JOVENS DE ASSENTAMENTOS RURAIS: AMPLIANDO A DISCUSSÃO SOBRE REFORMA AGRÁRIA

 

 

 

Juliana de Melo Borges

Psicóloga e educadora. Mestranda em Psicossociologia de

Comunidades e Ecologia Social.

 

 

Resumo: Assistimos cotidianamente através dos noticiários impressos e pela televisão a mobilização de trabalhadores rurais em todo país, principalmente, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). São conflitos, ocupações, violência, discussões e pouco tem sido realmente informado sobre a questão agrária no país, as possibilidades, necessidades e potencialidades de uma reforma agrária, bem como pouco tem-se dito com clareza quem são essas pessoas, os atores envolvidos, as instituições que engendram esse processo. É um cenário que se apresenta bastante confuso, intenso e dinâmico. Esse texto pretende trazer algumas informações sobre essa realidade e chamar a atenção para os assentados que se constituem a partir da luta pela terra, principalmente, chamar a atenção para a característica familiar desses agentes sociais. Os acampados, aqueles que ocupam terras, ou mesmos os assentados, são compostos por grupos familiares, homens, mulheres, jovens, crianças e idosos. Pretendemos, então, ensaiar algumas reflexões a respeito da juventude assentada, visto que os encaminhamentos futuros dessas comunidades se relacionam com questões fundamentais que lhes dizem respeito. Assim, discutiremos questões relacionadas à reforma agrária, aos movimentos sociais do campo, às características dos assentamentos, às necessidades e dificuldades enfrentadas, bem como tocaremos em pontos como êxodo rural, a relação rural/urbano, trabalho, educação e cidadania.

 

Palavras-chave: juventude - assentamentos rurais – e reforma agrária


Sumário

1. Introdução

2. Contextualizando a questão agrária: das Ligas Camponesas ao Movimento dos     Trabalhadores Rurais Sem-Terra

3. Os Jovens do Assentamento Rural

4. Conclusão

 

1. Introdução

Quando se discute a questão agrária, abordam-se principalmente os aspectos de desenvolvimento sustentável, a assistência técnica da produção, a viabilidade econômica dos assentamentos rurais, os conflitos fundiários e os processos históricos de luta pela terra e pouco têm sido os estudos que se ancoram na perspectiva psicossocial para refletir sobre a realidade rural e a reforma agrária. A psicologia, que teve seu surgimento enquanto ciência oriunda de modelos fisiológicos e médicos, constituiu-se como uma prática fundamentalmente urbana com grande ênfase na área clínica, assim o mundo rural pouco tem sido abordado mesmo que pela psicologia social. É neste sentido que pesquisar a realidade das pessoas que vivem no campo a partir de uma ótica “psi”, torna-se um imperativo transitar por outras áreas como a sociologia e a antropologia, bem como pela história e pelas ciências agrárias. É neste trânsito que se pretende olhar para os atores sociais desta realidade que compõem visões de mundo específicas, ritmos e sistemas de relações diferenciados e que ao mesmo tempo vêm apresentando formas específicas de exercício da cidadania como mostra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Este trabalho pretende levantar algumas reflexões sobre a juventude dos assentamentos rurais e para isso iniciaremos uma breve apresentação histórica da questão agrária e dos movimentos sociais do campo.

 

2.       Contextualizando a questão agrária: das Ligas Camponesas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra

“O campo está vazio e temos milhões de crianças abandonadas pelas ruas. Estas crianças precisam sair desse abandono, precisam estudar, precisam sobreviver dignamente nesse país que já foi a oitava economia do mundo. Hoje o nosso povo está morrendo de fome.” (Teixeira, In Eu marcharei na tua luta!, 1997, p. 164)

A citação acima é a fala de uma líder camponesa da Paraíba que na década de 60 presidiu a Liga Camponesa[1] de Sapé – PB, substituindo o marido, João Pedro Teixeira, que foi assassinado pelos latifundiários da região. Após o longo período de exílio dentro do próprio país provocado pela ditadura militar, Elizabeth pôde, no início da década de 80, retornar a sua família, à sua identidade e a decisão tomada no leito de morte do marido de continuar a luta pela defesa dos direitos dos trabalhadores rurais.

