O CONSELHO TUTELAR E OS PROGRAMAS DE ATENDIMENTO

 

 

Murillo José Digiácomo

Promotor de Justiça com atribuições junto ao Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Estado do Paraná.

 

 

A sistemática estabelecida pela Lei nº 8.069/90, com vista à proteção integral de crianças e adolescentes, pressupõe a criação e manutenção obrigatórias, em nível de município[1], de programas específicos de atendimento a crianças, adolescentes e suas respectivas famílias, como fica claro na leitura conjunta dos arts. 88, inciso III, 90, 101, 112 e 129, todos do citado Diploma Legal.

 

Os referidos programas devem ser elaborados por profissionais, contendo uma proposta de atendimento clara e articulada com outras estruturas existentes (vide enunciado do art. 86 da Lei nº 8.069/90), executados por pessoas habilitadas e capacitadas (sempre sob a supervisão de técnicos da área social) e inscritos no Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente (exigência contida no art. 90, parágrafo único, da Lei nº 8.069/90), de modo que o Órgão possa ter o necessário controle de toda a "rede" de atendimento à criança e ao adolescente que o município dispõe, para evitar, de um lado, a ocorrência de "paralelismos" ou de superposição de ações e, de outro, a falta de atuação em determinada área, que talvez apresente uma demanda de atendimento ainda maior.

 

Sem que tais estruturas de atendimento estejam disponíveis, as autoridades competentes para a aplicação das correspondentes medidas específicas de proteção, sócio-educativas e destinadas aos pais ou responsável (Conselho Tutelar e Juiz da Infância e Juventude[2]), verão sua atuação prejudicada ou mesmo inviabilizada, na medida em que não terão para onde encaminhar os casos de crianças e adolescentes em situação de risco (na forma do previsto no art. 98 da Lei nº 8.069/90), e de crianças acusadas da prática de ato infracional (conforme art. 105 do mesmo Diploma Legal), aí compreendida a intervenção junto a suas respectivas famílias (pois não se concebe a aplicação de medidas a crianças e adolescentes, sem que, também, sejam trabalhados seus pais ou responsável).

 

Como decorrência dessa deficiência estrutural, todas as crianças e adolescentes do município estarão em grave situação de risco, na forma do previsto no art. 98, inciso I, da Lei nº 8.069/90, que, não por acaso, destacou como primeira hipótese de ameaça ou violação de direitos infanto-juvenis, justamente, a ação ou, em especial, a omissão da sociedade ou do Estado (aí entendido o Poder Público, de um modo geral).

 

Uma vez caracterizada a ameaça ou efetiva violação de direitos de crianças e adolescentes, em razão da omissão do Poder Público municipal em criar e manter os programas de atendimento alhures mencionados, tarefa para a qual deve canalizar os recursos orçamentários que se fizerem necessários[3], abre-se a possibilidade da propositura de demanda judicial (vide art. 212 e seguintes da Lei nº 8.069/90) por parte do Ministério Público e demais entes relacionados no art. 210 da Lei nº 8.069/90, no sentido da efetivação desses mesmos direitos, sem embargo da responsabilidade do administrador público faltoso (conforme art. 208 e parágrafo único da Lei nº 8.069/90[4]).

 

A via judicial, no entanto, embora, por vezes, se mostre necessária, deve ser o último caminho a seguir, na medida em que a notória morosidade da Justiça e a falta de sensibilidade e preparo de muitos para o enfrentamento das causas de cunho coletivo, em especial aquelas relacionadas à área da infância e juventude, não nos dão qualquer garantia de que os superiores interesses da sociedade, em especial de sua parcela infanto-juvenil, serão reconhecidos e assegurados com a celeridade e eficácia almejados pelo legislador[5], em detrimento da vontade política (no pior sentido da palavra) e isolada do administrador público "de plantão".

 

Antes que se pense no ajuizamento de qualquer demanda, portanto, deve-se tentar a solução dos problemas enfrentados por outros meios, através do acionamento de mecanismos outros previstos na legislação específica, que, se corretamente manejados, poderão surtir resultados positivos e duradouros.

 

Para fins da presente exposição, merece destaque o papel do Conselho Tutelar nessa abordagem "alternativa" do problema, de modo a contribuir para sua solução pela via extrajudicial.

