A PATERNIDADE RESPONSÁVEL E A INTIMIDADE DA MULHER
André Luiz Nogueira da Cunha
Promotor
de Justiça de Monte Aprazível.
Introdução
Questão
interessante e que ainda hoje suscita dúvidas no foro é a obrigatoriedade, ou
não, da mulher em informar ao Oficial do Registro Civil a identidade do genitor
do seu filho, fornecendo elementos qualificadores, ou fazendo-o,
posteriormente, perante o Juiz Corregedor Permanente do Serviço de Registro
Civil, quando não for casada e não estiver munida de declaração, procuração ou
anuência do pai.[1]
De um lado,
tem-se o princípio da paternidade responsável, pelo qual o direito do estado de
filiação é personalíssimo, indisponível e imprescritível[2],
e, de outro lado, tem-se o direito à intimidade e à liberdade da mulher,
abrangendo sua liberdade de relacionamentos sexuais e o sigilo sobre seus
parceiros.[3]
A Lei nº 8.560/92 e a paternidade responsável.
O princípio
da paternidade responsável, inserido no direito do estado de filiação, está
garantido implicitamente na Constituição Federal, no art. 227, pois é dever da
família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente o
direito à convivência familiar, colocando-os a salvo de toda forma de
discriminação, vedando expressamente as designações discriminatórias relativas
ao estado de filiação.
A Convenção
Sobre os Direitos da Criança, de 1989, ratificada pelo Brasil em 24 de setembro
de 1990, dispõe que toda criança terá direito, na medida do possível, de
conhecer seus pais e ser cuidada por eles.[4]
De forma
explícita, o princípio da paternidade responsável foi incluído no art. 27, da
Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), ao dispor que o
reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e
imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem
qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.
A partir de
então, o direito da criança ou do adolescente ao reconhecimento do seu estado
de filho, que antes da Constituição Federal era impedido em algumas situações
pelo Código Civil (filhos ilegítimos adulterinos e incestuosos - art. 358, do
Código Civil), passa a ser absoluto, podendo ser exercido a qualquer tempo e,
inclusive, em face dos herdeiros dos pais, considerando-se de natureza
personalíssima e não se podendo dele dispor.
Como forma
de garantir maior efetividade ao exercício do direito de filiação, bem como
maior obrigatoriedade ao princípio da paternidade responsável, veio a lume em
29 de dezembro de 1992 a Lei nº 8.560, prevendo que o reconhecimento dos filhos
é irrevogável e indicando as formas de reconhecimento.
No caso de
registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida, o
Oficial do Cartório remeterá ao Juiz Corregedor Permanente do Serviço de
Registro Civil certidão integral do registro, com declaração da genitora sobre
o suposto pai, com sua qualificação e identificação. O Juiz, então, ouvindo a
genitora sobre a paternidade alegada, determinará a oitiva também do suposto
pai, que poderá reconhecer a paternidade, lavrando-se termo de reconhecimento,
que será averbado no registro de nascimento, ou negá-la, remetendo-se os autos
ao Ministério Público para que, havendo elementos suficientes, ajuíze a ação de
investigação de paternidade ou envie os autos à Procuradoria de Assistência
Judiciária do Estado para tal. Todo este procedimento tramitará em segredo de
justiça.[5]
Muito
embora a lei nada mencione sobre a obrigatoriedade da genitora em declinar o
nome do suposto pai, dois entendimentos têm sido manifestados pelos operadores
do direito: a genitora é obrigada a declinar o nome do suposto pai; a genitora
não é obrigada a declinar o nome do suposto pai.
Para os
primeiros, a paternidade responsável e o direito indisponível ao estado de
filiação garantem que a genitora tem o dever de declinar o nome, a
identificação e a qualificação do suposto pai, sob pena de suspensão e perda do
pátrio poder, por abandono[6], ao deixar de garantir
ao filho o exercício de um direito fundamental e indisponível, ou por infringir
a obrigação legal de suprimento do consentimento e da vontade[7], e a aplicação de multa, por infração
administrativa[8].
