O MINISTÉRIO PÚBLICO NO ESTATUTO DA CRIANÇA
E DO ADOLESCENTE
Sumário:
1. Introdução. 2. A Lei
Orgânica local do Ministério Público. 3. As competências do Ministério Público.
4. A remissão. 5. Promoção e acompanhamento dos procedimentos infracionais. 6.
Ações de alimentos e outros procedimentos. 7. Hipoteca legal e prestação de
contas. 8. Inquérito civil e ação civil pública: a) generalidades; b) a
defesa de interesses difusos e coletivos na área de proteção à infância e à
juventude; c) hipóteses de ações
civis públicas; d) o inquérito civil.
9. Procedimentos administrativos. 10. Notificações e requisições. 11.
Sindicâncias e requisição de inquérito policial. 12. Zelo pelos direitos e
garantias das crianças e dos adolescentes. 13. Mandado de segurança, de
injunção e habeas-corpus. 14.
Representação para aplicação de penalidades. 15. Realização de inspeções. 16.
Requisição de força policial e da colaboração de outros serviços. 17.
Legitimação concorrente. 18. Outras funções compatíveis. 19. Livre acesso a
locais. 20. Acesso a informações e a documentos sigilosos. 21. Instrumentos de
atuação do ombudsman.
É muito estreita
a ligação do Ministério Público com as normas de proteção à criança e ao
adolescente, pois que está ele naturalmente voltado à defesa de interesses
sociais ou individuais indisponíveis.[1]
Analisando os
principais direitos e interesses ligados à proteção da infância e da juventude,
como foram referidos pelo art. 227, caput,
da Constituição da República, vemos que a indisponibilidade é sua nota
predominante. Diz a Constituição ser “dever da família, da sociedade e do
Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Desta
forma, não se pode excluir a iniciativa ou a intervenção ministerial em
qualquer feito judicial em que se discutam interesses sociais ou interesses
individuais indisponíveis ligados à proteção da criança e do adolescente; o
mesmo se diga quando se trate de interesses individuais homogêneos, coletivos
ou difusos ligados à infância e à juventude.
As funções
institucionais do Ministério Público, a que se refere o art. 200 do Estatuto da
Criança e do Adolescente, compreendem não só aquelas especificamente
relacionadas em seu art. 201, bem como qualquer outra função que a Lei n.
8.069, de 13 de julho de 1990, tenha, expressa ou implicitamente, cometido ao
Ministério Público.
Diversamente
do que talvez pudesse parecer à primeira vista, nem todas as funções de
Ministério Público previstas no ECA caberão ipso factu aos Promotores de Justiça da
Infância e da Juventude. Com efeito, o ECA contém
diversas normas de atuação ministerial que seguramente acabarão sendo objeto de
aplicação por outros órgãos da instituição, que atuem em outras áreas. É o que
pode ocorrer, por exemplo, com as atribuições penais (art. 228-244) ou mesmo
quando da aplicação das normas atinentes à proteção da criança ou do
adolescente portador de deficiência (art. 208, II). Assim, as funções de
Ministério Público, previstas nessa lei, “serão exercidas nos termos da
respectiva Lei Orgânica” (art. 200). Esta lei é que discriminará a distribuição
de atribuições dos membros do Ministério Público, não o ECA.
Essa disciplina legal permite,
induvidosamente, que diversas funções legais cometidas ao Ministério Público pelo ECA possam ou, conforme disponha a lei local de
organização do Ministério Público, até mesmo devam ser exercidas por outros
órgãos da instituição, de acordo com o princípio da especialidade.
2. A Lei
Orgânica local do Ministério Público
Cabe à Lei
Orgânica de cada Ministério Público disciplinar o exercício das funções a ele
cometidas pelo ECA.
Assim, as
funções atribuídas ao Ministério Público da União, por força do
ECA, serão exercidas pelo Ministério Público Federal ou pelo Ministério
Público do Distrito Federal ou Territórios, em conformidade com o disposto na
Lei Complementar n. 75/93, que organiza o os diversos ramos do Ministério
Público da União (art. 128, I, e § 5º, caput,
1ª parte, da CF).
Quanto ao
Ministério Público dos Estados, além das respectivas Lei Complementares de
Organização (art. 128, II, e § 5º, caput,
2ª parte, da CF), a Constituição previu ainda o advento de uma lei federal
destinada a estabelecer as normas gerais para a organização do Ministério
Público dos Estados (art. 61, § 1º, II, d, da CF). Segundo a própria
Constituição, essa lei também deveria ser aplicável ao Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios. Entretanto, por notável falta de coerência do
sistema, a Lei n. 8.625/93 — que é a lei destinada a criar essas normas gerais
– exclui expressamente de seu alcance o Ministério Público do Distrito Federal
e Territórios… (crítica a isso já a fizemos em nosso Regime jurídico do Ministério Público, 5ª ed., ed. Saraiva, 2001).
O campo
reservado para ditas leis complementares inclui normas que estabeleçam a
organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público.
Além de
conferir à lei federal a explicitação de normas gerais de organização do
Ministério Público dos Estados, do Distrito Federal e Territórios (art. 21,
XIII, 22, XVII, 48, IX, 61, § 1º, II, d,
68, § 1º), o texto constitucional ainda previu deva a lei complementar
respectiva estabelecer-lhe o estatuto, e, o que é mais importante, até mesmo
fixar-lhe novas atribuições. Conquanto caiba à própria União legislar sobre
processo (CF, art. 22, I, ressalvada a exceção de seu parágrafo único, bem como
a matéria procedimental de competência concorrente dos Estados, cf. art. 24, X
e XI), o permissivo constitucional que faculta à legislação complementar local
estipular normas de atribuição do Ministério Público, acaba por admitir,
portanto, que a legislação local disponha sobre novas áreas para sua atuação e
intervenção processual.
Cumpre
deixar claro, posto óbvio, que não é apenas o Promotor de Justiça da Infância e
da Juventude o único órgão do Ministério Público que deve zelar pelos direitos
e interesses ligados à proteção dos menores. A proteção a menores pode dar-se
na área criminal, de família, sucessória, difusa etc. — assim, várias
Promotorias de Justiça podem envolver-se na defesa de crianças e adolescentes. Toda
a instituição, na forma e nos limites da lei local de organização do Ministério
Público, está investida na proteção da infância e da juventude.
3. As
competências do Ministério Público
Ao
referir-se às diversas funções que competem
ao Ministério Público, vemos que a expressão competir foi utilizada no art. 201, caput, do ECA, com sentido de competência
administrativa, ou seja, um conjunto de atribuições cometidas a um órgão.
Sabemos que as atribuições do Ministério Público, na área de proteção à infância e à juventude, não se exaurem no art. 201 do ECA: incluem também atribuições implícita ou explicitamente a ele conferidas nos demais dispositivos do Estatuto, como ainda vão além, ou seja, compreendem atribuições conferidas à instituição, nessa área, pelas mais diversas leis, entre as quais não está excluída a Lei Orgânica local de cada Ministério Público.
