O
CÁRCERE COMO INSTITUIÇÃO TOTAL E OS EFEITOS DA PERDA DA IDENTIDADE DO EU
Elisangela Melo Reghelin
Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS, Diretora da Academia de Polícia
Civil do RS, Professora de Pós-Graduação em Ciências Penais da UFRGS
Estigma - palavra de origem grega. Designava sinais como cortes pelo corpo ou marcas de fogo, que identificavam escravos, criminosos, pessoas "ritualmente poluídas". Na Era Cristã, "estigma" significava "sinais corporais de graça divina" (geralmente, tomando a forma de flores em erupção sobre a pele). Os estigmas, basicamente, podem ser relacionados ao corpo (deformidades físicas), relacionados às culpas de caráter individual (paixões, crenças, desonestidade, doenças mentais, prisões, vícios, homossexualismo, desemprego, tentativa de suicídio) e relacionados aos aspectos coletivos de tribos, nação, religião.[1]
As informações que as pessoas
"normais" têm sobre o estigmatizado produzem efeitos relevantes sobre
a identidade social deste, pois é a partir dessas informações quotidianas que
ele delineará a forma de lidar com suas "marcas", de acordo com o que
Erikson denomina por "identidade do eu" - uma autopercepção de sua própria
situação (sentido subjetivo), o que difere gigantescamente das noções
conferidas ao indivíduo por terceiros.[2]
A sociedade rotula os
indivíduos como desviantes, para então "recuperá-los",
"ressocializá-los", via execução penal. As agências de controle do
Estado tentam demonstrar, a todo o momento, a importância da união dos
"homens de bem" contra os "vagabundos", seres carregados de
uma potencial periculosidade social e ontológica (embora saibamos que a
criminalidade é normativa, e não fenomenológica), numa eterna luta maniqueísta.[3] Enquanto no século XIX,
diante de um crime de roubo costumava-se dizer - ele rouba porque é
"mau" - hoje, na mesma situação, diz-se - ele rouba porque é pobre.
Considerando-se que pobreza não é sinônimo de criminalidade, facilmente
concluímos que há uma carga implícita de um diferencial entre os menos
abastados que roubam e os também menos abastados, porém que não roubam: o
funesto conceito da periculosidade. O discurso vigente pouco difere,
lamentavelmente, do discurso do século XIX.[4] Recordar a Escola
Positivista e as lições lombrosianas quanto ao atavismo, à epilepsia e à
loucura moral (respeitados os avanços científicos criminológicos para aquela
época) não é mera coincidência. Entretanto, queremos trabalhar com a mudança
desse paradigma etiológico e determinista de defesa social para o modelo da
reação social. Não interessa "quem é o delinqüente" ou "por quê
ele delinqüiu", mas a análise do etiquetamento. Essa ruptura traduz-se na
desqualificação das estatísticas oficiais como instrumento fundamental de
acesso à realidade criminal, devido às insuperáveis aporias a que conduziam do
ponto de vista gnoseológico.[5]
Quanto às instituições totais,
ressaltamos suas principais características, no dizer do eminente Prof. Dr. Cezar
Roberto Bitencourt:[6] todos os aspectos da
vida desenvolvem-se no mesmo local e sob o comando de uma única autoridade;
todas as atividades diárias são realizadas na companhia imediata de outras
pessoas, a quem se dispensa o mesmo tratamento e de quem se exige que façam
juntas as mesmas coisas; todas as atividades diárias encontram-se estritamente
programadas, de maneira que a realização de uma conduz diretamente à realização
da outra, impondo uma seqüência rotineira de atividades através de normas
formais explícitas e de um corpo de funcionários. Além disso, as diversas
atividades obrigatórias encontram-se integradas em um só plano racional, cujos
propósitos são conseguir os objetivos próprios da instituição.
É válido afirmar que, enquanto
os reclusos vivem na instituição, tendo um contato restrito com o mundo
exterior e tendendo a sentirem-se fracos, inferiores, censuráveis e culpados,
os dirigentes trabalham um número determinado de horas e retornam ao mundo
exterior, fugindo da tendência dominadora da instituição total. Os dirigentes,
geralmente, concebem o Outro através de estereótipos limitados, hostis, não
merecedores de confiança e tendem a sentir-se superiores e corretos.[7]
É assim iniciado o processo de
"mortificação do eu", com a entrada do sujeito no cárcere: as
humilhações e degradações vão dilacerando a autopercepção que o sujeito trazia
consigo a seu próprio respeito. Rompe com o mundo externo, com seus vínculos
afetivos e familiares. Sobrevêm os processos de admissão: as tradicionais
fotografias, medidas antropométricas, o "banho", o "corte de
cabelo" e as "instruções da Casa". Em seguida, como não pensar nas
tradicionais "boas-vindas" oferecidas pelos novos colegas ao
"peixe" ou "calouro"? Para não falar na desfiguração
pessoal - marcas, mutilações no corpo, pancadas, choques. A própria instituição
demonstrará que o tempo daquele sujeito nada ou muito pouco vale, pois ele
trabalhará (se houver esta oportunidade) com as minúcias, no mais das vezes,
completamente inúteis (quem sabe "martelando pedras?"). As
dificuldades para manter relações heterossexuais (visitas íntimas) levarão ao
medo da perda da masculinidade. Pior: o preso não consegue impedir que os
visitantes (amigos, familiares) o vejam naquele estado degradante, mesmo
através das grades. Ele sempre pode ser visto, mesmo nos seus momentos mais
íntimos, quase que panopticamente. O "novo eu" do indivíduo vai ser
despersonalizado para, então, sofrer a remodelação necessária (que alguns
preferem denominar "ressocialização"). Primeiramente, após ser
despojado de tudo (velho mundo), recebe as instruções da Casa (nova vida).