 

A fala de Elizabeth sobre a realidade de hoje nos chama a atenção, pois é o olhar de quem viveu uma história, é o testemunho de quem percebe a mudança ocorrida no espaço e no tempo. É o olhar sobre a contemporaneidade, sobre o nosso dia-a-dia que muitas vezes impõe a força da naturalização, banalizando situações, exercendo a pressão da “normalidade” e da adaptação. Sua fala – campo, vazio, crianças abandonadas, ruas, precisam estudar, precisam sobreviver, oitava economia do mundo, fome - aponta de forma clara a ligação entre questões que muitas vezes são tratadas de forma separada como a realidade da cidade e do campo.

 

Para Martins (1997), as questões vividas pelo campo e pela cidade são faces da mesma moeda, ou seja, o inchaço das grandes cidades que tem hoje a intensificação da violência como uma das maiores expressões de suas conseqüências, está diretamente relacionado com o êxodo rural provocado pela falta de trabalho e de condições de sobrevivência do homem do campo e pela atração que a cidade tem exercido no imaginário da população.

 

A história de Elizabeth estabelece um elo de ligação entre as organizações camponesas antes da ditadura e as de hoje, que nos chega cotidianamente em nossas casas pela televisão e pelos jornais. Sua fala nos dá fundamento para pensarmos historicamente alguns fatos do nosso dia-a-dia, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. E para compreendermos melhor estes fatos, é preciso esclarecer alguns pontos importantes sobre a questão agrária no Brasil, sobre a reforma agrária e a luta por terras.

 

O primeiro ponto, apontado por Martins (1997), é pensarmos que a questão agrária não é de hoje, mas está relacionada com o período colonial, com a forma com que foi organizado o uso e a distribuição de terras no país, gerando uma grande concentração fundiária, principalmente com o advento da Lei de Terras no século XIX que restringiu o uso da terra antes público a direitos privados de homens brancos que tivessem o poder de compra. Assim, o perfil agrário do país ficou caracterizado por grandes extensões de terras de difícil demarcação, poucos proprietários e uma grande massa de trabalhadores que era composta também de muitos ex-escravos recém libertos, caracterizando uma população dependente de terras de fazendeiros para morar, trabalhar, se alimentar e manter suas famílias.

 

Dessa forma, as formas de uso e propriedade da terra foram implantadas em relações desiguais que se somavam a estruturas de poder alicerçadas no autoritarismo, na dependência de favores e na violência. Em relação à violência, temos muitos exemplos como o já citado caso de João Pedro Teixeira e também exemplos recentes presentes nos noticiários, como o massacre de Eldorado dos Carajás e muitos outros mais silenciosos. Assim, um segundo ponto a frisar é a relação de tensão que se estabeleceu no campo, fruto direto das dificuldades de vida das famílias camponesas que viviam num regime de trabalho quase servil. O trabalhador rural na época em que surgiram as Ligas Camponesas, vivia em condições bastante precárias, cujas leis trabalhistas de férias, salários, descanso semanal e aposentadorias não existiam, mas existia a lei da vigilância, da ameaça, das agressões e expulsões da fazenda, a lei do cambão que consistia em dias de trabalho gratuito durante a semana para o proprietário de terra e do foro que era a destinação anual de uma parte da produção do trabalhador para o fazendeiro.

