PROCESSO DE ABORDAGEM DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES "DE E NA" RUA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS[*]

 

 

Maria Stela Santos Graciani[1]

Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

 

 

Introdução

 

Frente a drástica situação da criança brasileira e em particular as de rua, um grupo de universitários e professores do Centro de Educação da Pontifícia Universidade Católica - SP resolveu após exaustiva discussão e análise da literatura, partir para a rua da cidade de São Paulo, objetivando uma prática educativa junto a esse contingente. O referido estudo realizou-se no final da década de 70, quando a realidade ainda não se constituía um drama e uma trama social tão dantesca.

 

Os desafios que o grupo enfrentou delineavam-se por naturezas diferentes. De um lado, ainda dentro dos muros da Universidade, não conseguia encontrar aportes, modelos e paradigmas pedagógicos-sociais e políticos, que dessem conta de tão complexa realidade. Foram feitos contatos e intercâmbios com experiências já em curso, como a da Colômbia, junto a "Los Gamines", desenvolvida pelo Padre Ravier, vendo seus vídeos e discutindo os princípios norteadores de sua prática educativa, para elucidar quais as pistas de tal proposta.

 

Naquela época o processo de pesquisa universitária se contorcia com a discussão do processo de pesquisa-ação e pesquisa participante e todas as suas contradições. Contudo, resolveu-se partir para a rua - como espaço público - com o aparato vivencial de cada componente do grupo, com sua bagagem teórico-prática dependendo da área de conhecimento a que estava inserido. A equipe era interdisciplinar - com as discussões e análises acumuladas e, principalmente, com o compromisso de se engajar nessa realidade e, se possível, contribuir para a sua reversão, mesmo sem contar com nenhuma estrutura institucional que lhe desse respaldo. De outro lado, a tarefa que nos propúnhamos era árdua e difícil, mas o sonho e a utopia faziam parte integrante dessa arrojada, porém modesta experiência educativa.

 

Partimos para a rua - Praça da Sé - em dupla, que até os dias de hoje constitui-se princípio entre os educadores de rua. O fato de estarmos em dupla diminuiu a insegurança e o medo que tínhamos deste impacto inicial (enfrentamento) com as crianças e adolescentes de rua.

 

Foram muito interessantes estas primeiras investidas, porque nós, os observadores, passamos a ser observados pelas crianças, sem o saber e num dado momento, fomos argüidos pelos garotos, principalmente o "Careca", que nos fez várias perguntas:

- Vocês são da FEBEM? ou são do Juizado de Menores?

- Comissários? ou são da polícia à paisana?

- "Estamos observando vocês há vários dias, vemos vocês nas escadarias da Catedral da Sé, depois perto do "Marco Zero" andando para cá e para lá".

 

Francamente, naquele momento, entramos em "pasmo pedagógico" [2] não só pelo questionamento, mas principalmente pela inversão dos papéis ali ocorrida e de perceber a clareza e objetividade com que eles dominavam o espaço contraditório e complexo aonde viviam; em suas relações e interações, além de conhecerem os transeuntes fixos e móveis que nela estavam diariamente. Apesar da surpresa, anunciamos que ali estávamos para conhecer a dinâmica e a situação da criança de rua e tudo aquilo que fizesse parte de sua vida, de sua história, de sua origem, de seus sonhos, etc.

 

Neste momento singular e único, o "Careca" levantou-se e gritou para todos os meninos(as) que nós tínhamos vindo para conhecê-los, e foi assim que os primeiros laços de amizade e comunicação surgiram entre nós. Começamos a ser uma referência diferente das demais da Praça da Sé, que não se identificava com a figura do transeunte arrogante, com a do policial violento, a do traficante explorador, a do intermediário aproveitador ou de qualquer figura que ali permanece durante anos, como a dos mendigos-serebos, vendedores ambulantes ou mesmo a dos artistas, ou dos pregadores religiosos, etc.

Estava selado o primeiro compromisso de fazermos daquela praça, um espaço de prática educativa, que até hoje se constitui num ambiente alternativo e alterativo de educação para várias gerações de educadores de rua, advindos de inúmeras entidades sociais que efetivam trabalhos nesta localidade (Pastoral do Menor, Movimento Nacional dos Meninos(as) de Rua, Secretaria do Menor, etc.).