Aprende como se deve portar para obter os prêmios disponíveis (coisas pequenas,
mas que agora têm grande valor, como um cigarro), chegando, inicialmente, a
ficar obcecado para consegui-los. Conforme seu comportamento, é castigado
(geralmente, com a perda do prêmio ou da possibilidade de obtê-lo), o que, a
estas alturas, é terrível.[8] O status dentro
da prisão é adquirido com a força e a fama, chegando a formar verdadeiras
castas, como os Líderes - número reduzido de reclusos, com alta
reputação, liberdade de autodeterminação, decisões inquestionáveis, e que
apresentam os principais antivalores da sociedade carcerária; os "Chico
Buenos" (bons meninos) - estes contam com menor liberdade de
autodeterminação, mas com bom poder de opção quanto aos papéis funcionais.
Respeitam o código do recluso e supõe-se que suportam castigos em benefício da
comunidade prisional; os Buckers - lutam para ter status, geralmente são
jovens; os Ingênuos e os João Honestos - sem direito à autodeterminação,
transformam-se nos oprimidos e explorados pelos que exercem maior poder; os Ball
Busters - irritadiços, desadaptados, vivem criando conflitos, até mesmo
entre os próprios reclusos; os Puks - homossexuais - considerados
frágeis e indignos de confiança, e os Bugs - ratos ou informantes - não
colaboram em ações contra a administração da prisão. Não correspondem ao que a
comunidade carcerária espera deles[9].
Os ajustamentos secundários
serão a forma encontrada pela pessoa como uma das formas de "fugir"
sem "abandonar" seu espaço físico. Tais ajustamentos podem ser
lícitos, como aqueles que permitem ao indivíduo esquecer de si mesmo e da
realidade pela qual está passando, como escrever um livro - ou ilícitos, como
os subornos para a obtenção de drogas. Esses acordos não revelam uma mera
teimosia, mas uma parte "constituinte e essencial do eu". A revolta
interna pode ser fundamental. Sem algo a que pertençamos, não temos um eu
estável; apesar disso, o compromisso e a ligação totais com qualquer unidade
social supõem uma espécie de ausência do eu. Nosso sentimento de ser uma pessoa
pode decorrer do fato de estarmos colocados numa unidade social maior. Nosso
sentimento de ter um eu pode surgir através das pequenas formas de resistência
a essa atração. Nosso status se apóia nas construções sólidas do mundo,
enquanto nosso sentimento de identidade pessoal reside, freqüentemente, em suas
fendas.[10] Tudo isso traduz a
rejeição à interpretação que a instituição dá acerca de sua pessoa e de seu
mundo, mas para os dirigentes, será uma razão a mais para a manutenção da
segregação. Assim é que os portadores de qualquer distúrbio mental, quanto mais
reagirem, mais serão percebidos como doentes mentais merecedores dos
manicômios. Já aquele que "respeita e passa a se adequar" ao
pretendido pela instituição é recompensado com melhorias nas condições de vida[11].
A democracia, em sede de
direito penal, não significa a vontade da maioria (defesa social da maioria
não-desviada contra a minoria desviada). Nenhuma maioria ou unanimidade pode
decidir matéria não-decidível: há uma esfera constitucionalmente subtraída à
vontade da maioria, como a igualdade das pessoas (desviadas ou não) e os
direitos fundamentais, como a vida e a liberdade, independentemente da vontade
da maioria.[12] Em que pese inúmeros
operadores do Direito criticarem o garantismo acusando o sistema de moroso e
burocrático, vale dizer que fazem uma grande confusão com o excesso de
formalismo, este sim, necessitando de revisão. Porém, no dia em que o Direito
Penal abandonar o garantismo, ele terá perdido sua razão de existir. Aliás, a
legislação de emergência que informa o nosso sistema jurídico atual, vem
informada pela máxima de que os fins justificam os meios, utilizando-se de um
Direito Penal meramente simbólico para a produção de processos espetaculares.
