A CONTINUIDADE ENTRE CASA E RUA NO MUNDO DA CRIANÇA POBRE*
Cynthia Andersen Sarti[1]
Resumo: A proposta deste texto é discutir a continuidade
entre a “situação de rua” das crianças brasileiras e as características de seu
universo familiar, apontando a necessidade desta discussão diante do abismo de
linguagem existente entre as crianças pobres e os que buscam atendê-las através
de programas sociais. Freqüentemente bem intencionados, estes programas
tornam-se ineficazes devido, em grande parte, a equívocos e preconceitos
resultantes do desconhecimento do contexto sócio-cultural do qual se originam
estas crianças. Com base em pesquisa feita em um bairro na periferia de São
Paulo, o artigo trata deste contexto.
Palavras-chave: criança, pobres urbanos, políticas
sociais, universo cultural.
Summary:
This texts intends to discuss tre
continuity between what is called the “street situation” of Brazilian children
and the features of their family environment. This discussion is necessary as
there is a gap between poor children and those who assist them through social
programs. Often well-intentioned, these programs come to be inefficient due to
the misinterpretation of the social and cultural context from which poor
children come. This article deals with this context, based on field research in
a neighbohood in the periphery of
Key-words: children, urban poor, social policies, cultural
universe.
Imagens de fome, abandono, desnutrição,
mortalidade, doença, violência, prostituição, condições desesperadamente
dramáticas e precárias: assim é o discurso sobre a infância pobre no Brasil,
principalmente aquele veiculado pela imprensa. Indubitavelmente, a questão é da
maior gravidade e tudo isto acontece, embora nem sempre na dimensão que
aparece. O problema está no perigoso poder de persuasão do que resulta ser uma
"retórica catastrófica", como apontou
ROSEMBERG (1993), analisando o discurso sobre os meninos de rua no Brasil.
A questão política que se coloca é saber
onde nos leva um discurso que faz de um problema grave uma catástrofe
insolúvel, ao criar um quadro de dificuldades tais que parecem insuperáveis.
Nas palavras de FERREIRA (1995) faz-se "uma crônica do dano
anunciado", prevendo um futuro negativo, sem esperanças e sem saída, cuja
resposta se desloca para o tradicional assistencialismo caritativo que
caracteriza o atendimento a crianças "carentes", desobrigando o poder
público de iniciativas que signifiquem uma ação efetiva para solucionar os
sérios problemas da infância pobre no Brasil
Os princípios higienistas e/ou
assistencialistas nos quais historicamente se baseavam as instituições de
guarda do menor no Brasil já foram exaustivamente criticados, em nome de
programas educacionais cujo foco é a criança e seu pleno desenvolvimento
intelectual e afetivo. Essa discussão deu a virada definitiva nos anos 80, sob
o impacto do movimento de mulheres (ROSEMBERG, 1984), com a redefinição da
concepção de creche. Esta deixou de ser vista como "depósito de
crianças" cuja qualidade precária expressava a concepção que se tinha da
função e do público a que se dirigia, ou seja, resolver os problemas das mães
(pobres) que trabalhavam, mas passou a ser concebida como espaço educativo para
todas as crianças. A partir da Constituição Brasileira de 1988, a creche passou
a ser definida como "um direito da criança, um dever do Estado e uma opção
da família”[2].
Os novos programas voltados para a
criança esbarram, no entanto, em inúmeros problemas, que se revelam não tanto
no conteúdo de suas propostas, mas nas dificuldades em sua implantação[3]. Sem pretender absolutamente dar conta da complexidade
do problema e de todas - suas determinações, a proposta deste texto é apontar
algumas pistas para discutir a ineficácia - de programas que propõem soluções
alternativas de atendimento às crianças pobres (em particular aquelas em
situação de rua) num aspecto preciso, aquele do abismo de linguagem existente
entre estas crianças e os que buscam atendê-las, uma vez que os educadores
freqüentemente ignoram o universo sociocultural do qual se originam os
educandos, tendo em relação a ele uma série de idéias pré-concebidas[4]. Isto evidentemente pressupondo a necessidade
incontestável de atuar nesta área de atendimento infantil, tanto no âmbito
familiar (MORAES, 1994), quanto ao nível das políticas públicas [5].