 

E é neste contexto que surgem o movimento social das Ligas Camponesas que tiveram no nordeste sua expressão mais intensa. Entretanto, as ligas não foram as primeiras organizações contestatórias de camponeses, antes das ligas existiram outras revoltas populares como Canudos na Bahia, a Guerra do Contestado em Santa Catarina e Paraná e Caldeirão no Ceará. As ligas aniquiladas pela ditadura militar ainda assim conseguiram produzir sementes e hoje temos a expressão mais visível da organização campesina que é o MST, apesar da origem sulina no final da década de 70. Acrescentamos, então, mais um terceiro elemento no contexto atual que é a existência de várias entidades de mobilização, organização e representação dos trabalhadores rurais como diversas associações e outros movimentos como as dos agricultores atingidos pela construção de barragens para usinas hidroelétricas, a Comissão Pastoral da Terra, segmento da Igreja Católica que apóia os trabalhadores rurais, etc. Dessa forma, o MST consiste não no único movimento social do campo, mas no atualmente mais expressivo que conseguiu estender suas ações para, praticamente, todo território nacional, bem como, trazer a discussão da reforma agrária para a mídia, para a sociedade e para a agenda política do país (Fernandes, 2001).

 

É preciso, entretanto, estarmos atentos, como coloca Medeiros e Leite (2002), também à diversidade de assentamentos rurais que têm se constituído, principalmente, como decorrência da pressão dos trabalhadores na reivindicação de suas necessidades. Essa diversidade de elementos torna cada assentamento uma situação particular de luta que tem em comum a relação de tensão e de legalização de comunidades formadas por múltiplos atores como seringueiros, posseiros, agricultores de áreas atingidas pela construção de hidroelétricas, trabalhadores do campo e da cidade, desempregados, etc., envolvendo, por sua vez, várias instituições como ONG’s e órgãos governamentais, pastorais de igrejas e sindicatos. É importante ressaltar ainda que nem todos os assentamentos são frutos de processos de ocupação, apesar de serem para estes que direcionamos nossa reflexão, mas há aqueles que são legalizações de propriedades em que havia famílias morando ou trabalhando, fazendo há bastante tempo algum tipo de uso da terra.

 

Fernandes (2001) ressalta ainda, que a reforma agrária não é apenas distribuição de terras, mas exige uma política que envolva todas as etapas da produção, comercialização e transporte dos produtos, bem como atenda as necessidades de moradia, assistência à saúde, educação e lazer da população assentada. E neste sentido, outro ponto fundamental é acrescentado ao debate: reforma agrária é também qualidade de vida, é cidadania e participação política (Bamat e Ieno Neto, 1998).

 

Assim, partindo da concepção de que reforma agrária não é apenas a distribuição de terras, é, principalmente, a busca pela melhoria da qualidade de vida, direcionamos nosso olhar para a multiplicidade de demandas da população assentada frente à nova vida que se inicia no assentamento rural. É importante colocar que os trabalhadores rurais estão organizados enquanto grupos familiares, ou seja, os membros da família participam da luta pela terra tanto na fase da ocupação, durante o acampamento em que ficam em condições precárias debaixo de lonas, como também no assentamento participando coletivamente, principalmente no início, quando a coesão do grupo é mais forte, de cada etapa da conquista da terra. Por exemplo, quando ainda estão acampados é necessário organizarem-se para atenderem as diversas necessidades como educação para crianças, comida para todos, auxílio à saúde, etc.; durante o assentamento, necessidades também têm que serem providenciadas como a construção das casas que geralmente é feita de forma coletiva através de mutirões. Entretanto, quando a terra está conquistada, a luta não cessa, aparecem outros desafios, outras necessidades surgem, a chegada no assentamento marca uma vitória, mas não o fim da luta, esta continua e se reinicia com cada aspiração a ser buscada e dificuldade a ser enfrentada, tanto pelo coletivo da comunidade, como também pelas famílias que tendem a retornar a seus espaços mais delimitados e a vivenciarem questões mais relacionadas com seus membros individualmente. Assim, a família é uma unidade base de organização e referência desses trabalhadores, composta de indivíduos com idades diversas, diferenças de gênero que trazem, para a vida no assentamento, questões específicas às suas características e necessidades de homem ou mulher, adulto ou criança, jovem ou idoso. Neste sentido, gostaríamos de chamar atenção para a população jovem assentada, visto que há particularidades deste segmento que se relaciona de forma mais direta com o desenvolvimento futuro dessas comunidades.

