TECENDO A “REDE” DE PROTEÇÃO SOCIAL PARA GARANTIA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – SUBSÍDIOS PARA AS CONFERÊNCIAS DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

 

 

Murillo José Digiácomo[1]

Promotor de Justiça do Estado do Paraná.

 

 

A “Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente”, que nossa Constituição Federal de 1988 incorporou em seu art.227 e foi melhor regulamentada pela Lei nº 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente, trouxe inúmeras e importantes inovações na forma de ver, compreender e atender as crianças e adolescentes em todas as suas necessidades básicas, com respeito à sua condição de cidadãos e garantia – em caráter integral e prioritário – dos direitos a ela inerentes.

 

Dentre as citadas inovações, merece destaque, para o fim da presente exposição, a elaboração de todo um “Sistema de Garantias” dos direitos de crianças e adolescentes, composto por inúmeros órgãos, entidades e atores sociais, que devem atuar de forma integrada e articulada no sentido da construção de uma verdadeira “rede de proteção social”, com ações voltadas à prevenção e à proteção de crianças, adolescentes e suas respectivas famílias, por intermédio de políticas públicas sérias e duradouras, elaboradas e implementadas pelo Poder Público com a indispensável participação dos mais diversos segmentos da sociedade.

 

O adequado funcionamento do mencionado “Sistema de Garantias”, assim como a articulação de uma verdadeira “rede de proteção” para nossas crianças e adolescentes, no entanto, têm se mostrado uma tarefa árdua e extremamente complexa, fazendo com que em muitos casos, na prática, poucos avanços tenham sido conquistados em relação à sistemática vigente à época do revogado “Código de Menores” de 1979, tornando a almejada “proteção integral” dos direitos infanto-juvenis um objetivo ainda distante de ser alcançado.

O presente trabalho tem por objetivo traçar linhas gerais para que a matéria seja melhor compreendida, analisada e discutida pelos mais diversos integrantes do mencionado “Sistema de Garantias” dos direitos infanto-juvenis, que têm a incumbência – e o verdadeiro dever – de colocar em prática os inúmeros mecanismos previstos na Lei e na Constituição Federal para tornar efetivo o acesso de nossas crianças e adolescentes à cidadania plena que há tanto lhes foi prometida. Para que tal meta seja atingida, é fundamental que todos se conscientizem, em primeiro lugar, que é possível alcançá-la e que o papel de cada um é igualmente importante neste processo, que irá demandar uma estratégia de ação conjunta, bem como um adequado planejamento a curto, médio e longo prazos para buscar, no orçamento público e em outras fontes, os recursos (tanto materiais quanto humanos) necessários para a implementação da supramencionada “rede de proteção” infanto-juvenil de maneira progressiva, porém contínua e inexorável.

 

Não se pretende apresentar qualquer “fórmula mágica” para solução dos problemas existentes, o que obviamente não ocorrerá da noite para o dia, mas apenas mostrar o caminho a ser trilhado por aqueles que têm a responsabilidade de agir nesse sentido, caminho este que, por sinal, já foi traçado pelo legislador.

 

A análise da matéria deve partir de alguns pressupostos básicos, que consoante acima ventilado foram estabelecidos pela própria Lei e pela Constituição Federal.

 

O primeiro deles, que embora pareça óbvio e tem sido sonora e sistematicamente ignorado ao longo dos anos, decorre do próprio enunciado do art.227, caput, da Constituição Federal, que nunca é demais transcrever:

 

Art.227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (verbis – grifei).

 

Trata-se do princípio constitucional da prioridade absoluta à criança e ao adolescente, que estabelece um verdadeiro comando de ordem constitucional dirigido ao Poder Público, no sentido de fazer com que a criança e o adolescente sejam a preocupação primeira dos administradores públicos em geral e alvo preferencial e prioritário das ações e programas de governo, alguns dos quais, como melhor veremos adiante, a serem elaborados e implementados com a participação direta da sociedade civil organizada no processo.

