A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA A CRIANÇA *
Graça Pizá de Menezes
Resumo: A autora discorre sobre a problemática da violência sexual
praticada contra crianças e adolescentes a partir das concepções teóricas
freudianas, enfatizando a necessidade da instituição psicanalítica desenvolver
métodos precisos e adequados para a intervenção clínica nesta realidade.
Finalizando, questiona o papel da justiça diante da violência contra este
contingente populacional, indagando sobre as medidas judiciais aplicáveis.
O interesse deste trabalho é trazer
algumas concepções psicanalíticas e fragmentos clínicos para pensarmos a
extensão e a gravidade do problema produzido nas relações quase sempre
incestuosas onde encontramos a real situação da violência sexual contra a
criança.
Esta violência se apresenta no
universo familiar como aquela que rompe com os limites necessários para a
constituição do sujeito.
No espaço doméstico, onde a função do
pai e a função da mãe sofrem gigantescas mudanças, onde cada vez mais perdem
suas posições enquanto referenciais afetivos seguros para seus filhos, neste
contexto familiar encontramos enclausuradas, crianças que são diariamente
invadidas e perturbadas na sua sexualidade.
São bombardeios que afetam toda sua
vida libidinal, através de práticas diárias de sedução imposta, seja pelo pai,
padrasto, mãe, irmão, tio, ou vizinho.
Encontramos a criança encurralada
entre o medo, a solidão e o silêncio que a envolve um jogo forçado ou camuflado
que inicialmente tem aparência de um jogo lúdico, mas são carícias
absolutamente sedutoras podendo ir até a práticas sodomizadas ou a relação
sexual com o adulto.
Como podemos pensar esta questão a
partir das concepções teóricas freudianas ?
Do ponto de vista teórico, podemos
fazer alguns encaminhamentos:
1º A idéia freudiana sobre a
sexualidade infantil. A sexualidade a partir de Freud vai incluir um movimento
completamente diferenciado. O que ele descobre é que a criança possui uma
sexualidade e uma sexualidade intensa. Esta sedução infantil se torna um
dispositivo imaginário pelo qual o desejo do sujeito se conecta com a
sexualidade. A fantasia é a tentativa do sujeito de conjugar ao desejo o objeto
enquanto real Freud batiza a sexualidade infantil de auto-erótica e mostra como
a criança se satisfaz com seu corpo através de suas zonas erógenas. Nesta
economia do prazer infantil a presença do adulto é importante. A função da mãe
que dá o seio, que limpa as fezes ou simplesmente olha e escuta não invalida o
prazer sentido por ela e pela criança.
A criança responde ao desejo
sublimado da mãe por seu próprio erotismo. Mas se uma atitude perversa da mãe
fixar um prazer exagerado nestes cuidados, cria para a criança uma situação
extremamente traumática.
2º O simples fato de estar vivo,
coloca para este corpo pulsional encontros que podem ser facilitadores ou
desastrosos. Este prazer infantil pode seguir qualquer caminho, qualquer
escolha. São os destinos pulsionais que Freud denominou de perversão polimorfa
infantil.
3º Em se tratando de Ocidente, de
família judaico-cristã, vai surgir valores que serão transmitidos para a
criança e ela vai organizá-los dentro de suas linhas de força, de suas escolhas
pulsionais. Estes valores são transmitidos pela função do pai e pela função da
mãe.
O Édipo é um elemento que obriga
estas figuras iniciais pai e mãe, quando elas existem, ou substitutos
parentais, a assumirem um lugar de interdição, de proibição deste movimento
pulsional da criança. A proibição do incesto é o signo da passagem ao humano
(Natureza/Cultura). Esta interdição funda as relações parentais e fundamenta
tudo que pertence à ordem da Lei.
A norma que estrutura o grupo
parental obriga a sublimação do desejo, ao mesmo tempo em que é a origem do
recalcamento. A Lei representada pela metáfora paterna assume o caráter de
organizadora da subjetividade.
4º Na ordem destes encontros surge a
experiência sexual da criança com a experiência sexual do adulto.
