DA NÃO-OITIVA DO INFRATOR EM SEDE EXTRAJUDICIAL
José Marinho Paulo Junior [1]
Promotor de Justiça.
"Já é fazer uma boa ação o
tentar fazê-la" Laurence Sterne,
escritor inglês (1713-1768)
Tão ricas as hipóteses que podem, na prática, exsurgir do artigo 179 do Estatuto da Criança e do
Adolescente que há quem afirme que a oitiva do infrator em sede extrajudicial
pelo Ministério Público [2] não mereceu do Legislador a atenção adequada,
apenas havendo sido dedicado ao ato aquele único artigo [3]. O que, em tese,
seria simples oitiva, desprovida de qualquer formalidade, tornou-se verdadeira
fonte de divergências e de nulidades.
Antes mesmo de se transcrever o aludido artigo e sobre ele se
debruçar, cumpre relembrar, de antemão, que o adolescente tem resguardado pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente o DIREITO de ser ouvido diretamente pelo
Ministério Público em todo e qualquer procedimento, judicial ou extrajudicial
e, em especial, quando da apuração de ato infracional:
Art.
111. São asseguradas ao adolescente, entre outras, as seguintes garantias:
(...) V- direito de ser ouvido diretamente pela autoridade competente.
Art.
124. São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os
seguintes: I- entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministério
Público.
Bom se rememorar que tal direito à oitiva direta vem
escoimado pela CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DIREITOS DA CRIANÇA [4] -
UNICEF, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de
1989:
Artigo
12 - 1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a
formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente
sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em
consideração essas opiniões, em função da idade e da maturidade da criança. 2.
Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a oportunidade de
ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer
diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em
conformidade com as regras processuais da legislação nacional. Resumo - A
Opinião da Criança O direito da criança de expressar uma opinião e de ter esta
opinião levada em consideração em qualquer assunto ou procedimento que afete a
criança.
Feita esta necessária digressão, que há de ser a "pedra
de toque angular" da questão, passa-se à análise do artigo 179 do Estatuto
da Criança e do Adolescente, ora transcrito:
"Art.
179. Apresentado o adolescente, o representante do Ministério Público, no mesmo
dia e à vista do auto de apreensão, boletim de ocorrência ou relatório
policial, devidamente autuados pelo cartório judicial e com informação sobre os
antecedentes do adolescente, procederá imediata e
informalmente à sua oitiva e, em sendo possível, de seus pais ou responsável,
vítima e testemunhas.
Parágrafo
único. Em caso de não-apresentação, o representante do Ministério Público
notificará os pais ou responsável para apresentação do menor, podendo
requisitar o concurso das polícias Civil e Militar."
Mesmo quando o infante é efetivamente ouvido, em apresentação
espontânea ou coercitiva, hipótese em que a lei é mais clara, diverge a
Doutrina acerca de questões pontuais, tais como a necessidade de acompanhamento
do menor por advogado [5] ou se o juiz pode ou não indeferir requerimento do
Ministério Público para que a notificação dos pais seja feita por oficial de
justiça [6].
Problema maior - e bastante comum para os que atuam na área
de Infância e Juventude - surge quando não se procede à oitiva do artigo 179 da
Lei n.º 8069/90, seja porque o Promotor de Justiça entendeu por bem
dispensá-la, conquanto viável (o que, como aqui se sustentará, eiva de nulidade
o procedimento), seja porque não era possível, na prática, realizá-la, tendo em
vista a não-localização do menor (hipótese em que, como se verá, deve o feito
prosseguir em seus termos regulares).
Há basicamente 03 (três) posições às quais vem se filiando os
estudiosos da matéria: a) a deferida oitiva é dispensável, desde que haja
indícios suficientes de autoria e materialidade do ato infracional;
b) tal oitiva é dispensável, desde que se torne inviável implementá-la e se
tente ipso facto notificar
os responsáveis; c) a oitiva é absolutamente indispensável, devendo, se não for
caso de arquivamento, ser sobrestado o feito e expedido mandado de busca e
apreensão do menor.
A despeito de brilhante posicionamento em contrário [7],
considerar a oitiva do adolescente como mero ato instrutório
ou de convicção ministerial é inexoravelmente simplista: tal ato - tal como o
interrogatório, em sede processual penal - tem caráter
multifário, constituindo sim ato de instrução e de convencimento do Promotor de
Justiça, mas também ato de defesa do menor e pressuposto para
oferecimento de remissão.
