ÉTICA NA ASSITÊNCIA À SAÚDE DO ADOLESCENTE E DO JOVEM

 

 

Paulo Antônio de Carvalho Fortes[1]

 

Daniele Pompei Sacardo[2]

 

 

Ética é um dos instrumentos de que o homem lança mão para garantir a convivência social. É a reflexão crítica sobre o comportamento humano. Reflexão que interpreta, discute e problematiza os valores, princípios e regras morais, à procura do “bom” para a vida em sociedade.

 

A autonomia e a tomada de decisão

 

A ética contemporânea, na área de assistência à saúde, relaciona-se intrinsecamente à noção da autonomia da pessoa. Intentando modificar o tradicional paternalismo existente entre os profissionais da saúde, guiados pelo princípio da beneficência e da não maleficência, a ética vem preocupando-se em garantir o respeito das pessoas autônomas, e em proteger aquelas com autonomia reduzida.

 

Autonomia significa autodeterminação, autogoverno: é o poder da pessoa humana de tomar decisões sobre sua saúde; sua integridade físico-psíquica, suas relações sociais. O termo deriva do grego “auto” (próprio) e “nomos” (lei, regra, norma). Refere-se à capacidade da pessoa de dar sua própria lei, de decidir o que é o “bom”, o que considera ser adequado para si.

 

A pessoa autônoma tem liberdade de pensamento, é livre de coações internas ou externas para poder escolher. Deve ter capacidade para decidir, de forma racional, optando entre as alternativas que lhe são apresentadas, de acordo com seus valores, expectativas, necessidades, prioridades e crenças pessoais. Deve também compreender as conseqüências de suas escolhas. A ação autônoma também pressupõe liberdade de ação, requer que a pessoa seja capaz de agir conforme as escolhas feitas e as decisões tomadas.

 

Em decorrência da razão e da liberdade, que fundamentam a autonomia, o indivíduo autônomo é responsável por seus atos.

 

O ser humano não nasce autônomo, torna-se autônomo, mas também pode perder sua autonomia. E para isso interferem variáveis estruturais biológicas, psíquicas e socioculturais. Pode-se compreender que existam pessoas autônomas e pessoas com autonomia reduzida, como crianças e deficientes mentais. Nas situações de autonomia reduzida, cabe a terceiros, familiares ou mesmo aos profissionais de saúde, decidir pelo indivíduo.

 

Uma pessoa autônoma pode agir não autonomamente em determinadas circunstâncias. Por isso, a avaliação de sua livre manifestação decisória é uma das mais complexas questões éticas impostas aos profissionais da saúde. Desordens emocionais ou mentais e mesmo alterações físicas podem reduzir transitoriamente a autonomia, comprometendo a apreciação e a racionalidade das decisões a serem tomadas.

 

Autonomia plena é um ideal, pois o homem recebe influências e condicionantes de seu meio social, bem como de suas estruturas psíquicas. Se o homem não é um ser totalmente autônomo, isto não significa que seja escravo das paixões ou dos fatores sociais, pois pode-se mover dentro de uma margem própria de decisão e de ação. Portanto, pode-se concordar com Marcolino e Cohen (1995), ao afirmarem “o objetivo realista é, apenas, que uma decisão conseqüente seja substancialmente autônoma”.

 

E o adolescente?

 

Deve ser considerado como pessoa autônoma ou sua autonomia está ainda reduzida? Há uma idade acima da qual se pode dizer que uma pessoa é autônoma? Como decidir quais são as situações e as condições em que os adolescentes podem tomar decisões por si próprios? Quando o princípio da beneficência, do “fazer o bem” ao outro, deve sobrepujar o princípio do respeito à sua autonomia ?

 

Respostas a essas questões são essenciais se a opção ética se dá pelo respeito às decisões tomadas pela pessoa, na assistência à sua saúde.

 

Legalmente, via de regra, os adolescentes são pessoas, ainda em fase de conquista de sua autonomia, com autonomia reduzida. No Brasil, os menores de 16 anos de idade são considerados como absolutamente incapazes pelas normas de Direito Civil. E, entre 16 a 21 anos de idade, são relativamente incapazes para certos atos ou à maneira de exercê-los (Código Civil, arts. 5º e 6º).

