O MINISTÉRIO PÚBLICO E A AÇÃO CIVIL PÚBLICA NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

 

 

José Luiz Mônaco da Silva

8o Promotor de Justiça Cível do Foro Regional de Santana.

 

 

Sumário

 

1. Escorço histórico.

2. Conceito de ação civil pública.

2.1. Interesses ou direitos difusos.

2.2. Interesses ou direitos coletivos.

2.3. Interesses ou direitos individuais homogêneos. 3

3. A ação civil pública no Estatuto da Criança e do Adolescente.

3.1. Ações propostas contra o Poder Público.

3.2. Ações propostas contra particulares.

4. Inquérito Civil.

4.1. Compromisso de ajustamento.

4.2. Arquivamento do inquérito civil.

4.3. Desarquivamento do inquérito civil.

5. Conclusões.

6. Notas

 

 1. Escorço histórico

 

A ação civil pública nasceu, entre nós, com a aprovação da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985. A ementa dessa lei estabelece o seguinte: “Disciplina a ação civil pública, de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor; a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (vetado) e dá outras providências”.

 

O inc. IV do art. 1o da Lei n. 7.347/85, cuja redação dizia “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”, havia sido vetado pelo Presidente da República. Em face desse veto presidencial, o acesso ao Poder Judiciário, no tocante aos direitos difusos e coletivos, restringia-se tão-só às matérias previamente arroladas no art. 1o da Lei n. 7.347/85 (meio ambiente, consumidor etc.). Não era possível, pois, a propositura de ações civis públicas para a defesa de direitos difusos e coletivos relativos à infância e da adolescência.

 

No entanto, com a promulgação da Carta Magna de 1988, o legislador constitucional inseriu, na seção destinada ao Ministério Público, o art. 129, outorgando ao Ministério Público a legitimidade para promover ação civil pública na defesa do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, sem enumerá-los.

 

Portanto, após o advento da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público ganhou autorização constitucional para intentar, na defesa de interesses difusos e coletivos, ações civis públicas. A partir de 1990, com a aprovação da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor – CDC), acrescentou-se um inciso ao art. 1o  da Lei n. 7.347/85, o IV, o qual possibilitou a propositura de ações por danos causados “a qualquer outro interesse difuso ou coletivo”.

 

Após a promulgação do Texto Maior, várias leis vieram à tona disciplinando a proteção a direitos difusos e coletivos: Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989 (dispõe sobre a proteção de pessoas portadoras de deficiências físicas); Lei n. 7.913, de 7 de dezembro de 1989 (trata da proteção de investidores no mercado de valores imobiliários); Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (autoriza a propositura de “ações cíveis fundadas em interesses coletivos ou difusos” por ofensa a direitos assegurados a crianças e adolescentes); Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1.990 (permite o ajuizamento de ação civil púbica para a defesa de consumidores); Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 – Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (inclui entre as funções do MP a promoção do inquérito civil e da ação civil pública).

 

2. Conceito de ação civil pública

           

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o legislador constitucional entregou ao Ministério Público importantíssimas funções na defesa de toda a sociedade. Basta dizer que o art. 127 do Texto Maior, ao considerar o Ministério Público instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, incumbiu-lhe a “defesa da ordem pública, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

 

Para a defesa desses interesses, a Carta Magna arrolou a promoção do inquérito civil e da ação civil pública como função institucional do Ministério Público (CF, art. 129, inc. III).

 

Nelson Nery Junior diz que a ação “é instituto do direito processual civil, ramo do Direito Público. As regras do direito processual, portanto, são ordinariamente de direito indisponível, de ordem pública. Assim, não se pode falar em uma ação civil privada, em contraposição à idéia de haver uma ação civil pública. Mesmo no processo penal, onde a lei expressamente se utiliza das expressões ‘ação pública’ e ‘ação privada’ (art. 100, do Código Penal), não está considerando, por óbvio, o direito de ação, ou seja, o direito de pedir a tutela jurisdicional, como pertencendo ao direito privado” [1].

