O SIGNIFICADO DO TRABALHO INFANTIL PARA OS USUÁRIOS DA ASSISTÊNCIA SOCIAL 

                                                                                            

Juliana Dreissig
Assistente Social.

Maíz Ramos Junqueira
Assistente Social, RS.

Manoela Alves Rodrigues
 
Acadêmica do Curso de Serviço Social da ULBRA, RS.

Márcia Jacoby
Assistente Social, RS.

 

 Este artigo discute o trabalho infantil a partir da visão dos usuários da Assistência Social no Centro Regional de Assistência Social Eixo-Baltazar e no Módulo Nordeste, unidades operacionais da Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), no município de Porto Alegre. São atendidos no Núcleo de Apoio Sócio-Familiar (NASF), composto pelo Programa Bolsa-Auxílio e pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI).

Trata-se da sistematização técnica junto às famílias dos programas mencionados, impulsionada pela necessidade de pensar a prática, enriquecendo o fazer profissional e superando dificuldades, buscando elucidar os desafios postos na execução da política de Assistência Social no Município.

Primeiramente, apresenta-se a proposta metodológica utilizada na operacionalização da pesquisa, bem como na construção do conhecimento. O ponto de partida é a concepção de trabalho dos usuários, inseridos em um contexto de profundas mudanças e as suas inter-relações com o trabalho infantil.

Em seguida, analisa-se a trajetória de vida dos usuários, marcada pelo exercício do trabalho precoce e as suas repercussões no entendimento do trabalho dos filhos.

Ao final, aborda-se o significado da atividade laboral infantil apontada a partir de indicadores que identificam a temática, confrontando as suas dimensões de risco social, de estratégia de sobrevivência e de benefícios morais e sociais.

 1. O Trajeto metodológico

 Esta pesquisa contempla depoimentos e expressões dos sujeitos e reflexões das pesquisadoras. Consideram-se sujeitos envolvidos na pesquisa os usuários vinculados aos Programas supramencionados e pesquisadoras, as técnicas executoras destes Programas. Ela é proveniente de uma investigação com metodologia baseada no referencial da pesquisa qualitativa. A operacionalização centrou-se na análise da dimensão dos aspectos objetivos e subjetivos, ocupando-se em apresentar as situações do campo e da população pesquisada nas suas manifestações explícitas e implícitas.

O universo da pesquisa compõe-se de cem sujeitos vinculados aos referidos Programas das duas unidades operacionais durante o período de 2001 e 2002. Deste número de pesquisados não são todos os que possuem a situação de trabalho infantil no seu grupo familiar atual, mas sim que exerceram a atividade produtiva precocemente

2. O processo da coleta de dados

Faz-se a coleta dos dados através do registro das falas proferidas nas entrevistas e nas reuniões de grupo dos usuários/sujeitos envolvidos na pesquisa. Esses registros são estruturados em forma de crônica. No Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1986) crônica é :

 

"narração histórica, ou registro de fatos comuns feitos por ordem cronológica, pequeno conto de enredo indeterminado, texto jornalístico redigido de forma livre e pessoal e que tem como temas fatos ou idéias da atualidade (...)". (p. 502 e 503)

 

As pesquisadoras transcrevem nas crônicas os diálogos, anotam as expressões verbais, as situações comentadas e os aspectos da percepção subjetiva dos mesmos.

Todo o material informativo é trabalhado a fim de submeter este procedimento ao controle de precisão, veracidade e objetividade. Simultaneamente, revisa-se o referencial teórico, auxiliar na orientação das análises e dos passos posteriores.

É importante esclarecer que todos os dados coletados são das falas dos sujeitos adultos, portanto, não há falas de crianças e adolescentes. Na organização dos dados fez-se um recorte temático buscando centrar na questão desta pesquisa que é o significado do trabalho infantil para os sujeitos. Na utilização deste instrumental, assume-se o compromisso de discrição com o material proveniente de suas informações verbais ou de suas ações. Trata-se, portanto, de compreender a realidade dos usuários/sujeitos envolvidos no processo investigativo tal qual ela é apresentada nas falas e intervenções.

3.   Análise dos dados coletados

Segundo Taylor & Bogdan (1996) :

 

"a análise dos dados é um processo em contínuo progresso na pesquisa qualitativa." (p. 158).

 

Simultaneamente efetua-se a coleta e análise dos dados, destacando-se os emergentes das transcrições e desenvolvendo-se conceitos que lhes dão sentido. Esse processo é necessário para enfocar os objetivos da investigação e formular-se permanentemente perguntas que direcionam a atenção das pesquisadoras no campo.

