A CRIANÇA DE 0-6 ANOS NO BRASIL E SEU ATENDIMENTO EDUCACIONAL: QUESTÕES A CONSIDERAR

 

 

Vital Didonei

 

 

Resumo: As condições pessoais de desenvolvimento e aprendizagem de milhões de crianças brasileiras são afetadas pelos problemas decorrentes da pobreza e das disparidades sócio-econômicas, além da discriminação gerada por razões ideológicas. A recessão produz impactos mais fortes sobre as crianças das famílias dos extratos inferiores de renda, que se vêem impossibilitadas de atender às necessidades básicas de seus filhos pequenos.

A demanda por creches e pré-escolas exerce influência decisiva no aumento da oferta pelo setor público, principalmente municipal. A tendência de crescimento de 10% das matrículas por ano deve continuar.

Mas as políticas sociais, além de ocuparem um lugar secundário no conjunto das políticas governamentais, não têm conseguido ultrapassar - apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente – a fase assistencialista e compensatória. A manutenção das conquistas da sociedade em favor da criança é um trabalho que não pode parar.

 

I – Três observações iniciais

1. A criança é uma esperança e um problema

Embora a criança seja encarada, no seio familiar, como uma bênção, uma coisa bonita, um sonho esperado, e na literatura e no discurso político seja chamada de porvir, futuro da nação, esperança da sociedade, não há dúvida de que nos setores de planejamento econômico ela é vista como um problema. Políticas demográficas, em países subdesenvolvidos, vêem a criança como fator dificultante do crescimento econômico, como consumidora (de educação, de comida, de saúde, de roupa, de transporte, de programas especiais...). Até em muitas famílias, cuja mulher precisa ou quer trabalhar fora, a criança pequena é tomada como um problema. Os pais procuram ancorar seus sentimentos em relação aos filhos na alegria, na esperança e no amor. Mas sabem – ou descobrem com o passar dos dias e anos - que as alegrias são entremeadas de desencantos; as esperanças, entrecortadas de angústias e o amor, limitado pela própria incapacidade de entrega total.

No panorama social, a criança de rua é pintada pelos meios de comunicação (jornais, televisão, rádio, revistas) e por determinados grupos (policiais, paramilitares e outros) como um risco, um perigo para a segurança das outras pessoas, como ''pivete'', "menor delinqüente'', ou "futuro marginal''. Nos tempos da Constituinte e pós-constituinte, a imprensa tinha mudado o enfoque, tratando a criança de rua como pessoa, cidadã, sujeita de direitos. Atualmente, está voltando a mostrá-la sob o velho filtro do "menor", do pré-delinqüente e delinqüente. Isso talvez se deva à influência de grupos conservadores, em reação à proposta consagrada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Está se observando um retorno à ''solução " tradicional de retirar a criança da rua, colocando-a em internatos, onde predominam a restrição à liberdade, a admoestação e os objetivos corretivos sobre o diálogo, a promoção e a construção da autonomia da criança ou do adolescente.

 

2. Conceitos discriminadores de criança

Um preconceito fortemente impregnado em nossa sociedade é o de que a criança negra é menos inteligente do que a branca; que a pobre é menos inteligente do que a das classes média e alta. Menos inteligente, aqui, quer dizer que tem mais dificuldade de raciocinar, de tirar conclusões lógicas, de pensar, enfim de aprender.

Revelador do estigma presente nos grupos dominantes da sociedade brasileira é o filmete veiculado pela televisão, patrocinado pelo Ministério da Justiça, durante a Campanha "Vamos Viver Sem Violência" (1986): rostos de bebês, a maioria negros e pardos, chorando, apareciam em ''close'' no vídeo, enquanto uma voz dizia mais ou menos o seguinte: NN, 40 anos, assaltante, 3 assassinatos, condenado a x anos de prisão; NN, 30 anos, ladra, participante em roubos e furtos etc. À medida que a câmera se afastava, percebiam-se fenos ou ripas sobre os rostos e os corpos das crianças, simulando prisões. Quando a câmera se distanciava mais, via-se que se tratava de crianças em berços (uma creche da LBA ?!). E com voz profética, dizia-se: "Tudo isso pode ser evitado, se você fizer alguma coisa por essas crianças. Vamos viver sem violência.

Esse filmete revelava a lógica que estava na cabeça das pessoas que o fizeram e das que o mandaram veicular: de que existe uma seqüência linear, histórica, entre a infância pobre.e marginalizada (simbolizada na creche assistencial) e a marginalização social, a delinqüência, a não-integração à sociedade. E, mais grave ainda, tentava passar para os telespectadores essa lógica, induzindo-os a anteciparem para as crianças pobres, as abandonadas, os meninos e meninas de rua, as imagens daquele futuro anunciado. Tratava-se, evidentemente, de um falso conceito.