Sobretudo nos programas governamentais
que têm as crianças na rua como alvo, não se leva em conta que, na sua vivência
na rua, estão presentes elementos da cultura da qual são originários,
re-elaborados para dar conta da nova situação e responder a seus códigos
específicos. Como aponta CAMARGO (1996), analisando os programas dirigidos às
crianças de rua:
"Todo esse circuito - que vai desde o desgarramento da moradia precária até uma prolongada presença nas ruas - envolve diferentes processos socioculturais, que deveriam ser mais amplamente considerados pelo poder público, por suas instituições de educação formal e informal (...)a ineficácia dos projetos que se propõem a tirar os(as) meninos(as) das ruas aponta para a necessidade de se enfocar mais o momento em que eles se desgarram de seus contextos sócio-culturais de origem e, aí, concentrar a energia que, na verdade, poderia mais prevenir do que dadas as evidências de que isto é muito difícil remediar ..." (p. 52)[6]
A
criança pobre na rua
Pesquisas sérias, como a realizada pela
Secretaria da Criança, Família e Bem-Estar Social do Estado de São Paulo, sob a
coordenação de Fúlvia Rosemberg
– só para mencionar o caso São Paulo - conseguiram desmentir cifras
irresponsáveis e fazer uma contagem dos meninos de rua na cidade de São Paulo,
que deu ao fenômeno sua dimensão real, evidenciando a possibilidade de uma intervenção
eficaz. A pesquisa desfaz mitos a respeito dos supostos atributos dos
meninos/as de rua, relacionados a droga, promiscuidade
e delitos, mostrando que a maior parte das crianças encontra-se fazendo alguma
forma de trabalho, pedindo esmola ou simplesmente perambulando (ROSEMBERG,
1994).
A pesquisa mostrou, ainda, que os
“meninos de rua” não vivem inteiramente desgarrados de suas famílias, e que
esta situação pode ser temporária, ou mesmo episódica, e não definitiva na vida
das crianças e adolescentes (São Paulo, 1993).
Estamos falando de crianças “na rua” que
aí vêem uma saída, diante da falta de outras alternativas
para os inúmeros problemas que enfrentam suas famílias, com as quais não deixam
necessariamente de ter vínculos. A rua, com seus atrativos de
"aventura", acaba por se tomar um lugar desejável,
relativamente ao que encontram em casa (CAMARGO,1996).
A questão é saber que tipo
de vínculos familiares têm essas crianças e como vivem a experiência da
rua, avesso da família, numa relação ao mesmo tempo contraditória e
complementar. Se a pobreza e o desamparo afetivo são apontados como as
principais causas que levam as crianças ao caminho da rua, essas questões
precisam ser tratadas com cuidado, para evitar falsos pressupostos.
Existe uma evidente e estreita relação
entre criança "na rua" e pobreza, mas não se pode reduzir, de maneira
simplista, uma coisa à outra, sob pena de ver apenas como resultado de privação
material processos culturais e psicossociais mais complexos [7]. Por outro lado, não se pode ignorar
que os problemas das crianças são agravados de maneira decisiva pela miséria.
Se a situação familiar das crianças de
rua é conflitiva, de modo muitas vezes insuportável,
o que resulta na sua "escolha" da rua, quando não na sua expulsão velada
ou deliberada, é necessário tomar cuidado para que uma situação de conflito não
seja mais uma forma de alimentar o imaginário social sobre a pobreza,
estigmatizando a família pobre como "promíscua",
"desestruturada" ou "desorganizada", incapaz de dar
continência a seus filhos. Ainda que as razões possam ser atribuídas a fatores
extremos, como a condição social de
pobreza destas famílias, permanece a desqualificação a priori da família pobre como destituída de quaisquer recursos
("coitados").