A etapa de interpretação dos conteúdos das crônicas segue o desenvolvimento de passos sistemáticos até a reconstrução dos seus possíveis significados. Ordena-se as crônicas por datas, sujeito ou grupo, e faz-se a primeira leitura de todo o material, assinalando as falas ou movimentos emergentes, identificando os temas contidos e realizando o agrupamento por temáticas e o significado das mesmas. Retoma-se a busca de material bibliográfico que os próprios dados demandam, assim como a confecção de fichas de leitura e de pequenos resumos.

É importante destacar que muitas vezes uma mesma fala faz parte de duas ou mais questões de análise, que a seleção de algumas falas na leitura das crônicas são lançadas no agrupamento temático e que outras, ainda, são abandonadas por não apresentarem material significativo para as análises.

Os conceitos pressupõem determinada representação dos sujeitos e grupos. Assim, os usuários são concebidos como sujeitos de sua história com seus atos e sentimentos. Os conceitos e análises desta pesquisa partem de descrições permeadas de relatos de experiências dos sujeitos, daquilo que de fato existe no tempo em que se os descreve.

Quanto à análise do conteúdo, o rigor científico passa pela revisão sistemática do material selecionado, buscando-se outras leituras e novos ordenamentos dos pontos temáticos. Torna-se a revelar os objetivos e o objeto da pesquisa e o estudo adquire uma estrutura fundada no intercruzamento temático.

A etapa de interpretação do material coletado objetiva transcender a compreensão primeira de seus significados, elaborar concepções, apreendendo-os em sua totalidade, e apresentá-los de forma compreensível e acessível para quem não esteve envolvido na pesquisa.

As etapas de análise têm o seguinte alinhamento: retoma-se a relevância temática desde o projeto de pesquisa, registrando-se as definições dos usuários e o que aparece nas crônicas sobre a temática, considerando-se, também, o como configura-se esta questão na perspectiva dos sujeitos. Passa-se ao seu estudo com a contribuição da literatura, elaborando uma reflexão que contenha o desenvolvimento de proposições e conceitos a partir destes referenciais, integrando-os às análises elaboradas pelas pesquisadoras.

A segunda etapa diz respeito ao agrupamento por eixos temáticos, constituindo o primeiro eixo desdobrado em três aspectos fundantes do tema central da pesquisa. Após as análises dos aspectos temáticos, busca-se neles a identificação de temas convergentes relacionando-os e unificando-os por suas generalizações. A última etapa trata da apresentação dos resultados ou a elaboração do relatório, utiliza-se a contribuição de Taylor & Bogdan (1996) para orientar os pontos básicos da informação dos estudos.

1. 1.  O desdobramento do trabalho infantil no cotidiano dos usuários

2. 1. O trabalho no entendimento dos usuários e a sua realização pelas crianças e adolescentes

A compreensão do trabalho infantil passa pela discussão da categoria trabalho na sociedade. A literatura tem indicado a existência de divergências quanto ao papel do trabalho como organizador da atividade humana nos tempos atuais. Enquanto alguns autores anunciam a "crise da sociedade do trabalho", outros referendam-no como central na constituição social, apesar de passar por profundas transformações nas últimas décadas.

Sem desconsiderar a crescente diferenciação das formas de trabalho, ele tem papel fundamental na constituição dos sujeitos na sociedade. Ao analisar a centralidade da categoria trabalho, Kuenzer (1998) afirma que "sob as novas formas de realização do capital, continua mais viva do que nunca a sua velha lógica, que produz crescentemente a exclusão pela exploração do trabalho." (p. 67)

É pelo trabalho que os homens e as mulheres transformam a natureza, construindo o mundo e reconstruindo-se nesse processo. Conforme Antuniassi (1983), o trabalho é definido como

"(...) uma atividade específica da espécie humana, de onde advém a noção do seu caráter humanizador na relação que se estabelece entre o homem e a natureza. Parte-se do pressuposto de que, no intercâmbio homem-natureza, esta se distingue do animal ao produzir seus meios de existência (...) o modo de produção determina as formas válidas de trabalho. Essa formulação possibilita pensar a produção como um processo histórico, conseqüentemente a atividade de trabalho como uma categoria histórica." (p. 19)

