ESTRATÉGIAS PARA COMBATER O TRABALHO INFANTIL NO SERVIÇO DOMÉSTICO

 

 

Lena Lavinas
IPEA – Diretoria de Política Social.

 

 

 Sumário - Executivo

Muito embora tendencialmente em queda desde 93, o trabalho infantil no Brasil é ainda uma realidade cruel, de proporções consideráveis, que traduz uma dimensão importante do nosso passivo de desigualdades. Uma em cada 10 crianças trabalha. O universo de crianças ocupadas, na faixa 5-14 anos, somente nas áreas urbanas, alcança 1,13 milhão, assim distribuídos[1] : 10% têm entre 5 e 9 anos, 90%, estão na faixa superior, 10-14 anos. Agregando-se também aquelas que trabalham nas áreas rurais, esse número praticamente dobra.

Porém, ao adotar desde 1998[2] a idade mínima de 16 anos para admissão legal ao trabalho, tal como prevê a Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o governo brasileiro redefine o marco jurídico do trabalho infanto-juvenil e torna a eliminação do trabalho de crianças e adolescentes um desafio ainda maior. Sabemos que a taxa de atividade cresce rapidamente com a idade. Por exemplo, a taxa de atividade feminina aos 17 anos[3] é de 42,9%, semelhante, portanto, à das mulheres adultas na faixa etária 24-65 anos[4].

Vários estudos[5] têm reiteradamente apontado a grandeza do problema e as características diferenciadas do trabalho infanto-juvenil na faixa etária 10-16 anos, destacando, além de seus aspectos ilícitos e ilegais, seus riscos ao desenvolvimento psicossocial pleno do ser humano. O trabalho precoce, de pouca efetividade na redução da pobreza no curto prazo, tem, no entanto, grande impacto no comprometimento futuro das gerações. Em vez de aliviar a miséria, o que faz é alimentar mecanismos que corroboram a exclusão social, tal como o atraso escolar.

Várias têm sido também as iniciativas por parte do governo e de entidades da sociedade civil, apoiados por organismos internacionais como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Banco Mundial, na formulação de estratégias destinadas a atacar o problema. No Brasil, desde a criação do PETI em 1992 até a criação da rede nacional de combate ao trabalho das crianças e adolescentes em 1999, multiplicaram-se os programas focalizados destinados a retirar crianças e jovens do mercado de trabalho, em paralelo à promoção e difusão de um maior conhecimento acerca das causas e conseqüências desse fenômeno. Muitas dessas atividades centram-se no combate à evasão escolar.

Uma lacuna, no entanto, persistia. Lacuna essa mais melindrosa e de difícil apreensão do que a evidência trágica do perigo e da penosidade do trabalho infanto-juvenil nas carvoarias, no corte da cana-de-açúcar e na colheita do sisal. Uma lacuna conjugada no feminino, por dizer respeito a uma atividade fortemente naturalizada, realizada quase que exclusivamente por meninas. Não todas, mas as meninas pobres e, sobretudo, negras, para quem cursar a escola e viver vida de criança não cabe na longa jornada dos afazeres domésticos de cada dia, a se repetir sem trégua, sempre e a cada novo dia. Um aprendizado que jamais há de habilitá-las profissionalmente, mas que forja sem restrições sua condição de mulher. Se 2|3 das crianças e jovens ocupados são meninos, a quase totalidade do emprego doméstico infanto-juvenil é constituído por meninas.

Elas são hoje quase 400 mil, dispersas em lares que não são os seus, senão por adoção[6]. Mas como é sempre bom ter uma casa, para muitas delas, com certeza, a casa dos patrões é um lar e um lar aprazível, talvez até um refúgio que não se quer perder, nem mesmo se sujeitas a jornadas de trabalho muito longas, superiores à média observada para o conjunto das crianças e jovens trabalhadores. Segundo Paes de Barros[7], meninas empregadas domésticas na faixa 5-9 anos, apesar de serem muito poucas - 3 mil - trabalham muito : 21 horas por semana (contra 14 horas das demais crianças ocupadas). Essa média sobe para 36 horas semanais na faixa 10-14 anos (contra 26 horas para as demais crianças trabalhadoras) e é superior a 43 horas para aquelas com idade entre 15-17 anos (contra 38 horas semanais para o conjunto das ocupadas). Estudos do IPEA realizados por Lavinas sobre a evolução do emprego feminino nos anos 90 assinalam jornadas de trabalho semanais para as mulheres adultas, com idade variando entre 24-65 anos, em torno a 36 horas, padrão quase equivalente e até mesmo inferior ao das meninas empregadas domésticas na faixa etária 10-17 anos. Ora, as conseqüências de jornadas de trabalho tão longas sobre a saúde dessas meninas e os riscos que pesam à sua integridade física e moral permanecem, ainda hoje, absolutamente desconhecidos. Esse é um ponto que as análises empíricas realizadas no âmbito desta pesquisa não puderam atender.

