SAÚDE E SAGRADO:
REPRESENTAÇÕES DA DOENÇA E PRÁTICAS DE ATENDIMENTO DOS SACERDOTES SUPREMOS DO
CANDOMBLÉ JÊJE-NAGÔ DO BRASIL[1]
Psicólogo graduado pela Faculdade de
Psicologia da PUC/SP.
Palavras-chave:
Candomblé; Saúde; Doença; Sacerdote.
Final de milênio: de um lado temos a experiência total
de dessacralização da sociedade contemporânea baseada no desenvolvimento humano
do intelecto e da ciência e, de outro, um crescente interesse por esta mesma
sacralidade perdida, manifesta pelo reinvestimento humano nos símbolos sagrados
em busca de uma orientação transcendente. Nesta arena convivem inúmeras imagens
e idéias que fornecem o substrato para a formação das representações que habitam
o imaginário coletivo e influenciam o imaginário e as identidades pessoais.
ELIADE (1992) apresenta o sagrado e o profano como:
“(...) duas modalidades de ser no mundo,
duas situações existenciais assumidas pelo ser humano ao longo da sua história e
que dependem das diferentes posições que ele conquistou no Cosmos (...)”
(p.l 8).
Partindo do questionamento sobre o sentido que podem ter
saúde e doença para estas duas modalidades de ser no mundo e
enfocando em especial o ser humano no mundo religioso, o objetivo deste artigo
é caracterizar a figura dos sacerdotes supremos do Candomblé Jêje Nagô, bem
como as principais práticas de atendimento utilizadas por eles. Buscando
compreender como este grupo social se encarrega da preservação da saúde e da
prevenção, controle e enfrentamento da doença.
Segundo o dicionário (FERREIRA, 1986) a palavra
sacerdote designa: (1) aquele que entre os antigos tratava dos assuntos
religiosos e tinha o poder de oferecer vítimas à divindade; (2) aquele que
distribui os dons sagrados ou divinos, ministro do culto, que exerce profissão
muito honrosa ou cumpre missão elevada; e, no contexto brasileiro, (3) o
feiticeiro que oficia nas sessões de Catimbó [3].
Trata-se de definições que ressaltam, por um lado, a
importância do sacrifício na atividade sacerdotal, o sacro/oficio de
intermediar a relação entre os seres humanos e o sagrado e, de outro, o modo
dessa intermediação, isto é, as práticas do sacerdócio e o caráter educativo
que envolve esta atividade. No caso do Brasil, o dicionário aponta para o
legado das religiões afro-indígenas no país e revela a qualificação que o
dirigente de cultos dessa natureza adquiriu por aqui.
Partamos da palavra, para deixar que nos venha ao
encontro as questões múltiplas que se relacionam à mesma.
Cerca de quatro milhões de negros foram submetidos à
escravidão do século XVI até as últimas décadas do século XIX no Brasil
(RIBEIRO, 1996). No final do século XVIII estes negros, trazidos de várias
regiões da África, passaram a ser fixados, principalmente, em cidades e
ocupações urbanas. Com maior possibilidade de contato físico e social eles
conseguiram reimplantar aqui elementos básicos de sua organização religiosa de
origem, mantendo vivas suas tradições a partir da reconstrução simbólica da
África e da comunidade perdida. Distanciando-se culturalmente do mundo dominado
pelo opressor branco, mundo de trabalho alienado, de sofrimento e escravidão.
Grupos de cultos de diversas tradições religiosas africanas sincretizaram-se
com práticas religiosas católicas e indígenas nas mais diferentes áreas do
Brasil: Candomblé na Bahia, Xangô em Pernambuco e Alagoas, Tambor de Mina no
Maranhão, Catimbó no Pará e Amazonas, Batuque no Rio Grande do Sul, entre
outras (PRANDI, 1996).