A criança fala uma língua estrangeira
quando exprime seus desejos, como o adulto que lhe fala um idioma desconhecido
e inquietante quando exibe a sua sexualidade para a criança.
A sedução do adulto com a criança é
extremamente patógena (contrariamente às brincadeiras sexuais entre crianças da
mesma idade), na medida em que a criança está exposta a um desejo do qual ela
ignora a natureza e a intenção, ficando sem condições de responder à invasão do
desejo e da sedução do adulto.
Este desnível não é controlável
enquanto traumático podendo ser de grande impacto e se "perder" em
forças recalcantes pertencentes à cena primária ou à prática sistemática e
cruel num cenário perverso. Esta pratica é seguida de intimidações e ameaças
que propõem em última instância o aniquilamento e a destruição da fantasia
enquanto sexualidade humana.
5º A veracidade das ameaças assume um
caráter ainda mais violento quando parte daquele que deveria ocupar no universo
da criança a função do pai:
Como pensar a função do pai, este lugar
garantido pela lei como paternidade e como pátrio poder, quando ele extrapola
este poder legítimo sobre seu filho e passa a agir no interesse único do seu
desejo, no seu interesse puramente pulsional?
Neste caso, não há para este pai
nenhum fator que iniba, que questione este interesse e este domínio erótico
sobre a criança?
A figura do pai retira-se da sua
função simbólica e passa a ocupar o lugar da permissividade, da violência da
pulsão de destruição, através de uma ruptura vital, libidinal, decisiva e
irreversível agindo unicamente na dimensão do seu prazer.
Em troca, vemos a criança impedida de
crescer normalmente. Hipererotizada, identificada muitas vezes com o agressor,
torna-se um pequeno adulto. Presa na força legiferante do desejo paterno, seu
proprietário, seu dono, a criança é convidada a ocupar o lugar de objeto
sexual, podendo muitas vezes ser de um modo absolutamente cruel e fetichista.
Esta realidade psíquica não pode ser
suportada pela criança a não ser sob uma forte pressão denegatória. A criança
nega maciçamente a realidade que a invade, e se deixa dominar pela manipulação
e sedução, numa realidade que a empurra para o esgotamento físico e
psicológico, para a doença mental, doença somática, para a loucura, ou para a
morte.
6º Alguns fragmentos clínicos que são
traduzidos em falas ou perguntas revelam na sua dimensão inconsciente a
denegação a fragilidade e a submissão da criança ao adulto.
Frases que desvendam este universo
infantil que coloca a criança no lugar do horror, no lugar de criança fetiche,
no lugar do silêncio. Silêncio em forma de armadilha, de ritual traduzido em
angustiantes cenas eróticas revelando a violência máxima que uma criança muitas
vezes é incapaz de suportar. Seus nomes são fictícios, mas suas idades são
reais.
O relato destas situações clínicas ao
analista, o relato das cenas de horror em forma de tortura ocorre numa
atmosfera de revelação assustadora, relatos quase sempre são acompanhados por desenhos com mãos e
olhos que indicam a prática manipulação genital ou anal com o pai.
"Eu fui expulsa da escola porque eu fiz aquilo com um
menino e a professora viu. Eu entrei no banheiro, deixei a porta sem trancar. O
menino bateu e eu deixei ele entrar. Fiz amor com ele (falou numa voz
baixinha), a professora mandou dizer que não aconteceu nada".
Ela ri e lembra que lá na zona ela
via a mãe dela fazendo amor, e que um dia um homem da mamãe também fez isso com
ela, Gabi, 8 anos.
"Papai mexe no meu bibiu e no meu bumbum e dói. Se papai
me ama, porque ele faz isso comigo ?" Lúcia, 5 anos.
Pati vai desenhando uma garatuja e
contando:
"Fiz
aquilo de novo até sangrá. Eu oloquei a garrafa de vrido lá, e também coloquei
cenoura. Dona Dina disse que eu não tenho mais jeito. Disse que eu não vou ficá
boa, não adianta mais eu vir aqui. Eu gosto de fazer isso com os dedinhos,
fazer igual como o tio fez em mim". Bia, 6 anos.
