EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE
DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DA CAPITAL — SÃO PAULO
AÇÃO CIVIL PÚBLICA C/ PEDIDO
DE TUTELA ANTECIPADA
O MINISTÉRIO
PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por seu Promotor de Justiça do GAESP — Grupo de Atuação
Especial da Saúde Pública e da Saúde do Consumidor que essa subscreve, com
fundamento e legitimado pelos arts. 1º, inciso III, 3º, 5º,
caput e § 2º, 6º, 127, caput, 129, incisos II e III, 196 da Constituição
Federal; arts. 1º, caput e 25, inciso IV, alínea a, da Lei Federal nº
8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público); arts. 91, caput, 97,
III e parágrafo único, 217 e 219 da Constituição do Estado de São Paulo; arts. 1º,
caput e 103, incisos I, VII, alínea a e VIII, da Lei Complementar Estadual nº
734/93 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo); arts. 1º,
inciso IV, 5º, caput, 12 e 21, da Lei Federal nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil
Pública); art. 6° da Lei n. 7853/89; arts. 81, Parágrafo
único, incisos I, II e III, 82, inciso I, 113, 116 e 117 da Lei Federal
nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor); arts. 2º, caput, 5º e 6º da Lei nº
8.080/90 e art. 2º, caput e o seu § 1º, da Lei Complementar Estadual nº 791/95,
vem ajuizar a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA,
observando-se o procedimento comum ordinário, em face ESTADO DE SÃO PAULO
(FAZENDA ESTADUAL), que deverá ser citado na pessoa do Excelentíssimo
Procurador Geral do Estado, na Avenida São Luiz, n. 99, 4° andar, nesta
Capital, pelos motivos de fato e de direito a seguir descritos.
I — DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
A Constituição
Federal, em seu artigo 129, II, determina competir ao Ministério Público, zelar
pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância
pública aos direitos assegurados na Constituição Federal, promovendo as
medidas necessárias a sua garantia.
O Art. 197 do
texto constitucional determina que as ações e serviços de saúde são de
relevância pública, assim esclarecendo:
“São de
relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público
dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle,
devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e,
também, por pessoa jurídica de direito privado”.
Portanto, da
análise conjunta dos dois dispositivos constitucionais mencionados, conclui-se
que um dos objetivos pretendidos foi o de efetivamente possibilitar a atuação
do Ministério Público frente aos Poderes Públicos e aos particulares que
executam serviços de relevância pública em prol da sociedade.
A situação
produzida pelo requerido é dramática, distante da lei e da Constituição
Federal, porque os usuários estão desprovidos da prestação de um serviço
essencial, circunstância que somente tem como conseqüência o agravamento da
condição do autista e sua falta de perspectiva para o futuro.
O direito
constitucional de acesso à saúde pressupõe um serviço digno e com condições
satisfatórias de higiene, segurança, pessoal e organizacional, fatores
imprescindíveis ao desempenho do serviço essencial em questão. No caso, nada é
destinado aos autistas.
Sempre é bom
lembrar que a população é titular do interesse transindividual à prestação
adequada dos serviços públicos essenciais, tendo os prestadores o dever de
executá-los. Não podem estes, sob qualquer pretexto, simplesmente ignorar as
normas existentes, normas também de origem constitucional.
Pondere-se que a
Constituição Federal, igualmente, em seus artigos 127, caput, 129, inciso III;
a Constituição do Estado de São Paulo, em seu artigo 91; a Lei Federal nº
8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (Lei Orgânica Nacional do
Ministério Público) em seu art. 25, inciso IV, alínea “b”; e a Lei
Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do
Ministério Público do Estado de São Paulo), em seu art. 103, inciso VIII,
cometem ao Ministério Público legitimação para o ajuizamento da ação civil
pública para a defesa, em juízo, dos interesses difusos e coletivos, sendo que
o Código de Defesa do Consumidor complementou tal quadro protetivo.
Ademais, são
direitos fundamentais das pessoas portadoras de deficiência, dentre outros,
receber atendimento especializado, treinamento para o trabalho, acesso aos bens
e serviços coletivos e a integração social (arts. 227, § 1º, II e 244 da
Constituição Federal), sendo que as Leis Orgânicas Nacional
(Lei n. 8625, art. 25, IV, “a” e VI) e Estadual do Ministério Público de São
Paulo (Lei Complementar Estadual n. 734/93, art. 103, I, VII, IX e X) impõe a
prestação de assistência e prestação das pessoas portadoras de deficiência. Da
mesma forma, a Lei n. 7853/89 indica que o poder público e seus órgãos devem
assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus
direitos básicos, inclusive os concernentes à educação e à saúde, dentre
outros.