Dados científicos são manipulados ideologicamente para favorecer a classe dominante e reforçar os conceitos e preconceitos que tem em relação à criança e que ajudam a manter a dominação. A figura seguinte mostra o caminho da dominação ideológica da criança.

Algumas relações podem ser baseadas em observações e em dados de pesquisas no campo da nutrição e da aprendizagem: a criança desnutrida dispõe de menos energia do que se estivesse bem alimentada. Com pouca energia para consumir, reduz a atividade. Interage menos com os objetos de conhecimento, sejam eles o bico do seio ou o rosto da mãe, os brinquedos ou outros objetos que poderiam despertar sua curiosidade que estão à sua mão. Ora, se a inteligência é construída pelo próprio sujeito por meio da atividade e do esforço de compreender os objetos e suas relações, portanto, na interação de forças internas e externas, parece claro que a criança que prolongadamente se alimenta abaixo dos requerimentos calórico-protéicos mínimos, poderá apresentar atrasos no desenvolvimento da inteligência e nas capacidades de aprendizagem. Mas daí concluir que a criança que sofreu desnutrição tem retardos ou menor capacidade intelectual é manipular ideologicamente os dados científicos. A criança pobre é tão inteligente quanto a rica. Uma pode ser menos familiarizada que a outra com os objetos de conhecimento apresentados pelo currículo escolar. Daí a diferença de desenvoltura entre elas em relação àqueles conteúdos de aprendizagem.

Igualmente falsas são as conclusões: a) por serem menos inteligentes e menos capazes, as crianças pobres continuarão na pobreza; b) atuar sobre a criança pobre, dando comida, atendimento completo de saúde, educação etc. resolve o problema da pobreza.

 

3. Os profissionais da infância não estão imunes aos conceitos social sobre a criança.

As pessoas que se põem a serviço da criança mima instituição tipo creche ou pré-escola determinam seu comportamento (atitudes, sentimentos, pensamentos...) conforme os conceitos, os preconceitos, a visão que têm da criança. E essa visão é determinada em parte pelas suas experiências infantis (Betelheim, 1988; Dolto, 1985) e, em parte, pela forma como a sociedade e a família concebem, visualizam e tratam a criança.

Daí a importância de que essas pessoas reflitam sobre os conceitos que têm e examinem seu modo de relacionar-se com as crianças para os colocarem ao nível da consciência e, se considerarem necessário, os refaçam.

Alguns perfis incluem como característica necessária dos profissionais e auxiliares de atendimento infantil “gostar de criança, ter jeito de lidar com ela''. Apesar de ser difícil de ser verificada a priori e ter grande dose de subjetividade, essa "qualidade" pode ser reveladora das disposições interiores e dos conceitos que uma pessoa tem sobre a criança.

 
II – A criança no Brasil

 

A situação da criança no Brasil é sobejamente conhecida nos meios profissionais. As estatísticas são amplamente repetidas. Tornou-se lugar comum citar dados sobre mortalidade, desnutrição, morbidade, repetência e evasão escolar, abandono ... De tanto serem repetidos, os dados, por mais graves, alarmantes ou catastróficos que sejam, parece que já não conseguem comover nem mover. Quer se trate de insensibilidade gerada pela rotina, quer de auto-anestesia, como mecanismo de defesa, quer de cansaço com diagnósticos incompletos que ficam apenas na fase dos dados estatísticos, o certo é que a maioria das pessoas já não se sente mais tocada pelos números a ponto de criar políticas ou programas voltados para as crianças ou pressionar os organismos responsáveis por sua formulação e implementação. Talvez se deva revalorizar os estudos de casos, nos quais é possível colocar maiores doses de realismo e concretude.

1. O problema número um da criança (leia-se "que afeta a criança" ) no Brasil é a pobreza.

Os dados da PNDA-1989, revelam que:

52% das famílias recebiam até 1 Salário Mínimo, 30% até 1/2 e 13% até 1/4 do salário mínimo.

 

2. O problema número dois é a desigualdade social (leia-se “falta de equidade").

A disparidade entre ricos e pobres, entre os salários mais altos e os mais baixos e, conseqüentemente, entre o tipo e a qualidade do consumo é uma das maiores do mundo desenvolvido ou subdesenvolvido. O choque da diferença agride mais do que a relativa homogeneidade da pobreza. É inaceitável que uma criança passe fome, em qualquer parte do mundo, mas é mais grave que uma criança passe forme diante de uma mesa farta porque lhe negam comida.

O pior é que a distância entre ricos e pobres está se tornando maior. Significa que não estão sendo adoradas Políticas Sociais adequadas, que conduzam para a justiça social. Todos os esforços para aumentar o número de crianças em centros de atendimento e em auxiliar as famílias no atendimento das necessidades de seus filhos conseguem apenas reduzir parte dos males causados por políticas sociais excludentes e por políticas econômicas concentradoras de renda.

