Oris de Oliveira
Juiz do Trabalho, SP.
1. A nova redação dada pela Emenda 20 ao Inc. XXXIII do art. 7º da Constituição Federal torna urgente a criação de novos recursos institucionais que visem a propiciar qualificação profissional aos adolescentes a partir dos 14 anos de idade. A recente lei 10.097, de 19 de dezembro de 2000, veio em hora oportuna ao encontro desta necessidade, disciplinando a aprendizagem empresária e , em parte , consolidando preceitos pre-existentes. Sobre esta lei tecem-se brevíssimos comentários sobre tópicos relevantes.
2. O legislador optou por inserir dispersamente seus dispositivos no capítulo da CLT (arts. 402 a 441) que trata do trabalho do adolescente. Perdeu-se, assim, oportunidade de se elaborar um estatuto próprio da aprendizagem desvinculado do referido capítulo, ou de refazê-lo integralmente , dados seu envelhecimento e a sua desatualização. Tarefa relativamente fácil escoimando , por exemplo, resquícios de uma lei francesa novecentista, eliminando a norma retrógrada que permite autorização para o adolescente pobre trabalhar na rua, dispositivo este permite que se exponha o vulnerável adolescente pobre às situações de risco que a rua oferece, norma que perdura na contramão do enfoque que hoje se dá ao tratamento da matéria. A proposta correta é o encaminhamento do adolescente para programas sociais, em que se enfatizem o acesso ou regresso à escola, a permanência e sucesso na escola, o reforço escolar, a orientação profissional, a pré-profissionalização, a profissionalização, tudo reforçado com bolsa-escola, bolsa-estudo.
3. A lei conceitua a aprendizagem como formação técnico profissional que o Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA- (art. 62) corretamente situa no campo da educação. Na verdade, a aprendizagem com a orientação profissional é uma das primeiras etapas da formação técnico profissional, que, por sua vez , se insere no contexto da educação continuada que acompanha o cidadão em toda sua vida profissional.
4. A aprendizagem implica teoria e prática compatíveis com o desenvolvimento físico, psíquico moral e social do adolescente, exigindo atividades metodicamente organizadas em tarefas de complexidade progressiva desenvolvidas no ambiente do trabalho. A alternância de atividades práticas e teóricas é elemento fundamental de toda aprendizagem , desde que previamente programadas e obedecendo a uma passagem do menos complexo para o mais complexo, em ambiente adequado, sob a responsabilidade de uma entidade qualificada em formação técnico profissional metódica. Cabe ao programa de aprendizagem pré-fixar o tempo da alternância, ou seja, o dedicado ao trabalho na empresa e o reservado para atividades teóricas em " centro de formação". A alternância não precisa ser necessariamente diária; tempo mais longo pode ser previsto para sua efetivação. Por esta razão , a lei torna obrigatória a inscrição em programa de aprendizagem desenvolvido sob orientação de entidade qualificada em formação técnico profissional . Esta exigência impossibilita que a aprendizagem se faça na antiga modalidade da AMPE( Aprendizagem Metódica no Próprio Emprego), que não exigia a referida inscrição e nem a freqüência a centro de formação. O trabalho executado dentro destes parâmetros é uma das modalidades de trabalho educativo porque também na aprendizagem , sob pena de descaracterização, o aspeto educativo deve prevalecer sobre o produtivo. Pela teleologia da norma , o aprendiz não é admitido na empresa para cobrir a necessidade que esta tem de mão de obra para atingir seus fins, mas há uma oferta dos quadros empresariais para neles se desenvolver uma parte do programa de qualificação profissional. Por esta razão, sob pena de descaracterização, as atividades desenvolvidas pelo adolescente na empresa devem ser programadas de tal maneira que haja uma correlação metodológica e pedagógica entre o que ele aprende na função com o trabalho efetuado na empresa. O fator produção não é, pois, afastado, mas deve ficar subordinado ao processo pedagógico.
6. A aprendizagem é objeto de um contrato do qual resultam, além de outras, as obrigações recíprocas : o empregador se compromete a transmitir formação técnico profissional ao adolescente e este, por sua vez, a submeter-se ao processo das atividades programadas.
7.
O contrato de aprendizagem deve ser celebrado por escrito, e sua duração deve corresponder ao tempo
necessário para obter a formação, não podendo, porém, ultrapassar 2 (dois)
anos. Ressalvadas as normas específicas de um contrato especial, o aprendiz se torna empregado para todos os
efeitos, gozando, pois, de todos os direitos trabalhistas e previdenciários,
nestes incluída a cobertura contra acidentes de trabalho.
8. A lei 10.097 tem uma peculiaridade que merece destaque: durante anos SENAI, SENAC, SENAT, SENAR, excetos os casos de prévio credenciamento, foram os únicos "centros de formação". Continuam tendo primordialmente esta função institucional porque recebem recursos provindos de contribuição compulsória fixada em lei. Primordial, mas não unicamente porque , quando o Sistema "S" não tiver os cursos exigidos pela demanda ou não tiverem condição de atendê-la por falta de vagas, sem necessidade de prévio credenciamento, escolas técnicas de educação e entidades sem fins lucrativos, que tenham por objetivo a assistência ao adolescente e à educação profissional, podem exercer a função de centros de formação.