 

Se já não bastasse a clareza solar do texto constitucional acima transcrito, que de maneira expressa impõe ao Poder Público uma atuação não apenas prioritária na área infanto-juvenil, mas em regime de prioridade ABSOLUTA (valendo aqui lembrar da regra básica de hermenêutica jurídica segundo a qual considera-se que “a lei não contém palavras inúteis”), a constatação da existência de uma evidente vinculação jurídico-constitucional às ações dos administradores e servidores públicos em geral (não havendo portanto que se falar em “discricionariedade” para priorizar outra área que não a infanto-juvenil) ficou ainda mais evidenciada com o advento da Lei nº 8.069/90, que já em seu art.1º explicita seu objetivo precípuo:

 

Art.1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente (verbis – grifei).

 

Com efeito, o Estatuto da Criança e do Adolescente, após praticamente reproduzir, em seus arts.4º, caput e 5º, o enunciado do art.227, da Constituição Federal, no parágrafo único de seu art.4º, procurou melhor detalhar e explicitar o que deve compreender a garantia de prioridade absoluta contida no citado Texto Constitucional:

 

Art.4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

c) preferência na formulação e a execução das políticas sociais públicas;

d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Art.5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da Lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais (verbis – grifei).

 

O art.4º, par. único, da Lei nº 8.069/90 acima transcrito, tem suas alíneas “b”, “c” e “d” expressamente endereçadas ao Poder Público, de modo a não dar margem para dúvidas acerca do alcance do princípio da prioridade absoluta insculpido tanto no art.4º, caput,  Estatuto da Criança e do Adolescente quanto no art.227, caput, da Constituição Federal.

A própria lei, portanto, ao interpretar a citada norma constitucional, determina que o Poder Público destine a crianças e adolescentes uma atenção prioritária, que dentre outros fatores importa na precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; na preferência na formulação e a execução das políticas sociais públicas, além, é claro, da imprescindível destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

 

A interpretação legal do texto constitucional acerca das implicações – notadamente em relação ao Poder Público – do enunciado do art.227 da Constituição Federal e dos ditames da “Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente” que a norma constitucional encerra, não permitem outra exegese do tema, que vem ainda reforçado pela previsão da punição de “qualquer atentado, por ação ou omissão” aos direitos infanto-juvenis (art.5º, in fine, da Lei nº 8.069/90 acima transcrito, que é reforçado pelo enunciado do art.208, caput e art.216, ambos do mesmo Diploma Legal).

A propósito do contido no art.5º, da Lei nº 8.069/90, importante mencionar que o Estatuto da Criança e do Adolescente traz o reconhecimento expresso de que a ação ou, especialmente, a omissão do Poder Público, se constitui na primeira das causas da chamada “situação de risco” social às crianças e adolescentes em geral previstas no art.98, inciso I, da Lei nº 8.069/90, seja por representar ameaça,[2] seja por caracterizar efetiva violação a seus direitos reconhecidos pela Lei e pela Constituição Federal, abrindo a possibilidade da tomada de medidas administrativas e/ou judiciais, inclusive com efeito erga omnes, de modo a fazer valer o império da lei e o citado mandamento constitucional da prioridade absoluta à criança e ao adolescente.

 

Abre-se espaço a – e mesmo se privilegia – uma atuação preventiva por parte dos integrantes do mencionado “Sistema de Garantias”, que ante a constatação da inexistência de uma estrutura de atendimento adequada, a nível municipal,[3] para satisfazer as mais diversas demandas da população infanto-juvenil, devem realizar gestões junto ao Poder Público no sentido de sua solução, no plano coletivo (e não apenas individual, como tradicionalmente tem ocorrido), através da implementação de políticas públicas adequadas às necessidades específicas locais.[4]

 