4. A
remissão
Como anotou
Jurandir Norberto Marçura (Remissão é
instrumento valioso, O Estado de S.
Paulo, 24.4.91, p. 14), a remissão veio expressamente prevista nos art. 126
a 128 e 201, I, do ECA, em atendimento à recomendação
da Resolução n. 40/33, de 19 de novembro de 1985, da Organização das Nações
Unidas.
No ECA, a remissão foi concebida como forma de exclusão do processo, seja como perdão, seja para
aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em
regime de semiliberdade e a internação.
Quando o
órgão do Ministério Público concede a remissão, deixará de propor judicialmente
a representação, mesmo em face de ato infracional
praticado por pessoa menor de idade.
Nenhuma
inconstitucionalidade decorre desse dispositivo.
De um lado,
não se viola o princípio da obrigatoriedade, pois a própria lei dispensou o
ajuizamento da representação nesse caso (art. 126 ECA). De outro, semelhante
solução já ocorre no processo penal, quando se confere ao Ministério Público a
última palavra sobre a não-propositura da acusação penal.
Pode surgir
quem diga que, com dispositivos da índole do art. 126 do ECA
ou do art. 28 do Código de Processo Penal, estar-se-ia permitindo ao Ministério
Público recusar-se a fazer a imputação ou a formular a representação
condicionadora da apuração de ato infracional
atribuído a adolescente, e com isto, estar-se-ia permitindo que se subtraísse
do Poder Judiciário o conhecimento da matéria.
Questões
como essa, cientificamente superadas, já foram enfrentadas quando do exame da
constitucionalidade do art. 28 do Código de Processo Penal, pela doutrina e
pela jurisprudência, mas mantêm interesse por permitir que se discuta o
embasamento doutrinário das funções do Ministério Público.
Inexiste
inconstitucionalidade nessa solução. O Ministério Público, como órgão autônomo
do Estado, detém parcela da sua soberania. Quando, expressamente autorizado
pela lei, resolve não acusar ou não efetuar uma representação, é o próprio
Estado soberano a decidir-se por não acusar ou a decidir-se por não efetuar a
representação. O Estado soberano é o titular do poder-dever de acusar ou de
acionar o Estado-juiz para obter uma prestação jurisdicional positiva ou também
negativa sobre uma imputação ou sobre uma representação versando ato infracional cometido por adolescente. Se o
Estado, pelo seu órgão competente, autorizado pela lei, resolve
fundamentadamente deixar de acusar ou deixar de formular uma representação infracional — decisão esta que se submete
naturalmente a um elaborado sistema de freios e contrapesos — daí não se gera lesão alguma de direito, a merecer
apreciação do Poder Judiciário. Sob esse mesmo aspecto, impende notar, ainda,
que a remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou a comprovação da
responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes (art. 127 do ECA).
Ademais,
esse sistema de controles sobre a concessão da remissão é tanto interno como
externo: interno, porque sua concessão pelo órgão do Ministério Público será
objeto de fiscalização dos órgãos de correição e disciplina da própria
instituição; externo, porque a remissão concedida pelo Ministério Público
deverá ser encaminhada ao crivo judicial, quando poderá ser homologada, ou não
(art. 181 do ECA).
Por último,
a remissão não é irrevogável, podendo ser a medida nela aplicada revista a
qualquer tempo, mediante pedido expresso do adolescente ou de seu representante
legal, ou do próprio Ministério Público (art. 128 do ECA).
Por fim, o
maior mérito do instituto consiste na sua utilidade prática, uma vez que grande
parte dos casos, de menor gravidade, pode e deve receber
tratamento adequado, com o atendimento e a orientação, feitos de forma usual e
profícua, em milhares de comarcas do País, diariamente, pelos Promotores de
Justiça.
5.
Promoção e acompanhamento dos procedimentos infracionais
Adequadamente
o Estatuto exige, para a apuração do ato infracional
atribuído a adolescente, à guisa do que agora também ocorre no processo penal,
o princípio da iniciativa de parte, para possibilitar um juiz efetivamente
imparcial, porque desvinculado do dever de acusar (art. 171 e s., e art. 201,
II, do ECA).
Caberá ao
órgão do Ministério Público a tarefa de representar à autoridade judiciária
para a aplicação de medida sócio-educativa (art. 180, III).
Não se diga
que o Ministério Público, no procedimento infracional,
seria custos legis, e não parte. Se a lei agora exige sua iniciativa,
não é porque o Ministério Público deve estar comprometido com a busca da
verdade e com os interesses do bem comum, que não assumirá a posição processual
de parte, com os ônus e também os deveres daí decorrentes.
Assim,
excetuada a hipótese da remissão, tem o dever de propor a representação pela
prática do ato infracional, bem como o de
acompanhar os respectivos procedimentos.
À guisa do
que ocorre no processo penal, não está o órgão ministerial obrigado a propugnar
pela imposição de sanção ao adolescente, em face de quem formulou a
representação pela suposta prática de ato infracional.
Se, ao fim do procedimento, entender evidenciada a inocência do adolescente, o
membro do Ministério Público, mediante livre, mas motivada apreciação, não só
poderá como deverá propugnar pelo seu reconhecimento, devendo mesmo recorrer
por ele, se isto for necessário.
6. Ações
de alimentos e outros procedimentos
Em todos os
procedimentos da competência da Justiça da Infância e da Juventude, se o
Ministério Público não os propuser —
e, portanto, desde então já obrigado a acompanhá-los (v.g. art. 201, II, do ECA) — neles deverá intervir.
Se o
Ministério Público promover qualquer desses procedimentos, agirá como órgão do
Estado, no zelo dos interesses globais da coletividade, aqui
identificados com a defesa das crianças e dos adolescentes, merecedores de um
tipo todo especial de atenção e proteção.
Apesar de
sua posição como parte (como sujeito ativo da relação processual), nem por isso
deixa o Ministério Público de zelar pela ordem jurídica, pela correta aplicação
da lei, pela defesa dos interesses indisponíveis que ali estão em disputa.
É esse o
escopo do inc. III do art. 201 do ECA, quando garante
a presença do Ministério Público em todo e qualquer procedimento da competência
da Justiça da Infância e da Juventude, quer porque já o tenha proposto, quer
porque, não o tendo ajuizado, nele sempre deve intervir.
Pode o
Ministério Público e até mesmo deve, conforme o caso, requerer, aditar, propor
pedido conexo, conjunto, em separado, intervir, assumir, impugnar, concordar ou
recorrer, tudo para o mais amplo exercício de seu múnus público.