 

Pelo que se depreende da lição de Nelson Nery Junior, a ação é sempre pública, porque inerente à ciência processual. O adjetivo pública diz respeito ao problema da legitimação.

 

Ação civil pública é a ação de natureza civil proposta pelo Ministério Público. Contrapõe-se, pois, à ação penal pública, de exclusiva iniciativa do Ministério Público. Alguns autores criticam a expressão ação civil pública, sob a seguinte consideração: se tal ação, longe de ser monopólio do Ministério Público, pode ser ajuizada por pessoas jurídicas de direito privado, não cabe usar o vocábulo publica para designá-la.

 

Hugo Nigro Mazzilli, por exemplo, faz o seguinte questionamento: “Como denominaremos, pois, uma ação que verse a defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos? Se ela estiver sendo movida pelo Ministério Público, o mais correto, sob o enfoque puramente doutrinário, será chamá-la de ação civil pública. Mas se tiver sido proposta por qualquer co-legitimado, mais correto denominá-la de ação coletiva” [2].

 

O festejado jurista está com toda a razão ao tecer tais comentários. Com efeito, o art. 129, § 1o, do Texto Constitucional é expresso ao dispor que “a legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei”. Tal dispositivo é reproduzido, com variações, pelo art. 210 da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (conhecida pelo nome de Estatuto da Criança e do Adolescente): “Para as ações cíveis fundadas em interesses coletivos ou difusos, consideram-se legitimados concorrentemente: I—o Ministério Público; II—União, Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios. III—Associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por esta lei, dispensada a autorização da assembléia, se houver prévia autorização estatutária”.

 

Destarte, “sendo a ação sempre pública, quando se fala em ação privada ou em ação pública se quer em verdade referir ao problema da legitimação, e não ao do direito substancial discutido em Juízo. Ação civil pública, então, é aquela que tem como titular ativo uma parte pública – o Ministério Público” [3].

           

A ação civil pública é, em resumo, um poderoso instrumento legal colocado à disposição do Ministério Público para defender direitos assegurados pela Constituição Federal e pelas leis infraconstitucionais. Toda ação proposta pelo Ministério Público é conceituada como ação civil pública. Assim, quando o Ministério Público ajuíza ação de destituição do pátrio poder, ação de suspensão do pátrio poder, ação de nulidade de casamento, ação de dissolução de sociedade etc., está exercendo o direito de ação consubstanciado em ação civil pública.

 

No entanto, há situações para as quais a propositura da ação civil pública está centrada na violação a direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Sob esse prisma, a ação civil pública será proposta sempre que houver violação a direito ou interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo.

 

A definição desses interesses encontra-se no art. 81, § único, do Código de Defesa do Consumidor, a saber: 

 

 

2.1. Interesses ou direitos difusos

 

São os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. Atingem um número indeterminável e indeterminado de pessoas. Exemplo clássico de direito difuso encontramos na poluição ao meio ambiente. Um número indeterminável de pessoas sofrerá os efeitos nefastos da poluição ambiental.

 

2.2. Interesses ou direitos coletivos

 

São os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. Aqui, ao contrário do item anterior, a vinculação subjetiva se dá em decorrência de uma relação jurídica. Exemplo: aumento ilegal de prestações de um consórcio.

 

2.3. Interesses ou direitos individuais homogêneos

 

São os decorrentes de origem comum. Na lição de Hugo Nigro Mazzilli, “compreendem os integrantes determinados ou determináveis de grupo, categoria ou classe de pessoas que compartilhem prejuízos divisíveis, oriundos das mesmas circunstâncias de fato” [4]. Mazzilli dá como exemplo a aquisição de veículos novos com o mesmo defeito de série. O que une os consumidores vítimas é o fato de terem adquirido carros do mesmo lote defeituoso.

