REFLEXÕES
SOBRE O INSTITUTO DA ADOÇÃO À LUZ DO NOVO CÓDIGO CIVIL
José
Luís Alicke[*]
Roberto
Barbosa Alves[**]
1. Introdução
Reforma-se,
a partir de janeiro de 2003, a legislação civil brasileira. A
iminente vigência do novo Código Civil, instituído pela Lei n. 10.406,
de 10 de janeiro de 2002, com vacatio legis de um ano, deve provocar –e de fato vem
provocando– largos debates doutrinários. De fato, surgindo no atual ambiente
democrático um novo Código Civil, era natural a profusão de iniciativas, originadas
nos mais diferentes setores da sociedade brasileira, tendentes a alterar a
recém sancionada codificação.
O novo
Código advém de um texto que começou a ser elaborado por uma
comissão de juristas composta por José Carlos Moreira Alves (Parte Geral),
Agostinho de Arruda Alvim (Direito das Obrigações), Sylvio
Marcondes (Direito de Empresa), Ebert Vianna Chamoun
(Direito das Coisas), Clóvis do Couto e Silva (Direito de Família) e Torquato
Castro (Direito das Sucessões), coordenados pelo eminente Professor Miguel Reale. O Projeto do Código Civil chegou à Câmara dos
Deputados em 1975, e ali foi aprovado em 1984, após debate de 1063 emendas
–muitas delas repetidas, outras recusadas pelo plenário. O Senado Federal
aprovou o projeto em novembro de 1997, com 332 emendas propostas pela Comissão
Especial, com base no parecer final do Senador Josaphat
Marinho. A demora na apreciação pelo Senado se deveu às alterações políticas
que caracterizaram a redemocratização do País, e ainda pela própria necessidade
de aguardar-se o advento de uma nova Constituição, que poderia alterar as bases
da legislação pátria.
O Projeto
foi publicado três vezes, recebendo sugestões que pretendiam atualizar a
proposta inicial. Não obstante, a redação final nunca deixou de refletir a época
em que as primeiras propostas foram redigidas, em que vigiam outros princípios
constitucionais. Não por outra razão, o próprio Deputado Relator do processo
legislativo apresentou os Projetos de Lei números 6960/2002 e 7160/2002,
propondo nova redação a vários dispositivos da nova Lei Civil.
Limitamo-nos,
aqui, a abordar o Capítulo referente à adoção (arts.
1.618 a 1.629). Não para apresentar idéias amadurecidas –nem o Código passou
pela necessária maturação–, senão apenas para lançar bases de discussões
futuras.
2. Relações entre o Novo Código Civil e a legislação
vigente, em matéria de adoção.
O início da
vigência da reforma irá implicar em revogação do Código Civil de 1916, conforme
expressa disposição do art. 2.045 do Novo Código Civil. É certo, portanto, que
não mais se poderá falar daquelas modalidades de adoção que hoje se aplicam aos
adotandos maiores de 18 anos de idade.
Não se dá o
mesmo em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente. O
ECA, construído sobre a doutrina da proteção integral, exige obediência
estrita à condição peculiar de seus destinatários, pessoas em processo de
desenvolvimento, e à garantia de prioridade absoluta.[1] Assim,
“como as principais relações jurídicas entre o mundo infanto-juvenil e o mundo adulto encontram-se disciplinadas no microssistema criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a elas são aplicáveis as normas nele previstas. Somente devem incidir as normas do Código Civil, do Código de Processo Civil, etc., quando houver lacuna no Estatuto da Criança e do Adolescente, e mesmo assim se não forem incompatíveis com os seus princípios fundamentais.”[2]
É sob essa
orientação que se deve ler a reforma civil.
3. A revogação da adoção do atual Código Civil
No regime
do Novo Código Civil não resta espaço para a adoção celebrada entre partes. Só
por sentença poderá constituir-se a adoção, ainda que se trate de pessoa maior
de 18 anos (art. 1.623 e parágrafo único). De fato, é extremamente conveniente
que a adoção seja sempre assistida pelo Poder Público, o evitando-se sua
constituição por escrito particular.