Por último,
ao fim da instrução, em qualquer procedimento, nunca é demais lembrar que o
princípio da indisponibilidade dos interesses em jogo não lhe vai impor
propugne o Ministério Público, sempre e sempre, pelo acolhimento da ação, do
pedido ou da representação, ainda que ele os tenha proposto: se se convencer de que não há justa causa para
tanto, não deve propugnar pelo acolhimento da ação, ainda que por ele mesmo
ajuizada. Vincula-se não ao pedido e sim à defesa dos valores ligados à
infância e à juventude.
A propósito
da disciplina das ações e procedimentos referidos no inc. III do art. 201, v. arts. 148/9,
155, 164 e 169 do ECA, e art. 1.194 do CPC.
7.
Hipoteca legal e prestação de contas
Nos termos
do Código Civil de 2002, a lei confere hipoteca, entre outras hipóteses, aos
filhos, sobre os imóveis do pai ou da mãe que passar a outras núpcias, antes de
fazer o inventário do casal anterior (art. 1.489, II). Tanto nesse caso, como
em qualquer outro em que haja interesse de incapazes, o registro e a
especialização das hipotecas legais deverá ser feito a requerimento do
Ministério Público, se isso lhe for requerido pelos interessados (art. 1.497, §
1º); por sua vez, a promoção da ação de prestação de contas, em face de
tutores, curadores e administradores de bens de incapazes é possível de ser
ajuizada pelo Ministério Público (Código Civil de 2002, art. 1.637 e 1.755;
Código de Processo Civil, art. 914, I).
Também
inventariantes e depositários podem receber bens de incapazes, podendo em face
deles ser proposta a ação de prestação de contas.
O próprio
órgão do Ministério Público pode ser obrigado a prestar contas: há casos em que
pode ele próprio ter recebido bens de incapaz (art. 1189 e 914, II, do CPC).
Os pais são
os administradores legais dos bens
dos filhos incapazes; assim, podem administrar,
mas não podem dispor. Podem alugar,
reparar, usar; não podem vender, hipotecar, doar ou transigir (art. 1.689, II,
e 1.691 do Código Civil de 2002). Os tutores e curadores, quando investidos na
administração de bens de seus pupilos ou curatelados, da mesma foram também não
têm poderes de disposição (art. 1.740, III, e 1.741, do Código Civil de 2002).
Para tanto, quando haja necessidade ou manifesta utilidade na disposição do
patrimônio, a prévia autorização judicial é indispensável (art. 1.750 do Código
Civil de 2002).
8.
Inquérito civil e ação civil pública
8.1
Generalidades
O inquérito
civil foi inovação da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, que disciplinou o
ajuizamento da ação civil pública pelo Ministério Público. Vale anotar que,
tanto o inquérito civil, como a ação civil pública têm
viabilizado inúmeras iniciativas dessa instituição na área da defesa dos
chamados interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, defesa esta
agora consagrada na própria Constituição de 1988 (CF, art. 129, III).[2]
Na sua
criação, com “ação civil pública”,
por certo se queria referir à ação de objeto não-penal, proposta pelo
Ministério Público. Tratava-se de enfoque nitidamente subjetivo, baseado na titularidade ativa de qualquer ação civil,
sem objeto mais específico, desde que proposta pelo Ministério Público.
Tanto a Lei
n. 7.347/85, como as Leis posteriores, e a própria Constituição, ao
disciplinarem a “ação civil pública”, não a restringiram à iniciativa do
Ministério Público.
Ação civil pública passou a significar não só
a ação ajuizada pelo Ministério Público, como a ação proposta por outros legitimados ativos — pessoas jurídicas de direito
público interno, associações e outras entidades — desde que visasse à tutela de
interesses difusos ou coletivos (agora um enfoque subjetivo-objetivo, baseado na titularidade ativa e no objeto
específico da prestação jurisdicional).
O conceito
de ação civil pública alcança hoje, portanto, mais que as ações de iniciativa
ministerial. Neste breve estudo, porém, daremos atenção especial a estas
últimas, porque, ordinariamente, é o Ministério Público quem toma a iniciativa
de sua propositura.[3] Em se
tratando das ações de que cuida a Lei n. 8.069/90, em regra seu ajuizamento
cabe aos órgãos do Ministério Público investidos nas funções de Promotoria da
Infância e da Juventude (cf. art. 146 e 148, IV, do Estatuto).
Embora os
livros mais tradicionais sobre Ministério Público enumerem um pequeno rol de
ações civis públicas promovidas pelo Ministério Público, na verdade um levantamento mais completo a respeito excede a centena de
hipóteses, graças à sua grande variedade (A
defesa dos interesses difusos em juízo, cit., Cap. 3).
As
primeiras das ações civis públicas de iniciativa ministerial já vêm mencionadas
na própria Constituição (representação interventiva; ação declaratória de inconstitucionalidade;
ação civil pública etc.). As demais decorrem do ordenamento jurídico (Código
Civil, Código de Processo Civil, Código de Processo Penal, Lei da Ação Civil
Pública, Código de Defesa do Consumidor etc.).
Especificamente
com relação ao Estatuto (art. 201, V), as ações civis públicas de iniciativa do
Ministério Público são aquelas para a defesa de interesses individuais
(indisponíveis), difusos ou coletivos, relacionados com a proteção à infância e
à adolescência (art. 208 a 224).
É inevitável
que surja a questão da eventual vinculação do órgão do Ministério Público, ao
oficiar nas ações civis públicas: está ou não o órgão do Ministério Público
vinculado à defesa de pessoas ou interesses, quando proponha ou quando
intervenha numa ação civil pública?
A propósito
da questão de ser parte ou de ser fiscal da lei, adverte, com razão, Cândido Dinamarco (Fundamentos
do processo civil moderno, n. 187, ed. Rev. dos Tribunais): ser parte não
significa não ser fiscal da lei e vice-versa. Ser parte quer significar ser
titular de ônus e faculdades do processo; nesse sentido, o Ministério Público,
ainda que não tenha proposto a ação, parte sempre é. Está sempre em busca da
defesa de um interesse; este interesse, sim, é que nem sempre está ligado a uma
pessoa ou a um grupo de pessoas, pois pode ser um interesse impessoal (ligado
ao bem geral da coletividade).
Os
interesses podem estar ligados mais diretamente às próprias pessoas ou, antes,
à objetiva proteção de alguns bens da vida. É claro que a atuação do Ministério
Público sempre é finalística, pois sempre está ligada à defesa de um bem
jurídico. Se esse bem for ligado a uma pessoa (como na defesa de crianças ou
adolescentes, na defesa de pessoas portadoras de deficiência, de acidentados do
trabalho, de comunidades indígenas), teremos aí verdadeira assistência; se o
bem não for ligado a uma pessoa (como na intervenção nas ações diretas de
inconstitucionalidade, p. ex.), a vinculação será com a defesa da ordem
jurídica abstratamente considerada.
