito alheio, e o exercita não porque acaso queira ou não queira. Exercita-o porque é um dever. Então, pode-se perceber que o eixo metodológico do direito Público não gira em torno da idéia de po-der, mas gira em torno da idéia de dever" (op. loc. cit.).

 

 

Conscientizando-se dessas premissas, constata-se que deste caráter funcional da atividade administrativa, desta necessária submissão da administração à lei, o chamado 'poder discricionário' tem que ser simplesmente o cumprimento do dever de alcançar a finalidade legal, ou seja, sempre e sempre o bem público, o interesse comum. Mesmo que se entenda que tais conceitos (bem público, interesse comum, interesse público, etc.) são semanticamente abertos e comportam intelecções diversas, há um imite para tal generalidade.

 

 

 

A moderna doutrina alemã, referida por dois dos mais notáveis administrativistas da atualidade (EDUARDO GARCIA DE ENTERRIA e TOMAS-RAM~N FERNANDEZ)., sus-tenta que os conceitos indeterminados ou fluidos só apresen-tam tal característica considerados em abstrato; não porém diante dos casos concretos, isto é, por ocasião de sua apli-cação. A vista das situações do mundo real ganhariam consis-tência e univocidade, de tal sorte que, perante os casos con-cretos, sempre se poderia reconhecer se uma dada situação é ou não urgente; se o interesse posto em causa é ou não rele-vante, se existe ou não um perigo grave e assim por diante. Pretendem que a questão suscitada por tais conceitos é mera-mente uma questão de interpretação, definível, como qualquer outra, pelo Poder Judiciário (in "Curso de Direito Adminis-trativo", tradução de Arnaldo Setti, RT, 1990, p. 393).

 

 

 

Cabe tecer mais algumas considerações so-bre esta questão, diante do caráter recorrente e relevante da mesma, em que as opiniões dos doutos muitas vezes estão vin-culadas a paradigmas teóricos já ultrapassados, pois que re-feridos a uma sociedade política liberal-individualista que já caducou

 

 

Quando se fala em atividade discricionária como reduto privativo do administrador, normalmente se tem como pano de fundo a clássica teoria da separação dos poderes, que encontra sua base teórica nos séculos XVII e principalmente XVIII, encontrando-se em MONTESQUIEU o seu sistematizador. Pois bem, é sabido que a razão que inspirou o célebre barão a prever a separação dos poderes decorreu da observação de um fato, por ele tido como constante, ou seja, todo aquele que tem um poder, tende abusar dele – "c' est une expérience eternelle, que tout homme qui a du pouvior est porté a em abuser; il va jusqu'à ce qu'il trouve des limites. Qui le diroit! La vertu même a besoin de limites" ( é uma experiência eterna que todo homem que detém o poder é levado a abusar dele; ele vai até onde encontra limites. Quem o diria! A própria virtude tem necessidade de limites).

 

Pois bem, percebendo tal fenômeno, apro-veitou-se ele da experiência inglesa, na qual o Parlamento limitava os poderes reais, e entendeu que se o Poder fosse dividido entre órgãos distintos, um controlaria o outro, evi-tando que houvesse abuso de poder. Daí sua celebérrima fórmu-la: "le pouvoir arréte be pouvoir" (o poder detém [no sentido de limitar, parar] o poder). Esta teoria clássica, porém, foi engendrada como tentativa de colocar limites ao poder ab-solutista dos monarcas (que representavam o Poder Executivo da época). Para tanto, via-se no parlamento o órgão capaz de fazer frente ao rei. Quanto ao Judiciário, reservava-se-lhe o singelo papel de "a boca que pronuncia as palavras da lei", na conhecida expressão montesquiana.

 

 

Uma vez ultrapassada essa fase e defini-tivamente assimilada a idéia de que o Poder não é ilimitado, encontrando ele próprio limites na legislação, e aceita igualmente a premissa de que os agentes do poder só podem agir para a defesa e efetiva consecução do bem comum, chega-se a uma nova idéia sobre o papel desempenhado pelo Poder Ju-diciário.

 

 

Em primeiro lugar, o Judiciário só pode ser entendido no contexto do PODER. Esse, como se sabe, é uno. O seu exercício é feito através de funções diferenciadas (administj4ativas, legislativas e jurisdicionais) não apenas como forma de controle recíproco, como também como meio de um melhor desempenho, do ponto de vista técnico, de atividades especializadas. Justamente pelo caráter técnico da jurisdi-ção que se entende deva ela ser outorgada a agentes de poder recrutados pelo caráter técnico (concursos públicos) (tirante alguns estados-membros da federação norte-americana, somente os países ditos socialistas optaram pelo critério de eleição dos membros da magistratura).