Fixada esta premissa básica, resta por demais evidente que
AINDA QUE HAJA SUFICIENTES INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE DO ATO
INFRACIONAL, NÃO SE PODE, COM BASE NISTO, DISPENSAR A OITIVA DO ADOLESCENTE,
sob pena de violação das normas legais de Direito Pátrio e
Internacional anteriormente mencionadas e mesmo de normas
constitucionais, tais como as inspiradas nas cláusulas pétreas da AMPLA DEFESA
e do DEVIDO PROCEDIMENTO LEGAL [8].
Pertinente a bem elaborada pesquisa doutrinária implementada pelo
ilustre jurista BRUNO HENRIGER JUNIOR, in "Questões Controvertidas do ECA":
" Os principais comentadores do Estatuto apresentam diferentes
posições sobre o conteúdo dos dispositivos mencionados, mas nenhum permite ao
Promotor de Justiça deixar de inquirir o infrator e seus pais ou responsável,
se possível. Assim, Conceição A. Mousnier, com base
no art. 111, V, do ECA, elabora o "direito à oitiva pessoal", que se
estenderia à atuação do Ministério Público ("O Ato Infracional",
RJ, Liber Juris, 1991, p.
24). Alyrio Cavallieri,
além de exigir a prévia oitiva do infrator, afirma dever ser afastada a
informalidade da medida, apesar do que estabelece a lei ("Comentários ao
Estatuto da Criança e do Adolescente", RJ, Forense, 1991, p. 188). Neste
sentido são também, de certa forma, as lições de José Luiz Mônaco da Silva
("Estatuto da Criança e do Adolescente - Comentários", SP. RT, 1994,
p. 303) e de Paulo Lúcio Nogueira ("Estatuto da Criança e do Adolescente
Comentado", SP, Saraiva, 1991, p. 245). Antônio Chaves, apesar de esposar
o entendimento de Alyrio Cavallieri,
antes referido, critica a repetição de inquirições (Delegado de Polícia,
Promotor de Justiça, Juiz de Direito), sem admitir, contudo, a possibilidade de
dispensa de ouvida pelo Parquet ("Comentários ao
Estatuto da Criança e do Adolescente", SP, LTr,
1994, p. 597). Wilson Donizeti Liberati, diferentemente, entende desnecessária
a redução a termo das declarações prestadas pelo adolescente ao Promotor de
Justiça ("Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente", SP,
Malheiros Editores, 1993, p. 155). Por fim, Jurandir Norberto Marçura entende dispensável a apresentação, se atípica a
conduta, se criança o autor, se desconhecido o endereço do adolescente
("Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado", SP, Malheiros
Editores, 1992,p.500) - op. cit, in REVISTA DO
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL N.º 40, P. 183/200 - GRIFOS
NOSSOS.
Refutam-se, neste momento inicial, o sobrestamento do feito e
expedição de mandado de busca e apreensão, uma vez que NÃO é caso de analogia
para com o artigo 183 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
A afirmação de que o feito deveria ser sobrestado,
expedindo-se mandado de busca e apreensão do infante, enquanto ARGUMENTO DE
CONVENIÊNCIA, é absolutamente compreensível, uma vez que o Promotor de Justiça,
com isto, não tem o trabalho de elaborar a representação. Tal tese, com a
devida vênia, somente se justifica, sem hipocrisia, neste ponto. Todavia, a
assertiva é sofismática quando lastrada em analogia
ou no princípio da instrumentalidade.
Já o princípio da instrumentalidade indica que o interprete
deve harmonizar os meios com os fins legais, estes justificando aqueles.
Pergunta-se: qual seria o objetivo de se paralisar o feito em sede
extrajudicial? Nenhum, a não ser, como já dito, diminuir o volume de trabalho
ministerial, sempre em detrimento do adolescente, cuja defesa sofre grave revés
sem a judicialização de seu caso.
E o ECA, na hipótese que ora se
analisa, não dá qualquer azo a isto, havendo verdadeiro SILÊNCIO ELOQÜENTE
quanto à expedição de mandado de busca e apreensão, a obstar tal medida - que,
por precoce, propositadamente restou relegada à fase judicial, ex vi artigo
183, parágrafo terceiro [9].
