HISTÓRIA MAIS QUE REAL

 

Saulo de Castro Bezerra
Promotor de Justiça de Goiânia.

 

Maria (vamos chamá-la assim) foi encontrada pelo SOS Criança no Terminal Rodoviário. Estava ali há dois dias e duas noites. Tinha apenas 11 anos de idade. Estava assustada. Veio do interior do Maranhão, onde morava num pequeno barraco de quarto e sala, deixando a mãe, viúva e desempregada, e seus quatro irmãos, todos mais novos que ela. Foi trazida a Goiânia para trabalhar como doméstica em uma casa de família, onde ganharia roupa, comida e meio salário mínimo por mês, além de poder continuar estudando – afinal, "já estava fazendo a primeira série". Tinha certeza que sua vida melhoraria. Pior do que estava não poderia ficar.

Passados três meses de sua chegada, as promessas ainda não tinham sido cumpridas. Ao contrário. Levantava todos os dias às 6h30 e só ia dormir depois da "novela das oito", que não podia assistir. Se quisesse brincar, tinha de ser em silêncio, no quartinho, para não atrapalhar. Brinquedos ou diversão, nem pensar. Escondida, chorava muito. Sentia-se cansada, com saudade das colegas e de casa, quase arrependida, mas continuou sua rotina. Não tinha mesmo outra alternativa.

Numa quarta-feira, Maria foi inesperadamente acordada pela "patroa". Estava sendo acusada de ter furtado suas jóias, que sequer sabia da existência. Aos gritos, a "patroa" dizia que ela já não servia mais para trabalhar em sua casa. Não pôde falar nada. Foi colocada na rua. Mal deu tempo de pegar suas poucas roupas. Não recebeu os meses trabalhados. Não lhe deu nem mesmo o dinheiro do ônibus, para que pudesse retornar para sua casa. Disse-lhe que não merecia. "Era uma ingrata, uma ladra, saberia se virar." Todos do prédio ouviram. Maria chorou de vergonha e sentiu-se humilhada.

Perambulou pela cidade. Não sabia a quem recorrer. Como suas pernas doíam, resolveu ficar por ali. Quem sabe conseguiria ajuda. Passou fome, frio e teve muito medo. Quase entrou em desespero. Ficou feliz quando o pessoal daquela Kombi apareceu. Deram-lhe comida e até pôde tomar um banho.

Histórias como essa, contada na Promotoria de Justiça da Infância e Juventude, acontecem com mais freqüência do que imaginamos e é o retrato fiel do modo como ainda tratamos boa parte de nossos jovens. Empurrados principalmente pela miséria e pela exclusão social, começam a trabalhar muito cedo e acabam por se submeterem a uma situação de absurda exploração, praticada justamente por quem, como disse a "patroa" de Maria, "apenas queria ajudar aquela pobre criatura".

Embora a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente proíbam qualquer trabalho aos menores de 16 anos de idade, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE, revela que uma das ocupações mais freqüentes, na faixa etária de 10 a 14 anos, é o trabalho doméstico, absorvendo mais de 260 mil crianças em todo o País, principalmente do sexo feminino.

Os números da PNAD mostram que das 1 milhão 249 mil adolescentes entre 14 e 18 anos que trabalham, cerca de 562 mil, ou 45% do total, é empregada doméstica e cumpre, na maioria das vezes, uma árdua jornada que torna quase impossível conciliar o trabalho com o estudo e que tem como principal conseqüência o atraso escolar, ou o abandono puro e simples da escola, indicando a existência de uma prática de negação de direitos que insiste em não acabar em nosso País.

Como recentemente mostrou o jornal O Popular (6/8/01), por ser extremamente mal remunerado e sem qualquer garantia de seus direitos trabalhistas e previdenciários, a atividade dessas meninas vem seduzindo um número maior de pessoas a cada dia. Como retiram postos de trabalho adulto, essa prática acaba por contribuir com o desemprego e perpetua a exploração da pobreza, criando um ciclo vicioso de difícil rompimento.

Assim como aconteceu com Maria, seus empregadores defendem-se dizendo que, como vêm de famílias muito pobres, é "melhor a menina trabalhar e ajudar no sustento da casa do que ficar nas ruas roubando ou pedindo esmolas". Convenientemente esquecem-se de que, ao afastar-se do lar, da escola, da sociedade e das atividades adequadas à sua idade, para aparentemente resolver situação imediata provocada pela miséria, a trabalhadora precoce acaba por prejudicar toda sua formação e será, no futuro próximo, aquela que não conseguirá entrar no mercado formal de trabalho.

A Organização das Nações Unidas, no relatório sobre a Situação Mundial da Infância de 1997, elaborado pelo Unicef, denuncia que, "de todas as crianças trabalhadoras, aquelas que trabalham no serviço doméstico são as mais vulneráveis e as mais exploradas – além de serem as mais difíceis de proteger. Freqüentemente são mal remuneradas ou não recebem qualquer remuneração; a duração e as condições de trabalho, muitas vezes, dependem inteiramente dos caprichos de seus empregadores, que não levam em conta seus direitos legais; são privados do acesso à escola, de brincadeiras e atividades sociais e de apoio emocional por parte da família e de amigos. E ainda mais grave, estão expostas a abusos físicos e sexuais".

O discurso em favor do trabalho precoce foi transformado em álibi para a ausência de políticas de atenção à criança e ao adolescente em nosso País. "A completa eliminação do trabalho infantil no Brasil é uma medida complexa e de longo prazo, que requer uma série de atividades coordenadas por parte do Poder Público," destaca o relatório.

Comecemos, então, por reafirmar o raciocínio de ser a garantia da educação de qualidade e permanência na escola, que seja capaz de promover a iniciação ao trabalho e profissionalização verdadeira, o remédio mais eficaz para proteger crianças e adolescentes de uma ocupação futura sem dignidade.

Em termos mais gerais, uma melhor distribuição de renda certamente teria reflexos favoráveis, na medida em que reduziria o nível e a intensidade da pobreza, reconhecidamente uma das principais causas do trabalho precoce.

Voltando a Maria. Sua "patroa" foi notificada. Indignada – "quanta humilhação", dizia –, confirmou toda história. "Era a quarta menina que trazia do interior do Maranhão e coisa igual nunca tinha acontecido." Não sabe o destino das anteriores. Bastante irritada, deu-lhe o dinheiro da passagem de volta, "para se ver livre do problema". Não pagou os salários atrasados nem os direitos trabalhistas da menina. E disse que não pagaria. Preferia gastar seu dinheiro defendendo-se na Justiça. "Não tinha feito nada de errado." Mesmo depois de descobrir que suas jóias não foram furtadas pela garota, ainda estava com muita raiva dela. "É muito petulante e chorona." Ela própria as tinha mudado de lugar. Colocou-as num lugar mais seguro. "Hoje em dia tem muito ladrão. O mundo anda violento demais."