Para desfazer esses mitos, cumpre
acentuar que, na medida em que a situação de rua se relaciona com o universo sociocultural das
famílias pobres, onde as crianças nascem e são socializadas, existe uma
continuidade entre o que é o “menino de rua" e o menino na família pobre
que, sem negar a especificidade da "situação de rua” permite entendê-la
como parte de uma experiência mais ampla que lhe dá significado Grande parte
dos equívocos na comunicação entre estas crianças e seus
educadores está na desatenção para com o universo cultural das famílias
pobres [8].
O
lugar da criança na família pobre
Os filhos são importantes na família
pobre, não apenas por razões instrumentais, mas porque dão sentido ao projeto
familiar, indissociado da idéia de ter filhos. No projeto
de constituir uma família, está implícito o desejo de ter filhos (CARDOSO,
1984, SARTI, 1996), uma vez que família
sem filhos é árvore sem frutos . Filhos para dar continuidade à vida (frutos), sentido á vida (depois que você tem um filho, você luta por
algum objetivo) ou garantir cuidado na velhice...
Entre as relações familiares, é sem
dúvida a relação entre pais e filhos que estabelece o vínculo mais forte, onde
as obrigações morais atuam de forma mais significativa. Se, na perspectiva dos
pais, os filhos são essenciais para dar sentido a seu projeto de casamento,
"fertilizando-o", para não serem uma "árvore seca" e outras
tantas metáforas que exemplificam a analogia da família com a natureza, dos
filhos é esperada uma retribuição, que existe enquanto compromisso moral.
Dos filhos adultos espera-se
retribuições; das crianças espera-se que obedeçam simplesmente. Há uma forte
hierarquia entre pais e filhos e a educação é concebida como o exercício
unilateral da autoridade. As crianças gozam, no entanto, de certas regalias.
Comem à mesa e, junto com os trabalhadores, têm prioridade na distribuição da
comida. O valor dado ao filho na família aparece na prodigalidade com que comemoram seu primeiro aniversário [9]. As crianças vão
perdendo suas regalias, conforme estejam em condições de repartir as obrigações
familiares, assemelhando-se ao estatuto dos outros familiares.
As crianças, desde cedo, participam das
obrigações familiares, "pequenos trabalhos", ou ocupando-se de
atividades domésticas, tomando difícil, entre os pobres, delimitar a
"infância" de que fala ARIÈS (1978), como um mundo separado dos
adultos. A regra é que com 6, 7 anos, as
crianças já tenham atribuições dentro da família (DAUSTER, 1992). Seus inúmeros
jogos e brincadeiras alternam-se com as tarefas que lhes são designadas, como
ir até a uma venda, dar recados, buscar auxílio.
As crianças brincam enquanto fazem o que é seu “trabalho" na família, uma vez
que o brincar é próprio da maneira como a criança age, representa e se situa no
mundo [10]. Mesmo tendo atribuições, inteiramente alheias ao universo das
crianças de classe média-alta, a criança pobre não
deixa de ter um modo de se situar no mundo que lhe é próprio, a partir do qual
ela traduz sua experiência precoce de trabalho, que não pode
ser reduzida à mera "exploração da força de trabalho infantil".
Os filhos dão à mulher e ao homem um
estatuto de maioridade, devendo tomá-los responsáveis pelo
próprio destino, o que implica idealmente em se desvincular da família
de origem e constituir novo núcleo familiar, o que constitui; o projeto de
casamento. O filho pode, então, tornar-se um instrumento para esta
desvinculação. 0 sentido de responsabilidade
implícito em ter filhos leva as mulheres a utilizarem deliberadamente a
gravidez como um instrumento para a independência de sua família de origem e/ou
diante de um noivo hesitante em casar, para forçá-lo a assumir a responsabilidade.
Na perspectiva de que o filho é uma responsabilidade dos pais, quando o
homem não assume a sua parte, cabe à mulher assumi-la sozinha. A
"aceitação" da mãe solteira envolve nuances importantes. Ela é, em
primeiro lugar, vítima de um safado,
que não assume as conseqüências dos seus atos, um homem que não é digno de respeito, acusação que comporta uma
ambigüidade, na medida em que ninguém
pode obrigar ninguém a casar.
