O GARANTISMO NO SISTEMA
INFANTO-JUVENIL
Promotora de Justiça de Barra do Ribeiro/RS; Especialista em Infância e Juventude pela Escola Superior do Ministério Público/RS; Mestranda em Ciências Criminais pela PUC/RS.
O estudo do garantismo no sistema infanto-juvenil traz
implícita a sensação de que não é possível prescindir do questionamento acerca
do direito de punir, pois da histórica inimputabilidade penal do adolescente
surgiram os antigos Códigos de Menores e o atual Estatuto da Criança e do
Adolescente, com os quais sempre coexistiram as idéias de redução da maioridade
penal como fórmula de combate à violência e à criminalidade, temas de grande
destaque especialmente na sociedade moderna. Partindo do pressuposto histórico
de que a inimputabilidade penal do adolescente no Brasil sofreu várias
alterações, desde as Ordenações Filipinas até o atual Estatuto da Criança e do
Adolescente, a necessidade de se buscar uma justificação para o direito de
punir logo esbarra nos ensinamentos de Barreto [1], segundo o qual:
O
direito de punir, como em geral todo o direito, como todo e qualquer fenômeno
da ordem física ou moral, deve ter um principio; mas é um principio histórico,
isto é, um primeiro momento na série evolucional do sentimento que se
transforma em idéia, e do fato que se transforma em direito. Porém essa fase
histórica, ou antes, pré-histórica, considerada em si mesma, explica tão pouco
o estado atual do instituto da pena, como o embrião explica o homem, como a semente
a árvore.[2]
No início do trabalho a lógica do estudo se inverte: se é difícil compreender o direito de punir do Estado, o
mesmo não ocorre com relação à inimputabilidade do adolescente. Ao contrário,
esta possui fundamentos históricos, sociais, biológicos, psicológicos e
jurídicos.
Das Ordenações Filipinas, quando a imputabilidade penal
iniciava aos sete anos e as crianças e jovens eram severamente punidos sem
muita diferenciação quanto aos adultos, até o atual Estatuto da Criança e do
Adolescente, que estabelece um sistema jurídico próprio para o tratamento dos
adolescentes autores de atos infracionais, ocorreu uma grande evolução. A
imputabilidade penal aos dezoito anos, erigida no Brasil à categoria de
preceito constitucional [3], e a adoção da Doutrina da Proteção Integral
[4]. são conquistas históricas e sociais,
resultado da luta de inúmeros segmentos nacionais e internacionais.
O primeiro Código de Menores do Brasil, conhecido como
Código Mello Mattos (Decreto n° 17.943-A, de 12 de outubro de 1927), consolidou
as leis de assistência e proteção aos menores [5], refletindo um
profundo teor protecionista e a intenção de controle total
das crianças e jovens, consagrando a aliança entre Justiça e
Assistência, constituindo novo mecanismo de intervenção sobre a população
pobre. Neste momento, constrói-se a categoria do MENOR, que simboliza a infância pobre e potencialmente perigosa, diferente do resto da
infância.
O sistema de proteção e assistência do Código de Menores submetia qualquer criança, por sua simples condição de pobreza, à ação da Justiça e da Assistência. A esfera jurídica era a protagonista na questão dos menores, por meio da ação jurídico-social dos Juízes de Menores.
Após o Código Penal de 1940 [6] (Decreto-Lei n°
2.848, de 7 de dezembro de 1940) fixar a
imputabilidade penal aos 18 anos de idade, adotando o critério puramente
biológico [7], a Lei n° 6.697, de 10 de outubro de 1979 estabelece o
Novo Código de Menores, consagrando a Doutrina da Situação Irregular,
mediante o caráter tutelar da legislação e a idéia de criminalização da
pobreza. Seus destinatários foram as crianças e os
jovens considerados em situação irregular, caracterizados como objeto potencial
de intervenção dos Juizados de Menores, sem que fosse feita qualquer distinção
entre menor abandonado e delinqüente: na condição de menores em situação
irregular enquadravam-se tanto os infratores quanto os menores abandonados.