Para os
segundos, a intimidade da mulher e sua liberdade de relacionamentos sexuais,
mantendo-se o sigilo sobre os parceiros, não a obrigam a declinar o nome do
suposto pai, até porque, eventualmente, no futuro, ela própria, ainda
representando o filho menor, ou ele próprio, poderão ajuizar a ação
investigatória de paternidade.
Interesses em jogo.
Se de um
lado há o interesse da criança e do adolescente em conhecer o seu pai, já que mater semper certa est, por outro lado, há o direito à intimidade da
mulher, em não querer dizer quem é o pai do seu filho.
A mulher
deve ser respeitada nos seus relacionamentos, podendo manter sigilo sobre seus
parceiros, seja por seu próprio interesse, seja para evitar comprometimentos
legais e sociais.
Basta
imaginar a situação da mulher que teve o relacionamento sexual com um homem
casado. Enquanto não for modificado o Código Penal, constitui tal conduta crime
de adultério, conforme dispõe o art. 240, respondendo o homem casado e ela, se
ciente do matrimônio, como autores do crime. Caso ela indique o pai do seu
filho, estará confessando a autoria de um crime, e ninguém é obrigado a fazer
prova contra si.[9]
Além disso,
a mulher pode ter tido o relacionamento com alguém que goza de posição social
que o impeça de se relacionar, naquele momento e naquela circunstância, com
ela, como um padre, um religioso, uma autoridade pública. Se a mulher quiser
manter sigilo sobre tal relacionamento, como obrigá-la a relatar a paternidade
do seu filho, ocasionando, por vezes, maiores infelicidades e danos sociais?
E se o
filho é fruto de uma relação sexual forçada, que a própria
mulher preferiu tê-lo, e não abortar, além de não relatar às autoridades
competentes, tendo a própria legislação proporcionado a primazia da sua
intimidade sobre o princípio de que os delitos não devem ficar impunes
(obrigatoriedade), garantindo a exclusividade da iniciativa privada em algumas
hipóteses do ajuizamento da ação penal (nos crimes contra os costumes, por
exemplo), como obrigá-la a relatar o nome do pai, caso o conheça, alguém por
ela desprezado?
A solução proposta.
Pois bem,
para aqueles que entendem preponderar o interesse da criança em conhecer seu
pai sobre o da intimidade da mulher, várias soluções podem ser verificadas.
Por
primeiro, é importante verificar que é possível a incidência do art. 342, do
Código Penal, crime de falso testemunho, pois a mãe estaria calando a verdade
em processo de natureza administrativa, ao negar-se a dizer quem é o pai do seu
filho. O tipo penal admite o sancionamento do falso
testemunho em procedimento investigatório policial. A jurisprudência tem
admitido a incidência em sindicância administrativa.[10] Assim, poder-se-ia
considerar o procedimento instaurado pela Corregedoria Permanente do Registro
Civil como de natureza administrativa, tendente à
apurar a paternidade de uma criança, pelo qual a mãe estaria obrigada a
declinar o nome do pai, e, em não o fazendo, estaria sujeita às penas do falso
testemunho, até mesmo nos casos em que o compromisso não fosse tomado, pois há
corrente jurisprudencial que entende não ter havido distinção na lei entre
testemunha compromissada e não compromissada.[11]
Para
aqueles que entendem que o procedimento investigatório administrativo
instaurado no âmbito da Corregedoria Permanente do Registro Civil não tem
natureza de processo administrativo, desautorizando, portanto, a incidência do
falso testemunho, mas pensam que o direito ao estado de filiação prepondera
sobre a intimidade da mulher, poder-se-ia concluir que o
silêncio intencional, consistente em não dizer quem é o pai da criança,
no documento lavrado pelo Oficial do Cartório do Registro Civil, caracterizaria
o crime de falsidade ideológica, disposto no art. 299, do Código Penal, pois a
mãe estaria omitindo, em documento público, declaração que dele devia constar,
com o fim de prejudicar direito, sendo "indiferente que o agente queira o
prejuízo, ou seja, a intenção ou propósito de causar dano (RT 255/575),
configurando-se o crime ainda que não resulte efetivo prejuízo ou lucro (RT
543/321)"[12], bastando que a omissão possa ocasionar provável prejuízo ao
filho, desde que tal probabilidade seja de conhecimento da genitora.