A criança é normalmente incorporada ao
núcleo familiar da mãe. A mulher errou,
mas seu maior foi confiar no safado. Se errou, pode lhe ser dada a chance de reparação. Ter o
filho e conseguir criá-lo transforma-se, então, na prova de um valor associado
à coragem de quem enfrenta as conseqüências dos seus atos (sou muito para criar meu filho), um código de honra feminino.
As
relações através das crianças
Para entender o lugar das crianças nas
famílias pobres é necessário diferenciar as famílias que cumpriram as etapas do
seu desenvolvimento sem rupturas, onde os filhos tendem a se manter no mesmo
núcleo familiar, e as que se desfizeram neste caminho, alterando a ordenação da
relação conjugal e a relação entre pais
e filhos.
Nos casos de instabilidade familiar, por
separações e mortes, aliada à instabilidade econômica estrutural e ao fato de
não existirem garantias de instituições públicas que substituam de forma eficaz
as funções familiares, as crianças passam a não ser uma responsabilidade
exclusiva da mãe ou do pai, mas de toda a rede de sociabilidade em que a
família está envolvida. FONSECA (1995) argumenta que há uma coletivização das
responsabilidades pelas crianças dentro do grupo de parentesco, caracterizando
uma “circulação de crianças". Esta prática popular inscreve-se dentro da
lógica de obrigações morais que caracteriza a rede de parentesco entre os
pobres (SARTI, 1996). Constitui, segundo FONSECA (1995), um divisor de águas
entre indivíduos em ascensão que adotam valores de classe média e os que, mesmo
tendo uma existência mais confortável, "permanecem ligados à cultura
popular".
Em novas uniões conjugais, quando há
filhos de uniões anteriores, os direitos e deveres entre pais e filhos no grupo
doméstico ficam abalados, na medida em que os filhos não são do mesmo pai e da
mesma mãe, levando a ampliar esta rede para fora deste núcleo. Nesta situação
os conflitos entre os filhos e o novo cônjuge podem levar a mulher a optar por
"dar" seus filhos, ou algum deles, temporariamente para ser cuidado.
A criança será confiada a outra mulher, normalmente da rede consangüínea da mãe. Nas
famílias desfeitas, por morte ou separação, no momento de expansão e criação
dos filhos, ocorrem rearranjos no sentido de garantir o amparo financeiro e o
cuidado das crianças. Embora se conte fundamentalmente com a rede consangüínea,
as crianças podem ser recebidas por não-parentes, dentro do grupo te referência
dos pais, ou serem enviadas, ainda que temporariamente, para uma instituição de
guarda, como a FEBEM. Como demonstrou FONSECA (1986), é importante ressaltar
que este não é um caminho sem volta, mas uma das possibilidades, a menos
desejável, dentro desta circulação das crianças.
Nos casos de separação, pode haver
preferência da mãe pelo novo companheiro, prevalecendo o laço conjugal,
circunstancialmente mais forte que o vínculo mãe-filhos.
Uma nova união tem implicações na relação da mãe com os filhos da união
anterior que expressam o conflito entre conjugalidade
e maternidade. Dadas as dificuldades que enfrenta uma mulher pobre para criar
seus filhos, a tendência será lançar mão de soluções temporárias para contornar
a situação, entre as quais, não está excluída a possibilidade de que os filhos
fiquem com o pai, quando este se mantém no circuito de relações da criança.
A instabilidade familiar, embora seja um
fator importante, não esgota o significado da circulação de crianças, que pode
acontecer mesmo em famílias que não se romperam. Fonseca mostra como a mãe que
dá a criança, pode exigir retribuição, considerando que ao darem seus filhos
"sacrificaram suas prerrogativas maternas em beneficio destes": deram aos pais adotivos uma criança. A
criança aparece como dádiva, o que estabelece a possibilidade de reivindicar
retribuição. Não constituindo uma adoção, ou seja, a transferência total e
permanente dos direitos sobre a criança, a circulação de crianças é uma forma
de transferência parcial e temporária, que abre espaço
para relações de obrigação entre os pais biológicos e adotivos. Instaura-se um
jogo que envolve manipulação por parte da mãe biológica que deu seu filho, como sacrifício materno.