Nessa categoria analisa-se as falas dos sujeitos/usuários que expressam a sua concepção de trabalho, assim como o entendimento do trabalho dos filhos. Tais sujeitos inserem-se em um contexto laboral que passa por importantes transformações, que trazem implicações objetivas e subjetivas para o conjunto das classes trabalhadoras. Essas mudanças, analisadas por Antunes (1998), foram desencadeadas nos países de capitalismo avançado a partir do final dos anos 70. Nesse processo são introduzidas novas tecnologias e ocorrem mudanças significativas no sistema produtivo. Houve um grande "salto tecnológico" no mundo do trabalho, caracterizado pela introdução da automação, robótica e microeletrônica. Novos modelos produtivos, que privilegiam a flexibilização da produção, da organização do trabalho e dos trabalhadores. A empresa da "nova era" é avançada tecnologicamente, "enxuta" e flexibilizada.

Tais mudanças, que se adequam às novas necessidades de acumulação do capital, inseridas no contexto da globalização da economia, trazem, contudo, resultados adversos para os trabalhadores. A introdução de novas tecnologias tem como conseqüência o fechamento de inúmeros postos de trabalho. Além disso, a fim de garantir a propalada flexibilização, os direitos dos trabalhadores são desregulamentados.

Está em curso um visível processo de degradação do trabalho, que se expressa no desemprego, rebaixamento salarial, aumento do mercado informal, terceirização, serviço doméstico, trabalho infantil, entre outros. Este quadro agrava-se quando somado às particularidades brasileiras como, por exemplo, ao fato de a nossa sociedade ser organizada sob um modelo altamente concentrador da renda e da propriedade, gerando um dos maiores índices de desigualdades do mundo.

No cotidiano dos sujeitos pesquisados tais transformações representam a impossibilidade de sua inserção no mercado formal de trabalho. As inovações tecnológicas da dita era do conhecimento demandam novos saberes e habilidades inacessíveis a largas camadas da população, como expressa a seguinte fala:

"a gente tá muito pra trás, não tem como acompanhar a revolução das coisas. Dá a impressão que não é o teu mundo, a vida tá muito rápida...."

Em um contexto laboral cada vez mais complexificado, a falta do conhecimento escolar é identificado como fator que impossibilita a ocupação de melhores postos de trabalho:

"eu não estudei. O estudo conta muito pro emprego. Eu até hoje só consegui trabalhar em firma de limpeza. Não me arrependo do sacrifício que fiz, minhas irmãs tão bem empregadas. Estudaram até a oitava série."

Ao mesmo tempo, os usuários identificam em sua trajetória aprendizagens específicas adquiridas pelo trabalho, valorizando-o como possibilidade de ampliação do universo cultural e inserção social:

"trabalhei desde os sete anos, era cozinheiro. Saí de casa aos onze anos, tive que me criar sozinho e virar o mundo. Fui capataz de fazenda, trabalhei na roça, no Exército, na Brigada Militar, fui dono de Farmácia lá no Norte e mais um monte de coisas. Peguei muita experiência, tenho muitos conhecimentos da vida. Fui na escola só uns meses, mas sei muito mais do que se aprende na escola. O mundo ensina."

Em algumas falas o trabalho aparece como espaço de formação do caráter e desenvolvimento pessoal:

"só fui criado pela mãe e foi o trabalho que me criou."

Sarti (1996), ao estudar as formas de pensar dos moradores da periferia de São Paulo, discute o valor moral do trabalho para os pobres. Para ela, a identidade de trabalhador confunde-se com a de pobre. Porém, a categoria pobre traz consigo conotação moral negativa, sendo que a de trabalhador agrega valores positivos. Ou seja, há um benefício moral embutido na atividade laboral.

Associado à noção de dignidade e respeito (Sarti, 1996), o trabalho é entendido como agregador de qualidades. Nesse sentido, um pai, ao comentar as qualidades do filho, privilegia o fato de ele "ser trabalhador".

A dimensão moral do trabalho tem raízes históricas, sendo que ele tem sido entendido como alternativa à "vadiagem". Na virada para o século XX, período em que se inicia a constituição das cidades no Brasil, a condição de "trabalhador" era o que atestava a moralidade dos indivíduos. Os que não trabalhavam não possuíam tal "virtude", sendo vistos como portadores de "vícios", "degenerescências". A "ociosidade" deveria ser combatida, e o "hábito de trabalho", cultivado. (Rizzini, 1997)

Na era Vargas, iniciada em 1930, a "ética do trabalho" é reforçada significativamente pelo Estado. No âmbito sócio-cultural, ele é colocado como o que dignifica o homem e garante-lhe a cidadania, pois os direitos sociais eram acessíveis somente aos inseridos no mundo laboral, a vadiagem era reprimida e o trabalho era o atestado de inclusão social.