 

3. A ação civil pública no estatuto da criança e do adolescente

 

Como leciona Hugo Nigro Mazzilli, “A atuação do Ministério Público, na área de proteção da criança e da juventude, pode dar-se pela propositura de inúmeras ações civis públicas ou coletivas. Inicialmente, cabem algumas ações de índole constitucional, como: a) representações interventivas e ações diretas de inconstitucionalidade, até mesmo por omissão; b) ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; c) mandado de injunção, quando a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais; d) ação para garantia de direitos assegurados na Constituição por parte dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública” [5].

           

O Capítulo VII do Título VI do Livro II do Estatuto da Criança e do Adolescente, tratando da Proteção Judicial dos Interesses Individuais, Difusos e Coletivos, dispõe no art. 208, caput, o seguinte:

 

“Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular: I—do ensino obrigatório; II– de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência; III—de atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade; IV—de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; V—de programas suplementares de oferta de material didático-escolar, transporte e assistência à saúde do educando do ensino fundamental; VI—de serviço de assistência social visando à proteção à família, à maternidade, à infância e à adolescência, bem como ao amparo às crianças e adolescentes que dele necessitem; VII—de acesso às ações e serviços de saúde; VIII—de escolarização e profissionalização dos adolescentes privados de liberdade”.

 

O dispositivo legal transcrito acima não é exaustivo senão meramente exemplificativo. Com efeito, o § único do art. 208 se encarrega de dizer, de forma expressa, que as hipóteses previstas na cabeça do dispositivo não excluem da proteção judicial outros interesses individuais, difusos ou coletivos, próprios da infância e da adolescência, protegidos pela Constituição e pela Lei.

 

Só no Estado de São Paulo o Ministério Público Paulista tem ajuizado várias ações civis públicas, seja contra o Poder Público, seja contra particulares. Vejamos, por exemplo, algumas delas.

 

3.1. Ações propostas contra o poder público

 

a) ação civil pública para a criação de abrigos (ECA, art. 90, IV); para a criação de programas oficiais de auxílio e promoção, orientação e apoio à família, à criança e ao adolescente (ECA, arts. 101, IV, e 129, I e IV);

 

b) ação civil pública para a construção de rampas que permitam o acesso de menores portadores de deficiência ao pavimento superior da escola (CF,  art. 227);

 

c) ação civil pública para o fornecimento de medicamento, não disponível na rede pública de saúde, a menores que apresentem problemas sérios de saúde;

 

d) ação civil pública para obrigar o chefe do Poder Executivo municipal a encaminhar projeto de lei destinado à criação e à instalação de Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e de Conselho Tutelar.

 

3.2. Ações propostas contra particulares

 

a) ação civil pública para impedir a utilização de mão-de-obra de menores de 18 anos na colheita do amendoim, por se tratar de atividade penosa e insalubre;

 

b) ação civil pública para impedir a utilização de mão-de-obra de menores de 18 anos no corte de cana de açúcar, pelos mesmos motivos citados na alínea anterior;

 

c) ação civil pública para proibir o acesso de crianças e adolescentes em entidades de abrigo que já estejam com sua capacidade de ocupação esgotada;

 

d) ação civil pública para proibir a comercialização de revistas em desacordo com o art. 78, § único, do ECA;

 

e) ação civil pública para fechamento de casas de fliperama localizadas a menos de 1.000 metros das escolas (a Lei Municipal n. 11.610, de 13 de julho de 1994, de São Paulo, vedou a concessão de alvará de funcionamento a casas de diversões eletrônicas que se localizem a uma distância inferior a 1.000 metros, contados a partir do ponto mais próximo de qualquer escola de ensino regular de 1o e 2o graus da rede oficial ou particular, cursos supletivos ou cursos pré-vestibulares);

f) ação civil pública destinada a destituir os pais do pátrio poder;

 

g) ação civil pública destinada a obter alimentos em prol de criança ou adolescente.