 

Vale ressaltar ainda que sempre estivemos juntos com outros movimentos ligados à defesa dos direitos da criança e do adolescente da cidade. Nunca fizemos trabalhos isolados, enquanto Universidade, e sempre acompanhamos a construção pedagógica da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo, não só nos encontros, como na prática diária e cotidiana

 

O processo de abordagem da criança e do adolescente “de e na” rua

 

Retiramos da prática vivida e engajada junto a estas crianças e adolescentes, princípios pedagógicos, que hoje acreditamos serem uma das vias de acesso para abordar a criança de rua. Estes princípios foram se constituindo ao longo do processo educativo que desencadeamos junto com os sujeitos da ação. Hoje, estes princípios concretizam-se a partir da concepção educativa, advinda da pedagogia do oprimido[3], como um capítulo que detalha e operacionaliza esta nova modalidade surgida, a partir da necessidade sentida de muitos educadores de rua, de todo o Brasil.

 

Os princípios básicos de tal concepção configuram-se em:

- possuir uma visão crítica e consciente das causas geradoras do processo de exclusão das crianças e adolescentes: da pauperização, da marginalização e da injustiça social;

 

- desenvolver ações conjuntas com a participação de todos os envolvidos no processo educativo, quebrando as relações de poder hierárquico entre educador/educando;

 

- propor uma ação organizada e orgânica entre poder governamental e organizações não governamentais, buscando nas forças comunitárias populares o apoio e o incremento da ação educativa;

- valorizar e democratizar a cultura e socializar o saber popular, discutindo e sistematizando-o a partir das formas de expressão e comunicação das camadas populares;

 

- acreditar que a construção do conhecimento gestado e elaborado pelo conjunto de participantes não somente é um processo de aprendizagem para o educando e educador, mas também da sociedade;

 

- revigorar o estado de ânimo dos educadores, implementando suas condições objetivas de vida e de trabalho, realimentando sua competência técnica e política através dos avanços significativos do conhecimento, não só na área de educação, como em áreas afins, restaurando a qualidade do ensino e conseqüentemente da aprendizagem. Formação e capacitação permanente através de processos de ação/reflexão/ação crítica do processo educativo.

 

Frente a estes princípios básicos, criamos e descobrimos alguns passos metodológicos e novas estratégias para efetivação de nossa prática educativa, no que se refere à postura do educador:

 

- o educador de rua precisa de "territorializar-se" e partir para o encontro com os educandos e com eles elaborar o novo projeto educativo da cotidianidade da aprendizagem, onde ambos são protagonistas e atores sociais fundamentais ;

 

- o educador antes de falar precisa "ouvir" e ouvir transcende à fala; captar o mundo simbólico (signos, códigos), gestual (comunicação não verbal) e mágico-lúdico do mundo infanto-juvenil; ouvir o "semblante", os sentimentos de nossas crianças sofridas e violentadas, é um ato de profunda ternura e vigor pedagógico;

 

- o educador de rua precisa ter "consciência" do momento de cada criança e de cada adolescente que vive o mistério e a plenitude de seus dramas e sonhos introspectivos e a cadenciada energia dinâmica implícita na sua corporeidade, e saber respeitar o momento de sua individualidade metamorfoseada florescente;

 

- jamais os educadores de rua poderão romper o "espaço vital" de seus educandos, violentar sua privacidade, seus momentos únicos e singulares; a "paciência histórica" do educador favorecer-lhe-à o momento oportuno do "estalo pedagógico" e as condições férteis da aprendizagem irão paulatinamente se constituindo.[3a] [3b]

 

- a identificação por parte do educador do que o educando "sabe" (a partir de sua experiência vivida) implementará sua prática educativa no que se refere à ampliação e sistematização do conhecimento universal;

 

- a base da interação pedagógica entre educador/educando é a relação dialógica; o direito de falar e escutar é que circunstancia a reciprocidade, relação e relacionamento entre ambos, num processo de comunicação.

 

Muitas são as dimensões e vertentes do fazer educativo que atendem às necessidades básicas da aprendizagem, no entanto, as que privilegiam a vida, o ser humano como sujeito de sua própria história, a construção do conhecimento e da história social de sua comunidade e da sociedade como totalidade, são as que provavelmente contribuirão para uma prática educativa emancipadora e libertadora de nosso povo, excluído de todos os direitos como cidadão.