 

Há adolescentes e jovens que a legislação brasileira, independente da idade cronológica, considera como competentes para tomar decisões. São os denominados “menores emancipados”, cuja incapacidade jurídica cessa com o casamento, emprego público efetivo, colação de ensino superior, ou quando são detentores de estabelecimento civil ou comercial, mantido com economia própria. Há ainda, conforme a lei, a possibilidade de que o pai, ou se este estiver morto, a mãe, conceda a maioridade ao jovem com 18 anos completados (Código Civil, art. 9º,# 1º).

 

Se, na relação entre os profissionais da saúde e os adolescentes vigorar a noção de que a competência decisória individual deva basear-se somente nos parâmetros legais, dela resultará que a maioria não poderá tomar decisões sobre questões referentes a sua saúde. A prática corrente na assistência à saúde mostra que, mesmo os profissionais que respeitam as decisões de consentimento ou recusa de um adulto, entendem os adolescentes como incapazes de decidir. Optam por condutas de natureza ética paternalista aceitando que outros devam decidir o que é o “bom” para o jovem (Drane, 1984; Lantos e Miles, 1988; Moreno, 1989).

 

Todavia, essa tendência, a partir dos anos sessenta, vem sendo gradualmente modificada. Advoga-se que, eticamente, qualquer pessoa, independente de sua idade, tendo condições intelectuais e psicológicas para apreciar a natureza e as conseqüências de um ato ou proposta de assistência a sua saúde, deva poder tomar decisões sobre a assistência a sua saúde (American Board of Pediatrics, 1987; Holder, 1987; Bartholome, 1989; Lantos, 1989; Colli, 1992; Saito, 1992; Cohen, 1995).

 

Existe fundamentação científica para aceitação dessas considerações éticas, baseada nos trabalhos de psicologia evolutiva de Kholberg. As pesquisas deste autor demonstraram que, a partir dos 12 anos de idade, o indivíduo é capaz de reconhecer as regras e convenções sociais como suas, e a importância delas para manter o convívio e o bem-estar social. Essa etapa é denominada de nível “convencional” de desenvolvimento moral.

 

A partir dos 16 anos, inicia-se a última etapa do desenvolvimento moral, o nível “pós-convencional”. É quando o indivíduo consegue ajuizar as regras e as convenções sociais, acatando-as ou desobedecendo-as de acordo com seus próprios valores. Deve ser ressaltado que a maioria dos adultos não chegará, durante a vida, a atingir a etapa do desenvolvimento moral “pós-convencional” (Lorda e Cantalejo, 1997).

 

O trabalho de Weithorn & Campbell (1982) reforça a tese da capacidade decisória do adolescente. Estudando pessoas de 9, 14, 18 e 21 anos de idade, obtiveram resultados que mostraram que os maiores de 14 anos não diferem dos adultos em suas decisões sobre saúde, na capacidade de prover consentimento para situações que envolviam a assistência a sua saúde. Quanto às crianças de 9 anos, estas aparentemente eram menos competentes com respeito à habilidade de decidir e entender as informações sobre tratamento.

 

Nos Estados Unidos da América, a legislação de diversos estados, nos anos 80, já havia incorporado o conceito de “menor maduro” para decisões no campo da saúde de adolescentes com mais de 14 anos de idade. A legislação permite, estimula e facilita o acesso dos adolescentes a medidas de prevenção, diagnóstico e tratamento precoce, para determinadas condições patológicas como DST e Aids, abuso de drogas, álcool e nicotina, assim como para o uso de anticoncepcionais, o aconselhamento e o tratamento ambulatorial de transtornos mentais. Para tanto, existe permissão legal para que os profissionais de saúde atendam menores desacompanhados, sem que haja necessidade de se requerer a permissão dos responsáveis (Holder, 1987; English, 1990).

 

Na Inglaterra, desde o Family Law Reform Act, de 1969, existe permissão legal para que um adolescente, maior de 16 anos, possa tomar decisões para tratamento médico sem a necessidade do consentimento paterno. Para os menores de 16 anos, o consentimento pode ser dado em determinadas circunstâncias, após avaliação de sua capacidade de compreensão e de sua maturidade para tomar decisões (Kennedy e Grubb, 1989; Purssel, 1995).

