O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O SISTEMA RECURSAL NO PROCESSO PARA APURAÇÃO DE INFRAÇÃO PENAL: UM PROCESSO GARANTISTA?

 

 

Maria Cristina Cardoso Moreira de Oliveira

Procuradora de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

 

 

Sumário: 1.O Estatuto da Criança e do Adolescente – 2. A Responsabilidade Penal Juvenil – 3. Sistema Recursal – 4.Do não conhecimento do Recurso de Apelação – 5. Da Renúncia ao Apelo – 6. Conclusões – 7. Bibliografia

 

 

1.      O Estatuto da Criança e do Adolescente

 

Na esteira do texto constitucional de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990 – caracterizou-se como verdadeira ruptura com o modelo até então vigente e orientador do antigo Código de Menores – Lei nº 6.697/79 – que adotava a Doutrina da Situação Irregular.

 

Encontrando suas mais recentes raízes na Convenção sobre o Direito da Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas e na adesão, pelo Brasil dessa Convenção, em 1990, a Doutrina da Proteção Integral que se baseia no reconhecimento de todos os direitos da criança e do adolescente e tem por base a satisfação dos interesses e necessidades das pessoas com até dezoito anos de idade, vislumbra não apenas questões de ordem civil envolvendo crianças e adolescentes, mas também de ordem penal, contemplando a prática de atos infracionais por jovens autores e outorgando-lhes a condição de "sujeitos do processo", detentores de direitos e obrigações, obedecida, é claro, sua condição de pessoa em desenvolvimento.

 

A doutrina da proteção integral, levando em conta o adolescente infrator estabelece direitos e garantias, postas na Constituição Federal e na Convenção firmada pelo Brasil, de forma a manter a inimputabilidade dos menores de dezoito anos de idade, conforme determinado no artigo 228 da Constituição Federal sem entretanto descuidar da prática do ato infracional praticado pelo adolescente, prevendo, à semelhança do Código Penal brasileiro, além das medidas socioeducativas vislumbradas, a privação provisória da liberdade com internamento fechado, equiparando-a ao regime fechado de cumprimento de pena.

 

Ao contrário, entretanto, do sistema administrativizado previsto no direito processual penal relativamente à execução das penas privativas de liberdade, no que respeita ao cumprimento das medidas socioeducativas de privação da liberdade, o ECA prevê uma série de regramentos que além de procurar evitá-las ao máximo, restringem-nas também quanto ao período temporal de sua fixação.

 

Muito embora não se possam afastar de todo, as características da instituição meritocrática definida por Foucault[2], percebe-se uma nítida limitação do poder de punir estatal, em especial no que diz respeito a utilização de um processo garantista a ser observado.

 

2.      A Responsabilidade Penal Juvenil

 

A "responsabilidade penal juvenil" dos adolescentes, assim definida por João Batista da Costa Saraiva[3], como meio apto a responsabilizar o adolescente pela prática dos seus atos, encontra bases doutrinárias na Carta Política e na Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Juventude, caracterizando-se pela diferenciação das medidas socioeducativas relativamente às penas criminais, quanto ao aspecto pedagógico e a sua duração.

 

Refere ainda, o citado autor, que essa "imputabilidade" frente à legislação especial vem prevista na própria Constituição Federal, quando dispõe, na segunda parte do artigo 228 – que remete à legislação especial casos excepcionais como é o do adolescente infrator – sendo que as medidas previstas como aplicáveis a esses infratores, muito embora possuam características nitidamente retributivas e socioeducativas traduzem-se em respostas justas, adequadas e indispensáveis à repressão da delinqüência.

 

Assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente, hoje com dez anos de vigência, é considerado uma das mais modernas legislações no âmbito da proteção dos direitos à criança e ao adolescente em nível mundial, sendo poucas as legislações que têm disciplinado a matéria com tão grande acuidade.

 

Nas palavras da pesquisadora Annina Lahalle[4], a legislação brasileira é a primeira legislação latino-americana a ter incorporado em seu texto tanto as regras de proteção e de garantia dos direitos do menor infrator como as de proteção da criança vítima de abandono ou outra violência.