 

2. Os jovens do assentamento rural

Quando falamos em jovens e em juventude estamos pensando uma fase que se inicia na adolescência e atinge o início da fase adulta, ou seja, indivíduos que estão entre a vivência dos conflitos, anseios e descobertas características da adolescência e as preocupações relacionadas ao papel do adulto como o trabalho, a independência e a constituição de famílias. Visto a dificuldade de consenso para a definição de adolescência e juventude, optamos por nos basear no conceito adotado pelas Nações Unidas, segundo Abramovay (1998), que compreende a faixa entre 15 e 24 anos. O mesmo autor ainda cita o conceito compreendido pelo CEPAL para jovens rurais que se estende até os 29 anos e o de Quênia que se orienta pelo grau de dependência com o lar paterno.

 

Esta necessidade de classificação tem a função didática de viabilizar nossa comunicação, expressando a compreensão da linguagem usada para que possamos convergir nosso pensamento e estabelecer um diálogo. Na verdade, essa tentativa de delimitação confronta-se com a dinamicidade da realidade que não encontra relações diretas entre nossas definições abstratas e a concretude da vida que tem sobre nossas reflexões o imperativo de estarmos sempre abrindo parênteses para explicações e para novas reformulações de conceitos, visto que nosso objetivo último é de compreensão do real assim como ele se apresenta em sua atualidade dinâmica e não de aprisionamento no nosso esforço de falar e pensar sobre. Com isto, queremos ressaltar que apesar da tentativa de demarcação conceitual e definição de juventude é no contato com a realidade dos assentamentos, particularizados cada um por suas idiossincrasias, culturas e contextos, que os jovens irão forjar conceitos e se forjar enquanto atores e pessoas.

 

Contudo, o direcionamento de nossa reflexão para a população jovem não ocorre não só pela pouca expressividade de estudos na área, mas principalmente por questões que estão relacionadas com este segmento nos assentamentos, com as relações entre a juventude assentada e o desenvolvimento da comunidade, que abrange também a discussão sobre reforma agrária. Uma primeira questão que se apresenta é a visibilidade deste segmento populacional como geração herdeira de luta pela terra, associada ao futuro do assentamento. E neste sentido, pontuamos duas partes envolvidas, a primeira relaciona-se às perspectivas, expectativas e necessidades dos jovens que podem ser expressas em: o que os jovens querem? A segunda parte relaciona-se com as expectativas e viabilidades das comunidades, dos movimentos sociais e até mesmo da reforma agrária em relação a essa população e as possibilidades de atenderem suas necessidades. Esse embate fica materializado nos processos de reprodução social das famílias, ou seja, o crescimento da juventude assentada demanda a necessidade de trabalho, lazer, além de outras necessidades para futuras famílias.

 

Abromovay et al (1998) pesquisando os padrões sucessórios de unidades familiares de agricultura em um município do oeste de Santa Catarina, nos chama a atenção para os problemas advindos da sucessão da propriedade familiar que não pode atender a todos os filhos, visto que a repartição da terra implicaria na inviabilidade econômica. O autor aponta para a falência da reprodução social dessas unidades baseada anteriormente no minorato, que consistia na sucessão da propriedade familiar ao filho mais novo com a compensação de que este cuidaria dos pais na velhice, abrindo possibilidades para uma escolha mais flexível do sucessor, com abertura para uma escolha relacionada com uma maior identificação com o trabalho na terra. Algumas alternativas eram encontradas pelas famílias para solucionar os conflitos entre os irmãos frente à questão sucessória da propriedade e garantir o sustento futuro dos filhos e de suas famílias como, por exemplo, a procura de novas terras na fronteira agrícola, a compra de lotes e também o incentivo ao estudo como compensação à ausência de terras. Esta mesma questão sucessória é colocada para os assentamentos que têm, muitas vezes, o tamanho de suas terras bastante reduzido e ainda não há um planejamento e nem ações para viabilizar alternativas para a nova geração.