 

Nesse sentido, devemos considerar que, por ser o Conselho Tutelar definido como um "órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente..." (verbis art. 131 da Lei nº 8.069/90), sua atuação, ao menos sob o ponto de vista legal, em muito extrapola o simples "atendimento" de casos isolados de ameaça ou violação de direitos de crianças e adolescentes, conforme preconiza a leitura fria do art. 136, incisos I e II, da Lei nº 8.069/90, devendo estar caracterizada e compromissada com a defesa intransigente dos direitos de todas as crianças e adolescentes do município, tendo um enfoque eminentemente preventivo.

 

O legislador claramente destinou ao Conselho Tutelar o permanente monitoramento de toda a "rede" de atendimento à criança e ao adolescente alhures mencionada, tendo, para tanto, estabelecido a obrigatoriedade de ser a ele comunicado, pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, tanto o registro das entidades não-governamentais, quanto dos programas de atendimento executados por estas e pelas entidades governamentais (arts. 90, parágrafo único, e 91, ambos da Lei nº 8.069/90), às quais o Órgão tem a incumbência de fiscalizar (conforme art. 95 da Lei nº 8.069/90).

 

Caso, no exercício de suas atribuições, o Conselho Tutelar se veja impossibilitado de aplicar a determinada criança, adolescente e/ou família alguma das medidas específicas previstas nos arts. 101 e 129 da Lei nº 8.069/90, em razão da inexistência de programas de atendimento a elas correspondentes e/ou falta de vagas naqueles disponíveis, restará instalada, em relação não apenas à criança e/ou adolescente atendidos, mas a todos os demais residentes no município, a já mencionada situação de risco na forma do previsto no art. 98, inciso I, da Lei nº 8.069/90, cabendo ao Órgão Tutelar, além da tentativa de solucionar o caso em particular através da requisição de serviços públicos específicos (conforme art. 136, inciso III, letra "a", da Lei nº 8.069/90), a obrigação de:

 

a) Em cumprimento ao disposto no art. 136, inciso IX, da Lei nº 8.069/90, gestionar junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente e órgãos da administração pública locais, no sentido da inclusão, no plano orçamentário plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e orçamento anual do município, da previsão de recursos orçamentários necessários à implementação dos programas que se fizerem necessários ao atendimento da demanda existente (que assim deve ser obviamente fornecida) e fiel cumprimento do comando legal respectivo, programas estes que, como dito acima, deverão ser executados por entidades governamentais ou não-governamentais[6].

 

b) Em razão do disposto no art. 220 da Lei nº 8.069/90, comunicar ao Ministério Público, através de petição endereçada ao Promotor de Justiça da Infância e Juventude, acompanhada de toda a documentação necessária à comprovação do alegado, bem como de informes referentes à demanda de atendimento apurada ou estimada, que o Conselho Tutelar está se vendo impossibilitado de aplicar esta ou aquela medida de proteção às crianças e adolescentes e/ou voltada aos pais ou responsável, em razão de o município não dispor de determinado(s) programa(s) de atendimento, o que logicamente tem causado prejuízo às crianças e adolescentes atendidas e risco às demais que, em necessitando, não terão para onde ser encaminhadas.

 

A respeito do tema, vale destacar que, na forma da Lei, cabe ao Ministério Público "zelar pelo EFETIVO RESPEITO aos direitos e garantias assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis" (art. 201, inciso VIII, da Lei nº 8.069/90 - grifei), sendo tal regra decorrente do disposto no art. 201, incisos V e VI, da Lei nº 8.069/90 além, é claro, do contido nos arts. 127, caput, e 129, ambos da Constituição Federal, que colocam a Instituição na condição de defensor intransigente da ordem jurídica, do regime democrático e de todos os interesses sociais e individuais indisponíveis.

 

As supramencionadas obrigações do Conselho Tutelar são inerentes à missão institucional do Órgão, constituindo-se em verdadeiro "ato de ofício", cuja omissão na prática ou retardamento injustificado, para satisfação de interesse ou sentimento pessoal, caracteriza, em tese, o crime de prevaricação, a que se refere o art. 319 do Código Penal[7].

 

São elas decorrentes da condição de agente político, que detém o Conselho Tutelar[8], devendo ser exercidas com responsabilidade e, acima de tudo, coragem, pois, cedo ou tarde, acabarão por contrariar os interesses dos administradores públicos de ocasião, que despreparados para a função que exercem e descompromissados com o cumprimento de seus deveres legais e constitucionais, decorrentes, acima de tudo, da Doutrina da Proteção Integral da Criança e ao Adolescente, não raro, irão criar embaraços ao pleno exercício das atribuições do órgão e promover represálias a seus integrantes.