Fica
evidente, como já ressaltado, o fim da dicotomia entre as formas de adoção para
maiores e menores de 18 anos. A adoção é, agora, uma só; e o Novo Código Civil
demonstra intenção de dirigir-se também a crianças e adolescentes (art. 1.621 e
parágrafos, art. 1.623 parágrafo único e art. 1.624).
A unidade
conceitual não evita, contudo, a persistência de algumas peculiaridades do
tratamento da adoção do maior de 18 anos, conforme se verá adiante.
4. Conceito
O conceito
de adoção trazido pelo ECA, e agora unificado, fica
mantido. Dispõe o art. 41 daquele diploma que a adoção “atribui a condição de
filho ao adotado”. A definição é repetida no artigo 1.626, caput, do Novo Código Civil.
5. Requisitos subjetivos
a) Do adotante
Só podem
adotar, no regime do ECA, pessoas maiores de 21 anos
(art. 42). Tratando-se de adoção requerida por cônjuges ou
companheiros, admite-se que apenas um deles tenha 21 anos (art. 42 § 2º,
do ECA). O Novo Código Civil mantém as duas hipóteses, mas reduz o limite de
idade para 18 anos (art. 1.618 e parágrafo único). Também se conserva a
necessidade de que o adotante seja pelo menos 16 anos mais velho que o adotado
(art. 42 § 3º do ECA e art. 1.619 do Novo Código
Civil).
A proibição
de adoção por ascendentes e irmãos, prevista no art. 42 § 1º do
ECA, não encontra correspondência no Novo Código Civil. A questão,
anteriormente ao advento do ECA, chegou ser polêmica
–e deverá tornar a ser debatida quanto tratar-se de adoção de maiores de 18
anos. Em relação a crianças e adolescentes contudo, mantém-se íntegra a regra do ECA.
Divorciados
e separados judicialmente podem adotar conjuntamente, desde que acordem sobre
guarda e visitas e que o estágio de convivência haja sido iniciado na constância
da sociedade conjugal (art. 42 § 4º do ECA). A regra
foi mantida pelo Novo Código Civil (art. 1.622, parágrafo único).
O ECA sempre permitiu o debate em torno da possibilidade de adoção
por pessoas que não vivam maritalmente. O
Novo Código Civil procura solucionar a controvérsia, determinando que a adoção
só pode ser requerida por duas pessoas quando se trate de marido e mulher, ou
que vivam em união estável (art. 1.622, caput,
do Novo Código Civil). A regra elimina também qualquer polêmica sobre a
possibilidade de adoção por casais homossexuais, porque a união estável só é
admitida entre homem e mulher (art. 1.723 do Novo Código Civil).
Segue
possível a adoção pelo cônjuge ou companheiro de um dos pais do adotando, a
chamada adoção unilateral. O art.
1.626, parágrafo único, do Novo Código Civil, repete, neste tema, o art. 41 §
1º do ECA. O Novo Código Civil também reconhece a
adoção póstuma (art. 42 § 5º do ECA e art. 1.628, do
Novo Código Civil) e admite que o pedido seja formulado por tutor ou curador,
mediante prévia prestação de contas e demonstração da inexistência de débitos
(art. 1.620 do Novo Código Civil e art. 44 do ECA).
b) Do adotando
Qualquer
pessoa pode ser adotada. Mas ainda há necessidade de atentar-se para as regras
dos arts. 39 e 40 do ECA e
do art. 1.623 do Novo Código Civil. É que a adoção de maior de 18 anos, sem que
haja guarda ou tutela anterior a essa idade, não se subordina a qualquer regra
restritiva contida no ECA; e mesmo a competência para
conhecer do pedido se desprende do Juízo da Infância e da Juventude para
vincular-se ao Juízo de Família.