Outro aspecto ressaltado pelos usuários é que a atividade laboral precoce desperta potencialidades e constitui-se num espaço de expressão da criatividade:

"meu filho cuidava de carros num estacionamento. Através desta atividade, descobri que ele tem muito talento, um potencial muito grande."

"eles são muito bons. Eles deram a idéia de cortar e emendar os sacos de plástico pra fazer um grande e botar os outros plásticos. Falaram pra amassar as latinhas e não deixar inteiras."

Historicamente, o trabalho fez parte da vida das crianças e dos adolescentes pobres no Brasil. O que se modifica com o passar do tempo são as formas como os modos de produção se expressam, de acordo com os estágios de desenvolvimento do capitalismo. No contexto atual, é agravado pela precarização das condições de trabalho dos adultos. Ou seja, pais desempregados ou com dificuldades de manter a sobrevivência do grupo familiar acabam lançando mão do trabalho dos filhos.

No senso comum, trabalhar precocemente significa "ajudar a família e prevenir a marginalidade." (Costa, 1994) Tal noção acabou por "naturalizar" o trabalho infantil na população de baixa renda. Como pudemos observar, os usuários compartilham desse entendimento, de que há benefícios morais embutidos nele. Tais aspectos corroboram a descrição que Fonseca (2000) faz dos mitos que envolvem o trabalho infantil: sobrevivência, esperteza e enobrecimento.

 

2. 2.    Histórico do trabalho infantil na vida dos sujeitos.

Nesta categoria emergem falas que assinalam a mesma trajetória histórica de trabalho infantil dos pais e responsáveis vivenciada hoje por crianças e adolescentes, caracterizando uma problemática transgeracional.

O trabalho infantil aparece como "herança", uma tradição, uma continuidade do passado dos adultos reproduzido pelos filhos com idade abaixo de dezesseis anos. As falas expressam a "naturalização" do trabalho infantil, atribuindo a este uma etapa no processo de desenvolvimento físico, educacional, moral e produtivo. Assim como os adultos tiveram a precocidade de ingresso no mundo do trabalho e a experienciaram como inerente ao que hoje são e possuem, apontam que para seus filhos não há outra via para a conquista do viver e ser.

"as crianças trabalhando, eu também trabalhei numa casa de família."

"trabalhei na roça junto com minha família desde os sete anos. Fugi com quatorze anos junto com meu companheiro. Ele tinha vinte anos. Ele também trabalhou na roça, plantavam soja e feijão, trabalhavam numa cooperativa."

Esta "naturalização" emerge com a caracterização de momentos da convivência familiar, repasse de informações e intercâmbio de saberes, perpetuando as atividades produtivas já existentes no grupo familiar e desafio para novas experiências. É a garantia de continuidade do seu fazer e saber. As seguintes falas exemplificam este entendimento:

"com onze anos saía com minha mãe para ajudá-la a fazer faxina."

"eu me lembro que não ia na escola. Fiquei sete anos no primeiro ano. Eu ficava cansada. Trabalhava na roça com meus pais e irmãos, de tarde era para eu ir para a escola, mas ficava fora para brincar."

Esta perspectiva do trabalho familiar compartilhado é apontada por Silva (2002) como "graças a convivência com os adultos, era-lhe assegurada a sociabilidade pelo trabalho concreto, que lhe proporcionava a soma de conhecimentos práticos para viver na comunidade." (p.153)

É importante diferenciar a transmissão cultural necessária à perpetuação da identidade sócio-familiar e ao processo de socialização da criança daquela que está atravessando a atividade produtiva precoce. Esta impede a escolarização e o acesso a espaços oportunizadores dos momentos essenciais da infância e perpetua a continuidade da exclusão dos sujeitos.

Na maioria das expressões dos usuários as atividades produtivas relacionam-se com aquelas dedicadas à ocupação no meio rural, demarcando a procedência dos grupos familiares incluídos nos Programas da Assistência Social.

"eu ajudava na roça e não pude estudar."

"eu capinava junto com minha mãe."

