A regulamentação do trabalho
educativo (1)
Benedito Rodrigues dos Santos
Professor da Universidade Católica de Goiás, GO.
1.
Antecedentes: o contexto de inserção do Artigo no ECA.
2. A necessidade de regulamentar o Artigo 68 do ECA/
Justificativa. 3. Aspectos a ser regulamentados. 4.
Forma de regulamentação. 5. Distinções entre trabalho educativo, aprendizagem e
estágio profissionalizante. 6. Considerações finais.
"Art. 68. O programa social que tenha por base o
trabalho educativo, sob responsabilidade de entidade
governamental ou não governamental sem fins lucrativos, deverá assegurar ao
adolescente que dele participe condições de capacitação para o exercício de
atividade regular remunerada.
Parágrafo
1º. Entende-se por trabalho educativo a atividade laboral
em que as exigências pedagógicas relativas ao desenvolvimento pessoal e social
do educando prevalecem sobre o aspecto produtivo.
Parágrafo 2º. A remuneração que o adolescente recebe pelo trabalho
efetuado ou a participação na venda dos produtos de seu trabalho não desfigura
o caráter educativo."
1. Antecedentes: o contexto de inserção do artigo no
ECA
Durante os anos 70 começaram
a surgir no País os chamados programas alternativos
para meninos de rua.
Os fatores que motivaram
esse surgimento foram, de um lado, o problema :
I) a presença incômoda de
grande contigente de crianças nas ruas;
II) o envolvimento crescente
de crianças e adolescentes no cometimento de delitos e no uso de substâncias
tóxicas. De outro lado, a fragilidade das respostas dadas ao problema;
III) avaliação recorrente
que tanto a família, a comunidade quanto a escola
estavam falhando na socialização de determinados segmentos da população
infantil;
IV) a crítica de que a
política oficial para a "ressocialização"
dos chamados "menores" carentes, abandonados, de rua ou infratores
(baseada na institucionalização correcional-repressiva) além de perversa, era
ineficiente e ineficaz na reeducação dessas crianças e adolescentes;
V) tampouco o sistema de
capacitação profissional montado pelos empresários alcançava essa população
excluída.
Esses programas proliferaram
na década de 80 devido à atuação do Projeto Alternativas
Comunitárias de Atendimento a Meninos de Rua, desenvolvido pelo UNICEF,
FUNABEM e Secretaria de Ação Social do Ministério da Previdência e Assistência
Social, que se encarregou de sistematizar e divulgar sua proposta pedagógica e
metodologia de trabalho. A novidade pedagógica desses programas eram os
princípios de atuação: considerar a criança em situação de risco pessoal e
social "sujeito de processo pedagógico" e trabalhar com ela no
contexto em que estava inserida.
Estes preceitos contrapunham
as concepções de criança-objeto e a prática predominante de trancafiar crianças
e adolescentes em instituições fechadas. A metodologia gerada era baseada no binômio educação e trabalho "alternativos" como
forma de "reeducar" ou "reinserir"
as crianças e jovens no padrão de socialização hegemônico e considerado normal.
No tocante
à educação, esses programas empregavam largamente educação não-formal,
baseada nos pressupostos da educação popular, como contraponto ao sistema
oficial e em complementação a ele. Alguns deles desenvolveram um sistema de
ensino "formal-paralelo" ao oficial. No caso do trabalho, eles
desenvolveram um sem número de atividades de geração de renda "alternativa", basicamente vinculadas ao mercado informal de
trabalho.
Quanto à sua natureza, eles eram majoritariamente não governamental, muito embora
devido à disseminação da proposta pedagógica alternativa, registrava-se uma
quantidade substancial de instituições governamentais. Suas formas jurídicas
eram: entidades sociais sem fins lucrativos, cooperativas,
escolas-cooperativas, escolas-empresas. Contudo, uma
grande parte desse contingente era conhecida como Entidades Sociais
Particulares (ESPs). Hoje essas entidades estão indiferenciadamente categorizadas no que se convencionou
denominar Organizações Não Governamentais (ONGs).
Nelas as crianças e adolescentes fabricavam uma diversidade de produtos que variavam do picolé/sorvete, passando por detergente caseiro, cerâmica até a construção de móveis coloniais. Em geral, dependendo do grau de intervenção "crítica" do programa, os jovens participavam de todos os momentos do processo de produção: do planejamento, da execução e da venda; e os lucros eram socializados com os participantes. O modelo inspirador aqui era o das cooperativas de produção. A expansão súbita desse tipo de atividades gerou um sistema de socialização de crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social no mundo do trabalho, completamente paralelo ao sistema de capacitação desenvolvido pelo sistema "S" (SENAI, SENAC etc) dos empregadores. Embora alguns programas do setor de serviços fossem colocados no amplo campo dos "alternativos", tais como patrulheiros-mirins, guardas-mirins, office-boys, essa inclusão não era consensual.
Atores mais críticos desse
movimento, que ficou conhecido como "movimento das alternativas
comunitárias de atendimento aos meninos de rua", e que mais tarde foram os
protagonistas na aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não
só buscavam formas de distinguir as diversas concepções e mesmo projetos político-pedagógicos existentes sob o manto da denominação
"projetos alternativos", como também reuniam um conjunto de críticas
que podiam ser aplicadas à grande maioria dos programas ditos alternativos. Uma
versão condensada dessas críticas será apresentada no próximo item.
Naquele momento a crítica
básica era formulada nos termos dos conceitos "educação para o
trabalho" e "pelo trabalho". Ou seja, os projetos que tinham por
objetivo apenas um treinamento para o mundo laboral
eram denominados programas de "educação para o trabalho" e eram
rechaçados pela outra corrente por constituírem-se em apenas modeladores da
mão-de-obra para adequação ao mercado de trabalho, sem a preocupação com a
mudança do status quo do adolescente trabalhador
nesse mesmo mercado.
Já os programas de
"educação pelo trabalho" eram baseados na concepção de trabalho como
um princípio educativo. Seus adeptos adotavam uma abordagem crítica da relação
capital e trabalho, e buscavam a formação de um trabalhador crítico em relação
ao sistema de produção vigente. As atividades produtivas são desenvolvidas sob
três princípios básicos referentes à participação do educando:
I) na decisão e no
planejamento da produção;
II) no conhecimento
técnico-científico atinente ao que está sendo produzido, visando contrapor o
mero princípio do "aprender-fazendo"
reinante nas experiências de educação para o trabalho;
III) na definição dos destinos
e no lucro da produção realizada coletivamente.
