Maria Teresa Eglér Mantoan
Universidade
Estadual de Campinas – Unicamp.
Faculdade
de Educação - Departamento de Metodologia de Ensino.
A sala de aula é o
termômetro pelo qual se mede o grau de febre das crises educacionais e é nesse
micro espaço que as mudanças do ensino verdadeiramente se efetivam ou
fracassam.
Embora a palavra de ordem seja melhorar o nosso ensino, em todos os seus níveis, o que verificamos quase sempre é que ainda predominam formas de organização do trabalho escolar que não se alinham na direção de uma escola de qualidade para todos os alunos.
Se queremos, de fato,
transformar nossas escolas, a questão central, ao nosso ver, é: de que qualidade estamos falando, quando nos referimos a essas
transformações?
Outras interrogações derivam
desta questão principal, tais como: que práticas de ensino ajudam os
professores a ensinar os alunos de uma mesma turma, atingindo a todos, apesar
de suas diferenças? Ou, como criar contextos educacionais capazes de ensinar
todos os alunos? Mas, sem cair nas malhas de modalidades especiais e programas
vigentes, que nada têm servido para que as escolas mudem para melhor.
Neste texto vamos discutir
essas questões, buscando soluções para abordar da melhor maneira possível os
problemas derivados da conjunção do direito de todos ao saber à necessidade de
se formar uma geração que dê conta das demandas de uma sociedade do
conhecimento, cujo perfil é delineado pelas diferenças.
A nossa intenção, diante desse quadro situacional, é recriar a escola para que seja a porta de entrada das novas gerações para o mundo plural em que já estamos vivendo. Nesse sentido, pensamos que, de antemão, as mudanças educacionais exigem que se repense a prática pedagógica tendo como eixos a Ética, a Justiça e os Direitos Humanos. Este tripé sempre sustentou o ideário educacional, mas nunca teve tanto peso e implicação como nos dias atuais.
Lutamos para vencer a exclusão, a competição, o egocentrismo e o individualismo, em busca de uma nova fase de humanização social. Precisamos superar os males da contemporaneidade, pelo ultrapassamento de barreiras físicas, psicológicas, espaciais, temporais, culturais e, acima de tudo, garantir o acesso irrestrito de todos aos bens e às riquezas de toda sorte, entre as quais, o conhecimento.
Escolas
de qualidade
Superar o sistema
tradicional de ensinar é um propósito que temos de efetivar urgentemente, nas
salas de aula. As escolas são as incubadoras do novo e têm um papel inestimável
e imprescindível na formação dos cidadãos deste milênio que desponta.
Recriar o modelo educativo refere-se primeiramente ao que ensinamos aos nossos alunos e ao como ensinamos para que eles cresçam e se desenvolvam, sendo seres éticos, justos e revolucionários, pessoas que têm de reverter uma situação que não conseguimos resolver inteiramente: mudar o mundo e torná-lo mais humano. Recriar esse modelo tem a ver com o que entendemos como qualidade de ensino.
Vigora ainda a visão conservadora de que as escolas de qualidade são as que enchem as cabeças dos alunos com datas, fórmulas, conceitos justapostos, fragmentados. A qualidade desse ensino resulta do primado e da super valorização do conteúdo acadêmico em todos os seus níveis. Persiste a idéia de que as escolas consideradas de qualidade são as que centram a aprendizagem no racional, no aspecto cognitivo do desenvolvimento e que avaliam os alunos, quantificando respostas-padrão. Seus métodos e práticas preconizam a exposição oral, a repetição, a memorização, os treinamentos, o livresco, a negação do valor do erro. São aquelas escolas que estão sempre preparando o aluno para o futuro: seja este a próxima série a ser cursada, o nível de escolaridade posterior, o exame vestibular !
Pensamos que uma escola se distingue por um ensino de qualidade, capaz de formar pessoas, nos padrões requeridos por uma sociedade mais evoluída e humanitária, quando consegue aproximar os alunos entre si, tratar as disciplinas como meios de conhecer melhor o mundo e as pessoas que nos rodeiam e ter como parceiras as famílias e a comunidade na elaboração e cumprimento do projeto escolar.
Definimos um ensino de qualidade a partir de condições de trabalho pedagógico que implicam em formação de redes de saberes e de relações, que se enredam por caminhos imprevisíveis para chegar ao conhecimento.