Dentre estas práticas religiosas, o Candomblé se destaca
por ter sido ao longo dos anos o mais pesquisado, com os autores privilegiando,
em geral, um Candomblé denominado Jêje-Nagô, composto por elementos religiosos
dos povos trazidos da Nigéria, do Daorné e da Costa do Ouro, os nagôs, como
também são denominados os iorubás, e por elementos religiosos dos jêjes, como
são chamados pelos iorubás os povos ewe-fons. Mesclando elementos religiosos de
tradição nagô, jêje e também de outras etnias africanas, o Candomblé Jêje-Nagô
é uma invenção brasileira, uma síntese religiosa em que se fundem elementos
essenciais da diversidade religiosa africana.
No Candomblé Jêje-Nagô o sacerdócio e a organização dos
rituais para o culto são complexos, existem inúmeros cargos sacerdotais, O
cargo supremo conferido a uma sacerdotisa é o de ialorixá e a um sacerdote o de
babalorixá. Em iorubá iya é mãe e baba pai. São chamados assim
porque aceitam neófitos para os iniciar na devoção aos orixás e estes se
consideram seus filhos espirituais empregando nesse sentido as palavras iya e
baba ou simplesmente pai e mãe. Detêm o maior grau de conhecimento do
culto e dos seus fundamentos e são os responsáveis pela transmissão deste
conhecimento e por todas as decisões em relação à comunicação das pessoas que freqüentam
o terreiro[4] com o sagrado.
Ialorixás e babalorixás também são chamados de
zeladores, aqueles que zelam pelos orixás das pessoas garantindo sua
ligação com o sagrado. No Candomblé Jêje-Nagô todo ser humano está ligado a uma
constelação de divindades míticas que definem a sua pertença à ordem cósmica.
Essas divindades recebem o nome de orixás e são consideradas emanações
do ser supremo Olodumare, herdando dele atributos, qualidades e
características. Algumas destas divindades são primordiais, princípios
universais da criação do cosmos por Olodumare; outras são ancestrais que
por suas vidas exemplares foram deificados; e outras personificam forças e
fenômenos naturais (RIBEIRO, 1996). Seu desígnio é servir a vontade divina no
governo do universo, regendo e controlando forças da natureza e aspectos do
mundo, da sociedade e do ser humano.
Considerados intermediários entre os orixás e as
pessoas, os sacerdotes supremos, ialorixás e babalorixás, presidem todas as
cerimônias de culto e atendem diversos problemas relacionados aos seus filhos
espirituais e a população em geral, orientando em relação a uma diversidade de
situações. TEIXEIRA (1994) observando durante vários anos as comunidades de
Candomblé Jêje-Nagô no Rio de Janeiro, constatou que problemas relacionados à
saúde, falta de dinheiro e desilusão amorosa são, nessa ordem, os maiores
apelos para consulta ou ingresso em um terreiro.
Desde tempos imemoriais o medo da doença e da morte
promoveram o cuidado com o bem estar, a vida longa e a otimização do corpo,
revestindo a preocupação com a vida de atitudes, práticas e procedimentos
terapêuticos embasados tanto por ideologias religiosas como científicas.
No Brasil colônia eram os curandeiros, pajés,
benzedeiros, rezadores e feiticeiros que, através de suas práticas de
atendimento, orientavam e propunham formas de tratamento e prevenção à
população em geral. Nessa época o número de médicos em território nacional era
bem reduzido e a população, principalmente os escravizados, podia contar
somente com recursos nativos ou de suas tradições de origem, fazendo destas
práticas de atendimento de tradição ameríndia e africana opções legítimas e
reconhecidas pelo conjunto da população colonial.
Com a chegada da família real em 1808 institui-se o
ensino médico oficial no Brasil, fortalecido por avanços tecnológicos como a
descoberta da vacina e pela criação de institutos de pesquisa voltados para as
necessidades locais. A partir daí a medicina oficial[5] foi
restringindo cada vez mais o campo de atuação dos terapeutas populares, sobretudo,
através da despersonalização de agentes patogênicos mágico-religiosos:
divindades, demônios, feitiços.
Destarte, estudos sobre religiosidade no Brasil como os
de MONTEIRO, 1977; WARREND, 1984; LOYOLA, 1984; MONTERO, 1985; KRIPPNER, 1986;
CSORDAS, 1987; VEYRAT & FERRIER, 1989; GREENFIELD, 1992; LAZNIK, 1992;
RABELO, 1993; TEIXEIRA, 1994; COSTA-ROSA, 1995; DIAS, 1996; ESPINHEIRA, 1996;
apontam para o importante papel dos tratamentos em contexto religioso junto à
população em geral, onde líderes espirituais desempenham ao lado de médicos e
psicólogos o papel de atores terapêuticos, orientando e fornecendo
elementos para promover a saúde, prevenir e lidar com a doença.