 

 

Essa inserção do Judiciário no contexto do Poder é ponto comum entre os grandes juristas de nossa época. Representativo disso é a admirável obra do renomado processualista paulista, CANDIDO DINAMARCO, "A Instrumentali-dade do Processo", com a qual conquistou a cátedra na prestigiada Academia das Arcadas (USP), em que dedica mais de cem páginas ao tema "JURISDIÇÃO E PODER".

 

 

Ainda sobre este tema, em 1988 reuniram-se em São Paulo todos os grandes processualistas brasileiros, latino-americanos e italianos (dentre os quais os renomados VITTORIO DENTI, ALESSANDRO PIZZORUSSO, MICHELE TARUFFO e GIU-SEPPE TARZIA), em um ciclo de palestras e conferências sobre temas ligados à democracia participativa e seus efeitos no processo (publicados, posteriormente, sob o título "PARTICI-PAÇÃO E PROCESSO", pela Revista dos Tribunais, sob a coorde-nação de Ada P. Grinover, Cândido R. Dinamarco e Kazuo Wata-nabe). Dentre as conclusões tiradas de tão relevante aconte-cimento jurídico, destacam-se as seguintes (todas elas publicadas na referida obra, a partir da página 412):

 

 

(sobre o ternário "PROCESSO E DEMOCRACIA"):

 

 

"2. Toda decisão do juiz é um compromisso po-lítico e ético, pois como detentor do poder político, tem as responsabilidades a ele ine-rentes. "

 

 

"4. É preciso reintroduzir o direito no con-ceito do social: o direito está no fato, rea-firmando assim sua dimensão política".

 

 

"5. Há que ser acentuada a função do juiz, co-mo dos demais operadores do direito, como agentes de transformação, pois a mudança da lei é um idealismo ingênuo".

 

 

"9. A moderna percepção do processo evidencia, além do escopo jurídico, os políticos (preser-vação do princípio do poder, garantia da li-berdade e oportunidade de participação) e so-ciais (principalmente a pacificação com justi-ça)."

 

 

"12. 0 direito de ação apresenta conotação política evidente na medida em que se relaciona com o exercício de uma função estatal".

 

 

 

(sobre o ternário PARTICIPAÇÃO MEDIANTE O PROCESSO:)

 

 

"1. Os resultados da experiência da ação popular constitucional no Brasil evidenciam, de forma significativa, a necessidade de ampliados instrumentos de participação do cidadão no controle da gestão administrativa, especialmente em relação à tutela dos denominados interesses coletivos e difusos".

 

 

"5. A resolução desses conflitos metaindividuais, através do processo, não implica o su-perdimensionamento da função jurisdicional típica e nem ingerência nas funções dos outros poderes

 

 

 

Pois bem, assentado que Judiciário também é órgão de Poder (e portanto também comprometido teleologicamente, com o bem comum) e que é inafastável o caráter político de sua atuação (não, evidentemente, no sentido partidário do termo, mas entendida a Política como a arte da busca do bem comum), não há como afastar o juiz, aprioristicamente, do conhecimento de opções ditas discricionárias dos demais poderes. O que jamais se poderá permitir é que o juiz busque substituir o critério do administrador ou do legislador pelo seu próprio. Não é disso que se trata. O que se defende é a possibilidade comportada (diria até, exigida) pelo sistema de o juiz apreciar as manifestações de vontade Política (no sentido supra assinalado) dos demais poderes, confrontando-as com o sistema legal, especialmente Constitucional, para verificar de sua adequação ao mesmo.

 

 

Ë evidente que se reconhece a todos os poderes do Estado uma certa margem de discricionariedade, já que não poderia o legislador prever, de antemão, todas as hipóteses fáticas ocorríveis na sociedade, para definir apr10-risticamente qual a única conduta a ser adotada pelo administrador. Agora, em qualquer situação caberá sempre ao administrador fazer a melhor opção diante da situação fática que se lhe apresente

 

 

Aliás, é o já citado CELSO ANTÔN1O BAN-DEIRA DE MELLO, possivelmente o melhor administrativista brasileiro da atualidade, que diz que:

 

 

"A discrição (...) é a mais completa prova de que a lei sempre impõe o comportamento ótimo. Procurar-se-á demonstrar que quando a lei regula discricionariamente uma dada situação, ela o faz deste modo exatamente porque não aceita do administrador outra conduta que não seja aquela capaz de satisfazer excelentemente a finalidade legal.