Com isso, relegitima-se o Poder Executivo e deslegitima-se o Judiciário,
com a redução do sistema de garantias, afirmando-se modelos discricionários e
esterilmente decisionistas. Por isso precisamos de um programa de Direito Penal
mínimo[13]. A sugestão de
Ferrajoli merece plena consideração, especialmente a Reserva de Código -
imprescindível para certos assuntos (penas/processos, códigos penais e
processuais). Mediante tal proposta, mudanças legislativas somente seriam
autorizadas mediante procedimentos legislativos mais sérios e harmônicos com
todo o sistema, além de inserir toda a matéria num único diploma, obrigando o legislador,
ao alterá-lo, a fazê-lo de acordo com a coerência do conjunto[14] .
Como alternativas, sugere Luigi
Ferrajoli a descarcerização (o cárcere é apenas para delitos mais graves e que
atingem os direitos fundamentais), e a descriminalização de tantas condutas
penalmente tipificadas e que não passam de ilícitos civis, ou de delitos de
bagatela ou, ainda, de delitos de perigo abstrato, além de propugnar pela
redução das penas. Como diria Montesquieu: "La civiltà di un paese si
misura e progredisce com la mitezza delle pene".[15]
Portanto, o cárcere, outrora
uma conquista do Iluminismo Humanitário, uma alternativa aos suplícios e à pena
de morte, hoje é muito mais que a perda da liberdade: é a perda da afetividade,
da identidade, da socialidade, é "o castigo da alma", como referia
Mannuzzu. É uma instituição desigual, atípica, antiliberal, cujas atividades são
penosas e inutilmente aflitivas. O direito penal tem apenas uma justificação: a
proteção do mais fraco, que no momento do delito é a vítima, durante o processo
é o réu e, no momento da execução, o condenado -"...il paradigma del
diritto penale minimo assume come única giustificazione del diritto penale
minimo assume il suo ruolo di legge del più debole (...) che nel momento del
reato è la parte offesa, nel momento del processo è l'imputato e in quello
dell'esecuzione penale è il reo"[16].
Ou aprofundamos essas análises
de forma mais precisa e transparente, ou mergulharemos, cada vez mais, na
própria perda da nossa identidade social. No dizer de Jeffery: "mais leis,
mais penas, mais policiais, mais prisões, significa mais presos e mais
repressão, porém não necessariamente menos delitos".[17]
[1] GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988, p.11.
[2]
Idem, p. 116.
[3]
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação
social, Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 14, abr.
/jun., 1996, p. 276-87.
[4]
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, 6. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986,
p.135.
[5]
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação
social, Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 14,
abr./jun., 1996, p. 276-87.
[6] BITENCOURT, Cezar Roberto. A
Falência da Pena de Prisão: causas e alternativas. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1993, p. 161-2.
[7]
GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos, 5.ed. São Paulo:
Perspectiva, 1996, pp. 119-22.
[8]
Idem, pp. 19-51.
[9]
BITENCOURT, Cezar Roberto. A Falência da Pena de Prisão: causas e alternativas.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 161-2.
[10] GOFFMAN, Erving.
Manicômios, Prisões e Conventos, 5.ed. São Paulo: Perspectiva,
1996, p. 257-9.
[11] GOFFMAN, Erving.
Manicômios, Prisões e Conventos, 5.ed. São Paulo: Perspectiva,
1996, p. 248-52.
[12] FERRAJOLI, Luigi. La pena in una società
democratica, Questione Giustizia. Milano: Franco Angeli, n.3-4,
1996, p. 527-39.
[13] FERRAJOLI, Luigi. Per un programma di diritto
penale minimo. In: PEPINO, Livio. La riforma del diritto penale: garanzie ed
effetività delle techniche di tutela. Milano: FrancoAngeli, 1993, p.
57-69.
[14] FERRAJOLI, Luigi. La pena in una società
democratica, Questione Giustizia. Milano: Franco Angeli, n.3-4,
1996, p. 527-39.
[15] FERRAJOLI, Luigi. La pena in una società
democratica, Questione Giustizia. Milano: Franco Angeli, n.3-4,
1996, p. 527-39.
[16] Idem, p. 529.
[17] Apud SCHECAIRA, Sérgio
Salomão. Prisões do Futuro? Prisões no Futuro? In: Conversações Abolicionistas:
uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva/organizadores Edson
Passetti, Roberto Baptista Dias da Silva. São Paulo: IBCCrim, 1997, pp. 174-5.
Como citar este artigo:
REGHELIN, Elisangela Melo. O cárcere como instituição total e os efeitos da
perda da identidade do Eu. Disponível na internet: http://www.ibccrim.org.br,
12.06.2002.