Surgem as figuras jurídicas de "tipo aberto",
tais como "menores em situação de risco ou perigo moral ou material",
ou "em situação de risco", ou "em circunstâncias especialmente
difíceis", estabelecendo-se o paradigma da ambigüidade. Isto afeta
diretamente a função jurisdicional, pois o Juiz de Menores, além das questões
jurídicas, será encarregado de suprir as deficiências das políticas públicas na
área do menor, para tanto podendo atuar com amplo poder discricionário.
A medida especialmente tomada pelo Juiz de Menores, sem
distinção entre menores infratores e menores vítimas da sociedade ou da família,
costumava ser a internação, por tempo indeterminado, nos grandes institutos
para menores. Como é inerente às instituições totais, o objetivo
"ressocializador", porém, permanecia distante da realidade.
Freqüentemente as instituições totais afirmam sua preocupação com a
reabilitação, isto é, com o restabelecimento dos mecanismos auto-reguladores do
internado, de forma que, depois de sair, manterá, espontaneamente, os padrões
do estabelecimento.(...) Na realidade, raramente se consegue essa mudança, e,
mesmo quando ocorre mudança permanente, tais alterações freqüentemente não são
as desejadas pela equipe dirigente, refere Goffman.[8]
Em nome da "proteção" dos menores, eram-lhes
negadas todas as garantias dos sistemas jurídicos do Estado de Direito, praticando-se
verdadeiras violações e concretizando-se a criminalização da pobreza e a
judicialização da questão social na órbita do Direito do Menor. Com a
determinação abstrata do que deve sofrer a ingerência do Juizado de Menores,
negava-se aos menores os direitos fundamentais de liberdade e igualdade,
esquecendo-se de que, conforme Ferrajoli [9]:
“O desvio punível (...) não é o que, por características intrínsecas ou ontológicas, é reconhecido em cada ocasião como imoral, como naturalmente anormal, como socialmente lesivo ou coisa semelhante”.
Ao contrário, só pode ser punido o fato formalmente
descrito pela lei, segundo a clássica fórmula nulla poena et nullum
crimen sine lege.
Neste tempo, de vigência do Código de Menores, a grande
maioria da população infanto-juvenil recolhida às entidades de internação do
sistema FEBEM no Brasil, na ordem de 80%, era formada por crianças e
adolescentes, "menores", que não eram autores de fatos definidos como
crime na legislação penal brasileira. Estava consolidado um sistema de controle
da pobreza, que Emílio Garcia Mendez define como sócio-penal, na medida em que
se aplicavam sanções de privação de liberdade a situações não tipificadas como
delito, subtraindo-se garantias processuais. Prendiam a vítima, sustenta Saraiva.[10]
Com a Doutrina da Situação Irregular, os menores passam a ser objeto da norma, por apresentarem uma "patologia social", por não se ajustarem ao padrão social estabelecido. Surgiu uma clara diferenciação entre as crianças das classes burguesas e aquelas em "situação irregular", distinguindo-se criança de menor, sendo comuns expressões como "menor mata criança".
Conforme Mendez [11],
As novas leis e a nova administração da
justiça de menores nasceram e se desenvolveram no marco da ideologia dominante
nesse momento: o positivismo filosófico.
Na passagem dos anos 50 para os 60, quando vigorava o
Código de menores Mello Mattos, de caráter também puramente tutelar, ficou
claro que a tentativa de salvar o país ao salvar a criança restara frustrada.
Nos anos 70 os debates sobre a necessidade de criação do Novo Código de Menores
tomam nova força, resultando no Novo Código de Menores de 1979 que, entretanto,
consagrava a Doutrina da Situação Irregular, mantendo o caráter tutelar do
Código anterior.
Paralelamente, na década de 50 os Estados Unidos estão
dominados pelas teorias criminológicas da anomia e das subculturas, que se
baseiam num modelo funcionalista da sociedade. Vigorava a criminologia
positivista, sob o império do paradigma etiológico, segundo o qual o
delinqüente, objeto da criminologia, era um ser patológico,
que necessitava de tratamento, sendo sua conduta determinada por causas
biológicas, psicológicas e sociais.