No mais, hão que se ter em mente
alguns artigos que tratam da questão, que excluem ex contrario sensu a possibilidade de
suspensão do feito neste momento e que ratificam categoricamente a viabilidade
de oferecimento de representação no caso sub
oculis:
Art.180.
Adotadas as providências a que alude o artigo anterior, o representante do
Ministério Público poderá: I- promover o arquivamento dos autos; II- conceder a
remissão; III- representar à autoridade judiciária para aplicação de medida
sócio-educativa.
À luz deste artigo, explicita-se que ao Parquet
cabe promover o arquivamento, conceder a remissão ou oferecer representação.
Tais hipóteses são verdadeiros numerus clausus. Em havendo indícios de autoria e materialidade
para representação [10], esta deve ser oferecida. E tal conclusão vem
sedimentada em mais um dispositivo:
Art.
182. Se, por qualquer razão, o representante do Ministério Público não promover
o arquivamento ou conceder a remissão, oferecerá representação à autoridade
judiciária, propondo a instauração de procedimento para aplicação de medida
sócio-educativa que se afigurar mais adequada. - g.n.
Diante da não-localização do menor, a remissão fica afastada
de plano, eis que pressupõe aceitação PESSOAL. Em não sendo caso de
arquivamento, o Promotor de Justiça haverá, mesmo sem ter ouvido o menor, de
propor a ação sócio-educativa. Resta evidenciado, assim, que a expressão
"POR QUALQUER RAZÃO" alcança também a hipótese em que, a despeito de
notificados os pais do menor anteriormente não apresentado, este não chega a
ser ouvido, seja porque se evadiu, seja porque, expedido mandado de condução,
quedou negativo, seja porque o mandado de notificação dos responsáveis [11]
quedou frustrado por haver sido apresentado endereço errado [12]; etc..
Não fosse entendida tal expressão assim, violar-se-ia nodal
VETOR DE INTERPRETAÇÃO: na lei, não há palavra inútil, cabendo ao hermeneuta
buscar seu real significado; todos os termos utilizados pelo Legislador devem,
a princípio, ter peso e valor, não podendo vocábulos ou
expressões serem relegados a oblívio ao
talante do intérprete, sob pena de se distorcer o verdadeiro espírito da norma.
Ao não se interpretar a expressão "por qualquer razão" sob tal
enfoque, restaria uma dúvida absolutamente angustiante: se não fosse este o
motivo de o legislador emprega-la naquele
dispositivo, então qual foi?
Vale atentar para o valioso ensinamento cunhado pelo
jurisconsulto gaúcho ADALBERTO PASQUALOTTO, in "Atuação do Ministério
Público no Estatuto da Criança e do Adolescente":
"Como
última alternativa, está a representação, a ser oferecida à autoridade
judiciária, visando a aplicação das medidas sócio-educativas previstas no art.
112. Não depende, necessariamente, de forma escrita. Como se prevê no art. 182, par. 1º, a representação pode ser deduzida oralmente.
Em muitas circunstâncias, a representação poderá ser preferida, por falta de
avaliação definitiva do caso, seja pela impossibilidade de ouvir todos na
curadoria (falta de comparecimento ou número excessivo), seja pelas dúvidas
remanescentes." (op. cit., in Rev. do MP do
Estado do Rio Grande do Sul n.º 24, p. 41/48) - g.n.
Veja-se que o artigo 179 tão apenas dispõe que, não sendo
apresentado o menor, o Ministério Público notificará os pais ou responsáveis do
adolescente para que o apresentem, podendo requisitar para tal fim força
policial. Tudo e apenas isto o Promotor de Justiça deve - ao menos, tentar -
fazer.
Mas se observe com especial atenção: a tese que ora se
sustenta lança alicerces não em pura convicção íntima, tampouco na leitura
isolada de um artigo, mas na análise mais abrangente e profunda do Estatuto da
Criança e do Adolescente e de princípios outros que não apenas os já
mencionados, todos devidamente confrontados entre si. É o que ora se passa a
fazer.