Quando a
lei confere legitimidade de agir ao Ministério Público, presume-lhe o interesse
de agir: no caso, o interesse está na própria norma que chama o Ministério
Público ao processo (Francesco Carnelutti, Mettere il Pubblico Ministero ao suo posto, Rivista di Diritto Processuale, Pádua, CEDAM,
1953, p. 258; Salvatore Satta, Direito Processual Civil, v. I, n. 45).
A defesa
dos interesses difusos e coletivos, em geral, por parte do Ministério Público,
é feita especialmente a partir da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85),
que é de aplicação subsidiária para outras normas de proteção a interesses
difusos e coletivos (Leis ns. 7.853/89, 7.913/89, 8.069/90, 8.078/90). Tendo o
art. 110 do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) superado o veto
originário que tinha sido imposto ao inc. IV do art. 1º da Lei n. 7.347/85,
alcança-se agora a integral defesa do meio ambiente, do consumidor, do
patrimônio cultural, bem como de qualquer
outro interesse coletivo ou difuso.
Admite-se, pois, a proteção da
criança e do adolescente, seja como destinatários de um meio ambiente sadio e
equilibrado, seja ainda, agora como obreiros, enquanto destinatários
de adequadas condições ambientais do trabalho, seja, enfim, como
consumidores efetivos ou potenciais.
Tomemos
alguns exemplos. Se, numa comunidade, apenas um adolescente não foi atendido
num hospital ou não obteve vaga num estabelecimento de ensino, podemos falar em
seu interesse individual, posto
indisponível. Já o interesse pode ser individual
homogêneo, quando de vários menores tratados inadequadamente com uma vacina
com prazo vencido de validade, ou pode ser coletivo
(em sentido estrito) quando de uma ação trabalhista coletiva contra o mesmo
patrão, exigindo a observância coletiva de um direito de todos. Nestes dois
últimos casos, em sentido lato, trata-se de interesses coletivos. Mas o
interesse só será verdadeiramente difuso
se impossível identificar as pessoas ligadas pelo mesmo laço fático
ou jurídico, decorrente da relação de consumo (como as crianças
destinatárias de propaganda enganosa ou inadequada, veiculada pela televisão,
cf. art. 220, § 3º, e 221, da CF).
A defesa de
interesses de um grupo determinado ou determinável de pessoas pode convir à
coletividade como um todo, como quando a questão diga respeito à saúde ou à
segurança das pessoas, ou quando haja extraordinária dispersão de interessados,
a tornar necessária ou pelo menos conveniente sua substituição processual pelo
órgão do Ministério Público, ou quando convenha à coletividade o zelo pelo funcionamento correto, como um todo, de um
sistema econômico, social ou jurídico (nesse sentido, a Súmula n. 7, do
Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo). Tratando-se,
porém, de interesses indisponíveis de crianças ou adolescentes, de interesses
coletivos ou difusos — sua defesa interessará sempre à coletividade como um todo.
Diz o
Estatuto caber a iniciativa do Ministério Público para ação civil pública, na
área da infância e da juventude, ainda que para defesa de interesses individuais (art. 201, V, e Livro II, Título VI,
Capítulo VII). Em nosso entendimento, temos aí que considerar a defesa
individual da criança e do adolescente, por meio de ação civil pública, apenas
enquanto se trate de direitos indisponíveis, cuja defesa convenha à coletividade
como um todo, única forma de conciliar a exigência do Estatuto com a destinação
constitucional do Ministério Público (art. 127 caput da CF). Assim, as providências do Ministério Público são
exigíveis, até mesmo com o ingresso de ação civil pública, para assegurar vaga
em escola, tanto para uma única criança, como para dezenas, centenas ou
milhares delas; tanto para se dar escolarização ou profissionalização a um,
como a diversos adolescentes privados de liberdade.
Ações
cíveis para cobranças de créditos que favoreçam incapazes, devem, normalmente,
ser propostas pelos seus representantes legais. Havendo falha ou omissão
destes, o Ministério Público poderá e deverá tomar qualquer providência
judicial que lhe pareça reclamada pela segurança dos haveres do menor (art.
1.637, do Código Civil de 2002), inclusive promovendo, se for o caso, a
responsabilização de quem de direito pela omissão prejudicial ao incapaz.
8.2 A defesa de interesses difusos e coletivos na área de
proteção à infância e à juventude
Como vimos,
o Ministério Público está naturalmente legitimado à defesa dos direitos e
interesses relacionados com a infância e a juventude. A análise do ECA, como um todo, reforça o entendimento desta conclusão,
seja quando cuida dos seus direitos fundamentais (art. 7º e s.: direito à vida
e à saúde; à liberdade, ao respeito e à dignidade; à convivência familiar e
comunitária; à educação, ao esporte e ao lazer; à profissionalização e à
proteção no trabalho), seja quando cuida dos seus direitos individuais (art.
106 e s.).
8.3
Hipóteses de ações civis públicas
A atuação
do Ministério Público, na área de proteção da criança e da juventude, pode
dar-se pela propositura de inúmeras ações civis públicas.
Inicialmente,
não se pode afastar a possibilidade de ajuizamento de representações
interventivas ou de ações diretas de inconstitucionalidade de norma federal,
estadual ou municipal (até mesmo por omissão) ou de ajuizamento de mandado de
injunção, quando a falta de norma regulamentar torne inviável o exercício de
direitos e liberdades constitucionais.
Também deve
ser lembrado o importante papel fiscal exercido pelo Ministério Público quanto
aos gastos públicos, às campanhas, aos subsídios e investimentos estatais
ligados à área da infância e da juventude.
Igualmente,
devem ser consideradas as ações civis públicas destinadas a proteger a criança
e o adolescente enquanto destinatários de propaganda ou na qualidade de
consumidores (v. art. 77-82 do
Estatuto, combinados com os dispositivos da Lei da Ação Civil Pública e do
Código de Defesa do Consumidor).
Pelo
Estatuto, regem-se pelas disposições da Lei n. 8.069/90 as ações de
responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao
adolescente, referentes ao não-oferecimento ou oferta irregular: do ensino
obrigatório; de atendimento educacional especializado aos portadores de
deficiência; de atendimento em creche e pré-escola; de ensino noturno; de
programas suplementares de oferta de material didático-escolar, transporte e
assistência à saúde; de serviço de assistência social; de acesso às ações e
serviços de saúde; de escolarização e profissionalização dos adolescentes
privados de liberdade (cf. art. 208).
Como
exemplos concretos, podem ser mencionadas as seguintes ações civis públicas: a) contra a Fazenda Pública e os
empregadores em geral, para assegurar condições de aleitamento materno (art.