MONTERO (1985) buscando entender a procura por este tipo
de tratamento aponta para o fator diferença de linguagem. Segundo a
autora, enquanto os tratamentos em contexto religioso atuam em continuidade com
a experiência concreta e subjetiva que o indivíduo tem da própria doença, a
partir de uma interpretação totalizante do individual, do social e do universo,
a medicina oficial produz uma ruptura entre o vivido e sua interpretação,
através da introdução da linguagem médica que priva o indivíduo do
próprio discurso e o leva a incorporar um outro que lhe é estranho.
Ao longo da história a medicina oficial operou uma
ruptura entre doença e social, construindo uma representação de doença como
ocorrência individual, suscetível de ser isolada e interpretada como morbidez
especifica de um indivíduo em particular, individualizando as afecções e os
tratamentos (LAPLANTINE, 1991).
Por ser um fenômeno que modifica a vida individual, a
inserção social e, portanto, o equilíbrio coletivo, a doença engendra sempre a
necessidade de um discurso e de uma interpretação complexa e contínua da
sociedade inteira (HERZLICH, 1991). Sua explicação não diz respeito somente à
medicina oficial, mas também à etnomedicina; ao reduzi-la apenas a sua dimensão
anátomo-fisiológica isolamos a doença da cultura[6], não obstante, ela
ser um fenômeno que extrapola o corpo individual e o diagnóstico médico,
remetendo ao discurso das sociedades sobre as enfermidades e os enfermos.
LAPLANTINE (1991) estudando as representações de saúde e
doença demonstra que elas podem ser apreendidas a partir: (1) do status social
dos indivíduos; (2) das lógicas dos sistemas etiológico-terapêuticos
científicos e populares; (3) dos modelos epistemológicos disponíveis na
sociedade para pensar cientificamente a doença; e (4) das representações
diferenciadas de doença segundo cada um dos sistemas terapêuticos existentes em
uma determinada sociedade.
No âmbito deste artigo percorre-se uma direção que
contesta o viés no qual a doença não é percebida “(...) como algo em algum
lugar (...)” (LAPLANTINE, 1991:284) e sim em termos de harmonia e
desarmonia, de equilíbrio e desequilíbrio dos indivíduos em relação ao contexto
em que vivem.
Dentre os vários fatores considerados responsáveis,
isolada ou conjuntamente, por desequilíbrios traduzidos em sintoma e/ou doenças
no Candomblé Jêje-Nagô, TEIXEIRA (1994) destaca: (1) a ação de um orixá sobre
alguém escolhido para ser seu filho e que portanto deve cumprir iniciação
parcial ou total; (2) a ação de um orixá sobre um iniciado negligente
para com seus preceitos e obrigações religiosas; (3) a transgressão de tabus
sexuais estipulados para o convívio no terreiro; (4) a contaminação pelo
contato com eguns (espíritos dos mortos); e (5) a contaminação por
elementos naturais como vírus, micróbios e outros agentes patogênicos devido ao
corpo aberto, ou seja, o corpo suscetível de ser atingido tanto pelos seres
humanos, através de trabalhos e feitiços para desagregar ou perturbar o
equilíbrio daquele considerado inimigo, como pelos orixás descontentes.
Para TEIXEIRA (1994) no Candomblé Jêje-Nagô os desequilíbrios
físicos e emocionais refletem-se tanto fisicamente como espiritualmente. O
corpo é concebido como encruzilhada do físico com o espiritual. Portanto, uma
manifestação da ação divina, diretamente relacionada aos orixás e por
extensão, às forças naturais.
“O corpo, em sua
plenitude, constitui-se num centro de forças que devem estar unidas em relação
de equilíbrio complementar; resultado da coerência estabelecida entre o humano
e o divino, entre o natural e o sobrenatural” (p. 142).