Se, de um lado, cumpre reconhecer o direito de o menor ser
ouvido, por outro lado, insta afastar o entendimento de que tal oitiva informal
do adolescente seja condição especial de procedibilidade da ação
sócio-educativa. Isto porque, se é correto que a lei não permite ao Promotor de
Justiça deixar arbitrariamente de ouvir o menor, por certo tampouco proíbe que
prossiga o rito diante da impossibilidade de se realizar o ato. Ademais, é
mesmo incongruente alçar-se a pressuposto formal algo que a própria lei define,
em sua essência, como informal.
Mais correto, ainda que se trate de tênue diferença, aludir
não à oitiva em si, mas sim à TENTATIVA DE OITIVA DO ADOLESCENTE E, em quedando
frustrado tal ato, à subseqüente TENTATIVA DE NOTIFICAÇÃO DOS RESPONSÁVEIS COMO
CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE DA AÇÃO SÓCIO-EDUCATIVA. Aliás, este o
posicionamento adotado pela e. Corregedoria-Geral do Ministério Público do
Estado do Rio Grande do Sul:
"EMENTA
264 - AUDIÊNCIA PRELIMINAR - OITIVA DO MENOR. A REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIA
PRELIMINAR A QUE ALUDE O ARTIGO 179 DO ECA NÃO É
CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. O QUE CONSTITUI CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE É A
TENTATIVA DE NOTIFICAÇÃO DOS PAIS OU RESPONSÁVEIS, PARA APRESENTAÇÃO DO
ADOLESCENTE INFRATOR AO PROMOTOR DE JUSTIÇA" in Polígrafo
intitulado "Corregedoria-Geral do Ministério Público do Estado do Rio
Grande do Sul - Estágio Probatório - 2001"
Mais uma vez se transcreve ensinamento valioso traçado pelo
eminente jurista de Justiça BRUNO HENRIGER JUNIOR, in "QUESTÕES
CONTROVERTIDAS DO ECA":
"Chegou-se,
inclusive, a erigir tal medida à categoria de 'condição de procedibilidade',
solução manifestamente equivocada, pois alça a pressuposto formal aquilo que a
própria lei define como informal. O que estes entendimentos revelam, entretanto,
é a inclinação burocratizante de nosso sistema de
justiça formal, comprometendo até mesmo os objetivos mais elevados da nova lei.
Desde o início, porém, aplicadores do Direito deram-se conta de que o
dispositivo legal não tinha a extensão que se lhe estava tentando dar, tanto
que eram - e ainda são - bastante freqüentes as representações oferecidas sem
prévia oitiva do adolescente e responsáveis. (...) O amadurecimento da questão,
dado o tempo de vigência do dispositivo, permitiu o surgimento de entendimentos
jurisprudenciais preocupados com a simplificação e a celeridade do procedimento
para a apuração de ato infracional atribuído a
adolescente. Acórdão publicado em Lex 164/278 (Ac. 2ª V. TJSP - Rec. em Sent. Estr. n.º 18.344-0-SP, de 11.08.94), teve a
seguinte ementa: "MENOR. REPRESENTAÇÃO. OITIVA DE
ADOLESCENTE. PROVIDÊNCIA NÃO OBRIGATÓRIA. MENOR NÃO APRESENTADO. INQUIRIÇÃO NÃO
ALÇADA A CONDIÇÃO DE PRESSUPOSTO DA AÇÃO. ART 179 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE. RECURSO PROVIDO PARA ESTE FIM - Se a inquirição informal do art.
179 do Estatuto da Criança e do Adolescente for alçada, antes de instaurado o
procedimento, à condição de pressuposto da ação, bastará que o adolescente se
furte e, deliberadamente, deixe de se apresentar ou ser apresentado para que a
Justiça da lnfância e da Juventude se frustre." - op. cit., in Rev do
Ministério Público/RS nº 40, p 183/200 - grifos
nossos.
Não se traça ali dever legal de o Parquet
expedir ofícios de praxe para localização do menor, nem determina, neste momento,
o sobrestamento do procedimento, como já visto.
Quanto à expedição de ofícios para localização do menor,
trata-se de louvável medida tomada ad cautelan pelo Promotor de Justiça, mas que não
corresponde a qualquer dever legal. Por óbvio, se fosse este o intuito do
Legislador, haveria de tê-lo explicitado. Ao revés, a ele bastou notificarem-se
os pais, admitida a condução coercitiva, e pronto.