Outro alvo de crítica dos
adeptos da "educação pelo trabalho" era as atividades laborais
desenvolvidas nas instituições destinadas à "ressocialização"
de adolescentes com prática de atos infracionais
(internatos e semi-internatos). Além do trabalho ser
usado como punição e não como fonte de realização do ser humano, as atividades
desenvolvidas contrapunham terminantemente os princípios anteriormente
relacionados. Os adolescentes quase nunca participavam da decisão e do
planejamento dos bens e serviços a serem produzidos; não sê-lhes
repassava o conhecimento teórico, apenas o aspecto prático da atividade laboral; e sobretudo, eles não participavam do lucro do
trabalho produzido que, via de regra, era investido na manutenção da própria
instituição.
Essa concepção de trabalho
era defendida pela maioria dos atores que lideraram o movimento por reformas no
campo jurídico da infância e adolescência, ganhou perspectiva hegemônica e
tornou-se a visão instituída no Estatuto da Criança e do Adolescente. O Artigo
68 foi inserido no ECA com o triplo objetivo de:
I) instituir
a supremacia do caráter educativo no desenvolvimento de atividades laborais
com crianças e adolescentes, em outras palavras, criar uma figura jurídica que
obrigasse os programas de geração de renda a vincularem suas atividades ao
campo formação profissional, superando assim o mero adestramento de
mão-de-obra, característico dos programas filantrópicos e caritativos;
II) criar proteção jurídica
para as organizações que desenvolviam programas "educação pelo
trabalho", no sentido de evitar a caracterização de relação empregatícia
entre os educandos e a entidade, relação esta que vinha sendo argüida, embora
esporadicamente, tanto pelos educandos quanto pelos órgãos de fiscalização do
trabalho; e,
III) disciplinar o trabalho
dentro das unidades de privação da liberdade.
Essa perspectiva também pode
ser encontrada no ponto de vista de dois outros elaboradores e comentadores do
Estatuto da Criança e do Adolescente:
Dr. Oris
de Oliveira (1992) afirma: "O artigo regula o trabalho nas entidades
assistenciais que atuam como escolas-produção...." Em outro trecho diz
"vê-se claramente que este art. 68 não regula o trabalho que o adolescente
executa na empresa como empregado comum ou como empregado-aprendiz..."
(pp. 200-202).(2)
Antonio Carlos Gomes da Costa (1992) afirma :
"na verdade, a introdução do instituto do
trabalho educativo no Estatuto da Criança e do Adolescente nos dá base legal
para a organização de escolas-cooperativas, escolas-oficinas,
escolas-empresas, dirigidas a qualquer tipo de
educando e não apenas às crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e
social..."
Em outro trecho, ele explicita sua noção de que trabalho educativo não é qualquer tipo de trabalho:
"na verdade, trata-se de um tipo específico de relação laboral que, sem excluir a possibilidade de produção de
bens ou serviços, subordina essa dimensão ao imperativo do caráter formativo da
atividade, reconhecendo como sua finalidade principal o desenvolvimento pessoal
e social do educando...”(pp. 202-203).(3)
Por intermédio da
argumentação acima, depreende-se que a intenção da lei em momento algum foi a
de criar um terceiro modo de inserção do adolescente no mercado de trabalho,
mais sim de instituir uma terceira modalidade de participação na vida produtiva
do País, ao lado de figuras jurídicas já constituídas do trabalho-aprendiz e do
trabalho regular remunerado.
2. A necessidade de regulamentar o artigo 68 do ECA
/ Justificativa
Nos anos 90, a implementação
do Estatuto da Criança e do Adolescente e as mudanças ocorridas na gestão da
produção e nas relações de trabalho e emprego exigiram tanto o repensar, quanto
a superação dos paradigmas da educação "para o
trabalho" e "pelo trabalho" como forma de socializar
adolescentes para mundo do trabalho. Por um lado, verifica-se uma redução dos
postos de trabalho no mercado de corte tipicamente capitalista e, por outro, a
competição por esses postos está cada vez mais associada à escolaridade. Ou
seja, a escolaridade transformou-se no requisito central das ofertas de emprego
- na competição ganha quem tem melhor nível de educação escolar.
Embora seja um dado
fundamental a ser levado em consideração, a relação entre educação e trabalho é
bem mais complexa do que pode parecer inicialmente. Por isso, vale ressaltar
que um maior nível de escolaridade não é garantia automática de trabalho melhor
e salário mais digno. Da mesma forma, não se pode atestar que seja adequada a
correlação entre o nível de complexidade do posto de trabalho e o nível de
escolaridade exigido - tem sido recorrente, por parte dos empregadores, a
prática do credencialismo.
As pesquisas sobre quesitos
básicos para obtenção de emprego mostram claramente que já não estamos mais em
épocas de "tempos e movimentos" de Charles Chaplin,
ou de métodos taylorista ou fordista
de gerir a produção. Os requisitos agora exigidos para os postos de empregos se
distanciam das habilidades requeridas ao premiado "operário-padrão"
dos anos 70 e aproximam-se mais do trabalhador-cidadão: a primeira exigência é
a escolaridade; a segunda, relacionada à criatividade, ao desembaraço; a
terceira, vinculada a conhecimento e operação dessa tecnologia moderna; quarta,
aí sim, alguma habilidade específica da ocupação para qual se ofereceu vagas.
É com base nesses dois
marcos, o ECA e as mudanças ocorridas na gestão da produção e empregabilidade, que faço um balanço do conjunto de
programas de geração de renda destinados a crianças e adolescentes, dentre os
quais encontram-se muitos daqueles que pleiteiam o cunho de "trabalho
educativo". A crítica que farei a seguir vem sendo por mim elaborada a
partir da minha participação concreta e contatos com esses programas, ao longo
dos meus anos de inserção no trabalho com crianças e adolescentes, e parte dela
já foi apresentada em outros textos de minha autoria. Neste "paper" busco condensar e atualizar alguns de seus
elementos:
a) Não observância das normas legais de ingresso no mundo do trabalho
Muitos programas não
respeitam o marco legal, da Constituição e do ECA, de
idade mínima para ingresso no mundo do trabalho: é possível encontrar crianças
com seis, sete, nove anos envolvidas nas atividades produtivas. Estes dois
diplomas legais afirmam claramente "é proibido qualquer trabalho a menores
de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz." (arts. 7o., XXXII, e 227, parág.