Inequívoco, portanto, que as ações do Poder Público, que devem sempre ter por norte, dentre outros, o princípio da legalidade (conforme art.37, da Constituição Federal), que obviamente importa no fiel respeito aos comandos legais e, acima de tudo, constitucionais que regem os mais variados aspectos da administração pública, se encontram juridicamente vinculadas[5] no sentido da busca da proteção integral à criança e o adolescente, para o que deverá ser destinada uma atenção e tratamento absolutamente prioritários, que dentre outros aspectos deverá compreender:

a) O reordenamento e a readequação de todos os serviços públicos ou de relevância pública oferecidos à população em geral, de modo que crianças e adolescentes sejam atendidos em caráter prioritário e preferencial, com a elaboração de rotinas de encaminhamento (em especial por parte de outros órgãos públicos como escolas, serviços de saúde e atendimento social, Conselho Tutelar, Poder Judiciário) e atendimento,[6] tornando-o mais ágil e apropriado às necessidades específicas da clientela infanto-juvenil;

b) A definição, juntamente com representantes da sociedade civil organizada, nos foros próprios que são os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e da Assistência Social,[7] de estratégias e prioridade de ações, com o planejamento e a gradual implementação de políticas e programas de atendimento a crianças, adolescentes e suas respectivas famílias, que contemplem os programas previstos nos arts.87, inciso II e 90, da Lei nº 8.069/90, bem como outros que correspondam às medidas de proteção, sócio-educativas e destinadas aos pais ou responsável previstas nos arts.101, 112 e 129, todos da Lei nº 8.069/90;

c) A previsão, nas diversas leis orçamentárias, de iniciativa do Poder Executivo (Plano Orçamentário Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei Orçamentária Anual), de metas e recursos orçamentários, também em caráter prioritário, para a efetiva implementação dos planos, políticas e ações definidas pelos citados Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e da Assistência Social, de modo que a estrutura de atendimento colocada à disposição da população infanto-juvenil, bem como aos órgãos e autoridades encarregadas de sua proteção integral, seja adequada à demanda existente, com a progressiva ampliação e implementação de novos programas de atendimento, de acordo com a disponibilidade orçamentária.

 

Importante frisar que o desencadeamento de tais ações deverá ser precedido de um completo (e idôneo) levantamento de dados, consistente na apuração das maiores demandas existentes, a serem cotejadas com as estruturas de atendimento já disponíveis, de modo a aferir a exata dimensão da “rede de proteção” já existente e colocada à disposição da população e quais as suas principais deficiências.

 

Deve-se ainda partir do princípio de que o art.88, inciso I, da Lei nº 8.069/90, numa perspectiva de descentralização político-administrativa quanto às estratégias e ações a serem desenvolvidas em prol da população infanto-juvenil (tal qual previsto no art.204, inciso I, c/c 227, §7º, da Constituição Federal), estabelece a municipalização do atendimento como diretriz primeira da nova política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente. A iniciativa na realização da mencionada coleta de informações e definição das estruturas e programas de atendimento a serem criados, ampliados e/ou adequados,[8] portanto, deve ficar a cargo do município, cabendo aos Estados e à União a definição de normas gerais e, em especial, o fornecimento do suporte técnico e financeiro que se fizerem necessários à sua implementação.

 

É preciso ficar claro, portanto, que não mais é dado ao município uma postura passiva diante dos problemas que afligem sua população infanto-juvenil, ficando indefinidamente no aguardo de “soluções mágicas” advindas de outras esferas de governo.

 

Segundo a nova orientação jurídico-constitucional, cabe ao município a definição de uma verdadeira política de atendimento à sua população infanto-juvenil, a ser implementada de maneira progressiva, porém inexorável, através do aporte dos recursos públicos municipais disponíveis (que, como dito acima, deve ocorrer de forma prioritária em relação a qualquer outra área de atuação), que deverão ser suplementados por verbas repassadas pelo Estado e pela União.

 

E aqui vale abrir um parêntese para enfatizar a idéia de que a municipalização do atendimento à criança e ao adolescente (assim como às suas respectivas famílias), não pode ser vista como sinônimo de “prefeiturização”, ou seja, de que o município deve arcar com todas as despesas necessárias à implementação da “rede de proteção social” alhures mencionada, que deve existir em sua base territorial.