 

Bamat e Ieno Neto (1998), pesquisando sobre a qualidade de vida dos assentamentos rurais da Paraíba, apontam que muitos jovens dos assentamentos rurais expressam o desejo de permanência na terra conquistada por seus pais, mas advogam outras necessidades como a possibilidade de usufruírem facilidades e conforto, até então, privilégio da cidade como transporte, lazer, educação, uso da máquina para o trabalho na terra, celular, televisão, computador, etc. Segundo os autores, os jovens reivindicam outras demandas e com isso abrem possibilidades de desenvolvimento do assentamento, caminhos, muitas vezes, pouco empreendidos pela geração anterior, caracterizada pela inovação de alternativas.

 

Essas novas demandas também apontam para a discussão sobre o fim da dicotomia entre o mundo rural x urbano e, neste sentido, Carneiro (1998) estudando as aspirações de jovens rurais, aponta para uma tendência rurbana de estilo de vida desses jovens, cuja mistura de culturas rurais e urbanas forma um híbrido característico dos desejos e do modo de ser dessa juventude. Esta questão da rurbanidade também tem sido apontada por outros autores como Ferreira (2002) que tem questionado sobre concepções que defendem o fim do mundo rural, apontando como novo espaço territorial de qualidade de vida.

 

“A partir da década de 90, a literatura das ciências sociais especializadas passou a apontar reiteradamente as potencialidades do rural como espaços para reformas societárias de cunho integrativo e como base para se repensar a qualidade de vida na contemporaneidade.” (Ferreira, 2002, p. 30)

 

A mesma autora, comparando essa tendência de reformulação do que se compreende como mundo rural no Brasil contemporâneo e em países do capitalismo avançado, afirma que o Brasil tem como característica principal de definição do mundo rural a atividade da agricultura que representa 25% da ocupação da população ativa, segundo o PNAD de 1999. Entretanto, esse mundo rural apesar de se definir pela agricultura, não é só agrícola e tem apontado outros processos de reformas societárias que estão relacionadas com a diminuição do êxodo rural e das migrações inter-regionais, bem como à tendência ao aumento da população rural não-agrícola que aponta, por sua vez, à disposição a pluriatividade entre os agricultores. “No Brasil, a perspectiva de se pensar o rural como território do futuro é demonstrada de forma exemplar pela mobilização dos sem-terra e pelos assentamentos rurais que evidenciam sua potencialidade para uma política de combate à fome e à exclusão social.” (Ferreira, 2002, p. 41)

 

A tendência a rurbanidade não é exclusividade da população jovem, mas relaciona-se com as características da população assentada que apresentam trajetórias diversas com migrações entre o mundo rural e urbano, não constituído apenas de agricultores. Segundo Medeiros & Leite (2002), essa rurbanidade entre a população assentada é bem visível nos assentamentos do estado do Rio de Janeiro, principalmente na região metropolitana, onde há um grande fluxo rural-urbano que possibilita aos assentados a complementação da renda através do desenvolvimento de atividades na cidade, tornando muitas vezes o assentamento como local de residência que tem entre sua população o predomínio de aposentados.

 

Contudo, essa diversidade da população assentada aponta para a redefinição do perfil de beneficiários da reforma agrária que, muitas vezes, exige uma experiência anterior de trabalho na terra, abrindo possibilidades para o aprendizado da agricultura como uma das profissões possíveis entre as muitas existentes que necessitam de uma formação. É certo que a possibilidade de aprendizado da profissão de agricultor se apresenta com o aumento da necessidade de intensificação de assistência técnica e capacitação e envolve riscos de não sucesso, comum em qualquer empreendimento e profissão. É com esta perspectiva que Abramovay et al (1998) defende a formação de agricultores como uma profissão a ser aprendida e escolhida pelos jovens.