Ao mesmo tempo, a mãe adotiva tem a expectativa de alguma retribuição (que pode
ser um pagamento) pelos cuidados prestados (FONSECA, 1986 e 1995).
A adoção representa a quebra deste jogo,
pela transferência total dos direitos e deveres sobre a criança adotada. Dá-se
sob o signo da lei, enquanto a circulação de crianças acontece no registro das
obrigações morais que caracterizam as práticas populares (FONSECA, 1986,
CARDOSO, 1984), reiterando o primado dos costumes sobre a lei para os pobres.
A circulação de crianças, como padrão
legítimo de relação com os filhos, pode ser interpretada como um padrão
cultural que permite uma solução conciliatória entre o valor da maternidade e
as dificuldades concretas de criar os filhos, levando as mães a não se desligarem dos filhos, mas manterem o vínculo
através de uma circulação temporária. Assim, mantém-se
os vínculos de "sangue", junto aos de "criação", ambos
definindo os laços de parentesco. Através das crianças, reafirmam-se, ao mesmo
tempo, os vínculos com seu grupo de referência.
A
mãe e o pai: nas horas boas e ruins...
A prática de adoções informais e
temporárias acaba relativizando as noções de pai e
mãe, o que implica numa elasticidade no uso dessas categorias. As crianças
chamam de "pai" e "mãe" aqueles que cuidam deles. A pessoa
que cuida sente-se no direito legítimo de ser assim chamada e reivindica esta
nomeação. Observa-se que avô, com quem moram os filhos de mães solteiras, é
invariavelmente o pai, assim como o marido da mãe pode também assim ser
chamado, sobretudo quando o genitor (pai biológico) não tem mais contato com os
filhos.
As categorias "pai" e
"mãe" desvinculando-se da origem biológica, reforçam os vínculos de
"criação". Diante do fato cultural de que o cuidado da criança é
preferencialmente confiado à mãe e à sua rede de sociabilidade, toma-se
evidentemente mais fácil desvincular a categoria "pai" de sua origem
biológica de "sangue" Mesmo assim, embora o genitor (pai biológico)
não crie a criança e, por isso, não mereça
o afeto e a designação de pai, por não
estar junto, nas horas boas e ruins, não se desfaz a imagem idealizada de
um pai de "sangue".
No caso da mãe, o vínculo biológico não perde sua força simbólica. Chamar
várias mulheres de mãe não exclui a
idealização do laço biológico mãe-filho. O trabalho de FONSECA (1995) mostra
como mesmo nos casos em que a criança, é cuidada por outras que não sua mãe biológica,
esta é reconhecida e reivindica o status de verdadeira
mãe. “Mãe" também é quem criou, mas a “verdadeira mãe" é uma só.
A coexistência das categorias de
"sangue” e de "criação", como parte do
sistema de parentesco dos pobres, permite a manipulação, sobretudo entre as
mulheres, de demandas sobre a criança, ou usando-a como instrumento de outras
demandas. Cada parte reivindica de acordo com os direitos que sua posição - de mãe que criou o de verdadeira mãe - lhe confere, dando expressão a inúmeros conflitos
e rivalidades.
São particularmente marcantes os casos de
avós que criam os filhos de suas filhas solteiras, onde o "sangue" se
sobrepõe à "criação” conferindo à avó um poder de manipulação singular,
porque se inscreve na relação hierárquica entre mãe e filha. A pertinência ao
mesmo grupo de "sangue", pela linhagem, e seu estatuto de poder sobre
a filha levam a avó a "apropriar-se" da
criança que a chama de mãe, enquanto a mãe biológica é chamada pelo nome
próprio, sendo privada de seu lugar de mãe.
Nos casos observados a filha acaba saindo de casa e deixando o filho porque não tenho condições de criá-lo –
impossibilidade criada pela própria
família -, o configura uma maneira indireta de "expulsar de casa" a
mãe solteira, opção sempre negada no discurso.