Entendemos que existe ensino de qualidade quando as ações educativas se pautam por solidariedade, colaboração, compartilhamento do processo educativo com todos os que estão direta ou indiretamente nele envolvidos.
A aprendizagem nessas circunstâncias é acentrada, ora destacando o lógico, o intuitivo, o sensorial, ora os aspectos social e afetivo dos alunos. Em suas práticas e métodos pedagógicos predominam a experimentação, a criação, a descoberta, a co-autoria do conhecimento. Vale o que os alunos são capazes de aprender hoje e o que podemos lhes oferecer de melhor para que se desenvolvam em um ambiente rico e verdadeiramente estimulador de suas potencialidades.
Em uma palavra, as escolas de qualidade são espaços educativos de construção de personalidades humanas autônomas, críticas, nos quais as crianças aprendem a ser pessoas. Nesses ambientes educativos ensinam-se os alunos a valorizar a diferença, pela convivência com seus pares, pelo exemplo dos professores, pelo ensino ministrado nas salas de aula, pelo clima sócio-afetivo das relações estabelecidas em toda a comunidade escolar - sem tensões competitivas, solidário, participativo. Escolas assim concebidas não excluem nenhum aluno de suas classes, de seus programas, de suas aulas, das atividades e do convívio escolar mais amplo. São contextos educacionais em que todos os alunos têm possibilidade de aprender, freqüentando uma mesma e única turma.
Ensinar
a turma toda, sem exclusões e exceções
Para ensinar a turma toda, parte-se da certeza de que as crianças sempre sabem alguma coisa, de que todo educando pode aprender, mas no tempo e do jeito que lhe são próprios.
É fundamental que o professor nutra uma elevada expectativa em relação à capacidade dos alunos de progredir e não desista nunca de buscar meios que possam ajudá-los a vencer os obstáculos escolares.
O sucesso da aprendizagem está em explorar talentos, atualizar possibilidades, desenvolver predisposições naturais de cada aluno. As dificuldades e limitações são reconhecidas, mas não conduzem/restringem o processo de ensino, como comumente acontece.
Para ensinar a turma toda, independentemente das diferenças de cada um dos alunos, temos de passar de um ensino transmissivo para uma pedagogia ativa, dialógica, interativa, conexional, que se contrapõe a toda e qualquer visão unidirecional, de transferência unitária, individualizada e hierárquica do saber.
Esta proposta pedagógica referenda a educação não disciplinar (Gallo, 1999), cujo ensino se caracteriza por:
· rompimento das fronteiras entre as disciplinas curriculares ;
· formação de redes de conhecimento e de significações, em contraposição a currículos conteudistas, a verdades prontas e acabadas, listadas em programas escolares seriados;
· integração de saberes, decorrente da transversalidade curricular e que se contrapõe ao consumo passivo de informações e de conhecimentos sem sentido.
· policompreensões da realidade;
· descoberta, inventividade e autonomia do sujeito, na conquista do conhecimento;
· ambientes polissêmicos, favorecidos por temas de estudo que partem da realidade, da identidade social e cultural dos alunos, contra toda a ênfase no primado do enunciado desencarnado e no conhecimento pelo conhecimento.
Para se ensinar a turma toda, temos de propor atividades abertas, diversificadas, isto é, atividades que possam ser abordadas por diferentes níveis de compreensão e de desempenho dos alunos e em que não se destaquem os que sabem mais ou os que sabem menos. Em uma palavra, as atividades são exploradas, segundo as possibilidades e interesses dos alunos que optaram livremente por desenvolvê-las.
Debates, pesquisas, registros escritos, falados, observação, vivências são alguns processos pedagógicos indicados para a realização de atividades dessa natureza. Os conteúdos das disciplinas, vão sendo chamados espontaneamente a esclarecer os assuntos em estudo, mas como meios e não como fins do ensino escolar.
Escolas abertas às diferenças e capazes de ensinar a turma toda demandam, portanto, uma ressignificação e uma reorganização completa dos processos de ensino e de aprendizagem.