 

A municipalização decorre da elementar constatação de que o município é o ente federado que tem melhores condições de apurar quais são os maiores problemas e deficiências que afligem sua população infanto-juvenil e definir quais as estratégias e ações mais urgentes e eficazes para sua solução, tornando obrigatória a implementação de estruturas de atendimento próximas ao local de origem da criança ou adolescente, que assim poderá receber a orientação, o apoio e/ou o tratamento que necessita em conjunto com sua família, no seio de sua comunidade de origem, restando assim preservados e mesmo fortalecidos os vínculos familiares e comunitários, tal qual previsto no art.227, caput, da Constituição Federal e arts.4º, caput, 19 e 100, in fine, todos da Lei nº 8.069/90.

 

Embora como dito alhures esteja o município também obrigado, por força do disposto no art.227, caput, da Constituição Federal e art.4º, caput e par. único, alíneas “c” e “d”, da Lei nº 8.069/90, a destinar recursos públicos oriundos de seu orçamento, em caráter prioritário e privilegiado, para implementação das mencionadas estruturas e programas de atendimento destinados à proteção integral de suas crianças e adolescentes, ele deverá buscar junto aos demais entes federados (Estado e União) as verbas suplementares que para tanto se fizerem necessárias, para o que o Estatuto da Criança e do Adolescente colocou à sua disposição mecanismos administrativos e mesmo judiciais.

 

Com efeito, o art.86 da Lei nº 8.069/90, que é fruto do citado art.204, inciso I c/c art.227, §7º, ambos da Constituição Federal, dispõe de maneira expressa que:

 

Art.86. A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (verbis – grifei).

 

O dispositivo transcrito evidencia a necessidade da articulação de ações entre os diversos entes federados, que são todos igualmente responsáveis pela proteção integral da criança e do adolescente.

 

A alegação da inexistência de recursos públicos em patamar suficiente para implementação das ações e programas de atendimento à população infanto-juvenil de determinado município, portanto, não se constitui em argumento válido para falta de estrutura correspondente, a saber:

 

a) Por mais carente que seja o município, este fatalmente terá alguma disponibilidade de recursos para investir na área infanto-juvenil, máxime sob a égide da Lei Complementar nº 101/2000, a chamada “Lei de Responsabilidade Fiscal”, que limitou os gastos com o funcionalismo (outrora usado como argumento para falta de recursos) e enfatizou a necessidade de planejamento e racionalização das despesas públicas, tornando ainda obrigatória a consulta à população acerca da destinação dos recursos orçamentários.

É de se atentar para o fato de a Lei Complementar nº 101/2000 não ser de qualquer modo incompatível com os princípios constitucionais da proteção integral e da prioridade absoluta à criança e ao adolescente insculpidos no citado art.227 da Constituição Federal,[9] não trazendo assim qualquer prejuízo ao citado mandamento constitucional que vincula as ações do administrador público no sentido de uma atuação prioritária na área infanto-juvenil.

 

Os ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal, consoante ventilado, na verdade somente têm a contribuir para que o Poder Público, livre de gastos desnecessários e do desvio de recursos para outras áreas menos importantes, finalmente tenha condições de cumprir suas obrigações para com as crianças e adolescentes, efetuando, por intermédio dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e da Assistência Social, um planejamento sério e responsável voltado à progressiva solução dos problemas (notadamente estruturais) existentes na imensa maioria dos municípios brasileiros;

 

b) Se já não bastasse a possibilidade da utilização prioritária, na área infanto-juvenil, dos recursos públicos municipais “excedentes” às despesas tidas como “carimbadas” (ou seja, aquelas que já têm destinação certa prevista por lei ou pela própria Constituição Federal), é de se ressaltar que mesmo estes também podem (e devem) ser empregados na implementação de políticas, estruturas e programas de atendimento a crianças, adolescentes e suas respectivas famílias.