3o. CF; e, 60 do ECA). Por sua vez, muitas atividades
desenvolvidas pelos programas de produção ou oferta de serviços contrariam os
dispositivos que proíbem o trabalho perigoso, penoso e
insalubre a menores de dezoito anos de idade, como por exemplo a
marcenaria e a serralheria.
b) Descompasso com as demandas do mercado consumidor e de trabalho
Os produtos e os serviços
escolhidos pelos programas para serem produzidos ou ofertados não obedecem a
uma lei da necessidade real, ou de demandas concretas do mercado. Na verdade, a
seleção do que se vai produzir obedece muito mais à reprodução de uma cultura
de ofícios e ocupações que são tradicionalmente ensinadas e destinadas aos
pobres, do que embasadas em pesquisas de mercado.
c) Atividades que não comportam
aprendizagem e a inexistência de ensino metódico
As
atividades laborais desenvolvidas pela maioria desses programas não
comportam ensino metódico. Por isso mesmo, não podem ser
consideradas "formação profissional", "preparação"
ou mesmo socialização para o mundo do trabalho. São "ocupações" que
exigem pouca ou nenhuma qualificação profissional, pois estão baseadas no
desenvolvimento de atividades mecânicas e repetitivas. Nos poucos programas
onde são realizadas atividades que comportariam ensino metódico, em geral não
se ensina o conteúdo teórico, ou quando o fazem não é de uma forma sistemática.
Ou seja, não existe sequer um currículo que embase e norteie o processo de
aprendizagem.
d)Visão de trabalho como
"controle social" e fator de reprodução da pobreza
A visão
subjacente ao desenvolvimento das atividades laborais deixa
clara a utilização do trabalho como controle social e/ou
como função disciplinadora na socialização da criança: obediência de regras e
horários para cada atividade específica. A atitude da maioria desses programas
é bastante clara: é preciso ocupar o tempo das crianças porque o
"ócio" é o caminho da delinqüência, reafirmando a estigmatizada
relação entre pobreza e marginalidade. As crianças das classes médias e alta
são "ocupadas" com atividades extracurriculares de complementação da
sua formação social e intelectual (aulas de idiomas, programas de esporte etc),
já as crianças e adolescentes das camadas populares devem manter-se ocupados e
complementar sua formação através do trabalho de baixa remuneração, baixa
qualificação (pouco conteúdo de aprendizagem real) e, em geral, bastante
prejudicial ao seu desenvolvimento pessoal e social.
As atividades escolhidas
são, em geral, as manuais, que terminam por confirmar que aos pobres o natural
é desenvolver as atividades manuais e não intelectuais. O máximo que se
consegue é um "treinamento" para o desenvolvimento de algumas
habilidades motoras. Assim, as crianças não podem aprender outra perspectiva de
trabalho, como instrumento de realização pessoal e social, como fonte de prazer
e de realização humana.
e) Formação para a subalternidade e
não para tornar-se um trabalhador-cidadão
Muitos programas são
dirigidos por pessoas "filantrópicas", que são lideranças religiosas
ou pessoas carismáticas. Toda estrutura da organização gira em torno delas,
fazendo com que a finalidade última seja o prazer ou a consciência tranqüila do
dirigente. Esse personalismo e centralismo não permitem que as crianças tenham
um aprendizado de participação efetiva na tomada de decisões. Sob o título de
participação das crianças, o que ocorre na verdade é que a elas compete
executar as tarefas e as decisões do adultos.
f) Pouco ou nenhum aprendizado de
participação nos processos de tomada de decisão
As pessoas que trabalham nos
projetos são voluntárias, poucas são as entidades que podem manter um quadro de
profissionais melhor qualificados. E, por outro lado, a
relação não é educador-educando e sim de paternalismo, clientelismo e
benevolência, que reforçam a subalternidade desses segmentos de crianças
pobres.
g) Informação assistemática sobre direitos
trabalhistas e de cidadania
Um significativo número de
programas desenvolve alguma atividade no sentido de discutir os direitos da
criança e do adolescente. Contudo, a capacitação em direitos trabalhistas e de
cidadania é completamente informal, incompleta e assistemática.
Muitos adolescentes tomam conhecimento de seus direitos como trabalhador
através do contato com outros trabalhadores, e não através do seu programa ou
do sindicato de sua categoria.
h) Dificuldade de criar uma cultura
de trabalhador que exige seus direitos: formação para aceitação de formas precarizadas de trabalho
Os artigos produzidos são,
em geral, de baixa qualidade e de pouco valor competitivo no mercado. Vendidos
em feiras ou bazares da "caridade", eles não geram valor por sua
utilidade. Por sua vez, as crianças quase nunca recebem pelo que produziram, ou
quando recebem, são quantias mais simbólicas do que efetivas. A maior parte da
quantia auferida com a venda dos bens e serviços é investida na manutenção da
própria instituição. Não que seja para sua auto-sustentação, mas para
manutenção mínima de precárias instalações. Assim as crianças não aprendem um
componente importante na sua socialização como trabalhador: o valor monetário
de sua força de trabalho e administração dos recursos recebidos segundo suas
necessidades.
i) Dificuldade de adequação à
política pública do município e ao reordenamento
institucional
Os programas têm
dificuldades em enquadrar-se em uma política pública do município. Muitos deles
ocuparam os espaços destinados à sociedade civil nos Conselhos dos Direitos da
Criança e do Adolescente para fazer uso privado: estão de olho mesmo é na
distribuição dos recursos. Com a criação dos Conselhos de Assistência, que têm
entre suas atribuições definir a aplicação de recursos para programas de
assistência à infância, esses atores vêm secundarizando
sua participação nos Conselhos dos Direitos. Ainda assim, a maioria
deles não consegue ultrapassar a perspectiva de uma política pública centrada
no apoio a projetos/programas atomizados,
para uma dimensão de política pública que garanta os direitos de cidadania.