 

Deve-se notar, relativamente ao art. 208, caput, do ECA, que o legislador tomou a cautela de autorizar o ajuizamento da ação civil ainda que haja oferta, só que irregular, dos serviços arrolados ao longo de seus oito incisos. A redação do dispositivo não deixa margem a dúvidas: permite o recurso à via judicial se a oferta de serviço suceder de maneira irregular. Assim, por exemplo, se determinada escola pública do município X estiver oferecendo ensino obrigatório deficitário aos munícipes mirins, o representante do Ministério Público poderá ingressar com ação civil pública contra o Poder Público local para pôr cobro a essa situação, totalmente contrária ao ordenamento jurídico.

 

Como foi visto anteriormente, o Ministério Público não detém legitimidade exclusiva para a propositura de ação civil. O art. 210 do ECA, de forma expressa, autoriza o ajuizamento dessas ações por outras pessoas: União, Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios; associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo ECA. Assim, na defesa de interesses difusos ou coletivos próprios da infância e da adolescência, uma associação, v.g., a Associação de Assistência à Criança Defeituosa, goza da faculdade de acionar judicialmente ou o Poder Público ou, então, um particular, sempre que estiverem em jogo interesses difusos ou coletivos. Aqui, diferentemente, do que sucede com o Ministério Público, a ação civil só poderá ser ajuizada pelos demais legitimados se o direito violado for de natureza difusa ou coletiva. Se não, não. Tratando-se de direito individual, tais pessoas não têm legitimidade para defender o interesse de determinado menor. Já o Ministério Público, ao contrário, tanto ajuizará a ação civil se o Poder Público, por exemplo, violar o direito de um único menor, quanto se ofender o direito de um número indeterminado ou indeterminável de menores. De se notar que, relativamente ao Parquet, o art. 201, inc. V, do ECA é peremptório ao permitir a promoção de inquérito civil e de ação civil pública “para a proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à adolescência, inclusive os definidos no art. 220, § 3o, inciso II, da Constituição Federal”.

Resta saber se: 1) a propositura de ação civil pública é obrigatória; 2) a transação mostra-se possível no curso da ação civil; 3) proposta a ação, o Ministério Público goza da faculdade de requerer a sua improcedência.

 

O Ministério Público só ingressará com ação civil pública se reunir elementos probatórios capazes de incriminar o Poder Público ou o particular. Do contrário, deixará de exercer o direito de ação. Assim, respondendo à indagação suscitada,  podemos dizer que a promoção da ação é, a um só tempo, obrigatória e não obrigatória. Obrigatória se o agente político identificar conduta contrária à Constituição e às leis. Não obrigatória se, apesar das diligências empreendidas, não apurar conduta que viole o ordenamento jurídico. O que não se quer é que o Ministério Público, mesmo tendo nas mãos provas que afastem a responsabilidade do Poder Público ou do particular, acione-os cega e abusivamente, apenas para ficar sob as luzes do estrelismo.

 

À segunda indagação responde-se afirmativamente. A transação mostra-se possível no curso da ação. Se a transação, antes da propositura da ação, é perfeitamente possível, também o é a realizada no bojo do processo civil.

 

Respeitante à última indagação, a resposta também é afirmativa. O Ministério Público goza, sim, da faculdade de postular a improcedência da ação aforada contra o Poder Público ou o particular. Se o Promotor de Justiça convencer-se, no curso da ação, de que o sujeito passivo não cometeu nenhuma conduta violadora do ordenamento jurídico, o pedido de improcedência da demanda será de rigor. Aqui, o paralelo com a ação penal pública é inarredável: diz o art. 385 do Código de Processo Penal que “Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada”. Pois bem, no processo penal, tratando-se de crime de ação penal pública, o Promotor de Justiça está autorizado a requerer a absolvição do réu. E isso sucederá quando o agente estatal reputar inocente o acusado. Ora, em sede de ação civil pública, diga-se o mesmo. Nós mesmos, em mais de uma oportunidade, chegamos  a requerer  a improcedência da ação de destituição do pátrio poder proposta contra os pais de uma criança, sob o argumento de que os fatos alegados na petição inicial não se achavam comprovadamente demonstrados.