Logo, uma intervenção terapêutica deve sempre começar
por práticas que assegurem o bom relacionamento entre mundo físico e
espiritual, para efetivação de uma permanente troca ou intercâmbio de axé, a
energia vital inerente a qualquer ser e coisa existente no mundo. Nesse
sentido,
“A adquirir, manter e recuperar axé são
(...) procedimentos de saúde (...) estratégias
profiláticas e terapêuticas que asseguram um estado de sanidade amplo e
irrestrito” (p.56).
Através de práticas de atendimento como o jogo de
búzios, os sacudimentos, o bori e a iniciação, ações
de caráter simbólico cuja finalidade maior é colocar o ser humano em contato
com alguma coisa e/ou ser que o transcende, ialorixás e babalorixás cuidam de
dinamizar, recuperar ou favorecer a aquisição de energia vital para aqueles que
frente à situação precária dos serviços médicos públicos, a impessoalidade da
relação médico/paciente e a dessacralização da vida nos centros urbanos,
procuram seus serviços.
O jogo de búzios é sempre a primeira ação do
atendimento, sendo um ato ritual obrigatório e preliminar a toda e qualquer
atividade religiosa e/ou terapêutica. Envolve procedimentos como escutar o
consulente, traduzir suas questões, saber formular perguntas ao oráculo,
traduzir a mensagem dos mitos no corpus oracular e revelar esta mensagem ao
consulente, informando o que deve ser feito, como, quando, para que e para
quem.
As repetidas mãos do jogo fornecem elementos para
a compreensão do imaginário simbólico-arquetípico e da dinâmica
símbolo/mito-individual/coletivo, permitindo enxergar o enredo do consulente,
ou seja, a configuração de divindades que se articulam dramaticamente e que
desenham a estrutura mítica de sua personalidade (AUGRAS, 1995).
Os mitos resolvem dilemas como a contradição vida/morte
e dilemas de ordem grupal e social, por isso o significado de viver e ser
humano estar ligado às formas míticas, as expressões da unidade ser/mundo. Com
seu auxílio o ser humano concilia contradições, toma gosto e acredita na vida.
“(...) o mito é o discurso do paradoxo (...) retrata
a ambigüidade da existência humana onde dimensão imaginária e dimensão real
necessariamente se entrelaçam e mutuamente se nutrem” (AUGRAS, 1995:45).
Capazes de conectar o ser humano ao seu sofrimento eles
possuem a função de simbolização, fornecendo uma personificação em termos
sócio-culturais das dores e angústias de caráter individual. Mitos são
manifestações de imagens canalizadas por um arquétipo. O arquétipo opera como
molde básico para a formação dos mitos, é uma base psíquica comum a todos os
seres humanos, ou seja, um nódulo de concentração de energia psíquica que se
pluraliza de acordo com as imagens e padrões da cultura.
Arquétipos são possibilidades herdadas para representar
imagens similares, são formas instintivas de imaginar, matrizes arcaicas onde
configurações análogas ou semelhantes tomam forma (SILVEIRA. 1990). As
repetidas mãos do jogo de búzios revelam quais são os arquétipos
reitores da individualidade de cada um.
Uma vez revelada a configuração deste enredo mítico, os
sacerdotes supremos do Candomblé Jêje-Nagô, conforme a situação, lançarão mão
de uma série de práticas que poderão incluir desde sacrifícios e rituais de
limpeza até a reconstrução simbólica do corpo através da iniciação.
Os rituais e sacrifícios de limpeza são chamados de sacudimentos
e têm como finalidade promover uma mudança de estado, isto é, retirar os
males, a poluição e sujeira, através do afastamento dos possíveis elementos
responsáveis pela instalação da desordem na pessoa.
São procedimentos considerados eficazes no controle de
desequilíbrios físicos e emocionais, assim como preliminares aos rituais
iniciáticos se o caso for de iniciação. Geralmente envolvem espécies vegetais,
animais e certos alimentos preparados ritualmente para serem passados no corpo
inteiro ou servirem de oferenda (ebós). TEIXEIRA (1994) destaca três tipos de sacudimentos
que podem ser prescritos de acordo com a natureza e gravidade do caso: (1)
ebós ekuo, obrigatórios nos rituais de iniciação e que servem para despachar os
espíritos dos mortos (eguns); (2) ebós Exu, também obrigatórios na
iniciação e que tiram as más influências e complicações que este orixá traz
quando insatisfeito, servindo para abrir o caminho e preparar o encontro com os
outros orixás; e (3) ebós de saúde, utilizados como limpeza específica nos
casos de doença.