El
positivismo criminológico se asociaba con la idea de un ser patológico,
distinto o enfermo, determinado al delito por unas causas, y con necesidad de
tratamiento, esclarece Larrauri. [12]
A teoria da anomia de Merton é um prolongamento da teoria
da anomia de Durkheim, que buscou explicar as conseqüências patológicas da
divisão do trabalho, do declínio da solidariedade social e do conflito entre as
classes sociais, partindo do pressuposto de que:
Qualquer
sociedade é uma sociedade moral. Em certos aspectos, este caráter é mesmo mais
pronunciado nas sociedades organizadas. Porque o indivíduo não se basta, é da
sociedade que recebe tudo o que lhe é necessário, como é para ela que trabalha [13].
Salienta Larrauri[14] que:
De
acuerdo a la teoria de la anomia desarrollada por Merton (1957), los individuos
anhelan aquellos objetivos que son valorados en cada sociedad. (...) Debido a que las metas culturales son anheladas por
todos y las oportunidades estructurales para su consecución son limitadas surge
una tensión (strain), una situación de anomia. Una de las
respuestas que el individuo puede adoptar frente a esta tensión es el
comportamiento delictuvo.
O conceito sociológico de anomia envolve o contexto da
estrutura cultural e da estrutura social, sendo a primeira o conjunto de
valores normativos que governam a conduta dos membros de uma determinada
sociedade, e a segunda o conjunto organizado de relações sociais. Para Merton, [15]
a anomia é então concebida como uma ruptura na estrutura cultural,
ocorrendo, particularmente, quando há uma disjunção aguda entre as normas e
metas culturais e as capacidades socialmente estruturadas dos membros do grupo
em agir de acordo com as primeiras. Conforme essa concepção, os valores
culturais podem ajudar a produzir um comportamento que esteja em oposição aos
mandatos dos próprios valores.
Dentro da estrutura social é fácil e possível para alguns
indivíduos, que ocupam certa posição dentro da sociedade, agir de acordo com os
valores ditados, o que não ocorre com o restante. A estrutura social então
poderá funcionar como barreira para o desempenho dos mandatos culturais.
Quando a estrutura social
e cultural estão mal integradas, a primeira exigindo um comportamento
que a outra dificulta, há uma tensão rumo ao rompimento das normas ou ao seu
completo desprezo, diz Merton [16].
Embora a teoria da anomia tenha sido criticada por sua
excessiva linearidade, deixou um importante legado para as teorias
subculturais, cujo principal representante é Cohen.
A teoria de Cohen baseia-se na teoria de Merton e
destina-se à explicação da delinqüência juvenil. Para Cohen, a estrutura de
classes causa a delinqüência, que é produto de soluções coletivas para os
problemas se status, necessidades e frustrações das classes baixas num
mundo de valores da classe média.
Em síntesis,
las teorias subculturales aceptarán que el joven situado en los estratos
inferiores de la sociedad se enfrenta a una tensión por no poder acceder a los
objetivos culturales valorados. Frente a esta
tensión el joven renegará de los objetivos culturales dominantes y desarrollará
unos valores propios de su (sub)cultura de acuerdo a
los cuales ser valorado. El desarrollo de una subcultura delictiva aparece
como una respuesta a los problemas planteados por una (mala) ubicación en la
estructura social, conclui Larrauri. [17]
A participação na subcultura dá status e prestígio
aos menores (um êxito às avessas), aliviando as frustrações decorrentes do fato
de não alcançarem as metas da classe dominante.
O Código de Menores de 1979, nos moldes do Código de
Menores Mello Mattos, reflete o pensamento criminológico positivista, adotando
o paradigma etiológico ao estabelecer que a criança e o adolescente são objetos
da norma que merecem tratamento quando se encontram em situação irregular, o
que legitimava práticas autoritárias, repressivas e incriminadoras da pobreza.