 

4. Inquérito civil

 

Se é certo que a ação civil não é monopólio do Ministério Público, também é certo que o inquérito civil, instituto criado pela Lei n. 7.347/85 e integrado, anos após, à Constituição Federal, é, sem dúvida, instrumento legal destinado, com exclusividade, ao MP. O art. 129, inc. III, da Constituição Federal faz referência a ele ao dispor o seguinte:

 

“São funções institucionais do Ministério Público: (...) III—promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.

 

As demais pessoas legitimadas pelo art. 210 do ECA podem, como já vimos, intentar ação civil coletiva para defender interesses difusos ou coletivos. Mas o Ministério Público pode mais, pode, precedentemente à propositura da ação civil, instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, nos termos da Carta Magna c.c. o art. 223 do ECA.

 

Discorrendo sobre o inquérito civil e a ação civil pública, o insigne Procurador de Justiça Paulo Afonso Garrido de Paula leciona o seguinte: “Inovação importante consiste na legitimação do Ministério Público para a promoção do inquérito civil e da ação civil pública na defesa de interesse individual relativo à infância e à adolescência. Contida no inciso V e parágrafo único do art. 201 do Estatuto, a referência do legislador ordinário encontra lastro na atribuição constitucional do Ministério Público de defesa dos interesses individuais indisponíveis, valendo dizer, portanto, que a instituição pode ingressar em juízo, ou instaurar inquérito civil, visando defender os direitos fundamentais elencados no artigo 227 da Constituição Federal e no Título II, do Livro I, do ECA, em benefício de qualquer criança ou adolescente, sem prejuízo, evidente, de sua própria legitimidade. Em juízo, o Ministério Público apresenta-se, portanto, como verdadeiro substituto processual da criança ou adolescente cujos direitos fundamentais forem violados ou encontrarem-se ameaçados de lesão[6].

 

Diz o art. 223, caput, do ECA que “O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer pessoa, organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a dez dias úteis”. Assim, por exemplo, se o Promotor de Justiça receber denúncia segundo a qual alunos de 10 escolas da rede municipal estão sem aula, ele terá autorização legal para instaurar inquérito civil.

 

O verbo poderá, embutido no caput do art. 223 do ECA, traduz facultatividade. O Ministério Público só instaurará inquérito civil se o reputar necessário para a completa investigação dos fatos tidos como violadores de direitos individuais, difusos ou coletivos.

 

Aí já aparece um dado até então não revelado neste trabalho. A finalidade do inquérito civil, no respeitante ao Estatuto da Criança e do Adolescente, é reunir provas que comprovem a violação de direito individual, difuso ou coletivo pertencente à criança ou ao adolescente. Ao lado do inquérito policial, instrumento criado pelo legislador processual com a finalidade de apurar a autoria e a materialidade de infrações penais, encontra-se o inquérito civil, o qual, como o próprio nome indica, tem o manifesto propósito de detectar ilícitos de natureza civil. Destina-se ele, em essência, a investigar a ocorrência de lesões a interesses individuais, difusos ou coletivos.

 

Como acentuamos alhures, “Cumpre acrescentar que, com base nesse inquérito é que o Promotor de Justiça, após colher todas as provas que reputar necessárias, tanto as de natureza testemunhal quanto as de natureza pericial, promoverá a ação civil pública. Ouvindo testemunhas, recolhendo informações e documentos de pessoas físicas ou jurídicas, determinando a realização de provas periciais, inspecionando locais como creches e entidades de atendimento, enfim, reunindo em torno de si um formidável manancial probatório, terá indubitavelmente elementos suficientes para atestar eventual descumprimento de preceitos legais da esfera infanto-juvenil” [7].