 

Com efeito, dentre as citadas despesas obrigatórias, como sabemos, se encontram aquelas vinculadas à saúde e à educação, ex vi do disposto nos arts.198[10] e 212 (respectivamente), ambos da Constituição Federal.

 

Ocorre que, se olharmos com atenção, chegaremos à conclusão de que boa parte das ações, estruturas e programas de atendimento à população infanto-juvenil previstos na Lei nº 8.069/90, são precisamente de responsabilidade dos setores de saúde ou educação, pelo que podem ser implementados, ampliados e/ou adequados com a utilização de recursos próprios destas áreas.

 

Como exemplos práticos de tal afirmação podemos citar os programas de orientação familiar e apoio sócio-educativo em meio aberto, previstos no art.90, incisos I e II e correspondentes às medidas de proteção previstas nos arts.101, inciso II e IV e 129, inciso IV, todos da Lei nº 8.069/90, bem como os programas sócio-educativos destinados a adolescentes acusados da prática de ato infracional, previstos nos arts.90, incisos V, VI e VII e 112, incisos I a VI, todos do mesmo Diploma Legal, todos diretamente vinculados à área da educação (que deve ser compreendida não apenas como sinônimo de matrícula e freqüência em determinado estabelecimento de ensino, mas em toda amplitude do art.205, da Constituição Federal[11]).

 

Assim sendo, com recursos próprios da educação (e sempre lembrando que os percentuais constitucionais representam o mínimo de investimento na área), é perfeitamente possível desenvolver diversos dos programas previstos na Lei nº 8.069/90, além, é claro, de outros de vital importância para o desenvolvimento do ensino em si considerado, como é o caso da capacitação de professores, estruturação da rede de ensino para o atendimento de casos que demandam a elaboração e implementação de propostas pedagógicas diferenciadas (em especial no sentido da inserção/reinserção no Sistema de Ensino, a qualquer momento de crianças e adolescentes há muito afastados dos bancos escolares[12]).

 

Outro setor que tem muito a contribuir, com os recursos que lhe são próprios, para com a “rede de proteção” aos direitos de crianças e adolescentes é, sem dúvida, o setor de saúde, responsável pela elaboração e implementação de programas específicos destinados à avaliação, orientação e tratamento psicológico e/ou psiquiátrico para crianças, adolescentes e seus pais ou responsável, que correspondam às medidas previstas nos arts.101, inciso V e 129, inciso III, ambos da Lei nº 8.069/90, além, é claro, da premente necessidade de programas específicos destinados ao tratamento especializado de crianças, adolescentes, pais ou responsável usuários de substâncias entorpecentes, inclusive o álcool, permitindo assim a aplicação, pelas autoridades competentes (Conselho Tutelar e Poder Judiciário), das medidas previstas nos arts.101, inciso VI e 129, inciso II, ambos também da Lei nº 8.069/90.

 

Sobre a questão do tratamento especializado a usuários de substâncias entorpecentes, é preciso que se diga que a obrigatoriedade da implementação de programas dessa natureza não apenas se encontra contemplada em lei, mas na própria Constituição Federal, que em seu art.227, §3º, inciso VII, ao dispor sobre os aspectos abrangidos pelo “direito à proteção especial”, conferido a todas as crianças e adolescentes brasileiras, foi expresso ao relacionar precisamente os “programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins” (verbis).

 

Assim sendo, a ausência de uma política pública de saúde, elaborada em conjunto com a sociedade por intermédio dos Conselhos de Saúde e de Direitos da Criança e do Adolescente, que venha a atender toda demanda apurada para o tratamento especializado de crianças e adolescentes usuários de substâncias entorpecentes, proibidas ou não (como é o caso, repita-se, do álcool), representa uma violação não apenas ao texto legal expresso, que prevê a existência de tal estrutura dentro da “rede de proteção à criança e ao adolescente”, mas à própria Constituição Federal.

