Em artigo intitulado Por que Bioética? Clotet (1993) reconhece que fora da linguagem dos direitos é difícil entender, explicar e justificar a Bioética. Nesta mesma linha, Bernard (1994) identifica as origens da Bioética nos ideais de direitos individuais promulgados com a Revolução Francesa. Nos Estados Unidos, em 1967, antes mesmo do nascimento oficial da Bioética, a Comissão Americana de Credenciamento de Hospitais elabora a primeira carta de Direitos do Paciente reconhecendo direitos específicos a um grupo especial de pessoas; os pacientes (George, 1982).
Ainda que a universalidade do direito à vida seja a coluna central de sustentação da Bioética, a diversidade de formas de agressões à vida percorre a história da humanidade e adquire inovações com o progresso da ciência e da tecnologia. Quer em sua concepção original de "ciência da sobrevida" (Potter, 1970), ou de ética das ciências da vida, ou ainda de questões éticas relacionadas à vida, a Bioética teve especial impulso nas preocupações com as questões éticas de ameaça à vida em decorrência dos revolucionários avanços científicos e tecnológicos. Nascida em país de extraordinário desenvolvimento tecnológico, os Estados Unidos, a Bioética traduz forte preocupação com a vida e a dignidade humana ameaçadas pelos avanços da tecnociência.
Por outro lado, a realidade social de países do chamado terceiro mundo revela que, em certas regiões, é a absoluta ausência desta mesma tecnociência que ameaça a vida e a dignidade de muitos. Assim, se pensamos a humanidade como composta por pessoas merecedoras de igual respeito ao valor de suas vidas, tanto o excesso, quanto à carência de ciência e tecnologia, agridem a dignidade humana.
Todavia, a curta história da Bioética já demonstra que foram as preocupações com os efeitos do excesso de tecnociência que a impulsionaram. A parcela da humanidade exposta às conseqüências da tecnociência é, relativamente, pequena, porém, socialmente poderosa: tem escolaridade, dispõe de informação, é bem alimentada, reconhece e defende seus direitos, e usufrui os princípios da Bioética. Outra parte da humanidade é analfabeta, vive à margem das informações, é desnutrida, desconhece seus direitos, não usufrui os avanços da tecnociência, nem os princípios da Bioética.
Na visão de Patrão Neves (1996), não apenas nos Estados Unidos, a Bioética emerge do cenário criado pelos revolucionários avanços científicos, mas em todo o mundo ocidental, inclusive a Europa continental. Todavia, esta mesma autora identifica diferentes perspectivas e abordagens a Bioética anglo-americana e européia. Um dos exemplos consiste no fato de que "nos países de orientação anglo-americana, a atenção dedicada às hipotéticas reivindicações do novo ser, aos direitos do ser humano em projeto, são manifestadamente menores". Conseqüentemente, fica coerente com a moralidade anglo-americana o fato da Bioética nesses países passar ao largo das agressões à vida do ser humano em formação e também da criança. A resultante política e social é que desnutrição e pobreza não constituem preocupações da Bioética, nesses países. Prevalece, neles, uma perspectiva individualista que, voltada a microproblemas individuais, privilegia, essencialmente, a autonomia das pessoas. Em contracena, os países europeus continentais direcionam sua atenção a macroproblemas coletivos que privilegiam interesses morais de grupos humanos (Patrão Neves, 1996).
Em absoluta coerência com a análise feita por Patrão Neves, o bioeticista italiano Berlinguer (1993) identifica duas faces na Bioética: uma, que designa de Bioética de fronteira, preocupada com os avanços da tecnociência e outra, a Bioética do cotidiano, que se preocupa com a fome, a miséria, a exclusão social, o racismo, etc.
No Brasil, estudos conduzidos por Lorenzo e Azevêdo (1998), sobre perspectivas atuais e tendências da Bioética neste país, revelaram conspícua influência ideológica da Bioética anglo-americana. No período de 1982 a 1997, 44% das publicações brasileiras, indexadas, apresentavam, como tema principal, questões da tecnociência, enquanto a preocupação com os problemas sociais, econômicos e culturais estava presente em apenas 16% dessas mesmas publicações. Considerando os quatro tipos de publicações estudadas (indexadas como Bioética, indexadas como Ética, a revista Bioética do Conselho Federal de Medicina e a revista Cadernos de Bioética), a preferência por tópicos relacionados aos avanços da ciência e da tecnologia variou entre 34% e 76%.