9. Outra peculiaridade da
lei 10.097/00. O contrato de aprendizagem pode ser celebrado também
entre o adolescente e uma entidade sem fins lucrativos que tenha
estrutura adequada ao desenvolvimento de programas de formação profissional.
Nesta hipótese, a entidade passa a ter
duas funções :- a) a de empregadora e b) a de centro de ,devendo encaminhar o adolescente para prestar
serviços em uma empresa, que é simples tomadora dos serviços.
Configura-se, assim, uma relação
jurídica triangular que tem em seus ângulos:- o adolescente, a empresa como
tomadora e a entidade, assumindo esta
todas as obrigações inerentes a um contrato em regime de emprego[1].
Ainda nesta hipótese, a entidade deve
exigir que a empresa tomadora lhe repasse todo o numerário bastante para cobrir
tudo o que é devido ao adolescente
aprendiz e os ônus que a entidade tem
como empregadora[2]. Não se pode afastar remotíssima a hipótese da
entidade que admite aprendizes ter suficientes recursos próprios para não
necessitar do repasse para sobreviver,
sendo oportuno lembrar que estas
entidades ainda têm os custos inerentes à manutenção do "centro de formação". Normas
dos anos quarenta permitem que os empregadores com recursos próprios
que mantêm centro de formação
fiquem em parte isentos da contribuição prevista em lei para manutenção
do fundo que sustenta o instituto da aprendizagem no Brasil. Algo nesta
linha necessita ser elaborado em favor das entidades que assumem a tarefa de
oferecer profissionalização porque, sendo sem fins lucrativos, às duras penas
vivem de subsídios orçamentários, muitas vezes sem receita fixa, tendo
muitas dificuldades para manter um centro de formação de qualidade.
Espera-se que o PLANFOR lhes repasse os
recursos para que desempenhem com êxito a missão outorgada pela nova lei.
A entidade deve ter especial cuidado em fazer uma seleção criteriosa de empresas tomadoras, porque, se estas falharem no repasse, a entidade não se exime da responsabilidade do cumprimento das obrigações trabalhistas. Por outro lado, as empresas tomadoras deverão ter o mesmo cuidado porque, se a entidade deixar de fazer o repasse frustrando direitos dos aprendizes, a empresa tomadora responde subsidiariamente pelas obrigações[3].
10.
Consolidando normas anteriores, a lei dispõe que os empregadores de todos os setores econômicos devem
empregar e matricular em cursos do Sistema "S" número de aprendizes
equivalente a cinco por cento, no mínimo, e quinze por cento, no máximo, dos
trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem
formação profissional[4]. Os percentuais apontados não se aplicam às
entidades sem fins lucrativos quando empregadoras .
Estão isentas da obrigação de admitir aprendizes as microempresas e as de pequeno porte.(art. 11 da lei 9.841/99 )
11. A duração da jornada é de 6 ( seis) horas nelas compreendidas as atividades destinadas a atividades teóricas, vedadas prorrogações : horas extras e regime de compensação.
Fez bem o legislador ao estipular uma duração inferior à do trabalhador adulto possibilitando mais tempo para estudo e para freqüência à escola no período diurno.
O legislador foi, todavia, infeliz permitindo que a jornada de trabalho seja de oito horas quando o adolescente aprendiz já tiver completado o ensino fundamental. Fica sub-liminarmente entendido que o patamar do ensino fundamental é bastante e suficiente. O ideal é que o adolescente que tenha terminado o ensino fundamental seja estimulado a ingressar no médio ou a matricular-se em um curso técnico , em conformidade com o espírito da lei 9.394/96 (LDB, Art. 4º ,Inc. II) que faz do ensino médio uma obrigação do Estado.
Já se tem afirmado, com razão, que a jornada de trabalho de todo adolescente aprendiz ou não aprendiz deveria ser de meio período ou , no máximo, de seis horas para facilitar os estudos
12. Ao aprendiz é devido, ao menos, o salário mínimo hora proporcional às horas trabalhadas, nestas incluídas as horas passadas no "centro de formação".
13. Compatibilidade escola e aprendizagem. Os dados estatísticos mais fidedignos evidenciam que um dos fatores que mais pesam no abandono da escola, no fraco aproveitamento desta, é o trabalho precoce ou aquele que ocupa de tal maneira o dia do adolescente, que tem só a alternativa de um curso noturno de notórias falhas. Merecem encômios as entidades e as empresas que em seus programas exigem, apenas, meio período de trabalho, propiciando a escolaridade diurna e possibilidade de maior tempo para estudar, para o reforço escolar, para o lazer, para o esporte educativo. Experiências exitosas sustentadas por bolsas-escolas mostram que não se trata de algo impossível porque sustentadas por políticas públicas que não se deixam levar pelo sofisma da "fatalidade da pobreza". Os pedagogos que acompanham os adolescentes nos programas em que a aprendizagem estiver inserida saberão certamente dar suporte aos adolescentes para que o absenteísmo imaturo na escola, nos dos centro de formação ou na empresa não frustre os objetivos da aprendizagem.