9º); b) contra a Fazenda Pública para
assegurar condições de saúde e de educação (art. 11 e § 2º, e 54, § 1º); c) contra hospitais, para que cumpram
disposições do Estatuto (art. 10); d)
contra empresas de comunicação (art. 76 e 147, § 3º; art. 220, § 3º, e 221 da
CF); e) contra editoras (art. 78-79 e
257); f) contra entidades de atendimento
(art. 97, parágrafo único; 148, V; 191); g)
contra os próprios pais ou responsáveis (art. 129, 155, 156); h) de execução das multas (art. 214, §
1º).
Reiterem-se,
enfim, duas questões fundamentais, assim interpretadas num contexto que
concorre para melhor proteção da criança e do adolescente. De um lado, a
enumeração de ações civis públicas de iniciativa ministerial é meramente
exemplificativa, haja vista a norma residual ou de extensão contida não só no
art. 201, VI, do ECA, como no art. 129, III, da CF, e
no art. 1º, IV, da Lei n. 7.347/85, com a redação que lhe deu a Lei n.
8.078/90. De outro, nessa área, não é nem poderia ser exclusiva a legitimidade
ativa do Ministério Público (art. 201, § 1º, e 210 do Estatuto; art. 129, § 1º,
da CF): em matéria cível, sua iniciativa não exclui a de terceiros, na forma da
lei.
8.4 O
inquérito civil
Criação da
Lei n. 7.347/85, o inquérito civil, depois de acolhido pela própria
Constituição da República (art. 129, III), foi também previsto no ECA (art. 201, V, e 223).
Não é o
inquérito civil como procedimento contraditório; ressalte-se nele, antes, sua
informalidade, pois destina-se tão-somente a carrear
elementos de convicção para que o órgão do Ministério Público, sob sua própria
presidência, colha elementos de convicção que lhe permitam identificar ou não a
hipótese propiciadora do ajuizamento da ação civil pública.
Embora
extremamente útil, não é o inquérito civil pressuposto necessário à propositura
da ação. Em havendo elementos necessários, a ação principal ou a cautelar podem
ser propostas mesmo sem ele.
Não se
aplicará sigilo sobre o inquérito civil, a não ser que necessário para as
investigações, ou se nele estiverem contidas informações sobre as quais, por
força de lei, já recaia o caráter de sigilo, o que obrigará a que o Ministério
Público preserve a informação, nos termos do art. 201, § 4º.
Ao
contrário do que ocorre atualmente com o inquérito policial, no inquérito
civil, o Ministério Público não requer ao Judiciário seu arquivamento, e sim o promove
diretamente, embora sob o controle do Conselho Superior da instituição (art.
223, § 4º).
Não é o
órgão do Ministério Público obrigado
a instaurar um inquérito civil ou a propor uma ação civil pública, a não ser
que identifique a hipótese propiciadora
de sua intervenção. Se tem liberdade para apreciar se
ocorre ou não a hipótese propiciadora de sua intervenção, agir lhe passa a ser
um dever, quando identifique a existência da hipótese em que a lei lhe imponha
a atuação.
9.
Procedimentos administrativos
Não em
decorrência apenas do Estatuto (art. 201, VI), mas da própria Constituição da
República, tem o Ministério Público o importante instrumento da instauração de
procedimentos administrativos. Entre estes, sem dúvida, assume especial relevo
o próprio inquérito civil, de que vimos cuidando; mas, na forma da lei local de
organização de cada Ministério Público, outros procedimentos também podem ser
instaurados, como a sindicância (art. 201, VII) ou mesmo procedimentos
informais, preliminares, para ensejar ou não a própria instauração de um
regular inquérito civil.
10.
Notificações e requisições
As
notificações e requisições não são tecnicamente “funções”, mas antes instrumentos para consecução das finalidades ministeriais, vindo previstas em diversos dispositivos legais
(CF, 129, VI e VIII; CPP, art. 5º, 47; LC 40/81, art. 15, I e IV; art. 6º, da
LACP — Lei n. 7.347/85; ECA — art. 201, VI, b,
c e § 4º). Em inúmeras dessas
hipóteses, destinatário da requisição pode ser até mesmo o particular (art.
201, VI, c, do ECA).
Em havendo sigilo legal sobre a matéria, incumbe ao órgão do Ministério Público
resguardar o sigilo, o que não lhe obsta o acesso à informação sigilosa (art.
201, § 4º do ECA).
Em matéria
de interesses coletivos ou difusos, o não-atendimento à requisição pode
configurar o crime art. 10 da Lei n. 7.347/85, ou, conforme o caso, o delito do
art. 236 do ECA. Não se tipificando essas infrações, e
se a recusa de atendimento à requisição tiver partido de funcionário público,
poderemos ter configurado um crime de prevaricação. Já o delito de
desobediência é residual, e será praticado por particular.
As
notificações ou requisições podem ter como objeto qualquer apuração relacionada
com uma das áreas de atuação funcional do Ministério Público (na esfera
criminal ou cível); para fins do delito do art. 236 do ECA,
o objeto da ação ministerial terá de ser, exclusivamente, alguma atuação no
zelo de interesses individuais, coletivos ou difusos relacionados com a
proteção da infância ou da juventude.
As notificações
e requisições não se limitam à matéria cível, podendo visar à apuração de fatos
delituosos (CF, art. 129, VI e VIII). Sendo o Ministério Público o titular da
ação penal pública, bem sendo encarregado de promover a representação em face
de infração praticada por adolescente — seria contra-senso negar-lhe a
investigação direta dessas infrações, quando isto se faça necessário, até mesmo
nos casos em que a polícia tenha dificuldades, falta de adequação ou até mesmo
desinteresse na apuração dos fatos.
Agindo
dentro de suas atribuições, terá o órgão do Ministério Público o instrumento da
requisição, podendo dirigir-se a particulares, instituições privadas ou a
autoridades federais, estaduais ou municipais. Poderá requisitar informações e
documentos, ou, quando seja uma autoridade o destinatário da requisição, até
mesmo a realização de perícias e exames, junto à administração direta ou
indireta.
As
autoridades civis ou militares devem prestar condições materiais para assegurar
a eficácia de suas requisições (art. 201, VI, a, do ECA), sob pena de responsabilização
administrativa ou penal.
É certo,
porém, que no exercício de todas essas atividades, não raro pode tornar-se o
Ministério Público autoridade co-atora, respondendo pela legalidade da
requisição ou pela manutenção do sigilo legal que incida sobre a informação ou
sobre o documento obtido.
Outrossim,
deverá responder pela legalidade da condução coercitiva, que eventualmente
determine (art. 201, VI, a, do ECA), o que poderá ensejar a impetração de habeas-corpus contra sua determinação,
ação esta de competência originária do Tribunal de Justiça (v.g., art. 74, IV, da Constituição
Paulista, norma esta de competência consentânea com o art. 125, § 1º, da CF).
11.