 

Em 1984

Em 1988

Em 1981

 

Em 1989

Em 1989

Os 50% mais pobres possuíam 13,6% dos rendimentos médios mensais.

Os 20% mais ricos detinham 63,15% das rendas.

Esses mesmos 50% passaram a ter somente 11,88% dos rendimentos.

Esse grupo passou a deter 66,73% dos rendimentos.

Os 5% mais ricos eram donos de 33,4% da renda nacional.

Os 10% mais pobres eram donos de apenas 0,9%.

Os 5% mais ricos já eram donos de 39% da renda nacional.

Os 10% mais pobres eram donos de apenas 0,6%.

1% dos mais ricos detinha 17,3% da renda - 660 mil pessoas.

Os 50% mais pobres: 10,4% da renda - 33 milhões de pessoas.

 

Em 1986, 35,4% das crianças de 0 - 1 ano do Sudeste viviam em domicílios inadequados (quanto ao saneamento). No Nordeste, 84,6 %. Naquele mesmo ano, 47,3 % dos domicílios particulares permanentes não tinham condições adequadas de saneamento. Neles, residiam 60,2% das crianças de 0 - 1 ano. Aquelas condições eram inadequadas para 92,19% das crianças cuja renda mensal familiar por capita era de 1/4 de salário mínimo.

 

3. Torna-se cada vez mais difícil para a família atender às necessidades de seus filhos pequenas:

a) a família nuclear (que substitui a extensa) já não conta com parentes (avós, tios, outros parentes) que ajudem no cuidado diário das crianças;

b) aumenta o número de mulheres que trabalham fora do lar, por necessidade econômica ou vontade de participação social;

c) cresce o número de mulheres chefe de família, com filhos, sem cônjuge. Em 1981, 9,6% das crianças pertenciam a essas famílias. Em 1986 já eram 11,4% e, em 1989, 13%. Essas mulheres recebem, em média, salários mais baixos do que as mulheres chefe de família com filhos e marido;

d) os filhos maiores (com 12, 14 anos) também começam a trabalhar fora de casa, para ajudar no sustento da família e aí já não ficam em casa para cuidar dos pequenos; 

e) a impossibilidade de pagar uma babá, uma empregada ou outra pessoa para tomar conta das crianças atinge a um número cada vez maior de famílias;

f) as interferências de fora para dentro da família, atingindo os filhos sem que os pais possam controlar, são cada vez maiores (televisão, rua etc);

g) a sociedade se toma cada vez mais complexa e exige das pessoas preparo sempre maior para participar conscientemente e não como mero objeto de manobra; o progresso das ciências voltadas ao conhecimento da criança pequena e de sua educação não está acessível à maioria dos pais, que não são preparados para a tarefa de geradores e educadores de crianças pequenas;

h) no Brasil não existe uma Política Pública de apoio à família: Ela está completamente à mercê de sua própria capacidade de organização, sobrevivência e sustentação. O Estado faz pouco pelas crianças pequenas; atribui o seu cuidado primordialmente à família mas assiste insensível à progressiva erosão das condições familiares de atendimento às necessidades básicas das crianças: desemprego, subemprego, salários com poder aquisitivo cada vez menor, destruição dos valores morais de sustenção dos vinculas familiares (telenovelas e outros programas de televisão veiculados em rede nacional e em horários cm que os pais ainda não chegaram do trabalho).

 

III – Perspectivas para a década de 90

 

A análise do caminho da pré-escola na década de 80 permite traçar as seguintes perspectivas para os próximos anos:

1. A demanda pelo atendimento educacional da criança de 0 – 6 anos fará pressão cada vez mais vigorosa e organizada, forçando a oferta. A creche apresentará um crescimento ainda mais rápido. A pressão da demanda será maior nesta área.

2. O Município assumirá a maior parte da oferta. A tendência da municipalização é antiga e corresponde tanto a um desejo de descentralização, quanto à localização da demanda.

3. O papel do Ministério da Educação se concentrará na definição das diretrizes pedagógicas e no apoio financeiro a Estados e Municípios. Forçados a caminhar sozinhos nos últimos anos, Estados e Municípios foram encontrando suas veredas ou abrindo novas avenidas nessa área.

4. A educação infantil se organizará administrativamente melhor, com uma estrutura mais homogênea. É possível imaginar- se que, daqui alguns anos, a pré-escola poderá ser descrita segundo um modelo mínimo nacional, no qual a organização didática e administrativa e a programação educativa tenham um certo referencial comum. Sem haver uniformidade.