 

Mas o inquérito civil não é, por natureza, instrumento indispensável. Vale dizer: a propositura de ação civil pública não reclama a prévia instauração de inquérito civil. É o que se passa, mutatis mutandis, com o inquérito policial. O oferecimento da denúncia não fica condicionado à abertura de inquérito policial, consoante entendimento pacífico da doutrina. Assim, se em determinado processo civil ficar evidente que a testemunha X mentiu, havendo prova exuberante nesse sentido, o juiz lançará mão do art. 40 do Código de Processo Penal e encaminhará ao Promotor Criminal peças do referido feito. A denúncia, no caso, será baixada sem a necessidade de prévia instauração de inquérito policial. Diga-se o mesmo, portanto, quanto à ação civil pública. Se o membro do Parquet tiver nas mãos provas contra o Poder Público ou o particular, não precisará abrir inquérito civil para só então acionar os responsáveis civis. Ao contrário, deverá, desde logo, aforar demanda judicial contra tais responsáveis.

 

O inquérito civil inicia-se mediante portaria baixada pelo membro do Ministério Público ou por despacho, da lavra do Promotor, proferido em requerimento apresentado por terceiros. Como já se disse, o inquérito civil será presidido pelo representante do Ministério Público que o instaurar.

 

Nesse inquérito o Promotor ouvirá testemunhas, determinará a realização de vistorias, exames, perícias etc., tudo no afã de apurar a existência de condutas lesivas a direitos difusos, coletivos ou individuais.

 

O inquérito civil destina-se ao Promotor que o instaurou, é dizer: o destinatário do inquérito civil é sempre o Promotor de Justiça. No inquérito policial, é certo, não se confundem as pessoas do presidente e do destinatário. O inquérito policial, presidido pelo delegado de polícia, é encaminhado ao Promotor de Justiça, seu destinatário. Já o inquérito civil, como vimos, concentra em uma só pessoa as figuras do presidente e do destinatário.

 

O ECA permite a realização de transação firmada nos autos do inquérito civil. Cuida-se do chamado compromisso de ajustamento, sobre o qual falaremos no próximo item.

 

4.1. Compromisso de ajustamento

 

O compromisso de ajustamento vem prescrito no art. 211 do ECA:

 

“Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, o qual terá eficácia de título executivo extrajudicial”.

O compromisso de ajustamento destina-se a pôr fim às investigações feitas no bojo do inquérito civil. Trata-se de acordo firmado entre os órgãos públicos legitimados ativamente e o virtual réu da ação civil pública. Sustenta Hugo Nigro Mazzilli, lição com a qual estamos inteiramente de acordo, que “Se o compromisso de ajustamento for tomado pelo órgão do Ministério Público em autos de inquérito civil, de boa cautela é assegurar que o Conselho Superior possa rever o ato” [8].

 

Somente os órgãos públicos (MP, União, Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios) estão autorizados a firmar compromisso de ajustamento. Assim, às associações referidas no inc. III do art. 210 do ECA a lei veda o compromisso de ajustamento.

 

Como decorre do próprio ECA, o compromisso de ajustamento é erigido à categoria de título executivo extrajudicial, o que assegura, em caso de descumprimento do acordo, o ajuizamento de ação de execução e não de ação de conhecimento.

 

Por fim, o compromisso de ajustamento independe da homologação do Poder Judiciário. Em nenhuma passagem do ECA (e tampouco da Lei n. 7.347/85) encontramos dispositivo legal condicionando a validade do acordo à chancela da autoridade judiciária. No entanto, se o compromisso de ajustamento for homologado pelo juiz, sairá da categoria de título executivo extrajudicial e ingressará na de título executivo judicial.

 

4.2. Arquivamento do inquérito civil

 

Se as provas coligidas para o bojo dos autos não forem capazes de determinar a responsabilidade de quem quer que seja, o representante do Ministério Público não terá outra solução senão o arquivamento do inquérito civil, na forma do art. 223, § 1o, do ECA.