Em verdade, aliás, mais cabido à luz do parágrafo único do
artigo 179 do ECA, seria expedir ofícios para tentar
localizar os pais ou responsáveis, na hipótese em que estes não houvessem
previamente fornecido endereço. Fora tal hipótese, sequer isto seria curial ao
prosseguimento do feito. Vale a pena ler novamente a nota de rodapé n.º 11.
Veja-se que o oferecimento de representação sem oitiva do
menor, desde que tal tenha sido tentado notificação dos pais ou responsável,
não viola o devido processo legal ou a ampla defesa.
Num tanto, de se atentar que, em não havendo ação proposta,
sequer seria caso de se falar em "processo" [13]. Demais disso, há
que se reconhecer que o rito legalmente delineado é exatamente este, sendo
IRRAZOÁVEL e CONTRA LEGEM a interpretação no sentido de que, não localizado o
menor, tudo deveria parar. O procedimento vem definido, como aqui já se
afirmou, não por um único artigo, mas por um sistema que deve ser interpretado
com o norte da RAZOABILIDADE.
Muitos são os que sustentam a natureza CIVIL do procedimento
referente ao ato infracional - o que afastaria
alegações de violação à ampla defesa, princípio nitidamente mais sensível no
âmbito criminal. Não é isto, no entanto, que serve de sustentáculo ao afirmado
acima. Antes, aqui se abomina tal teoria civilista, contra a qual já foram
lançadas suficientes pedras pelo eminente jurista EDSON SÊDA, em sua
insuperável obra dedicada ao tema propriamente intitulada como "Os Eufemistas e as Crianças no Brasil" [14].
Noutro tanto, relembre-se que, ao tempo em que o procedimento
investigatório tem cunho sigiloso e não-contraditório, o
processo judicial, que pressupõe o oferecimento de representação,
permite ao menor conhecer todas as provas que militam contra si e lhe
possibilita contradita-las - noutros termos, ali é
que está a verdadeira defesa - cláusula esta que, por óbvio, não pode ser
interpretada em desfavor do menor. E ainda que se admitisse mais gravosa ao
adolescente a judicialização do caso (do que se
discorda veementemente), cumpriria reconhecer que a defesa é ampla, mas não é
irrestrita, devendo até mesmo ela curvar-se aos ditames e aos limites da lei.
E observe que o Estatuto da Criança e do Adolescente admite
algo bem mais grave que a simples representação sem oitiva do representado: o
juiz pode prolatar SENTENÇA CONDENATÓRIA sem que dela seja necessariamente
intimado o adolescente (vide artigo 190, inciso II e parágrafo primeiro, ECA) -
o que nos leva a crer ainda mais na idéia de que a oitiva do adolescente é
valiosa, mas não é imprescindível, uma vez que mesmo sua falta à audiência de
continuação NÃO pode ser entrave ao prosseguimento do feito, sendo
expressamente possível prolação de sentença em seu desfavor [15]. Ora bem, se é
possível o mais, é também possível o menos.
Bem escreve MARCIO MOTHÉ FERNANDES, com lastro em
jurisprudência paulista [16], em sua obra "AÇÃO SÓCIO-EDUCATIVA":
"A
Lei Menorista vigente, nos moldes da Constituição de
1988, assegurou aos infratores o contraditório e a ampla defesa, entre outras
garantias. Ao adolescente que não se apresentar, será nomeado defensor, a quem
competirá defender seus interesses. Se assim não fosse, ou melhor, se a oitiva
do adolescente constituísse pressuposto de admissibilidade da ação
sócio-educativa, bastaria que o infrator não comparecesse para que deixasse de
ser processado e, consequentemente, deixasse de ser
responsabilizado pelo ato praticado." (op. cit.,
p. 42/43, 2ª ed., revista, ampliada e atualizada, edit.