Outra atividade desenvolvida pelos usuários quando crianças e adolescentes é o trabalho doméstico. Segundo Cipola (2001) há uma diferença entre o trabalho doméstico e o emprego doméstico. O primeiro corresponde a todas as atividades desenvolvidas no âmbito habitacional da família, enquanto que o segundo indica já a condição de trabalhador infanto-juvenil. O levantamento de dados das crianças e adolescentes que cuidam dos irmãos, que fazem o trabalho doméstico ou ainda que organizam o funcionamento e manutenção da própria casa é difícil de ser apurado devido aos obstáculos existentes na verificação das informações prestadas pelos usuários. No que se refere às atividades produtivas no meio rural, o levantamento torna-se impreciso, segundo este mesmo autor, porque ora as crianças mantém o vínculo escolar, ora está incluído na rotina de trabalho das famílias o cuidado de pequenos animais e o cultivo da horta, evidenciando dados difusos quanto à quantidade de jornada empregada na realização destas atividades.

Nos relatos esta atividade produtiva está associada ao acesso a bens de consumo e culturais. Cipola (2001) afirma que "as compensações lúdicas do trabalho infanto-juvenil doméstico estão entre os principais fatores determinantes da alta incidência desse tipo ilegal de exploração de mão-de-obra no Brasil." (p.74)

"não tinha estudo e minha mãe me botava para trabalhar na casa dos outros, aí conheci TV aos doze anos."

"eu não brincava, só trabalhava e ajudava em casa. No meu tempo era diferente. Se trabalhava muito mais."

Este acesso oportuniza as vivências inerentes à infância e adolescência não encontradas no âmbito familiar de origem. É através do emprego doméstico que encontram espaço para conhecer "a amplidão do mundo", o mundo da fantasia e do sonho, os momentos de satisfação das necessidades simbólicas não ofertadas no seu contexto sócio-familiar.

Aparece nos dados que a atividade laboral alude à idéia de meio de obtenção da socialização e de transmissão cultural:

"com oito anos minha mãe me pôs em casa de família pra aprender as coisas."

Vale destacar que as famílias em estudo caracterizam-se por uma limitação no que diz respeito a trocas culturais, de maneira que o espaço de trabalho das crianças e dos adolescentes acaba por exercer esse papel.

Outro benefício ou ganho na execução do trabalho doméstico é a referência do estabelecimento de laços afetivos. Esta relação afetiva é vista, muitas vezes, na perspectiva de superação da distância familiar, da compensação pela penosidade das tarefas desempenhadas, do esquecimento da longa jornada, da tristeza pela humilhação e do desrespeito com as limitações físicas e emocionais da população infanto-juvenil. Cipola (2001) adverte que "no Brasil só 13% das crianças trabalhadoras em lares que não são os seus foram oficialmente adotadas" (p. 74) de um total de 400 mil crianças.

"na minha infância eu brincava, eu era feliz quando era pequena. O problema é que não tinha estudo. Saí de casa com quatorze anos. Não tinha onde morar, morei com uma madrasta. Minha mãe morreu cedo. Com meus quinze anos trabalhei em casa de família. Morava lá a semana toda. Me tratavam bem."

Outro aspecto do trabalho infantil mencionado nos dados é a assunção de tarefas e atribuições dos adultos por parte das crianças e adolescentes.

"com dez anos comecei a cuidar dos meus sete irmãos quando minha mãe ia para o trabalho. Meu pai faleceu pouco tempo antes disso. Botei todos os meus irmãos no colégio. Eu não estudei."

Esta responsabilização de funções e atribuições emerge na realidade dos sujeitos como:

"é preciso trabalhar para manter integrado o núcleo familiar, por este motivo a criança assume responsabilidades alheias à sua condição física, certa de que esse esforço é necessário para a coesão do grupo. Então, é a força da união familiar pelo trabalho que caracteriza a atitude tomada cotidianamente por este segmento da infância trabalhadora." (Silva, 2002, 163)

A precocidade do ingresso no mundo do trabalho é entendida desde a perspectiva de não requerer uma habilidade específica para as funções a serem desempenhadas. O trabalho infantil é apresentado através da possibilidade de se ter ganhos de aprendizado e vivência. É possível verificar esta afirmação com a fala mencionada abaixo:

"eu trabalhava aos dez anos e não sabia fazer nada. Trabalhava de babá aos doze anos."

"meu filho cuidava de carros num estacionamento. Através dessa atividade descobri que ele tem muito talento, um potencial muito grande."

No entanto, esta precocidade também revela a perda de momentos essenciais da etapa da infância e adolescência.

"eu não tive liberdade para brincar, desde os cinco anos trabalho na lavoura."