Importante salientar que enquanto na Europa, no final da
década de 60 e início da década de 70, influenciada pelo libelling approuch,
pela antipsiquiatria, pela etnometodologia e pelo marxismo, surgia a Nova Criminologia, que criticava severamente os postulados
positivistas, os Códigos de Menores Mello Mattos e o Código de Menores de 1979
adotavam claramente seus preceitos.
Na época da contra-reforma da Criminologia Crítica (meio
dos anos setenta e início dos anos 80), no Brasil vigorava o pensamento
decorrente do golpe militar de 1964, que inclusive interrompeu o processo de
reforma do Código de Menores Mello Mattos, fazendo cessar as discussões que
estavam em andamento. Com o golpe, a questão do menor foi elevada à categoria
de problema de segurança nacional, prevalecendo o implemento de medidas
repressivas que visavam cercear os passos dos menores e suas condutas
"anti-sociais". Estavam em pleno vigor os postulados positivistas.
Neste clima de ditadura militar, é aprovada a Lei n° 4.513,
de 01 de dezembro de 1964, que cria a Política Nacional de Bem-Estar do Menor,
estabelecendo uma gestão centralizadora e vertical. O órgão nacional gestor
desta política passa a ser a FUNABEM (Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor)
e os órgãos executores estaduais eram as FEBEMs
(Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor).
Durante a crise da criminologia crítica (década de 80),
quando ocorreu o fim da NDC (National Deviance Conference) e surgiram os
realistas de esquerda (Young), os abolicionistas (Christie, Mathiesen, Bianchi
e Hulsman) e os defensores do direito penal mínimo (Baratta), estava em pleno
vigor no Brasil o Código de Menores de 1979, que substituiu o Código Mello
Mattos, mas manteve sua postura positivista: o menor, infrator ou abandonado,
seguia sendo um objeto que, por apresentar uma "patologia social",
merecia tratamento.
No final da década de oitenta, em plena crise da
criminologia crítica, o Brasil retomará o caminho de evolução para a Doutrina da Proteção Integral, interrompido pela Ditadura Militar,
e iniciado em 20 de novembro de 1959 quando, onze anos depois da Declaração
Universal dos Direitos do Homem de 1948, a ONU produzira a Declaração dos
Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil, e que constitui um marco
fundamental no ordenamento jurídico internacional relativo aos direitos da
criança.
Paralelamente aos movimentos internacionais, no Brasil dos
anos 80 foi concebida uma Constituição Federal voltada para as
questões, mundialmente debatidas, dos direitos humanos de todos os cidadãos,
a conhecida "Constituição Cidadã", de 1988, destacando-se, nesse
contexto, o movimento denominado "A Criança e o Constituinte",
voltado para a defesa dos direitos da criança.
Com o avanço da abertura política no Brasil vozes surgiram
de diferentes segmentos para denunciar as injustiças e atrocidades que eram
cometidas contra os menores. De acordo com Rizzini [18],
As denúncias desnudavam a distância existente entre crianças e menores no Brasil, mostrando que crianças pobres não tinham sequer direito à infância.
Muitos movimentos questionavam o tratamento dado às
crianças em "situação irregular" e as indiscriminadas internações
determinadas pelos Juizados de Menores. A visibilidade crescente dos meninos de
rua nos anos 80 também impulsionou a articulação de vários grupos em defesa dos
direitos dos menores.
Com a promulgação no Brasil do Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei n° 8069, de 13 de julho de 1990) que, nos moldes da
Constituição Federal, consagrou a Doutrina da Proteção Integral, foi revogada a
arcaica concepção tutelar do menor em situação irregular. Estabeleceu-se que a
criança e o adolescente são sujeitos de direito, e não mais objetos da norma,
sendo totalmente remodelada a Justiça da Infância e da Juventude,
abandonando-se o conceito de menor, como subcategoria da cidadania.