"Meu pai, ele faz aquilo que não vou contar, mas ele faz
escondido e eu digo papai não faz mais, não aguento de dor no meu
cuzinho". Alan,
8 anos.
"O que identifica um casal fazendo safadeza? Briga de
atracados, segurança para fuga, brincadeira de judô, o que será? São todos
casais que usam revolver para fazer safadezas? A pessoa feminina não sente dor
se o bilú-bilú a desmonta? É verdade que ele faz ela de árvore, ou seja, sobe
sobre ela. Quem inventou a safadeza de um casal, de duas mulheres e de dois
homens ? Será que ela irá agüentar um monstro sobre ela ? Será que a vulva dela
irá agüentar, ou irá esbagaçar-se e o bilú-bilú irá ficar preso, até o seu dono
morrer ?"
Kália, 12 anos.
Alô? Dra., aqui é Andréa, aquela que escreveu prá revista
Capricho -fala uma vozinha distante e baixa. Estou lhe telefonando agora porque
não tem ninguém em casa. A jornalista contou prá senhora da minha carta
anônima? Meu padrasto todas as noites entra no meu quarto, me amarra a boca prá
eu não gritar. Daí abusa de mim pelas costas. Não suporto mais de tanta dor, e
tenho medo de contar prá minha mãe. Ela é apaixonada por ele e é capaz de me
mandar prá fora de casa. Me ajude por favor, ninguém sabe disso". Andréa, 15 anos.
6º Como pensar e intervir
analiticamente sem recorrer à moralidade cultural, moralidade ortopédica e
adaptativa?
Se os psicanalistas são preparados
para ter competência e sensibilidade de pelo menos ler tais sintomas, podendo
até produzir discursos "eficazes" sobre tais fenômenos, como então
supor que os analistas não se apresentem para intervir neste horror? Como então
supor analistas se inibindo com o cálculo e as conseqüências deste horror?
A psicanálise, desde Freud, vive de
pelo menos escutar toda e qualquer enunciação de desejo sem estabelecer limites
a toda e qualquer modalidade de desejo senão aquele estabelecido pelo que ele
denominou de "reconhecimento da castração".
A instituição psicanalítica
freqüentemente vive embargos em seu processo de funcionamento. Como campo de
laboratório clínico e político, em si mesma, a instituição psicanalítica
precisa constantemente lutar contra as mais violentas e contraditórias posições,
internas e externas, em seus mecanismos de estruturação e operacionalização
clínica.
No Brasil de hoje, a clínica
psicanalítica e todo processo de formação de seus clínicos não pode se furtar
ao desafio que as situações, quase sempre externas por que passam crianças e
adolescentes, colocam e ficam a exigir uma intervenção mais precisa e adequada.
A violência contra a criança e em
especial a violência vivida por ela em situações específicas, como a violência
sexual, coloca uma importante questão e nos remete para a extrema necessidade
de se pensar, se ouvir e propor novas maneiras de intervenção neste grave
problema.
O desafio pede que, além de uma
elaboração teórica norteadora do que irá se fazer, técnicas sejam inventadas e
severamente discutidas, a fim de medir o seu alcance e poder transformador e de
construir um quadro capaz de enfrentar progressivamente as dificuldades e o
sofrimento aí em causa.
Questões para o "Curso Nacional
de Juízes e Promotores Públicos" / UERJ - 1997
1º) Qual o papel da justiça ao
detectar um caso de violência sexual contra a criança, em especial cometido
pelo pai, aquele que deveria ocupar o lugar simbólico da lei, do interdito para
a criança ?
2º) Entre a fantasia da criança e a
realidade da violência sexual a que foi submetida, como pode um jurista decidir
sobre a verdade que é trazida pela criança ?
3º) O que faz parar a violência, que
medidas legais fazem o agressor se intimidar com a força das leis sociais ?
4º) Diante da fragilidade e da submissão
da criança frente ao desejo do adulto, que recursos legais (ECA) podem
fortalecer o lugar da criança ?
* Retirado de: http://www.abmp.org.br