"quando eu era criança eu brincava no rio e jogava bola, mas eu trabalhava na roça. O bom seria ter estudado."

O ingresso no mundo do trabalho, mesmo oportunizando a organização da subsistência familiar, é percebido como uma adesão impossível de ser compatível com o período de inserção no âmbito escolar. Estas decisões do núcleo familiar vinculam-se a uma série de fatores já demarcados nos pontos anteriores. Vale destacar a realidade social vivida pelos usuários marcada pela impossibilidade de manutenção das duas atividades ou seja, tornam-se inconciliáveis o estar no desempenho infanto-juvenil das atividades produtivas e o exercício da aprendizagem no contexto educacional formal.

"eu comecei a trabalhar aos dez anos, não que eu queria, tive que largar o estudo."     "trabalhava na roça e cuidava da casa e dos meus irmãos porque minha mãe foi embora. Quero estudar de novo."

Com isso os projetos relacionados à escolaridade foram abortados na infância e na juventude, em função da necessidade sócio-econômica e cultural de ingresso precoce no mundo do trabalho. Se por um lado os adultos referem os aspectos positivos do trabalho infantil, por outro lado possuem uma visão reticente desta experiência.

 Nos aspectos positivos, os ganhos materiais são apontados como compensações concretas e imediatas do trabalho infantil:

"eles não gostavam de trabalhar, ficavam cansados. Só gostavam no final do ano, quando ganhavam presentes das lojas."

 Não se pode deixar de mencionar que, em termos de ganhos materiais e financeiros, o emprego doméstico é o mais rentável de todas as atividades produtivas no universo do trabalho infanto-juvenil. Se bem que muitos não recebem salário, este está indiretamente repassado pelos custos com a moradia, alimentação e vestuário providenciados pelos donos dos serviços domésticos.

 

2.3.   Ponderações quanto ao exercício da atividade da população infanto-juvenil.

 

 O artigo 227 da Constituição Federal de 1988 rege que "é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, exploração, violência, crueldade e opressão."

A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e o Estatuto da Criança e do adolescente (ECA) prevêem a proteção à família, priorizando a criança e o adolescente.

O trabalho infantil é entendido como uma situação que compromete o desenvolvimento físico, emocional e social, uma vez que viola os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes. Para Carvalho (1997), além dos comprometimentos na área da saúde e defasagem na qualificação profissional, o trabalho infantil reflete também "na baixa auto-estima, exclusão cumulativa dos bens culturais e riqueza societária, o processo de subalternização quase que irreversível, a adultez precoce." (p. 109)

No que se refere ao comprometimento físico, emocional e social, um dos aspectos, que emergem das expressões dos usuários, é que no trabalho compartilhado com o grupo familiar não há diferenciação de carga horária e de intensidade própria à idade infanto-juvenil em relação às dos adultos. Assim, não há limite de horário, trabalha-se o quanto for necessário para realizar a atividade produtiva ."Eu e os outros filhos ficamos em casa para enfardar. "Quando trabalhavam até dez, onze da noite para enfardar, na manhã seguinte nem chamava para ir na escola, tinham muitas faltas."

Embora seja valorizada a participação dos filhos na atividade laboral, os adultos percebem nestes insatisfação quanto à necessidade de compor a renda familiar :"as crianças que trabalham são tristes."

As expressões ressaltadas nas falas revelam que o entendimento de situação de risco das crianças que trabalham é vista somente quanto aos perigos físicos que estas podem sofrer. Isto é, os adultos reconhecem o perigo físico que as atividades laborais envolvem. Nesse sentido, ocupam-se com a segurança das crianças, sob sua supervisão.

"me preocupo em deixar duas ou três crianças de um lado (na carroça) e um adulto do outro para carregar os fardos."

Os usuários consideram a ausência de supervisão de um adulto mais nociva ao desenvolvimento dos filhos do que a própria atividade desempenhada. É assinalado como supervisão, por exemplo, a presença de um dos pais ou irmão mais velho no momento e local de execução do trabalho. Segundo Jacoby (1999), "os adultos consideram ser melhor o filho trabalhar para não estar permeável à infração e para ajudar a família." (p 9)

"levo comigo (na carroça), não posso deixar em outro lugar."

A associação do trabalho aos valores morais positivos e o seu entendimento como espaço de aprendizagem e formação leva os adultos a entenderem-no como uma alternativa frente aos "perigos da rua":

"eu acho que a criança pode trabalhar. Eu fui criada trabalhando na lavoura, era a escrava da família. É melhor trabalhar do que ficar na rua aprendendo o que não se deve."

