EXCELENTÍSSIMO
SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DA COMARCA DE SUMARÉ
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, pelo 3º Promotor de
Justiça de Sumaré, vem, legitimado
pelo artigo 129, inciso III, da Constituição Federal e artigo 201, inciso V, da
Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e fundado nos artigos
196, 203, IV e 227, §1º, todos da Constituição Federal; artigo 219, parágrafo
único da Constituição Estadual e nos artigos 4º, parágrafo único, letra “b”;
11, parágrafo 1º e 208, VIII, da Lei Federal nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e
do Adolescente) ajuizar AÇÃO CIVIL
PÚBLICA, com pedido de tutela liminar (artigo 213, § 1º) e pedido de
preceito cominatório de obrigação de fazer, sob o rito ordinário, para a proteção
de interesse individual indisponível da criança E.L.d.S. (nascida em 19.11.88), em face do MUNICÍPIO DE HORTOLÂNDIA, representado pelo Prefeito do Município, pelas
razões de fato e de direito que passa a expor:
A criança E.L.d.S., filha de E.d.S. e A.N.M.d.S., conforme
apurado em procedimento administrativo (nº 06/00), estudava em escola municipal
situada nas proximidades de sua residência (Caic do Jardim Amanda).
Ocorre que, em virtude de
episódio envolvendo uma de suas professoras, que teria adotado atitude
discriminatória para com a menor, a infante passou a apresentar distúrbio
psicológico denominado “transtorno de somatização” (CID-10).
Constatou-se que a
permanência da criança na escola acarretaria o agravamento do distúrbio psíquico,
bem assim que a criança necessita de acompanhamento psicoterápico.
Nesse sentido, há relatório
firmado por Médico Reumatologista-Pediatra (fls.10/12) e por Psicólogas (fls.09
e 13/14), que apontam, inclusive, que caso não adotadas
essas recomendações, a incapaz suportaria prejuízo físico e moral.
Diante das circunstâncias,
isto é, verificando-se que a criança não poderia continuar freqüentando a
escola em que estava matriculada – onde ocorreram os fatos
desencadeadores do distúrbio – seus pais cuidaram de matriculá-la na
Escola Estadual Paulo Camilo Camargo.
Uma vez que tal
estabelecimento de ensino situa-se em local distante da residência da menor,
faz-se necessária a utilização de transporte público,
porém seus pais, porque pobres, não podem arcar com essa despesa.
Acresce a isso a
circunstância de o Município de Hortolândia não oferecer à menor o tratamento
psicoterápico de que necessita, obrigando a menor e um de seus responsáveis a
locomoverem-se, várias vezes por semana, ao Município de Campinas, onde a
incapaz submete-se a tratamento (Unicamp).
A municipalidade, até a
presente data não adotou qualquer medida efetiva no sentido de propiciar à
menor o tratamento de que necessita ou de matriculá-la em estabelecimento de
ensino próximo de sua residência, com exclusão do Caic do Jardim Amanda, ou
mesmo de colocar à sua disposição
transporte gratuito adequado.
II - DA COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA INFÂNCIA E JUVENTUDE E DA
LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
O Estatuto da Criança e do
Adolescente, em seu artigo 148, IV, estabeleceu a competência do Juízo da
Infância e Juventude para julgamento das ações fundadas em interesses
individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente.
O legislador menorista, por
outro lado, visando a dar concretude à doutrina da proteção integral, incumbiu
o Ministério Público de zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias
legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais
e extrajudiciais cabíveis, tais como a propositura de ação civil de iniciativa
pública na defesa de direito individual indisponível (artigo 201, V e 212, do ECA), dentre os quais ganha especial relevo o acesso às ações e serviços de saúde
(artigo 208, VII, do ECA) e ao ensino
obrigatório (artigo 208, I, do ECA).
A Constituição Federal
incumbiu o Poder Público, de forma expressa, de promover programas de
assistência integral à saúde da criança e do adolescente (artigo 227, §1º), bem
assim de garantir o acesso de todos à educação (artigo 205).
