O TRABALHO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO BRASIL DO
SÉCULO XXI
Ricardo
Tadeu Marques da Fonseca*
Procurador do Trabalho da 15ª Região.
Nasce o Direito do Trabalho em
1802, na Inglaterra, por intermédio de uma lei denominada Moral and Health Act, estabelecendo as primeiras regras básicas de
medicina do trabalho e, sobretudo, fixando, pela primeira vez, a idade mínima
para o trabalho em 08 anos, para uma jornada não inferior a 12 horas.
Aqueles parâmetros morais, concernentes ao trabalho infanto-juvenil, podem, hoje, causar estranheza. Revelam, por outro lado, que os níveis de exploração das chamadas “meias forças” - mulheres e crianças - escandalizavam e desestabilizavam a própria paz social, fazendo com que o Estado abandonasse sua posição absenteísta, e passasse a intervir nas relações entre capital e trabalho, o que, a nosso ver, ocorreu de forma definitiva.
As questões inerentes ao trabalho infanto-juvenil tocam no cerne do equilíbrio do próprio mercado internacional, posto que a exploração de crianças desequilibra a competição internacional e afeta o mercado de trabalho nos diversos países em que o fenômeno se verifica, eis que a remuneração dos pequenos trabalhadores é bastante exígua, ao passo que seu trabalho, em regra, preenche em qualidade e quantidade as expectativas do próprio trabalho de adultos, roubando destes salário digno e até mesmo os postos de trabalho.
Tão logo se institui a Organização
Internacional do Trabalho ao final da Primeira Guerra Mundial, estabelecem-se
regras laborais cuja abrangência se pretende universal, justamente para se
padronizar as bases mínimas das relações econômicas internacionais,
preservando-se os mercados de consumo e, acima de tudo, a própria dignidade do
trabalho humano.
Diversas Convenções e
Recomendações Internacionais voltam-se para o tema, abarcando setores da
economia e fixando idades mínimas para o trabalho em cada um deles. Seguiram-se
tais normas nos setores industrial e não-industrial,
marítimo, agrícola e pesqueiro, dentre outros.
Finalmente, a Convenção n.º 138, de 1973, reúne todas as anteriores, fixando a idade de
15 anos como limite mínimo para o trabalho em qualquer setor econômico, visando
garantir escolaridade mínima sem trabalho durante o ensino de primeiro grau.
Excepciona a hipótese de países em desenvolvimento, onde admite o trabalho a
partir dos 14 anos, inclusive a aprendizagem aos 12 anos; estimula-os, porém, a
que estabeleçam políticas progressivas de elevação das idades mínimas. Ademais,
as atividades que afetem a integridade física ou psíquica, a preservação da
moralidade, ou a própria segurança do adolescente devem ser desempenhadas
somente a partir dos 18 anos.
Em 17 de junho de 1999, é
adotada a Convenção n.º 182, que trata das piores formas de trabalho infantil,
determinando, em tais hipóteses, que os países signatários agilizem
providências com o escopo de eliminar prontamente o trabalho de crianças e
adolescentes nas atividades que enumera, por considerá-las intoleráveis.
O artigo 3º da Convenção em
comento denuncia as seguintes atividades:
·
todas as formas de escravidão ou práticas análogas à
escravidão, como venda e tráfico de crianças, sujeição por dívida e servidão,
trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou compulsório
de crianças para serem utilizadas em conflitos armados;
·
utilização, procura e oferta de crianças para fins de
prostituição, de produção de material pornográfico ou espetáculos
pornográficos;
·
utilização, procura e oferta de crianças para
atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas
conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes;
·
trabalhos que, por sua natureza ou pelas
circunstâncias em que são executados, são susceptíveis de
prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança.
Como se vê, desde os primórdios até os dias atuais, o Direito do Trabalho ocupa-se da questão que, com a globalização do processo de produção, retorna ao centro das atenções internacionais pelas mesmas razões que vigoravam no início do século XIX.
Os efeitos do chamado dumping social repercutem em escala.