 

Na Espanha, a Lei Orgânica sobre a proteção jurídica do menor, de 1996, garante ao adolescente, com capacidade de compreensão e juízo sobre as circunstâncias concretas do caso, o direito de decidir, aceitando ou recusando um tratamento proposto por profissionais de saúde (Lorda e Cantalejo, 1997).

 

No Brasil, em 1995, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, mediante a Resolução 41/95, inseriu entre os direitos dos adolescentes, o direito destes de terem conhecimento adequado de sua enfermidade, dos cuidados terapêuticos e diagnósticos, respeitando sua fase cognitiva.

 

O Código de Ética dos Médicos Brasileiros, de 1988, sem mencioná-lo explicitamente, inseriu o conceito de “menor maduro”, ou da “maioridade sanitária”, em seu art. 103. O código veda o médico de “revelar segredo profissional referente a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou responsáveis legais, desde que o menor tenha capacidade de avaliar seu problema e de se conduzir por seus próprios meios para solucioná-lo, salvo quando a não revelação possa acarretar danos ao paciente”. Logo, se o adolescente é avaliado como tendo capacidade autônoma para decidir sobre questões de assistência à saúde que lhe dizem respeito direto, o médico deve ficar adstrito à confidencialidade das informações perante os pais ou responsáveis, quando assim for o desejo do adolescente.

 

O Consentimento

 

O respeito à autonomia da pessoa humana requer que seu consentimento seja obtido, ou que sua recusa seja aceita, antes de submetê-la a procedimentos preventivos, diagnósticos ou terapêuticos. O consentimento é um ato de decisão voluntária, realizado por pessoa competente, esclarecida, por adequada informação e capaz de deliberar, tendo compreendido a informação revelada.

 

A liberdade para consentir

 

O ato de consentir é um processo e não um evento isolado, devendo ser livre, voluntário, consciente. Não pode ser obtido mediante práticas de coação física, psíquica ou moral, ou por meio de simulação ou práticas enganosas ou, ainda, por quaisquer outras formas de manipulação impeditivas da livre manifestação da vontade pessoal.

 

A relação entre o profissional da saúde e os adolescentes e jovens que a ele recorram em virtude de necessidades de saúde é assimétrica. O profissional detém informações, conhecimentos que, em geral, o paciente não possui. Portanto, para se ter garantia da liberdade de consentir, é preciso que a prática cotidiana na assistência à saúde esteja imbuída da noção do respeito ao princípio da autonomia individual. Pois, em virtude do domínio psicológico, do conhecimento especializado e das habilidades técnicas do profissional, este pode inviabilizar a real manifestação da vontade da pessoa com quem se relaciona.

 

A persuasão é eticamente aceitável, entendida como tentativa de induzir alguém, por meio de apelos à razão, para que livremente aceite crenças, atitudes, valores, intenções ou ações da pessoa que persuade. Por sua vez, a manipulação apresenta valor ético contrário, pois tenta fazer com que a pessoa realize o que o manipulador pretende, sem saber o que ele intenta (Culver, 1995).

 

O processo de consentir deve dar oportunidade de reflexão, deve possibilitar o reforço da compreensão do adolescente e do jovem. O profissional da saúde deve identificar a existência de genuínos conflitos de valores com os familiares ou responsáveis para poder abrandá-los.

 

Além das restrições externas, a liberdade de consentir pode estar prejudicada por defeitos no controle decisório devido a condições em que o indivíduo está dominado por desejos que ele não quer ter, como é o caso das pessoas em situações de agudização de alguns transtornos mentais, ou sob o efeito de intoxicação por substâncias químicas; isso resulta em decisões e escolhas não genuínas (Harris, 1985).

 

Também ocorrem circunstâncias em que a ansiedade ou o medo, o simples desinteresse, a incapacidade de compreender as informações apresentadas, ou, ainda, a extrema confiança depositada nos profissionais da saúde, levam a que os pacientes se recusem a ser informados de suas condições. O sentimento de medo, de insegurança, de vergonha, na relação aos profissionais da saúde pode resultar em estado coercitivo para a manifestação da vontade do adolescente, fazendo com que aceite, sem questionar, as propostas dos profissionais.

