VIOLÊNCIA INFANTO-JUVENIL E OS PROCESSOS DE VITIMIZAÇÃO
Vera Malaguti Batista, em pesquisa a respeito da Criminalização da Juventude Pobre no Rio de Janeiro, assinalou com propriedade os aspectos caracteristicamente preconceituosos da atribuição de delitos a jovens, questão claramente inserida no contexto dos estudos vitimológicos contemporâneos, destacando dois exemplos emblemáticos, colhidos na experiência concreta da atuação da Justiça "de Menores" da cidade, que reproduzimos em seguida:
“R.R.D., preto, 15 anos, órfão de pai e mãe,... começou a trabalhar como vendedor de jornais e engraxate aos dez anos. Roubou, em 16 de julho de 1942, dois queijos (marca Borboleta) em um armazém de secos e molhados, “para arranjar algum alimento que lhe minorasse a fome”. A alegação de seu trabalho de vendedor de jornais e engraxate já havia aguçado as suspeitas do Comissário de Vigilância, que o vê como “preguiçoso hipócrita e dado ao furto”. Seu parecer é de que o “menor é um indivíduo que necessita de uma adaptação, pois se continuar a trilhar o caminho que seguiu, bem cedo se tornará um criminoso e um elemento prejudicial à sociedade”. R.R.D. recebe como sentença uma internação por três anos na Escola de Reforma: um ano e meio por cada queijo.
A. R., branco, 17 anos,... consegue liberdade vigiada, por ter “família legítima e bastante unida”, com pais que “vivem em harmonia em um lar organizado” (A.R. havia furtado um carro). É também o caso de J.L.E.P.C. (16 anos, branco, aluno do Colégio São Bento) que provocou um acidente automobilístico dirigindo sem habilitação. “Apurei tratar-se de um rapaz estudioso, filho de boa família, estudando o 1° Científico do Colégio São Bento” (Comissário de Vigilância)”.
Com efeito, até hoje é comum associar a violência em relação a crianças e adolescentes - com a geração inevitável de processos mais ou menos profundos de vitimização - a dois fenômenos ditos distintos: a violência em face dos jovens (abuso sexual, maus tratos, etc.) e a violência cometida pelos jovens, quer contra outros jovens, quer contra adultos.
No primeiro caso, é óbvio, não se polemiza sobre que tipo de ação pode ser censurado e quais são seus sujeitos ativos e passivos, isso em razão da definição dos papéis sociais desempenhados por agressores e vítimas. Da mesma forma, pode-se dizer que quando a violência parte da conduta dos próprios jovens os papéis estão por igual pré-definidos, especialmente naquelas hipóteses em que o adolescente autor do comportamento violento preenche os requisitos que o vinculam ao modelo básico de agressores (preto ou mulato, oriundo das mais baixas camadas sócio-econômicas, inserido em uma família "desestruturada"), como acontece no recorte apanhado aleatoriamente na pesquisa mencionada. Aqui, é bom frisar, o processo de vitimização difundido principalmente por manipuladores meios de comunicação social identifica no jovem o sujeito ativo e idealiza sua vítima direta ou imediata como sujeito passivo, auxiliado pelos preconceitos sociais que levam o indivíduo a temer converter-se nessa vítima do delito, de sorte a estabelecer paradigmas rígidos, intransponíveis e inconciliáveis, conforme acentuou García-Pablos de Molina, para quem:
"Este medo ou temor,... (é) um problema real com independência de sua etiologia, isto é, tanto se tem uma base certa e objetiva, como se trata de um medo imaginário e sem fundamento, produto de uma defeituosa percepção da realidade”.
Convém salientar que, entre outros motivos, por causa do preconceito quase nunca se recorre a explicações causais que do ponto de vista da vitimologia interpretem o atuar agressivo e visualizem no sujeito ativo da conduta hostil uma vítima do ponto de vista científico, identificada conforme a metodologia peculiar da ciência em questão. Não se cuida, porém, de apreender e justificar as causas do agir violento a partir de conceitos de criminalização de comportamentos que se vislumbram por trás de um processo seletivo de decalque ou de etiquetação das condutas. A criminologia centrada no "labelling approach" já o faz. Nem tampouco de acentuar que, por exemplo, o adolescente autor de conduta violenta, que produziu efeitos lesivos no patrimônio ou na pessoa alheia, é um ser absolutamente "insignificante na engrenagem do universo social, mero observador passivo do acontecimento histórico ou vítima das estruturas que ele mesmo criou" como pretende uma parte da criminologia crítica. O estudo criminológico é razoavelmente eficiente para a percepção e aperfeiçoamento dos sistemas de controle social, mas no caso não é suficiente para os ajustamentos sociais que consideram a dinâmica da vida comunitária e o complexo de relações que operam em um mesmo sujeito o fenômeno de transformá-lo a um só tempo de protagonista da ação criadora da vitimização em seu próprio "objeto", no sentido de agente passivo da vitimização. Tal consideração é hoje necessária e natural e deriva, segundo penso, da concepção atual dos fatores de causação da vitimização, entre os quais sublinha-se mais acentuadamente o abuso de poder. A Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para as Vítimas de Delitos e Abuso de Poder, emanada do 7° Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento do Delinqüente, manifesta a aguda percepção de que não são consideradas vítimas apenas aquelas pessoas afetadas pelo delito singular, previsto pelo direito punitivo, mas todas quanto hajam ficado à mercê do descaso das autoridades, privando-se, assim, das mínimas condições de existência digna. Nos termos da Resolução lastreada na citada declaração consideram-se vítimas de abuso de poder:
"As pessoas que, individual, ou coletivamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou diminuição substancial de seus direitos fundamentais, como conseqüência de ações ou omissões que não cheguem a constituir violações do direito penal nacional, mas às normas internacionalmente reconhecidas relativas aos direitos humanos".