 

"Em primeiro lugar, isso é postulado por uma idéia simplicíssima. Deveras, não

do que a lei, podendo fixar uma solução por ela reputada ótima para atender público, e uma solução apenas sofrível ou relativamente ruim, fosse indiferente perante estas alternativas. È de se presumir que, não sendo a lei um ato meramente aleatório, só pode pretender, tanto nos casos de vinculação, quanto nos casos de discrição, que a conduta do administrador atenda excelentemente, à perfeição, a finalidade que a animou.

Em outras palavras, a lei só quer aquele específico ato que venha a calhar à fiveleta para o atendimento do interesse público. Tanto faz que se trate de vinculação, nos casos de discricionariedade, perante o dever jurídico de praticar

, não qualquer ato dentre os comportados pela regra, mas única e exclusivamente aquele que atenda com absoluta perfeição à finalidade da lei.

 

'(...) Uma vez que, no comum dos casos de discricionariedade, teria sido perfeitamente possível redigir a lei em termos vinculados, tem-se de concluir que a única razão lógica capaz de justificar a outorga de discrição reside em que não se considerou possível fixar, de antemão, qual seria o comportamento administrativo pretendido como imprescindível (...). Daí a outorga da discricionariedade, para que o administrador – que é quem se defronta com os casos concretos – pudesse, ante a fisionomia própria de cada qual, atinar com a providência apta a satisfazer rigorosamente o intuito legal". (as partes sublinhadas estão grifadas no original – in "Discricionariedade e controle jurisdicional" cit., págs.32/33).

 

Mais adiante o consagrado publicista conclui seu posicionamento, dizendo que:

 

"Segue-se que a abstrata liberdade conferida ao nível da norma não define o campo da discricionariedade administrativa do agente, pois esta, se afinal for existente ( ao ser confrontada a conduta devida com o caso concreto), terá sua dimensão delimitada por este mesmo confronto, já que a variedade de soluções abertas em tese pela norma traz consigo implícita a supostição de que algumas delas serão adequadas para certos casos, outras para outra ordem de casos e assim por diante.

 

Então, o controlador da legitimidade do ato (muito especialmente o Poder Judiciário), para cumprir sua função própria, não se poderá lavar de averiguar, caso por caso, ao lume das situações concretas que ensejaram o ato, se, à vista de cada uma daquelas específicas situações, havia ou não discricionariedade e que extensão tinha, detendo-se apenas e tão somente onde e quando estiver perante opção administrativa entre alternativas igualmente razoáveis, por ser in concreto incognoscível a solução perfeita para o atendimento da finalidade, isto é, do interesse consagrado pela norma" (grifo nosso) ( op. cit. págs. 47/48).

 

O ilustrado publicista navega nas mesmas águas já singradas em 1956 por KARL ENGISCH, na sua clássica obra "Introdução ao Pensamento Jurídico", onde é dito que:

 

 

"Aqui podemos também lançar mão do conceito evanescente de discricionaridade vinculada' e dizer que a discricionaridade é vinculada no sentido de que o exercício do poder de escolha deve ir endereçado a um escopo e resultado da decisão que é o 'único ajustado', em rigorosa conformidade com todas as diretrizes jurídicas (...) (op. cit., 6a. ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 220).

 

 

No mesmo sentido o pensamento de LUCIANO FERREIRA LEITE ("Discricionariedade Administrativa e Controle Judicial", SP, RT, 1981, págs. 25/26):

 

 

"O juízo discricionário de que se valerá o agente para a emanação do ato administrativo decorrerá do grau de imprecisão existente na hipótese normativa, imprecisão essa decorrente de conceitos plurissignificativos ou de conceitos de valor, o que no entanto, de nenhum modo exclui o ato do contraste jurisdicional para aferição de sua validade". (g.n.)

 

 

 

Embora um pouco mais timidamente, o ilustre professor da Faculdade de Direito da USP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, KAZUO WATANA-BE, em obra publicada de 1980 ('Controle Jurisdicional", SP, RI) já dizia que :

 

"Bem por isso, excepcionalmente, ao Judiciário é dado o controle dos vícios atinentes à conveniência ou oportunidade do ato administrativo, vale dizer, os vícios de mérito, cabendo ao juiz, em cada caso concreto, sopesar os prós e os contras de se anular um determinado ato administrativo que tenha produzido alguma lesão ao patrimônio público' (op. cit., p.48).