A conclusão da
Organização Pan-americana da Saúde e do Escritório Regional da Organização
Mundial da Saúde, enumerada na Série Direito e Saúde nº 1 — Brasília, 1994,
firmou que:
“O conceito de ações e serviços de relevância
pública, adotado pelo artigo 197 do atual texto constitucional, norma
preceptiva, deve ser entendido desde a verificação de que a Constituição de
1988 adotou como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana.
Aplicado às ações e aos serviços de saúde, o conceito implica o poder de
controle, pela sociedade e pelo Estado, visando zelar pela sua efetiva
prestação e por sua qualidade. Ao qualificar as ações e serviços de saúde como
de relevância pública, proclamou a Constituição Federal sua essencialidade. Por
“relevância pública” deve-se entender que o interesse primário do Estado, nas
ações e serviços de saúde, envolve sua essencialidade para a coletividade, ou
seja, sua relevância social. Ademais, enquanto direito de todos e dever do
Estado, as ações e serviços de saúde devem ser por ele privilegiados. A correta
interpretação do Artigo 196 do texto constitucional implica o entendimento de
ações e serviços de saúde como conjunto de medidas dirigidas ao enfrentamento
das doenças e suas seqüelas, através da atenção médica preventiva e curativa,
bem como de seus determinantes e condicionantes de ordem econômica e social. Tem
o Ministério Público a função institucional de zelar
pelos serviços de relevância pública, dentre os quais as ações e serviços de
saúde, adotando as medidas necessárias para sua efetiva prestação, inclusive em
face de omissão do Poder Público”.
Dessa forma, está
o Ministério Público legitimado para a propositura da presente ação civil
pública.
II — DOS FATOS
a) Autismo: conceito e características.
Depreende-se dos
diversos elementos angariados no inquérito civil anexado à presente petição
inicial que o autismo é uma incapacidade complexa do desenvolvimento mental que
tipicamente aparece durante os três primeiros anos de vida, é o resultado de um
desarranjo neurológico que afeta o funcionamento do cérebro, sendo um dos mais
graves distúrbios da comunicação humana. Doença grave,
crônica, incapacitante, caracteriza-se por lesar ou diminuir o ritmo do
desenvolvimento normal de uma criança, a qual apresenta reações anormais quando
deparam com sensações como ouvir, ver, tocar, degustar, etc. De origem grega a
palavra “autos” significa “si mesmo”. Costuma-se dizer que os autistas vivem em
um mundo interior, particular, praticamente indevassável. Sua incidência é de 4
a 5 em um universo de 10 mil nascidos conforme referências internacionais,
porquanto não são conhecidos os dados brasileiros. Assim, percentualmente a sua
incidência na população deve girar em torno de 0,04% a 0,05%. Grande maioria
dos autistas é afetada por aparente retardamento mental.
Os especialistas
espanhóis utilizam o termo aparente porque é difícil valorar alguém que ignora
os testes tradicionais de coeficiente intelectual, vivendo em um mundo
reservado. O autismo é considerado por alguns uma doença mental especial
proveniente de alguma anomalia que desafia os cientistas. Sua manifestação
ocorre de formas diversas. Com efeito, alguns autistas são considerados de
“alto funcionamento” possuindo grandes habilidades para certas atividades como
decorar listas telefônicas e letras musicais ou realizar cálculos matemáticos,
mas não conseguem tal desempenho em todas as ações, mesmo algumas muito
simples. Há também autistas de “baixo funcionamento”. Estes mostram uma grande
dificuldade de comunicação. Conforme a presidente da “Casa do Autista” um
autista não tem autonomia social e noção de perigo, muitas vezes não expressa a
dor, não possui noções de higiene, pode ser muito agressivo, não apresenta
comunicação verbal adequada, é hiperativo e pode apresentar crises convulsivas.