Na perspectiva do Candomblé Jêje-Nagô, os sacudimentos
têm o poder de afastar os componentes que provocam a desordem no ser humano
através da transferência dos males que o afligem para os elementos que tocam
seu corpo e/ou para os alimentos e animais que são sacrificados, permitindo que
o axé se renove ou seja recuperado.
O bori por sua vez é um processo de sacralização
e reconstrução simbólica da cabeça, considerada a síntese da individualidade
pessoal e mítica. Consiste em preparar e cozinhar vários alimentos para serem
oferecidos ao ori. Segundo BEMSTE(l997:l29):
“Ori é todo o axé que uma pessoa tem, e sua sede é na
cabeça. É ela que, gera/mente, vem primeiro ao mundo e abre caminho para trazer
o resto do corpo. Ela é a sede da consciência e dos principais sentidos
físicos”.
O bori é uma cerimônia de oferendas à cabeça e
sua finalidade é integrar o que esta fragmentado, desconhecido ou
desequilibrado. Nas palavras da ialorixá Wanda D’Oxum [7]
“(...) bori é para te dar caminho,
ele vai fortalecer a sua cabeça, o seu corpo, colocar você em harmonia com seu
orixá e lhe dar caminho”.
Além de suas funções profiláticas o bori marca o
primeiro grau de ingresso e participação na vida da comunidade terreiro. Daí
por diante o borizado, em geral, tende a continuar sua trajetória na
prática religiosa, vivenciando momentos/espaços que o conduzirão até a
iniciação (TEIXEIRA, 1994).
Quando o orixá, falando por meio do oráculo (jogo
de búzios), diz desejar estabelecer sua morada em alguém que reconhece como seu
filho, torna-se necessário a reinvenção no plano mítico e ritual do corpo desse
neófito, tendo inicio a construção de sua identidade mítica através da
iniciação. Ele é retirado do convívio social mais amplo e durante essa reclusão
é submetido a um processo de socialização no qual todas as modalidades de
relacionamento, a linguagem, os gestos, os tratamentos, obedecerão à rigorosa
ordem simbólica.
“O tempo se pautará pelo ritmo dos
diversos rituais e o espaço será redistribuído, haverá o momento correto para
penetrar no lugar certo, o corpo será moldado para servir de receptáculo da
divindade, será “raspado”, lavado, pintado, alimentado conforme regras
estritas, aprenderá os gestos convenientes, vestir-se-á conforme as regras,
dançará no espaço mítico e ritual. E na grande festa que consagra a
apresentação do noviço à comunidade, um deus manifestado rodopiará e gritará
seu novo nome” (AUGRAS, 1995:56).
A iniciação tem por objetivo selar a aliança com o orixá:
guarnecer a pessoa frente a seus propósitos individuais no mundo e expandir
axé, a força sagrada do orixá de quem ela é continuidade. BARROS &
TEIXEIRA (1989) em seu estudo sobre o Candomblé Jêje-Nagô chamam a atenção para
o fato de que na maioria dos casos observados por eles a iniciação
desenvolveu-se por motivo de doença, demonstrando como representações
simbólicas podem ser invocadas para enfrentar perturbações fisiológicas na luta
por um estado de saúde mais equilibrado.
No Candomblé Jêje-Nagô existe uma união harmônica entre
ser humano, natureza e divindade. Logo, não há medicina sem magia, assim como
não há remédio sem oferenda e saúde física ou social sem constante renovação de
axé. Assim, a doença, ou qualquer ameaça ao equilíbrio da totalidade do
indivíduo, torna-se objeto de uma negociação com os poderes sobrenaturais que
possibilite o seu desaparecimento ou a sua melhora (TEIXEIRA, 1994). Embora em
momento algum os sacerdotes supremos do Candomblé Jêje-Nagô neguem a existência
de fatores biológicos como hereditariedade e lesões cerebrais, entendem que
tais fatores estão ligados à influência divina que rege cada ser humano.