 

 

Sumamente esclarecedora é a explicação dada pelo processualista e administrativista paulista ANTONIO CARLOS DE ARAUJO CINTRA, em notável obra ("Motivo e Motivação do Ato Administrativo", SP, RT, 1979), da razão pela qual pode e deve o Judiciário apreciar os.aspectos ditos discricionários do ato administrativo:

 

 

"(...) se diz, freqüentemente, e com razão, que a discricionariedade administrativa não se confunde com arbitrariedade. Mas essa afirmativa não passaria de fútil manifestação de um desejo se, na realidade, o exercício do poder discricionário ficar inteiramente incontrolável ou sujeito apenas a um controle por indícios, decorrentes da própria ação administrativa, considerada por fora, sem a justificativa do administrador" (op. cit., p. 189),

 

 

"(...) certamente pensamos também no controle da discricionariedade administrativa. Ao nosso ordenamento jurídico não repugna esse contro-le. (...) Para vedar ao Poder Judiciário o exame dos aspectos discricionários do ato administrativo costuma-se invocar o princípio da separação de poderes. O substrato desta doutrina, no entanto, está na idéia de que le pouvoir' arrête le pouvoir-'. ou seja, exatamente aquilo que ocorreria se o Poder Judiciário impedisse a atividade discricionária do Poder Executivo, na medida em que a reputasse inconveniente ou inoportuna. Na verdade, a doutrina da separação de poderes foi concebida para garantir a liberdade individual em face do Estado

 

mas não para assegurar a absoluta liberdade de ação de cada um dos poderes do Estado em face dos demais. Lembre-se, aliás. que o direito comparado proporciona expressivos exemplos de controle jurisdicional do mérito do ato administrativo" (g.n.) (op. cit., p. 790)

 

 

"(...) Trata-se, pois, de elementos indispensáveis a uma sociedade democrática e pluralista em que a respon~abi7idade pela realização do bem comum não incumbe apenas a alguns, mas cabe a todos e a cada um". (op. cit., p. 191)

 

 

 

LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, juíza do TRF de SP e professora da PUC/SP, em sua obra "Controle da administração Pública" (SP, RT, 1991, p. 43) preleciona que:

 

 

"O ato administrativo, individual ou de cará-ter normativo, deve ser esmiuçado até o limite em que o próprio magistrado entenda ser seu campo de atuação. Não há atos que se preservem a um primeiro exame judicial. O exame ju-dicial terá de levar em conta não apenas a lei, a Constituição, como também os valores principiológicos do texto constitucional, os 'standards' da coletividade" (grifado no original).

 

 

Depois de referir ter ficado "assentado que o controle judiciário da discricionariedade não é mais o tema tabu que o positivismo jurídico afastava, sem mais aquela, com a mera invocação da insindicabilidade geral do mérito administrativo', menciona, em seguida que "embora o núcleo das escolhas administrativas que atendam otimamente ao interesse público continue insindicável, os seus limites, especificados nos itens antecedentes, não só podem como devem ser constrastados pelo Judiciário"(grifado no original - p. 57), conclui ele sua obra dizendo o seguinte:

 

acreditamos que o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito não se faz pela defesa de prerrogativas que medram e se homi-ziam na zona de incerteza jurídica, mas pelas teorias que transitam e porfiam na via ampla e ensolarada dos debates forenses e doutriná-rios" (in "Legitimidade e Discricionariedade", 2a. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1991, p.63).

 

 

O ex-titular da cátedra de direito admi-nistrativo da Faculdade de Direito administrativo da Faculdade de Direito da UsSP, J. CRETELLA JR. em uma de suas incontáveis obras, "Anulação do Ato Administrati-vo por Desvio de Poder" (RJ, Forense, 1978), traz à colação o magistério do insuspeito MIGUEL REALE ("Pluralismo e liberda-de", SP, Saraiva, 1963, p. 200), que defende deva o Judiciá-rio passar "do mero exame da legalidade formal ao exame cora-joso da legalidade substancial dos atos administrativos" e es-tabelece, como uma das conclusões de sua obra que:

 

 

 

"no contraste da legalidade do ato administra-tivo, o exame do fim é franqueado ao Poder Ju-diciário, visto ser a finalidade um dos limi-tes do poder discricionário. Neste particular, o exame da matéria de fato concorre para a apuração da questão de direito, incluindo-se, pois, na esfera revisionista permitida" (op. cit., p. 258).