A possibilidade de se ensinar todos os alunos, sem discriminações e sem métodos e práticas de ensino especializados deriva, portanto, de uma reestruturação do projeto pedagógico-escolar como um todo e das reformulações que esse projeto exige da escola, para que esta se ajuste a novos parâmetros de ação educativa. Não se pode encaixar um projeto novo em uma velha matriz de concepção do ensino escolar.
As escolas que reconhecem e valorizam as diferenças têm projetos inclusivos de educação e o ensino que ministram difere radicalmente do proposto para atender às especificidades dos educandos que não conseguem acompanhar seus colegas de turma, por problemas que vão das deficiências a outras dificuldades de natureza relacional, motivacional, cultural dos alunos.
Nesse sentido, elas contestam e não adotam o que é tradicionalmente utilizado para dar conta das diferenças nas escolas: as adaptações de currículos, a facilitação das atividades, além dos programas para reforçar as aprendizagens , ou mesmo para acelerá-las, em casos de defasagem idade/séries escolares.
Para melhorar a qualidade do ensino e para se conseguir trabalhar com as diferenças nas salas de aula é preciso que enfrentemos os desafios da inclusão escolar, sem fugir das causas do fracasso e da exclusão e desconsideremos as soluções paliativas, sugeridas para esse fim. As medidas comumente indicadas para combater a exclusão não promovem mudanças e visam mais neutralizar os desequilíbrios criados pela heterogeneidade das turmas do que potencializá-los, até que se tornem insustentáveis, obrigando as escolas a buscar novos caminhos educacionais, que, de fato, atendam à pluralidade do coletivo escolar.
Enquanto os professores do ensino escolar (especialmente os do nível fundamental), persistirem em:
·
propor trabalhos coletivos, que nada mais são do que
atividades individuais realizadas ao mesmo tempo pela turma
·
ensinar com ênfase nos conteúdos programáticos da
série;
·
adotar o livro didático, como ferramenta exclusiva de
orientação dos programas de ensino;
·
servir-se da folha mimeografada ou xerocada para que
todos os alunos as preencham ao mesmo tempo, respondendo às mesmas perguntas,
com as mesmas respostas;
·
propor projetos de trabalho totalmente desvinculados
das experiências e do interesse dos alunos, que só servem para demonstrar a pseudo adesão do professor às inovações;
·
organizar de modo fragmentado o emprego do tempo do
dia letivo para apresentar o conteúdo estanque desta ou daquela disciplina e
outros expedientes de rotina das salas de aula;
·
considerar a prova final, como decisiva na avaliação
do rendimento escolar do aluno
não teremos condições de ensinar a turma toda, reconhecendo e
valorizando as diferenças na escola.
Essas práticas configuram o
velho e conhecido ensino para alguns
alunos - e para alguns, em alguns momentos, algumas disciplinas, atividades
e situações de sala de aula.
É assim que a exclusão se alastra
e se perpetua, atingindo a todos os alunos, não apenas os que apresentam uma
dificuldade maior de aprender ou uma deficiência específica. Porque em cada
sala de aula, sempre existem alunos que rejeitam propostas de trabalho escolar
descontextualizadas, sem sentido e atrativos intelectuais, sempre existem os
que protestam a seu modo, contra um ensino que não os desafia e não atende às
suas motivações e interesses pessoais.
O ensino para alguns é ideal
para gerar indisciplina, competição, discriminação, preconceitos e para
categorizar os bons e os maus alunos, por critérios que são, no geral,
infundados.
Não podemos esquecer
do que nos ensinou Paulo Freire em idos de 1978: “A educação autêntica, repitamos, não se faz de ‘A para B’, ou de ‘A
sobre B’, mas de ‘A’ com ‘B’, mediatizados pelo mundo “.
O professor palestrante, tradicionalmente identificado com a lógica de distribuição do ensino, é o que pratica a pedagogia do ‘A’ para e sobre ‘B’. Essa unidirecionalidade supõe que os alunos ouçam diariamente um discurso, nem sempre dos mais atraentes, em um palco distante, que separa o orador do público.
O professor que ensina a turma toda não tem o falar, o copiar e o ditar como recursos didático pedagógicos básicos. Ele partilha com seus alunos a construção/autoria dos conhecimentos produzidos em uma aula; trata-se de um profissional que reúne humildade com empenho e competência para ensinar.