Conclui-se, pois, que o convívio com um autista é sem dúvida marcado por
intenso desgaste de seus familiares. O autista não atinge o normal
desenvolvimento do cérebro nas áreas de interação social e habilidades ligadas
à comunicação. Crianças e adultos com autismo tipicamente têm dificuldades na
comunicação verbal e não-verbal, interação social e atividades que exigem o
contato com fatores externos.
Em alguns casos
agressividade ou auto-lesões estão presentes. Pessoas
com autismo podem exibir movimentos repetidos do corpo, comportamentos não usuais,
sendo que também costumam atirar objetos e apresentar resistência para mudar
sua rotina. Uma minoria insignificante de autistas leva uma vida normal,
praticamente nenhum chega ao casamento ou mostra interesse por outro sexo,
mesmo porque não possui iniciativa. O restante, ou seja, a grande maioria,
precisa de cuidados integrais e especiais. Em suma, o autismo leva a um
relacionamento não usual com pessoas, eventos ou coisas, indicando um
comprometimento orgânico do sistema nervoso central.
b) Tratamento
Evidências
mostram que a intervenção desde cedo resulta em progressos para crianças de
pouca idade com autismo. Internacionalmente várias “pré-escolas” modelo
enfatizam diferentes componentes de programas, todos concordando na ênfase da
rápida, apropriada e intensiva intervenção nos âmbitos da saúde e educacional
especializada nas crianças. Portanto, o tratamento existe, sempre em evolução
não só na área educacional, mas na área médica, de psicoterapia. A abordagem psicoterapêutica
visa a reeducação, facilitando o contato interpessoal,
propiciando no indivíduo uma melhor aceitação da problemática. Utilizam-se
técnicas comportamentais visando induzir uma normalização de seu desenvolvimento
e ensinando noções básicas de funcionamento, tais como vestir, comer, higiene,
como refere o especialista E. Christian Gaudener (fls. 34 e seguintes). São
empregadas também técnicas especiais de educação. O uso de medicamentos também
ocorre para tentar normalizar os processos básicos comprometidos.
A utilização da
denominada “medicação sintomática”, objetivando um maior controle do
comportamento das crianças, encontra-se muito desenvolvida. O importante mesmo
é a atenção especializada, considerada particularmente para cada autista.
Existem, por exemplo, métodos envolvendo educação física, musicoterapia e
exercícios aquáticos de coordenação motora. Ainda são usados segundo o caso:
tratamento neurosensorial (integração sensorial, estimulação e aplicação de
padrões, estimulação auditiva, comunicação facilitada e terapias relacionadas à
vida diária); psicodinâmico (terapia dos abraços e psicoterapia); “condutual” e
bioquímico. Bom de ser ressaltado que o tratamento adequado, segundo
entendimentos conceituados, passa pela denominada “residência terapêutica”,
isto é, os profissionais devem acompanhar o dia a dia do autista em clínicas
especializadas, sempre com o concurso de psicólogos, fonoaudiólogos,
psicoterapeutas, pedagogos, musicoterapeutas, neurologistas entre outros.
A questão,
portanto, assim deve ser colocada: mesmo que a família do autista tenha
disponibilidade de pessoalmente prestar cuidados, o que quase nunca ocorre, tal
não é suficiente porquanto o autista “tratado domesticamente” não lhe vê
confiado o imprescindível tratamento especializado, que lhe
possibilite melhorar gradativamente e, por exemplo, abrandar-lhe a
violência a níveis mais suportáveis, enfim, propiciar uma melhor adequação do
autista ao seu meio.
Segundo o dizer
da Presidente da “Casa do Autista”, os autistas de “baixo funcionamento” são os
que mais dificuldades encontram para conseguir o tratamento adequado porque o
Estado não cumpre a sua obrigação na área, sendo que o existente é particular e
“caro” para a grande maioria da população. Realmente, tais autistas precisam de
atendimento individualizado e com uma multiplicidade de profissionais, numa
carga horária intensiva ou integral.
“Estes tratamentos alcançam excelentes resultados na modalidade de
residência terapêutica” (fls. 05). “À classe pobre resta ficar implorando
bolsas nas instituições, e, quando consegue, fica eternamente à mercê de tê-las
retiradas, ficando reféns das instituições que, muitas vezes, obrigam as
famílias a vender carnês, que nada mais são do que o pagamento de mensalidades
de forma disfarçada”.