Segundo dados do IBGE do ano de 2000, ainda existem 7,7 milhões de crianças e
adolescentes, entre 05 e 17 anos, trabalhando no País; metade deles tem menos
de 15 anos e 25 mil, apenas 05 anos de idade.[1]
O último censo demográfico
revela que a população de jovens entre 15 e 24 anos soma 31 milhões de pessoas,
representando 19,8% da população total do Brasil[2];
há cerca de 10,3 milhões de jovens entre 15 e 17 anos; desses, 37,2% trabalham
pelo menos 40 horas semanais, e estima-se que outro tanto atue no mercado
informal, já que necessitam prover a suplementação da renda familiar[3].
O Brasil chegou ao fim do
século XX com 13% de analfabetos e 29% de “analfabetos funcionais”, que não
terminaram o curso primário. Em média, o brasileiro adulto não tem 06 anos de
estudo: o trabalho realizado pelo IBGE, através da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad), de 1995 a 1999, mostra que a média de
escolaridade nacional é de 5,5 anos[4]. Apenas 12 em
cada 100 brasileiros entre 20 e 24 anos cursam uma faculdade, segundo
avaliações do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) [5].
Como se verifica, nossa Nação não confere aos seus filhos mais jovens a devida e merecida atenção. O trabalho tem sido um fator de afastamento da escola e não tem propiciado condições dignas de sobrevivência para grande parte da população brasileira, tendo em vista o fato notório de que somos um dos Países em que ocorre pior distribuição de renda: os 10% mais ricos ganham em média 19 vezes mais que os 40% mais pobres, e ainda há 15 milhões de jovens, adultos e idosos no Brasil que não sabem ler ou escrever[6].
.
Para que se possa superar tais mazelas há que se alimentar a população
vitimada, bem como propiciar-lhe prioritariamente educação, única possibilidade
de ruptura deste padrão socialmente injusto e economicamente temerário, de vez
que a revolução tecnológica exige mão-de-obra altamente qualificada nas
indústrias e nos setores que ora se desenvolvem como os de serviços e de
pesquisas tecnológicas.
Logo, o trabalho infantil, que sempre foi apontado como alternativa à criminalidade e à pobreza, realmente não revelou ser solução. Ao contrário, trata-se de sintoma concernente às iniqüidades sociais e econômicas, o qual certamente as agravará se persistir inalterado o quadro atual.
O Brasil deve tomar medidas emergenciais para o combate à pobreza, para oferecimento de escolas, sob o ponto de vista quantitativo, aprimorando os níveis qualitativos do ensino fundamental, médio e superior. Há que se oferecer escola pública de boa qualidade para todos.
É notória, ademais, a opção
histórica feita pelos Países do Primeiro Mundo. A França, desde os primórdios
da Revolução Libertária do Século XVIII, implantou escola pública e em período
integral, como uma das bases da democracia. Essa política é a que norteia a
ação de qualquer País do Primeiro Mundo, em que crianças e adolescentes
permanecem estudando em período integral, com atividades culturais e esportivas
na escola, evidenciando um fator básico da ação estatal para preservação e
valorização de suas populações.
Os exemplos se multiplicam
acerca de tal opção. Os Países do “Terceiro Mundo” que investirem prioritária e
urgentemente na escolaridade de seu povo migrarão para o campo das nações
desenvolvidas. Aqueles que vacilarem em tal opção, perpetuar-se-ão na
marginalidade do mundo globalizado.
A Constituição Brasileira,
de forma clarividente, acolheu a Emenda Popular subscrita por um milhão e
duzentos mil brasileiros, que se materializou no artigo 227, consagrando os
fundamentos da doutrina da proteção integral de crianças e
adolescentes.
Assim reza o caput do dispositivo em tela: “É dever da família, da sociedade e do Estado
assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão”.
O artigo 208 da Carta Política estabelece que o ensino fundamental é obrigatório e deve ser fornecido gratuitamente para todos, o que deverá ocorrer também progressivamente com os ensinos médio e superior, conforme preceitua, outrossim, a Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação).
Além do mais, os desdobramentos da doutrina da proteção integral se difundiram pela própria estrutura da chamada democracia participativa, que se instrumentaliza por meio dos Conselhos Paritários, aos quais a lei atribui função normativa.