Destarte, podem ocorrer situações em que o próprio Estado, devedor direto da prestação dos direitos fundamentais de segunda e terceira gerações, quede inadimplente, provocando, por isso mesmo, como conseqüência quase imediata, incontestável traumatismo na estrutura social que abalará, justamente, suas bases mais frágeis.
No tocante aos deveres do Estado que pressupõem direitos fundamentais, na área da infância e juventude, estão aqueles que a doutrina qualifica como direitos fundamentais especiais, tais sejam, os direitos à educação, saúde, vivência em uma família e outros. Ora, basta um passar de olhos pelo quadro atual da delinqüência juvenil, principalmente no Rio de Janeiro, para se observar que a imensa maioria dos jovens que estão envolvidos com a prática de crimes nasceram ou vivem nas comunidades periféricas ou marginais, desprovidos dos recursos materiais necessários a uma vida digna, bem como se encontram carentes de educação, saúde e lazer. Mais do que isso estão todos vinculados pela aldeia global ao sonho de consumo às vezes promíscuo, embora estejam certos que à custa dos esforços de seus pais ou responsáveis, ou por seus próprios méritos, medidos pelo desempenho na tradicional e empobrecida escola pública, nunca realizarão tais sonhos. Assim, válida é a ponderação de Eduardo Galeano de que:
"Este mundo de final de século, que convida todos para banquete,
mas fecha as portas no nariz das maiorias, é ao mesmo tempo igualador e
desigual. Nunca o mundo foi tão desigual nas oportunidades que oferece, mas
tampouco foi tão igualador nas idéias e nos costumes que impõe... Nunca foi menos
democrática a economia mundial, nunca foi o mundo mais escandalosamente
injusto".
O sentido do abuso de poder no processo de vitimização relacionado à delinqüência juvenil é facilmente percebido, para ilustrar, pelo incremento da participação de jovens no tráfico de drogas. Indiscutivelmente, descontada a parcela de registros atribuíveis à intensificação da repressão policial, nota-se que cada vez mais adolescentes das classes sócio-economicamente mais baixas são tentados a oferecer suas vidas em troca do prestígio social, do temor reverencial de que passam a desfrutar, das vantagens econômicas, enfim, de tudo quanto marca o sucesso em nossa sociedade neoliberal, na medida em que os meios tradicionais postos à disposição deles não são eficientes para conduzi-los ao mesmo sucesso. Deste modo, participam os mais novos de atividades violentas, produzindo vítimas no meio social, mas, ao mesmo tempo, encurtando suas vidas, sem perceber o uso instrumental que o Estado e a criminalidade delas fazem, de tal maneira que a rigor também são vítimas, consoante enfatizamos.
Ao padecimento decorrente da ausência de instituições aptas a fazer valer os direitos fundamentais que, implementados, ofereçam um estatuto valorativo diferenciado, discernimento sobre os papéis sociais desempenhados por cada um de nós nas engrenagens sociais e efetiva oportunidade de um prestígio social compatível com a dignidade humana, juntam-se, de um modo geral, aspectos peculiares ao desenvolvimento nessa faixa etária. Os jovens são por natureza impulsivos e têm o desejo de conquistar o mundo. Conforme o estatuto de valores prevalecente, o agir dos mais novos se voltará para direções distintas, contudo, a descoberta da força criadora da violência, que nem sempre é negativa - a história da humanidade demonstra que na nossa evolução a "violência criadora" foi em alguns momentos positiva - os coloca praticamente no olho do furacão e pode ensejar justamente a realização de comportamentos vitimizadores. Sabemos, por nossa experiência ordinária, que a maior parte dos adolescentes "descobre" a violência naturalmente e consegue, na medida em que usufrui os direitos fundamentais, ponderar e direcionar para a veia positiva da sua personalidade a descoberta. Muitos, todavia, evidenciam a força da violência no convívio diário e assustam as pessoas pelo que se supõe sejam capazes de fazer. Já Shakespeare, a propósito, salientava:
"Gostaria de que não
existisse idade alguma entre os dezesseis e vinte e três anos ou que os jovens
dormissem todo esse tempo; pois nada existe nesse meio tempo senão
promiscuidade com crianças, ultraje com os anciãos, roubos, brigas”. (Um Conto
de Inverno).
Não é possível, e nisso acredito sinceramente, evitar a descoberta da violência pelos jovens (e seria hipocrisia imaginar o contrário quando a televisão veicula violência em quase todos os seus programas). É necessário, portanto, conviver com a descoberta, com a consciência de que o uso indiscriminado da violência faz vítimas, inclusive entre os próprios agentes e que somente a implantação de uma rede de execução dos direitos fundamentais de que são portadores pode conspirar para a construção paulatina de um estatuto ético que permita que a passagem pela adolescência seja, também, um instante ímpar de construção na vida do ser humano.
De qualquer modo, este parece ser o único caminho viável, até porque não se pode penalizar a vítima do abuso de poder, abuso denunciado pela inconcebível omissão estatal, ou esperar que os jovens durmam durante toda a adolescência. Com certeza, eles não dormirão.