PROTEÇÃO
INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS
1. Generalidades
1.1. Os direitos de crianças e adolescentes na
América Latina
A
regra, na América Latina, é a inobservância dos direitos fundamentais de
crianças e adolescentes.
Vida,
saúde, alimentação, educação, esporte, lazer, profissionalização, cultura,
dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitárias de crianças
e jovens freqüentemente são vulnerados pelo Estado que não realiza políticas
sociais eficazes; pela sociedade e pela família que teimam em não os reconhecer
como sujeitos de direito, portadores da condição peculiar de pessoas em
desenvolvimento.
Em
que pese a trágica situação, o fato que na América Latina começa a surgir uma
nova consciência a respeito da necessidade de se estabelecer novos mecanismos
jurídicos capazes de garantir os direitos fundamentais e sociais de crianças e
adolescentes.
No
panorama internacional a causa dos direitos humanos de crianças e adolescentes
ganha novos e seguros espaços.
Surgem
projetos e leis baseadas na Doutrina das Nações Unidas para a Proteção Integral
da Criança.
A
ratificação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, pela quase
totalidade dos países membros, vem influindo na elaboração de novas leis
garantistas e responsabilizantes, onde crianças deixam de ser objeto de
proteção e passam a ser encaradas como verdadeiros sujeitos de direito.
A
Convenção, pelo caráter cogente e coercitivo, inclusive pelos mecanismos de
controle internacional, vem obrigando os países signatários a alterarem
práticas e legislações, adequando-as ao novo modelo.
O
importante tratado, depois de lembrar os princípios básicos das Nações Unidas e
as disposições específicas de tratados e declarações de direitos humanos,
reafirmando a necessidade de cuidado e proteção especial que devem gozar as
crianças, trata dos direitos fundamentais; das formas de eficácia e das medidas
de controle do seu cumprimento, bem como a sua vigência no tempo e no espaço.
Do
resumo não oficial das principais disposições, publicado pelo Unicef:
Definição de Criança para o
efeito da Convenção:
“Todas
as pessoas com idade inferior a dezoito anos, a não ser quando por lei do seu
país a maioridade seja determinada com idade mais baixa”.
Não Discriminação:
“O
princípio de que todos os direitos se aplicam igualmente a todas as crianças
sem exceção, e a obrigação do Estado em proteger as crianças de qualquer forma
de discriminação. O Estado não deve violar qualquer direito e tomará medidas
positivas para promovê-los”.
Os Melhores Interesses da
Criança:
“Todos
os atos relacionados à criança deverão considerar os seus melhores interesses.
O Estado deverá prover proteção e cuidados adequados quando pais ou
responsáveis não o fizerem”.
Implementação dos Direitos:
“A
obrigação dos países em transformar os direitos da Convenção em realidade”.
Diretrizes Paternas e a
Capacidade de Evolução da Criança:
“É
dever do Estado respeitar os direitos e responsabilidades dos pais e familiares
para proverem orientação apropriada à crescente capacidade de evolução da
criança”.
Sobrevivência e
Desenvolvimento:
“O
direito inerente à vida, e a obrigação do Estado em assegurar a sobrevivência e
o Desenvolvimento da criança”.
Nome e Nacionalidade:
“O
direito a um nome a partir do nascimento e o direito de ter uma nacionalidade”.
Prevenção da Identidade:
“A
obrigação do Estado em proteger e, se necessário, restabelecer os aspectos
básicos da identidade da criança (nome, nacionalidade e laços familiares)”.
Separação dos Pais:
“O
direito da criança de viver com seus pais a não ser quando incompatível com
seus melhores interesses: o direito de manter contato com ambos os pais caso
seja separada de um ou de ambos, as obrigações do Estado nos casos em que tal
separação resulta de ação do Estado”.
Reunificação Familiar:
“O
direito da criança e de seus pais de deixarem qualquer país e de entrarem em
seu país de origem para a reunificação ou para manter o relacionamento
pai/mãe-criança”.
Transferência Ilícita e
Não-Retorno:
“A
obrigação do Estado de prevenir e solucionar seqüestros ou retenções de
crianças no estrangeiro por um dos pais ou por terceiros”.
A opinião da Criança:
“O
direito da criança de expressar uma opinião e de ter esta opinião levada em
consideração em qualquer assunto ou procedimento que afete a criança”.
Liberdade de Expressão:
“O
direito da criança de obter e divulgar informação, e de expressar sua opinião,
a não ser quando isto viole o direito dos outros”.
Liberdade de Pensamento,
Consciência e Religião:
“O
direito da criança à liberdade de pensamento, consciência e religião, sujeito
às diretrizes paternas e à legislação nacional”.
Liberdade de Associação:
“O
direito da criança de se encontrar com outros, participar ou fundar
associações, a não ser que isto viole os direitos de outros”.
Proteção da Privacidade:
“O
direito à proteção contra a interferência à privacidade, na família, no lar e
na correspondência, e contra a difamação”.
Acesso a Informação Apropriada:
“O
papel da mídia em disseminar informações às crianças que sejam consistentes com
o bem-estar moral, conhecimento e compreensão entre os povos, respeitando o
ambiente cultural da criança. O Estado deverá adotar medidas que encorajem
estes procedimentos e que protejam as crianças de materiais nocivos”.
Responsabilidades dos Pais:
“O
princípio de que os pais têm ambos responsabilidade primária na criação de seus
filhos, e que o Estado deverá apoiá-los nesta tarefa”.