A partir dos diagnósticos provenientes do jogo
de búzios os sacerdotes supremos do Candomblé Jêje-Nagô proporcionam
explicações e sentidos para as causas dos desequilíbrios e se propõem a
eliminá-las mediante a realização de tratamentos específicos: sacudimento,
bori e iniciação. Seu modo de operar indica que eles parecem ser
capazes de interpretar uma gama bastante ampla de formas de demanda e responder
a cada uma delas de maneira diferenciada.
Através de suas práticas de atendimento apresentam
elementos para a reordenação da experiência subjetiva, transformando
qualitativamente a relação do eu com o mundo e abrindo caminhos por meio dos
quais um certo rearranjo das relações pessoais e do enfrentamento das questões
se torna possível (MONTERO, 1985). Nesse sentido, também são educadores, não
apenas porque são os maiores responsáveis pela transmissão do conhecimento do
Candomblé Jêje-Nagô e dos seus fundamentos, os que distribuem os dons sagrados
ou divinos. Mas, sobretudo, porque partindo da idéia de que o sagrado oferece
uma dimensão de forças capazes de interferir na experiência cotidiana, permitem
ao ser humano alcançar uma coerência, um sentido, uma imagem cujas imbricações
geram um ser integrado aos níveis pessoal e social, proporcionando elementos
para ele aprender a se conduzir e a lidar com a vida.
Suas práticas possuem como eixo matricial a luta para a
implantação de uma ordem identificada à saúde (física e social) em oposição à
desordem, consubstanciada pelos desequilíbrios físicos, emocionais, sociais e
espirituais que geram a doença. Elas visam reconstituir o corpo, fortalecendo
suas extremidades e fronteiras de modo a encerrá-lo gradualmente em um círculo
de proteção. Nesse sentido, vão muito além da simples restauração de um
organismo em desequilíbrio. São medidas profiláticas e terapêuticas que
permitem adquirir, manter ou recuperar axé, o elemento vital que move todas as
coisas e que no Candomblé Jêje-Nagô é a condição essencial para o gozo da
plenitude da vida, do bem estar físico e social.
Motumbá.
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Notas:
[1] SANTOS, O.A. Saúde e Sagrado: Representações da
Doença e Práticas de Atendimento dos Sacerdotes Supremos do Candomblé Jêje-Nagô
do Brasil. Texto extraído da Revista Brasileira Crescimento desenvolvimento
Humano, 5. Paulo, 9(2), 1999.
[2] Psicólogo graduado pela Faculdade de
Psicologia da PUC/SP, Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da
USP/SP com bolsa de mestrado da FAPESP. End.: Rua Mário, 172 - apto. 42 - Vila
Romana - 05048-010 - São Paulo - SP. Fone: (0XXI 1) 864-5583. E-mail: alôs@usp.br
[3] Culto praticado no Norte do Brasil, sobretudo, no
Pará e Amazonas e que reúne tradições religiosas indígenas e africanas.
[4] A terminologia de uso freqüente em relação às
casas religiosas de origem africana abrange os termos centro, terreiro, casa.
De uso mais restrito existe roça como sinônimo de Candomblé e, por uma relação
metonímica, emprega-se o termo barracão, que designa o espaço ritual dos cultos
no interior do terreiro (BIRMAN, 1995).
[5] Seguindo LANGDON (1996) adotei o termo medicina oficial em vez de medicina científica para designar a nossa tradição médica, evitando assim a idéia de que outros modelos médicos não são ou não possam ser científicos.
[6] Cultura como um sistema de
símbolos que fornece um modelo de e um modelo para a realidade.
Este sistema é público e centrado no indivíduo que o usa para agir e interpretar
seu mundo, de forma que também o reproduz (GEERTZ, 1978).
[7] Ialorixá do terreiro Ilê Iyá Mi Oxum Muyiwa
em São Paulo/Capital. Depoimento colhido em dezembro de 1997 para a dissertação
de mestrado do autor (Santos, 1999).