6. Requisitos objetivos
Só há
adoção após processo judicial. A conclusão decorre da exigência de que a adoção
seja, em qualquer caso, assistida pelo poder público, independentemente da
idade do adotando (art. 1.623 e parágrafo único do Novo Código Civil).
Exige-se o
consentimento do adotando maior de 12 anos (art. 45 § 2º do
ECA e art. 1.621, caput, do
Novo Código Civil). A adoção também se condiciona ao consentimento dos pais ou
do representante legal do adotando (art. 45 do ECA e
art. 1.621 do Novo Código Civil).
Não havendo
pátrio poder –ou poder familiar, na linguagem do Novo Código Civil–, o
consentimento dos pais será evidentemente desnecessário. Assim sucede em
relação à criança ou adolescente cujos pais sejam desconhecidos ou tenham sido
destituídos do pátrio poder (art. 45 § 1º do ECA e
art. 1.621 § 1º do Novo Código Civil).
O § 2º do
art. 1.621 do Novo Código Civil resolve problema prático ao permitir a
retratação do consentimento até a publicação da sentença constitutiva de
adoção. Note-se que, neste caso, não há decretação de perda do pátrio poder,
sendo mesmo razoável admitir-se o arrependimento.
O art.
1.624 também incide sobre a matéria, declarando não ser necessário o
consentimento do representante legal, se provado tratar-se de infante exposto,
ou de menor cujos pais sejam desconhecidos, estejam desaparecidos, ou tenham
sido destituídos do poder familiar, sem nomeação de tutor; ou de órfão não
reclamado por qualquer parente, por mais de um ano. O dispositivo deverá
provocar controvérsias. De fato, é claro que qualquer das hipóteses de extinção
do pátrio poder dispensa também o consentimento dos pais, a exemplo do que
ocorre na adoção do maior de 18 anos, que passa a ser absolutamente capaz
diante da lei civil (art. 5º do Novo Código Civil). Aqui, no entanto, sugere-se
a inserção de parentes no pólo passivo da adoção: caso algum parente haja
reclamado o órfão, deverá ser citado para a ação. Por outro lado, o Novo Código
Civil deveria ter evitado o vocábulo “reclamado”, que não tem nenhum conteúdo
jurídico. Haverá, por último, necessidade de meditar-se sobre o sentido da
expressão “pais desaparecidos”: que tempo de ausência será necessário para
configurar o desaparecimento? quais as diligências mínimas a serem realizadas
para dar-se por consumado o desaparecimento? Diante da indefinição, sempre será
mais conveniente promover-se a ação devida para o
afastamento do pátrio poder.
O ECA requer que a adoção represente vantagem para o adotando e
esteja fundada em motivos legítimos (art. 43). O Novo Código Civil exige o
“efetivo benefício” para o adotando (art. 1.625). Abandonou-se a melhor técnica
para adotar-se redação menos objetiva. Afinal, uma adoção pode benéfica para o
adotado, ainda que não esteja inspirada em motivos legítimos.
O
cadastramento dos interessados em adotar, junto ao Juízo, continuará vigente
para as adoções de crianças e adolescentes (art. 50 do ECA).
Não há necessidade de exigir-se o mesmo requisito para as adoções de maiores de
18 anos, diante do silêncio do Novo Código Civil. Idêntica solução deve ser
utilizada quanto ao estágio de convivência –aquele período fixado pelo juiz
para a aferição da adaptação do adotando ao novo lar (art. 46, caput, do ECA)–,
que também ficará restrito às adoções de menores de 18 anos.
7. Efeitos
O primeiro
dos efeitos da adoção é a atribuição da condição de filho ao adotado. Como
conseqüência, são desfeitos os vínculos do adotado com pais e parentes, salvo
impedimentos matrimoniais (art. 41 do ECA e art. 1.626
do Novo Código Civil, com ligeira diferença de redação). Por esta razão, aliás,
o art. 1.635, V do Novo Código Civil, prevê a extinção do poder familiar pela
adoção, excetuada a hipótese de adoção unilateral.