Embora a rede de parentesco possa ser
caracterizada pela indiferenciação entre parentes de "sangue" e de "criação"
e o tratamento dado aos “filhos de criação" - crianças "dadas"
para criar - tende também a ser indiferenciado, isso não quer dizer que esta
distinção não seja manipulada nos conflitos, fazendo com que nem sempre as
crianças que não fazem parte do núcleo original sejam tratadas da mesma
maneira. Isto pode tanto acontecer em relação aos "filhos de criação”
assim como em relação aos filhos de uniões anteriores do cônjuge, mostrando a
força simbólica dos vínculos de "sangue".
Quanto às obrigações morais dos filhos
com relações aos pais, os pais que "criam" são merecedores de
profunda retribuição, sendo um sinal de ingratidão o não reconhecimento desta
contrapartida.
Dentro das possibilidades com as quais
conta uma mulher que engravida e que, na sua concepção não tem condições de criá-los está o aborto, nem sempre moralmente
aceito, ainda que se justifique por necessidade. Em função desta interdição moral,
dar os filhos é uma alternativa
aceitável dentro de seus códigos morais.
As adoções temporárias, ou a circulação
de crianças, criam uma forma de "apego", uma afetividade distinta das
relações estáveis e duradouras O sentimento de uma mãe ao "dar seu filho”
, como uma questão de ordem sociológica, diz respeito a um padrão cultural onde
as crianças fazem parte da rede de relações que marca o mundo dos pobres,
constituindo "dádivas", como observou FONSECA (1995). Assim, criar ou
“dar” uma criança não é apenas uma questão de possibilidades materiais, mas se
inscreve dentro do padrão de relações que os pobres desenvolvem entre si,
caracterizadas por um dar, receber e retribuir contínuos (SARTI, 1996).
O
trabalho das crianças
Para entender a continuidade entre casa e
rua no mundo dos pobres, restam alguns comentários sobre o trabalho das
crianças. A associação do trabalho com o mundo da ordem, tomando-o fonte de superioridade moral, leva à valorização também do
trabalho dos filhos. Como o do homem e da mulher, o trabalho dos filhos faz
parte do compromisso moral entre as pessoas na família. DAUSTER (1992) analisou
este compromisso como parte de um sistema relacional de ajuda e troca dentro da
família: aos pais cabe o papel de dar casa e comida, o que implica retribuições
por parte dos filhos. Seu trabalho ou sua ajuda
são, assim, uma forma de retribuição.
Do ponto de vista dos pais, o trabalho
dos filhos, quando pode se dar em termos formalizados, tem o sentido
precisamente de uma proteção contra os riscos e os descaminhos do mundo da rua,
onde se sofre a influência de gente ruim
e se anda em má companhia,
despertando os fantasmas da droga e da criminalidade (DAUSTER, 1992; MADEIRA, 1993;
TELLES, 1992).
Pela mesma lógica, quando as mães
trabalham fora de casa, a creche é vista positivamente, mas enquanto um mal
menor, porque garante que as crianças pequenas não estejam largados na rua, ainda que o
cuidado profissional nunca seja igual ao
de mãe e o ideal seja estar em casa. Quando, entretanto, a "rua"
refere-se ao espaço "familiarizado" do bairro, muda sua conotação.
Se, por oposição à casa, a rua é genericamente o
espaço da desordem, ela é também o espaço do trabalho. O ideal, para evitar os
"perigos", os "descaminhos" da rua, é que as atividades
infantis que rendem dinheiro para a família, os "pequenos trabalhos",
sejam feitos nas imediações do bairro. Como isto nem sempre é possível, as
crianças e os jovens afastam-se da localidade onde moram para trabalhar,
incorporando-se, assim, à "situação de rua" (São Paulo, 1993;
ROSEMBERG, 1994),
É importante, neste sentido, a distinção
entre o trabalho infantil (até 14 anos) e o trabalho do adolescente (15-17
anos), ambos agregados na categoria trabalho do "menor", como chama a
atenção MADEIRA (1993), sobretudo diante do fato de que a grande maioria dos
"menores trabalhadores" tem entre 15 e 17 anos de idade. Este tipo de
agregação tende a "superestimar o trabalho propriamente infantil"
(ib. pg. 79).