 

 

A atual titular de direito administrativo da recém referida Academia (FADUSP), MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, na tese com que conquistou (com nota 10) a mencionada cátedra, editada sob o titulo "Discricionariedade Administra-tiva na Constituição de 1988" (S.P., Atlas, 1991), depois de abordar magistralmente todos os princípios que limitam a ati-vidade discricionária do administrador, concluiu dizendo que:

 

 

"Todos esses princípios foram acolhidos implí-cita ou explicitamente na Constituição de 1988. Eles limitam a discricionariedade admi-nistrativa, norteiam a tarefa do legislador e ampliam a ação do Poder Judiciário, que não

poderá cingir-se ao exame puramente formal da lei e do ato administrativo, pois terá que confrontá-los com os valores consagrados como dogmas na Constituição" (op. cit., p. 173).

 

 

A mesma professora, ao resumir suas li-ções sobre o princípio da moralidade administrativa, referiu que o mesmo "exige da Administração Pública comportamento compatíveis com o interesse público que lhe cumpre tutelar, voltados para os ideais expressos, agora, de forma muito ní-tida, no preâmbulo da Constituição; a moralidade tem que es-tar não só na intenção do agente, mas também e principalmente no próprio objeto do ato e na interpretação que da lei faça o Administrador para aplicá-la aos casos concretos. Em muitos casos, confunde-se com o princípio da razoabilidade" (op. cit,,' p. 172) (grifado no original).

 

 

MAURO CAPPELLETTI, possivelmente o mais conceituado e conhecido processualista internacional contem-porâneo, em preciosa monografia de título instigador - "Jui-zes legisladores?" (P.A., Fabris, 1993) também defende uma maior participação do Judiciário no funcionamento da moderna democracia. Diz ele o seguinte:

 

 

"Parece bem evidente que a noção de democracia não pode ser reduzida a uma simples idéia ma-joritária. Democracia. como vimos, significa também participação, tolerância e liberdade. Um judiciário razoavelmente independente dos caprichos, talvez momentâneos, da maioria, po-de dar uma grande contribuição à democracia e para isso muito pode colaborar um judiciário suficientemente ativo, dinâmico e criativo, tanto que seja capaz de assegurar a preserva-cão do sistema de 'checks and balancess'. em face do crescimento dos poderes políticos, e também controles adequados perante os outros

 

centros de poder (não governativos ou Quase-governativos). tão típicos das nossas socieda-des" (op. cit., p. 107)

 

 

Algumas páginas antes, tratando da con-tribuição que o Judiciário pode dar à representatividade ge-ral do sistema (na sua noção sociológica-política), o renoma-do mestre de dois continentes (Stanford, USA, e Firenze, Ita-lia) havia acentuado que:

 

"Não há dúvida de que é essencialmente demo-crático o sistema de governo no qual o povo tem o 'sentimento de participação'. Mas tal sentimento pode ser facilmente desviado por le-gisladores e aparelhos burocráticos longínquos e inacessíveis, enquanto, pelo contrário, constitui característica 'quoad substantiam' da jurisdição desenvolver-se em direta conexão com as partes interessadas, que tem o exclusi-vo poder de iniciar o processo jurisdicional e determinar o seu conteúdo, cabendo-lhes ainda o fundamental direito de serem ouvidas. Neste sentido, o processo jurisdicional é até o mais participatório de todos os processos da ativi-dade pública" (op. cit., p. 100).

 

 

 

 

 

 

Cumpre deixar claro que o signatário de-vota intenso respeito às atividades legislativa e administra-tiva, pois delas depende, na realidade, a possibilidade con-creta de consecução do bem comum. E evidente que no exercício de tais atividades, os agentes dos demais poderes se defron-tam com situações fáticas que comportam várias alternativas de atuação. Como todos (administradores, legisladores e jui-zes) somos humanos, é patente a possibilidade de que as op-ções feitas pelos agentes estatais estejam erradas. Assenta--se, assim, como premissa maior, que existe a natural possibilidade de que o administrador e os legisladores, embora legi-timados pelas urnas e imbuidos de boa-fé e espírito público, venham a errar, por ação ou omissão.