 

O adolescente deve ser respeitado quando não seguir os padrões de escolha da maioria das pessoas ou de sua própria faixa etária, pois não significa que seja uma pessoa incompetente para decidir. Todavia, como pessoa competente, deve ser capaz de fornecer razões para a opção feita.

 

Deve ser ressaltado ainda que o consentimento, quando preliminarmente recolhido a um ato, o foi dentro de determinada situação. Sendo assim, quando ocorrerem alterações significativas no panorama do estado de saúde inicial ou no motivo pelo qual o consentimento foi dado, este deverá ser livremente renovado. O consentimento também não pressupõe imutabilidade e permanência, podendo ser revogado a qualquer instante, por decisão voluntária, livre e esclarecida, sem que ao jovem sejam imputadas sanções de qualquer espécie.

 

A capacidade para decidir

 

Certo que a avaliação da capacidade decisória de uma pessoa não se constitui em tarefa fácil e simples para os profissionais de saúde; aliás, não somente no caso de adolescentes e jovens, mas também quando os envolvidos são adultos. O que ocorre freqüentemente é que, no caso dos “maiores”, a discussão sobre a capacidade decisória da pessoa somente vem à baila quando o paciente discorda ou recusa o proposto pelos profissionais.

 

A capacidade para a tomada de decisão do adolescente deve ser feita caso-a-caso, avaliando sua habilidade de se comunicar, de compreender informações recebidas e de deliberar sobre as alternativas dadas, conforme seus valores.

 

Mesmo entre os defensores da ampliação da autonomia do adolescente nas decisões sobre assistência à saúde, entende-se que, se a avaliação da capacidade for incerta, o profissional deve agir no interesse do adolescente, baseado nos princípios da beneficência e da não maleficência. E, que, quanto mais sérias as conseqüências das decisões, mais rigorosos devem ser os parâmetros utilizados para avaliação da capacidade decisória (Lantos e Miles, 1989).

 

 

A informação esclarecedora

 

O consentimento da pessoa autônoma deve ser esclarecido, isto é, fundamentado em informações adequadas para sua tomada de decisão. Para tanto, não é necessário que as informações sejam apresentadas em linguajar técnico-científico. Basta que elas sejam simples, aproximativas e compreensíveis, ou seja, fornecidas dentro de padrões acessíveis à compreensão intelectual e cultural do adolescente ou do jovem. Pois não basta que uma pessoa seja informada, ela deve compreender a informação, para que possa tomar decisões. Decisões baseadas em informações falsas ou incompletas ou em inadequada compreensão não podem ser consideradas como verdadeiramente autônomas.

 

O profissional da saúde deve esclarecer e incentivar que o adolescente e o jovem o questionem, perguntem sobre os objetivos diagnósticos preventivos ou terapêuticos, sobre as medidas propostas, a natureza dos procedimentos, e sobre a existência de alternativas ao proposto, quando houver. Também deve esclarecer sobre as possibilidades de êxito, os benefícios a serem obtidos, assim como os riscos e inconvenientes, físicos, psíquicos e sociais, passíveis de ocorrer. Deve esclarecer, ainda, sobre as probabilidades de alteração das condições de dor, sofrimento e das condições patológicas.

 

Quanto aos riscos de ocorrência de danos ou prejuízos, devem ser compreendidas a natureza, magnitude, probabilidade e iminência de sua materialização. Consideramos que a informação a ser fornecida deve conter os riscos normalmente previsíveis em função da experiência habitual e dos dados estatísticos, não sendo preciso que sejam informados riscos excepcionais ou raros.

 

Na prática cotidiana dos profissionais da saúde são encontrados três padrões de informação. O primeiro é o denominado padrão da prática profissional, que requer do profissional a revelação das informações que um colega consciencioso e razoável dê em similares circunstâncias. Nessa padronização, a revelação é determinada pelas regras habituais e práticas tradicionais da categoria profissional. É o profissional da saúde que estabelece o balanço entre as vantagens e os inconvenientes da informação, os tópicos a serem discutidos, assim como a magnitude de informação a ser revelada em cada tópico (Beauchamp e McCullough, 1988).