Proteção contra Abuso e
Negligência:
“A
obrigação do Estado de proteger as crianças de todo tipo de maus-tratos
perpetrados pelos pais, parentes ou outros responsáveis pelo seu bem-estar, e a
obrigação de apoiar programas e tratamentos preventivos para estas situações”.
Proteção das Crianças sem
Família:
“A
obrigação do Estado de prover proteção especial às crianças desprovidas do seu
ambiente familiar e assegurar ambiente familiar alternativo apropriado ou
colocação em instituição apropriada, sempre considerando o ambiente cultural da
criança”.
Adoção:
“Em
países onde a adoção é reconhecida e/ou permitida, só acontecerá quando no
melhor interesse da criança, com todas as garantias necessárias à criança e com
autorização das autoridades competentes”.
Crianças refugiadas:
“Proteção
especial será dada às crianças refugiadas ou buscando status de refugiada, e
terá obrigação e assistência”.
Crianças Deficientes:
“O
direito das crianças deficientes a cuidados, educação e treinamento especiais
para ajudá-las a conseguir a maior independência possível e levar uma vida
plena e ativa na sociedade”.
Saúde e Serviços Relacionados:
“O
direito ao mais alto nível de saúde possível e acesso aos serviços médicos e
de saúde, com ênfase especial na
medicina preventiva, educação sobre saúde pública e redução da mortalidade
infantil. A obrigação do Estado de trabalhar para a abolição das práticas
tradicionais nocivas. Ênfase é colocada na necessidade de cooperação internacional
para assegurar este direito”.
Reavaliação Periódica das
Crianças Colocadas em famílias Temporárias ou Permanentes ou em Instituições:
“O
direito das crianças colocadas, pelo Estado, em famílias temporárias ou
permanentes, ou em instituições em virtude de melhores condições de cuidados,
proteção ou tratamento, de terem esta colocação reavaliada regularmente”.
Previdência Social:
“O
direito das crianças de se beneficiarem da previdência social”.
Padrão de Vida:
“O
direito das crianças de se beneficiarem de um padrão de vida adequado, a
responsabilidade primária dos pais em prover este padrão e o dever do Estado de
assegurar que esta responsabilidade seja cumprível e cumprida”.
Educação:
“O
direito da criança à educação, e o dever do Estado de assegurar que ao menos a
educação primária seja gratuita e compulsória. A administração da disciplina
escolar deverá refletir a dignidade humana da criança. Ênfase é colocada na
necessidade da cooperação internacional para assegurar este direito”.
Metas da Educação:
“O
reconhecimento por parte do Estado de que a educação deverá ser dirigida ao
desenvolvimento da personalidade e dos talentos da criança, preparando a
criança para uma vida adulta ativa, fomentando o respeito pelos direitos
humanos básicos e pelos valores culturais e nacionais da própria criança assim
como dos outros”.
Crianças de Populações
Minoritárias ou Indígenas:
“O
direito de crianças de comunidades minoritárias e de populações indígenas de
viver dentro de sua própria cultura e de praticar sua própria religião e
língua”
Lazer, Recreação e Atividades
Culturais:
“O
direito da criança ao lazer, recreação e participação em atividades culturais e
artísticas”.
Trabalho da Criança:
“A
obrigação do Estado de proteger crianças do trabalho que constitui uma ameaça à
sua saúde, educação ou desenvolvimento, de estabelecer idades mínimas para o
emprego e de regulamentar as condições de trabalho”.
Abuso de Drogas:
“O
direito da criança à proteção contra o uso de narcóticos e psicotrópicos, bem
como contra o seu envolvimento na produção ou distribuição dos mesmos”.
Exploração Sexual:
“O
direito da criança à proteção contra a exploração sexual e o abuso, incluído a
prostituição e o envolvimento em pornografia”.
Venda, Tráfico e Seqüestro:
“A
obrigação do Estado de tomar todas as providências para evitar a venda, tráfico
e seqüestro de crianças”.
Outras Formas de Exploração:
“O
direito da criança à proteção contra todas as outras formas de exploração não
cobertas pelos artigos 32, 33, 34 e 35”.
Tortura e Privação da
Liberdade:
“A
proibição da tortura, tratamento ou punição cruel, pena de morte, prisão
perpétua, prisão ilegal ou privação da liberdade. Os princípios do tratamento
apropriado, separação dos detentos adultos, contato com a família e o acesso à
assistência legal ou outro tipo de assistência”.
Conflitos Armados:
“A
obrigação do Estado de respeitar e de fazer respeitar a lei humanitária com
respeito às crianças. O princípio de que nenhuma criança com menos de quinze
anos tome parte, diretamente, em hostilidades ou seja convocada para as forças
armadas, e de que as crianças afetadas pelo conflito armado recebam a proteção
e cuidados necessários”.
Reabilitação:
“A
obrigação do Estado de assegurar que as crianças vítimas de conflitos armados,
torturas, negligência, maus-tratos ou exploração recebam tratamento apropriado
a sua recuperação e reintegração social”.
Administração da Justiça de
Menores:
“O
direito da criança que suposta ou reconhecidamente infringiu a lei, ao respeito
por seus direitos humanos e, em particular, de beneficiar-se de todos os
aspectos de um adequado processo legal, incluindo assistência legal ou de outra
natureza ao preparar e apresentar sua defesa. O princípio de que o recurso de
procedimento legal e colocação em instituições deverá ser evitado sempre que
possível e apropriado”.