Sindicâncias e requisição de inquérito policial
O órgão do
Ministério Público pode instaurar sindicâncias para apurar diretamente ilícitos
ou infrações às normas de proteção à infância e à juventude; poderá, ainda,
requisitar diligências investigatórias da autoridade policial, bem como a instauração
de inquérito policial, para apurar a materialidade ou a autoria de infração
penal relacionada com os interesses e direitos de que cuida o
ECA (cf. art. 201, VII).
Ao
requisitar o inquérito policial, o Ministério Público emite determinação de cumprimento
obrigatório, por parte da autoridade policial. A não-instauração do inquérito
pela autoridade policial só será possível, sem a prática de crime de
prevaricação, caso a autoridade judicial competente casse essa ordem, por meio
da concessão de habeas-corpus. Por
isso, deve o próprio órgão do Ministério Público responder pela legalidade da
requisição que formulou (cabe-lhe assumir a condição de autoridade co-atora, em
eventual habeas-corpus visando ao
trancamento do inquérito requisitado).
12. Zelo
pelos direitos e garantias das crianças e dos adolescentes
Diz o inc.
VIII do art. 201 do Estatuto que é dever do Ministério Público “zelar pelo
efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e
adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis”.
Trata-se de
desdobramento do art. 129, II, da Constituição da República. Com efeito, o
papel do Ministério Público, nesses casos, é de verdadeiro ombudsman. No exercício dessa função, pode e deve o órgão
ministerial receber petições, reclamações ou representações das pessoas e
entidades interessadas; investigar as denúncias recebidas até mesmo pela
imprensa; visitar estabelecimentos de toda a natureza, onde estejam ou possam
estar crianças e adolescentes; atentar para as propagandas de produtos nocivos
à sua saúde ou à sua segurança; exigir das autoridades públicas não só uma
adequada política educacional e de saúde, como investimentos adequados,
fiscalizando sua aplicação; fiscalizar os gastos públicos com campanhas,
construção de escolas e estabelecimentos próprios; denunciar na imprensa as
irregularidades noticiadas; promover em juízo a responsabilidade dos
particulares, das autoridades ou das pessoas jurídicas que, por ação ou
omissão, causem dano a qualquer interesse defendido no Estatuto ou em qualquer
norma de proteção à infância e à juventude.
Dispõe o §
5º do art. 201 que, para o exercício de tais atribuições, poderá o Ministério
Público efetuar recomendações visando
à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública afetos à criança e ao
adolescente, fixando prazo razoável para sua perfeita adequação. Contudo, mais
do que efetuar meras e inócuas recomendações, deverá promover em juízo as ações
civis públicas, para assegurar o cumprimento dos dispositivos legais acaso
violados, exigindo o cumprimento de obrigações de fazer ou não fazer, ou
cobrando as responsabilidades civis que eventualmente decorram dos atos lesivos
denunciados, ou, enfim, promovendo as ações penais públicas pela prática de
crimes contra as crianças e adolescentes.
O
atendimento ao público, pelo órgão do Ministério Público, que por si só já é de importância fundamental para o
correto exercício das funções cometidas à instituição, nessa tarefa de ombudsman é ainda mais importante,
especialmente quando se trata do acesso da própria criança ou do próprio
adolescente ao Ministério Público (art. 141 do ECA).
É especialmente por meio dessa função que os membros do Ministério
Público podem tornar-se realmente úteis à comunidade, permitindo
assegurar-se a validade da presença social da instituição. Pelo atendimento ao
público, o Promotor de Justiça toma conhecimento de muitos crimes que não são
levados à Polícia, ou que, se levados, não são adequadamente apurados; por ele,
tomam-se muitas iniciativas necessárias, na área cível ou penal, ou até mesmo
relevantes providências administrativas e extrajudiciais; por ele, toma-se,
enfim, o próprio pulso da comunidade.
Temos aqui
mais que um ombudsman, pois não se
limita o Promotor a apenas ouvir os
interessados; tem ele em mãos instrumentos poderosos como a requisição do
inquérito policial; a promoção da ação penal pública; a instauração do
inquérito civil; a promoção da ação civil pública; a expedição de requisições e
notificações; a condução coercitiva.
13.
Mandado de segurança, de injunção e habeas-corpus
Sob a
disciplina do Estatuto (art. 201, IX) e das normas em geral que regem a
concessão do mandado de segurança (CF, art. 5º, LXIX, e legislação ordinária
respectiva), a impetração desta medida por parte do Ministério Público
justifica-se basicamente por um dos seguintes fundamentos: a) defesa de um direito individual indisponível de criança ou
adolescente; b) defesa de direitos
individuais homogêneos ligados a crianças ou a adolescentes; c) defesa de direitos ou interesses
coletivos assegurados à criança ou ao adolescente; d) defesa de uma prerrogativa do próprio Ministério Público.
Os casos
mais comuns de impetração de mandado de segurança por membros do Ministério
Público têm sido para buscar efeito suspensivo em recursos ou para atacar atos
de autoridade que cerceiam direitos e prerrogativas da função.
Mesmo
quando impetre mandado de segurança para defesa de interesses sociais
indisponíveis, afetos à criança ou ao adolescente, não estará
o Ministério Público ajuizando mandado de
segurança coletivo. Este só é ajuizado por partido político com
representação no Congresso Nacional, ou por organização sindical, entidade de
classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um
ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados (art. 5º, inc. LXX,
da CF).
A doutrina
e a jurisprudência, cristalizadas desde antes da Constituição de 1988, não vêm
admitindo a impetração da ordem contra ato normativo em tese (súm. 266 do STF);
tem-se admitido, porém, a impetração de mandado de segurança para atacar
efeitos concretos da lei. Com a atual ordem constitucional, que definiu os
direitos e deveres individuais e coletivos, e especialmente à vista do ECA, que instituiu o mandado de segurança para a defesa dos interesses sociais e
individuais indisponíveis afetos à criança e ao adolescente, parece-nos
admissível a impetração de mandado de segurança para defesa de interesses
sociais afetos à criança contra atos normativos que configurem lesão concreta a
interesses individuais ou coletivos de crianças e adolescentes. Como exemplo,
teríamos as portarias expedidas por autoridades administrativas ou judiciais
(art. 149 do ECA), que disciplinem matérias relativas
à proteção da infância e da juventude, ocasião em que podem violar direitos
coletivos líquidos e certos, não amparados por habeas-corpus nem habeas-data.
É possível admitir sua impugnação por meio do mandado de segurança, desde que o
ato ilegal provenha de autoridade pública ou de agente de pessoa jurídica no
exercício de atribuições do Poder Público.
Quanto ao
mandado de injunção (art. 201, IX, do ECA, e art. 5º,
LXXI, da CF), sua utilidade ficou inteiramente desmerecida, à vista do excessivamente
tímido posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que se contentou em afirmar
que, ao dar pela procedência da injunção, apenas cientificaria o Poder
Legislativo de sua omissão, para que adote as providências necessárias (STF-MI
107-3, questão de ordem — DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Moreira Alves, DJU 21-09-90, pub. Revista Jurídica, 160/98). Ora, a causa de pedir da injunção era
justamente a omissão já pré-existente...