O Estatuto da Criança e do
Adolescente, repetindo os ditames da Lei Maior, cometeu ao Poder Público, em
seu artigo 4º, a tarefa de assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos
direitos referentes à vida, à saúde e à educação, dentre outros.
Esse mesmo diploma,
delimitando a atribuição do ente federativo ora demandado de acordo com a
matriz da Carta Política (artigo 227, §7º e artigo 204, I), estabeleceu como
diretriz da política de atendimento dos direitos a
municipalização dos serviços (artigo 88, I), restando indisputável a
responsabilidade do Município.
A Carta Política previu,
ainda, a atuação prioritária do Município, quando se tratar de ensino
fundamental e educação infantil (artigo 211, §2º).
A Constituição Federal, além
de cometer aos Municípios o dever de “prestar,
com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de
atendimento à saúde da população” (artigo 30, VII), estabeleceu como
diretriz organizacional dos serviços da rede de saúde a descentralização (artigo 198, I), regramento esse repetido pela Lei
nº 8.080/90 (artigo 7º, IX).
Para dar concretude a tal
diretriz, o legislador infraconstitucional houve por bem enfatizar a atribuição
de serviços para os municípios (artigo 7º, IX, a, da Lei nº 8.080/90), que
ficou incumbido, por meio da Secretaria de Saúde ou órgão equivalente (artigo
9º, III, da Lei nº 8.080/90), de “planejar,
organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e
executar os serviços públicos de saúde” (artigo 18, I, do mesmo Diploma),
bem como de “dar execução, no âmbito
municipal, à política de insumos e equipamentos para a saúde” (artigo 18,
V, do mesmo Diploma).
Induvidoso, pois, que
compete ao município prestar assistência médica e farmacêutica direta à
população, bem assim.
Assim, é atribuição do
município velar pela concessão de tratamento especializado a E.L.d.S., assim também de garantir-lhe
o acesso à educação.
IV – DO DIREITO À EDUCAÇÃO.
A Constituição da República prevê como primeiro direito social básico a educação:
“Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, o
trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade
e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
Assegura à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade,
os direitos sociais, dentre eles a educação (art. 227).
Em capítulo especial (arts.
205/214), a Constituição da República
determina que a educação, direito de
todos e dever do Estado, será promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (art. 205). Quanto
aos princípios, direitos e garantias, destacam-se os seguintes:
a) a igualdade de
condições para o acesso e a permanência na escola (art. 206,
I);
c) o estabelecimento de que
o ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo (art. 208, §
1º);
d) a definição de que
importa em responsabilidade da autoridade competente o não-oferecimento do
ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular (art. 208, §
2º).
A Constituição do Estado de São Paulo consagra a obrigatoriedade
do ensino fundamental a todas as
crianças e o dever do Poder Público no provimento
das vagas necessárias:
“Art. 249 - O ensino
fundamental, com oito anos de duração, é obrigatório para todas as crianças, a
partir dos sete anos de idade, visando a propiciar formação básica e comum
indispensável a todos.
Parágrafo 1º - É dever
do Poder Público o provimento, em todo o território paulista, de vagas em
número suficiente para atender à demanda do ensino fundamental obrigatório e
gratuito.”
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8069/90)
também regula o direito à educação (Capítulo IV, arts. 53/59), reiterando
princípios e garantias já postos pela Constituição da República, e estendendo e criando
direitos. Dessa forma, no que importa ao caso em exame, destaca-se:
a) a garantia à criança e ao
adolescente do acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência
(art. 53, V);
b) a proteção judicial dos
interesses individuais, difusos e coletivos, em especial, no que se refere ao não-oferecimento
ou oferta irregular do ensino obrigatório (art. 208, I), com a legitimação
do Ministério Público para a propositura das ações cíveis fundadas nesses
interesses (arts. 201, IX, e 210, I).
A Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (lei Federal nº 9394/96) também consagra o princípio da igualdade de condições
para o acesso e permanência na escola (art. 3º, inciso I) e
determina como incumbência do Estado-membro:
a) elaborar e executar
políticas e planos educacionais, em consonância com os planos nacionais de
educação, integrando e coordenando as suas ações e as dos seus
Municípios (art. 10, inciso III);
b) assegurar o ensino
fundamental (art. 10, inciso IV).
Veja-se que não bastaria o
Poder Público disponibilizar a matrícula dos menores em sua rede de ensino
fundamental: torna-se necessário que o faça em lugar acessível àqueles que necessitam estudar.
Atento a esse princípio, o
legislador constituinte contemplou a garantia de “atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas
suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência
à saúde” (artigo 208, VII, da CF)
Matricular-se menor cuja
família tenha parcos recursos financeiros em unidade educacional distante de
sua residência ou não matriculá-lo são posturas, na prática, equivalentes, já
que a criança deixará de freqüentar as aulas.
O custo do deslocamento
diário da criança para local distante, somados a pouca idade, impõe aos
genitores limitação invencível, simplesmente ignorada pelo Município de
Hortolândia.
Em que pese os esforços dos
pais em colocar a menor a salvo de negligência, a criança não vem recebendo
tratamento adequado, tendo, pois, seu direito fundamental à saúde
flagrantemente violado.
Como
é de trivial conhecimento, o legislador constituinte, atento
à necessidade de oferecer a todas as pessoas tratamento condigno com o estágio
atual da ciência médica, estabeleceu direito subjetivo à saúde em
dispositivo que assim se ostenta:
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença
e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção e recuperação.”
A Lei nº 8.080/90, nesse compasso,
dispôs que:
“a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o
Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” (artigo 2º).
Em observância ao mandamento constitucional de atendimento integral (artigo 198, II, da CF), o legislador
ordinário cuidou de consagrar expressamente o direito à assistência terapêutica (artigo 6º, I,
d, da Lei nº 8.080/90).
Indisputável, pois, que o
Poder Público é responsável pela formulação e execução de política de saúde que
garanta a todos o acesso a tratamento médico e a aquisição de medicamentos.
Cumpre sublinhar, ainda, que
o Estatuto da Criança e do Adolescente, garantindo aos menores a primazia de
proteção e socorro em qualquer circunstância e a precedência de atendimento nos
serviços públicos (artigo 4º, parágrafo único, a e b), conferiu-lhes direito público subjetivo à vida e à saúde,
cometendo ao Poder Público a adoção de medidas garantidoras da efetivação de
políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio
e harmonioso, em condições dignas de existência (artigo 7º, do
ECA).
Não é por outra razão que o
ordenamento cuidou de prever expressamente a incumbência de o Poder Público fornecer atendimento especializado à
criança e ao adolescente, bem como os medicamentos, próteses e outros recursos
relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação (artigo 11, §§ 1º e 2º, do ECA).
Cumpre ressaltar, por fim,
que:
“entre proteger a inviolabilidade
do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável
assegurado pela própria Constituição da república (art. 5º, caput), ou fazer
prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e
secundário do Estado” força
concluir “que razões ético-jurídicas
impõem ao julgador uma só possível opção: o respeito indeclinável à vida.”
(STF – rel. Min. Celso de Mello, Petição nº 1.246-1 - Medida Liminar – Santa
Catarina)[1][1]
Pelo exposto, requer-se:
a.)