14. A lei elenca as hipóteses em que se extingue o contrato de aprendizagem, de que alguns tópicos merecem breves comentários. Não se justifica hoje tomar a idade de 18 anos como algo intangível no que diz respeito ao trabalho, quando vários programas sociais se voltam para o jovem na faixa etária de 15 a 25 anos com especial atenção voltada para sua profissionalização preparando-o para o primeiro emprego. Em um país em que há uma notória defasagem entre a idade e a escolaridade, há sobejas razões para previsão de uma faixa etária mais longa ou, ao menos, que uma aprendizagem iniciada se complete além dos dezoito anos.
O legislador ressalvou a possibilidade do aprendiz denunciar imotivadamente o contrato antes de seu término (espera-se maduramente com a assistência patrio-materna), excluindo, porém, a incidência do art. 480 da CLT. Ao excluir, também, a incidência da indenização tarifada prevista no art. 479 uma leitura sistemática leva a conclusão que o empregador não tem direito de despedir imotivadamente o aprendiz . A denúncia do contrato de aprendizagem por parte do empregador se atém às hipóteses previstas no art. 433. Quanto, porém, à denúncia por motivo disciplinar o texto legal é claro: a falta deve ser "grave", aplicando-se o disposto no art. 493 da CLT não sendo, pois, suficiente recorrer, sem mais, aos atos ou omissões elencados como justas causas no art. 482 do Código de Defesa do Operário (sic).Também não se afasta a hipótese do aprendiz denunciar o contrato de emprego com fundamento no art. 493 da CLT, especialmente quando não cumprida a obrigação de propiciar aprendizagem.
15.
Indaga-se: pode empregar-se um
adolescente que completa um curso
profissionalizante ou um contrato de aprendizagem antes de completar 16 anos ?
A resposta é afirmativa desde que para exercer a função para a qual se qualificou. A teleologia das normas é não permitir a inserção no mercado do trabalho fora de um processo de profissionalização, mas se o adolescente pode trabalhar “ qualificando-se", “a fortiori” pode trabalhar “qualificado”.
16. O Ministério do Trabalho publicou a Portaria n.º 702(18/12/2201) em que estabelece normas para avaliação da competência das entidades sem fins lucrativos que se proponham desenvolver programas de aprendizagem. Em consonância com a referida Portaria, a Secretaria de Inspeção do Trabalho baixou a Instrução Normativa n.º 26 (18/12/2001) para orientar a fiscalização das condições de trabalho no âmbito dos programas de aprendizagem.
http://www.fundabrinq.org.br/peac/ti/base/integra/APREND3.doc
18/7/2003 01:31:19
NOTAS :
[1] A existência desta relação triangular é uma velha e difusa prática (praeter legem) utilizada por entidades assistenciais que têm a louvável e indispensável preocupação de verem garantidos os direitos trabalhistas e previdenciários dos adolescentes que encaminham ao mercado de trabalho recebendo da empresa tomadora dos serviços o numerário para pagar os direitos trabalhistas e para cobrir as despesas que elas têm como empregadoras. Esta velha prática é consagrada para o trabalho do aprendiz.
[2] A lei de Custeio da
Seguridade Social, ( 8.212/91, art.55)
isenta entidade beneficente que obedeça
a certos requisitos, quando
empregadora, da contribuição de 20% sobre o total das remunerações pagas a seus
empregados.. Pela mesma lei , a contribuição previdenciária do empregado
aprendiz é calculada sobre o montante da remuneração efetivamente recebida.(
art. 28 4º, e Decreto n.º 612/92 art. 37, § 4º.)
[3] O projeto de lei explicitava a responsabilidade solidária da
empresa tomadora dos serviços,
dospositivo infelizmente vetado pela Presidência da República
apresentando a insubsistente razão de contradição. Esta inexistia porque o texto deixa claro que empregadora é
entidade e que a empresa é, apenas, tomadora dos serviços. Se possibilidade de invocar a responsabilidade
subsidiárias sem contradição, como insinua o veto, a norma legal poderia
reforçar a responsabilidade
tornando-a solidária, sobretudo levando-se em consideração a
fragilidade econômica das entidades quando empregadoras.
[4] A vetusta Portaria n.º 43/53
do Ministério do Trabalho elenca os
ofícios não susceptíveis e os susceptíveis de aprendizagem e, quanto a
estes, especificando o tempo máximo de duração. As alterações
tecnológicas de nossos dias tornam tal elenco muito defasado ficando
difícil serem elaboradas novas listas
exaustivas. Hoje, normas de acordos ou convenções coletivas poderiam colaborar
na atualização com adaptação às condições de cada categoria econômica e
profissional.