Poder-se-ia
ainda argumentar que a genitora, com sua omissão, estaria
infringindo os deveres inerentes ao pátrio poder, abandonando o próprio
filho, ao deixar de exercer e garantir um direito fundamental e indisponível,
garantido na própria Constituição da República, além de descumprir a obrigação
legal de representação e suprimento do consentimento e da vontade da criança,
devendo, portanto, ser responsabilizada com multa, por infração administrativa
ao Estatuto da Criança e do Adolescente, após o devido processo legal.[13]
Por fim, é
importante lembrar que a genitora poderá perder o pátrio poder, por sua atitude
omissiva, já que está deixando de garantir um direito indisponível do seu
filho, abandonando-o, portanto.[14]
No entanto,
a genitora só pode ser obrigada a fazer o que está na lei. O art. 2º, parágrafo
único, da Lei nº 8.560/92, não obriga a mãe a declinar o nome do suposto pai,
pois fala em "paternidade alegada", sem dispor que a genitora está
obrigada a informar ao Oficial do Cartório ou ao Juiz Corregedor o nome do pai
do seu filho. Tal entendimento decorre de uma simples leitura do dispositivo
legal. Contudo, entendendo-se, ainda assim, que há obrigatoriedade, insta
considerar que tal obrigatoriedade redundará em medida inócua, pois desprovida
de sanção.
Primeiro,
não é crime a omissão. Os tipos penais devem ser interpretados restritivamente,
sob pena de ofensa ao princípio da reserva legal. Assim, não se pode considerar
a genitora como testemunha em procedimento administrativo, já que ela é ouvida
sobre fatos dos quais participou, mas sobre os quais tem interesse, não se
podendo concluir que seja ela como “os
olhos e os ouvidos da Justiça”, como dizia Bentham[15], pois não está desprovida de interesse, sendo, na
realidade, ouvida como declarante ou informante do Juízo Corregedor acerca da
paternidade de seu filho, até porque, na ação ordinária de investigação de
paternidade ela não é ouvida como testemunha, já que, na grande maioria das
hipóteses, é a representante do autor.
Também não
é o caso de incidência do art. 299, do Código Penal, pois omitir é silenciar
sobre declaração a que estava a mãe obrigada a fazer, o que, na verdade, não
acontece, pois a genitora não omite, não deixa de declarar; pelo contrário, conforme
pode-se verificar em inúmeros procedimentos em trâmite
no Estado, a genitora, expressamente, diz não ter interesse em indicar o pai do
seu filho, até porque ela é formalmente instada pelo Oficial do Cartório do
Registro Civil, e posteriormente pelo Juiz Corregedor Permanente do Registro
Civil, a indicar o pai do seu filho; não o fazendo, fica constando que não tem
interesse, ou não pretende fazê-lo. De qualquer modo, parte da doutrina tem
entendido que o crime é comissivo, pois é feito um documento com declaração
incompleta pelo agente delituoso[16], mas mesmo neste
caso urge consignar que a declaração não é incompleta, pois a genitora informou
que não pretende indicar o nome do pai, e não fez declaração incompleta. Além
disso, ausente está o elemento subjetivo do tipo, pois a genitora, ao não
querer indicar o nome do pai do seu filho, não está objetivando prejudicar-lhe
direitos, mas apenas resguardar sua intimidade, mesmo que se entenda que ela
não o possa fazer, pois a tipificação exige que ela, intencionalmente, queira
prejudicar direitos do seu filho, o que, muitas vezes, pode até mesmo
constituir o contrário, pois ela pode estar querendo proteger a integridade
psíquica da criança ou do adolescente.