 

Os autores entendem que este modelo de informação pode não resultar na manifestação da vontade autônoma da pessoa, pois os parâmetros qualitativos e quantitativos de informação são estabelecidos pelos profissionais, não se adaptando aos reais interesses de cada pessoa.

 

O segundo é o padrão da pessoa razoável, que se fundamenta na informação que uma hipotética pessoa, que representasse a média dos adolescentes ou jovens de uma determinada população, necessitaria saber sobre suas condições de saúde. A esse modelo pode-se contrapor que se baseia numa abstração do que seria uma pessoa média, para uma determinada cultura, não observando a pluralidade de visões éticas do mundo atual. No mais, não requer que o profissional se disponha a revelar informações que julgue estar fora dos limites traçados pela figura hipotética da pessoa razoável. Ao utilizar tal modelo, o profissional continua a decidir o que será revelado ou não. Portanto, também consideramos que este padrão pode não garantir que seja respeitado o direito à autônoma tomada de decisão.

 

Por último, encontra-se o padrão orientado ao paciente ou padrão subjetivo. Requer abordagem informativa apropriada a cada indivíduo, de acordo com os valores e às expectativas de cada pessoa. As informações devem ser adaptadas às circunstâncias do caso e às condições sociais, psicológicas e culturais do adolescente ou jovem. Cada pessoa deve ser considerada como única, sendo respeitada em sua individualidade. O profissional deve tentar descobrir, de forma sensível, baseando-se nos conhecimentos científicos e na arte de sua prática, do que realmente cada indivíduo gostaria de ser informado e o quanto gostaria de participar das decisões.

 

Contudo, devemos ressaltar, o jovem tem direito moral de recusar a ser informado. O respeito ao princípio da autonomia orienta que se aceite a vontade da pessoa autônoma que se recusa a receber informações desagradáveis. Nesse caso, o jovem deve designar um familiar ou responsável que seja esclarecido em seu lugar.

 

 

A privacidade e a confidencialidade nos serviços de saúde

 

Do princípio da autonomia deriva o direito dos indivíduos à privacidade. Etimologicamente, a palavra privacidade origina-se do adjetivo “privatividade”, ou seja, o “caráter do que é privativo, próprio de alguém, só dele, não público, reservado, de foro íntimo”. Já o termo privacidade significa “vida privada, vida íntima, intimidade” (Ferreira, 1986). No contexto da saúde, a privacidade está diretamente vinculada a uma relação interpessoal entre o profissional da saúde e o paciente e deve facilitar o estabelecimento do diálogo e da confiança mútua necessária ao desenvolvimento do trabalho (Gauderer, 1991).

 

A garantia da privacidade de uma pessoa requer o respeito à confidencialidade das informações geradas na relação profissional da saúde - paciente. Hipócrates (460-377 a.C.) foi o primeiro a considerar a questão do segredo como fundamento do exercício do profissional da saúde: “E o que quer que eu veja ou ouça no curso de minha profissão, assim como fora de minha profissão, nos meus encontros com homens, se for algo que não deve ser publicado fora, eu jamais divulgarei, considerando essas coisas como segredos sagrados”. Neste sentido, a confidencialidade é a garantia de que as informações dadas em confiança aos profissionais de saúde não deverão ser reveladas sem autorização prévia da pessoa.

 

Além da motivação ética para a manutenção do segredo, há um componente pragmático na garantia da confidencialidade, pois sem sua preservação o profissional não teria garantias da veracidade das informações reveladas pela pessoa com quem se relaciona, o que pode causar graves prejuízos à relação estabelecida entre os dois.

 

A confidencialidade não é prerrogativa dos pacientes adultos, ela se aplica a todas as faixas etárias. Adolescentes e jovens têm o mesmo direito de ver preservadas suas informações pessoais, de acordo com sua capacidade decisória, mesmo em relação a seus pais ou responsáveis. Consideramos o adolescente como um indivíduo capaz de exercitar progressivamente a responsabilidade quanto a sua saúde e exercer sua autonomia.