 

Podemos dizer, então, que ao mesmo tempo em que a tendência à rurbanidade pode se apresentar como possibilidade de abertura, desenvolvimento e reformulação do mundo rural, ainda guarda em si a ameaça do êxodo que tem atingindo de forma mais expressiva a população jovem, principalmente as mulheres, segundo Abramovay (1998). Vieira (2002), pesquisando o perfil de jovens assentados na Paraíba, constatou que 56% dos jovens prefeririam morar na cidade e 57%, quando questionados a respeito da luta por terras empreendidas por seus pais, respondem que não teriam entrado na luta.

 

Dessa forma, podemos pensar que a tendência dos jovens a buscarem alternativas de vida no assentamento, esbarra nas condições reais que essas comunidades se encontram, cujas dificuldades concretas de produção e geração de renda, deficiências de estudo, formação profissional, espaço de trabalho, moradia, e lazer para seus membros compõem um cenário muito menos atraente e promissor que a vida na cidade. Essa dificuldade de promover soluções e viabilidade para a população assentada não pode ser atribuída exclusivamente à responsabilidade individual dos assentamentos, enquanto unidades produtivas, ou mesmo à coletividade dos movimentos sociais, mas reflete também a conjuntura de deficiências governamentais em viabilizar a reforma agrária e o desenvolvimento da agricultura de uma forma geral.

 

Alonso (1994) pesquisando as motivações e sentidos de trabalhadores rurais que foram atingidos pela construção de barragens encontram ao se organizarem enquanto movimento social para reivindicarem o acesso a terra, considerada um patrimônio a ser herdado pelos filhos com valor diferenciado que não substitui a indenização em dinheiro, coloca que:

 

“Nas entrevistas, a vida no campo aparece como uma opção de vida. É certo que alguns já tentaram viver na cidade e, na maioria dos casos, essa foi uma experiência negativa. Ainda hoje o número de jovens que querem permanecer no campo é pequeno, mas muitos são os que voltam desiludidos com as falsas promessas da sociedade de consumo e desencantados com a experiência de privação, carência, marginalização social e, principalmente, saudosos da vida familiar e de grupo que vivenciam na comunidade rural.” (p. 87)

 

E adiante acrescenta:

 

“Essas lutas são o fruto de grandes contradições internas e externas. Os trabalhadores rurais sabem que a vida nas grandes cidades, onde estão as imensas concentrações de migrantes e origem rural, não é o paraíso antes imaginado. Muitos são os que têm família e amigos que, vivendo na cidade, estão mergulhados na privação, na carência e na marginalização social. A migração não é feita por vontade pessoal, mas sim porque se é excluído, se é expulso, porque não existe outra alternativa de sobrevivência.” (p. 88)

 

Para Heredia et al (2002), a situação de êxodo entre alguns membros das famílias assentadas ou mesmo as saídas permanentes ou esporádicas em busca de trabalho, expressa muito mais a complexidade da dinâmica dos assentamentos do que um sinal de fracasso ou problema a ser combatido. Analisando os impactos que a presença destas comunidades têm exercido nas regiões onde estão situadas, os autores observaram que as famílias encontram-se numa melhor situação de vida na condição de assentados do que antes de vir para o assentamento e que esta melhoria de vida tem promovido uma recomposição familiar, possibilitando suporte para outros membros da família.