O trabalho das crianças é, em geral,
feito nas redondezas da casa, relacionado com as atividades familiares, sem
horário fixo, não apresentando incompatibilidades com a freqüência à escola,
porque é feito fora do horário escolar, não se opondo necessariamente à escola,
mas devendo complementá-la (DAUSTER, 1992) [11].
No que se refere à possibilidade de
compatibilizar trabalho e escola, para o jovem, MADEIRA (1993), em argumentação
semelhante à deste texto, destaca a complexidade da questão que deve ser
considerada não pela perspectiva reducionista de "denúncia do trabalho
infantil no contexto da exploração social do trabalho", mas pelas
dificuldades inerentes ao próprio sistema escolar inadequado para sua
clientela, que atende ao aluno "ideal" e não ao aluno
"real".
Ter os filhos na escola é também uma
forma de manter as crianças fora da "rua", evitando as más influências, ainda que os pais
reconheçam que, na escola, embora exista um controle, por parte dos professores
e funcionários, há também o fisco destas influências negativas, sobretudo na hora da saída.
O trabalho do jovem tem diferenciações em
relação ao da criança. É mais formalizado (MADEIRA, 1993), já que entra num
outro circuito das obrigações familiares, mais próximo
ao dos adultos, correspondendo a um papel compartilhado pela mãe, no sentido de
ser "secundário” em relação ao do provedor principal, e parte fundamental
das obrigações familiares.
Do ponto de vista do jovem, muitas são as
razões pelas quais a entrada no mercado de trabalho - que pode ou não ter como
conseqüência o abandono dos estudos - pode ser formulada como uma escolha.
Trabalhar, mesmo sendo pane de sua obrigação de filho/a, não deixa de
significar a afirmação de sua individualidade, ao abrir a possibilidade de conquistar
um espaço de liberdade (MADEIRA, 1993), na tentativa de ter acesso a bens de
consumo e a padrões de comportamento que definem as marcas do jovem urbano:
tênis, jeans, jaquetas, som, etc...
O trabalho infantil nas famílias pobres corresponde,
então, ao padrão cultural no qual são socializadas as crianças - parte do próprio
processo de sua socialização como pobres urbanos - fazendo com que a
"rua" faça parte de suas vidas desde muito cedo, porque é onde
começam suas atividades de trabalho.
O problema passa a ser a extensão das
fronteiras que vão sendo ultrapassadas neste espaço que ocupam desde pequenos -
a rua - e a multiplicidade de determinações que os vão afastando do mundo
familiar e os fazem ir aos poucos ganhando o espaço das ruas, identificando-se
cada vez com mais intensidade com seus códigos de sociabilidade.
Fronteiras
imprecisas entre casa e rua
A prática cultural de socialização das
crianças dentro de toda a rede de sociabilidade em que a família está
envolvida, não sendo responsabilidade exclusiva do pai e da mãe biológicos,
relaciona-se ao fato de que a família pobre não se constitui como um núcleo, mas como uma rede,
em que, a partir de obrigações de caráter moral,criam-se ramificações que
enredam as relações de parentesco como um todo, estendendo-se também às
relações de vizinhança.
O cuidado das crianças tem, assim, um , caráter coletivo, sendo coletivizada também a
responsabilidade sobre elas. O fato de, ao longo de suas vidas, as
crianças poderem circular em diferentes unidades domésticas ou vivenciar
experiências não-domésticas cria, por definição, uma experiência particular de
fronteiras entre o mundo da casa e da rua, tomando mais flexíveis os limites e
aproximando estes universos.
Estes limites
imprecisos entre o espaço da rua e o espaço da casa torna-os não necessariamente contraditórios,
mas complementares, parte de uma mesma lógica cultural. Pela própria
configuração familiar entre os pobres, portanto, a “situação de rua", não
envolve necessariamente uma ruptura com as relações familiares.
Longe de serem totalmente desgarrados, é
deste contexto sócio-familiar, descrito em alguns de seus aspectos, que se originam os
"meninos de rua”, o que, voltando ao problema dos abismos de comunicação
entre as crianças pobres e os programas educativos que lhes são dirigidos, não
pode deixar de ser levado em conta, quando se pensa em resgatar um sentido para
a existência destas crianças, que se constrói pela elaboração de sua própria
experiência de vida.