 

Assim, cabe a ele manter as informações sobre seu estado de saúde sob controle, decidindo quais informações quer guardar para si, e quais deseja comunicar a outras pessoas. Nesse sentido, qualquer pessoa, independente da idade, tendo condições intelectuais e psicológicas para considerar e analisar as conseqüências de uma atitude ou proposta de assistência à sua saúde, deve ter a oportunidade de tomar decisões a ela relacionadas.

 

Sob o manto do segredo residem as informações a que os profissionais têm acesso no exercício de suas atividades, quando transmitidas pelos pacientes ou responsáveis, fornecidas através de anamnese, exame físico, dos cuidados prestados, ou provenientes das observações de outros profissionais, assim como dos resultados laboratoriais ou radiológicos.

 

O sigilo das informações deve ser observado em todas as formas de comunicação orais ou escritas, com outros profissionais, bem como quando reveladas a terceiros, nas divulgações feitas à imprensa, nos boletins médicos, nas discussões de casos e conferências, ou nas apresentações de congressos científicos com exibição de imagens, fotografias, radiografias ou documentos em geral. O prontuário, sendo um arquivo no qual constam todas as informações a respeito do paciente, requer cuidado especial para evitar a revelação desnecessária de informações sigilosas; as informações devem ser conhecidas apenas por aqueles que necessitam tê-las, em função da necessidade do seu trabalho junto ao paciente (Fortes, 1998).

 

A utilização de códigos em atestados de saúde, como o CID (Código Internacional das Doenças), deve seguir as mesmas diretrizes éticas descritas anteriormente, somente podendo ser expressos com o consentimento do paciente, autorizando este a revelação de informações sobre seu diagnóstico ou sobre os procedimentos realizados.

 

Cabe lembrar que o compromisso de lealdade dos profissionais de saúde é para com o adolescente e é este quem deve decidir quais dados podem ser revelados ou não. Uma vez estabelecido compromisso de manter segredo sobre as informações geradas na relação com o jovem, o profissional deve resistir a todas as pressões de familiares ou de outras pessoas — amigos, namorados(as), superiores hierárquicos, imprensa — para manter a confidencialidade das informações.

 

 

Possibilidades de rompimento do segredo

 

O direito do adolescente e do jovem à privacidade e à confidencialidade não é considerado como um direito absoluto, mas sim uma obrigação prima facie, quando um dever maior se sobrepõe a um outro, constituindo-se em um novo dever.

 

Aceita-se uma distinção entre quebra de privacidade e quebra de confidencialidade. A “violação” da privacidade consiste no acesso desnecessário a informações ou uso de informações sem a devida autorização do paciente. Já a quebra de confidencialidade é a ação de revelar ou deixar de revelar informações fornecidas em confiança. A violação do segredo pode ocorrer na relação do profissional da saúde com terceiros, como a família, empregadores, seguro-saúde, autoridade policial (Francisconi e Goldim, 1998).

 

Há algumas situações específicas nas quais é possível a quebra do segredo profissional, como o consentimento da pessoa, dever legal ou existência de uma “justa causa”.

 

O segredo pode ser rompido quando a falta da revelação da informação possa prejudicar a coletividade, por exemplo, no caso de propagação de determinadas moléstias que as autoridades consideram como de notificação compulsória. No Brasil, o Código Penal, em seu art. 269, obriga os profissionais da saúde à revelação de moléstias compulsórias, sob pena de cometimento de delito penal. Os administradores e demais profissionais de estabelecimentos de saúde devem atender às diversas normas sanitárias de alcance nacional, estadual (como os Códigos Sanitários) e municipais, comunicando as autoridades competentes. Esta medida se baseia numa lógica utilitarista, na qual o princípio de preservação do segredo individual é subjugado em benefício de um maior número de pessoas. O indivíduo parece não ter benefício pessoal, mas a coletividade, potencialmente, sim.

 

É também obrigação legal dos profissionais da saúde, estabelecida no Estatuto da Criança e do Adolescente, comunicar aos Conselhos Tutelares da localidade, os casos confirmados ou suspeitos de abuso ou “maus tratos” ( Lei Federal n.8.069, arts 13 e 245).