A substituição do Código de Menores de 1979 pelo Estatuto
da Criança e do Adolescente, em 1990, constituiu uma verdadeira troca de paradigma,
uma revolução cultural. Partindo do pressuposto de que as piores atrocidades
contra a criança foram cometidas numa época em que, em nome do
"amor", reinavam os ideais de messianismo, subjetivismo e
discricionariedade, afirma Mendez [19] que:
Tratava-se (e trata-se ainda), sobretudo, de eliminar as "boas" práticas "tutelares e compassivas". (...) Tratava-se (e trata-se ainda) de substituir a má, porém também "boa" vontade, nada mais – mas também nada menos – pela justiça.
O Estatuto da Criança e do Adolescente veio por fim às
ambigüidades existentes entre a proteção e a responsabilização do adolescente
infrator em conflito com a lei, criando a responsabilidade penal dos
adolescentes [20].
Sustenta Mendez [21] que, por sua parte, o modelo do
Estatuto da Criança e do Adolescente demonstra que é possível e necessário
superar tanto a visão pseudoprogressista e falsamente compassiva, de um
paternalismo ingênuo de caráter tutelar, quanto à visão retrógrada de um
retribucionismo hipócrita de mero caráter penal repressivo.
Foi criando, então, o modelo da justiça e das garantias
para o adolescente em conflito com a lei. Antagonicamente ao subjetivismo e à
discricionariedade do Código de Menores, surge uma legislação com caráter
garantista, que estabelece o respeito rigoroso ao império da lei.
No sistema de responsabilidade penal do adolescente em
conflito com a lei, no qual a medida sócio-educativa tem natureza
sancionatória, mas com caráter pedagógico, aplicam-se todas as garantidas
asseguradas aos maiores de idade que infringem a lei penal, dentre as quais
podemos destacar as seguintes: devido processo legal [22] (art. 5o,
inciso LIV, da CF, e arts. 110 e 111, incisos I a VI, do ECA);
princípio da tipicidade (art. 103, do ECA); necessidade de que o fato, além de
típico, seja antijurídico e culpável [23]; predomínio dos princípios do
Direito Penal Mínimo, optando a lei juvenil pelas penas restritivas de direitos
como alternativas à privação de liberdade; prevalência da máxima de que ninguém
deverá ser privado de liberdade se a lei admitir liberdade provisória (art. 5o,
inciso LXVI, da CF); gratuidade judiciária (art. 141, parágrafo 2o, do ECA);
direito do adolescente de ser ouvido pela autoridade competente (art. 141,
"caput", do ECA, e art. 5o, XXXV, da CF), direito à celeridade do processo, ao qual deverá ser dada prioridade
absoluta (art. 227, "caput", da CF, e arts. 4o, "caput",
art. 108, "caput", e art. 183, do ECA), etc. Somam-se a estas
garantias àquelas inerentes às execuções das medidas, dentre as quais destacam-se
o princípio da progressividade das medidas (art. 120, § 2o, in fine, c/c
art. 121, "caput", primeira parte, do ECA, e art. 227, § 3o, da CF) e
a aplicação dos direitos constitucionais de ampla defesa e contraditório (art.
5o, LV, da CF). Por fim, cabe dizer que os procedimentos para apuração de ato
infracional correm em segredo de justiça, visando assegurar a inviolabilidade
física e moral do adolescente (arts. 17 e 143, "caput", do Estatuto
da Criança e do Adolescente).
Não se pode ignorar que o Estatuto da Criança e do
Adolescente instituiu no país um sistema que pode ser definido como de Direito
Penal Juvenil. Estabelece um mecanismo de sancionamento, de caráter pedagógico
em sua concepção e conteúdo, mas evidentemente retributivo em sua forma,
articulado sob o fundamento do garantismo penal e de todos os princípios
norteadores do sistema penal enquanto instrumento de cidadania, fundado nos
princípios do Direito Penal Mínimo, sustenta Saraiva.[24]
A construção jurídica da responsabilidade penal dos adolescentes constituiu uma
conquista e um avanço extraordinário normativamente consagrado no Estatuto da
Criança e do Adolescente, salientando Mendez [25] que:
(...) o ECA
constitui uma resposta adequada, eficiente e consonante com os mais altos padrões
internacionais de respeito aos direitos humanos. O ECA
satisfaz o duplamente legítimo requisito de assegurar simultaneamente a
segurança coletiva da sociedade, com o respeito rigoroso das garantias dos
indivíduos sem distinção de idade.