Esses fatos sugerem a necessidade de uma reflexão crítica sobre as ações da Bioética em um país, como o Brasil, tão heterogêneo do ponto de vista social e econômico. Existem brasileiros vivendo ao nível de primeiro mundo, instalados no centro e nos bairros nobres das grandes cidades. Esses brasileiros estão circunscritos pela vizinhança de um outro mundo de brasileiros favelados, desempregados e marginalizados, vivendo em condições sociais e econômicas bem distantes daquelas dos centros desenvolvidos. Mais distantes ainda dos centros de desenvolvimento urbano, sobrevivem os brasileiros das populações rurais em evidente situação de pobreza, analfabetismo e miséria social. Somos 42 milhões de brasileiros pobres, isto é, sem renda para atender às necessidades básicas, dos quais, 16,5 milhões são indigentes, ou seja, não conseguem satisfazer nem as necessidades alimentares (Rossi, 1995). Aproximadamente, um em cada três brasileiros é pobre ou indigente. Em outras palavras, cerca de um terço dos brasileiros estão ficando a meio caminho do próprio ser. Mais grave ainda, somos 4 milhões de crianças fora da escola e 20,2 milhões de analfabetos com idade de 10 ou mais anos (Rossi, 1995).
Sendo o valor da vida humana igual para todos, percebemos neste universo de profundas desigualdades sociais que os princípios da Bioética tornam-se utópicos.
Como pensar na justiça de igual acesso aos bens de saúde, se muitos nascem, adoecem e morrem sem assistência médica?
Como falar de autonomia àquelas pessoas que sequer têm autonomia para administrar a própria fome e são destruídos por ela?
Como zelar pela beneficência, quando o próprio ser biológico das pessoas, principalmente crianças, é atestado vivo da maleficência social?
Como proteger a integridade física, psicológica e axiológica dessas pessoas se a desnutrição já as comprometeu de forma irreversível?
Aquela pessoa que não conseguiu se desenvolver física e mentalmente por razões de pobreza, já foi violentada em seu direito mais essencial, o Direito de Vir a Ser após o nascimento. A violência a este direito anula qualquer aplicação dos princípios da Bioética.
Será hipocrisia não reconhecer que, à margem da grandeza dos princípios da Bioética, existem multidões de pessoas cuja indigência não permitiu ao imaginário a construção de uma auto-imagem dos próprios direitos. E se a proposta da Bioética é de autêntico respeito a qualquer ser humano, seja ele quem for, ignorar as inter-relações entre os princípios da Bioética e a pobreza, é negar a própria ética dos princípios.
O poder ofuscante dos bens materiais criou a ilusão de que o sofrimento gerado pela pobreza é restrito aos pobres. Ainda que o nosso consciente tente não registrar o sofrimento causado pela pobreza, o espírito humano guarda consigo o drama da miséria da espécie. Cada um de nós é um ser único na sua individualidade, mas a individualidade só existe em função da realidade com os outros. E até mesmo a felicidade de cada um é sempre gerada e compartilhada por outros. Ninguém é feliz sozinho. E do mesmo modo que a felicidade depende da interação com outras pessoas, a miséria e o sofrimento também interagem entre todos.
A humanidade, como um todo, necessita de uma Bioética que demonstre a quebra da harmonia universal provocada pela fome. Uma Bioética que reconheça e defenda o Direito de Vir a Ser após o nascimento como um direito universal, para todos, sem exceção. Ficar a meio caminho do que poderia ser, edifica barreiras de desigualdades sociais e impede a liberdade de aproximação e de interação entre todos. As barreiras sociais criam vazios no espírito das pessoas. Nada substitui o amor não vivido, o afeto não sentido, o diálogo não entabulado com o outro... porque é pobre. A humanidade é única e todos os seus membros compartilham a vida universal da espécie. Permitir que a pobreza destrua uma parte deste corpo finito é permitir limitações à própria universalidade da vida humana.