 

A comunicação entre as crianças e adolescentes de rua

 

Partindo pois, dos princípios e pressupostos pedagógicos e metodológicos mais amplos, fomos detectando a partir da prática social da Educação Popular proposta, os principais aspectos do ato educativo junto às crianças e adolescentes de rua; dentre eles o processo de comunicação, como condição primeira de abordagem.

 

Entendendo a comunicação[4] como processo de criar e compartilhar significados através da transmissão e troca de signos[5] entre os diferentes agentes do processo educativo, tivemos que vivenciar um verdadeiro procedimento arqueológico para compreender a linguagem dos meninos (as) de rua.

 

Entendemos a linguagem de forma ampla para designar um sistema de códigos[6] com os quais, segundo determinadas convenções, se organizam em signos para que tenham um significado. A linguagem é a base de todo o processo de organização da comunicação humana.

 

Convivendo com as crianças e adolescentes de rua, tivemos que compulsoriamente aprender a linguagem cifrada dos mesmos, decodificando todo seu significado e a compreendemos como parte da resistência deste grupo para sobreviver e subsistir das agruras postas e impostas pela rua.

 

Eles inventaram um novo código, através de gíria, gestos e signos, que somente convivendo com eles pudemos usufruir após longo processo de aprendizagem, permitido pela confiabilidade e credibilidade conquistada pelos educadores de rua, no interminável processo de educação desenvolvido. Para conquista deste espaço, não só foi necessário passarmos por vários tipos de testes, como também, configurarmos uma aliança concreta, além de um "pacto de honra" definido em conjunto com as crianças e adolescentes de rua.

 

Tanto as alianças, quanto o pacto de honra foram pré-fixados de maneira ideológica-política e configuram-se a partir do cerne do conflito social, que respondiam às questões: de que lado e a favor de quem? a partir de que interesses de classe se definem as relações sociais entre os grupos (educadores/educandos)? E na prática tais conflitos são visualizados, quando do embate e do enfrentamento na correlação de forças com o aparelho repressivo do Estado, com entidades para-militares, com a exclusão dos direitos fundamentais básicos (saúde, trabalho, educação, etc.) ou mesmo com grupos informais que tentam a exploração, opressão, discriminação ou ex-propriação da cidadania das crianças e adolescentes de rua.

 

1. A comunicação verbal

 

As crianças e os adolescentes "de e na" rua sempre se agrupam, como forma de defesa e inter-relação pessoal, nos logradouros públicos. Eles não só se comunicam consigo mesmos (auto-comunicação), como com as outras pessoas, seja em relação de trabalho (guardadores de carro, limpadores de pára-brisa ou vendedores ambulantes) ou em situação de conflito, como no caso de situações de risco (assaltos, violência, maus tratos e vitimizadas, etc.). Este conhecimento é utilizado para expor e interpretar o processo de comunicação na vida diária.

 

Não nascemos com a arte de nos comunicar; há necessidade de aprendermos a nos comunicar. Toda comunicação envolve a criação e a troca de significados que são representados através de signos e códigos, como já mencionamos anteriormente.

 

As formas de comunicação das crianças e adolescentes "de e na" rua, são sistemas próprios para transmitir mensagens: a fala, através da gíria, os signos escamoteados que significam sinais que têm sentido apenas para o grupo; comunicação não verbal (gestos, expressões faciais, olhares, maneiras de vestir, sentar, trejeitos próprios do grupo, etc.). Algumas formas de comunicação estão contidas em si mesmas.

 

Certos elementos, como as palavras - principalmente as de gíria - são necessariamente transitórias, até porque fazem parte da resistência tática do grupo. Desaparecem quando são pronunciadas e quando não há gravação do que foi dito, num dado local e tempo em que foi pronunciada. A transmissão desta linguagem cifrada é coloquial e cotidiana passando de um grupo a outro de maneira verbal-oral.

 

Todas estas formas de comunicação ampliam o poder de nossos sentidos, na medida em que passam através de nós, especialmente aquilo que se vê e se ouve.

 

Nas experiências diárias vividas na rua, verificamos que a comunicação estabelece determinadas conexões. As conexões são feitas entre uma pessoa e outra ou entre um grupo e outro grupo. O que escoa através dessas conexões são idéias, valores, crenças, opiniões, sentimentos e elementos de informação que constituem o material e o conteúdo da comunicação.