Até a instituição do ECA, se pensava que somente as instituições do Estado
tinham dificuldades de ser reordenadas segundo uma política de atendimento aos
direitos da criança. Contudo, hoje, observa-se que muitos Conselhos dos
Direitos enfrentam dificuldades em traçar a política municipal de atendimento e
articular a rede municipal de serviços em função da falta de interesse e mesmo
resistência desses programas, que compõem o espectro caritativista
e filantrópico que tradicionalmente domina a área de assistência à infância e
adolescência, em ser reordenados: por exemplo, em um
dado município onde existam várias marcenarias funcionando precariamente, seria
conveniente, depois de estudada a demanda, equipar melhor algumas delas e
outras se dedicarem a outros serviços sem oferta. No entanto muitas dessas
organizações oferecem resistência às readequações
necessárias.
Os fins filantrópicos de
muitos programas dificultam sua fiscalização. Com certeza um grande contigente deles não cumpre o ECA
em nome de estarem "beneficiando as criancinhas" e a sanção de
organizações com essa finalidade certamente causaria a maior comoção na opinião
pública, e, é lógico, deixaria ainda mais desamparadas as crianças e
adolescentes.
j) Formação insuficiente para o
jovem estabelecer-se como autônomo ou microempresa
Em tempos de crise de
emprego, uma contribuição relevante dessas organizações seria a formação para o
exercício de ofícios autônomos. Contudo, a precariedade geral nos conteúdos e
métodos de gestão da produção de bens e serviços raramente possibilita ao
indivíduo estabelecer-se como trabalhador autônomo: a formação técnica é
deficiente; aspectos tais como análise de tendências e demandas do mercado, e
instruções de como criar e gerenciar um pequeno negócio, nunca são considerados
nos currículos; e, por sua vez, a remuneração que adolescentes recebem nesses
programas sociais nunca é suficiente para produzir o capital de giro inicial
mínimo para o estabelecimento da iniciativa.
Embora as críticas acima
sejam dirigidas àqueles programas destinados à geração de renda alternativa
através de atividades produtivas dos setores primário e secundário, elas se
aplicam também à maioria das Entidades Sociais Particulares (ESPs) envolvidas na oferta de serviços ou colocação de
adolescentes no mercado de trabalho.
Algumas intervenções têm
sentido meramente disciplinador da mão-de-obra, por exemplo, associações dos
engraxates, clube dos guias-mirins, uniformização dos jornaleiros etc. Muitas
delas terminam por "incentivar" o trabalho de crianças e adolescentes
nas ruas e, discussões mais recentes no campo da medicina do
trabalho sobre atividades laborais nas ruas das grandes metrópoles, vêm
demonstrando que a exposição continuada das crianças a ruídos e movimento
excessivo podem provocar perda da audição e estresse. Assim, ocupações como
vendedor ambulante e guarda-mirim, envolvidas em
atividades de trânsito e organização de estacionamento podem, a longo prazo, trazer danos sérios à saúde das crianças.
Sobre a maioria das
entidades de colocação de crianças no mercado de trabalho pesam denúncias
graves: triangulação proibida de mão-de-obra; inviabilização
de acesso aos direitos coletivos (se o vínculo empregatício do adolescente é
com uma categoria profissional diferente da qual ele realmente desempenha suas
funções), e expropriação do mísero salário que recebem os adolescentes. Com
relação ao último aspecto, alguns programas exigem um percentual do salário dos
adolescentes trabalhadores para manutenção da entidade que varia de 10 a 30%.
Numa estimativa baseada no
conhecimento prático do campo, pode-se dizer que mais de 2/3 dos programas
sociais que buscam a relação educação-trabalho e geração de renda se enquadram
neste perfil. Realmente, não se pode enquadrar essa imensa quantidade de
entidades sociais particulares no conceito moderno de Organizações Não
Governamentais, tampouco denominar as ações por elas desenvolvidas de trabalho
educativo, preparação para o mundo do trabalho e nem mesmo fornecedor de uma
estratégia de sobrevivência no mercado informal de trabalho. Pois, como vimos
anteriormente, os principais ingredientes para a formação de um
trabalhador-cidadão não estão presentes, ou estão de forma equivocada, negativa
e fragmentária, na proposta pedagógica da maioria desses programas: a concepção de trabalho e valor monetário da remuneração reforçam
a subalternidade; a relação entre saber e fazer é dicotomizada,
observando predomínio do último sobre o primeiro; os métodos e processos de
produção são rudimentares; não há estímulo à mobilidade ocupacional e as
relações trabalhistas são informais.
Tampouco a socialização
realizada apresenta um modelo de disciplinamento da
força de trabalho e organização de tempo pedagogicamente
valorosos: regras, normas, horários, tudo é tão improvisado e informal
que as relações sequer imitam relações de trabalho reais.
Balanço geral: verificou-se
um baixo nível de impacto desses programas na quebra do ciclo de reprodução da
pobreza. Buscando ainda assim encontrar aspectos positivos, através de um olhar
dialético, constata-se que esses programas contribuíram na construção de
"arranjos de subsistência" que permitiram "salvar" algumas
vidas da indigência e da morte. Também é possível afirmar que essa atuação foi
uma expressão de solidariedade, ainda que num marco assistencial e
filantrópico, com segmentos pauperizados, excluídos
até mesmo pelos programas de assistência social governamentais. E é bem verdade
que algumas poucas crianças e adolescentes se valeram dessa rede social como
motor propulsor (potencializador de suas habilidades)
para uma mobilidade profissional e social - o que, infelizmente não ocorreu com
a maioria dos participantes desses programas. Contudo, ao
mesmo tempo que contribuíram para os "arranjos de
subsistência" e como ação solidária com os mais pobres, eles serviram de
amortecedores da pressão para a melhoria do sistema de qualificação profissional
mais democrático e abrangente (Oliveira, 1994).(4)
É preciso ressaltar,
contudo, que nesse processo surgiram programas que buscaram superar os
paradigmas assistenciais tradicionais dos programas de geração de renda e
trabalho. São programas "portadores de mudança" e se enquadram nos
princípios educativos estabelecidos pelo ECA. O tipo
de trabalho que realizam está mais próximo do que hoje em dia é desempenhado
por uma organização não governamental, e muitas dessas organizações reivindicam
compor o chamado terceiro setor da economia. Elas perseguem a meta de oferecer
serviço qualificado a seus usuários:
I) são contra a idéia
implícita, mais recorrente, da oferta de serviço pobre para os pobres;
II) e, ao invés dos
voluntários bem intencionados mas pouco qualificados, buscam remunerar
profissionais de diversas áreas e os desafiam a utilizar seu saber na
construção de uma nova metodologia de atuar com esse segmento da população. Por
sua vez, aquelas que realizam também a defesa jurídico-social de crianças e
adolescentes ameaçados ou violados em seus direitos buscam também constituir um
corpo de pessoas cujo trabalho é de natureza voluntária e não remunerada.
