INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. ECA. CONSELHO TUTELAR
Divino Marcos de Melo Amorim
Promotor de Justiça no Estado de Goiás.
I - Introdução
O legislador estatutário, na elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, erigiu à condição de infrações administrativas as condutas descritas nos artigos 245 a 258 do referido diploma legal especial, cominando, relativamente à sua infringência, multa administrativa, diferenciada da multa fiscal e da multa criminal. Tem-se, pois, que o agente, uma vez incorrendo na prática de conduta considerada infração administrativa, ficará sujeito à condenação ao pagamento de uma multa na modalidade de pena pecuniária. A doutrina leciona que tal multa, por advir do Direito Administrativo, é de cunho objetivo, independendo de dolo ou culpa do agente.
II – Do procedimento legal
O diploma estatutário contemplou o procedimento para apuração das infrações administrativas, nos artigos 194 a 197 da Lei n° 8.069/90 (ECA). Foi conferida legitimidade ad causam ao Ministério Público, ao Conselho Tutelar ou a qualquer serventuário efetivo ou voluntário credenciado pelo respectivo Juízo da Infância e Juventude, ex vi do art. 194, caput, do ECA. Para a movimentação do Poder Judiciário, in casu, os legitimados deverão interpor a denominada representação, ou instá-lo via do auto de infração lavrado por quem de direito (art. 194, §§ 1° e 2°, ECA).
III – Irregularidade de representação - inadmissibilidade
A discussão a que se propõe esse singelo artigo é acerca da representação por advogado do Conselho Tutelar de serventuário efetivo ou de voluntário credenciado para formular, em Juízo, a representação e atuar no feito, na qualidade de parte. Superficialmente, poder-se-ia vislumbrar que o legislador teria erigido o procedimento para imposição de multa administrativa, pela prática de infração administrativa, quando iniciado por auto de infração, em verdadeiro contencioso administrativo, pelo fato de ter admitido que o autuado fosse intimado pelo Conselheiro ou por outro serventuário para, em dez dias, efetuar sua defesa (art. 195, I, ECA). A permissão dada ao Conselheiro ou congênere dá a impressão de que o autuado poderia fazer sua defesa perante o próprio Conselho Tutelar, o que é uma falácia, pois a esse órgão não compete analisar tais defesas, não estando, entre suas atribuições, conhecer e julgar peça defensiva. Por outro turno, afastada a hipótese do contencioso administrativo, a leitura da legislação indica que o legitimado - Conselho Tutelar/serventuário - poderia representar perante a autoridade judiciária para a instauração do procedimento contra o autuado, contando-se o prazo de defesa do mesmo a partir da data de intimação, constante no auto de infração, caso tenha havido tal intimação. Entretanto, indagar-se-á se o Conselho Tutelar, mesmo por intermédio de seu Presidente, poderia representar, em Juízo, sem advogado habilitado e, posteriormente, na qualidade de autor, manifestar-se nos autos, na conformidade da legislação processual civil, aplicada à espécie por determinação do art. 152 do ECA. Analisando-se os princípios norteadores do estatuto infanto-juvenil, tendo-se em vista a busca incessante de fórmulas descomplicadas para o resguardo dos interesses e direitos das crianças e adolescentes, tem-se que o legislador, ao que tudo indica, preferiu optar pela possibilidade de o Conselho Tutelar atuar, perante a autoridade judiciária, de forma direta, podendo representar no caso em comento, para que o fato, administrativamente ilícito, fosse logo apurado e, comprovadas as responsabilidades, os culpados sofressem as sanções da lei. Evitar-se-ia, com tal possibilidade, o descrédito do Judiciário e do próprio Conselho Tutelar, bem como o crescimento da impunidade, tão odiosa em nossa sociedade. Desse modo, permitiu-se ao Conselho Tutelar, bem como ao serventuário efetivo ou a voluntários credenciados, pelo Juízo da Infância e Juventude, que representassem perante o Juízo competente para o fim colimado em lei, não fazendo, a legislação, menção à obrigatoriedade de tal representação ser firmada por advogado habilitado. Tal questão, em nossas lides forenses, é relevante, tendo em vista que a maior parte dos Conselhos Tutelares não tem condições plenas de funcionamento, quanto mais, a possibilidade de contar com profissional habilitado para tal mister. O próprio legislador, no que se refere ao agente da infração administrativa, exige que qualquer pessoa que tenha interesse na solução da lide relacionada com questão afeta à criança e adolescente, possa intervir no procedimento, por meio de advogado, ex vi do art. 206 do ECA. A própria doutrina, ao analisar a defesa do agente da infração no procedimento em comento, afirma que sobre a "... formalização da peça de defesa, é importante deixar assentado que a mesma deverá ser, necessariamente, subscrita por advogado, como determinado pelo art. 206 da Lei 8.069/90..." [1]. De qualquer sorte, tal questão parece ser esclarecida adequadamente, pela imposição constitucional presente no art. 133 da Carta Federal e na legislação pertinente infraconstitucional. Tem-se, então, que o próprio legislador estatutário, talvez atento para a impossibilidade da manifestação daqueles legitimados, sem assistência de advogado, os excluiu de manifestação, na qualidade de parte, na audiência de instrução e julgamento respectiva. A legislação prevê que, uma vez colhida a prova oral, manifestar-se-ão, sucessivamente, o Parquet e o procurador do Requerido (art. 197, parágrafo único, Lei 8.069/90), não se fazendo menção aos demais legitimados, caso fossem os autores da representação pré-falada. O próprio Estatuto menorista determina a aplicação, aos procedimentos regulados pelo mesmo, subsidiariamente, das normas gerais previstas na legislação processual pertinente. A falta de representação, através de advogado habilitado, constitui-se em ausência de um pressuposto processual fatal, o da representação da parte, impossibilitando que o legitimado resida em Juízo, acarretando, inclusive, a extinção do feito, sem julgamento do mérito, ex vi do art. 269, inciso IV, do diploma processual civil.