a
citação do Município de Hortolândia, na
pessoa do Prefeito Municipal, com domicílio na Rua Alda Lourenço Francisco, nº
502, Jardim Remanso Campineiro, Hortolândia, para responder a presente ação,
bem assim para que, julgado procedente o pedido, sejam cumpridos os mandamentos
Constitucionais e oriundos da lei federal, determinando-se ao demandado que
ofereça tratamento adequado para a
criança, na rede oficial de saúde, ou, caso inexista vaga na referida rede,
seja o réu compelido a fornecer transporte gratuito à infante e um de seus
responsáveis, ou a pagar prestação mensal suficiente ao custeio do transporte
da menor e um de seus responsáveis ao local em que se dará o tratamento, até
alta médica; assim também determinando-se ao Município
de Hortolândia que providencie a matrícula
da menor em escola próxima de sua residência, excetuando-se o Caic do
Jardim Amanda, ou forneça transporte gratuito à infante e um de seus
responsáveis, ou, ainda, efetue o pagamento de prestação mensal suficiente ao
custeio do transporte da menor e um de seus responsáveis à escola;
b.) a
concessão da tutela liminar prevista
pelo artigo 213, § 1º, da Lei nº 8.069/90, para que o réu cumpra, desde logo,
seu dever constitucional, pois a tramitação do processo protrair-se-á, causando
danos irreparáveis à higidez física e psíquica da incapaz;
c.) a imposição de multa diária
ao réu que requer seja fixada em 10 (dez) salários mínimos, nos termos do
artigo 213, §§ 2º e 3º, da Lei nº 8.069/90, fixando-se prazo para atendimento
do pedido no máximo de 10 (dez) dias, contados da intimação do deferimento da
tutela liminar ou definitiva, sem prejuízo das sanções penais cabíveis;
Protesta provar o alegado por todos os meios de prova em direito
admitidos, notadamente por meio de oitiva de testemunhas e realização de
perícia médica e psicológica.
Dá-se à causa o valor de R$ 1.500,00 (um mil e quinhentos reais).
Termos em que,
Pede deferimento.
Sumaré,
05 de outubro de 2000
Autos 963/00
3ª VARA DA COMARCA DE
SUMARÉ/SP
VISTOS ETC.
Trata-se de ação civil
pública proposta pelo Ministério Público do estado de São Paulo, em face do
Município de Hortolândia, visando à condenação deste a oferecer tratamento
adequado à menor E.L.d.S., na rede pública oficial de saúde, ou, na hipótese de
inexistência de vaga em rede pública, a arcar com o custo financeiro de
transporte da menor e um dos genitores ao local em que ocorrerá o tratamento,
até alta médica, bem como a proceder à matrícula da menor em escola próxima da
respectiva residência, excetuando-se o Caic do Jardim Amanda, ou arcar com o
custo de transporte da menor e um dos genitores à escola.
É a síntese do pedido.
Com relação ao pedido
liminar, deve este ser deferido, visto que a pretensão
deduzida e benefício da menor vem acompanhada de prova técnica que
demonstra a necessidade da prestação de tratamento adequado à menor em questão,
a fim de resguardar-lhe a saúde, bem como a necessidade de proceder aos estudos
em escola próxima à respectiva residência.
Assim sendo e porque é dever
do município a promoção de políticas públicas no que tange à prestação de
serviço público de saúde e de ensino fundamental, DEFIRO
a liminar para o fim de, no prazo de 5 dias, sob pena de multa diária no valor
de 10 salários mínimos, por dia de atraso, oferecer tratamento adequado à menor
E.L.d.S.,
na rede pública oficial de saúde, ou, na hipótese de inexistência de vaga em
rede pública, a arcar com o custo financeiro de transporte da menor e um dos
genitores ao local em que ocorrerá o tratamento, até alta médica, bem como a
proceder à matrícula da menor em escola próxima da respectiva residência,
excetuando-se o Caic do Jardim Amanda, ou arcar com o custo de transporte da
menor e um dos genitores à escola.
Expeça-se mandado.
No mais, cite-se o réu, nos
termos do disposto no artigo 285, do CPC.
Int.
Sumaré, 7 de novembro de 2000.
Juiz
de Direito
[1] apud Válter Kenji Ishida, Estatuto da Criança e do Adolescente – Doutrina e Jurisprudência, Atlas, 1998, pág. 35.