Outra exceção à preservação das informações é denominada, legal e eticamente, de “justa causa”. São situações em que, existindo colisão de interesses e de direitos, um deles, como o direito à privacidade e à confidencialidade, deve ser sacrificado em benefício de outro direito, como a vida ou a saúde de pessoas identificáveis. Portanto, é justificável a quebra do segredo profissional quando a não revelação da informação pode pôr em risco a vida de outra(s) pessoa(s) identificável (eis).

 

Desafios para a equipe multiprofissional e os sistemas informatizados

 

A questão do sigilo permeia todo contato do profissional da saúde com o paciente, pois é a base na qual se estabelece uma relação de confiança entre ambos. Porém, no contexto histórico atual, no qual o tratamento ocorre em hospitais e clínicas, grande número de pessoas tem acesso às informações confidenciais, como médicos de diferentes especialidades, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, psicólogos, bem como funcionários administrativos (secretárias de unidade, funcionários do setor de arquivo de prontuários, de setores de internação, da área de faturamento e de contas). Há pesquisas constatando que um número excessivamente grande de profissionais entra em contato com informações confidenciais de pacientes internados, com o objetivo de adequarem suas atividades às necessidades do doente. O fato de que diversas pessoas necessitem conhecer todos ou partes dos dados médicos ou pessoais do paciente não exime a todos de protegê-los (Siegler, 1982; Llano, 1991).

 

O trabalho em equipe multiprofissional é necessário e a troca de informações é fundamental para o desenvolvimento de um trabalho de qualidade na assistência ao indivíduo em sua totalidade. Porém, as informações devem ser limitadas àquelas que cada profissional precisa para realizar suas atividades em benefício do paciente. Alguns autores propõem que tal política se baseie nas seguintes questões: “Quem necessita saber, profissionalmente, o quê, de quem?” (Francisconi e Goldim, 1998).

 

As recentes propostas de utilização de bancos de dados e registros informatizados muito contribuíram para troca de informações e agilização dos serviços. No entanto, trazem um considerável potencial de “violação” da privacidade e confidencialidade dos dados, caso não haja preocupação por parte dos administradores desses sistemas de informações. Esse potencial risco trazido pela evolução dos sistemas eletrônicos de informação exige cuidados por parte dos legisladores e administradores de serviços de saúde brasileiros, a exemplo do que vem ocorrendo em outros países, que regulamentaram a preservação dos direitos dos pacientes relativos à informática, aos fichários, a fim de controlar a aplicação de computadores e o tratamento informatizado dos dados pessoais (Gostin e col., 1996).

 

São diversos os desafios propostos relativos a tal questão. A transmissão de dados de pacientes utilizando internet, telefone, fax, pode trazer novas situações de quebra de privacidade ou de confidencialidade.

 

Outra importante e atual questão, em relação aos desafios impostos à preservação da privacidade e da confidencialidade das informações, se encontra no âmbito da genética. O princípio da privacidade determina que os resultados dos testes genéticos de um indivíduo não poderão ser comunicados a nenhuma outra pessoa sem o seu consentimento expresso, exceto talvez a familiares com elevado risco genético. O DNA de cada pessoa representa um tipo especial de propriedade por conter uma informação diferente de todos os tipos de registros de informação pessoal. Ele não muda, está presente durante toda a vida da pessoa e representa sua programação biológica no passado, no presente e no futuro (Pena, 1998).

 

A postura deontológica frente à manutenção do segredo do adolescente

 

Algumas categorias profissionais no âmbito da saúde, em virtude das normas inscritas em seus Códigos de Ética Profissional, podem ocultar dos pais ou responsáveis legais, informações a respeito de pacientes menores de idade, se julgarem que estes tenham competência para tomada de decisão.

 

O Código de Ética Médica, no art. 103 afirma: “É vedado ao médico revelar segredo profissional referente a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou responsáveis legais, desde que o menor tenha capacidade de avaliar seu problema e de conduzir-se por seus próprios meios para solucioná-lo, salvo quando a não revelação possa acarretar danos ao paciente”.

 

O Código dos psicólogos, no art. 26 afirma:

 

“O sigilo profissional protegerá o menor impúbere ou interdito, devendo ser comunicado aos responsáveis o estritamente essencial para promover medidas em seu benefício”.