Colocou ainda a
Presidente que é preciso entender que a família não dispõe de preparo para
lidar com a complexa questão do autismo. Necessário se torna o tratamento
especializado e orientação aos pais paralelamente aos cuidados direcionados ao
doente. Complementou a Presidente, também mãe de uma criança autista:
“a Casa do Autista tem se colocado à
disposição da Secretaria Estadual de Saúde para colaborar na implantação de
residências terapêuticas, sem ter tido, por parte deste órgão, qualquer
retorno, quanto à disponibilidade de colaboração. Foram várias reuniões com a
equipe de saúde mental, sem qualquer resultado efetivo” (fls. 06).
c) Sobre alguns elementos constantes nos autos de inquérito
civil.
Por sorteio,
foram notificadas a comparecer na Promotoria de Justiça parentes e responsáveis
de autistas visando a obtenção do quadro real da
situação.
De fato, Luis Fátimo
Fernandes de Almeida (fls. 89), pai de criança autista, foi claro ao mencionar
que o Estado não proporciona qualquer tratamento especializado aos autistas.
Tal tratamento, essencial, geraria uma maior possibilidade do autista
adequar-se melhor e gradativamente ao meio social. Concluiu que:
“autistas
pertencentes a famílias de menor nível social e econômico encontram-se
totalmente desamparados, em situação calamitosa. O pai do autista sente-se no
interior de um vácuo de informações, não existindo instituição governamental
que confira alguma direção a tomar, algum caminho a percorrer”.
José Marques
Inácio Júnior, ouvido a fls. 90/91, irmão de autista e dentista de pessoas que
padecem de tal problema, afirmou que qualquer que seja o tipo de autismo é
necessário um acompanhamento especializado, isto é, a própria família, por si
só, não tem condições de cuidar adequadamente. Aduziu que em camadas menos
instruídas da população é comum segregar o autista em um “cercadinho”, não lhe
possibilitando qualquer progresso. Confirmou inexistirem órgãos públicos que
forneçam à população serviço especializado para o tratamento do autista, bem
como desconhece a existência de qualquer convênio firmado por órgãos públicos
com unidades particulares. Esclareceu que em geral uma instituição em tempo
integral é o ideal para as pessoas que padecem de tal problema, isto
considerando exclusivamente o bem do autista e deixando em segundo plano os
sentimentos familiares de saudades, por exemplo.
André Luiz
Mancuzo também foi ouvido (fls. 144/5). Trata-se de pai de criança autista e
foi presidente de uma associação especializada no tratamento de tal tipo de
enfermidade. Esclareceu que, sem dúvida, o autista necessita de acompanhamento
e cuidados especializados. Explicou que, por si só, a família não detém os
conhecimentos necessários para fornecer adequado tratamento ao autista. Aduziu:
“(...) tem conhecimento que nas periferias e nos
lugares mais pobres existem autistas vivendo em condições sub-humanas,
não lhes sendo propiciado qualquer progresso”.
Disse que não
existe entidade estatal que forneça o tratamento especializado ao autista,
sendo que, eventualmente, o Estado repassa verbas para algumas entidades não
governamentais. Porém, esclareceu que tais valores são ínfimos, pelo que
insuficientes para manter o funcionamento das instituições que se valem de outras
fontes de renda. Asseverou que dependendo do caso, considerada a gravidade da
doença, é que se decide sobre a adequação do período de tratamento, ou seja,
integral ou não. Finalizou:
“(...) o tratamento a ser dispensado a um autista
não é o mesmo que é devido a um deficiente mental padrão, ou seja, o autista
necessita de tratamento especial, multidisciplinar, envolvendo as áreas de
Saúde, Educação e Assistência”.
Todos
os depoentes, pondere-se, referiram que o diagnóstico e o tratamento especializado
desde uma tenra idade são fatores essenciais para uma melhor adaptação do
autista ao meio social. Bem se vê que a omissão do Estado vem prejudicando
sobremaneira os direitos de tais pessoas, privando-as dos possíveis progressos
factíveis com o acompanhamento especial.
É importante
destacar que o tratamento especial reclamado pelo autista como essencial não se
identifica com qualquer um dos existentes em matéria de saúde-mental no âmbito
público, seja Municipal, seja Estadual.