 

Mais uma vez fica evidenciado, portanto, que não apenas é possível, mas obrigatória, a utilização de recursos públicos tidos como “carimbados” para implementação de políticas e programas destinados ao atendimento da população infanto-juvenil, não podendo ser aceita a velha “cantilena” da falta de recursos como argumento para a omissão do Poder Público em cumprir suas obrigações legais e constitucionais para com nossas crianças e adolescentes;

 

c) Uma vez verificado que os recursos disponíveis no orçamento do município, ainda que utilizados de forma racional e prioritária no sentido da criação, ampliação e/ou adequação de estruturas e programas de atendimento à população infanto-juvenil local, se mostram insuficientes para o atendimento das demandas existentes, deve o município buscar junto ao Estado e à União os recursos suplementares que se fizerem necessários, não na condição de quem pede um “favor”, mas sim de quem invoca e exige o cumprimento de uma obrigação, pois, como dito alhures, tal suporte financeiro, prestado ao município pelos demais entes federados, é expressamente previsto tanto pela lei quanto pela Constituição Federal.

 

Após ter empenhado ao máximo seu orçamento na solução dos problemas que afligem suas crianças e adolescentes, e tendo dados concretos e confiáveis acerca das demandas que não puderam ser atendidas, o município terá a indispensável estatura moral para exigir que o Estado e a União, aos quais também incumbe a proteção integral de todas as crianças e adolescentes, dêem sua parcela de contribuição nesse sentido.

 

Embora a obtenção de tais verbas não dispense o debate político, e novamente um planejamento e uma estratégia para a liberação e aplicação dos recursos disponíveis, mais uma vez invocando a regra de hermenêutica jurídica que reza não conter a lei “palavras inúteis”, é de se atentar para o fato de o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art.210, ter conferido ao município a legitimidade para o ingresso com ações judiciais, fundadas em interesses coletivos ou difusos afetos a suas crianças e adolescentes, inclusive contra o Estado e contra a União, sem embargo da possibilidade de solução do problema da falta de cooperação pela via administrativa, por intermédio da celebração, entre os interessados, de compromissos de ajustamento de conduta, ex vi do disposto no art.211, do mesmo Diploma Legal, que permite inclusive detalhar como se dará, ao longo dos anos, a citada contribuição, tanto do ponto de vista técnico quanto financeiro.

 

Assim sendo, se as gestões políticas e administrativas falharem, existe sempre a possibilidade (e mais uma vez, diria, a obrigatoriedade, já que não é dado ao administrador público se omitir no sentido da proteção integral de suas crianças e adolescentes) do ingresso com demandas judiciais específicas, que venham a compelir o Estado e a União a cumprirem suas obrigações legais e constitucionais para com as crianças e adolescentes, novamente sem prejuízo da apuração da responsabilidade civil, administrativa e criminal daqueles que deixarem de agir nesse sentido.

 

Diante de tudo que foi exposto e ante a constatação de que já existe todo um arcabouço jurídico, inclusive a nível constitucional, a tornar obrigatória a implementação de uma “rede de proteção social à criança e ao adolescente” em todos os municípios brasileiros, é inevitável indagar as razões disto, como uma triste regra, ainda não ter se concretizado, 15 (quinze) anos após a promulgação da Constituição Federal e 13 (treze) anos após a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

Evidente que as citadas razões são inúmeras e de grande complexidade, porém uma das principais – e talvez a fonte de todas as outras – reside na ausência de uma mudança de mentalidade – e de postura – de boa parte dos integrantes do “Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente”, que por falta de conhecimento, de compromisso com a causa da infância e juventude e/ou mesmo de fé na possibilidade de transformação da realidade social que a “Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente” encerra, acabam por deixar de aproveitar todo o potencial dessa nova orientação jurídico-constitucional, não raro continuando a agir como se ainda estivéssemos sob a égide do Código de Menores de 1979.

 

Com efeito, órgãos como os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e Assistência Social, assim como o Conselho Tutelar, legítimos instrumentos de participação e controle social em relação às ações de governo, deixam de exercer tais funções, que lhes foram confiadas com o objetivo precípuo de garantir que as ações do Poder Público fossem prioritariamente voltadas à solução dos problemas que afligem a população infanto-juvenil como um todo, de acordo com um planejamento “estratégico” que sobrevivesse aos mandatos dos governantes, evitando assim a solução de continuidade das políticas públicas em desenvolvimento.