 

A comunicação é uma das principais atividades do processo educativo vivido com as crianças "de e na" rua, pelos educadores de rua. É algo que fazemos, algo que construímos, algo que produzimos e ainda algo que trabalhamos quando recebemos ou transmitimos uma mensagem. Por isto, inclui o falar e o ouvir, um ato em ação.

 

Quando estamos falando com alguém, estamos ativamente engajados em perceber o sentido do que a outra pessoa está dizendo, através de suas palavras e gestos, muito mais do que aquilo que estamos dizendo, enquanto significado.

 

A comunicação como processo é observada na conversação e na troca de palavras, que exprimem idéias, fatos ou opiniões, que no caso dos meninos (as) "de e na" rua se constituem em lamentos relacionados à dura experiência de viver na rua: à desagregação da família,  à violência, à revolta contra os bens de consumo negados, à sua afetividade. As interlocuções têm, pois, o caráter de prevenir, aconselhar, informar ou divertir, na maioria das vezes.

 

Neste aspecto, temos ao longo do processo educativo observado os procedimentos e as maneiras com que se desenvolvem as atividades junto às crianças e adolescentes. Usamos a fotografia, não só para guardar na memória os momentos significativos do processo, bem como, fazer desta um instrumento pedagógico capaz de ser visto, observado e percebido: como sou, como fui e como poderei ser. Este aspecto foi-nos ensejado pelas próprias crianças e adolescentes de rua, que por seus comentários e visualização das situações fotografadas, filmadas ou vídeo-filmadas nos alertarem para a importância da comunicação visual.

 

A fotografia, o filme e o vídeo são instrumentos valiosíssimos para avançar o processo educativo com estas crianças e adolescentes, pois projetam, de maneira longitudinal, a visão sincrônica e diacrônica de sua existência familiar, institucional e, principalmente, a cotidianidade existencial da rua, favorecendo desta forma, a releitura, a redimensão e a renovação das metodologias de trabalho. Além disto, propicia também, um aprofundamento do conhecimento de cada um, do grupo e de suas múltiplas relações com o outro, com a comunidade de origem, bem como, com a sociedade mais ampla.

 

Por este motivo, a fotografia passou a fazer parte de nosso projeto pedagógico-político, possibilitando angariar outros liames e matizes educativos, bem como a realidade existencial da criança e do adolescente. Através desta técnica captamos mensagens que nos permitiram compartilhar pensamentos, sentimentos, opiniões, informações e experiências com eles, baseados nas necessidades pessoais e sociais de cada grupo com que mantínhamos contato sistemático.

Estes fatos e acontecimentos diários agudizaram nossa percepção sobre as mensagens (verbais ou não verbais), na medida em que algumas delas eram claras e óbvias, outras obscuras, subliminares ou ocultas, trazendo em seu bojo uma complexidade de informações contidas, que nem sempre conseguíamos decifrar (decodificar) o código utilizado, na medida em que não dominávamos por completo as regras e convenções trocadas e compartilhadas por aqueles que se utilizavam desse código. Além do que a codificação e a decodificação são concomitantes, quando na conversação.

 

As crianças e adolescentes utilizam-se de modelos de comunicação contextualizados, na medida em que somam as inter-relações de toda situação ou ambiente do ato da comunicação vivenciadas na rua. Os canais podem ser verbais ou não verbais, por exemplo, uma expressão aborrecida no rosto ou um movimento com as mãos ou pés, podem demonstrar uma atitude de quem está pronto para sair.

 

Um dia estávamos sentados em roda, na Praça da Sé, discutindo a organização de um passeio, quando em menos de três segundos o grupo esfacelou-se, evaporou-se, correndo para todos os lados. Ainda perplexa com o ocorrido e sem saber ao certo o que estava acontecendo, apanhei todas as coisas que estavam pelo chão e também corri em direção ao "mocó"[7], porque sabia que ali os encontraria novamente. Neste ínterim, o policial que fazia parte da cena e do cenário vivido, suspendeu o cassetete e deixou cair sua mão pesada em minhas costas, num gesto violento e arrebatador.