Sarti (1996) apontando esse entendimento refere que "do ponto de vista dos pais, o trabalho dos filhos tem também o sentido de uma proteção contra os riscos e os descaminhos do mundo da rua, onde se sofre influência de gente ruim e se anda em má companhia, suscitando os fantasmas da droga e da criminalidade." (p. 80)

Além dos benefícios morais, o trabalho dos filhos é associado pelos usuários a qualidades valorizadas pela família como autonomia e independência sócio-econômica. Através dele as crianças e os adolescentes demonstram ter iniciativa e podem satisfazer suas necessidades de consumo não supridas pelo grupo familiar que já tem comprometida a sua subsistência:

"às vezes as crianças querem e vão atrás das coisas."

"o W. tá sempre me pedindo dinheiro. Acostumou. Antes ele ganhava com o trabalho. Eu não posso dar. Acho que ele gosta de trabalhar."

Importante destacar o forte apelo ao consumo exercido especialmente sobre os mais jovens, muitas vezes incompatível com as possibilidades financeiras da família.

"desde os oito anos tinha meu ‘troquinho’."

Quanto à autonomia e independência social, aparecem as manifestações onde a população infanto-juvenil é quem toma as decisões quanto ao continuar ou não o seu vínculo escolar, com quem vai morar, sua rotina e seu destino. Esta consideração perde o seu significado quando associada a situações de maus tratos, violência ou trabalho degradante para crianças e adolescentes ou ainda quando a experiência na atividade produtiva trouxe marcas traumáticas para a vida do usuário. Pode-se ver na história de prostituição vivida na adolescência.

"com dezesseis anos saí da cidade pedindo carona (...) meu pai me mandava fazer coisas com os homens, levava o dinheiro para minha mãe."

O trabalho infantil é referido como medida alternativa à situação de rua de crianças e adolescentes e como lugar de proteção. Salientando esta perspectiva vê-se que "o espaço da rua é utilizado como busca da satisfação de necessidades, como consumo, diversão, moradia e sobrevivência" (Jacoby, 1999, p.5) e que trabalho "é considerado, neste estudo, como toda atividade que aponta contribuir para a sobrevivência." (Cheniaux, 1986, p.13)

Ou ainda expõe o entendimento de liberdade no sentido do trabalho infantil trazer autonomia e independência nas questões de subsistência econômica. Conforme aponta Silva (2002),

"(...) as crianças de mais idade, sobretudo quando começam a dispor de dinheiro, passam a obter privilégios nas suas relações domésticas – como por exemplo, o maior e melhor prato de comida lhes é reservado – tendem a conflitar com os pais ou com outros membros da família, numa demonstração de poder." (pg. 162)

 O contexto sócio-econômico é um dos fatores determinantes dessas situações: os adultos sozinhos não conseguem promover e manter a sobrevivência familiar. A mão-de-obra da população infanto-juvenil é necessária para a organização da subsistência familiar. Na concepção de Costa (1996), "o trabalho infantil no Brasil foi tratado como solução para a questão da pobreza e da fragilidade da família brasileira." (p. 5)

As seguintes falas expressam o trabalho infantil como uma alternativa encontrada para as necessidades de sobrevivência das famílias:

"não serve para eles, eles têm é que brincar. Eles ficam revoltados, vão porque a família precisa."

"aquele menino na TV que engraxava para sustentar a família pobre, foi triste."

"é difícil pobre não pôr os filhos para trabalhar."

 Outra pontuação emergente do material coletado é a noção de que o trabalho infantil pode ser entendido como uma opção da criança ou adolescente, responsabilizando-os por suas conseqüências como a evasão escolar e perda do vínculo familiar, entre outras. Nesta perspectiva parece haver uma desresponsabilização do adulto.

"às vezes as crianças querem e vão atrás das coisas."

"Pensa no futuro depois."

O trabalho das crianças e adolescentes priva-os de seus direitos básicos e os expõe a situações que limitam o desenvolvimento de suas potencialidades. Perpetua-se, assim, a situação de vulnerabilidade do núcleo familiar.

O estudo revela a dimensão contraditória do trabalho precoce: ora é apontado como situação de risco pelos próprios usuários, ora é referenciado como alternativa de sobrevivência dos mesmos.

