SOBRE A CAPACIDADE DE FATO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: SUA
GÊNESE E DESENVOLVIMENTO NA FAMÍLIA
Brunello Stancioli
Chega a ser um truísmo
afirmar que as relações familiares mudaram radicalmente nos últimos trinta
anos. Na rica e sutil teia de articulações intersubjetivas, traçadas no âmago
da família, mais interessa agora o indivíduo: o núcleo familiar deixou de ser
um fim em si mesmo, com forte vezo utilitarista, para se constituir em um
espaço privilegiado para auto-realização de seus membros. Nada de novo. Há
quase vinte anos, Villela, com fina argúcia, anunciava a teleologia agora
assumida pelas relações intrafamiliares: a sua condição eudemonista(1).
Também Villela, na mesma ocasião, anunciava a “irrupção de
um novo interlocutor na família: o menor” (2). Quase vinte anos
decorridos da publicação de Liberdade e Família, e mais de nove anos desde 13
de julho de 1990, data da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Parece oportuno avaliar a construção e o status
da capacidade de fato da criança e do adolescente e suas implicações. Em suma,
proceder-se a uma análise, sob o enfoque jurídico, do papel do menor na família
e sociedade hodiernas.
A autonomia da vontade, dos moldes traçados por Kant, aos dias de hoje, vem sendo objeto de
vários estudos. A sua correlação com auto-suficiência parece pertencer a matriz
ideológica superada (3). A
educação assume o papel principal na construção
da autonomia, agora vista como o constante erigir de uma consciência crítica
dialógica (4). Em outras palavras, um dos pressupostos básicos da
convivência de sujeitos autônomos consiste em tomar o “outro” não como objeto,
mas como um sujeito que sempre
tem algo a dizer. Só assim o ser humano pode realizar os antigos ideais de auto-nomos e de proaíresis, dando forma e sentido à sua vida (5).
A educação é fundamental, portanto, para a construção da
autonomia da vontade. Esse processo cognitivo não dá saltos. Pelo contrário, é
um continuum que pode subsistir até
os últimos dias da pessoa natural. Enquanto se aprende, há o incremento da
autonomia.
A capacidade de fato pode ser vista, nesse contexto, como a
autonomia da vontade com “vestes” dogmáticas, do amparo legal. Ela, então,
retira-se do campo meramente ético, vinculando-se ao direito. Não há como
negar, por conseguinte, que é no convívio familiar, nas estruturas dialógicas,
traçadas entre pais, filhos e irmãos, que são alicerçadas as bases da
capacidade de fato da criança e do adolescente.
Mas, sendo a autonomia um processo, como conciliá-la com os artigos 3º, I e 4º, I, do Código Civil em vigor? Com efeito, pelo Código a capacidade surge
com um fiat, em que se pode dormir
incapaz e se acordar capaz. Não haveria incoerência desse modelo com a índole
da autonomia da vontade?
Desde a década de 1970, a doutrina da capacidade de fato do
menor - ao menos no direito alienígena – vem sofrendo grandes modificações.
Chegou-se a apregoar “a remoção do status
de menoridade [...] advogando-se uma mudança radical na presunção de
incapacidade das crianças” (6).
Não se chegando a esse extremo, tem crescido a doutrina que
prega a necessidade de se observarem outros critérios para a capacidade de
fato, além do modelo referente à idade predeterminada:
“A maioria dos doutrinadores
tem rejeitado a noção genérica de capacidade, argüindo, ao contrário, que a
definição de capacidade (i.e., o requisito habilidades) deve variar de acordo
com o contexto. A competência, contextualmente dependente, deve ser determinada
para tarefas específicas.”(7)
Esquematicamente poder-se-ia
expor o seguinte:
Capacidade genérica: “P” é
capaz para qualquer tarefa, se uma
idade é alcançada (v.g., 21 anos).
Capacidade específica: “P” é
capaz para essa tarefa, se a
habilidade para essa tarefa é
alcançada.
Pode-se, a partir dessas idéias, fazer a distinção entre capacidade negocial e capacidade de entendimento (8).
A capacidade negocial (rechtsgeschäftliche
Handlungsfähigkeit) é aquela cujos
critérios são fixados em lei, como pelos artigos 5º, I e 6º, I, do Código Civil
brasileiro. Não há que se perquirir o grau de cognição, ou entendimento, da pessoa natural, que não se enquadre nas idades fixadas
normativamente. Os critérios são objetivos e inflexíveis.
Por oposição, tem-se a capacidade de entendimento (Einsichtsfähigkeit), que denota o
domínio cognitivo e habilidade decisional, ou “poder de avaliar, julgar”. Este
outro critério leva em conta, portanto, o
ethos crítico da pessoa natural, tendo em vista sua maturidade e educação.