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rua na cidade de São Paulo. São Paulo, SCFBES, 1993.
SARTI, C. A. A família como espelho. Um
estudo sobre a moral dos pobres. Campinas, Autores Associados, 1996.
WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade.
Rio de Janeiro, Imago, 1975.
TELLES,
V. da S. Cidadania inexistente: incivilidade e pobreza. Um estudo sobre
trabalho e família na Grande São Paulo. São Paulo, 1992.[Tese
Doutorado- FFLCH/USP.
Notas
[1] Trabalho originalmente apresentado na XIX Reunião Anual
da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Ciências Sociais (ANPOCS)
no Grupo de Trabalho "Família e Sociedade", Caxambu (MG), 17-21 de
outubro de 1995.
[2] Antropóloga, Doutora em Antropologia Social pela
Universidade de São Paulo, Professora em Saúde Pública, no Departamento de
Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo/ Escola Paulista de Medicina.
End. : R. Napoleão de Barros, 754 - São Paulo - SP -04024-002
- Fone: 549-7522.
[3] Há uma significativa literatura com base nesta concepção
anual de creche, enfatizando-a enquanto instituição
educativa, complementar à família. Ver ROSEMBERG et al. (1985), HADDAD
(1991), OLIVEIRA et al. (1993), entre outros.
[4] Basta pensar, por exemplo, nos CAICs
(Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente), antigos CIEPs, idealizados por Darci Ribeiro, então vice-governador
do Estado do Rio de Janeiro, na gestão de Leonel Brizola. Independente da
avaliação política de seus idealizadores, há que se reconhecer o mérito e a
significância do projeto, considerado pela UNESCO como "padrão para a
humanidade" e salientar, por outro lado, o descaso das autoridades
educacionais com relação a ele.
[5] Estas reflexões foram sugeridas por minha experiência de
pesquisa com famílias pobres na periferia de São Paulo (SARTl,
1996), além das muitas sugestões vindas da bibliografia sobre criança pobre no
Brasil, mencionada ao longo do texto.
[6] Os dados são, em si, eloqüentes: segundo pesquisa feita
pelo IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 64,6% das
crianças brasileiras são pobres, definidas como aquelas que moram em casa onde
o chefe de família ganha até dois salários mínimos. Folha de São Paulo,
26/7/95.
[7] Ver CAMARGO (1996) para uma discussão dos problemas
envolvidos na implementação de políticas públicas dirigirias
às crianças de rua considerando projetos levados a efeito por órgãos públicos
em São Paulo.
[8] Pesquisas recentes tem demonstrado
"situações de rua" não necessariamente vinculadas à pobreza, mas a
condições de trabalho de adolescentes o que contribui para demonstrar a
complexidade de uma situação que não pode ser reduzida ao problema da pobreza.
Ver FREITAS (1996) e OLIVEIRA (1996).
[9] A análise deste universo cultural foi desenvolvida no
trabalho mencionado anteriormente (SARTI, 1996).
[10] Esta comemoração parece-me também associada ao sucesso
da sobrevivência da criança, numa população ainda marcada pela ocorrência de
mortes prematuras.
[11] É sabido que o significado do brincar tem sido
amplamente analisado pela psicanálise. Dentro da idéia de que não existe um
modelo de brincar, mas que brincar constitui-se como uma experiência psíquica
e cultural, remeto à observação de WINNICOTT.(1975): "A característica
essencial do que desejo comunicar refere-se ao brincar como uma experiência,
sempre uma experiência criativa, uma experiência de continuidade espaço-tempo,
uma forma básica de viver. " (p. 75)
[12] Assim. Dauster observou, em
seu estudo feito no Rio de Janeiro, que a criança das camadas populares se auto-define como "pobre", "trabalhadora"
e "estudante" (DAUSTER,1992 ).
Como citar este artigo:
SARTI, C. A. A Continuidade entre Casa e
Rua no Mundo da Criança, Rev. Bras. Cresc. Desenv.
Hum., São Paulo, 5 (1/2), 1995.