 

Quando cheguei no mocó, os meninos estavam revoltados porque eu havia apanhado da polícia, sem saber o porquê. Foi neste momento, que o "Espurgo" fez uma longa e elucidativa explicação sobre a situação ocorrida e comentou sobre a minha inexperiência para viver na rua.

 

Dentre seus brilhantes comentários, mencionou que um gesto com as mãos no peito, roçando a camisa, significava que a situação estava suja e que eles deveriam imediatamente desocupar a praça e se possível o mais rápido que pudessem, sem mesmo dar o aviso de que algo estava acontecendo. Disse-me:

- "é preciso aprender o jeito que falamos, para você poder conviver conosco; estes sinais são importantes no momento de combate" "...você tem outros problemas; além de não conhecer como falamos, não sabe correr na rua e, também, não sabe tomar cassetada da polícia, é preciso aprender".

 

Fiquei muito interessada em conhecer os gestos que têm significado para as crianças e adolescentes de rua; quis saber como se corria e se aprendia a apanhar. E "Espurgo" continuou sua magistral aula sobre a comunicação e a linguagem de rua:

- "Na rua não se pode correr em linha reta, há que se fazer "zig-zag", porque o tiro é que vem na reta. Para apanhar você precisa fazer "trejeitos de malandro", só assim o cassetete do "gambé" [8] não marca suas costas".

 

Após aquele fatídico dia, além de fazer o exame de corpo de delito, no Instituto Médico Legal, e levar o boletim de ocorrência para o Distrito Policial, concluímos que havia muita coisa a aprender e apreender com as crianças de rua, para realmente efetivar uma prática educativa competente e consistente com aquele grupo

 

2. A comunicação não verbal

 

Como tivemos oportunidade de vivenciar, as crianças e adolescentes "de e na" rua, além da comunicação verbal, utilizam vários signos não verbais quando estão junto com os outros, principalmente como uma das formas de resistir ao embate com as situações violentas impostas pela rua. Estes signos não são palavras, mas são usados como palavras; são sinais que produzem, gestos que fazem para comunicar-se. São várias as formas utilizadas; com as mãos, cabeça, face, boca, enfim, com todo o corpo. Estes, podem ser classificados em três categorias: linguagem do corpo, paralinguagem e maneira de se vestir (roupas).

 

2.1. a linguagem do corpo

 

Esta forma de linguagem utilizada pelas crianças e adolescentes "de e na" rua, refere-se aos sentimentos, às atitudes e às intenções do grupo e/ou mensagens individuais. Como atores sociais, eles a utilizam para convencer a audiência do que estão representando naquele momento. Uma vez que os educadores de rua precisam criar vínculos profundos com as crianças e adolescentes, utilizam-se de signos não verbais, que demonstram amavelmente a amizade que os unem, e muitas dessas manifestações são feitas através da linguagem corporal. Os seus significados variam conforme as circunstâncias e são de vários tipos: gesto, expressão, postura do corpo, espaço, proximidade do corpo, toque, etc.

 

O gesto: é a maneira ou forma como eles utiliza seus braços, pés e mãos. Existem infinitos gestos usados pelas crianças e adolescentes para expressarem idéias, pensamentos, emoções que se traduzem em chamar atenção, processos de fuga, depressão, processos de autoconfiança, auto-imagem, auto-estima e valorização. Como a linguagem completa constituída de gestos para surdos-mudos, as crianças de rua também criaram e inventaram gestos para as várias situações convencionais que vivem na rua.

 

Expressão: outro tipo de linguagem corporal que através da face, da expressão do rosto e do olhar, crianças se comunicam entre si e com os outros. Há varias sutilezas num sorriso, num olhar brilhante ou numa cara de espanto, que materializam a necessidade sentida pelos grupos de rua. A expressão se configura, portanto, como relação social, quando estamos codificando ou decodificando signos corporais.

 

Estas ações e reações expressivas dão a conotação e ou denotação do avanço ou do recuo em certas circunstâncias e o educador precisa estar "atinado" [9] , como diz caboclo, para definir sua postura diante de situações inusitadas e não previstas no ato educativo que desenvolvem

 

Postura do corpo: é entendida como a maneira de se moverem no espaço e de permanecerem na rua em "bandos", na medida em que nunca andam sozinhos, a não ser quando estão entrando na rua pela primeira vez. Normalmente levam seus pertences no bolso ou dentro do sapato; enrolam-se em cobertores ou dentro da própria camisa que serve de abrigo, mantendo as pernas cruzadas para dentro. Normalmente estão sentadas letargicamente; movem-se pelos bancos, muretas, escadarias ou sarjetas recobertas de papelão, pano ou jornal envelhecidos e dormem na rua. A maioria fuma desde tenra idade ou drogam-se com: cola de sapateiro, "loló"[10], maconha ou cocaína (quando os traficantes os utilizam como "aviõezinhos" na entrega ou recepção de drogas mais pesadas de comerciantes de droga ou mesmo consumidores).

