OS MUNICÍPIOS COMO ÓRGÃOS DE IMPLEMENTAÇÃO DOS CONSELHOS TUTELARES - A EXPERIÊNCIA DE PORTO ALEGRE
Vanêsca Buzelato Prestes
Procuradora do Município de Porto Alegre.
O Conselho Tutelar de Porto Alegre foi criado por intermédio da Lei Municipal Nº 6787, datada de 14 de janeiro de 1991, a qual dispôs sobre a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente no Município. A referida Lei é originária do Executivo. Todavia, o processo de discussão do projeto de lei teve ampla participação da sociedade civil e do próprio Legislativo, tanto que foi aprovado à unanimidade. Foram de fundamental importância as contribuições da OAB, da Pastoral do Menor, do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, do Ministério Público Estadual, dentre tantos outros que auxiliaram na proposição, a qual visava, sobretudo, a definição da política de atendimento e da criação dos órgãos necessários para a aplicação do Estatuto no âmbito do Município. Representou um compromisso tanto da sociedade civil organizada quanto do Poderes Executivo e Legislativo Municipal com a implantação do ECA em nossa cidade, em detrimento da até então vigente legislação menorista.
A Lei 6787, apesar de conter lacunas quanto à definição jurídica da relação entre o Município e o Conselho Tutelar, já estabeleceu a espécie de Conselho de que nossa cidade necessitava. Em Porto Alegre, o Conselho Tutelar funciona diariamente, 24 horas, inclusive em domingos e feriados. O exercício da função é de dedicação exclusiva, não podendo os Conselheiros exerceram outra atividade. A remuneração dos mesmos corresponde à do nível superior do Município, não obstante a lei inexigir escolaridade para o exercício da função. Houve, portanto, a definição da atividade como serviço público municipal, de natureza essencial e permanente. Tal definição, assim como posteriormente o número de Conselhos, que são oito, fundamentou-se na peculiaridade local, notadamente no fato de ser uma capital com mais de um milhão de habitantes e, sobretudo, na constatação de que a violação de direitos não marca hora, dia ou lugar, especialmente em uma cidade com a dimensão da nossa, na qual, diferentemente de uma cidade do interior, por exemplo, os conselheiros não são facilmente localizados.
A par disso, desde a Lei Municipal 6.787, ficou afirmada a autonomia do órgão Conselho Tutelar para aplicação das medidas de proteção e para o livre exercício da função, visando evitar a violação de direitos das crianças e adolescentes. A única espécie de vinculação admitida na Lei é de cunho administrativo e refere-se à garantia do funcionamento do serviço. Significa dizer que o Conselho tem toda a liberdade para o exercício da função. Porém, o ente que remunera, no caso o Executivo, tem obrigação de fiscalizar o funcionamento do serviço, sobretudo porque é um direito do munícipe o efetivo funcionamento do mesmo. Destarte, compete ao Município proporcionar os meios materiais imprescindíveis para o desempenho da atividade, bem como zelar pelo seu regular funcionamento, incluindo aí o efetivo atendimento ao público, a verificação da efetividade dos conselheiros tutelares, entre outras questões. Não há, pois, espécie alguma de subordinação. No entanto, o Município também não se desonerou da responsabilidade de responder pelo serviço que remunera. Aliás, mesmo que quisesse se desonerar da responsabilidade de garantir o funcionamento, na medida em que os conselheiros tutelares são remunerados com verba pública, não há esta possibilidade. Isto porque, não obstante haver independência funcional, autonomia quanto à aplicação das medidas e inexistência de subordinação hierárquica com a administração, a vinculação decorre do próprio serviço, que é municipal, sendo que a população cobra do Município tanto a sua melhor estruturação quanto a sua ineficiência. Ademais, na eventualidade de conselheiros serem eleitos e simplesmente não exercerem a atividade, o Município não pode remunerá-los, por falta do cumprimento da atividade ensejadora da contraprestação remuneratória. Assim, a fiscalização do funcionamento da atividade é dever e não faculdade do administrador.
Ainda, diferentemente de outras leis municipais, o Conselho de Direitos não estabelece as regras de funcionamento dos Conselhos Tutelares, nem tampouco é o responsável pela infra-estrutura e funcionamento do mesmo. Isto porque resta muito claro o papel de cada órgão municipal e do Poder Público, os quais compõem a política municipal de atendimento dos direitos da criança e do adolescente. Em linhas genéricas, o Conselho de Direitos formula as políticas, dispõe sobre a aplicação dos recursos no âmbito da sua competência e conduz o processo de eleição dos Conselhos Tutelares. Os Conselhos Tutelares são encarregados de zelar pelos direitos das crianças e adolescentes, cabendo aos mesmos a aplicação das medidas de proteção previstas no ECA. Ao Município compete participar do CMDCA, garantir a infra-estrutura material para o funcionamento do serviço e fiscalizar o seu regular funcionamento.