Feitas estas considerações gerais, resta
concluir que passados dez anos da promulgação do Estatuto da Criança e do
Adolescente no Brasil, embora já seja possível comemorar profundas e
significativas alterações, é preciso manter viva a consciência de que a
implementação do sistema de garantidas quanto à responsabilização penal do
adolescente ainda depende de muitas ações para ser alcançada plenamente.
Entretanto, para Mendez [26]
a necessidade de leis reguladoras das medidas sócio-educativas, a área mais
obscura da administração da justiça juvenil, não se justifica nem se legitima
por imperfeições técnicas do ECA e sim, ao contrário e
sobretudo, para enfrentar a sobrevivência de uma cultura da
"proteção" subjetiva e discricional.
É certo que, como ocorre com a criminologia, que passou por
importantes reformas e críticas e que está ainda em crise, pois, conforme
Larrauri [27]:
La
dificultad aparece en consecuencia en cómo compaginar uma criminología
fundamentalmente teórica, que ejerza la crítica contra el sistema, com el
interes de transformar la realidad, na questão do adolescente está presente
o mesmo problema.
Parece que teoricamente o Estatuto da Criança e do
Adolescente rompeu com o paradigma anterior, possibilitando a construção de um
novo modelo, com primazia às garantias constitucionais. Na prática, porém,
verifica-se que a realidade ainda está distante destes ideais.
Assim como no âmbito do direito penal persistem pensamentos
e práticas do positivismo filosófico, embora coexistindo com as novas idéias
propostas pela criminologia crítica, com relação ao Estatuto da Criança e do
Adolescente subsistem resquícios do subjetivismo e arbitrariedade herdados dos
Códigos de Menores. Opera-se com os dispositivos do Estatuto da Criança e do
Adolescente, mas a cultura menorista está ainda presente e atuante, persistindo
muitas vezes a lógica da Situação Irregular.
Neste sentido,
Pareciera
que modificar las asunciones que se basan em la aparencia de los hechos
sociales, descontruyéndolos y mostrando su verdadera esencia, ayudará a
transformar la sociedad. Cambia las ideas y deja que éstas cambien el mundo, conclui Larrauri. [28]
Entretanto, sem esquecer que o primeiro passo para a
reforma é a transformação do pensamento é preciso ter presente que somente novas
idéias não mudam o mundo.
Por outro lado, as dificuldades de implementação do
Estatuto da Criança e do Adolescente jamais deverão servir de fundamento para a
redução da menoridade penal, sob pena desta postura representar a derrota dos
ideais da Doutrina da Proteção Integral, caracterizando um retrocesso sem
precedentes na área da infância e da juventude. Se no âmbito do sistema
infanto-juvenil está difícil consolidar totalmente as garantias constitucionais
dos adolescentes infratores, na órbita do direito penal esta meta se
transformará automaticamente numa utopia.
A crise no sistema de atendimento a
adolescentes infratores privados de liberdade no Brasil só não é maior que a
crise do sistema penitenciário, para onde se pretende transferir os jovens
infratores de menos de dezoito anos, refere
Saraiva. [29]
Submeter os adolescentes infratores ao sistema penal
significaria subjugá-los a um sistema de poder no qual, segundo Zaffaroni [30]
a seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para
maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de
poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou
comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais (...).
A irracionalidade e o processo de produção e reprodução de
violência do sistema de execução penal tornam inadmissíveis quaisquer
posicionamentos favoráveis à redução da menoridade penal.