 

Caso isso ocorra, deve o Conselho Tutelar buscar, junto aos órgãos competentes, a promoção da devida responsabilidade civil, administrativa e criminal do administrador e/ou agente público respectivo, pela prática, conforme o caso, dos crimes do art. 236 da Lei nº 8.069/90 e do art. 1º do Decreto-Lei nº 201/67 e/ou prática de ato de improbidade administrativa, na forma do previsto no art. 11 da Lei nº 8.429/92 (sem embargo de outras imputações neste ou em outro Diploma Legal, a depender da conduta ilícita praticada).

 

O que não se pode mais admitir é que o Conselho Tutelar se preste ao papel de "bode expiatório" de todos os problemas envolvendo crianças e adolescentes no município, que na falta de uma verdadeira política de atendimento e de programas específicos, para onde possa encaminhar os casos de violação de direitos infanto-juvenis que chegam a seu conhecimento, procura, para tudo, "dar um jeitinho", de acordo com os parcos recursos e serviços disponíveis no município.

 

O compromisso do Conselho Tutelar não é com a solução de casos isolados "de qualquer jeito" ou "do jeito que der", como se diz, mas sim com a criação de uma verdadeira POLÍTICA DE ATENDIMENTO, que contemple estruturas (diga-se serviços e, acima de tudo, programas de atendimento tal qual previstos nos dispositivos estatutários alhures mencionados) articuladas em "rede", que permitam o encaminhamento de crianças e adolescentes que se encontrem em situação de risco, na forma do previsto no art. 98 da Lei nº 8.069/90 e de crianças acusadas da prática de atos infracionais, bem como, de suas respectivas famílias, dando-lhes, assim, a proteção integral que lhes foi, há tanto, prometida pela Constituição Federal.

 

Chega de "jeitinho"!

 

A criança e o adolescente precisam de Políticas Públicas que os contemplem em caráter prioritário, tal qual preconizado pelo art. 4º, parágrafo único, alíneas "c" e "d", da Lei nº 8.069/90 e art. 227, caput, da Constituição Federal.

 

Ao Conselho Tutelar foi reservado um papel primordial na busca do cumprimento desse verdadeiro mandamento legal e constitucional, cabendo-lhe assumir essa tarefa e, assim, qualificar sua atuação junto à comunidade, honrando o mandato popular que lhe foi confiado, na mais pura dicção do art. 131 da Lei nº 8.069/90.

 

 

Notas:

 

 

[1] Pois, afinal, a diretriz primeira da política de atendimento estabelecida pela Lei nº 8.069/90 é a municipalização (que, no entanto, não pode ser considerada sinônimo de "prefeiturização", dada a clara dicção do art. 86 da Lei nº 8.069/90 - que prevê a aticulação entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, cabendo àqueles fornecer a estes a cooperação técnico-financeira que se fizer necessária, que pode ser cobrada judicialmente, se necessário - razão pela qual o art. 210 da Lei nº 8.069/90 relacionou os citados entes federados como legitimados para propositura de ação civil pública para defesa de direitos e interesses coletivos ou difusos, afetos à criança e ao adolescente).

 

[2] Conforme arts. 136, incisos I e II, 148 e 262, todos da Lei nº 8.069/90.

 

[3] Pois afinal, por força do disposto no art. 227, caput, da Constituição Federal, a criança e o adolescente são destinatários da mais absoluta prioridade de tratamento, que o art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 8.069/90 traduz, dentre outros, na “preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas” e, como não poderia deixar de ser, na “destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude” (verbis).

 

[4] Sobre o tema, vide também o disposto no art. 216 da Lei nº 8.069/90.

 

[5] Nesse sentido, e apenas a título de curiosidade, vide art. 213 e parágrafos, da Lei nº 8.069/90, que dão ao Juiz da Infância e Juventude maior liberdade de atuação, justamente para que a prestação jurisdicional seja a mais adequada aos objetivos da demanda.

 

[6] A respeito do tema, vide art. 96 da Lei nº 8.069/90, que prevê, claramente, a possibilidade de destinação de recursos orçamentários a programas mantidos por entidades não-governamentais, com estrita observância, é claro, das regras referentes à aplicação e gestão de recursos públicos, inclusive aquelas decorrentes da Lei Complementar nº 101/00 - a Lei de Responsabilidade Fiscal.

 

[7] Pois é certo que o conselheiro tutelar, ainda que não seja subsidiado pelo município, é considerado "funcionário público" para fins penais, na forma do disposto no art. 327, caput, do Código Penal.

 

[8] Consoante abordado em outros artigos de minha autoria publicados na página do CAOPCA/PR na internet: www.mp.pr.gov.br/institucional/capoio/caopca.