 

Tal arquivamento, no entanto, depende do referendo do Conselho Superior do Ministério Público, órgão de Administração Superior do Ministério Público. É que, de acordo com o art. 223, § 4o, do ECA, a promoção de arquivamento será submetida a exame e deliberação do Conselho Superior do Ministério Público, conforme dispuser o seu Regimento.

 

Não basta, pois, o mero arquivamento dos autos, levado a efeito pelo Promotor de Justiça destinatário do inquérito, para que a atividade investigatória cesse a sua marcha. Antes, é preciso que a promoção de arquivamento seja examinada pelo Conselho Superior do Ministério Público. Aliás, como determina o art. 223, § 2o, do ECA, “Os autos do inquérito civil ou as peças de informação arquivados serão remetidos, sob pena de se incorrer em falta grave, no prazo de três dias, ao Conselho Superior do Ministério Público”.

 

É possível que o Conselho Superior do Ministério Público não ratifique o arquivamento formulado pelo Promotor de Justiça. Nesse caso, tal órgão, com base no art. 223, § 5o, do ECA designará, desde logo, outro órgão do Ministério Público para o ajuizamento da ação.

 

Conquanto omisso o ECA, é possível que o inquérito, encontrando-se mal instruído, demande a realização de outras diligências, determinadas pelo CSMP. Só após a feitura destas é que o órgão colegiado se pronunciará sobre a promoção de arquivamento. E mais: efetivadas as diligências determinadas pelo CSMP, reabre-se ao Promotor de Justiça a oportunidade de reapreciar o caso, podendo reiterar a promoção ou, ainda, ajuizar ação civil pública, reformulando sua anterior posição.

 

A Súmula n. 17 do CSMP é incisiva a esse respeito:

 

“Convertido o julgamento em diligência, reabre-se ao Promotor de Justiça que tinha promovido o arquivamento do inquérito civil ou das peças de informação a oportunidade de reapreciar o caso, podendo manter sua posição favorável ao arquivamento ou propor a ação civil pública, como lhe pareça mais adequado. Neste último caso, desnecessária a remessa dos autos ao Conselho Superior, bastando comunicar o ajuizamento da ação por ofício”.

 

Chamamos a atenção do leitor para o que dispõe o art. 223, § 3o, do Eca. Tal dispositivo permite às associações legitimadas, antes da homologação ou da rejeição da promoção de arquivamento, apresentar razões escritas ou documentos, que serão juntados aos autos do inquérito. A finalidade desse arrazoado é demonstrar aos integrantes do Conselho Superior a necessidade de instauração de ação civil. Tal arrazoado, contudo, é peça meramente opinativa, sem importar em vinculação de qualquer natureza. Assim, ainda que uma associação apresente razões escritas e documentos, o Conselho Superior apreciará serenamente a promoção de arquivamento, podendo homologar ou rejeitar a promoção, tudo a depender de cada caso.

 

Embora o ECA atribua tão-só às associações legalmente constituídas há pelo menos um ano o direito de apresentar razões escritas e documentos, a interpretação extensiva do art. 223, § 3o, do ECA, autoriza também o arrazoado pelos demais legitimados ativos arrolados no art. 210, inc. II. É por isso que, no âmbito paulista, o Regimento Interno do Conselho Superior do Ministério Público permitiu, no art. 211, o oferecimento de razões e documentos por quem tenha legítimo interesse.

 

4.3. Desarquivamento do inquérito civil

 

No campo penal, a reabertura do inquérito penal é possível, mercê do disposto no art. 18 do CPP, segundo o qual “Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia”. No campo civil, entendemos aplicável, por analogia, o disposto no art. 18 transcrito acima, até porque o arquivamento do inquérito civil não gera direito líquido e certo. Surgindo novas provas, portanto, é claro que o inquérito civil será desarquivado.