 

O espaço e a proximidade do corpo: é constituído do espaço em torno de si e do próprio limite imaginário do grupo. A cidade está mapeada por espaços imaginários, cujos "donos" se apossam, alugam ou sub-alugam para viver. Este espaço é delimitado por uma linha imaginária, que só é conhecida por quem na rua permanece continuamente. Existem conflitos intergrupais, quando há violação dos mesmos. Neste momento, coloca-se para o educador de rua, um grande desafio: primeiro para identificar os diferentes limites da linha imaginária grupal e em segundo lugar, definir o modo, a maneira e o procedimento mais estratégico para ultrapassar o limite do "espaço vital" de cada criança ou adolescente. Temos notado que estas linhas são mais rígidas e coisificadas, quanto maior a violência sofrida pela criança ou adolescente durante sua permanência no seio de sua família ou em instituições totais (Febem, internatos, asilos) ou mesmo na rua, dado o nível de rejeição ou aceitação grupal.

 

A relação menino/menina nesta questão é fundamental, dada a proximidade dos corpos, destacando-se os aspectos afetividade e sexualidade. A maioria das meninas de rua são violentadas, estupradas, numa primeira instância pelo padrasto, depois pelos próprios meninos do grupo e, principalmente, por elementos da polícia.

 

O grau de intimidade é medido pelos laços de amizade grupal, no entanto, as características machistas do grupo, fazem com que a menina esteja sempre em situação de submissão, principalmente em relação ao "líder" do grupo, que as tomam como mulheres de maneira compulsória, causando uma familiaridade embaraçosa para as mesmas.

 

No entanto, apesar das contradições postas, o grupo de crianças e adolescentes de rua é alegre, solidário e fraterno. O processo de entre-ajuda coloca-se incomensuravelmente em suas relações. O lúdico é a característica fundamental na existência dos grupos de rua. Quando trabalham, brincam e quando brincam, trabalham - são os dados culturais básicos impregnados por suas raízes sociais e pela sua situação peculiar de ser criança e adolescente.

 

O toque: outro tipo de linguagem usual das crianças de rua, que se relacionam sistematicamente em situações de docilidade ou agressividade, na mesma proporção. O afago, inexistente em suas vidas, faz com que seus carinhos sejam controvertidos e feitos através de solavancos, empurrões e esbarrões, mas sempre com significado de relação, reciprocidade ou interação. Nós, educadores de rua, somos intermitentemente tocados pelas crianças de rua e este comportamento normalmente tem um significado de abertura e aproximação nas relações, na medida em que ajuda na convivência e fortalece

os vínculos de amizade.

 

2.2. paralinguagem

 

A paralinguagem trata da interpretação do significado das palavras durante uma conversação. Descreve signos não verbais que acompanham nossa fala.

 

Há signos que estão separados por palavras, há reações e emoções às vezes imediatas. As crianças de rua, por exemplo, comunicam-se assobiando e estes toques mais longos ou curtos têm tido um significado para o grupo. Há signos com determinado grau, força ou volume. A tonalidade da voz, o ritmo em que são pronunciadas certas palavras, nos induzem a entender seu significado. Há indícios que nos levam a deduzir que uma criança de rua está com raiva, quando começa a falar ruidosamente, aos gritos. Quando afirmamos que uma criança de rua é calma, excitada, agressiva ou nervosa é porque a pronúncia de suas palavras nos diz isso. Estes e outros aspectos favorecem nosso discernimento para trabalhar com as crianças e adolescentes de rua; ou a necessidade do educador de rua ser um observador, um percebedor arguto e perspicaz, no ato educativo.