  Considerações finais

 No estudo junto aos usuários da Assistência Social na Região Eixo-Baltazar e Nordeste de Porto Alegre, evidenciou-se a necessidade de compreensão do seu entendimento da categoria trabalho. Nesse sentido, refletiu-se a respeito das transformações do mundo laboral e as suas implicações no cotidiano destes sujeitos. Demarcando-se as características de sua inserção no espaço produtivo dos bens societários.

O trabalho é relacionado pelos usuários com valores morais positivos, constituindo-se como "formador do caráter" e que possibilita o "desenvolvimento pessoal". Tal noção repercute diretamente no trabalho realizado pelos filhos.

A trajetória de vida dos adultos é marcada pelo trabalho infantil, reeditada pelas crianças e adolescentes. Ou seja, esses reproduzem um processo vivido pelos pais e responsáveis.

A investigação revelou que os sujeitos envolvidos na pesquisa discriminam aspectos da atividade laboral precoce que são valorizados e outros que são percebidos como prejudiciais aos filhos.

Configura-se como uma alternativa de sobrevivência, fruto de necessidades vivenciadas pelo grupo familiar. Tal fato coloca em situação de risco o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, que têm violados seus direitos fundamentais garantidos em lei. Na visão dos usuários, os riscos a que seus filhos estão expostos referem-se aos perigos físicos presentes nas atividades e às repercussões negativas na vida escolar.

Parte das expressões coloca a responsabilidade da assunção de tais riscos a cargo das crianças e adolescentes, como se essas tivessem a condição de responsabilizarem-se pelos prejuízos no futuro. Porém, quando retomam suas histórias de vida, percebem que a situação do trabalho infantil foi um aspecto responsável pelas dificuldades vivenciadas na adultez.

Entender a concepção dos usuários a respeito do trabalho infantil é tarefa necessária para o estabelecimento de um diálogo com esses sujeitos. No trabalho cotidiano busca-se, nessa interlocução, ressignificar valores, concepções de mundo e, conseqüentemente, a forma como as famílias organizam sua vida societária. A construção desse texto constitui-se em um exercício nesse sentido, objetivando qualificar as intervenções junto à população usuária que visam, entre outros aspectos, a superação do trabalho das crianças e dos adolescentes.

 

Referências Bibliográficas

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1998.

ANTUNIASSI, Maria Helena Rocha. Trabalho infantil e escolarização no meio rural. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

BRASIL, CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DO, 1988.

BRASIL, ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, Lei Federal n. 8.069 de 1990.

BRASIL, LEI ORGÂNICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL, Lei Federal n. 8742 de 1993.

CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. Trabalho precoce: qualidade de vida, lazer, educação e cultura. Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, n. 55, nov, 1997.

CHENIAUX, Sônia. Trapaceados e trapaceiros: o menor de rua e o Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1986.

CIPOLA, Ari. O trabalho infantil. São Paulo: Publifolha, 2001. (Folha Explica).

COSTA, Antônio C. Gomes da. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o trabalho infantil no Brasil: trajetória, situação atual e perspectivas. Brasília, DF: OIT; São Paulo: LTr, 1994.

COSTA, Antônio C. Gomes da. O histórico do trabalho infantil no Brasil. Revista Retrato Social. Prefeitura Municipal de Porto Alegre, FESC – Fundação para Educação Social e Comunitária. Out., 1996.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

FONSECA, Laura Souza. Da exploração do trabalho infanto-juvenil ao trabalho educativo. Mimeo, 2000.

JACOBY, Márcia. A problemática do menino e menina na rua: a sociedade brasileira e o trabalho infantil. Revista Opinio. Canoas: Universidade Luterana do Brasil. n. 3, 1999.

KUENZER, Acácia Z. Desafios teórico-metodológicos da relação trabalho-educação e o papel social da escola. In: FRIGOTTO, Gaudêncio (org). Educação e crise do trabalho: perspectivas de final de século. Petrópolis: Vozes, 1998.

RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. Rio de Janeiro: Petrobrás-BR, Ministério da Cultura, USU Editora Universitária, Anais, 1997.

SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. Campinas: Editora Autores Associados, 1996.

SILVA, Maria Liduína de Oliveira e. Adultização da infância: o cotidiano das crianças trabalhadoras no Mercado Ver-o-Peso em Belém do Pará. Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, n. 69, mar., 2002.

TAYLOR, Steve J. e BOGDAN, Robert. Introducción a los métodos cualitativos de investigación – la búsqueda de significados. Buenos Aires: Paidós, 1996.