Respeito por padrões
estabelecidos:
“O
princípio de que se houver um padrão na legislação nacional ou em outro
instrumento internacional aplicável, mais alto que os estabelecidos nesta
Convenção, o padrão mais alto será utilizado. A Convenção reafirmou o contido
na Declaração de Direitos Humanos de 1948, cujo artigo 25 deixou explícito “que
a infância tem direito a cuidados e assistência especiais”.
A
Declaração Americana, no artigo VII, repetiu “toda criança tem direito à
proteção, cuidado e ajudas especiais”.
O
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembléia
Geral da ONU de 1966, no artigo 24, trouxe a seguinte garantia:
“Toda
criança tem direito, sem discriminação alguma por motivos de raça, cor, sexo,
idioma, origem nacional ou social, posição econômica ou nascimento, a medidas
de proteção que sua condição de menor requer, tanto por parte da família como
da sociedade e do Estado”.
Do
“Pacto de São José”, artigo 19, (Convenção Americana de Direitos Humanos):
“Toda
a criança tem direito às medidas de proteção que sua condição de criança requer
por parte de sua família, da sociedade e do Estado”.
Essa
proteção especial surge como um plus nos direitos de crianças e
adolescentes, sendo, hoje, pacífico entre os especialistas, que crianças e
adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais e sociais e, além desses
direitos, a uma proteção especial.
Alguns
direitos no campo do sistema de justiça aparecem como próprios das crianças
(pessoas menores de 18 anos). Por exemplo, o direito a não ser submetido à pena
de morte; a não ser encarcerado juntamente com adultos; o direito a um processo
mais célere e adaptado à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento; o
resguardo do sigilo dos atos processuais, etc...
Importantes
Documentos de Direitos Humanos, como as “Diretrizes da Riad” (Prevenção da
Delinqüência Juvenil); “Regras de Pequim” (Regras para Organização de Justiça Juvenil);
Diretrizes da ONU para os jovens privados de liberdade, constituem as fontes da
chamada “Doutrina das Nações Unidas para a Proteção Integral da Criança”. Tal
doutrina enfatiza a necessidade da implementação de instrumentos jurídicos
capazes de garantir todos os direitos fundamentais e sociais de crianças e
adolescentes.
O
“Pacto de São José” reconhece, no artigo 5.5., o direito do menor a um tribunal
especializado.
A
Convenção, as Regras de Bejing e o “Pacto de São José”, reafirmam às crianças e
adolescentes a titularidade das garantias processuais, estas concebidas como
garantias mínimas.
Assim,
as novas legislações, baseadas na Convenção, portanto na Doutrina das Nações
Unidas, vêm aprimorando tais garantias, inclusive com instrumentos de descriminalização
e despenalização, entre eles, a remissão pura e simples.
Nas
novas leis, os países membros da ONU, via de regra, vêm estabelecendo
mecanismos de garantias de direitos sociais, inclusive difusos e coletivos,
como saúde, educação, profissionalização. No que toca à chamada delinqüência
juvenil, enfatizam o caráter pedagógico das respostas pela delinqüência
juvenil, implementando normas garantistas no sentido de se reservar a aplicação
de medidas privativas de liberdade às hipóteses de estrita necessidade.
Em
que pesem algumas adaptações eufemísticas aos princípios da Convenção
Internacional dos Direitos da Criança, (exemplo da Colômbia), o fato é que as
adaptações legislativas têm sido positivas e substanciais. Exemplos do Brasil,
Bolívia, Costa Rica, El Salvador, Guatemala (ainda
não vigente), Nicarágua, Honduras, Panamá, Peru e República Dominicana.
Estão
em tramitação propostas de leis no Chile, Equador, Paraguai, Argentina, Uruguai
e Venezuela.
Enquanto
a Convenção não for, de fato, implementada; enquanto seu caráter operacional
não for pacificamente aceito; enquanto suas disposições forem encaradas como
meramente programáticas, persistirá em nosso continente a vergonhosa realidade
das condições deploráveis do verdadeiro apartheid social legalizado por
normas ultrapassadas e antijurídicas. Muitas delas, inclusive,
inconstitucionais. Todas repletas de mitos e eufemismos, penalizadoras e de
controle social de pobreza, mascaradas de tutelares, tuitivas, protetoras.
A
partir da Convenção Internacional, perdem terreno os discursos da compaixão-repressão característicos de
certos círculos da chamada Justiça de Menores.
A
sociedade civil começa a desconfiar de mitos e eufemismos. Patologia social;
medidas terapêuticas, tutelares; situação irregular, Justiça Protetora; juiz
sempre bondoso, paternal; Ministério Público defensor constante e intransigente
de crianças em qualquer situação; centros educacionais, de bem estar, passam a
ser vistos criticamente.
O
controle social voltado para a menoridade abandonada
e delinqüente; as legislações ditas tutelares; as prisões de meninos rotuladas
de centros educacionais; a negação do direito de defesa em casos de
envolvimento com o sistema, principalmente de justiça, começam a ser
questionados.
Em
grande parte dos países, as legislações protetoras
não mencionam direitos, contentando-se com medidas rotuladas de tutelares,
que não passam de penas. Sanções
disfarçadas, impostas exclusivamente a crianças e jovens empobrecidos, são
raras para segregá-los de suas famílias e comunidades, confinando-os em
estabelecimentos eufemisticamente dominados educacionais. Instituições
geralmente caracterizadas como verdadeiras casas
de horrores, centros de violência e delinqüência.