No apenso ao
presente inquérito civil há uma fita de vídeo com cópia de episódio do programa
“Fantástico” da Rede Globo de Televisão. Em tal programa estabeleceu-se o que
seria o autismo, qual o tratamento adequado, sendo que teve como razão de ser o
ocorrido com uma senhora que, por falta de orientação e opção, abandonou o seu
filho autista. Há também um álbum de fotografias de uma festa “caipira” onde se
verifica que o autista acompanhado tem chances de uma melhor adaptação ao seu
meio.
Relevante também
foi a contribuição do especialista em autismo infantil,
o Dr. Raymond Rosenberg (CREMESP 18045 — Rua Sampaio Vidal, 256, Tel/Fax
282-2088 — 282-2929 — 852-9696 — Jardim Paulistano — São Paulo). Este médico é Fellow
da American Academy of Child Psychiatry, Alumnus da Meninger Foundation,
Ex-Diretor da Henry Schumaker Children`s Unit e Ex-Residente do Hospital das
Clínicas da Universidade de São Paulo, pelo que fala com propriedade sobre o
assunto (fls. 146/7). Esclareceu:
“a) o autismo infantil é uma
alteração de desenvolvimento humano, severa, que se inicia antes dos três anos
de idade. As áreas atingidas são: socialização, comunicação, desenvolvimento de
padrões no uso dos objetos. Tais alterações são extremamente incapacitantes,
pois impedem a aquisição de repertório comportamental condizente à adaptação
nas atividades da vida diária. b) não podemos classificar os ‘tipos de
autismo’. Porém, podemos ter graus severos, moderados e leves. Esta gradação
irá depender do grau de inteligência, capacidade de fala (mesmo que não comunicativa),
nível de enfermidade(s) orgânica(s) concomitante, nível sócio-econômico dos
pais e capacidade de continência que estes últimos têm em relação ao filho
autista. c) o diagnóstico pode ser feito precocemente, ou seja, já entre os 14
e 20 meses de idade. d) quanto mais precoce for feito o diagnóstico mais
precoce será a intervenção e mais fácil será a adaptação e o ensino do autista.
e) o autista necessita de tratamento especializado nas seguintes áreas:
comunicação (fonoaudiologia), aprendizado (pedagogia especializada),
psicoterapia comportamental (psicologia), psicofarmacologia (psiquiatria
infantil), capacitação motora (fisioterapia) e diagnóstico físico (neurologia).
f) Dependendo das cidades há algumas salas de educação especial no ensino
Público. São raras e posso mencionar São José do Rio Preto e São Vicente. A
grande maioria está nas APAEs, que cuidam dos autistas muitas vezes
confundindo-os com retardo mental. O Poder Público auxilia direta ou
indiretamente as APAEs. g) sem atendimento especializado o indivíduo autista
não tem condições de desenvolver-se. Embora muitas famílias sejam continentes
dos comportamentos “bizarros” apresentados e amem o indivíduo autista, elas não
têm capacidade de “normalizar” o desenvolvimento alterado. h) o indivíduo
autista de família pobre é amado, porém o seu comportamento é tão desviado que
ele não recebe dos pais uma atenção em tempo adequado, pois todos os membros da
família necessitam estar envolvidos na captação de
renda. Muitas vezes, para não dizer na totalidade dos casos, o autista é
deixado em casa sozinho ou sob o cuidado de alguém (familiar que não participe
na captação de recursos pelos... ou vizinho que é caridoso) que não tem treino
para cuidar do mesmo. Com a falta de preparo e a incompreensão das dificuldades
do indivíduo autista, os cuidadores acabam por negligenciá-lo e até, às vezes,
abusá-lo nas tentativas leigas de “educá-lo” (...)”.
Por fim o
renomado especialista colocou-se à disposição daqueles que têm como missão dar
ao indivíduo autista seu direito de cidadania.
De concluir-se
pois, sobre a necessidade de conferir tratamento gratuito especializado ao
autista, bem como da insuficiência da atenção estatal na área.
Ademais, o Estado
de São Paulo (Secretaria de Saúde) foi instado a se manifestar sobre a
representação inicialmente ofertada (fls. 44/45 e fls. 04 — “e”), mas não
providenciou qualquer resposta, o que demonstra o seu desinteresse em corrigir
a situação, ensejando inegavelmente a necessidade de acionar o Poder
Judiciário.