A mesma
condição de filho, estabelecida pela adoção, conduz à formação de parentesco
entre o adotante e o adotado, e ainda entre aquele e os descendentes deste e
entre o adotado e todos os parentes do adotante (art. 1.628 do Novo Código
Civil). A regra amplia o § 2º do art. 41 do ECA; e,
porque coerente com o sistema do Estatuto, e em nome da isonomia, é aplicável a
qualquer adoção.
Os efeitos
da sentença concessiva da adoção se produzem a partir do trânsito em julgado,
exceto no caso da adoção póstuma (art. 1.628 do Novo Código Civil, que repete o
art. 47 § 6º do ECA). Um desses efeitos, porém, é
antecipado por força de lei: havendo consentimento dos pais, a simples publicação da sentença concessiva de
adoção impede a retratação.
A adoção,
deferida por sentença transitada em julgado, é irrevogável (arts.
48 e 49 do ECA). Não há regra semelhante no Novo
Código Civil, mas a adoção seguirá sendo irrevogável por duas razões: primeira,
porque atribui ao adotado a condição de filho; segunda, porque é sempre deferida
por sentença judicial.
A adoção,
segundo o regime do Novo Código Civil, permite a alteração do sobrenome do
adotado (art. 1.627 do Novo Código Civil, mantendo o art. 47 § 5º, do ECA). Tratando-se de adotando menor, o prenome também
poderá ser alterado, a pedido do adotante ou do adotado. Note-se, aqui, que a
alteração do prenome a pedido do adotado é inovação do art. 1.627 do Novo
Código Civil em relação ao art. 47 § 5º do ECA.
Por último,
mantém-se a regra do art. 47 § 3º do ECA: não se
permitem designações discriminatórias relativas à filiação (art. 1.596 do Novo
Código Civil).
8. Adoção por estrangeiros
A
inexistência de regra no Novo Código Civil, e a remessa a uma futura legislação
(art. 1.629 do Novo Código Civil), não levam à revogação das regras de adoção
internacional previstas no ECA. A adoção de maiores de
18 anos por estrangeiro, contudo, é passível de alguma dúvida. Parece-nos
evidente que ao maior não se aplicam as regras do ECA
para adoção internacional. Afinal, tais regras, mais restritivas que aquelas
que regulam a adoção por brasileiro residente no país, se destinam a assegurar
maior proteção ao adotando e maior segurança ao processo. Mas, dependendo o
art. 1.629 do Novo Código Civil de regulamentação futura, parece-nos inviável,
até que isso ocorra, a adoção de maiores de 18 anos por estrangeiro.
9. Conclusão
Em síntese,
portanto, pode-se afirmar que o Novo Código Civil e o Estatuto da Criança e do
Adolescente seguirão convivendo, fazendo-se necessária a
harmonização de seus dispositivos. Elevado à categoria de microssistema
jurídico, o ECA permanece integrado ao ordenamento jurídico
brasileiro; e o novo Código se restringe a servir, quanto à adoção, como
norma meramente complementar.
Reconhecemos
a extensão do tema, cientes de que muito mais existe a ser estudado.
Limitamo-nos a esta brevíssima exposição, reiterando o singelo propósito de
propor temas a serem aprofundados.
NOTAS SOBRE OS AUTORES:
[*]
Procurador de Justiça. Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias
de Justiça da Infância e da Juventude do Ministério Público de São Paulo.
[**]
Promotor de Justiça. Assessor do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de
Justiça da Infância e da Juventude do Ministério Público de São Paulo.
NOTAS:
[1] Confiram-se os artigos 1º, 4º e 6º do
ECA.
[2] GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso, Direito da Criança e do Adolescente e tutela jurisdicional diferenciada,
São Paulo, RT, 2002, p. 83.
*publicado na revista “Infância e Cidadania”, vol. 5, São
Paulo: InorAdopt, 2002.