Funciona
na América Latina, para crianças e jovens vulneráveis, um Direito Penal de
Menores, mais repressivo do que o dos adultos e, o que é pior, geralmente, sem
garantias processuais.
Como
observa Rodolfo Schurmann Pacheco, criticando as leis baseadas na “Doutrina da
Situação Irregular”, (Modelos de Legislación de Menores em América Latina) –
“vigora em todos os países um verdadeiro Direito Penal de Menores, mais
repressivo, mais objetivista, mais “perigosista” do que a legislação de
adultos, inclusive com a adoção de noções abandonadas pelo próprio Direito
Penal”.
Há,
no dizer do jurista, “uma trágica desorientação filosófica, político-criminal
e, até, dogmática. A figura do sujeito de direitos frente à ação do Estado é
desconhecida. Considera-se o menor como coisa
desamparada que se tem de proteger,
perigosa, que se há de institucionalizar”.
O
quadro obriga reflexão.
Mudanças
constituem imperativo dos novos tempos. Há que se interpretar as legislações
latino-americanas de acordo com os princípios postulados da Convenção,
principalmente da Doutrina da Proteção Integral.
O
intérprete não poderá olvidar os Documentos Internacionais de Direitos Humanos,
as Regras de Beijing, as Diretrizes de Riad, o Estatuto da Criança e do
Adolescente do Brasil, a importância da participação comunitária e
conscientização da sociedade.
A
responsabilidade brasileira advém do pioneirismo na implantação do novo modelo,
cujo êxito é compromisso com as novas gerações.
1.2 Brasil
– Situação irregular – um viés que teima em não morrer.
Em que
pese a Convenção Internacional, o Estatuto e as novas posições interpretativas
da Doutrina da Proteção Integral, a “proteção”, que não passa de preconceituosa
e odiosa opressão de crianças e adolescentes vulneráveis, persiste resistindo
fortemente às mudanças substanciais de paradigma.
Ao modelo da proteção integral, do
garantismo, se opõe a ambigüidade de que nos fala Garcia Mendez, em excelente
artigo, sob o título “Infância, Lei e Democracia: Uma Questão de Justiça”:
“Frente aos paradigmas instalados e
confrontados da situação irregular e a proteção integral, o paradigma da
ambigüidade se apresenta como uma síntese eclética, apropriada para esta época
de ‘fim das ideologias’. O paradigma da ambigüidade se encontra muito bem
representado por aqueles que, rejeitando de imediato o paradigma da situação
irregular, não conseguem acompanhar – talvez pela diminuição significativa das
práticas discricionais e paternalistas no trato com as crianças – as
transformações reais e potenciais que se deduzem da aplicação conseqüente do
paradigma da proteção integral, que considera a criança e o adolescente um
sujeito de direitos, e, não menos, de responsabilidades. Nesse ponto me parece
importante arriscar uma explicação que permita entender melhor o por quê da
aparição (e difusão) do paradigma da ambigüidade.
“Se considerarmos o caráter de
revolução copernicana da mudança de paradigma da situação irregular à proteção
integral, sobretudo no sentido da diminuição radical da discricionariedade na
cultura e práticas de ‘proteção’ (lembre-se que a história é muito clara ao
mostrar as piores atrocidades contra a infância cometidas muito mais em nome do
amor e da proteção, que em nome explícito da própria repressão), é necessário
admitir que o direito (a Convenção) desempenhou um papel decisivo na
objetivação das relações da infância com os adultos e com o Estado”.
“Esta
objetividade (entendida como a tendência oposta à discricionariedade), que se
expressa não só por um novo tipo de direito, mas também por um novo tipo de
institucionalização, assim como por novos mecanismos de cumprimento e
exigibilidade, transforma substancialmente o sentido do trabalho dos
especialistas ‘tradicionais’, desde os juristas até os pedagogos, para atingir
toda a variada gama destes operadores sociais. Estas transformações se referem,
especialmente, à redução da capacidade omnímoda para diagnosticar
discricionalmente a existência e características da ‘disfunção’ social ou
individual; e muito especialmente, o sentido e características das medidas,
sejam estas jurídicas, terapêuticas ou sociais. As metáforas da medicina cada
vez dão menos conta da nova situação. O fato de considerar os adolescentes em
conflito com a lei penal, de uma vaga categoria sociológica que comete feitos
anti-sociais (situação irregular), a uma precisa categoria jurídica que comete
infrações penais, típicas, antijurídicas e culpáveis (proteção integral),
constitui um exemplo bem representativo desta situação”. (in Revista da Escola
Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina – ESMESC, v. 5, ano 4,
1998, pp. 27/28)
As novas disposições, garantistas e
responsabilizantes do Estatuto, continuam a ser interpretadas com os mesmos
princípios simplistas e autoritários da antiga postura, própria do ab-rogado
Código de Menores.
A “proteção”, o “superior interesse”,
o “bem-estar da criança e do adolescente”, a “reeducação”, a “ressocialização”
justificam tudo.
As medidas sócio-educativas, de
índole nitidamente retributiva e penalizante, são impostas sob a falácia do caráter
“pedagógico”, “tutelar”, “protetor”, muitas vezes desnecessariamente.