 

“Em mais de 80% dos lotes vivem filhos dos responsáveis, a maioria menor de 14 anos, com uma média em torno de três filhos por família. Uma parcela significativa dos lotes (24%) conta também com outros parentes, como pais/sogros, genros/noras, irmãos/cunhados, netos, etc. Eles, em geral, não viviam com a família nuclear antes do assentamento e foram sendo incorporados à unidade doméstica, o que indica que os assentamentos vêm atuando como mecanismos de recomposição das famílias, tanto contribuindo para a reconstituição de laços familiares (antes desfeitos ou ameaçados pela necessidade de deslocamento de filhos, pais, irmãos, em busca de alternativas de sobrevivência), quanto funcionando como uma forma temporária de amparo para familiares.” (Heredia et al, 2002, p. 83)

 

Gostaria ainda de comentar dois últimos aspectos para finalizar essa reflexão sobre os jovens dos assentamentos rurais. O primeiro diz respeito à discriminação sentida por muitos desses jovens, principalmente no ambiente escolar, quando estes estudam nas escolas municipais e estaduais nas cidades próximas aos assentamentos, por parte de alguns colegas de sala de aula e, às vezes, até por alguns professores. A imagem passada, principalmente pela mídia, que associa os trabalhadores rurais e, principalmente, o MST a vagabundos, ladrões de terras e marginais, dificulta bastante a chegada dessas famílias na nova região de convívio, cria obstáculos para o estabelecimento de uma relação de respeito e solidariedade. O preconceito que se instala antes mesmo das famílias é sentido na maioria dos contatos estabelecidos entre a população residente e a recém chegada, como na escola, no supermercado, na rua, etc. O estigma de ser sem-terra perpassa a maioria das relações e impede, por exemplo, que alguns jovens assumam sua identidade de assentado, escondendo seu local de moradia, como também chega a interferir na continuidade dos estudos, ocorrendo em casos extremos abandono escolar. Apesar de estarem numa situação diferente, de estarem saindo da margem de exclusão que muitos viviam antes de chegar ao assentamento e de estarem exercitando uma prática cidadã, muitas vezes desconhecida e deficitária entre os habitantes da cidade, o estigma de ser sem-terra supera de início as possibilidades de relação, encontro, criação e junção de forças. Entretanto, mesmo com esta dificuldade, os assentados têm enfrentado mais este desafio e têm mostrado com seu trabalho e sua constante luta que ser sem-terra é ser cidadão e, ao longo da convivência, têm conseguido desconstruir, de forma gradativa, esta imagem negativa e conseguido, também,  colher frutos de uma convivência pacífica, produtiva, solidária e participativa.

 

O outro aspecto final que gostaria de enfatizar, é que a condição de assentados possibilita o resgate da cidadania de uma população de excluídos e, com isso, tem ampliado e intensificado os cursos de reivindicações já existentes nas localidades onde os assentamentos estão situados, com a participação da população assentada que, juntamente com a não assentada, estão buscando o atendimento de necessidades como assistência à saúde, educação, transporte, etc. Ou seja, alguns estudiosos como Heredia et al (2002) e Medeiros e Leite (2002) têm apontado como um dos impactos positivos da presença dos assentamentos no contexto local, é a instauração de uma cultura mais participativa, alterando as relações de poder local e aumentando as formas de articulações  e pressão em torno de demandas que já existiam na região. Neste sentido, vale a pena citar o texto abaixo que mostra que a juventude assentada tem sonhos, aspira um mundo melhor, mudanças e transformações.

 

“O Brasil que queremos”

Sou criança pobre, e vivo num país rico. Mas eu também tenho direito de sonhar.

Esta noite tive um sonho. Sonhei que todos os agricultores tinham terra para plantar; os desempregados estavam todos trabalhando com salário digno; nos hospitais as pessoas eram bem atendidas e os médicos ganhavam bem; todos iam a escolas de boa qualidade e boa merenda escolar; favelas não existiam, pois todos tinham casa com energia elétrica, banheiro e água encanada. Seca e enchente eram coisas do passado, pois esses problemas já tinham sido resolvidos. Os jovens e adolescentes não conheciam a violência nem drogas. Mendigo e criança de rua não existiam. Todos tinham seu lar. Fome? Não existia mais. Alimentos de boa qualidade em todas as mesas. Infelizmente acordei e voltei à realidade do meu Brasil Como gostaria que o Brasil fosse igual ao do meu sonho!