Contudo, a concepção da missão é outra: eles são ativistas dos direitos das
crianças e adolescentes e atuam no campo da exigibilidade desses direitos.
Para essas organizações,
crianças e adolescentes em situação de "risco pessoal e social" são
seres em condição peculiar de desenvolvimento, excluídas de seus direitos
fundamentais. Os programas e serviços a elas destinados não são atos de
benevolência, mas sim um direitos delas. Às crianças é
possibilitado o direito de ser criança e aos adolescentes o direito à formação
profissional.
A participação das crianças
e adolescentes, tanto no processo de decisão quanto na execução das ações, é um
exercício permanente e efetivo. As atividades laborais
têm utilidade real, não são somente destinadas a ocupar o tempo ocioso das
crianças e adolescentes e obedecem à demanda do mercado consumidor. Seus
pressupostos pedagógicos, anteriormente afiliados aos princípios pedagógicos de
"educação pelo trabalho" (Makarenko, Freneit, Pistrak) e da educação
popular, hoje encontram ancoradouro na formação profissional para o
adolescente-cidadão, sem contudo participarem da lógica neoliberal do mercado
globalizado e do sistema mundial - a formação ministrada está baseada na
recriação de uma ética de solidariedade e na exigibilidade de direitos sociais,
duramente conquistados e em franca via de precarização.
No campo das políticas de
eliminação do trabalho infantil e proteção ao adolescente trabalhador, muitos
podem ser enquadrados na categoria de programas dedicados a transformar o trabalho de, situação perigosa, penosa e insalubre, em atividade
mais adequada à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, como
preconizam as novas orientações da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Buscam também compatibilizar o trabalho e a escolarização, pois acreditam que a
melhor profissionalização no mundo globalizado e tecnológico é a conclusão de
pelo menos o ensino fundamental. Também eles comungam da compreensão de que não
haverá emprego para todos e que é preciso continuar o esforço de geração de
formas alternativas de trabalho e renda, agora não mais na perspectiva assistencialista
e paternalista, mas sim numa dimensão cidadã.
Contudo, muitos dos
programas adeptos à visão mais crítica em relação ao trabalho, e que podem ser enquadrados na categoria educativo, não escampam a um dilema
de natureza estrutural entre formação técnico-profissional e produção/produtividade. Quando se dedicam mais à formação,
a produção baixa em volume e em qualidade; quando a ênfase maior é a produção,
o ensino metódico e sistemático, vinculado a aspectos teóricos e práticos,
desaparece da agenda do programa. Alguns, perseguindo a meta da
auto-sustentação, terminaram por se transformar em microempresas, que quase
sempre empregam adolescentes sem proteção aos seus direitos, inclusive com
remunerações irrisórias, reproduzindo as relações empregatícias precarizadas. Os programas que persistem na linha da
formação profissional não conseguem recursos para a manutenção da instituição e
os adolescentes que necessitam de recursos para sobrevivência não podem
concluir a capacitação profissional.
Ainda assim, enfrentando
dilemas como o acima mencionado, é este tipo de programa que possui os
paradigmas que inspiraram a instituição da figura jurídica do trabalho
educativo no ECA e que devem fornecer parâmetro para a
regulamentação do Artigo 68, buscando mecanismos legais para superar a
continuidade histórica dos programas de geração de renda e trabalho que adotam
a perspectiva do adestramento da mão-de-obra e da reprodução do ciclo da
pobreza.
3. Aspectos a ser regulamentados
Advoga-se hoje a regulamentação
do trabalho educativo não como medida isolada para incorporar adolescentes na
vida produtiva do País, mas sim no marco da implementação de políticas públicas
de acordo com o prescrito pelo ECA.
Tampouco essa defesa deve
ser confundida com as medidas embutidas na perspectiva neoliberal de
globalização da economia: no campo das estratégias, a adoção do trabalho
educativo a adolescentes deve estar intimamente articulada, tanto com a luta
contra a precarização das relações de trabalho,
quanto com a gestão por novas formas de geração de emprego e renda para as
famílias desses jovens.
É preciso ressaltar também
que o ECA, ao intitular seu capítulo dedicado ao
trabalho - "direito à profissionalização e à proteção no trabalho" -,
ao invés de consagrar o direito ao trabalho, universalizou o direito à
profissionalização. Uma interpretação possível a partir de uma leitura mais
completa dessa legislação é que a adolescência, mais que tudo, é um tempo
dedicado à formação integral. Por essa razão, a proposta de normatização
da figura jurídica 'trabalho educativo' não significa colocá-la como uma
política prioritária para a adolescência. Para estes segmentos, a prioridade
das prioridades deve ser a formação unitária (educação escolar e a formação técnico-profissional conjugadas).
O Trabalho educativo só poderá ser realizado entre 14 e 18 anos.
Como princípio, acredito que
a idade mínima deve ser 14 anos, pelas seguintes razões: primeiro, pela
premissa recorrente de que a melhor profissionalização é em realidade a
conclusão do ensino fundamental, e a idade estimada para ela é aos 14 anos - a
definição da idade nesse patamar contribuirá para fortalecer as estratégias de
regresso, permanência e sucesso escolar. Segundo, para compatibilizar essa
norma com uma antiga reivindicação do movimento de defesa da criança, agora
atendida pela Presidência da República, que enviou ao Congresso Nacional
Proposta de Emenda Constitucional retirando a expressão
"salvo na condição de aprendiz" do Artigo 7º, Inciso XXXIII,
que proíbe o trabalho para pessoas menores de 14 anos.
O estabelecimento de um
limite máximo é defensável na perspectiva de evitar que estas organizações
sejam utilizadas no escopo da precarização das formas
de trabalho. A partir dos 18 anos, o jovem pode assumir praticamente a maioria
dos atos legais da vida civil.
É de fundamental importância
que o ato normativo defina, conceitue ou caracterize o que é Trabalho
Educativo. Abaixo busquei reunir, a partir do debate social a
cerca do tema, alguns elementos que considero importantes para a
consecução deste objetivo.