Em que pesem as
garantias constitucionais e legais, arbitrariedades continuam justificadas por
eufemismos, como acontece, por exemplo, com a “internação” e principalmente com
a “liberdade assistida”, apresentada como intervenções meramente educativas
como se as palavras pudessem alterar a substância das coisas.
Internação, liberdade assistida e
prestação de serviços à comunidade são exibidas como benefícios, institutos
bons para o adolescente.
Fala-se de um sistema “reeducativo”
ideal, que não existe.
Esquecidos da triste realidade das
verdadeiras “prisões de meninos pobres”, apaixonados, “novos menoristas”
exorcizam propostas garantistas, jurídicas, que, restringindo a discricionariedade,
apenas propõem limites ao arbítrio, acoimando-as de retrocesso e compromisso
com propostas de “lei e ordem”, como se o sistema, em relação aos infratores,
fosse, mesmo, educativo de qualidade.
Esquecem-se integrantes do sistema
administrativo e judicial da vergonha dos “internatos”, verdadeiras prisões,
geralmente piores do que as dos adultos.
Programas de “liberdade assistida”,
“prestação de serviços à comunidade”, geralmente, não passam de improvisações.
Não há efetivo controle jurisdicional
de resultados, muito menos de integração ou de assistência educativa à família.
“Relatórios”, “diagnósticos”
justificadores de puro assistencialismo e inadequadas intervenções continuam
existindo.
A chamada “proposta pedagógica”
persiste de pano de fundo da arbitrariedade.
Justificando sistemas pesados, caros,
produtores e reprodutores de violência e criminalidade, salvo raríssimas
exceções, a chamada “proposta pedagógica” continua reproduzindo o sistema
penitenciário.
Reeducação e ressocialização não
passam de mitos convenientes.
“Proposta pedagógica”: Falácia que
ninguém definiu, regulamentou.
Salvo exceções, sentenças, acórdãos,
pareceres, defesas, recursos, relatórios, estudos de caso, diagnósticos
refletem os vieses do sistema “protetor”, onde os adolescentes, ditos
infratores, são “protegidos”, “reeducados”, “ressocializados”.
Se o sistema é protetor; se todos os
atores processuais e administrativos buscam “o melhor interesse” do
adolescente; se as medidas sócio-educativas são um bem para o adolescente; se
ao impor uma medida sócio-educativa está-se realizando um dever relativamente
ao direito à educação; não há necessidade de grandes e profundas
justificativas. Basta aludir ao “superior interesse” do menino que precisa ser
educado. Educação por meio dos benefícios da liberdade assistida, da prestação
de serviços à comunidade, da internação, é óbvio.
Sob tal falácia acabam os
“protegidos” sujeitos a verdadeiras penas indeterminadas, impostas
subjetivamente sem garantias objetivas, como, por exemplo, os critérios de
legalidade e proporcionalidade.
A individualização das medidas, via
de regra, não é justificada por critérios objetivos. Diante de tanta
“proteção”, eles são desnecessários. “O sistema não é penal. O adolescente não
comete infração penal. Pratica ato infracional”. Predominando o subjetivismo,
em nome da “reeducação”, adolescentes ficam sujeitos a respostas mais severas
do que em iguais circunstâncias seriam impostas aos adultos.
A execução continua sem limites
claros e precisos. Não há um devido processo legal explicitamente colocado.
Subjetivismo e improvisações de toda
ordem persistem tanto nas remissões como nas sentenças.
Insisto: via de regra, adolescentes
são punidos com maior rigor que adultos, acobertada a arbitrariedade pelas
falácias da “proteção”, da “proposta pedagógica” e do “sistema tutelar”.
Erros judiciários e administrativos,
seja no processo de conhecimento, seja na fase de execução, repetem-se, tudo
praticado em nome do “bem-estar do menor”, do seu “melhor interesse”, da
“reeducação”, como se o sistema correspondesse, caracterizando-se como
educacional e de excelente qualidade.
É preciso dar um basta nisso.
É necessário assumir a postura
realista e científica preconizada na Doutrina da Proteção Integral.
Apesar do Estatuto, da Convenção e da
nova doutrina, os “infratores” continuam sem cometer crimes.
Não cometendo crimes, mas “atos
infracionais”, a eles não se aplicam “penas”.
“As medidas, por serem pedagógicas,
não são retributivas e, não tendo caráter penal, são aplicadas em benefício dos
adolescentes”. Assim, não há necessidade de tantos cuidados na certeza da
autoria, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.
Não praticando crimes, “não têm
direito” aos benefícios dos adultos – prescrição, graça e indulto.
Perguntem aos “protegidos”,
“reeducandos”, “educandos” e principalmente aos internos, se estão satisfeitos
com a “proteção”, com o sistema.
Perguntem se o sistema é justo.
Tem-se dito que o sistema difere do
dos adultos porque o “Estado tem o compromisso de proteger, educando ou
reeducando.”
Os defensores da “doutrina da
ambigüidade”, justificando suas posições “paternalistas”, falam de um sistema
ideal, perfeito. Daquilo que não existe. E jamais existirá!
Mas, se existisse, ainda assim,
haveria o estigma da sentença e do sistema que não seria o educacional comum,
mas reservado a uma classe especial de pessoas, os infratores.
Se a
simples intervenção do sistema “educacional”, das chamadas Febens, não for
estigmatizante, porque destinado aos “menores” ou “adolescentes infratores”,
bastaria a sentença, a passagem pelo sistema de justiça para justificar o
estigma e redobradas cautelas. Cuidados para não envolver desnecessariamente
quem quer que seja.