O Estatuto da Criança e do Adolescente criou o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), os Conselhos Estaduais dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONDECAS) e os Conselhos Municipais. Estes últimos são instrumentalizados por meio dos Conselhos Tutelares, que exercem a fiscalização das políticas implantadas pelos primeiros.
Tanto a premência histórica
quanto as determinações constitucionais e legais fizeram com que fossem criados
alguns programas que visam aplacar a fome e garantir a permanência de crianças
e adolescentes na escola.
O Governo Federal lançou,
por meio da Medida Provisória 2.206 de 10 de agosto de 2001, o Programa
Nacional de Renda Mínima vinculado à saúde, denominado Bolsa-Alimentação, que
se volta a gestantes e nutrizes, bem como à crianças
de 06 meses a 06 anos e 11 meses de idade, em risco nutricional, propiciando
uma bolsa de 15 reais mensais por beneficiário, até o limite de 45 reais, para
famílias cuja renda per capita seja
de até meio salário-mínimo. Os recursos emanarão do Ministério da Saúde.
Existem também dois programas federais inspirados na política implantada pelos Governos de Cristóvão Buarque no Distrito Federal e por José Roberto Magalhães Teixeira, em Campinas.
O primeiro deles é o PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil - que se iniciou em maio de 1996 em face das denúncias de trabalho de crianças e adolescentes em carvoarias do Mato Grosso do Sul, na região sisaleira na Bahia e na cana-de-açúcar em Pernambuco. Trabalham integrados os Ministérios do Trabalho e Emprego, da Educação e Desporto, da Integração Nacional, da Saúde e da Justiça, sob o acompanhamento da Casa Civil e do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil.
Um dos instrumentos do Programa é a Bolsa Criança Cidadã, concedida mensalmente às famílias com renda per capita de meio salário-mínimo, que se comprometem a retirar os filhos de 07 a 14 anos do trabalho e mantê-los na escola. Desde 1996 até o presente, atendeu cerca de 700 mil jovens, e deverá atingir este ano mais 394 mil[7].
O Programa consiste na concessão de uma bolsa para a família, entre 25 reais (área rural) e 40 reais (área urbana), por filho, e de 20 reais para a Prefeitura. É financiado com recursos do Fundo Nacional de Assistência Social e co-financiado pelos Estados e Municípios, podendo contar com a participação financeira da iniciativa privada e da sociedade civil. O PETI tem por meta erradicar, até o ano 2002, o trabalho infantil realizado nas atividades consideradas perigosas, insalubres, penosas ou degradantes, com o apoio dos diversos setores e níveis de governo e da sociedade civil.
A Resolução nº 7, de 17/12/1999, da Comissão Intergestora Tripartite, aprovou, em seu artigo 1º, as novas diretrizes e normas do redesenho do PETI para o período de 2000 a 2006. A Resolução nº 5, de 15/02/2000, do Conselho Nacional de Assistência Social, aprovou, em seu artigo 1º, as novas diretrizes e normas do Programa para o período de 2000 a 2006.
O segundo programa é o
chamado Bolsa-Escola, cujos recursos provêm do Ministério da Educação e Cultura
e acolhe crianças e adolescentes de 06 a 15 anos, para famílias cuja renda per capita seja também de meio
salário-mínimo, existindo a limitação de 03 crianças por família, com bolsas no
valor de 15 reais mensais por jovem. Exige-se que as famílias preservem seus
filhos no ensino fundamental, com menos de 15% de faltas a cada três meses.
Este programa foi implantado
pela Medida Provisória 2.140, convolada na Lei 10.219/01, a qual foi
regulamentada pelo Decreto 3.823/01, e pretende atingir 10,7 milhões de
crianças e adolescentes.
Esses programas não devem
ser vistos como fins neles mesmos. São apenas instrumentos de transição, para
que se possa superar a defasagem social já mencionada, de vez que o afastamento
de crianças do trabalho só pode se viabilizar caso se consiga prover a sua
subsistência e só trará proveito se propiciar a permanência dessas crianças na
escola.
Não se trata de mero
assistencialismo, é importante que se diga. Refletem uma política pública de
distribuição de renda e incremento da educação, com vistas a concretizar meios
para que a própria população tenha acesso aos direitos de cidadania.