O trabalho educativo tem por
finalidade geral o desenvolvimento pessoal e social do educando. É o trabalho
onde as exigências pedagógicas prevalecem sobre o aspecto produtivo. Isto
significa dizer concretamente que o aspecto educacional deve ser sistemático, e
que as atividades laborais deverão ser estruturadas de modo que o número de
horas de atividades orientadas para a educação seja maior do que aquelas
voltadas para a produção. Segundo o ECA, as atividades
educacionais devem assegurar ao adolescente que delas participem condições de
capacitação para o exercício de atividade regular remunerada.
O trabalho educativo não
substitui a escolarização básica e nem a formação técnico-profissional escolar.
Ao contrário, o desenvolvimento de atividades laborais
"educativas" devem, mais do que ser compatíveis com a freqüência à
escola, contribuir para que o adolescente tenha permanência e sucesso escolar.
As propostas pedagógica e
metodológica devem, efetivamente, envolver a participação dos adolescentes em
todas a fases do processo produtivo-educativo.
A remuneração recebida não desfigura o caráter educativo. Costa (1992) argumenta que, no contexto do trabalho educativo, "a remuneração recebida pelo educando, bem como sua participação, em dinheiro ou em espécie, no produto de seu trabalho, longe de desfigurar, vem, ao contrário, reforçar o seu caráter educativo, uma vez que introduz o educando na gestão efetiva e prática do resultado da sua atividade laboral" (p.203). Oliveira (1992) adverte também que a prefixação de remuneração de quantias desvinculadas dos resultados concretos pode colocar as entidades em difícil situação econômica e causar frustrações, "o melhor critério é o análogo ao sistema cooperativo, porque envolve o adolescente em todo o processo produtivo e o benefício das sobras aparece como esforço conjunto distribuído na proporção da participação no trabalho..." (p.201)5
Por intermédio da evolução
das idéias que compuseram a visão de Trabalho Educativo, expressa no Artigo 68 do ECA, constata-se que a inspiração básica foram as
atividades laborais em formas associativistas ou cooperativadas de produção.
Qualquer atividade laboral pode ser categorizada como trabalho educativo? É
claro que não. Primeiro, há uma proibição legal ao trabalho de pessoas menores
de 18 anos em atividades produtivas perigosas, penosas e insalubres (esta restrição
é universal); e, segundo, para serem educativas, as atividades laborais devem
comportar algum nível de ensino ou formação metódica. A normatização
do trabalho educativo deve ser acompanhada da revisão de normas e portarias que
definem tanto os níveis de periculosidade quanto o
potencial de aprendizagem.
Uma aplicação rigorosa deste
dois critérios excluiria da categoria Trabalho Educativo um amplo conjunto de
atividades tradicionalmente oferecidas às crianças e adolescentes por estas
entidades sociais: guarda-mirim de trânsito ou
estacionamento, empacotador, frentista de supermercado, etc.
Por sua vez, a discussão
sobre os tipos de espaços sociais onde o trabalho educativo pode ocorrer
apresenta outros critérios para definir as modalidades mais apropriadas de
trabalho que podem ter dimensão educativa. Vejo inconveniência, e por que não
dizer incompatibilidade, da sua existência em dois tipos de organizações: na
cooperativa de mão-de-obra e na empresa.
As cooperativas de
mão-de-obra vêm sendo duramente questionadas pelo seu extenso uso, marcadamente
no setor agrícola, como mecanismo de precarização das
relações trabalhistas, pelos empregadores. Este é o argumento político. Existe
também um argumento jurídico: o processo de subordinação dessas cooperativas ao
comando de empresas é ilegal.
A possibilidade do trabalho educativo ser realizado em empresas também deve
ser descartada. Oliveira (1992) se posiciona contrário a essa possibilidade: os
processos produtivos de uma empresa e de uma escola-produção são radicalmente
diferentes, porque na empresa visa-se aos lucros em condições de concorrência,
ao passo que, na escola-produção, a preocupação fundamental é a transmissão de
uma qualificação profissional. Há de se ressaltar, também, que a remuneração na
empresa é uma contraprestação obrigatória pelo serviço prestado e não pode ter
caráter aleatório. A remuneração nas escolas-produção pode não acontecer,
embora suas inexistência enfraqueça a possibilidade de adolescentes nela
permanecerem sem geração de renda" (p. 201).
Por outro lado, a existência
de um grande número de entidades sociais cujo trabalho desenvolvido com
crianças e adolescentes tornou-se irregular com o advento do
ECA, tem levado setores interessados na regularização dessas
instituições a proporem soluções alternativas visando adequá-las ao ECA, que
merecem maior aprofundamento.
A idéia de convencer e
oferecer apoio a essas entidades sociais para se adequarem ao Estatuto e aos
tempos modernos é uma estratégia da qual partilho, como sendo uma saída
interessante no sentido de otimizar uma imensa rede de serviços destinados a
crianças e adolescentes, que foi construída no País nas últimas décadas.
Contudo, as exigências de
certos setores do Ministério Público, do Trabalho e das delegacias regionais de
fiscalização do Ministério do Trabalho na direção de solucionar as
irregularidades dessas organizações, de um lado, e a pressão que muitas dessas
entidades sociais vêm exercendo sobre o poder Executivo no sentido de legalizar
suas atividades, têm levado setores do Executivo e do próprio governo a
produzirem propostas de cunho pragmático, as quais acredito que devem ser
submetidas a um processo de discussão mais amplo, com os diversos setores que
compõem o movimento social em defesa dos direitos da criança e do adolescente.
Essas propostas têm vários
aspectos polêmicos, entre os quais destaco aqui apenas: o primeiro é uma visão,
pouco sólida e até certo ponto ingênua, de transformar as atividades dessas
organizações, do estilo guarda-mirim ou patrulheiros,
em trabalho educativo (ou profissionalizante) pela inclusão de educadores em
seus quadros de pessoal. O segundo, é a concessão para a realização de trabalho
educativo nas empresas, com a ressalva de que seja mediado por uma dessas
organizações.
Creio ser importante discutir esses dois aspectos das propostas à luz, tanto da prática e da cultura institucional dessas organizações, quanto de experiências de formação profissional na própria empresa. Como já disse, pela concepção de trabalho que muitas delas têm e pelo tipo de atividade laboral que é oferecida ao jovem, sua intervenção é no sentido de ocupar o tempo do adolescente com trabalho, para evitar que ele se transforme em marginal. Elas disciplinam, adestram e ofertam a mão-de-obra de crianças e adolescentes pobres, estimulando a exploração da força de trabalho sob a égide da benevolência. Transformar sua cultura do caritativismo e da filantropia em cultura de cidadania não será uma missão nada fácil.