 

De outra banda, Ministério Público e Poder Judiciário ainda não se livraram por completo dos “grilhões” que lhes impunha o revogado Código de Menores de 1979, e em regra continuam a desempenhar um papel secundário dentro do “Sistema de Garantias”, resumido à tentativa de solução, com os parcos recursos disponíveis, de casos individuais de crianças e adolescentes que já tiveram seus direitos violados ou que são acusadas de prática de atos infracionais, quando deveriam estar atuando de forma eminentemente preventiva e voltada à solução das questões coletivas, na busca da necessária estruturação dos municípios onde exercem suas relevantes funções, para que os casos de simples ameaça ou efetiva violação de direitos fossem atendidos por uma adequada “rede de proteção”, sem a necessidade de intervenção do Sistema de Justiça no plano individual.[13]

 

É preciso portanto racionalizar e otimizar a atuação de todos os citados integrantes do “Sistema de Garantias” dos direitos infanto-juvenis, que têm de voltar sua atenção fundamentalmente para o plano coletivo, na busca de solução para os problemas estruturais do município onde atuam, no que diz respeito ao atendimento de crianças, adolescentes e suas respectivas famílias por profissionais da área social, planos, ações de governo e programas específicos de atendimento, nos moldes do preconizado pelos arts.4º e par. único, alíneas “b”, “c” e “d”, 90, incisos I a IV, 101, incisos I a VII, 112, incisos II a VI e 129, incisos I a IV, todos da Lei nº 8.069/90, além de disposições correlatas contidas na Lei nº 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social).

 

Como dito alhures, todos são igualmente importantes no processo de articulação de uma verdadeira “rede de proteção social”, que demanda a ação integrada e articulada também de todos, que devem se unir e buscar, por intermédio dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e da Assistência Social, o planejamento de uma estratégia de enfrentamento dos problemas existentes, com a definição de prioridades e o debate na busca de soluções, com a definição de ações a serem desenvolvidas e metas a serem alcançadas a curto, médio e longo prazos, o que deve partir do conhecimento da realidade local, por mais desalentadora que seja.

 

Neste sentido, e apenas para exemplificar, Conselho Tutelar e Poder Judiciário deverão, sistemática e periodicamente,[14] informar aos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e da Assistência Social quais as maiores demandas de atendimento e quais as maiores dificuldades encontradas para sua solução, resultante da inexistência de estruturas e/ou programas de atendimento para onde os referidos órgãos pudessem encaminhar os casos atendidos.

 

A propósito, não foi por acaso que o legislador incumbiu o Conselho Tutelar da atribuição de “assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente” (verbis – art.136, inciso IX, da Lei nº 8.069/90), mas sim o fez tendo em vista precisamente a referida atuação no plano coletivo, voltada à solução das deficiências estruturais existentes no município onde o órgão atua, sendo importante lembrar que, enquanto não instalado o Conselho Tutelar no município, tal atribuição, a exemplo das demais relacionadas no art.136, da Lei nº 8.069/90, deve ser exercida pela autoridade judiciária, ex vi do disposto no art.262, do citado Diploma Legal.

 

Fundamental, portanto, que os diversos órgãos que compõe o “Sistema de Garantias” aos direitos infanto-juvenis conheçam, compreendam e acima de tudo passem a ter fé na proposta de transformação social introduzida pela “Doutrina da Proteção Integral”, com a subseqüente qualificação de sua atuação, através do efetivo desempenho das atribuições e competências que lhes foram confiadas pelo legislador, com especial ênfase ao plano coletivo, sem jamais perder de vista que todos têm, como indeclinável missão constitucional, a proteção integral de todas as crianças e adolescentes, o que somente será possível com a articulação de uma verdadeira “rede de proteção social” voltada ao atendimento destes e de suas famílias, em caráter integral e absolutamente prioritário.