 

2.3. roupas

 

O terceiro ponto da comunicação não verbal diz respeito à forma de se vestir (roupas, jóias, pintura, etc.); tudo isso é algo que se revela muito sobre a personalidade, situação, posição no grupo e trabalho das pessoas. As crianças e adolescentes de rua são facilmente identificadas pelo modo como se vestem. As vestes assinalam também, a identidade das pessoas e de certos grupos, como este que trabalhamos, por exemplo.

 

É muito interessante um aspecto das vestes das meninas de rua. Para fugir da situação de discriminação e opressão da rua, as meninas se vestem como meninos (de calção, camiseta larga e sandália havaiana) e cortam o cabelo bem rente, para serem identificadas como meninos do grupo. Sem ser o único fator, este é um que propicia condições para as meninas se tomarem lésbicas conjunturais e não assumirem sua sexualidade feminina, por medo, insegurança e pausa nas relações sexuais por serem grotescas e violentas.

 

Finalmente, a comunicação não verbal utilizada como linguagem pelas crianças e adolescentes de rua. também é controlada por convenções (regras), na medida em que os rituais de comportamento são comuns nestes grupos; são inseridos hábitos diários intencionais e estes são assimilados inconscientemente por estas crianças e adolescentes. Caracteriza-se, pois, como um estilo de vida próprio do grupo.

 

A comunicação não verbal ajuda a construir e manter relações que dizem respeito às atitudes e hábitos de um grupo, sua relação com outros influenciando a natureza de nossas relações.

 

3. A comunicação como estratégia de sobrevivência

 

Tanto a comunicação verbal quanto a comunicação não verbal são usadas como estratégias[11] resistência, configurando-se em um sistema tático de sobreviver e subsistir na rua, como é o caso dos apelidos. Todas as crianças e adolescentes de rua têm um apelido, definido a partir de características físicas pessoais ou caracteres próprios da identidade, que facilitam o processo de interação no grupo e servem de dissimulador em relação aos grupos de embate, principalmente a polícia.

 

A forma como se apresentam em diferentes situações e diferentes instantes, depende do momento em que se dão essas representações, no palco da vida, e estas são determinadas pelas relações sociais que mantêm com os outros, de acordo com as necessidades.

 

A auto-imagem é aquilo que pensamos que somos, ela inclui uma noção do próprio corpo e também de nossa personalidade sendo desenvolvida através de nossas relações com os outros. As atitudes dos outros a nosso respeito afetam nossa auto-imagem. No caso específico que estamos analisando, a auto-imagem das crianças e adolescentes tem sido pouco ou nada desenvolvida, na medida em que, suas trajetórias sofrem impactos violentos desde a hora do nascimento. Desta forma, sua auto-imagem constrói-se e destrói-se num processo sincrônico permanente e contínuo e este conflito pessoal projeta-se na auto-imagem do próprio grupo em que participa, como um quebra-cabeça liga-se e desliga-se simultaneamente, não mantendo a sua totalidade, pela tensão constante que a grupalização tem entre si e com os outros.

 

Sempre estará em jogo a correlação de forças: como o grupo acredita que é, como gostaria de ser e como acredita que os outros o vêem. Esta percepção individual ou grupal está sempre ligada à imagem social descrita, projetada pela comunicação, no seu sentido mais amplo. A mídia, por exemplo, vem reforçando a imagem das crianças e adolescentes de rua, como: marginais, malfeitores e desclassificados. Isto interfere profundamente no modo como se vêem e como a sociedade os considera. As informações limitadas emitidas sobre esta realidade nem sempre são dignas de crédito, na medida em que fatos e/ou acontecimentos específicos são generalizados pela comunicação de massa.

 

Neste caso, as crianças e adolescentes são rotulados e estigmatizados por estas idéias e pensamentos emitidos pelas mensagens dos meios de comunicação,criando estereótipos, através de sinais adotados para identificá-los de maneira simplista, mistificada e equivocada, que se baseiam em aparências do estilo de vida adotado por elas. Raramente mostra-se, nos meios de comunicação, as verdadeiras contradições vividas pelas crianças e adolescentes de rua - enquanto auto-imagem e imagem em relação ao grupo - em toda sua plenitude e totalidade.

 

Algumas conclusões em relação ao processo educativo

 

Como percebemos, a ação educativa desenvolvida pelos educadores de rua, requer um manancial abrangente de observações, percepções, tipos de aprendizagens diferenciadas - não só individuais como coletivas, sobre comunicação verbal e não verbal - para desencadear o processo de abordagem das crianças e adolescentes de rua.