Acreditarei na excelência do sistema educacional dos “infratores”,
quando desembargadores, juízes, promotores, assistentes sociais, psicólogos e
pedagogos encaminharem os filhos para serem protegidos, educados nas
internações, nas liberdades assistidas ou nas prestações de serviço à
comunidade.
Enquanto o sistema for reservado aos
“infratores”, tenham eles o nome que tiverem, não será “protetor” dos
adolescentes, será, como tem sido, e necessariamente tem de ser, um sistema
retributivo e de proteção da sociedade. Jamais dos adolescentes!
Adolescentes são protegidos por meio
de políticas básicas, principalmente da política de educação nos
estabelecimentos da rede comum de ensino.
O direito à educação e o
correspondente dever são exercidos dentro da normalidade.
Se o Estado tem de impor, agindo coercitivamente, a
medida que tomar, atingindo direitos fundamentais da pessoa humana, tem de
ater-se ao princípio da legalidade. Vale dizer, da excepcionalidade devidamente
justificada.
Aos que necessitarem apenas proteção,
educação e não respostas preventivas e
repressivas, que sejam encaminhados ao sistema educacional comum.
Seria iníquo submeter, sem
necessidade, qualquer pessoa a um sistema educacional especial, reservado a
infratores.
No momento em que se cria um sistema
“educacional” paralelo de intervenção estatal coativa, com restrições,
inclusive privação de liberdade, o sistema deixa de ser simplesmente educativo,
protetor, para ser, também, limitador de direitos fundamentais, numa palavra, repressivos.
Lamentavelmente
a chamada “doutrina da situação irregular”, preocupada com “denominações” e
“estigmas”, persiste viva naqueles em que teimam em ver nas medidas
sócio-educativas tão-somente o caráter pedagógico, esquecido que,
substancialmente, sendo resposta a condutas reprovadas, têm caráter
retributivo, interferindo na liberdade, na autodeterminação e, até, na
intimidade das pessoas.
Desde quando privação coativa da
liberdade, semiliberdade, prestação de serviços à comunidade, desde quando
restrições aos direitos fundamentais podem ser consideradas um bem para a
pessoa humana restringida, submetida ao Estado? Constitui, isto sim, um mal.
Um mal necessário, mas um mal.
São um bem para a sociedade, para a
prevenção e para repressão da delinqüência juvenil.
Esta a verdade que precisa ser
compreendida e aceita.
E a eufemística liberdade assistida,
tão “assistida”, que o descumprimento de suas regras pode implicar também na
eufemística “internação”, ou seja, privação de liberdade por até três meses.
É preciso ter coragem e assumir o
verdadeiro significado das palavras. Impõe-se, em nome dos direitos humanos,
ver o que existe de verdadeiro no sistema dito “Tutelar”.
O atual jogo de palavras, procurando
suavizar institutos de Direito Penal com a simples alteração de nomes,
possibilita injustiças em relação aos adolescentes. A postura provoca
preconceitos e severidade.
Argumentam os defensores do paradigma
identificado por Garcia Mendez:
“Sendo um bem, as medidas
sócio-educativas, não há porque livrar o adolescente do sistema”.
Insisto: Com base na falácia da
“reeducação”, “educação” e “integração sóciofamiliar”, adolescentes continuam
sendo jogados no sistema, como se as medidas sócio-educativas fossem um bem.
As medidas protetivas podem ser
consideradas um bem. Basta ver a separação que o Estatuto faz entre umas e
outras.
Vítimas e vitimizadores reclamam
apenas por justiça.
O sistema não deve ser encarado nem
como bem como um mal, mas como uma resposta justa e adequada ao fenômeno da
delinqüência juvenil.
Tenha-se presente: enquanto a adultos
se livram por meio da prescrição, do indulto, da anistia, da graça,
adolescentes são compelidos, forçados a medidas sócio-educativas.
Insisto: justificam-se medidas
restritivas de direito e privativas de liberdade sob o falacioso argumento de
que constituem um benefício para os adolescentes.
Chega-se a dizer que a medida não é
imposta, é “aplicada”. E o é no subjetivismo do “melhor interesse” e da
“proteção”, dogmas, há muito, superados pela “Doutrina da Proteção Integral”.
Viés dos piores, a interpretação do
Estatuto, com base no subjetivismo, nos mitos e nas falácias do antigo Direito,
só será superada quando os operadores judiciais e administrativos se
convencerem da necessidade da interpretação sociológica, teleológica do artigo
6º do Estatuto, que se baseia no garantismo.
O Direito Norma, o Estatuto, tem de
ser interpretado e aplicado sociológica e sistematicamente, reconhecendo e
separando o intérprete, as hipóteses em que adolescentes são vítimas daquela em
que aparecem como vitimizadores.
Medidas protetivas para crianças e
adolescentes vítimas. Sócio-educativas para vitimizadores sempre que
necessárias como respostas justas e adequadas.
Repiso: não é mais possível conviver
com mitos, eufemismos e falácias.
É preciso identificar corretamente,
separando institutos de proteção da criança e do adolescente dos institutos de
proteção da sociedade.
É preciso assumir a postura
técnico-científica, abandonando o paternalismo inconseqüente e a repressão
disfarçada.
Só assim os operadores
administrativos e judiciais estarão desempenhando o verdadeiro papel de
realizar justiça, que é o que se espera de um sistema judiciário e
administrativo.