 

O Código de Ética de Fonoaudiologia, no artigo 31 estabelece:

 

“O profissional não revelará, como testemunho, fatos de que tenha conhecimento no exercício da profissão, mas intimado a depor, é obrigado a comparecer perante a autoridade para declarar-lhe que está preso à guarda do sigilo profissional”.

 

Essas normas assumem o princípio da “maioridade sanitária”, a qual se fundamenta no princípio da autonomia, entendendo que, se existe capacidade do adolescente para tomar decisões, elas devem ser acatadas, independente da vontade de pais e responsáveis, garantindo a manutenção da confidencialidade de suas informações. Cabe aos profissionais da saúde, estar atentos às condições intelectuais e à maturidade emocional do adolescente para apreciar a natureza e as conseqüências de um ato ou proposta de assistência a sua saúde.

 

Em situações consideradas de risco, como risco à vida ou à saúde de terceiros, e frente à realização de procedimentos de maior complexidade, como biópsias e intervenções cirúrgicas, torna-se necessária a participação e o consentimento dos pais ou responsáveis. Em todas as situações em que se caracterizar a necessidade da quebra do sigilo, o adolescente deve ser informado, procurando-se esclarecer e justificar os motivos para tal procedimento, evitando a perda da relação de confiança do jovem com o profissional da saúde e/ou com a instituição.

 

Considerações finais

 

Há um temor de que a absolutização da autonomia individual resulte em incentivo ao individualismo, que seja insensível a outros seres humanos, dificultando a existência de solidariedade entre as pessoas. Porém, autonomia não significa individualismo, é um princípio “prima facie” e não deve ser convertida em direito absoluto; seus limites devem ser dados pelo respeito à dignidade e à liberdade dos outros e da coletividade. Decisão ou ação de pessoa, mesmo que autônoma, que possa causar dano a outra(s) pessoa(s) ou à saúde pública, poderá não ser validada eticamente (Munoz e Fortes,1998).

 

Aliás, conforme afirmou Singer (1994:18),

 

“para serem eticamente defensáveis, é preciso demonstrar que os atos com base no interesse pessoal são compatíveis com princípios éticos de bases mais amplas, pois a noção de ética traz consigo a idéia de alguma coisa maior que o individual”.

 

Se a autonomia não é um princípio absoluto, isto não é motivo para continuar agindo de modo a conservar a tradicional postura paternalista, que usurpa o direito moral da pessoa autônoma de decidir. Paternalismo pode ser definido como a interferência com a liberdade pessoal de ação, justificada por razões referidas exclusivamente ao bem estar, alegria, necessidades, interesses ou valores da pessoa sendo coagida. (Jonsen, Siegler, Winsdale, 1986:48).

 

O desafio para os profissionais de saúde que trabalham com adolescentes aponta no sentido de equacionar o direito do adolescente de receber assistência com o estímulo e a compreensão da responsabilidade crescente com sua própria saúde. O fato de um adolescente ou jovem procurar um serviço de saúde em busca de atendimento pode ser uma oportunidade ímpar de envolvimento e relacionamento. Se as normas estabelecidas pela instituição são rígidas, dificultam ou impedem o acesso dessas pessoas, pode-se perder a ocasião de proporcionar orientação e ajuda em relação a questões relativas a sua saúde. Os profissionais da saúde, no contato com o adolescente, devem estar atentos a sua demanda, considerando-o como um ser único, respeitando sua individualidade, mantendo uma postura de acolhimento, evitando posturas estereotipadas ou preconceituosas.

 

Cabe, portanto, aos serviços e aos profissionais de saúde no trato com os adolescentes e jovens, exercer o papel de seus defensores, pois o respeito à sua autonomia é base do processo pedagógico para o desenvolvimento da capacidade de decisão autônoma.

 

 


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Notas:

 

[1] Paulo Antônio de Carvalho Fortes, Médico, Professor Doutor - Faculdade de Saúde Pública USP.

 

[2] Daniele Pompei Sacardo,  Psicóloga, Mestranda - Faculdade de Saúde Pública USP.

 

[3]  Texto extraído em: http://www.adolec.br/bvs/adolec/P/cadernos/capítulo/cap15/cap15.htm