A perversão do discurso jurídico-penal faz
com que se recuse, com horror, qualquer vinculação dos menores (especialmente
os abandonados), dos doentes mentais, dos anciões e, inclusive, da própria
prostituição com o discurso jurídico-penal (...), diz Zaffaroni. [31]
Impõe-se, pois, um trabalho democrático entre a sociedade,
a família e o Poder Público no sentido de assumir um
compromisso pessoal, social e profissional com o adolescente em conflito
com a lei, aceitando-se inteiramente os princípios da Convenção da ONU, da
Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente. Somente a percepção
clara e o comprometimento de todos quanto às novas concepções e diretrizes do
garantismo no sistema infanto-juvenil de responsabilização penal do adolescente
infrator tornará possível a luta em busca de um
resultado desejável e alcançável, no qual predomine a Doutrina da Proteção
Integral.
- BARRETTO, Tobias. Menores e Loucos em Direito
Criminal. 2. ed.
- DURKHEIM, Émile. A Divisão do Trabalho Social. 2. ed. Portugal: Editorial Presença; Brasil:
Livraria Martins Fontes, 1977.
- FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do
garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
- GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos.
7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.
- LARRAURI, Elena. La herencia de la criminología crítica. 2. ed. Madrid: Siglo Veintiuno
de España Editores, 1991.
- MENDEZ, Emilio Garcia. Por uma reflexão sobre o
arbítrio e o garantismo na jurisdição sócio-educativa. Buenos Aires - Belo
Horizonte, fevereiro de 2000.
- MERTON, Robert K. Sociologia: Teoria e Estrutura. São Paulo: Mestre
Jou, 1968.
- RIZZINI, Irene. A Criança e a Lei no Brasil – Revisitando a História
(1822-2000). Brasília, DF: UNICEF; Rio de Janeiro: USU Ed. Universitária,
2000.
- SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em conflito
com a lei: da indiferença à proteção integral: uma abordagem sobre a
responsabilidade penal juvenil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
- SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil:
adolescente e ato infracional, garantias processuais e medidas socioeducativas.
2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
- ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
Notas:
[1] BARRETO, Tobias. Menores
e loucos. Recife: Typografhia Central, 1886, p. 132.
[2] Importante dizer
que tal assertiva foi elaborada quando estava em vigor o Código Criminal do
Império do Brasil, de 13 de dezembro de 1830, que fixava a imputabilidade penal
plena aos 14 anos de idade, estabelecendo, ainda, um sistema biopsicológico
para a punição de crianças entre sete e quatorze anos. Entre sete e quatorze
anos, os menores que agissem com discernimento poderiam ser considerados
relativamente imputáveis, sendo passíveis de recolhimento às casas de correção,
pelo tempo que o Juiz entendesse conveniente, contanto que o recolhimento não
excedesse a idade de dezessete anos.
[3] Dispõe o art. 228,
da Constituição Federal: "São penalmente inimputáveis os menores de
dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”.
[4] A Doutrina da
Proteção Integral à Criança e ao Adolescente, a nível internacional,
estabeleceu-se principalmente pela Convenção das Nações Unidas de Direito da
Criança de 1989, e pelo seguinte conjunto normativo: - Regras mínimas das
Nações Unidas para a Administração dos Direitos dos Menores, conhecidas como
Regras de Beijing (29/11/1985); - Regras das Nações Unidas para a Proteção dos
Menores Privados de Liberdade (14/12/1990); - Diretrizes das Nações Unidas para
a Prevenção da Delinqüência Juvenil, conhecidas como
Diretrizes de Riad (14/12/1990). No Brasil, a Doutrina da Proteção Integral foi
expressa na Constituição Federal de 1988, que inclusive se antecipou à
Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança, e no Estatuto da Criança e
do Adolescente (Lei n° 8069, de 13 de julho de 1990).
[5] Nessa época
vigorava no Brasil o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil - Decreto n°
847, do dia 11 de outubro de 1890, que estabelecia a imputabilidade penal
plena, com caráter objetivo, aos quatorze anos de idade. Irresponsável
penalmente seria o menor com idade até nove anos. Quanto ao menor de quatorze
anos e maior de nove anos, era adotado ainda o critério biopsicológico, fundado
na idéia do "discernimento", estabelecendo-se que ele se submeteria à
avaliação do magistrado.