Cerca de 65% das meninas domésticas vivem nas regiões Nordeste e Sudeste do Brasil, mais da metade em áreas urbanas. Trata-se de uma atividade remunerada - somente 4,4% entre 10-16 anos trabalham gratuitamente -, na média nacional em torno de 0.6 do salário-mínimo. Metade dessas quase 400.000 meninas vêm de famílias extremamente pobres, cuja renda familiar per capita é inferior a meio salário-mínimo. Perto de 30% dos chefes dessas famílias pobres não têm nenhum grau de instrução formal. Conforme já observado em inúmeras pesquisas internacionais e também por outras realizadas no Brasil, a proporção de crianças ocupadas declina à medida que cresce o nível de escolaridade das mães, regra essa ratificada no caso das meninas empregadas domésticas.

O conjunto de artigos que serve de subsídio à reflexão acerca das características e abrangência do trabalho infanto-juvenil feminino no serviço doméstico remunerado resgata, assim, um pouco do cotidiano dessas meninas, trazendo à baila dados sobre quantas são, onde vivem, quanto ganham, sua origem, um pouco da infância perdida naquilo apenas que os números podem registrar e, indiretamente, revelar. Sem dúvida isso é ainda muito pouco, dada a natureza de uma ocupação cuja trama é perpassada por privacidades e outros laços de parentesco e práticas familiares, tal como destaca Maria Luiza Heilbor[8]. Seu artigo aponta quão vasta é a rede do trabalho doméstico infantil, através do hábito bastante disseminado nas famílias populares da "entrega de criança pra criar " e da responsabilização precoce das meninas nos afazeres da casa. Ajudar a mãe no cotidiano de Sísifo do lar é a expressão de um vínculo de solidariedade familiar e de gênero, por isso mesmo uma obrigação difícil de ser transgredida. A concepção de infância e juventude inerente a cada classe e grupo social nem de longe é homogênea, e aí reside precisamente o desafio maior: garantir, como reza o Estatuto da Criança e do Adolescente, um princípio universal – o direito inquestionável à infância e à adolescência. Muitas vezes, nas classes populares, criança é vista não como criança, mas como um adulto pequeno, o que leva a que sua apreensão não seja qualitativamente distinta, dando lugar às obrigações.

Julgamos oportuno, por fim, também conhecer a realidade do emprego doméstico em si, uma vez que se trata de uma atividade amplamente difundida no país, reunindo cerca de 1/5 de todas as mulheres ocupadas. Vale salientar que, em meio a uma conjuntura de retração do emprego e queda da renda das famílias brasileiras, o serviço doméstico remunerado aumenta em 10% entre 93 e 98, como atesta o artigo[9] de Hildete Pereira de Melo, o que mostra sua relevância e permanência do ponto de vista do emprego feminino. Permanência e relevância derivadas dos desequilíbrios de renda no país e das desigualdades de gênero. Interessante notar que a taxa de atividade das patroas (sejam elas cônjuges ou chefes) com empregadas residentes no domicílio chega a 75%, muito mais alta que a média brasileira (42%) Em outras palavras, a empregada ou diarista ainda é um instrumento de regulação dos conflitos derivados das relações antagônicas entre os sexos na esfera da divisão sexual do trabalho doméstico. Aliás, a estrutura social e de gênero das nossas relações sociais reforça tanto mais essa atividade quanto maior o déficit de serviços públicos no atendimento à primeira infância e à infância (oferta absolutamente insuficiente de creches e ausência de escola tempo integral) e à terceira idade (oferta de serviços especializados praticamente inexistentes no país).

A novidade, ao que parece, é que a ocupação de empregada doméstica deixou de ser sinônimo de falta de opção para se tornar escolha profissional. Ora, se a demanda é crescente e se a oferta está mudando para melhor, exigindo maior profissionalização, mais escolaridade, etc., como sugere o artigo de Pereira de Melo, torna-se indispensável atentar para as conseqüências sobre a oferta da mão-de-obra infanto-juvenil. Por enquanto, prevalece uma tendência de redução do número de meninas ocupadas como domésticas (10-16 anos) : representavam 37% das meninas ocupadas em 1993, caindo em 1998 para 25%. Resta saber se a queda é pela redução na entrada ou por abandono da atividade, ou ambas simultaneamente.