II — DO DIREITO
a) Do dever constitucional e legal do
Estado fornecer atendimento especializado aos autistas
Evidentemente a
questão central encontra-se dentro do âmbito dos problemas de saúde vividos
pela população, porquanto seja lá como for capitulado o autismo (doença mental,
deficiência mental, etc.), o certo é que diz respeito à prestação de serviços
de saúde. O próprio problema educacional especial encontra-se ligado
intrinsecamente à área da saúde, pois ele muitas vezes consubstancia grande
parte do cuidado a ser conferido. O autista necessita de tratamento
multidisciplinar específico, pelo que a Constituição Federal é sábia ao referir
que a saúde é dever do Estado e direito de todos, garantindo mediante políticas
sociais e econômicas o acesso universal igualitário às ações e serviços
objetivando a promoção, proteção e recuperação (Art. 196 da Constituição
Federal).
A Carta Magna
também estabelece no Art. 198 que as ações e serviços de saúde devem garantir
um atendimento integral (inciso II).
De maneira
idêntica a Constituição Estadual delibera sobre a saúde (Art. 219). Em seu Art.
222 estabeleceu-se, dentre outros princípios, que o sistema único de saúde deve
ser organizado ao nível do Estado considerando a gratuidade dos serviços
prestados e a universalização da assistência de igual qualidade com instalação
e acesso a todos os níveis, dos serviços de saúde à população urbana e rural. O
Art. 223 do mesmo diploma legal indica que compete ao sistema único de saúde a
assistência integral à saúde, respeitadas as necessidades específicas de
todos os seguimentos da população, o que é muito relevante quando
consideramos o tema específico do autismo. Compete-lhe ainda, cabe referenciar,
a implantação de atendimento integral aos portadores de deficiência, abrangendo
desde a atenção primária, secundária e terciária de saúde,
até o fornecimento de todos os equipamentos necessários à sua integração
social.
A Lei n. 8080/90
prescreve que a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado
prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício (Art. 2°). O
Parágrafo único do Art. 3°, de outra parte, estabelece a amplitude dos fatores
determinantes da saúde, incluindo que também dizem respeito à matéria as ações que, por força do disposto no Art. 2°, se destinam
a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e
social. O Art. 7°, incisos I e IV, estabelece como princípios a serem adotados
nas ações e serviços de saúde a universalidade de acesso em todos os níveis de
assistência e a igualdade da assistência à saúde. No caso dos autistas, pondere-se, as condições particulares são mais graves, posto
que não existem instituições públicas que propiciem o necessário serviço. O
Art. 43, de sua parte, estabelece a gratuidade das ações e serviços de saúde.
Mas as normas que
regem a matéria não se resumem ao que até agora foi exposto. De fato, o próprio
Código de Saúde do Estado de São Paulo, Lei Complementar n. 791/95, declarou
que a saúde é umas das condições essenciais da liberdade individual e da
igualdade de todos perante a lei, sendo que o direito à saúde é inerente à
pessoa humana, constituindo-se em direito público subjetivo (Art. 2°, caput e
Parágrafo 1°). Complementando, o Art. 3° do referido diploma coloca que o
estado de saúde, expresso em qualidade de vida, pressupõe assistência prestada
pelo Poder Público como instrumento que possibilite à pessoa o uso e gozo de
seu potencial físico e mental (inciso III). Pressupõe também, vale trazer à
colação, o reconhecimento e salvaguarda dos direitos do indivíduo, como sujeito
das ações e dos serviços de assistência à saúde, possibilitando-lhe exigir, por
si ou por meio de entidade que o represente e defenda os seus direitos,
serviços de qualidade prestados oportunamente e de modo eficaz, bem como o
tratamento por meios adequados e com presteza, correção técnica, privacidade e
respeito (inciso IV, “a” e “c”). A gratuidade é característica dos serviços
assistenciais (“d”). No bojo do Art. 12 repetiu-se as
diretrizes básicas do “SUS” envolvendo a universalidade de acesso do indivíduo
às ações e aos serviços em todos os níveis de atenção à saúde, igualdade de
atendimento, eqüidade e integralidade da atenção, significando atendimento
pleno ao indivíduo em vista da proteção e do desenvolvimento do seu potencial
biológico e psicossocial (inciso I, letras “a”, “b”, “c” e “d”). A mesma Lei
Complementar, já no art. 32, inciso III, prescreve que
o sistema único de saúde manterá em funcionamento atendimento integral aos
portadores de deficiências, em todos os níveis de complexidade, incluindo o
fornecimento dos equipamentos necessários à sua plena integração social. Nas
disposições finais (art. 74) foi previsto, sem prejuízo da atuação direta do “SUS”,
que o Poder Executivo deve adotar as medidas necessárias para
a execução continuada de programas integrados referentes à proteção
especial ao deficiente, dentre outros destinatários. Importante referir —
porquanto a tutela liminar pretendida vale-se de tal previsão — que o Estado,
pelos seus órgãos competentes poderá celebrar convênios com a União, outros
Estados-membros, os Municípios e com entidades públicas e privadas, nacionais,
estrangeiras e internacionais, objetivando a execução dos preceitos específicos
e Estatuídos no mencionado Código de Saúde do Estado de São Paulo (Art.