[6] Prevê o art. 23,
do Código Penal de 1940: "Os menores de dezoito anos são penalmente
irresponsáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação
especial”.
[7] A reforma penal de
1984, inspirada na doutrina de Francisco de Assis Toledo, através da Lei n°
7.209, de 11 de julho de 1984, deu nova redação à Parte Geral do Código Penal,
reafirmando a imputabilidade penal aos 18 anos de idade, em seu art. 27.
[8] GOFFMAN, Erving. Manicômios,
prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 67.
[9] FERRAJOLI, Luigi. Direito
e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 30.
[10] SARAIVA, João
Batista Costa. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à proteção
integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 47.
[11] MENDEZ, Emilio
Garcia. Por uma reflexão sobre o arbítrio e o garantismo na jurisdição
sócio-educativa. Buenos Aires - Belo Horizonte, fevereiro de 2000.
[12] LARRAURI, Elena. La
herencia de la criminología crítica. Madrid: Siglo Veintiuno de España
Editores, 1991, p. 12.
[13] DURKHEIM, Émile. A
divisão social do trabalho. Portugal: Editorial Presença, 1977, p. 261.
[14] LARRAURI, Elena.
Op. cit. p. 04.
[15] MERTON, Robert K.
Sociologia, teoria e estrutura. São Paulo: Editora
Mestre Jou, 1968, p. 36.
[16] MERTON, Robert K. Op.
Cit. p. 237.
[17] LARRAURI, Elena. Op.
Cit. p. 08.
[18] RIZZINI, Irene. A
Criança e a Lei no Brasil – Revisitando a História (1822-2000). Brasília,
DF: UNICEF; Rio de Janeiro: USU Ed. Universitária, 2000, p. 74.
[19] MENDEZ, Emilio
Garcia. Por uma reflexão sobre o arbítrio e o garantismo na jurisdição sócio-educativa.
Buenos Aires - Belo Horizonte, fevereiro de 2000.
[20] Importante dizer que foi criada a responsabilidade penal do adolescente
com idade entre 12 e 18 anos. Os menores de 12 anos, além de inimputáveis, são
penalmente irresponsáveis, sendo passíveis apenas de receber medidas de
proteção quando infringirem as leis penais (art. 105, do Estatuto da Criança e
do Adolescente).
[21] MENDEZ, Emílio
Garcia.
[22] Na garantia ao
devido processo legal incluem-se os mandamentos constitucionais relativos ao
princípio do juiz natural (art. 5o, XXXVII e LII), a garantia do respeito à
integridade física e moral (art. 5o, XLIX), o direito ao contraditório e ampla
defesa (art. 5o, LV), o princípio da presunção da inocência (art. 5o, LVII), a
obrigatoriedade do relaxamento da prisão ilegal (art. 5o, LXV), partindo da
premissa de que "as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata" (art. 5o, LXXVII e parágrafo 1o).
[23] É certo que os
elementos da culpabilidade, à exceção da imputabilidade, devem estar presentes
para a caracterização do ato infracional.
[24] SARAIVA, João
Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e ato infracional,
garantias processuais e medidas socioeducativas. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2002, p. 45.
[25] MENDEZ, Emilio
Garcia. Por uma reflexão sobre o arbítrio e o garantismo na jurisdição
sócio-educativa. Buenos Aires - Belo Horizonte, fevereiro de 2000.
[26] Idem.
[27] LARRAURI, Elena.
Op. Cit. p. 238.
[28] LARRAURI, Elena.
Op. Cit. p. 239.
[29] SARAIVA, João
Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e ato infracional,
garantias processuais e medidas socioeducativas. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2002, p. 45.
[30] ZAFFARONI, Eugenio
Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 15.
[31] ZAFFARONI, Eugenio
Raúl. Op. Cit. p. 22.