 

Desejosos todos de viver em um Estado efetivamente Democrático, surge também evidente que deve ha-ver alguma forma de possibilitar a revisão de tais (possí-veis) erros. Sabe-se, porém da quase impossibilidade de se corrigir uma falha oriunda do legislativo (quando de sua ati-vidade típica) e da enorme dificuldade de se corrigir falhas oriundas do Executivo, mediante controles e mecanismos inter-nos a esses poderes. A solução albergada pelo sistema, por-tanto, é o controle de tais "erros" ou "falhas"(cometidas quer por ação, quer por omissão) pelo Poder Judiciário. O controle judicial de tais atividades é feito de forma pública (já que o processo não corre em segredo de justiça, as partes interessadas tem o direito constitucional de expor cabalmente as suas razões, qualquer decisão deve ser fundamentada e com-porta ela revisão pelas instâncias recursais).

 

 

 

Assim, quando o Judiciário vem a ser pro-vocado por qualquer do povo (mediante ações populares, ações civis públicas e mandados de segurança coletivo, dentre ou-tros remédios processuais, de perfil constitucional, cabí-veis) ou pelo Ministério Público (a quem foi atribuída institucionalmente, pelo legislador constituinte, a tarefa de de-fender os interesses públicos em geral, bem como os interes-ses coletivos e difusos), para analisar a possibilidade de ter havido algum erro por parte dos agentes dos demais pode-res, tal fato deve ser encarado com a maior naturalidade, pois é esta é a forma de funcionar um sistema realmente demo-crático.

 

 

A atuação do Judiciário deve ser vista como uma forma de colaborar para a real identificação do in-teresse público — que deve ser o único fim buscado pelos in-tegrantes dos três poderes. Não se trata, portanto, de uma atividade ,propriamente censória ou punitiva, mas sim de um mecanismo previsto no sistema democrático para tentar garan-tir que o bem público realmente seja alcançado sempre.

 

 

Dir-se-ia que há o perigo de haver uma simples substituição dos critérios dos legisladores ou do ad-ministrador, pelos critérios dos juizes. Essa é uma falsa

Questão, poiis o jiz não poderá jamais buscar impor a sua própria pauta axiológica, seu sitema de valores

 

 

 

 

 

questão, pois o juiz não poderá jamais buscar impor a sua própria pauta axiológica, seu sistema de valores pessoais. Não! Os valores que necessariamente devem pautar a conduta processual do juiz são aqueles albergados e protegidos pelo sistema jur1dico. A Constituição Federal de 1988, a esse res-peito, trouxe importante elenco de valores e de princípios a serem protegidos (preâmbulo, arts. 1º, 3º, 170, 182, 193, 196, 205, dentre outros). São neles que o juiz deve embasar sua convicção e justificar seu posicionamento.

 

 

Pode ocorrer, é evidente, que a análise do julgador monocrático a quem tocar a apreciação dos fatos em primeiro lugar, esteja desfocada e, ela sim, equivocada. Acreditamos, porém, que através do embate forense, com ampla possibilidade de discussão e argumentação, dentro do espírito dialético do processo, a verdade acabará vindo a tona e pre-valecerá, seja em primeira, segunda ou terceira instância.

 

 

O que deve acabar, isso sim, é a caolha perspectiva de que há um confronto entre os poderes cada vez que há uma ação judicial envolvendo atos dos demais poderes. Isso deve ser visto com naturalidade, repito, pois se todas as manifestações do Poder - que em si é uno, não se olvide necessariamente devem buscar o bem comum, as eventuais deman-das judiciais que forem propostas, colocando em dúvida a pre-servação de tal finalidade, nada mais representam do que uma oportunidade que o sistema oferece para uma última e detida análise da questão, buscando garantir a efetiva consecução do interesse público.

 

 

 

Assentado, assim, que não só é possível, como até mesmo exigido pelos melhores publicistas da atuali-dade que o Judiciário aprecie integralmente os atos pratica-dos pelos demais poderes, não só para confrontá-los com as normas legais expressamente previstas na legislação constitu-cional e ordinária, mas também para cotejá-los com os valores e princípios albergados pelo sistema, principalmente o cons-titucional, passa—se a analisar o mérito da questão concreta submetida & apreciação judicial.

I

 

Posto como premissa que a atuação de qualquer agente de poder deve ser pautada pela estrita obser-vância dos princípios e valores maiores, postos na Norma Ba-silar da Nação (Grundgesetz, na significativa expressão ger-mânica), há que se verificar, previamente, se o sistema jurí-dico pátrio alberga a pretensão ministerial.

 

 

A esse respeito, dispõe o art. 227 da Constituição Federal de 1988, que 'E dever da família, da so-ciedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimenta-ção, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão"

 

 

O parágrafo terceiro do mesmo dispositivo legal procurou detalhar um pouco tal idéia básica, dispondo que "o direito a proteção especial abrangerá os seguintes as-pectos: ... V - obediência aos princípios de brevidade, ex-cepcionalidadë e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida pri-vativa de liberdade".