2. Medidas
sócio-educativas ou o controle social arbitrário de adolescentes: um viés que
precisa morrer
Válida a advertência de Mário Volpi:
“Portanto, o momento
presente não se caracteriza pela necessidade de ecletismos ou sincretismos
doutrinários, mas sim de superação de antigas doutrinas para a consolidação de
uma nova, despida de todos os vícios do passado. Trata-se realmente de um
paradigma (da situação irregular) a ser superado e da transição a um novo
paradigma: da proteção integral. Não há, então, espaço para a ambigüidade. Há a
necessidade de um posicionamento firme e de um compromisso real para promover
crianças e adolescentes à inclusão social e à sua participação crítica e
criativa no Estado Democrático de Direito.” (SARAIVA, João Batista da Costa, in
Adolescente e Ato Infracional: garantias processuais e medidas
sócio-educativas, Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1999, p. 08)
Antes de aprofundar o
tema a respeito da realidade da aplicação e execução das medidas
sócio-educativas, impõe-se aclarar seu verdadeiro caráter, se pedagógicas ou
retributivas.
Estamos no campo do
Direito. A análise não é feita a partir da ótica do pedagogo, do psicólogo ou
do assistente social. A visão é jurídica.
Não tenho a menor dúvida:
juridicamente consideradas, as medidas sócio-educativas são retributivas,
pedagógicas e, inclusive, repressivas.
São retributivas porque constituem
resposta à prática de um ato infracional, portanto legalmente reprovável.
Só o autor do ato infracional
(eufemismo que corresponde a crime ou contravenção penal – ECA, art. 103), pode
ser submetido (apenado) à uma
medida sócio-educativa.
Não se olvide: as medidas são impostas
coercitivamente.
Não se diga que a possibilidade da
remissão, da não imposição de qualquer medida ou a faculdade que tem o Juiz de
aplicar medidas de proteção retira o caráter retributivo das medidas
sócio-educativas, porquanto essas providências despenalizantes nada têm com a
natureza da medida. Existem, inclusive, no Direito Penal Comum: a suspensão
condicional do processo, da pena, o perdão judicial etc...
O caráter retributivo é visível na
mais branda das medidas – a advertência –, onde o Juiz admoesta, vale dizer,
avisa, adverte, repreende.
São pedagógicas, porque têm caráter
eminentemente educativo, mas são repressivas (do latim, repressio, de reprimere
– reprimir, impedir, fazer cessar).
O caráter repressivo das medidas sócio-educativas
não reflete o sentido vulgar da palavra, mas o significado técnico-jurídico de
“oposição”, “resistência”, “impedimento”.
Como explica De Plácido e Silva no
Vocabulário Jurídico:
“As medidas impostas para reprimir podem chegar até o castigo. Mas, juridicamente,
repressão não é castigo: é meio de fazer cessar, de fazer parar, de impedir ou
de moderar adolescentes em conflito com a lei e a sociedade”.
As medidas sócio-educativas visam prevenir e reprimir a delinqüência juvenil, vale dizer, fazê-la parar
relativamente ao agente e impedir ou moderar o fenômeno em relação aos demais
adolescentes.
Admitir o caráter repressivo, penal especial (diferente do
penal comum dos adultos), insisto, é útil aos direitos humanos de vítimas e
vitimizadores.
É necessário superar o viés da
“proteção”: ciente o aplicador da medida que, além de imposta, é repressiva,
redobrar-se-á em cautelas para não impô-la sem os critérios da fundamentação da
despenalização, da excepcionalidade, da legalidade, da brevidade, da proporcionalidade
e da resposta justa e adequada.
Despenalização concretizada pela
remissão pura e simples.
Proporcionalidade para impedir a
imposição de medida severa por fato irrelevante.
Como as penas criminais, as medidas
sócio-educativas são restritivas de direito (advertência, obrigação de reparar
o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida) e privativas
de liberdade (semiliberdade e internação).
Enquanto as penas criminais são
determinadas e subordinadas a critérios objetivos e limitativos (os adultos
gozam da suspensão condicional do processo e da substituição de penas
privativas de liberdade por restritivas de direito), os adolescentes continuam
submetidos a medidas indeterminadas e sem critérios prévios, claros e
objetivos, capazes de conter o possível arbítrio do Estado.
Carecem adolescentes de mais
garantias, explícitas e objetivas, capazes de proporcionarem a justa
individualização da medida.
O subjetivismo, segundo o qual (§ 2º
do art. 122) “em nenhuma hipótese será aplicada internação, havendo outra
medida adequada”, constitui porta aberta ao arbítrio.
A prevalência dos princípios
enviesados da antiga “doutrina”, segundo a qual as medidas do chamado “Direito
do Menor” sempre visam o melhor interesse dos adolescentes, tem propiciado a
imposição de respostas mais severas do que em iguais circunstâncias seriam
impostas aos adultos pelo Direito Penal Comum.
Uma correta visão das medidas
sócio-educativas, ciente o aplicador do seu caráter predominantemente
pedagógico, mas repressivo, nitidamente penal, favorecerá os adolescentes,
porque a imposição ou o ajuste (remissão) passará a ser restritivo, submetido
ao princípio da estrita legalidade.
Favorecerá a sociedade e os
adolescentes, reforçando o compromisso com a cidadania, com o reconhecimento da
dignidade de ser sujeito de direitos e obrigações.