Outro aspecto que realça a
participação da população em políticas públicas para o enfrentamento do
trabalho infanto-juvenil é o permissivo legal constante do Estatuto da Criança
e do Adolescente, de que parte do imposto de renda de pessoas físicas e
jurídicas seja por elas destinada aos Conselhos Municipais, para que estes
estabeleçam diretrizes municipais sustentadas pelo respectivo fundo municipal.
Tais fundos podem também receber doações que poderão ser abatidas em 100% da
renda bruta dos doadores para fim de cálculo do imposto de renda.
No que diz respeito à
proteção dos adolescentes no trabalho, há que se distinguir aspectos iniciais
relevantes: o primeiro é que nenhum adolescente pode trabalhar em prejuízo de
sua escolaridade em locais insalubres, perigosos, em atividades noturnas ou
penosas, que possam comprometer seu desenvolvimento físico,
moral e psicológico. Por outro lado, o direito à profissionalização deve
nortear o labor dos jovens. Esta, a seu turno, pode se dar de duas formas: a
primeira delas é a aprendizagem escolar, que se realiza no
interior de entidades profissionalizantes e escolas em cuja finalidade
seja, predominantemente, o ensino de cunho profissionalizante.
A aprendizagem
escolar materializa-se como exceção à regra da incidência dos direitos
trabalhistas, posto que o trabalho, nesta hipótese, submete-se material e
ontologicamente ao primado da educação.
Realiza-se
em curtos períodos de duração e se submete à supervisão de educadores
escolares, complementando matérias previamente fixadas nos currículos
escolares, com vistas à formação profissional.
A segunda
forma de aprendizagem é a empresarial, que se realiza no interior de empresas, supervisionada
pelo Sistema S, por escolas de profissionalização ou por entidades do Terceiro
Setor, devidamente qualificadas para tanto.
Esta enseja
direitos trabalhistas, pois embora o cunho educacional seja extremamente
relevante, o adolescente presta serviços pessoais,
continuados, remunerados e subordinados juridicamente a empresas que auferem
ganhos e, por isso mesmo, ensejam riscos que devem ser cobertos pelas normas
previdenciárias e trabalhistas.
Prevalece
neste caso a regra geral do artigo 227 § 2º e inciso 3º da
Constituição Federal, e artigo 65 do Estatuto da Criança e do
Adolescente, bem como da Lei 10.097/00.
O estágio
profissionalizante, como vimos, é uma forma de aprendizagem escolar que
excepcionalmente exclui o vínculo de emprego.
A legislação brasileira, tradicionalmente, regulamentou o estágio por meio da Lei 6.494/77 em relação aos cursos técnicos ministrados no nível secundário, no ensino superior e em escolas especiais para portadores de deficiência, buscando fazer com que a atividade laboral complementasse o ensino escolar de cunho profissionalizante.
Assinale-se
que a grande excepcionalidade que caracteriza o estágio justifica-se pelo fato
de que o trabalho complementa a escola, no sentido estrito da formação
curricular em face das matérias lecionadas, cuja finalidade é a formação
profissional.
Grande
equívoco de interpretação foi conferido às Medidas Provisórias 1.709, 1.779,
1879, 1952, 2.076 e 2.164, que alteraram o § 1º do artigo 1º da Lei 6.494, para
admitir o estágio no ensino médio genérico. O equívoco em questão revela-se na
formulação de convênios entre escolas e empresas para propiciar estágio
profissionalizante a estudantes do 2º grau, descurando-se os convenientes da
finalidade precípua do estágio, que é o aprendizado prático das matérias
teóricas, mas sempre profissionalizantes.
Tal
interpretação afigura-se inadequada, uma vez que não se concebe o trabalho
profissionalizante hábil a se caracterizar como estágio e desconectado de
ensino teórico também profissionalizante. Se a aprendizagem escolar
materializada no estágio somente se revela como tal, na medida em que propicie
complementação prática do ensino teórico, este deve necessariamente ser
profissionalizante, sob pena de se abrir em demasia as
portas para as fraudes no estágio.
Não há como
se ler o § 1º em estudo incoerentemente com o próprio caput do artigo 1º e com o seu § 2º.
Não se pode
mudar a substância das coisas alterando-se a sua aparência. O estágio
profissionalizante, segundo a lei, somente se implementa na medida em que
complementa o ensino de 2º grau e de nível superior.