 

 

Estabelecido o princípio básico da ABSOLUTA PRIORIDADE do atendimento às crianças e adolescentes, no texto constitucional, evidentemente que não cabia ao legisla-dor constituinte, em boa técnica, descer a minúcias quanto à concretização de tal prioridade. Cabia ao legislador ordiná-rio fazê-lo. Isso foi feito através da Lei n. 8.069, de 13.07.90 — Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA — que, logo no artigo 4Q (cujo caput reproduz a dicção constitucio-nal da idéia de prioridade absoluta), vazou um parágrafo único com a seguinte redação:

 

 

"Parágrafo único - A garantia de prioridade compreende:

 

a) primazia de receber proteção e socorro em quais-quer circunstâncias;

 

b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

 

c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

 

d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude".

 

 

Mais adiante, no capitulo que trata da internação dos adolescentes, previu o legislador ordinário que:

 

 

"Art. 124 — São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os seguintes:

 

 

 

VI - permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável."

 

 

 

Sendo impossível a criação de estateleci-mentos adequados, com toda a estrutura necessária para a im-plementação dos programas e atividades pedagógicas previstas na legislação, em todas as comarcas do Estado, o legislador estadual procurou racionalizar a aplicação das verbas públi-cas, que se sabe não serem abundantes, editando a Lei Est. N. 9.896/93, de 09.06.93, dividindo o Estado em oito zonas geo-gráficas, criando em cada uma delas um Juizado Regional da Infância e da Juventude. Dentre a competência de tais Juiza-dos Regionais, um dos quais sediados em Passo Fundo, encon-tra-se a "execução das medidas de internação e semiliberdade, quando não houver programa específico na Comarca de origem" (art. 2º, alínea "c").

 

 

No inquérito civil presidido pela dili-gente Curadora da Infância e da Juventude, ficou constatado que na ampla base territorial que compõe o Juizado Regional sediado em Passo Fundo, não existem tais programas específi-cos e muito menos instalações necessárias para tanto. Também se constatou que na época da propositura da demanda, havia 30 adolescentes internados em Porto Alegre, oriundos das Co-marcas abrangidas pelo mesmo Juizado Regional.

 

Disso se conclui que enquanto não for tal Juizado Regional dotado das instalações necessárias para al-bergar os adolescentes que tiverem sido privados de liberda-de, a previsão legal permanecerá letra morta.

 

 

Se permanecer a omissão do Poder Público em simplesmente cumprir a lei, retardardo a construção de instalações adequadas para albergar tais adolescentes, logo acontecerá com as instalações existentes em Porto Alegre para receber adolescentes privados de liberdade o que está ocor-rendo com os estabelecimentos prisionais, que recebem uma po-pulação carcerária muito acima do limite máximo tolerável, tornando tais estabelecimentos um reduto oficial de avilta-mento da dignidade humana, fábricas de desajustados rancoro-sos (que darão "o troco" à sociedade quando, cedo ou tarde, saírem de tais ambientes) e sementeiras de revoltas e rebe-liões.

 

 

Não há dúvidas de que o Estado do Rio Grande do Sul reconhece cabalmente a sua responsabilidade pe-la construção de tais instalações, tanto assim que através de sua Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social, firmou ele um PROTOCOLO DE INTENÇÕES, em março deste ano, em que se prevê que compete àquela Secretaria "item 1.a) desen-volver todas as ações para criar, instalar e manter os pro-gramas de atendimento em regime de internação e semiliberdade nas cidades-sede dos Juizados Regionais da Infância e da Ju-ventude, previstos na Lei Estadual n. 9.896, de 09 de junho de 1993": item 1.b) proporcionar os recursos materiais, próprios ou através de aportes conveniais, bastantes o suficiente para suportar o custo da construção civil das referidas obras; item 1.c) administrar a construção das referidas casas; (..)' (fls. 177/181).

 

 

Poderia isso significar o esvaziamento da presente demanda, diante de um suposto reconhecimento da pro-cedência do pedido? Não creio, pois entre a manifestação de intenções e a concretização das mesmas cabe um oceano.