A definição de Conselho Tutelar afirmada trouxe conseqüências cujo desdobramento desencadeou uma série de debates acerca da relação funcional dos Conselheiros Tutelares, da espécie de vínculo do Conselho com o Município, da relação do Conselho de Direitos com o Conselho Tutelar e dos direitos do usuário do serviço, a população, com o próprio Conselho. Decorrente desse debate e visando aperfeiçoar o instituto, foi publicada a Lei Municipal Nº 7.394/93.
Esta lei enquadrou o Conselho Tutelar na denominada esfera pública não estatal (conceito desenvolvido pelo então Prefeito Tarso Genro), por ser um órgão de participação popular na execução direta do serviço público municipal. Como conseqüência desta opção legislativa, aliada à exigência da atividade permanente, e da dedicação exclusiva, houve o reconhecimento da necessidade de profissionalização dos conselheiros tutelares, evidentemente que no decorrer do mandato. Isto porque foi imperioso pagar os mínimos constitucionais (13º salário, férias, 1/3, bem como reconhecer direitos sociais constitucionais, tais como licença-maternidade. Para tanto, foram criadas as funções de confiança popular, providas mediante cargos em comissão. Os conselheiros tutelares passaram a integrar o quadro da administração pública municipal como cargos em comissão, sendo que a lei vedou a demissão ad nutun. Ao mesmo tempo, criou-se um órgão de controle sobre o funcionamento dos Conselhos Tutelares. A Corregedoria corresponde a um órgão de controle externo, no qual não se analisa o mérito das medidas aplicadas, respeitando a competência dos Conselhos na aplicação das mesmas. Porém, é uma forma do munícipe, destinatário final do serviço público, reclamar do funcionamento do mesmo. A indigitada lei definiu as faltas graves dos conselheiros tutelares. A tônica sempre foi preservar a atividade desempenhada, auxiliando para que o funcionamento cumprisse o Estatuto. Por este motivo é que foram consideradas faltas graves, por exemplo, aplicar medida de proteção sem a decisão do Conselho do qual faz parte, recusa na prestação do atendimento, rompimento do sigilo em relação aos casos analisados e uso da função para benefício próprio. Registre-se que a própria composição da Corregedoria, com membros da sociedade civil indicados pelo Conselho de Direitos e pelo Fórum de Entidades, dos Conselhos Tutelares, dos Poderes Executivo e Legislativo dão conta do caráter de controle externo da atividade, por intermédio dos setores organizados afetos à questão.
Ainda, é de registrar-se que foi criada uma Coordenação dos Conselhos Tutelares. Dado o número de Conselhos, oito, o que implica a existência de 40 conselheiros tutelares, houve a necessidade de criação de uma coordenação, composta por um membro de cada Conselho, responsável pelo ordenamento da distribuição dos casos a serem avaliados, pela elaboração do Regimento Interno, pela uniformização do trabalho, bem como do entendimento dos conselhos tutelares de Porto Alegre, pela representação pública dos Conselhos Tutelares, pela decisão dos conflitos de competência entre os Conselhos Tutelares, bem como por disciplinar a escala de trabalho dos conselheiros tutelares. Frise-se, mais uma vez, que o objetivo da criação de ambos os órgãos - Corregedoria e Coordenação dos Conselhos Tutelares - foi colaborar para garantir a essência, a raiz da previsão dos Conselhos no ECA, qual seja, ter um órgão responsável por garantir os direitos das crianças e adolescentes como sujeitos em desenvolvimento e que merecem a tutela estatal e da sociedade, visando assegurar, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, caput da Constituição Federal).
Os Conselhos Tutelares são, portanto, uma forma de consecução prática do ECA nos Municípios. A legislação municipal precisa contemplar esta realidade, prevendo mecanismos que não permitam retroceder na afirmação da defesa da violação de direitos como função pública essencial, na defesa dos direitos da criança e do adolescente como atividade essencial do Estado, bem como que garantam a prestação e a continuidade do serviço, aliado à efetiva fiscalização do mesmo.
De outra parte, necessário frisar que os Conselhos Tutelares não são os únicos responsáveis pela práxis da doutrina da proteção integral nos Municípios. Aliás, a mera criação de estruturas, por mais boa vontade que exista, por si só é infrutífera. É imperiosa uma política de efetiva priorização da política de atendimento, na qual sociedade civil, Município, Ministério Público, Justiça da Infância e da Adolescência, Defensoria Pública, FEBEM, entre outros, sejam efetivos parceiros, cada qual na sua esfera de competência, desenvolvendo um trabalho harmônico, complementar e comprometido com crianças e adolescentes sujeitos de direitos e partícipes de um processo no qual a dignidade humana é o fim maior. Sem esta noção de trabalho integrado, sem o compromisso com a individualidade, com a história de cada ser em desenvolvimento que teve seu direito violado, corremos o risco de reproduzir estruturas com outra roupagem e utilizando novos nomes. Não é esta a proposta do Estatuto. Não é este o nosso compromisso. Por isso, a necessidade permanente de debater e repensar as práticas, avaliando até que ponto efetivamente estão contribuindo para que a doutrina da proteção integral deixe de ser letra fria da lei e passe a ter significado na vida das pessoas.