Por outro lado, o estudo
empírico de experiências de natureza similar no campo da capacitação
profissional nas empresas também desestimula a possibilidade de efetuar o
trabalho educativo nesse tipo de organização. O balanço, recorrente, sobre as
experiências de Aprendizagem Metódica na própria Empresa, traz elementos para
essa recusa: adolescentes colocados em atividades laborais
que não comportam aprendizagem, ausência efetiva de proposta ou currículo
educativo, ausência de acompanhamento educacional durante o período de
aprendizagem.
Busco as análises de
Oliveira (1994) em respaldo a essa avaliação. Ele afirma que o abuso mais comum
da aprendizagem empresária é "rubricar" como aprendizagem o exercício
de ofícios que não são passíveis de aprendizagem (ele cita como exemplos
estafeta, office - boy, empacotador etc) ou a
execução de ofícios que, embora comportem ensino metódico, os adolescentes não
recebem acompanhamento sistemático de alguém que exerça a função de mestre.
Ainda, segundo ele, estas disfunções na aplicação da norma
torna a aprendizagem "um expediente para obter mão-de-obra mais
barata..."
Assim, de um lado estaríamos
entregando a tarefa de desenvolver trabalho educativo nas mãos daqueles que
sempre educaram crianças e adolescentes pobres para a subalternidade; e de
outro, acreditando que os locais que nunca foram referências educacionais (as
empresas), momentaneamente, tornarem-se locais apropriados para o trabalho
educativo.
Patamares mínimos de conteúdos
programáticos para caracterizar o trabalho educativo
A normatização
do trabalho educativo deverá adotar um patamar mínimo de conteúdo programático
para caracterizar o trabalho como educativo, constituído em dois blocos: um,
formação para ser um trabalhador-cidadão e, um segundo bloco, referente aos
aspectos técnicos da atividade laboral realizada.
Com base nestes patamares
mínimos, cada entidade elaborará um "plano pedagógico do trabalho
educativo" ou "currículo do trabalho educativo", como se queira
designar. Este plano deverá ser apreciado/aprovado
pelo Conselho de Educação e com o referendo do Conselho dos Direitos.
Para organizações que buscam
inscrição no Conselho dos Direitos para funcionamento, o
"plano" será exigido como requisito fundamental para o
cadastramento. Quanto às entidades já existentes, dever-se-á fixar sua
elaboração, apresentação e apreciação por parte dos Conselhos de Educação e dos
Direitos da Criança.
Especificação de sanções para a
inobservância à legislação e dos órgãos de fiscalização
A norma também deverá especificar sanções para a inobservância à legislação e especificar os órgãos de fiscalização.
4. Forma de regulamentação
Dr. Oris
de Oliveira aventa a possibilidade estratégica dessa normatização
ser um Decreto da Presidência da República. A idéia parece plausível sobretudo
porque um Decreto tem força de lei e é, ao mesmo tempo, mais flexível para
adaptar os percalços da fase de implementação inicial. Mais tarde ele poderá se
tornar uma norma do Congresso Nacional.
Contudo, sugiro que o
Convênio INESC/UNICEF ofereça ao Conselho Nacional
dos Direitos da Criança subsídios para que seus membros elaborem um anteprojeto
de normas gerais a ser aprovado pelo CONANDA e de Decreto Presidencial. Visando
à produção de normas fortes e socialmente consensiadas,
sugere-se que o CONANDA estabeleça um processo de debate e consulta nacional
aos conselhos dos Direitos, de Educação e Assistência Social. Após colhidas as sugestões, delibere sobre essas normas
gerais para o Trabalho Educativo e sugira ao Presidente a instituição do
Decreto.
5. Distinções entre trabalho educativo, aprendizagem(1) e estágio profissionalizante
Embora a figura jurídica
'trabalho educativo' incorpore aspectos do sistema de 'aprendizagem', ela se
diferencia, em muito, tanto desse sistema quanto do "estágio
profissionalizante".
Do sistema de aprendizagem,
o trabalho educativo absorve a exigência de ensino metódico. Ao mesmo tempo
este se diferencia tanto da aprendizagem quanto do estágio profissionalizante,
no que se refere ao modo de inserção na estrutura produtiva, natureza da
organização onde se realiza a aprendizagem e forma de remuneração.
No Estatuto, a aprendizagem
é concebida como formação técnico-profissional ministrada segundo as diretrizes
e bases da educação em vigor. Ela se insere no campo da educação permanente
(unidade entre educação e formação técnico-profissional), sendo o momento
inicial da formação para o exercício de uma profissão. Oliveira (1994) a define
da seguinte maneira: "A aprendizagem é, pois, a fase primeira de um processo
educacional (formação técnico-profissional) alternada (conjugam-se o ensino
teórico e o prático), metódica (operações ordenadas em conformidade com um
programa em que se passa do menos para o mais complexo), sob orientação de um
responsável (pessoa física ou jurídica) em ambiente adequado (condições
objetivas: pessoal docente, aparelhagem, equipamento)" (p.92).
A aprendizagem deve ser
desenvolvida em duas partes: uma parte num estabelecimento de formação
técnico-profissional e outra na empresa. A primeira parte, em geral, ocorre
numa dessas instituições do sistema "S" de capacitação profissional
(SENAI, SENAC etc) ou em serviço por elas credenciado. Quando o ensino
técnico-profissional ocorre nas "escolas-oficinas"
de uma das organizações mencionadas, após ou concomitantemente, o aluno é
levado a realizar aprendizagem prática (semelhante a um estágio) nas empresas.
A legislação brasileira
faculta a realização da aprendizagem somente na empresa, desde que se cumpram
alguns quesitos relacionados ao potencial educativo do ofício (deve ser
passível de formação metódica) e também a maneira e as condições de realização
do ensino (jornada reduzida, necessidade de instrutor etc). A Aprendizagem
Metódica no Próprio Emprego (AMPE), como é denominada, deve contar com a supervisão
dos serviços acima mencionados.