Lumen Iuris, RJ, 2002)
Tudo isto exposto,
apresentam-se as seguintes CONCLUSÕES do estudo acima realizado:
· A oitiva do menor não pode ser
dispensada pelo Promotor de Justiça, por já contar com indícios de autoria e
materialidade suficientes para oferecimento da representação, tendo em vista a
natureza multifária daquela, que consubstancia não apenas ato de instrução do
feito e de convencimento do Promotor de Justiça, mas também autodefesa do
adolescente e pressuposto de remissão;
· TODAVIA, a oitiva do
adolescente não é condição especial de procedibilidade da ação sócio-educativa,
mas sim a (tentativa de) notificação de seus pais ou responsáveis, admitida
condução coercitiva. Tudo e apenas isto;
· Não se pode sobrestar o feito
e expedir mandado de busca e apreensão do adolescente não-localizado em sede
extrajudicial, não sendo caso de analogia ao artigo 183 do
ECA. Ao revés, há silêncio eloqüente a obstar tal ratio, à luz dos artigos 179,
parágrafo único, 180, 182 "por qualquer razão" e 190, inciso II,
todos daquele diploma, a par de o princípio da
RAZOABILIDADE estar também em pauta;
· O oferecimento de
representação sem oitiva do adolescente não viola os princípios do devido
"processo" legal (eis que o "processo" é exatamente este,
definido nos pelos artigos e pelo princípio acima anotados), da
instrumentalidade (eis que não há qualquer fim que justifique a paralisação
ilegal e irrazoável do feito neste momento, em
desfavor do menor) ou da ampla defesa (que não é irrestrita e cuja cláusula não
pode ser aplicada contra o adolescente por ela teleologicamente
protegido, por benéfica a judicialização do caso),
ainda quando afastada a idéia de que o Estatuto da Criança e do Adolescente
possui natureza CIVIL (do que se discorda sem prejuízo da corrente aqui
sustentada).
Notas
[1] Promotor de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; ex-Promotor de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
[2] A Doutrina oferece diferentes denominações para a audiência prevista
pelo artigo 179 do Estatuto da Criança e do Adolescente: "audiência de
apresentação ministerial"; "audiência prévia"; "audiência
informal"; etc. Apenas a primeira arrolada é que não parece adequada, uma
vez que o ECA reserva tal nomen
ao ato judicial previsto por seu artigo 184. De todo modo, mudam-se os nomes,
mas a substância continua, por óbvio, a mesma.
[3] Tal afirmação, como adiante se verá, não é verdadeira. Maxima venia concessa,
a interpretação que se resuma à análise deste artigo é absolutamente incompleta
e simplista.
[4] Não se deixe enganar pelo fato de tal diploma se intitular como que
dedicado a CRIANÇAS, em exclusão a ADOLESCENTES. Verifique que, a despeito de
sua nomenclatura, consagra-se também a defesa destes últimos: "PARTE I -
Artigo 1 - Para efeitos da presente convenção, considera-se como criança todo
ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade
com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes. Resumo -
Definição de Criança Todas as pessoas com idade inferior a dezoito anos, a não
ser quando por lei do seu pais a maioridade seja
determinada com idade mais baixa". Sendo a maioridade penal em nosso direito atingida aos 18 anos de idade, beneficiados
pela Convenção estão também, portanto, os adolescentes.
[5] A despeito de brilhante argumentação em contrário, majoritariamente
se admite que, em fase pré-judicial, de caráter inquisitório, a presença de
advogado é prescindível, não gerando qualquer nulidade sua ausência ao ato.
[6] Aliás, útil e oportuno artigo pelo sempre brilhante jurista MURILLO
JOSÉ DIGIÁCOMO, DD. Promotor de Justiça integrante do Centro de Apoio das
Promotorias de Justiça de Infância e Juventude do Ministério Público do Paraná,
cuja qualidade da obra, em conjunto, é exponencial, em que trata da
possibilidade - e mais, em determinados casos, da obrigatoriedade - da
notificação para a audiência preliminar ministerial pelo OFICIAL DE JUSTIÇA,
não podendo o juiz indeferir requerimento neste sentido. Vide "Oitiva
Informal do Adolescente Acusado da Prática de Ato Infracional:
Notificação para o Ato por Oficial de Justiça", no site
oficial do Ministério Público do Paraná
(www.mpp.pr.gov.br/institucional/capoio/caopca/artigos/oitiva.html). Em sentido
contrário, com fulcro na autonomia institucional do Ministério Público, vide
MARCIO MOTHÉ FERNANDES, em sua obra " AÇÃO
SÓCIO-EDUCATIVA" (p. 36, primeiro parágrafo, 2ª ed., revista, ampliada e
atualizada, edit. Lumen Iuris, RJ, 2002).