 

3.      Sistema Recursal

 

A despeito de traduzir as mais modernas tendências na outorga das garantias fundamentais da criança e do adolescente, o Estatuto descuida dos direitos e garantias individuais do adolescente infrator, quando escolhe o Código de Processo Civil como orientador do sistema recursal relativamente à prática do ato infracional criando, com isso, uma evidente infração aos princípios constitucionais orientadores de um processo penal garantista, se comparado o adolescente infrator aos criminosos maiores de 18 anos que se vêem tutelados pelo Código de Processo Penal, no que respeita ao devido processo legal.

 

O equivocado paralelismo entre processo civil e processo penal, mais uma vez se faz presente, descurando, assim, o correspondente sistema acusatório equiparando-se à concepção de Carl Binding que adotava o Código de Processo Civil para disciplinar também o processo penal.

 

Ao contrário do que pressupõe o direito processual civil – composição da lide – o ato infracional praticado por adolescente tem nítido caráter penal e sua apuração, conforme dispõe o estatuto, obedece, estritamente, aos pressupostos processuais penais básicos – tanto que a lei em comento repisa os dispositivos do Código de Processo Penal na determinação do procedimento a ser observado e, ainda, na caracterização de um direito penal de garantias, autorizador de um sistema processual acusatório.

 

Na esteira de James Goldschimidt[5], tal procedimento pressupõe a liberação de cargas probatórias pelas partes , na medida em que tem interesse na busca da pretensão almejada.

 

Basta a simples leitura dos artigos que evidenciam a apuração do ato infracional no Estatuto para que se verifiquem assegurados ao adolescente, um procedimento orientado por princípios processuais de características garantistas e, por isso mesmo, característicos de um sistema acusatório. Isso porque, evidencia-se no Estatuto o fim primeiro de conferir aos adolescentes, ainda que infratores, e às crianças a garantia dos seus direitos fundamentais, somando-se aos mesmos, as garantias de submissão a um procedimento justo, adequado, isento de qualquer resquício ditatorial, em total correspondência com os ditames Constitucionais[6].

 

Assim, quer pelo conhecimento do ato infracional que lhe é atribuído; ou ainda, na interposição da representação pelo Ministério Público; na determinação da igualdade de partes estabelecendo o contraditório e a mais ampla defesa; na necessária designação de advogado ao adolescente; ou ainda, na evidente e indispensável instrumentalidade do processo correspondente; ou finalmente na característica do juiz – natural e imparcial – estão presentes no respectivo procedimento, as características de um sistema acusatório, observando-se, assim, o devido processo legal previsto na Constituição Federal.

 

Em que pese o indiscutível e moderno questionamento acerca do necessário direcionamento do processo penal a um sistema acusatório, reclamado nas obras de Jacinto de Miranda Coutinho[7] e Salo de Carvalho[8] desvinculado de resquícios inquisitoriais e voltado à proteção dos interesses individuais e sociais postos na Constituição e, via de conseqüência comprometido com a questão da liberdade, como lembra Afrânio Silva Jardim[9] característica de um Estado de direito, onde a validade e eficácia das normas jurídicas se estabelecem em vista da leitura constitucional dos direitos fundamentais e sociais caracterizados como expressão da soberania popular, numa leitura heteropoiética[10] do ordenamento jurídico, capaz de impedir, do ponto de vista político, o estabelecimento de um estado totalitário ou absolutista e, ao invés disso submetendo a vontade do legislador aos interesses de toda uma coletividade, o Estatuto fica aquém desses questionamentos, elevando ao mesmo patamar e tratando de maneira assemelhada os recursos que contemplam matéria de ordem eminentemente civil – guarda, tutela, adoção, ação civil pública, etc.. – e aqueles que dizem respeito à apuração do ato infracional do adolescente.

 

É nesse passo que se vai verificar a desconstrução dos até aqui ressaltados, princípios orientadores de um processo penal acusatório.