Nas duas modalidades os
adolescentes são inseridos no mercado de trabalho, como aprendizes, num
contrato de trabalho que deve assegurar o cumprimento de direitos
previdenciários e trabalhistas(5) , porém com cláusulas
específicas: o contrato tem duração determinada, o empregado aprendiz goza de
estabilidade provisória e o salário pode sofrer uma redução. Esta redução é
legalmente realizada a título de contraprestação do empregado pelo recebimento
da formação técnico-profissional. O valor da remuneração nunca deve ser
inferior a 1/2 (meio) salário mínimo legal durante a primeira metade, e pelo
menos, 2/3 (dois terços) na segunda metade do aprendizado.
O "estágio" profissionalizante obrigatório é ainda mais identificado com a formação escolar. Ele é uma complementação da formação técnico-profissional escolar, uma fase da aprendizagem realizada na empresa (hoje ela também pode ser realizada em instituições públicas ou organizações não governamentais, dependendo da profissão escolhida). A definição de carga horária, duração e jornada de estágio curricular fica a cargo da instituição de ensino. A relação que se cria com a organização que recebe o estagiário não é de emprego. Não existe limite de idade mínima superior para sua realização. A legislação prevê a remuneração através de salário ou 'bolsa-estágio' facultativa por parte da instituição que aceita o estudante-aprendiz.
6. Considerações finais
Como então fazer avançar o processo de adequação desse conjunto de organizações que atuam com crianças e adolescentes desenvolvendo atividades laborais:
Lugar de criança é na escola: ênfase
no desenvolvimento de atividades extracurriculares em complementação à escola
Uma proposta interessante de
reordenamento institucional dessas organizações é
convencer as entidades que ainda estejam envolvendo crianças/adolescentes
abaixo de 14 anos em atividades laborais, a reorientar sua proposta pedagógica
no sentido de se tornarem um programa satélite da escola formal. Além de
trabalhar as dificuldades do ensino-aprendizagem, esses programas poderiam
desenvolver um conjunto de atividades lúdicas, culturais, esportivas, oficinas
de educação em direitos da criança/adolescente e
outras atividades de socialização das crianças para a vida-cidadã, incluindo
neste conjunto de ações, noções gerais sobre o mundo do trabalho.
Aquelas entidades sociais
particulares que trabalham com a inserção de adolescentes no mercado de
trabalho deverão ser apoiadas a redefinir sua proposta metodológica em direção
à constituição de centros populares de formação-técnico profissionais, que
sejam competentes e profissionalizem verdadeiramente esses jovens.
Para que isso ocorra, essas entidade deveriam eleger ofícios passíveis de
aprendizagem e mais adequados às demandas do mercado globalizado; definir e
implementar seus currículos de ensino; e aperfeiçoar seus sistemas de inserção
de adolescentes-trabalhadores no mercado de trabalho,
tanto na condição de aprendiz, como de empregado regular.
Para inserir adolescentes na
condição de trabalhador-aprendiz, a legislação trabalhista deverá ser revisada
e atualizada no sentido de quebrar o monopólio do sistema "S" nessa
modalidade de inserção. Em outras palavras, será importante democratizar a
formação técnico-profissional e popularizar o sistema de aprendizagem.(2)
Entidades sociais
particulares envolvidas em ações de geração de renda devem ser estimuladas a
transformar suas atividades ocupacionais para adolescentes em 'trabalho
educativo', segundo a regulamentação aqui proposta.
Espera-se que as reflexões
aqui contidas possam contribuir com os legisladores na tarefa de normatizar a vida social do País. Em tempos de crise,
quando as decisões parecem cada vez mais complicadas, é muito fácil a escolha recair em caminhos que se nos apresentam
pragmaticamente como soluções mágicas. Muitas vezes essas soluções podem
significar "mudar para continuar do jeito que está". Até a aprovação
do Estatuto da Criança e do Adolescente, a produção da legislação referente ao
trabalho de crianças e adolescentes sempre acompanhou os ciclos de
desenvolvimento do capital: momento de expansão, flexibiliza-se a idade para
ingresso no mercado e os direitos previdenciários e trabalhistas; momento de
retração, concede-se mais direitos sociais a esses trabalhadores-mirins.
O ECA rompeu
essa tradição de uma legislação subordinada a um modelo de desenvolvimento
econômico. Seu foco é o desenvolvimento social integral de
crianças e adolescentes. Contudo, as forças conservadoras insistem na
manutenção do "status quo": facilitar a
exploração da dócil mão-de-obra dos jovens pobres.
Desta feita, não se pode
dizer que são os empresários, como uma categoria homogênea, os que querem
legalizar o trabalho de adolescentes nas condições nas quais ele vem sendo
desenvolvido nas chamadas entidades sociais particulares. Há uma parcela do
empresariado, mais moderna, que defende ajustes econômicos com "feições
mais humanas"; padrões de formação técnico-profissional de mais alta
qualidade e o direito de crianças e adolescentes pobres de receber sua formação
intelectual e social na escola.
Os partidários dessa legalização
são uma parcela das entidades sociais particulares, de corte assistencialista e
paternalista que, movidos por interesses corporativistas, ideologicamente
transforma o "seu" pleito em reivindicação legítima e verdadeira das
pobres crianças com as quais trabalham. Assim, na sua perspectiva, o mundo se
divide em dois: quem está do lado delas, está a favor das crianças e quer
ajudá-las; quem está contra a sua posição, não tem compromisso social e humano
com esses pobres seres desassistidos. E é pela via de
uma formação subalterna, que essa parcela de entidades sociais oferece aos
pobres, que a ela alinham-se, um modelo retrógrado de desenvolvimento. Assim,
hoje, da mais alta das conveniências de seus interesses corporativos, elas são
porta-vozes diretas de uma parcela arcaica do empresariado nacional.
Por isso, dos legisladores é esperado o discernimento entre os projetos que alimentam a reprodução do ciclo da pobreza e da subalternidade, e aqueles portadores de uma mudança rumo à construção de uma cidadania emancipadora de crianças e adolescentes.
NOTAS:
1.
Nota do
conselho editorial do acervo operacional dos direitos da criança e do
adolescente: este artigo foi escrito antes da edição da Lei 10.097, de
19.12.2000, que alterou os artigos da
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)
relativos à aprendizagem.
2. Nota sobre o autor :
Benedito Rodrigues dos
Santos
Professor da Universidade
Católica de Goiás (UCG);
membro do Centro de Estudo, Pesquisa e Extensão Aldeia Juvenil;
consultor do Unicef;
coordenador da Seção Brasileira da Defesa da Criança –
Internacional (DCI/Brasil). Foi também membro do
Grupo de Redação do Estatuto da Criança e do Adolescente.