O ensino expositivo foi banido da sua sala de aula, na qual todos interagem e constróem ativamente conceitos, valores, atitudes. Esse professor arranja e explora os espaços educacionais com seus alunos, buscando perceber o que cada um deles consegue apreender do que está sendo estudado e como procedem ao avançar nessa exploração.
Certamente um professor que engendra e participa da caminhada do saber com seus alunos e mediatizado pelo mundo, consegue entender melhor as dificuldades e as possibilidades de cada um e provocar a construção do conhecimento com maior adequação.
Os diferentes sentidos que os alunos atribuem a um dado objeto de estudo e as suas representações vão se expandindo e se relacionando e revelando, pouco a pouco, uma construção original de idéias que integra as contribuições de cada um, sempre bem-vindas, válidas e relevantes.
Pontos cruciais do ensinar a turma toda são o respeito à identidade sócio-cultural dos alunos e a valorização da capacidade de entendimento que cada um deles tem do mundo e de si mesmos. Nesse sentido, ensinar a turma toda reafirma a necessidade de se promover situações de aprendizagem que formem um tecido colorido de conhecimento, cujos fios expressam diferentes possibilidades de interpretação e de entendimento de um grupo de pessoas que atua cooperativamente.
Sem estabelecer uma referência, sem buscar o consenso, mas investindo nas diferenças e na riqueza de um ambiente que confronta significados, desejos, experiências, o professor deve garantir a liberdade e a diversidade das opiniões dos alunos. Nesse sentido, ele é obrigado a abandonar crenças e comportamentos que negam ao aluno a possibilidade de aprender a partir do que sabe e chegar até onde é capaz de progredir. Afinal, aprendemos quando resolvemos nossas dúvidas, superamos nossas incertezas e satisfazemos nossa curiosidade.
As diferenças entre grupos étnicos, religiosos, de gênero, etc., não devem se fundir em uma única identidade, mas ensejar um modo de interação entre eles, que destaque as peculiaridades de cada um.
O professor, da mesma forma, não procurará eliminar as diferenças em favor de uma suposta igualdade do alunado, que é tão almejada pelos que apregoam a (falsa) homogeneidade das salas de aula. Antes, estará atento à singularidade das vozes que compõem a turma, promovendo o diálogo entre elas, contrapondo-as, complementando-as.
As desigualdades tendem a se agravar quanto mais especializamos o ensino para alguns alunos. Essa desigualdade, inicialmente escolar, expande-se para outros domínios e áreas, marcando indelevelmente as pessoas atingidas.
O ensino para a turma toda vai obstinadamente contra esse mecanismo perverso da escola que atinge as crianças desde cedo, especialmente as que têm uma deficiência.
Não se pode imaginar uma educação para todos, quando caímos na tentação de constituir grupos de alunos por séries, por níveis de desempenho escolar e determinamos para cada nível objetivos e tarefas adaptados e uma terminalidade específica. E, mais ainda, quando encaminhamos os que não cabem em nenhuma dessas determinações, para classes e escolas especiais, argumentando que o ensino para todos não sofreria distorções de sentido em casos como esses!
Essa compreensão equivocada da escola inclusiva acaba instalando cada criança em um locus escolar, arbitrariamente escolhido. Aumenta ainda mais as diferenças, acentua as desigualdades, justificando o distanciamento e o fracasso escolar, como problema do aluno, exclusivamente. Tal organização escolar também pode impedir o funcionamento ativo dos alunos frente a situações-problema, pois os grupos de alunos de nível mais elevado têm oportunidade de ir mais longe e os de nível mais baixo de funcionar com menos eficiência.
É, sem dúvida, a heterogeneidade que dinamiza os grupos, que lhes dá vigor, funcionalidade e garante o sucesso escolar.
Talvez seja este o nosso
maior mote: fazer entender a todos que a escola é um lugar privilegiado de
encontro com o outro. Este outro que é, sempre e necessariamente,
diferente !
GALLO, S.(1999). Transversalidade e educação: pensando uma educação não-disciplinar. In: N. Alves(Org.). O sentido da escola.(pp17-43). Rio de Janeiro: DP&A Editora.
* Publicado
na Pátio – revista pedagógica – ARTMED/ Porto Alegre-
RS, Ano V, nº 20, Fev/Abr/2002, pp.18-28.