5. As propostas pedagógicas da creche e da pré-escola terão maior consistência, maior embasamento científico e fundamentação teórica mais sólida, em decorrência do conhecimento mais amplo das ciências da educação, da qualificação dos profissionais e das elaborações curriculares que se vem fazendo.

6. A pré-escola e o ensino fundamental conseguirão articular-se melhor, numa perspectiva de identidades próprias e de seqüência do processo de aprendizagem.

7. A qualificação dos professores sofrerá modificações no conteúdo e na forma. Os cursos pré-serviço e em serviço, que hoje são as principais fontes de qualificação para a prática, continuarão tendo grande afluxo de professores. Mas terão um sentido diferente: não mais como origem da qualificação e sim como complementação e atualização do que for estudado numa Escola Normal renovada ou no curso superior de Pedagogia voltado para a educação infantil.

8. A tecnologia da informação, mais disponível para uso prático, determinará alterações no papel do professor. A transmissão de informações para as crianças poderá ser mais ampla, diversificada e atraente por meios eletrônicos. Ensinar a aprender e aprender a aprender são tarefas que caberão cada vez mais ao professor, principalmente na pré-escola.

9. Crescerá o interesse de profissionais de outras áreas de formação em atuarem na pré-escola: psicólogos, antropólogos, sociólogos, professores de arte, de educação física, etc. Verifica-se uma tendência à especialização do trabalho na educação infantil.

10. Continuará a tendência de formalização do atendimento, por parte do Setor Público. As experiências de modelos não formais ficarão praticamente restritas às Organizações Não Governamentais. Estas têm mais poder de inovação e maior coragem do que os órgãos governamentais para inventarem alternativas.

 

Conclusão

 

Entre 1990 e meados de 1992, o Governo Federal ensaiou uma política para a infância. Mas não passou de tentativa amadorística:

- o Ministério da Criança naufragou. Navegando no barco do Projeto "Minha Gente", flutuou entre o Ministério da Ação Social, o Ministério da Saúde, e o da Educação e a Secretaria de Projetos Especiais da Presidência da República. Certamente não será este seu ancoradouro final...

- o Ministério Mirim foi peça de marketing. Talvez o único resultado tenha sido o engodo a algumas crianças convidadas para serem ministros.

- os CIACS, que poderiam se constituir num grande esforço de atendimento integral e integrado da criança, desde a concepção até o fim do ensino fundamental, esbarraram na falta de recursos. Falhas no planejamento fizeram-no começar pelo projeto arquitetônico; para depois fizer o que fazer dentro daqueles espaços. Não havendo recursos para sua manutenção, a conseqüência foi reduzir as metas;

- em relação ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente levou-se um ano e meio entre a elaboração do Projeto de Lei, de sua criação, tramitação no Congresso e sua instalação. Falta começar a trabalhar. Articuladamente com os Conselhos Municipais e Estaduais, será, possivelmente, o grande instrumento para interferir na situação da criança.

- o Estatuto da Criança e do Adolescente, apesar do empenho de órgãos governamentais e não governamentais, está encontrando resistência na implantação do seu modelo de proteção integral. Grupos retrógrados retomam força e insistem em voltar à velha prática de estigmatizar a criança pobre;

- o retorno do País ao Fundo Monetário Internacional (FMI) implica em aceitar suas receitas. É previsível que a política recessiva trará nos próximos anos as mesmas conseqüências sobre as crianças que causou na década de 80, no Brasil e em outros países submetidos às mesmas regras do "Ajuste Econômico". (ver UNICEF, 1984; 1987. RIVERO, 1990). Desemprego e queda do poder aquisitivo dos salários deixam os trabalhadores - em última análise, as famílias – sem condições de atenderem às necessidades básicas de seus filhos pequenos. A redução dos gastos por parte do Estado leva ao sucateamento da rede de serviços de educação e de saúde e à queda de qualidade desses serviços. As questões sociais ocupam, geralmente, um papel secundário no conjunto das políticas governamentais e adquirem feição assistencialista e compensatória.

Esses percalços, no entanto, não devem interpor barreiras intransponíveis na luta pelos direitos da criança, entre eles, o direito à educação desde o nascimento.

Persistem os fatores determinantes da expansão da creche e da pré-escola e aumenta a consciência sobre seu papel na sociedade. Forças maiores subjazem a vontades e incapacidades transitórias. O progresso obtido na legislação consagrou avanços sociais que se haviam operado na visão da sociedade, na compreensão do significado da infância, no reconhecimento da cidadania da criança. Mas conquistas importantes não são, necessariamente, definitivas. Em algumas áreas do atendimento, pode haver retrocessos. Não cabe a ingenuidade de achar que o avanço é fenômeno natural. Ele é cultural e político. Portanto, histórico. Por isso, precisa ser conquistado o tempo todo.