3. Brasil – Prescrição – Direito universalmente reconhecido e sonegado
aos adolescentes
Não se deve confundir a
natureza da medida com seus objetivos. Proteção, educação, reeducação, reintegração
sócio-familiar, fortalecimento de vínculos familiares são os objetivos das
medidas sócio-educativas, mas sua natureza, sob o ângulo jurídico, é penal.
Para o jurista importa mais a
natureza do que o objetivo, porque este pode ser alcançado de outro meio, sem o
estigma do ato infracional, por intermédio das medidas de proteção. Comparem-se
os artigos 101, 112 e 114 do Estatuto.
O pedagogo prioriza os objetivos; o
jurista, a natureza e o reflexo da intervenção estatal coercitiva sobre os
direitos da pessoa humana.
Para o pedagogo, por exemplo, a
liberdade assistida, vista da ótica dos objetivos, pode ser encarada como um
bem, mas para o jurista, atento às restrições aos direitos e à imposição, é
sempre encarada como um mal. Um mal necessário, mas um mal. Assim, sua
imposição só pode ocorrer com observância dos princípios da estrita legalidade,
da excepcionalidade e da brevidade.
A despenalização, o Direito Penal
Mínimo, próprios das garantias e dos benefícios do direito ciência e do direito
norma não podem ser recusados aos adolescentes inimputáveis. Inimputáveis
perante o Direito Penal Comum, mas responsáveis diante das normas da legislação
especial de que trata o artigo 228 da Carta Política.
Outra interpretação, baseada nos
“bons objetivos” em detrimento da natureza das medidas sócio-educativas,
constitui falácia que choca flagrantemente com a hermenêutica jurídica e os
mais elementares princípios da justiça, da eqüidade, dos fins do direito.
A exegese, para ser adequada aos
princípios da Convenção Internacional, não pode prescindir das diretrizes do
artigo 6º do Estatuto. Interpretação, finalística, teleológica, sociológica,
que não pode ser isolada, tem de ser sistemática.
Tenha-se presente: o ato infracional
corresponde a crime ou contravenção penal (art. 103).
A prescrição (garantia só excluída em
casos excepcionalíssimos – CF, art. 5º, XLIV) não pode ser recusada aos
adolescentes.
O “inescondível” caráter retributivo
das medidas sócio-educativas, a maioria claramente repressiva, obriga o
intérprete a se socorrer do Direito Penal no que ele tem de garantias.
Dentro desses pressupostos, ao
invocar-se a parte especial (repressiva) da Lei Penal Comum para punir o autor
do ato infracional, há que se ter em conta, também, a parte geral,
principalmente os seus benefícios, dentre eles a prescrição.
Justiça, eqüidade, antíteses da
iniqüidade, da negação do Direito (princípios e diretrizes da correta
interpretação) têm de ser levados em conta, principalmente a analogia, aplicável
no Direito Penal, sempre que para beneficiar ou excluir a sanção.
Liberdade assistida (vigiada),
prestação de serviços à comunidade, semiliberdade e internação, eufemismo
definido como medida privativa de liberdade, não podem ser impostos sem limites.
O Estado não pode continuar sem
atribuir aos adolescentes um direito universalmente reconhecido a todos, a
prescrição, sob a falácia da proteção, do seu bem-estar, da sua educação, como
se esses objetivos ilidissem a natureza repressiva, própria de toda medida que
limite ou suprima direitos, principalmente a liberdade.
4. Conclusões
A
regra, na América Latina, é a inobservância dos direitos fundamentais de
crianças e adolescentes.
Vida,
saúde, alimentação, educação, esporte, lazer, profissionalização, cultura,
dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitárias de crianças
e jovens freqüentemente são vulnerados pelo Estado que não realiza políticas
sociais eficazes; pela sociedade e pela família que teimam em mão os reconhecer
como sujeitos de direito, portadores da condição peculiar de pessoas em
desenvolvimento.
Em
que pese a trágica situação, o fato que na América Latina começa a surgir uma
nova consciência a respeito da necessidade de se estabelecer novos mecanismos
jurídicos capazes de garantir os direitos fundamentais e sociais de crianças e
adolescentes.
No
panorama internacional a causa dos direitos humanos de crianças e adolescentes
ganha novos e seguros espaços.
Surgem
projetos e leis baseadas na Doutrina das Nações Unidas para a Proteção Integral
da Criança.
A nova
doutrina da Proteção Integral, preconizando que crianças e adolescentes são
sujeitos de direito, afastou completamente os enviesados princípios da antiga
“doutrina da situação irregular”, entre eles o subjetivismo e o arbítrio,
travestidos da falácia da “proteção”, que não passava de odiosa opressão.
Há que assumir o modelo garantista e
responsabilizante do Estatuto e da Convenção.
Palavras e institutos têm de ser
interpretados e aplicados com base na ciência e na técnica, sem mistificações,
dentro dos princípios da Hermenêutica Jurídica e do Direito.
A delinqüência juvenil é um fenômeno
social que exige respostas justas, e estas não podem persistir baseadas em
mitos, eufemismos e falácias.
Para o jurista, o que importa,
fundamentalmente, não é o objetivo (reeducação), mas a natureza repressiva das
medidas sócio-educativas. Sendo claramente restritivas de direitos
fundamentais, embora marcadas pela excepcionalidade e brevidade (CF, art. 227,
§ 2º, V), as medidas sócio-educativas não podem ser impostas sem se submeterem
a uma das garantias básicas da pessoa humana, a prescrição.