AS “GANGUES DE ADOLESCENTES” E A LEI
O Estatuto da
Criança e do Adolescente, apesar dos nove anos de existência, continua
desconhecido da grande maioria da população. A par disso, os meios de
comunicação social oferecem freqüentemente informações totalmente distorcidas
ou deturpadas acerca das suas normas, determinando, não raras vezes, postura de
verdadeira aversão a tal diploma legal. E o que se apresenta ainda mais
lamentável é que autoridades públicas, algumas até de alto escalão, também não
conhecem referida lei, manifestando assim, por ignorância ou má‑fé,
opiniões absolutamente equivocadas sobre seu conteúdo, como se viu recentemente
em matérias jornalísticas sobre as denominadas “gangues de adolescentes”.
Esclareça‑se então que o Estatuto da Criança e do Adolescente não
contempla qualquer regra que possa ser traduzida em “garantir impunidade” aos
adolescentes autores de ato infracional ou implique deixar a polícia “de mãos
atadas”. Ao contrário, a previsão da lei é no sentido de que nenhum adolescente
a que se atribua a prática de conduta estabelecida
como crime ou contravenção pode deixar de ser julgado pela Justiça da Infância
e Juventude. Caso comprovada a conduta ilegal, será o adolescente
responsabilizado pelos seus atos e, como resposta social, receberá a imposição
das chamadas medidas sócio‑educativas (art. 112, do ECA),
que vão desde a advertência, passando pela obrigação de reparar o dano, a prestação
de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a inserção em regime de
semiliberdade, até a internação, para os casos mais graves e que significa
privação de liberdade do infrator. Deste elenco, a que se mostra com as
melhores condições de êxito é a da liberdade assistida, porquanto se desenvolve
direcionada a interferir na realidade familiar e social do adolescente,
tencionando resgatar, mediante apoio técnico, as suas potencialidades. O
acompanhamento, auxílio e orientação, a promoção social do adolescente e de sua
família, bem como a inserção no sistema educacional e no mercado de trabalho,
certamente importarão o estabelecimento de projeto de vida capaz de produzir
ruptura com a prática de delitos, reforçados que restarão os vínculos do
adolescente, seu grupo de convivência e a comunidade. E, no outro extremo desse
mesmo olhar, vislumbra-se que a internação é a medida sócio-educativa com as
piores condições para produzir resultados positivos. Com efeito, a partir da
segregação, os adolescentes internados acabam ainda mais distanciados da
possibilidade de um desenvolvimento sadio. Privados de liberdade, convivendo em
ambientes, de regra, promíscuos e aprendendo as normas próprias dos grupos
marginais (especialmente no que tange a responder com violência aos conflitos
cotidianos), a probabilidade (quase absoluta) é de que os adolescentes acabem
absorvendo a chamada “identidade do infrator”, passando a se reconhecerem, sim,
como de “má índole, natureza perversa, alta periculosidade”, enfim, como pessoas
cuja história de vida, passada e futura, resta indestrutivelmente ligada à
delinqüência (os “irrecuperáveis”, como dizem deles). Desta forma, quando do
desinternamento, certamente estaremos diante de cidadãos com categoria piorada,
ainda mais predisposta a condutas violentas e anti-sociais. Por isso que,
embora seja necessário em determinadas situações operar a privação da liberdade
do adolescente como forma de interromper o seu ciclo delinqüencial, a
internação deve surgir como último recurso e pelo tempo que corresponda ao
propósito da formulação de novo projeto de vida, que o afaste da criminalidade.
Daí a obrigatória incidência dos princípios constitucionais que dizem respeito à excepcionalidade da medida, sua brevidade e, a todo tempo,
o respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Conquanto de
maneira mitigada, idênticas observações críticas cabem à medida de inserção em
regime de semiliberdade. Já as medidas de advertência, obrigação de reparar o
dano e prestação de serviços à comunidade indicam nítida prevalência do caráter
educativo ao punitivo. É que as técnicas educativas voltadas à autocrítica e à
reparação do dano se mostram muito mais eficazes, vez que produzem no sujeito
infrator a possibilidade de reafirmação dos valores
ético-sociais, tratando-se-o como alguém que pode se transformar, que é capaz
de aprender moralmente e de se modificar (as técnicas de conteúdo punitivo,
segundo as teorias da aprendizagem, eliminam o comportamento somente no
instante em que a punição ocorre, reaparecendo porém, e com toda força, tão
logo os controles aversivos sejam retirados). Em outro aspecto, a polícia não
só pode como tem o dever legal de prender os adolescentes encontrados em
flagrante de ato infracional (vale dizer, quando o adolescente está cometendo a
infração; acaba de cometê‑la; é perseguido, logo após, em situação que se
faça presumir ser autor da infração ou é encontrado, logo depois, com
instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor da
infração; nos molde do que prevê o art. 302, do Código de Processo Penal), não
havendo, portanto, regra alguma no Estatuto da Criança e do Adolescente que
imponha à polícia ficar de “braços cruzados ou mãos atadas”. Assim, conforme
regra constitucional e de igual forma como se dá com os adultos, todo
adolescente pode ser preso em situação de flagrante delito ou por ordem escrita
e fundamentada da autoridade judiciária. O que a lei veda, isso sim, é a
prática do denominado “camburão social”, ou seja, quando a polícia sai às ruas
prendendo crianças e adolescentes a partir da aparência da condição econômica
dos mesmos, realizando “arrastões” como ato de criminalização da pobreza e
atingindo os filhos das classes sociais excluídas, afastados da possibilidade
de vida digna e, por isso mesmo, carentes de políticas públicas e não de ações
policiais ilegais. Aliás, o art. 230, do Estatuto da Criança e do Adolescente,
estabelece como crime, sujeito à pena de seis meses a dois anos de detenção, a
conduta de “privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à
sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem
escrita da autoridade judiciária competente”, podendo qualquer do povo noticiar
ao Ministério Público a ocorrência de tal ilícito penal, de modo a se
responsabilizar criminalmente o agente público, do mais subalterno até o
Secretário de Estado, que tenha determinado ou realizado as prisões ilegais de
crianças e adolescentes. Por outro lado, é de todo recomendável que a polícia,
cumprindo com dever funcional, investigue as ações criminosas das mencionadas
“gangues de adolescentes”, encaminhando ao Ministério Público os elementos de
prova necessários para que possam ser eles processados perante a Justiça da
Infância e Juventude, desbaratando‑se inclusive quadrilhas que se dedicam
ao tráfico de entorpecentes e a outras atividades delituosas. Embora os atos
infracionais praticados por adolescentes correspondam a apenas oito por cento
do total dos crimes cometidos por adultos (e, desta forma, não devem servir de
"cortina de fumaça" pare encobrir outras atividades delituosas, ou
delas desviar a atenção da opinião pública, principalmente aquelas oriundas da
chamada criminalidade organizada ou do "colarinho branco"), é certo
que interessa à sociedade em geral impedir que desde cedo nossas crianças e
adolescentes se vejam entregues a projeto de vida vinculado ao cometimento de
atos antisociais e, desta sorte, vulneráveis aos infortúnios inerentes à
criminalidade. Por fim, vale lembrar que a melhor fórmula pare combater a
criminalidade se traduz em propiciar a todos, principalmente às crianças e
adolescentes, oportunidade de exercício dos direitos elementares da cidadania e
participação nos benefícios produzidos pela sociedade.