 

Se nas palavras de Candido Rangel Dinamarco[11], o processo precisa refletir as bases do regime democrático nele proclamadas, caracterizando-se como o microcosmos democrático do Estado de Direito, com as conotações da liberdade, igualdade e contraditório, em clima de legalidade e responsabilidade, a legitimação da atividade jurisdicional no dizer de Ferrajoli é a atuação dos juizes na busca do caráter representativo da verdade substancial, sujeitando-se somente à lei válida, porquanto constitucional[12]. Nessa sujeição do juiz à Constituição, onde reside o "principal fundamento atual da legitimação da jurisdição e da independência do poder Judiciário, frente aos poderes legislativo e executivo"[13]tendo em vista que os direitos e garantias são de cada um e de todos e sua garantia exige um juiz terceiro independente que possa intervir para reparar injustiças sofridas, se evidencia a crise da nova legislação menorista, como ocorre na atualidade com o próprio direito penal.

 

Não se pode olvidar, é bem verdade, que o avanço da legislação menorista relativamente à tutela dos interesses do adolescente infrator se opera, no novo Estatuto de forma a evidenciar os princípios da legalidade – orientador de um direito penal garantista – e do devido processo legal, inclusive no que respeita ao duplo grau de jurisdição – ao contrário do antigo Código de Menores que, além de aplicação de medidas não devidamente determinadas ou esclarecidas em seu bojo, previa recursos apenas em nível administrativo, remetendo ao Conselho da Magistratura o julgamento dos recursos referentes à matéria, deixando de estabelecer o procedimento digno da preservação dos direitos fundamentais do adolescente infrator.

 

Além disso, é indiscutível que a lei se demonstra imbuída de fazer valer seu espírito garantidor dos princípios postos na Constituição Federal relativamente a seu público alvo.

 

Entretanto, é de se ressaltar que o equívoco operado quando da determinação do procedimento recursal poderia ter sido, desde logo, dissipado estabelecendo-se um duplo sistema recursal: aquele destinado à proteção dos interesses e garantias da criança e adolescentes – de caráter eminentemente civil e por isso mesmo regulado pelo Código de Processo Civil, no intuito de fazer valer a função do processo civil que é a composição da lide; e um segundo, que diria respeito aos procedimentos de atos infracionais – de caráter eminentemente penal e regulado pelo Código de Processo Penal, para o fim da plena observância dos critérios orientadores do devido processo garantista.

 

A divisão se impunha. Tanto, que nos artigos reguladores do procedimento infracional é nítida a preocupação do legislador para a caracterização daquilo que Luigi Ferrajoli na sua obra Direito e Razão[14] definiu como os cinco pilares orientadores de um processo penal garantista, e tão bem analisados e subdividido, o último, para fins didáticos, por Aury Lopes Júnior in "O fundamento da existência do processo penal: instrumentalidade garantista"[15].

 

Esses pilares, de acordo com a subdivisão operada por Aury Lopes Júnior, agora em número de seis – jurisdicionalidade, inderrogabilidade, separação entre acusador e julgador, presunção de inocência, contraditório e fundamentração da decisão – servem de garantia instrumental aos direitos do "imputado" seja ele menor infrator – responsável pela prática dos atos infracionais que correspondam a crimes e contravenções – seja maior de dezoito anos – responsável pela prática dos crimes definidos no Código Penal e em leis especiais – de forma a minimizar os espaços impróprios da discricionariedade judicial, oferecendo um sólido fundamento para a independência da magistratura e ao seu papel de controle da legalidade do poder (idem, ibidem).

 

É que assim caracterizado o devido processo legal, constitui-se o mesmo em instrumentalidade das garantias tornando-as efetivas ao assegurar-lhes o máximo de imparcialidade, verdade e controle[16]. Ademais, verificada essa correlação biunívoca entre garantias penais e processuais é que se estabelece o nexo específico entre lei e juízo, em matéria penal.

 

Impõe-se, pois, a conclusão de que no caso do estatuto da criança e do adolescente, ocorreu a quebra desse nexo específico entre lei e juízo, restando descaracterizado o principal princípio processual garantista, qual seja, o da jurisdicionalidade. Sem essa característica, resta desconstruida qualquer possibilidade de assegurar-se ao adolescente infrator, as garantias tão evidenciadas no correspondente Estatuto, havendo severa afronta às mesmas, dando margem a interpretações jurisprudenciais desviadas, com certeza, dos interesses buscados quando de sua edição, distanciando-se de sua finalidade primeira.