 

 

NOTAS

 

1. O autor é Promotor de Justiça do Estado do Paraná, podendo ser contatado pelo e-mail murilojd@pr.gov.br e telefone/fax (41) 254-2414.

 

2. E mais uma vez lembremos que a “Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente” encerra uma preocupação eminentemente preventiva.

 

3. Pois afinal, como melhor veremos adiante, a descentralização político-administrativa e a municipalização do atendimento prestado à criança e ao adolescente se constituem em princípios e diretrizes insculpidas nos arts.117, §7º c/c 204, inciso I, da Constituição Federal e art.88, inciso I, da Lei nº 8.069/90.

 

4. Sem prejuízo da apuração da eventual responsabilidade civil, administrativa e mesmo criminal do administrador ou outro agente público e/ou particular a que se atribui a ação ou omissão lesiva aos interesses tutelados pela norma, ex vi do disposto no art.208 e par. único c/c art.216, ambos da Lei nº 8.069/90, acima referidos.

 

5. Não há, portanto, que se falar na “discricionariedade” do administrador para priorizar outra área que não a infanto-juvenil.

 

6. Inclusive com a articulação entre órgãos públicos que atuam junto a crianças e adolescentes, em especial nas áreas da educação, saúde e ação social.

 

7. Que como melhor veremos adiante, por força do disposto no art.227, §7º e 204, ambos da Constituição Federal, se constituem nos órgãos que detêm a competência/prerrogativa constitucional para a elaboração das políticas públicas a serem implementadas nas áreas da criança e do adolescente e assistência social (respectivamente), bem como para a fiscalização das ações do administrador público no sentido de sua efetiva implementação.

 

8. Ou seja, a própria definição do que deve compreender uma verdadeira política de atendimento aos direitos infanto-juvenis.

 

9. Até porque, se incompatibilidade houvesse, por se tratar de norma infraconstitucional, as disposições conflitantes com o dispositivo constitucional citado seriam consideradas inexistentes, não produzindo qualquer efeito.

 

10. Conforme Emenda Constitucional nº 29/2000.

 

11. Segundo o qual a educação é um direito de todos, que deve ser ministrada através de uma parceria a ser estabelecida entre o Poder Público, a família e a comunidade, visando fundamentalmente o “pleno desenvolvimento da pessoa” e “seu preparo para o exercício da cidadania” (verbis).

 

12. Que, quando encaminhados pelo Conselho Tutelar ou Poder Judiciário, não podem ser pura e simplesmente “jogados de pára-quedas” numa sala de aula, sem qualquer preparo, orientação ou apoio( tanto para eles próprios quanto para os professores), para que tenham êxito em seu processo educacional. Se é bem verdade que o Sistema de Ensino deve estar preparado para receber, a qualquer momento, crianças e adolescentes encaminhados pelo Conselho Tutelar e Poder Judiciário, isto significa que deve elaborar programas próprios para a avaliação e atendimento das necessidades pedagógicas específicas desta clientela “especial”, que deve, sim, ser inserida no sistema regular de ensino, porém de forma progressiva e necessariamente, ao menos num primeiro momento, com apoio externo.

 

13. Salvo em casos excepcionais, quando não houvesse alternativa, ante a extrema gravidade da situação enfrentada. É preciso ficar claro que o objetivo precípuo da criação do Conselho Tutelar foi precisamente o de agilizar o encaminhamento dos casos de ameaça ou violação de direitos infanto-juvenis aos programas e estruturas de atendimento existentes, sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário.

 

14. Isto no entanto não deve ocorrer de forma meramente “burocrática” e descomprometida, mais sim no espírito de cooperação e parceria que deve existir entre os diversos integrantes do “Sistema de Garantias” dos direitos da criança e do adolescente, o que não impede a posterior cobrança acerca da utilização dos dados fornecidos na elaboração da política de atendimento idealizada pelos referidos Conselhos Deliberativos, de modo que esta atenda de forma satisfatória as demandas apresentadas.