 

O assunto objeto deste item suscita a seguinte pergunta: a quem caberá o desarquivamento dos autos de inquérito civil? Já vimos que, promovido o arquivamento dos autos de inquérito, caberá ao Conselho Superior do Ministério Público homologá-lo ou rejeitá-lo. Uma vez homologada a promoção de arquivamento, os autos serão encaminhados ao arquivo. Pois bem, se o arquivamento compete ao representante do Ministério Público, com a chancela do Conselho Superior, é lógico que, surgindo novas provas, o desarquivamento ficará na dependência de uma decisão do Promotor, seja por provocação de qualquer do povo, seja por provocação dos demais legitimados para o exercício da ação civil (ECA, art. 210, incs. II e III). É evidente que naqueles casos em que a atribuição pertencer ao Procurador-Geral de Justiça (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, art. 29, inc. VIII), o Promotor de Justiça não poderá determinar a reabertura do inquérito.

 

5. Conclusões

 

De tudo quanto dissemos acima, chegamos às seguintes conclusões:

 

·                                O  Ministério Público recebe autorização constitucional e legal para ingressar com ação civil pública.

 

·                                Sua legitimação, porém, não é exclusiva; divide-a com as demais pessoas citadas no art.  210 do ECA.

 

·                                A propositura da ação civil pública é, a um só tempo, obrigatória e não obrigatória. Obrigatória se o Promotor de Justiça tiver razoáveis elementos de prova que conduzam à responsabilidade do infrator. Não obrigatória se apurar, em autos de inquérito civil ou em peças de informação, a inexistência de qualquer conduta lesiva a direitos difusos, coletivos ou individuais.

 

·                                O art. 208 do ECA arrola em seus 8 (oito) incisos as situações que, uma vez verificadas, acarretam a propositura de ação civil pública. No entanto, tal artigo não é exaustivo, mas sim meramente exemplificativo, não excluindo da proteção judicial outros interesses individuais, difusos ou coletivos.

 

·                                Antes de propor a ação civil pública, o Ministério Público pode contar com um valioso instrumento de investigação, o denominado inquérito civil.

 

·                                O inquérito civil constitui monopólio do Ministério Público. Ou seja, as demais pessoas arroladas no art. 210 do ECA não têm poderes para instaurar inquérito civil.

 

·                                O Promotor de Justiça é o exclusivo destinatário do inquérito civil.

 

·                                No bojo dos autos do inquérito o Promotor de Justiça está autorizado a firmar compromisso de ajustamento com o infrator.

 

·                                O compromisso de ajustamento independe de homologação da autoridade judiciária. Depende, contudo, do referendo do Conselho Superior do Ministério Público.

 

·                                O não cumprimento do compromisso de ajustamento acarreta a imediata execução do título extrajudicial. No entanto, se o ajuste, conquanto não obrigatório, for homologado pelo Poder Judiciário, constituirá título executivo judicial.

 

·                                Promovido o arquivamento do inquérito civil, sobre ele manifestar-se-á o Conselho Superior do Ministério Público. Ou homologará a promoção, ou rejeitará o arquivamento e, então, designará outro membro do Ministério Público para ajuizar a competente ação civil pública.

 

 

6. Notas

 

1. Ação civil pública, Justitia, v. 120/79.

 

2. A defesa dos interesses difusos em juízo, Ed. Saraiva, 9a ed., p. 13.

 

3. Ministério Público, ação civil pública e defesa dos interesses difusos, Paulo Salvador Frontini, Édis Milaré e Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz, Justitia, v. 131/263.

 

4. Ob. cit., p. 6.

 

5. Ob. cit. p. 192

 

6. O Ministério Público e o Estatuto da Criança e do Adolescente, Cadernos Informativos, Edições APMP, p. 76.

 

7. Cf. nosso Estatuto da Criança e do Adolescente, Ed. Revista dos Tribunais, 1994, p. 386.

 

8. Ob. cit., p. 109.