O simples
silêncio da mãe não pode autorizar, por si só, a destituição do pátrio poder,
já que os preceitos sancionatórios da legislação
civil devem ser interpretados restritivamente, não se podendo ampliar a
abrangência de tais normas, sob pena de perigoso alargamento das hipóteses
autorizadoras da perda de um direito. Assim, o silêncio da genitora não
caracteriza por si só a falta de representação ou assistência do filho menor,
suprindo-lhe o consentimento, se em outras oportunidades tal representação ou
assistência esteve presente. Ademais, o silêncio, sem outros elementos de
convicção, não tem o condão de caracterizar o abandono do filho, se for
observado que material e psicologicamente a criança ou o adolescente estão
sendo assistidos pela genitora. Desse modo, tanto a destituição do pátrio poder,
quanto à aplicação de sanção do Estatuto da Criança e do Adolescente, não podem
ocorrer pelo mero silêncio da genitora, é dizer, pelo desinteresse em declarar
o pai do seu filho, se em outras hipóteses ela estiver suprindo a incapacidade
do menor de vinte e um anos de idade e assistindo-o material e
psicologicamente.
Percebe-se
então que, mesmo para aqueles que entendem que deve preponderar o interesse da
criança sobre o interesse da mãe, insta considerar que é difícil encontrar sancionamento para a obrigação omitida, pois o ordenamento
jurídico pátrio não especificou nenhuma sanção para tal omissão.
Daí então
ser mais fácil e razoável concluir que, a despeito da preponderância da
intimidade da mulher sobre o direito da criança e do adolescente, o próprio legislador
deixou de sancionar a omissão, deixando patente que não se trata de
obrigatoriedade da mulher em indicar o pai do seu filho, pois não sancionou nem
obrigou expressamente na Lei nº 8.560/92 tal declaração.
De qualquer
modo, caso devesse ser entendido diferentemente o dispositivo, ou mesmo se
estivesse obrigando a mulher, o correto seria entender pela preponderância da
sua intimidade sobre o direito da criança e do adolescente, devendo-se
considerar, então, tal norma inconstitucional.
Notas
1. Lei nº
8.560/92. Provimento do Conselho Superior da Magistratura nº 494/93. Provimento da Corregedoria Geral
de Justiça nº 16/93.
2. Lei nº
8.069/90, art. 27.
3.
Constituição Federal, art. 5º, incisos II e X.
4.
Convenção Sobre os Direitos da Criança, art. 7º-I, in fine.
5. Lei nº 8.560/92, art. 2º. Provimentos CSM
494/93 e CGJ 16/93.
6. Código
Civil, art. 395, inciso II.
7. Código
Civil, art. 384, inciso V.
8. Lei nº
8.069/90, art. 249.
9.
Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) - Pacto de San José da Costa
Rica, Art. 8º, 2, g.
10. RT
61/304,317.
11.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal. 5ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 1991. (p.
393).
12.
MIRABETE, Júlio Fabbrini, in op. cit. p. 245.
13. Código
Civil, art. 384, inciso V, e art. 395, inciso II. Lei
nº 8.069/90, art. 249.
14. Código
Civil, art. 384, inciso V, e art. 395, inciso II.
15. ACOSTA,
Walter P. “O processo penal”. 8ª ed.
São Paulo: Edição do Autor, 1971. (p. 231).
16.
MIRABETE, Júlio Fabbrini, in op. cit. p. 241.
NOTA SOBRE O AUTOR
André Luiz
Nogueira da Cunha é Promotor de Justiça de Monte Aprazível, Professor de
Direito Civil na UNORP em São José do Rio Preto e Mestrando em Direito Público
na UNIFRAN – Franca.