No habeas-corpus (art. 201, IX, do ECA, e art. 5º, LXVI, da CF), pode o Ministério Público
assumir a posição de impetrante; não
por meio de seu representante, agindo como qualquer do povo, mas sim enquanto
órgão diretamente legitimado a tanto. Ainda quando a questão era controvertida,
já de muito impetrávamos o remédio heróico, como Promotor de Justiça em São
Paulo, mesmo junto aos tribunais (é de nossa autoria a impetração que motivou a
acirrada polêmica no julgamento contido em RT 544/352 e o comentário de
doutrina em RT 552/284, ou a que motivou o acórdão publicado em RT 508/319).
Entretanto, a impetração de habeas-corpus
junto aos tribunais, por Promotores de Justiça, não significa que possam estes
sempre os acompanhar, tomar ciência do acórdão ou exercer diretamente função
afeta aos Procuradores de Justiça. Para tanto, é mister consultar a respectiva
lei orgânica, para aferir a discriminação de atribuições dos órgãos locais.
No habeas-corpus, pode, ainda o órgão do Ministério Público ser autoridade co-atora. Deverá ter não só a
oportunidade, como o dever de responder pela legalidade da requisição do
inquérito policial ou da requisição da condução coercitiva que tenha
determinado.
Por último,
se não for impetrante nem impetrado, será o órgão do Ministério Público interveniente nos demais pedidos de habeas-corpus.
Embora o
inc. IX do art. 201 do ECA mencione que o Ministério
Público poderá ajuizar os já discutidos remédios constitucionais em qualquer juízo, instância ou tribunal,
é necessário anotar que cada órgão do Ministério Público atuará necessariamente
limitado por suas atribuições, na forma da respectiva lei de organização da
instituição.
14.
Representação para aplicação de penalidades
Além da
representação ministerial destinada a apurar ato infracional atribuído a adolescente, para a aplicação de medida sócio-educativa
art. 180, III, e 148, I, do ECA), ainda cuida o
Estatuto das representações de iniciativa do Ministério Público (art. 201, X),
que visem a aplicação de penalidade por infrações cometidas contra as normas de
proteção à infância e da juventude (art. 245 e s.).
Trata-se de
procedimentos contraditórios, que admitem a execução forçada, e que devem
correr perante a própria Justiça da Infância e da Juventude (art. 148, V e VI, do ECA).
A
responsabilização administrativa, em decorrência de infração a normas de
proteção à infância e à juventude, não exclui o dever do Ministério Público de
promover a responsabilidade civil e penal do infrator, quando cabível; essas
ações serão ajuizadas pelos órgãos ministeriais com atribuições adequadas para
isto, na forma da lei local do Ministério Público, perante juízes cíveis ou
criminais competentes para seu processo e julgamento.
15.
Realização de inspeções
É típica
atividade do art. 129, II, da CF, a de inspecionar entidades públicas e
particulares de atendimento a crianças e adolescentes, bem como inspecionar os
programas de que trata o Estatuto, com a possibilidade de adotar de pronto as
medidas administrativas ou judiciais necessárias à remoção de irregularidades
porventura verificadas (cf. art. 90-7, e 191 e ss., e art. 201, XI do ECA).
Mais do que
o poderia fazer o ombudsman dos
países escandinavos, em nosso país o órgão do Ministério Público, além de ter
funções extrajudiciais, aqui entre nós deve promover em juízo as medidas para combate às irregularidades ou ilegalidades
que encontrar.
Terá o
órgão do Ministério Público, investido nas funções da Promotoria da Infância e
da Juventude, o poder de ingressar livremente, ou com emprego de força
inclusive policial, em qualquer local onde esteja ou possa estar criança ou
adolescente (v. § 3º do art. 201 do ECA).
Dificuldades
maiores de interpretação devem surgir quanto à possibilidade de serem tomadas
de pronto as medidas
administrativas necessárias. Além de expedir recomendações visando à
melhoria dos serviços, bem como além de fixar prazo razoável para a correção
das irregularidades, não nos parece muito claro como possa ele ir além, no
plano meramente administrativo. Contudo, dependendo do porte das
irregularidades ou ilegalidades, o órgão do Ministério Público poderá tomar
providências de caráter penal ou cível adequadas, não raro necessitando da
propositura de medidas judiciais, inclusive cautelares, para a remoção das
irregularidades.
16.
Requisição de força policial e da colaboração de outros serviços
Para o
desempenho de suas atribuições, pode o Ministério Público requisitar força
policial, seja para fazer efetuar uma condução coercitiva (art. 201, VI, a, do ECA),
seja para ver garantido seu efetivo acesso a lugar onde se encontre criança ou
adolescente (art. 201, § 3º, do ECA), seja, ainda, para promover diretamente
inspeções ou diligências para fins investigatórios ou para meras visitas de
rotina (art. 95, 124, I, 134, 201, VI, b,
XI e XII do ECA).
Poderá
constituir crime, na forma tentada ou consumada, a ação de quem procure impedir
ou embargar a ação do representante do Ministério Público no exercício das
funções previstas no Estatuto (art. 236 do ECA).
Cabe,
ainda, ao órgão do Ministério Público requisitar a colaboração dos serviços
médicos, hospitalares, educacionais e de assistência social, públicos ou
privados, para o desempenho de suas atribuições. Tratando-se de serviços
públicos ou de relevância pública, que devem respeito às prescrições legais,
poderá o Ministério Público determinar diretamente providências para que as
autoridades responsáveis cumpram ou façam cumprir, exemplificativamente, as
prescrições dos arts. 10, 53-4, 63, 228-9, do ECA. À luz desses dispositivos, pode, assim, o membro do
Ministério Público determinar a internação e o tratamento hospitalar de uma
criança, ou determinar sua matrícula em estabelecimento de ensino.
Agem os
membros do Ministério Público na qualidade de órgãos do Estado, investidos no
múnus específico, e desde que o façam dentro das respectivas esferas de atribuições,
os custos de ditas requisições são encargo do Estado.
Evidentemente,
respondem os órgãos do Ministério Público, quando procedam de forma irregular
(com dolo ou fraude, ou, ainda, se não tiverem atribuições legais para a
atuação empreendida).
17.
Legitimação concorrente
É da
essência da legitimação do Ministério Público, no campo da ação civil pública,
que sua iniciativa não seja exclusiva, mas concorrente. Assim, enquanto detém o
monopólio da ação penal pública (à exceção da ação penal privada subsidiária,
em caso de inércia), sua legitimação para as ações civis públicas não exclui a
de terceiros, como, aliás, o assegura a Constituição da República (art. 129, §
1º).