As escolas
especiais são aquelas que tratam dos deficientes, devendo merecer encômios a
sua inclusão no rol das que podem dar oportunidade ao estágio.
Isto
decorreu da determinação do artigo 66 do Estatuto da Criança e do Adolescente,
que atribui o trabalho protegido aos portadores de deficiência, sendo
extremamente útil o trabalho para a integração dos mesmos no convívio social.
Tendo em
vista que o contrato de estágio não acarreta vínculo de emprego, podendo
inclusive prescindir de remuneração, convém que se adotem critérios rigorosos
para que o trabalho, nestes casos, efetivamente se qualifique pela
complementação do ensino escolar de forma objetiva.
Não se pode admitir que os conhecimentos gerais ministrados na escola sejam utilizados como pretexto para aviltar a proteção do trabalhador adolescente. Seu trabalho deve ser sempre protegido e, seja qual for, deve respeitar o direito à educação, valor este que é super tutelado pelas normas que regem a matéria.
Ademais, a própria Lei 9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, segue a idéia ampliativa das oportunidades de estágio. Ocorre, entretanto, que ao pugnar pela extensão do estágio ao ensino médio genérico, a lei em tela estabelece, em seu artigo 82, que “os sistemas de ensino estabelecerão as normas para realização dos estágios dos alunos regularmente matriculados no ensino médio ou superior em sua jurisdição”.
Logo, para que se possa admitir o estágio para quem não esteja cursando ensino técnico profissionalizante, há que se perquirir se o currículo escolar já está normatizado pela respectiva Administração Regional do MEC, para que o ensino médio possa conter matérias de cunho profissionalizante.
Não se pode emprestar ao estágio amplitude tal que se faça como regra o descumprimento da proteção integral conferida pela lei aos adolescentes trabalhadores.
Qualquer interpretação ampliativa da Medida Provisória 2.164-41, ora em vigor, é inconstitucional e ilegal. Convém, ademais, perquerir se a regulamentação do estágio profissionalizante é matéria pertinente ao âmbito das Medidas Provisórias, posto que carece de urgência e de relevância emergencial.
O Ministério Público vem verificando que tem havido substituição progressiva de mão-de-obra permanente nas empresas por estagiários, sem qualquer acompanhamento profissionalizante por parte das escolas, o que contraria a própria Lei 6.494/77 e propicia inconstitucionalmente trabalho sem a respectiva proteção.
Por tais razões, faz-se urgente a imediata supressão dos efeitos da Medida Provisória em comento, para que a matéria venha a ser disciplinada por norma mais criteriosa, discutida pela sociedade, a fim de preservar os princípios e a legislação concernentes ao estágio profissionalizante e à própria Constituição Federal, para que não se utilizem desta forma de aprendizagem excepcional como medida generalizada de precarização do trabalho.
A aprendizagem empresarial
está hodiernamente regulada pela Lei 10.097/00. Esclareça-se que a norma em
questão consolida, basicamente, no Diploma Obreiro, disposições esparsas que
desde a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente já vigoravam na órbita
trabalhista, em razão do que dispõe o artigo 8º da CLT.
Visou-se, portanto,
sintetizar a matéria, trazendo-a para o corpo da Consolidação das Leis do
Trabalho, a fim de facilitar o seu conhecimento e a sua aplicação pelos
operadores do direito laboral.
O artigo 62 do Estatuto da Criança e do Adolescente passou a conceituar a aprendizagem, ampliando-lhe o alcance, antes restrito ao contrato especial de trabalho, disciplinado desde 1943, pelos artigos 429 e seguintes da CLT.
O estatuto infanto-juvenil propõe o seguinte conceito: “Considera-se aprendizagem a formação técnico-profissional ministrada segundo as diretrizes e bases da legislação de educação em vigor”.
A concepção internacional de
formação técnico-profissional, segundo o Glossário da UNESCO,
“é termo utilizado em sentido lato para
designar o processo EDUCATIVO quando este implica, além de uma formação geral,
estudo de caráter técnico e a aquisição de conhecimento e aptidões práticas
relativas ao exercício de certas profissões em diversos setores da vida econômica
e social. Como conseqüência de seus extensos objetivos, o ensino técnico e
profissional distingue-se da ‘formação profissional’ que visa essencialmente a aquisição de qualificações práticas e de conhecimentos
específicos necessários para a ocupação de um determinado emprego ou de um
grupo de empregos determinados” [8].