 

4.      Do não conhecimento do Recurso de Apelação

 

Uma dessas interpretações, diz respeito ao não conhecimento dos recursos de apelação cujas razões sejam juntadas em momento posterior ao da interposição do recurso; ou ainda, daqueles cujas razões não sejam juntadas.

 

São decisões do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, as que seguem, sobre a matéria:

 

" Menor. Apelação: processo infracional. Nos processos infracionais contra menor, a sistemática recursal adotada é a do CPC, segundo a qual, as razões de recurso devem ser apresentadas junto com a petição recursal ou, no máximo, dentro do respectivo prazo. Não conhecimento: não se conhece de apelo com razões apresentadas a destempo. Inaplicação do CPP." (Apelação-Cível nº595.090.036. 7ªCâmara Cível. Relator Des. Waldemar L. de Freitas Filho.); e" Processual civil. Apelação sem fundamentação – Não conhecimento. Não se conhece do recurso de apelação, formulado sem fundamento, por falta de dialeticidade ou razões de inconformidade recursal. Recurso não conhecido." Apelação-Cível nº 595.111.576.Câmara de Férias Cível. Relator Des. Celeste Vicente Rovani).

 

Nesse mesmo sentido, as apelações-cíveis de nº595.154.022 e 596.003.210 da 7ªCâmara Cível; e ainda 595.202.110 e 596.005.926 da 8ª Câmara Cível.

 

Se o procedimento escolhido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente correspondesse àquele previsto no Código de Processo Penal, ao contrário do que verificamos hoje, estaria estabelecido o nexo que vincula ao direito penal garantista, pois indiscutível., do ponto de vista do processo penal que qualquer recurso proposto dentro do prazo legal – é claro que observados os casos de limitação da apelação, quando houver – acompanhado ou não de razões recursais juntadas tempestiva ou intempestivamente, são passíveis de conhecimento, como forma de garantia da jurisdicionalidade, considerada a jurisdição em seu sentido estrito, qual seja, típico de um estado de direito, dentro de um sistema processual acusatório, e de um modelo processual cognoscitivo, garantista, onde se estabelece a verdade processual, observado, ainda, o princípio da presunção de inocência e evidenciada a liberdade desse inocente, através da possibilidade da mais ampla defesa.

 

Essa jurisdicionalidade que assegura ao "acusado" o direito de ser julgado por um juiz "natural" e "imparcial", que não pode declinar de suas funções, nem eximir-se de proferir a correnspondente sentença, pressupõe a devolução, ao segundo grau de jurisdição, de toda a matéria decidida no primeiro grau, sendo defeso o não conhecimento do apelo por falta de motivação, bastando que diga à parte que não se conforma com a decisão proferida., para ver conhecido seu recurso. É isso que se depreende da leitura do artigo 599 do Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial:

 

" O artigo 599 do CPP não determina ao recorrente que, no ato de interposição, dê a motivação do recurso. No ordenamento procedimental o que se exige, apenas, e com rigor, é que deixe patente, num lapso de tempo fatal e improrrogável, , sua inconformidade com a sentença." (Revista dos Tribunais, 563/349. No mesmo sentido, RT 553/390;544/349; 544/425-6; 574/384;552/350); 556/338.

 

Da mesma sorte, a não apresentação das razões de apelo, pelo réu, não impede o conhecimento da apelação e seu julgamento. É entendimento pacificado na jurisprudência pátria, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal do conhecimento do apelo formulado, mesmo que não acompanhado das razões recursais devendo o Magistrado de primeiro grau remeter o recurso à superior instância em cumprimento ao previsto no aludido artigo.