[7] Assim já se manifestou a 7ª Câmara Cível do TJRS, ao apreciar o AI
n.º 593008063, em 07.04.93: "A prévia inquirição dos menores pelo
Ministério Público ocorre apenas para melhor habilitar o Dr.
Promotor de Justiça para a correta classificação do ato infracional
atribuído aos infratores. Podendo contar com outras informações, a prévia
inquirição toma-se desnecessária...".
[8] Melhor aduzir-se a "procedimento" e não a
"processo", eis que não há sequer ação oferecida. Mesmo alerta é
feito pelo ilustre Promotor de Justiça MARCIO MOTHÉ FERNANDES, em sua obra " AÇÃO SÓCIO-EDUCATIVA" (p. 35, último parágrafo,
2ª ed., revista, ampliada e atualizada, edit. Lumen Iuris, RJ, 2002).
[9] Transcreve-se o artigo: "Art. 183. Oferecida a
representação (...) 3º. Não sendo localizado o adolescente, a autoridade
judiciária expedirá mandado de busca e apreensão, determinando o sobrestamento
do feito, até efetiva apresentação".
[10] Consigne-se a ABSURDA INCONSTITUCIONALIDADE do artigo 114, in fine
do Estatuto da Criança e do Adolescente, que permite a aplicação de advertência
diante de prova de materialidade e mero INDÍCIO de autoria. Violou o Legislador
sem pudores a presunção constitucional da inocência.
[11] Sobre a significação de "responsável" no âmbito do
Estatuto da Criança e do Adolescente, vide por todos o exaustivo artigo "O
RESPONSÁVEL DE FATO E O RESPONSÁVEL LEGAL NA LEI N.º 8069/90 E SEUS REFLEXOS NA
REGRA DA COMPETÊNCIA" por Márcia Maria Tamburini
Porto Saraiva e Janaína Marques Corrêa, in Revista do Ministério Público do
Estado do Rio de Janeiro n.º 11, período janeiro/dezembro
de 2000, p. 187/197.
[12] A se referir à hipótese de combinação dos artigos 174 e 179 do ECA, quando o menor é liberado mediante compromisso dos
pais e não chega a ser ouvido por endereço fornecido ao tempo da liberação ser
errado, fica ainda mais evidente a idéia de que o feito não pode ser estagnado.
É lição milenar do Direito de que NINGUÉM PODE SER BENEFICIADO PELA PRÓPRIA
TORPEZA - o que aqui ocorreria se admitido óbice ao prosseguimento do rito.
Aliás, tal idéia não é nova: durante o III Congresso Estadual do Ministério
Público do Estado do Rio Grande do Sul, realizado em 1994 na
cidade de Canela/RS, o culto Promotor de
Justiça Carlos Roberto Lima Paganella já havia
proposto a seguinte tese: "Desnecessidade de prévia notificação ao
adolescente e seus pais ou responsáveis (art. 179, parágrafo único, ECA) para
oferecimento de representação, quando na Delegacia de Polícia os pais assinaram
termo de responsabilidade de que apresentariam o adolescente ao Ministério
Público" (Anais do III Congresso Estadual do Ministério Público, p. 292).
[13] Vide nota de rodapé n.8.
[14] Na obra, a partir de um pronunciamento de uma Promotora de Justiça
paulista, o jurista tece duras críticas e incisivos comentários à tese de que o ECA tem caráter puramente civilista. (op. cit. Edição Adês, Rio de janeiro,
1999).
[15] Observe-se que, à luz de tal artigo, o comparecimento do adolescente
à audiência de continuação é ABSOLUTAMENTE DESNECESSÁRIA, não sendo caso sequer
de se conduzir coercivamente o menor ausente.
[16] O autor traz, em sua obra, referência ao acórdão n.º 17.784-0/6, do
TJSP, Relator Lair Lourenço, ipsis litteris: " A oitiva do
menor, ainda que obrigatória, por força de imperativo legal (art. 179 do ECA),
não pode ser erigida como condição para o exercício da representação, assim
entendida r. decisão recorrida que buscou aplicação subsidiária do art. 43,
III, 2ª parte do CPP".
http://www.amperj.org.br/port/josemarinho01body.htm