Grupo de criança e adolescente Assentamento Padre Gino – Sapé / Pb

(In Borges, Maffioletti e Vieira, 2002).

 

 

4. Conclusão

A partir do que foi exposto, podemos concluir que a realidade dos jovens do assentamento está relacionada com a viabilidade dessas comunidades em desenvolverem-se e promoverem alternativas para geração futura que não diz respeito apenas às mesmas, mas também é de responsabilidade coletiva, de entidades governamentais e da sociedade civil como um todo.

 

Refletir sobre a questão dos jovens assentados implica em debater sobre a dicotomia rural/urbano, aos processos de rurbanização e reformulação de conceitos para o mundo rural, bem como tocar em questões relacionadas ao êxodo, aos processos sucessórios, a busca de alternativas e melhoria da qualidade de vida, à educação, saúde e cidadania.

 

A questão do trabalho e geração de renda também está bastante presente nas preocupações em torno dos jovens. É fundamental pensar a questão do trabalho, seja ele agrícola ou não-agrícola, rural ou urbano, como um desafio conjuntural que envolve uma rede de entidades envolvidas situadas tanto no campo como na cidade. Como exemplo, o trabalho agrícola requer planejamento, requer condições para produção, transporte, comercialização; implica em prover outras necessidades como infra-estrutura, melhoria de estradas, materiais para construção de casas; requer também conhecimento técnico, capacitação e formação, investimentos diversos, pesquisa de mercado etc. As necessidades dos assentados são múltiplas como as de qualquer comunidade. É preciso que reconheçamos que atender necessidades é gerar possibilidades de trabalho e geração de renda, é ampliar a rede de educação, saúde, transporte, é criar espaços de lazer, é inovar. Perceber as ligações diretas e indiretas que envolvem a criação dos assentamentos é fundamental. Campo e cidade não podem ser vistos como mundos opostos em contradição, como afirma Ferreira (2002), são esferas interdependentes e complementares. Abrir possibilidades para a inovação, potencializar recursos e renovar as concepções são caminhos promissores e os jovens representam atores estratégicos neste processo.

 

 Contudo, fica evidente também a complexidade que a dinâmica dos assentamentos instaura, necessitando de mais estudos, mais reflexões que promovam a renovação do pensamento e da compreensão acerca dessa população e da reforma agrária. É importante, para isso, esforços conjuntos tanto dos estudiosos quanto das comunidades, dos movimentos sociais e das ONG’s, dos órgãos públicos e da sociedade civil, da mídia e do setor privado, visto que há laços de interligações colocando em contato, alterando e influenciando as múltiplas interações entre as questões urbanas e rurais.

 

Para finalizar, gostaríamos de frisar a característica emergencial e experimental dessas comunidades. Os assentamentos são comunidades bastante recentes, que podem ser vistos como “laboratórios” como propõe Medeiros e Leite (2002) onde pessoas comuns exercitam e ensaiam novas formas de convívio social e de trabalho. Assim, há um potencial latente de transformação e de criação que é alimentado pela esperança e pela motivação dessas pessoas, sem esquecer a existência das tensões, das decepções e dos conflitos. Pensando, então, a respeito desses jovens, a situação de assentados aquece sonhos, como diz os adolescentes do Padre Gino, com um mundo melhor, em que uma educação e uma cultura cidadã estejam mais presentes.

Referências Bibliográficas

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[1] “As ligas camponesas” - movimento social que teve sua maior expressão no nordeste brasileiro, sendo considerado por alguns estudiosos como antecessor ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. (Ver História e Natureza das Ligas Camponesas. Stedile (Org.), 2002).