 

Nesse sentido, decisão oriunda do extinto Tribunal de Alçada deste Estado, publicada na Revista dos Tribunais de nº678/369:

 

" Por força do artigo 601 do CPP, subindo apelo sem as razões, é tido como pleno, posto abranger não só apenamento, como também, e sobretudo, o mérito, com o que fica assegurada ao apelante a garantia constitucional da ampla defesa." (No mesmo passo, RTJRS 148/137; 65/108; RT 676/309; JTACRESP 58/235, 68/266)

 

Não é diferente o que ocorre no caso da juntada extemporânea das razões recursais, em caso de apelo, constituindo, à luz da jurisprudência, mera irregularidade que não tem o condão de impedir seu conhecimento.

 

Dessa feita, verifica-se, conforme entendimento dominante de nossos Tribunais que com o fim de assegurar a mais ampla defesa ao acusado, deve o recurso de apelação ser conhecido, desde que proposto dentro do prazo legal, independente de se fazer acompanhar das correspondentes razões recursais.

 

Essa amplitude de defesa, não se verifica no atual sistema recursal do Código de Processo Civil impedindo, no caso do ECA, a instrumentalidade garantista relevada por Ferrajoli no Capítulo X de sua obra e descaracterizando, assim, um direito penal de garantia, aos adolescentes infratores.

 

No caso do Estatuto da Criança e do Adolescente, quando remete ao Código de Processo Civil, a regulamentação do recurso de apelação, das decisões que imprimem ao adolescente infrator, medida socioeducativa, descuida de assegurar a garantia tão relevada em seu texto, dos direitos fundamentais desse adolescente, numa contradição indiscutível.

 

Permite, com isso, a descaracterização do devido processo legal e via de conseqüência a caracterização de um procedimento de caráter nitidamente inquisitorial, que priva o adolescente infrator do acesso à justiça e ao reconhecimento das garantias processuais que lhe são devidas quanto ao asseguramento de seu direito à liberdade.

 

A figura do juiz caracterizada no processo penal pátrio como um órgão super e inter partes, neutro e imparcial é completamente esquecida no Estatuto, porquanto em face do não conhecimento dos recursos dezarrazoados em razão das regras contidas no Código de Processo Civil, nega-se ao adolescente – definido como inimputável na Lei Maior – um direito reconhecido aos, inclusive, penalmente imputáveis, maiores de 18 anos, qual seja, o de ver submetido ao segundo grau de jurisdição o recurso tempestivamente interposto, independentemente de se fazer acompanhar de razões recursais, assegurando-se-lhe, assim, o princípio da ampla defesa, necessário à caracterização do devido processo legal.

 

Nega-se ao adolescente, saliente-se mais, uma vez, o princípio da jurisdicionalidade.

 

5.      Da renúncia ao apelo

 

Peca o Estatuto, também, no que diz respeito à aplicação da medida socioeducativa ao adolescente infrator, ao impossibilitar o recurso de apelação, pelo defensor, ou ainda pelo Ministério Público em caso de renúncia, pelo adolescente, ao recurso.

 

O direito de renúncia à interposição do recurso, vem previsto no ECA e permite que o adolescente, quando de sua intimação da decisão condenatória manifeste seu interesse em não recorrer da decisão. Essa manifestação pode ser certificada pelo Oficial de Justiça responsável pela intimação, impedindo a interposição do recurso pela defesa do adolescente, ou melhor, obstaculizando seu conhecimento, pelo segundo grau de jurisdição, diante do que dispõe o Código de Processo Civil.

 

Na obra Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado- comentários jurídicos e sociais, Nelson Néry Júnior ao comentar o artigo 198 do Estatuto reputa impossível, em face da renúncia do adolescente, o conhecimento do recurso interposto por sua defesa[17], porquanto essa renúncia é impeditiva  do conhecimento do recurso. Não atenta, entretanto, o processualista civil, para os critérios de efetividade dessa renúncia ou seja, das condições ou capacidade processual de seu autor ao afirmá-la.