Logo, a remissão do artigo 62 ao conceito de formação técnico-profissional rompeu-se com os limites estreitos do velho contrato de aprendizagem imaginado por Getúlio Vargas, possibilitando amplas experiências que o propiciem.
A Lei 9.394/96, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, vem na mesma seara ampliativa e, no seu artigo 40, propugna que
“a educação profissional será desenvolvida em articulação com o ensino
regular ou por diferentes estratégias de educação continuada, em instituições
especializadas ou no ambiente de trabalho”.
Regulamentando a presente disposição, o Decreto 2.208/97, em seu artigo 4º, reconhece que a educação profissional pode ser ministrada por instituições federais, públicas ou privadas, sem fins lucrativos.
Como se vê, a Lei 9.394/96 e sua norma regulamentar conferiram ao Estado e à iniciativa privada o dever de exercitar diferentes estratégias que impliquem a ação coordenada de empresas, Estado e sociedade civil, para que a educação profissionalizante se estenda ao maior número possível de pessoas.
Todos esses imperativos legais e constitucionais foram levados ao corpo da CLT, quando se estudou a alteração contida na Lei 10.097/00, conforme veremos.
A lei em questão preserva o contrato tradicional de aprendizagem mas acresce novas oportunidades.
Se inexistirem na localidade recursos suficientes do Sistema S para que se concretize o contrato tradicional, a lei autorizará a formalização de contratos de aprendizagem que envolvam empresas, escolas de profissionalização ou entidades do Terceiro Setor, devidamente estruturadas para tal mister.
Autoriza-se, outrossim, que os adolescentes sejam registrados como trabalhadores dessas entidades do Terceiro Setor, que farão o devido acompanhamento. Os jovens prestarão serviços em empresas tomadoras, as quais os remunerarão.
Com o objetivo de incentivar tal contratação, permite-se, inclusive, que o adolescente registrado nas entidades sem fins lucrativos seja considerado aprendiz das empresas tomadoras, para o fim de preenchimento da reserva legal de vagas nestas últimas; reduziu-se, também, o percentual do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço de 8% para 2%.
O Governo, a sociedade civil e os empresários dão-se as mãos para o enfrentamento desta questão estruturalmente prioritária. Novas fronteiras são rompidas, fazendo-nos crer que estamos no rumo correto.
Notas:
1-
Metade dos menores não recebe salário. O Estado de São
Paulo, São Paulo, 03.02.2001. Caderno
Geral.
2- IBGE
divulga informações sobre jovens e mulheres. IBGE, 2001 http://www.ibge.net/ibge/presidencia/noticias/07062000.shtm
3-
AVANCINI, Marta. Brasil terá de fiscalizar mais o
trabalho infantil. O Estado de São
Paulo, São Paulo, 05.08.2001. Caderno Geral.
4-
TOSTA, Wilson. Rio dá mais estudo, mas não cria
empregos. O Estado de São Paulo, São
Paulo, 12.05.2001.
5-
Vencendo o
atraso na educação. O Estado de São Paulo, São Paulo, 09.04.2001.
6-
País avança na área social, mas mantém má distribuição
de renda. O Estado de São Paulo, São Paulo
, 05.04.2001. Caderno Geral.
7-
WEBER,
Demétrio. Crianças do PETI vão ficar fora do Bolsa-Escola.
O Estado de São Paulo, São Paulo,
15.02.2001. Caderno Geral. Ação oficial é insuficiente para resolver problema. O Estado de São Paulo,
São Paulo, 26.02.2001. Caderno Geral.
8-
OLIVEIRA, Oris de.
O trabalho infanto-juvenil no direito brasileiro. Trabalho Infantil. 2. ed., Brasília: OIT,
1993. p. 86.
(*)
Procurado - Chefe do Ministério Público do Trabalho da 15ª Região
Especialista e Mestre em Direito
do Trabalho pela Universidade de São Paulo - USP