IV – Representação na modalidade de comunicação às autoridades competentes – atenuação do formalismo legal
Parece-nos, contudo, que uma vez que o Conselho Tutelar ou o serventuário ou voluntário [p.ex. agentes de proteção – anteriormente denominados de comissários de menores], represente à autoridade judiciária competente, sem estar representado por advogado habilitado, o Juiz deverá receber tal peça como comunicação do fato infracional e, ex officio, determinar a instauração do procedimento, o qual será regulado pelo rito preconizado no estatuto infanto-juvenil, não sendo possível àqueles legitimados se manifestarem nos autos, a não ser na condição de informantes do Juízo, na colheita de prova, sob pena de nulidade dos atos praticados. A presente assertiva, alvo certamente de inúmeras críticas, poderá levar, numa análise superficial, à indagação de que, se aqueles legitimados não podem atuar diretamente no feito como parte, também não poderiam, inclusive, ofertar a representação em comento, por falta de representação. Concessa maxima venia dos discordantes, vislumbra-se que tal raciocínio, à luz da legislação processual civil, estaria completamente acertado. Ocorre, como dito linhas antes, que o legislador infanto-juvenil, tendo em vista a relevância dos interesses e direitos tutelados, optou por uma atenuação do formalismo processual, inclusive permitindo ao Juiz (art. 153, ECA), não havendo procedimento previsto no ECA correspondente à medida judicial a ser adotada, o poder de investigar os fatos e tomar as providências necessárias, ex officio, pelo que os doutos ensinam que isso "...bem revela que o Estatuto perfilhou a tendência doutrinária que procura conferir ao juiz, cada vez mais, um papel mais ativo no processo..."[2].
Tal questão, contudo, é de alta indagação e, certamente, merecedora de profundas análises, sendo que o presente artigo não tem pretensão de esgotá-la.
V - Conclusão
Consoante análise prática do dia-a-dia forense, estando o membro do Ministério Público, na maior parte das vezes, envolvido com Conselhos Tutelares - isso nas Comarcas em que realmente existem tais órgãos em funcionamento - sem nenhuma estrutura e, muito menos, com assistência de advogado habilitado, o bom senso indica que deve haver orientação aos membros daquele e, inclusive, para Agentes de Proteção, no sentido de que procedam as autuações na forma da lei, reformulando-se os autos de infração, com fórmulas já expressas, retirando destes a certidão de intimação do infrator para que, em dez dias, apresente ou não sua defesa. Retira-se tal certidão, a fim de que não haja a necessidade plena de o Conselho fazer a respectiva representação perante à autoridade judiciária e, também, para que não haja confusão quanto ao prazo de defesa e, em Juízo, sejam apresentadas eventuais alegações de nulidade de tal intimação. Uma vez feita a autuação, por quem de direito, sem haver a intimação pré-falada, o Conselheiro ou servidor/voluntário deve, imediatamente, remeter a primeira via dos mesmos, com relato resumido, via ofício, à respectiva Promotoria de Justiça (art. 136, IV, ECA) para que o Promotor de Justiça proceda, na forma dos arts. 194 e ss. do ECA, evitando-se toda a discussão sobre a representação daquele legitimado para se buscar a apuração cabal dos fatos e, uma vez comprovada a infração respectiva, obter-se a punição exemplar dos infratores, tudo para o resguardo dos interesses e direitos das crianças e dos adolescentes de nossa nação.
Notas:
[1]
Cf. Munir Cury e outros. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado.
Malheiros Editores, 1992. p. 566.
[2] Cf. Munir Cury e outros, op.
cit., p. 455.