 

Faz-se necessário um registro permanente dos desafios do sistema relacional e interacionista do grupo, através do processo de construção de conhecimento que se dará ao longo da prática social desenvolvida. O estudo e a pesquisa ocupam espaço significativo, para captação de fatos e acontecimentos culturais, ideológicos, sociais e econômicos, num determinado espaço, onde ocorrem a comunicação social dos vários grupos de crianças e adolescentes "de e na" rua, considerado como ato educativo e político, na medida em que se insere no centre do conflito social (anexo 1).

 

Acreditamos ser o processo educativo inserido na formação de todas as crianças e adolescentes, consideradas em "situação peculiar de desenvolvimento integral”[12]. Acreditamos ainda que todas as dimensões percebidas e observadas durante nosso trabalho, podem e devem servir de base, para o relacionamento e interação das crianças com suas famílias, que na maioria das vezes, estilo em processo de desagregação, e mesmo exclusão de seus filhos, independente de classe social, por falta de comunicação e principalmente compreensão profunda e matizada por detalhes importantíssimos da relação diagonal, entre ambos.

 

O debate está aberto, e suas possibilidades são infinitas e complexas para análise e interpretação de todos aqueles que, de uma maneira ou outra, assumiram na vida, o papel de educadores de seres humanos em desenvolvimento, crescimento e maturação. Este é o desafio, que nos comprometemos a discutir, refletir e lançar perspectivas para um devir mais justo e engajado nas relações humanas e socais que travamos no dia a dia, de nossa existência

 

 

BIBLIOGRAFIA

MELO, J. M. Comunicação: teoria e política. Ed. Sumunus, São Paulo,1993.

MODESTO, L. Olhos de enxergar. Thot, Editoração Eletrônica, Rio de Janeiro, 1993.

RICHARD, D.; BURTON, G. Mais do que palavras. Ed. Summus, São Paulo, 1990.

 

 

Notas

[*] Texto escrito para o I Seminário de Educação de Rua - Porto Alegre - RS - de 29 a 30 de abril de 1993.

 

[1] Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, Mestre em Ciências Sociais e doutorando em Educação, Vice-Diretora Geral do Centro de Educação - Trabalha há 17 anos com meninos e meninas de rua. END.: Rua Bela Cintra,  1332 apto. 21, São Paulo - SP, CEP 01415-001, Fone: (011) 881.0953.

 

[2] Pasmo pedagógico - expressão utilizada pelos Educadores de Rua, quando ocorrem situações inusitadas, na prática educativa.

 

[3] Pedagogia do Oprimido - proposta escrita por Paulo Freire a partir de sua prática educativa libertadora

 

[3a] Paciência Histórica - atitude do educador de respeito ao seu próprio processo de construção do conhecimento.

 

[3b] Estalo Pedagógico - momento específico vivido pelo educador que descobre que descobriu, aprendeu algo.

 

[4] Entendemos comunicação como: tomar comum uma mensagem, um sentimento, um pensamento.

 

[5] Entendemos signo como: uma simples unidade de comunicação que contém um ou vários significados.

 

[6] Entendemos código como: um sistema de signos regidos por determinadas convenções.

 

[7] Mocó - termo utilizado pelas crianças de rua, que significa esconderijo.

 

[8] Gambé - nome dado aos guardas e policiais presentes na rua

 

[9] Atinado aqui é entendido como aquele que vê, percebe e ouve, não só a aparência dos ratos e acontecimentos, mas está aberto para compreender a essência dos mesmos em sua totalidade.

 

[10] Loló - composição química de vaias drogas misturadas com éter e perfume, que é inspirada pelas crianças de rua.

 

[11] A estratégia é, também, uma peça de comunicação, que diz respeito ao comportamento ou à interação. Ela implica o uso deliberado de signos verbais ou não verbais para alcançar o propósito desejado na comunicação.

 

[12] Situação peculiar de desenvolvimento integral: termo usado pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)

 

ANEXO 1

 

 

Fonte

GRACIANI, M. S. S. Processo de Abordagem das Crianças e Adolescentes "de e na" Rua: Desafios e Perspectivas. Rev. Bras. Cresc. Des. Hum., São Paulo, IV (1), 1994.