Não apresenta critérios objetivos, mas deve ser avaliada de forma situacional.
Em outras palavras, busca-se analisar se o indivíduo tem capacidade para uma
tarefa determinada. A capacidade de entendimento tem, portanto, uma imbricação
muito mais íntima com a autonomia da vontade.
Vários exemplos, do direito alienígena, podem tornar
explícita a aplicação da capacidade de entendimento, para crianças e
adolescentes, em especial no que concerne à recusa ou aceitação de tratamento
médico.
O leading case
Gillick vs. West Nortfolk and Wisbech
Area Health Authority, de 1985, do Reino Unido, demonstra a aplicação da
teoria, denominando a pessoa natural, nas condições apropriadas, de “menor
maduro” (mature minor):
“Lord Donaldson cunhou a expressão Gillick-competent para descrever o menor de 16 anos cujo
consentimento para terapia médica seria legalmente válido”(9).
A mesma axiologia foi adotada pelo Conselho da Europa, na Convenção de Direitos Humanos e Biomedicina,
de Oviedo, Espanha, em 4 de abril de 1997. Seu artigo 5º, 3, in fine, dispõe que “[a] opinião
do menor deve ser tomada em consideração, como um fator determinante, na
proporção de sua idade e grau de maturidade”.
Parece não haver dúvidas, no entanto, que o documento
jurídico mais completo sobre o assunto, tratando exaustivamente da capacidade
de entendimento, é a Convenção de Direitos da Criança, adotada, em 1989, pela
Assembléia Geral das Nações Unidas. O Brasil tornou-se signatário e ratificou a
Convenção já em 1990.
Parece de bom alvitre, portanto, avaliar a capacidade de
entendimento, segundo os moldes da Convenção, cotejando-a com a Lei nº 8069/1990 (Estatuto da Criança e do
Adolescente).
IV – Garantias legais de construção e exercício da
capacidade de entendimento
Historicamente, as duas declarações internacionais,
dedicadas aos direitos da criança (de 1924, promulgada pela Liga das Nações, e
de 1959, promulgada pelas Nações Unidas), adotaram um paradigma bem diverso
deste da Convenção de 1989. Naquelas, as preocupações básicas eram o cuidado e a proteção das crianças. A atual, por outro lado, vai além, buscando
“a noção de direitos da personalidade do menor, fundado na autonomia, [em
consonância com] um conceito que inclui direitos civis similares aos dos
‘adultos’, como liberdades de expressão, religião, associação, assembléia e
direito à privacidade.” (10)
Essa concepção parece extremamente acertada, pois apregoa a
inclusão e, principalmente, a participação ativa do maior número de interlocutores possíveis
na sociedade, o que pode ser tomado com fulcro da democracia contemporânea. Nos
modelos político-democráticos anteriores, tal não ocorria
plenamente. Se o Estado Liberal, na ânsia de resguardar a liberdade do
indivíduo, acabou por penitenciá-lo, pois seu livre agir era tão somente formal, o Estado Social pode vir a
desconstruir a grande conquista da modernidade, que é a descoberta da
individualidade. Com isso, pode diluir a personalidade jurídica da pessoa
natural, inclusive da criança e do adolescente, transformado-os em “clientes”
de direitos:
“O paradigma do direito centrado no Estado Social, gira em torno do
problema da distribuição justa das chances de vida geradas socialmente.
No entanto, ao reduzir a justiça a justiça distributiva, ele não consegue
atingir o sentido dos direitos legítimos que garantem a liberdade [...]” (11).
Assim, buscando-se fazer uma divisão dos direitos da criança
e do adolescente, correlativos à autonomia, pode-se classificá-los em:
a)
a) os
direitos “adutores” da autonomia e, por conseguinte, da capacidade de
entendimento;
b)
b) os
direitos “garantidores” da capacidade de entendimento em si.
O artigo 13, 1, da Convenção de Direitos da Criança, de
1989, é um exemplo. Ao afirmar que a
“criança terá o direito à liberdade de expressão”, parece claro que visa a
garantir a autonomia do menor. O mesmo artigo dispõe, em seguida, que “esse
direito incluirá liberdade de buscar, receber e compartilhar informações e
idéias de todos os tipos, a despeito de fronteiras, incluindo informações sob a forma oral, escrita, impressa, artística ou por qualquer
outro meio de escolha da criança.” Essas disposições visam, pois, à construção do ethos crítico e da capacidade de entendimento. Da mesma índole é o
artigo 17, que trata da garantia de acesso da criança e do adolescente a
informações educativas, veiculadas pelos meios de comunicação em massa.