O
dispositivo do § 1º do art. 201 do ECA, que amplia o
leque de legitimados ativos para as ações civis públicas, explica-se porque,
enquanto na ação penal o titular do ius
puniendi é apenas o Estado soberano, na ação civil pública defendem-se
interesses individuais indisponíveis, ou até mesmo interesses transindividuais
(interesses individuais homogêneos, coletivos ou difusos), de que são titulares
pessoas ou grupos sociais. As ações civis públicas podem, pois, ser propostas
pelo Ministério Público, pelas pessoas jurídicas de direito público interno e
pelas associações civis dotadas de representatividade adequada (art. 210 do ECA). Assim, mesmo que o Ministério Público, por decisão
ratificada pelo seu Conselho Superior, resolva não propor uma ação civil
pública (art. 223, e seus parágrafos, do ECA),
qualquer outro co-legitimado ativo poderá ajuizar essa mesma ação que o
Ministério Público resolveu não propor (art. 210 do Estatuto). E, a par do rol
do art. 210 do Estatuto, agora sob o aspecto individual, nenhum dos diretamente
lesados estará impedido de discutir, em sede própria, os danos de que acaso se
julgue sofredor.
As ações
cíveis individuais ou coletivas, fundadas no ECA,
podem ser propostas pelos respectivos legitimados ativos, que agirão, conforme
o caso, sob as regras da legitimação ordinária ou extraordinária.
Embora esteja
o Ministério Público aparelhado para propor tais ações — o que não raro faz com
que outros co-legitimados a ele se dirijam — não está ele obrigado a propor
sempre e sempre a ação civil pública. Só o fará quando identifique, sob seu
livre e motivado entendimento, a ocorrência de hipótese apta a ensejar a sua
atuação.
18.
Outras funções compatíveis
Tendo o
Ministério Público inúmeras atribuições residuais,
seja na área de ombudsman (art. 129,
II, da CF), seja na área da promoção da ação civil pública (art. 129, III, da
CF, e Lei n. 7.347/85), resta claro que as atribuições constantes do art. 201
do Estatuto não constituem numerus
clausus (art. 201, § 2º, do ECA). O único limite para o exercício das
atribuições ministeriais, naturalmente, consiste em que devem elas ser compatíveis com sua destinação institucional — assim
prevista no art. 127 caput da
Constituição da República.
Desta
forma, nem mesmo uma lei ordinária poderá cometer ao Ministério Público uma atribuição
incompatível a destinação que a ele votou a Lei Maior (como a representação da
Fazenda, a consultoria de entidades públicas, ou a defesa de interesses
meramente privados ou disponíveis, cf. art. 129, IX, da CF).
19.
Livre acesso a locais
É natural
que, para o correto exercício de tantas atribuições de fiscalização, que
incluem visitas a hospitais, creches, estabelecimentos de ensino ou de
assistência social, estabelecimentos de internação, locais de recreação etc.,
poderá e deverá o órgão do Ministério Público ter livre acesso a todo local
onde se encontre ou possa encontrar-se criança ou adolescente (art. 201, § 3º, do ECA). Para tanto, para assegurar a eficácia de sua
atuação, poderá fazer-se acompanhar de agentes policiais, até mesmo para que
possa tomar de pronto as medidas reclamadas para a remoção de irregularidades
porventura verificadas.
Sem dúvida,
devem ser observados os limites constitucionais para o ingresso em determinados
locais, como em casa ou estabelecimentos a esta equiparados
(art. 5º, XI, da CF).
20.
Acesso a informações e a documentos sigilosos
O § 4º do
art. 201 do Estatuto deixa claro que o Ministério Público terá acesso a
quaisquer tipos de documentos ou informações, ainda que sobre eles paire sigilo
legal; apenas, nesse caso, será o órgão do Ministério Público responsável pelo
eventual uso indevido do documento ou da informação obtida.
O sigilo
pode ser considerado sob dois ângulos: como obrigação ou como direito de
mantê-lo. Ora há um interesse público
em mantê-lo (questões de segurança da sociedade ou do Estado), ora um interesse privado em sua conservação (o
direito à privacidade do indivíduo). Contudo, casos há em que o próprio
interesse público impõe sua revelação, e às vezes existe o próprio interesse do
seu beneficiário em que seja ele revelado. Assim, excetuado os casos em que a
própria Constituição imponha que a quebra do sigilo dependa de decisão judicial
(como ocorre no sigilo das comunicações telefônicas, art. 5º, XII), no mais,
cabe à legislação infraconstitucional disciplinar o alcance do sigilo. Assim,
tanto sobre as informações objetivamente consideradas sigilosas, como sobre
aquelas cobertas por sigilo subjetivamente considerado, terá acesso o órgão do
Ministério, quando do exercício de suas funções na defesa de interesses ligados
à infância e à adolescência. Assim, o sigilo médico, o sigilo
bancário, do sigilo do cadastro eleitoral — não lhe podem ser opostos
como óbice à obtenção de informações por ele requisitadas, dentro da sua esfera
de atribuições.
Mas, nesse
caso, se fizer uso indevido da requisição ou da informação sigilosa obtida,
responderá o órgão do Ministério Público, seja disciplinar, seja civil, seja
penalmente.
21.
Instrumentos de atuação do ombudsman
Na sua
atuação no zelo pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de
relevância pública aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e
adolescentes (art. 129, II, da CF; art. 201, VIII, do ECA),
poderá o órgão do Ministério Público (art. 201, § 5º, do ECA): a) reduzir a termo as declarações de
quem o procure com denúncias que mereçam apuração; b) instaurar o procedimento adequado para apuração das denúncias,
seja o inquérito civil, seja uma sindicância, seja um procedimento inominado; c) presidir o procedimento que instaurar,
nele efetuando requisições, diligências, perícias, exames, visitas ou
vistorias; d) entender-se diretamente
com a pessoa ou autoridade reclamada, dentro, naturalmente, da sua esfera de
atribuições, assim definida na forma da Lei Orgânica de cada Ministério Público
(art. 200 do ECA); e) efetuar
recomendações, visando à melhoria dos serviços examinados, fixando prazo
razoável para sua adequação (findos os quais poderá ajuizar eventual ação civil
pública tendo como objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, cf.
art. 213 do ECA).
Notas:
[1] Para o exame mais completo do Ministério Público enquanto instituição, v. nosso Regime jurídico do Ministério Público, 5ª ed., Saraiva, 2001.
[2] Para o exame do inquérito civil, v . nosso O inquérito civil — investigações do Ministério Público, compromissos de ajustamento e audiências públicas, 2ª ed., Saraiva, 2000.
[3] Para o estudo em profundidade da ação civil pública e da defesa processual dos interesses transindividuais, v. nosso A defesa dos interesses difusos em juízo, 16ª ed., Saraiva, 2003.