Quais as chances de uma menina que adentra o mercado de trabalho como empregada doméstica, precocemente, mudar de profissão e crescer sem comprometimento das suas capacidades físicas e psíquicas? Quais os aspectos culturais e os determinantes não econômicos que tornam essa trajetória ocupacional « primeiro emprego : doméstica » tão freqüente para as meninas pobres e majoritariamente negras ?

Dentre as mais variadas contribuições dos artigos aqui reunidos, cabe assinalar aquelas que nos parecem mais relevantes e devem ser consideradas para assentar uma estratégia de ação voltada para, por uma lado, desincentivar a contratação de meninas e jovens como domésticas e, por outro, para estimular a saída da atividade daquelas que prematuramente empregaram-se nessa condição:

1.                  Além do determinante de gênero, o emprego doméstico de meninas tem outro componente estrutural : a cor. Na sua maioria, as meninas domésticas são negras e pardas.

2.                  O emprego doméstico feminino infanto-juvenil não se restringe às áreas pobres, mas encontra-se disseminado em todo o país, expressando, porém, elevado grau de exclusão social e pobreza : a proporção de trabalhadores domésticos tende a zero no caso das meninas à medida que cresce a renda domiciliar.

3.                  O atraso escolar das meninas empregadas domésticas aumenta , ao passo que vem caindo de forma linear para as demais crianças sem exceção, inclusive para as ocupadas. Isso sugere que o emprego no serviço doméstico, dadas as características dessa jornada e tipo de trabalho, é absolutamente incompatível com uma escolaridade regular e formadora. O dado mais surpreendente é o de que 2/3 das meninas domésticas que residem no emprego e quase 1/3 das não residentes não freqüentam a escola.

4.                        No entanto, constatamos pelos resultados da pesquisa sobre emprego doméstico no país que o nível médio de instrução formal das empregadas e diaristas aumentou bastante (em 1993, 31% delas tinham mais de cinco anos de escolaridade, e em 1998, esse percentual subiu para 41%). Isso significa que, a médio e longo prazo, essas meninas que, como domésticas, vêm acumulando atraso escolar, tendem a reduzir suas chances de permanecer nessa atividade onde aumenta regularmente o nível médio de escolaridade. Ou seja, a precocidade de hoje vai-se transformar em breve num elemento de expulsão da atividade por reduzir quesitos de « empregabilidade » - no caso, o nível de instrução formal crescente - que cada vez mais agem como mecanismos de seleção, notadamente em atividades que se profissionalizam, como mostra-se o caso das domésticas.

5.                  Note-se que a maioria das meninas empregadas no serviço doméstico exerce a função de babá, o que evidencia uma compreensão pouco pedagógica do que é « olhar criança ». Na região Norte, segundo a PNAD 98, 58% das meninas e adolescentes trabalhadoras domésticas cuidam de outras crianças.

6.                  O emprego doméstico oferece patamar médio de remuneração mais elevado que o das demais ocupações disponíveis para meninas trabalhadoras. Esse diferencial favorável gera, assim, um trade-off delicado na medida em que aumenta o atrativo por essa atividade frente às demais, justamente essa que reduz o potencial de desenvolvimento humano das meninas por implicar taxas muito mais altas de evasão e, conseqüentemente, de atraso escolar. No entanto, foi observado que o salário relativo no emprego doméstico não é determinante para o trabalho infanto-juvenil nessas ocupações.

7.                  O reverso salutar dessa moeda é que, apesar de demanda permanente e um nível de remuneração « atraente », registra-se queda constante na década de 90 da participação de meninas e jovens no âmbito do emprego doméstico remunerado. Isso sugere que uma campanha bem focalizada e desenhada pode ter excelentes resultados dissuasivos em termos de novas contratações, mas que o problema provavelmente tende possivelmente a persistir pelo lado daquelas que já trabalham como domésticas e que, portanto, devem dispor de alternativas interessantes e compatíveis com suas necessidades (materiais e simbólicas) para abandonar uma atividade que oferece certa atratividade vis a vis o mercado.

8.                  Isso sugere outra dimensão da questão, e não das de menor importância : o trabalho de jovens e adolescentes reveste-se de uma busca por maior autonomia, notadamente financeira, uma vez que boa parte do acesso a « bens simbólicos » de valor para esse grupo social não pode ser ofertado pelos pais ou pela família em geral. Daí a dificuldade de retirar da atividade os trabalhadores juvenis, na faixa etária 15/16 anos, para quem o processo de autonomização já é bastante desenvolvido e dificilmente pode ser revertido. Trata-se de jovens adultos, com demandas muito precisas.

9.                  As pessoas que tiverem o trabalho doméstico como primeira ocupação tendem a atingir menor escolaridade do que as demais. No entanto, não há efeitos deletérios sobre a renda e a probabilidade de se estar ocupado decorrentes do fato de a primeira atividade ter sido uma ocupação no serviço doméstico.