 

A regra que contempla a referida renúncia deve ser, entretanto, declarada inconstitucional, em se tratando o adolescente infrator de pessoa com idade inferior a vinte e um anos e, portanto, incapaz de avaliar a real extensão da aplicação da sentença condenatória e, mais ainda, das medidas socioeducativas impostas, mormente a de internação ou semiliberdade, de nítido caráter sancionatório que pode se estender por período de até três anos. Ademais, a possível incapacidade do adolescente em evidenciar a possibilidade da aplicação de uma medida de internação, quando em realidade outra medida se impunha, como critério apto a evitar a internação, conforme disposto no artigo 122 do ECA, não é de pronto afastada.

 

A esse respeito, Emílio García Mendez, na obra citada evidencia que o aspecto mais importante do artigo 122 se encontra no §2º que. literalmente, inverte o ônus da prova, obrigando a autoridade judicial a demonstrar que não existe outra medida mais adequada que a internação. Mesmo na hipótese dos incisos I e II do referido artigo, a privação da liberdade deve ser evitada existindo, antes dela, outras medidas de caráter mais adequado[18].

 

No mesmo sentido e com referencia às medidas de semiliberdade, Alessandro Baratta[19] assevera: "Deve-se, portanto, considerar válido, também para a semi-liberdade o limite de aplicabilidade estabelecido para a internação com os incisos I, II e III do "caput" do artigo 122 em relação à gravidade das infrações.

 

Há que se questionar, à luz desses argumentos interpretativos, como poderá o adolescente avaliar o princípio da excepcionalidade previsto na legislação especial e determinar sua renúncia ao recurso, mediante simples manifestação ao oficial de justiça, sem que seja assistido por curador, ou ainda, ouvido em juízo sobre essa renúncia? Como poderá dispor de uma ampla avaliação da sentença que lhe aplicou uma medida de internação ou semi-liberdade?

 

À toda evidência, o dispositivo fere as garantias individuais do adolescente infrator, impossibilitando, inclusive ao órgão do Ministério Público, que ao ver afastado seu pedido relativamente à "absolvição" do adolescente infrator, tenha reconhecido seu recurso de apelação ante a renúncia do adolescente a esse direito.

 

Segundo evidencia Zaffaroni[20] em comentários aos artigos 207 e 206 do ECA, as conseqüências do processo são limitações ao princípio da inocência, demonstrando-se de considerável gravidade quando referentes a um adulto, e em grau muito mais elevado, quando se refere ao adolescente infrator, constituindo-se em medida estigmatizante que afeta a auto-estima e faz aflorar a conduta desviante.

 

Dessa feita, mais uma razão se encontra em destaque de modo a evidenciar a real necessidade da interposição do recurso de apelação em favor do adolescente infrator não apenas porque não possui as condições necessárias para avaliar o que pode ou não ser favorável à sua pessoa, mas principalmente em obediência aos princípios constitucionais da mais ampla defesa e da presunção de inocência, reconhecidos quando da instauração do devido processo legal.

 

Conforme se verifica do Código de Processo Penal brasileiro em caso de renúncia de recurso pelo réu maior de 21 anos, esta deverá ser tomada por termo perante o próprio juiz ou por petição própria. No caso, entretanto dos réus cuja idade situa-se entre 18 e 21 anos e, portanto caracterizada a menoridade do agente, a renúncia não impede a propositura da correspondente apelação pela defesa, tendo em vista a não compreensão, pelo agente, da extensão de sua condenação, pelo que impõe-se a efetiva avaliação da necessidade de interposição de recurso ou não, por parte de seu defensor, como critério apto a assegurar a ampla defesa e, via de conseqüência, o princípio da jurisdicionalidade.

 

Mais uma vez, repise-se, o evidente descompasso do Estatuto da Criança e do Adolescente com relação à adoção do sistema recursal do Código de Processo Civil relativamente aos procedimentos de prática de atos infracionais por adolescentes. Esse procedimento, além de imprestável ao processo penal de garantias sequer se presta a limitar o poder estatal na sua tendência antigarantista, ou ainda legitimá-lo na preservação e promoção dos direitos voltados à satisfação dos interesses da sociedade.