O artigo 12 da Convenção, por sua vez, é a garantia legal da capacidade de
entendimento:
1.
1.
Os Estados assegurarão à criança, capaz de
formar seu próprio ponto de vista, o direito a expressar sua visão livremente,
em tudo que a concirna, na proporção de sua idade e maturidade.
2.
2.
Para esse propósito, a criança terá
oportunidades particulares de ser ouvida em qualquer procedimento judicial ou
administrativo [...].
Pode-se aplicar o mesmo critério de avaliação para o
Estatuto da Criança e do Adolescente. Em verdade, o artigo 3º, ao proteger o
“desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de
liberdade e segurança”, está cuidando da construção gradativa da capacidade de
entendimento.
Por outro lado, o artigo 16 do Estatuto eleva a capacidade
ao plano do direito positivo. A partir do momento que garante “a liberdade de
opinião e expressão” (artigo 16, II), as manifestações de autonomia da vontade
da criança e do adolescente não pertencem somente à fenomenologia, mas ganham o
status de ato jurídico. O artigo 111,
V, da mesma lei, confirma a capacidade de entendimento do menor.
O preâmbulo da Convenção
de Direitos da Criança dispõe, dentre outras assertivas, que
“[A] família [é] o mais
fundamental segmento da sociedade e o ambiente natural para crescimento e
bem-estar de todos seus membros e, particularmente, das crianças. Deve, assim,
ser provida da necessária proteção e assistência para que [o menor] possa
assumir responsabilidades plenas para com a sociedade”.
A família ¾ e o exercício do poder familiar¾
assume uma função educativa, de extrema relevância jurídica e social. Os
primeiros ensaios de autonomia da vontade e, por conseguinte, da capacidade de
entendimento, são traçadas no núcleo familiar.
Nada mais importante. A pessoa natural deve estar preparada
para um ambiente cada vez mais cosmopolita, pois as fronteiras geográficas se
expandem. Ao mesmo tempo, valores morais, éticos e políticos assumem uma
pluralidade exuberante. Pode-se afirmar, com segurança, que a “individualidade
torna-se, portanto, local e global.” (12)
A inserção em grupos próximos, em especial a família, deve
propiciar, à criança e ao adolescente, condições para serem autônomos e
responsáveis. A capacidade de entendimento é o suporte normativo mais adequado
para a gradual participação do menor em um mundo cujas escolhas aparecem às
miríades. Nesse contexto, os pais devem educar o menor para que ele seja livre
e capaz.
Parece ser essa, em suma, a maior função da família
hodierna: A pedagogia da escolha,
fundada, precipuamente, na liberdade (13).
Notas:
(1) VILLELA. Liberdade..., cit., p. 29.
(2) Cf. VILLELA, João
Baptista. Liberdade e Família. Belo
Horizonte: Faculdade de Direito UFMG, 1980, p. 12.
(3) Cf. CRITTENDEN, Jack. Beyond Individualism. Reconstituting the
Liberal Self.
(4) Cf. KÖGLER, Hans
Hebert. The Power of Dialogue: critical
hermeneutics after Gadamer and Foucault. [Die Macht des Dialogs: Kritische
Hermeneutik nach Gadamer Foucault und Rorty]. Transl. Paul
Hendrickson. Baskerville: MIT Press, 1996, p. 116.
(5) Cf. PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego.
7. ed. [s.l.]: Livraria Apostolado da Imprensa, 1990.
(6) HAFEN, Bruce C. &
HAFEN, Jonathan O. Abandoning Children to
Their Autonomy: The United Nations Convention on the Rights of the Child. Harvard International Law Journal.
(7) WHITE, Becky Cox. Competence to consent.
(8) Tanto quanto se pode
apurar, essa doutrina foi divulgada, entre nós, pelo Prof. Dr. João Baptista
Villela.
(9) MASON, J.K. Consent to
Treatment and Research in the ICU. In: PACE, Nicholas A. & McLEAN, Sheila
A. M. (Eds). Ethics and
the Law in Intensive Care.
(10) HAFEN &
HAFEN. Op. cit., p. 458.
(11) HABERMAS,
Jürgen. Between Facts and Norms. Contributions to a Discourse Theory
of Law and Democracy. [Faktizität
und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts
und des demokratischen Rechtsstaats]. Trans. William
Rehg.
(12) GUSTIN, Miracy Barbosa
de Sousa. Tutela Jurídica às Necessidades
Humanas em Nova Ordem Social: uma Reconceituação da Autonomia como Necessidade
Primordial. Belo Horizonte: Faculdade de Direito/UFMG, 1997. (Tese de
Doutorado em Direito), p. 241.
(13) Cf. VILLELA. Liberdade...,
cit., p. 32.