10.              Desconhecem-se ainda muitos fatores não econômicos que expliquem, para além das causas já enunciadas em alguns dos trabalhos aqui apresentados, o emprego de crianças e jovens meninas como trabalhadoras domésticas. Isto é, quais seus benefícios – tanto pelo lado da oferta, quanto da demanda? Essa lacuna exige um conhecimento mais aprofundado da questão de modo a subsidiar uma campanha nacional que possa ser verdadeiramente efetiva.

 Eixos de uma campanha de desincentivo ao trabalho doméstico infanto-juvenil

 A.      Nesta campanha, duas metas devem ser contempladas:

1 -  o desincentivo à nova contratação de crianças e adolescentes como domésticas  deve estar associado

 2  -   à criação de alternativas de formação e renda para retirar da atividade as que já exercem as diversas ocupações que constituem o serviço doméstico remunerado.

 

B.     Três públicos devem ser o alvo dessa campanha:

 - as famílias que empregam crianças bem como aquelas que podem vir a contratá-las;

- as famílias cujas crianças trabalham como domésticas;

 - as crianças trabalhadoras domésticas.

 C.  Dois tons devem prevalecer na campanha:                                                                        

1. Conscientizar para evitar novas contratações de meninas trabalhadoras domésticas - o trabalho infantil fere direitos básicos de cidadania, compromete a escolaridade e o desenvolvimento futuro, traz riscos e gera graves distorções, não se constituindo de forma alguma numa "ajuda", num ato humanitário ou numa "ética pelo trabalho"

e

2. Informar sobre como restituir às meninas trabalhadoras domésticas uma vida sem trabalho e com escola  e garantir meios para retirá-las do mercado de trabalho.

D.       A campanha deve contemplar estratégias de ação distintas em função de dois contingentes distintos de meninas trabalhadoras domésticas, destinando-se em separado:

às crianças e jovens com idade inferior a 14 anos

e

às adolescentes, na faixa 14-16 anos, cuja maturidade existencial e na esfera afetivo-sexual implicam um tratamento diferenciado.

 E.       Antes de se lançar a campanha nacional, promover uma campanha-piloto em três regiões metropolitanas, com base nas metas e eixos da campanha nacional .

Regiões metropolitanas: Belo Horizonte, Recife e Belém

F.        Mas, para além dos objetivos de conscientização e informação, o projeto-piloto deve promover a realização de um survey:

O objetivo do survey é suprir lacunas acerca de como as meninas trabalhadoras consideram seu emprego, suas vantagens e desvantagens, quais os riscos inerentes a essa atividade, para melhor orientar a campanha nacional, estimar o impacto de uma campanha que pretende reprimir, através da fiscalização, o emprego de meninas como domésticas, e que para isso deve atuar na esfera da vida privada das famílias

 

Esse survey será construído a partir de um trabalho com grupos focais, para assegurar pertinência às perguntas e assim incrementar a eficácia desse instrumento de conhecimento; terá amplo apoio da mídia local.

 

Um segundo survey ao final do período estipulado para o piloto deve ter lugar para captar mudanças na compreensão da questão e estimar resultados.

 G) Agenda:

O piloto deve ter início em agosto de 2000 e estender-se por 5 meses, seguindo-se a campanha nacional, a partir de janeiro de 2001, apoiada nos resultados do piloto.

 

NOTAS:

[1] Ver a este respeito o artigo de Ricardo Paes de Barros, nesta coletânea, intitulado Trabalho Doméstico Infanto-Juvenil no Brasil.

[2] Emenda Constitucional 20.

[3] Ver a este respeito artigo de Ana Lúcia Saboia, nesta coletânea, intitulado As meninas empregadas domésticas. Uma caracterização.

[4] 44%, PNAD 98

[5] Entre muitos outros, J. Saboia e A.L. Saboia (1999). Trabalho de Crianças e Adolescentes no Brasil dos Anos 90. Uma Análise Desagregada por Estado e Microregião. Miméo, Apresentado ao Banco Mundial e à OIT, 46 páginas. E também C. Siveira, C. Amaral e D. Campineiro (1999). Erradicação do Trabalho Infantil. Desafios, estratégias e elementos para a avaliação de programas. NAPP, miméo, apresentado à UNICEF, 45 páginas.

[6] Cabe ressaltar que somente 13% das meninas domésticas declararam não ter outra residência, senão a do emprego.

[7] Op. cit. tabela 3

[8] Seu artigo nessa coletânea : Dimensões Culturais do Trabalho Infantil Feminino.

[9] Ver a este respeito Trabalhadoras Domésticas: o eterno lugar do feminino. Uma análise dos grupos ocupacionais.