 

Aliás é sabido que justamente uma das táticas do exercício do Poder consiste na enunciação de Prin-cípios e de Metas que tenham consenso na sociedade, sem que a tal se siga urna política efetiva de execução dos mesmos. A simples enunciação retórica de objetivos consensuais normal-mente tem como efeito a desmobilização da sociedade que tende a se contentar com a concordância a nível de idéias e perde o elan na briga pela sua concretização. Foi o que aconte-ceu, por exemplo, com a reforma agrária. No início da década de sessenta havia um intenso movimento popular visando a sua concretização. Em vez de assim a9ir, o Estado editou o Esta-tuto da Terra, legislação tecnicamente elogiável, que previu princípios, metas, órgãos, recursos modo operacional, tudo voltado à reforma agrária. Os ânimos serenaram (ou por con-cordância com a legislação ou através da repressão pura e simples) e tudo permaneceu como sempre, ou seja, com um regi-me fundiário concentrador e com o aniquilamento do pequeno proprietário rural.

 

 

Infelizmente essa tem sido a tônica nes-sas plagas tupiniquins — muda-se a legislação quando não se quer mudar a realidade!

 

 

A confirmar tal idéia lembra-se que em 27 de maio de 1994 foi editada uma Resolução (de n.º 09/94), pelo Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente -CEDICA,. órgão ligado à Secretaria da Justiça, do Trabalho e da Cidadania (nome à época da edição da Resolução), na qual se previa a criação, instalação e manutenção dos programas de atendimento aos adolescentes em regime de internação e de se-miliberdade, nos Juizados Regionais (citando-se Passo Fundo nominalmente), estabelecendo—se que "deverá o Poder Executivo Estadual prever, no orçamento para o exercício de 1995, os recursos necessários à instalação e à manutenção dos progra-mas de que trata esta resolução' (fl. 135).

 

Embora a recomendação de Órgão do próprio governo estadual, a mesma não resultou acatada, ao menos não a nível satisfatório, Pois a maioria dos Juizados Regionais, dentre os quais o de Passo Fundo, nenhum aporte recebeu nessa área especifica.

 

Assim, o que se busca essa demanda não restou esvaziada pelas manifestações recentes do Poder Executivo gaúcho, no sentido de concordar basicamente com a necessidade de se edificar instalações adequadas e criar i implantar programas de atendimento aos adolescentes privados de liberdade ou restringidos no seu exercício. A nível de idéias, repita-se, todos concordam. O que pretende a combativa Curadoria é viabilizar concretamente a implementação de tais metas, o que somente ocorrerá com a previsão, no orçamento estadual, de verbas para tanto necessárias, com indicação de prazo para o início das obras.

 

 

Daí porque se entende que a ação não fi-cou prejudicada e que, conseqüentemente, deve ser acolhida, pois não se trata de impor ao Poder Executivo uma priorização de atividades que ao Judiciário pareça importante, mas sim em compeli-lo a observar, concretamente, a prioridade absoluta que o legislador constituinte elencou e que o legislador or-dinário, tanto federal quanto estadual, detalhou, inexistindo discricionariedade para observar ou não tal PRIORIDADE, ad-jetivada não por acaso ou irrefletidamente de ABSOLUTA.

 

 

 

Tem-se como aqui reproduzidas as demais razões expostas pelos diligentes agentes do Parquet que atua-ram no feito que, como sempre, honraram a nobre instituição a que pertencem.

 

 

 

 

 

Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE A PRE-TENSÃO apresentada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, veiculada através da presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, para o efeito de CONDENAR O ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, através do senhor Governador do Estado, ao cumprimento da obrigação de fazer, consistente em fazer incluir no orçamento do Estado, para o próximo ano, de verba suficiente para criar, instalar e manter em funciona-mento 'programas de internamento e de semiliberdade para ado-lescentes a que se atribua a autoria de ato infracional, de-vendo as obras de edificação ou de reforma do complexo arqui-tetônico da extinta Unidade Terapêutica do Juizado de Menoresde Passo Fundo ( se essa for a solução tecnicamente mais adequada) serem iniciadas no prazo de seis meses, contados do início do exercício orçamentário, sob pena de multa diária equivalente a R$10.000.00 (dez mil reais)

 

 

 

Tendo em vista estar sujeita esta senten-ça a reexame necessário, remetam-se os autos ao Egrégio Tri-bunal de Justiça do Estado, após o decurso do prazo para re-cursos voluntários (ou após a tramitação de apelação even-tualmente interposta).

 

 

 

Publique-se registre-se e intimem-se.

 

 

Passo Fundo, 1º de agosto de 1995.

 

 

 

 

Eugênio Facchini Neto,

Juiz de Direito Substituto