 

 

6.      Conclusões

 

Na esteira das observações acima gizadas, é bom que se questione o real direcionamento do Estatuto da Criança e do Adolescente, especialmente na garantia dos direito individuais e fundamentais do adolescente infrator, observando-se os princípios penais garantistas orientadores de um processo penal garantista que se impõem na determinação do procedimento de apuração da infração penal praticada por adolescente. A indevida adoção de um sistema recursal orientado por princípios processuais civis, além de quebrar com a hierarquia dos direitos individuais reconhecidos na norma Constitucional – no caso concreto, a desigualdade perante a lei – servem ao abandono de um processo penal garantista.

 

Urge, pois, que se restabeleça, contrariamente à situação criada com a adoção do procedimento processual civil previstas no ECA, um redimensionamento acerca da regulamentação dos recursos de apelação que digam respeito ao procedimento de apuração do ato infracional, outorgando-lhe características e regulamentação previstas no Código de Processo Penal que, nesse particular se demonstra mais benéfico ao adolescente infrator, como demonstra quando do tratamento dos criminosos comuns.

 

Essa adequação servirá para retomar, no procedimento menorista, o devido processo legal, à semelhança de um modelo garantista e preocupado com a realização da justiça.

 

 

 

7.      Bibliografia

 

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Notas

 

[1] Mestranda em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

[2] Foucault, Michel. Vigiar e Punir – Histórias da Violência nas Prisões. Editora Vozes Ltda. Petrópolis, 1977 na obra Vigiar e Punir e tão bem analisada na obras de Erwing Goffman, Estigma (Goffman, Erwing. Estigma: NOTAS SOBRE A Manipulação da Identidade Deteriorada. 4ªed. Editora Guanabara, 1988.) e Manicômios, Prisões e Conventos (Goffman, Erwing. Manicômios, Prisões e Convetos. 6ªed. Editora Perspectiva S.A, 1999).

[3] Saraiva, João Batista da Costa. Adolescente e Ato Infracional – Garantias Processuais e Medidas Socioeducativas. Livraria do advogado Editora. Porto Alegre, 1999, p.38.

[4] Lahalle, Annina. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 3ªed. Malheiros, SP, 2000, p. 31

[5] Goldschmidt, James. Principio Generales del Proceso – Problemas juridicos y politicos del processo penal. Ediciones Juridicas Europa-America, Buenos Aires

[6] Prado, Geral. Sistema Acusatório. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 1999.

[7] Coutinho, Jacinto Miranda. Separata ITEC!, ano I, nº4, p.01.

[8] Carvalho, Salo de. Aplicação da Pena e Garantismo. Lumen Juris, Rio de janeiro, 2001.

[9] Jardim, Afrânio Silva. Bases Constitucionais para um Processo Penal Democrático in Direito Processual Penal, 7ªed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, p.317.

[10] Cademartori, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem, garantista. Liraria do Advogado, Porto Alegre, 1999, p. 162. 

[11] Dinamarco, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do processo, 3ªed.Malheiros. SP, 1993, p. 27.

[12] Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón – Teoria des garantismo Penal, 4ªed.Editoril Trotta. Madrid,2000, p. 69)

[13] Ferrajoli, Luigi. O Direito como Sistema de Garantias in O Novo em Direito e Política. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1997, p. 101.

[14] Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal, 4ªed. Editorial Trotta,Madrid, 2000, p.372.

[15] Lopes Jr, Aury Celso L. O fundamento da exist~encia do processo Penal: instrumentalidade garantista. Revista da Ajuris, nº76, Associação dos Juízes do rio Grande do Sul. Porto Alegre, dezembro de 1999, pg.208.

[16] Ferrajoli, Luigi. Derecho y razón. P. 537.

[17] Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado - Comentários Jurídicos e Sociais. Coordenadores: Munir Cury, Antônio Fernando do Amaral e Silva e Emílio García Mendez. 3ªed. Malheiros, SP., 2000, pp. 614/615.

[18] Mendez, Emilio García – UNICEF/América do Sul. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 3ªed. Malheiros, SP, 2000, pp. 402/403.).

[19] Baratta, Alessandro. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 3ªed. Malheiros, SP, 2000, pp. 394/395.

[20] Zaffaroni, Raùl Eugênio. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 3ªed. Malheiros, p. 683.