72).
A própria
Declaração dos Direitos do Deficiente Mental, aprovada pela Assembléia Geral
das Nações Unidas de 20 de dezembro de 1971, estabeleceu que:
“a pessoa
mentalmente retardada tem direito à atenção médica e ao tratamento físico que
requeira seu caso, assim como à educação, à capacitação, à reabilitação e à
orientação que lhe permitam desenvolver ao máximo sua capacidade e suas
aptidões”.
Tal direito foi deliberado para que nos planos
nacional e internacional haja a sua efetiva proteção.
Depreende-se,
pois, que os entendidos indicam o tratamento especializado ao autista uma
necessidade, apontando a residência terapêutica como uma solução viável,
inclusive visando a humanização do atendimento e a
reintegração social adequada. A Portaria n. 106, de 11 de fevereiro de 2000, no
entanto, criadora dos serviços residenciais terapêuticos, além de não ter sido
implementada no Estado de São Paulo, não responderá aos anseios dos defensores
dos direitos dos autistas. Realmente, tal forma de tratamento foi criada para
cuidar dos portadores de transtornos mentais, egressos de internações
psiquiátricas de longa permanência. Ora, os autistas estão totalmente
desamparados, sem acesso a quaisquer instituições públicas especializadas. Isto
significa que também não terão direito às denominadas residências terapêuticas,
infelizmente.
E o tratamento ao
autista não pode ser igual a de um doente mental
padrão. Mesmo esta parcela da população, no entanto, experimenta deficiências
graves, havendo crianças e adultos vivendo em condições sub-humanas
em cárceres privados. Passagem jornalística importante é a colocada por L. F.
Barros (educador, escritor e presidente do Projeto Fênix — Associação Nacional
Pró-Saúde Mental, in Jornal da Tarde, 24/10/98, artigo “A Saúde Mental e a
Cereja”):
“Quem quer que se meta a calcular o custo/benefício de uma doença, há
de se deparar com a necessidade de calcular qual é o custo de uma vida humana.
Quanto vale a vida dos que se suicidaram por falta de tratamento psiquiátrico?
Se alguém for capaz de realizar este cálculo, pode se considerar incluído no
rol dos que precisam de tratamento”.
Importante é
mencionar que a Lei n. 7853/89 estabelece uma série de direitos e obrigações do
Estado no que se refere às pessoas portadoras de deficiência, ou seja,
contempla também o universo autista. O art. 2° prescreve que o poder público e
seus órgãos têm o dever de assegurar às pessoas portadoras de deficiência o
pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive, dentre outros, os
relativos à saúde e à educação, estabelecendo que deve a administração
dispensar tratamento prioritário e adequado. Na área da educação estabeleceu-se
a denominada “Educação Especial”, bem como a inserção no sistema educacional
das escolas especiais. Como obrigação, prescreveu-se a obrigatoriedade da
oferta e a gratuidade da Educação Especial. No âmbito da saúde indicou-se a
necessidade e a obrigação da criação de uma rede de serviços especializados em
reabilitação e habilitação, bem como a garantia de acesso das pessoas
portadoras de deficiência aos estabelecimentos de saúde públicos e privados, e
de seu adequado tratamento neles, sob normas técnicas e padrões de conduta
apropriados. Por fim, há preconizado o desenvolvimento de programas de saúde
voltados para as pessoas portadoras de deficiência, os quais lhes ensejem a
integração social.
b) Da Jurisprudência e da Doutrina
Como se vê, o
apresentado não se trata de um conjunto de normas programáticas. As
Constituições e as leis asseguram a efetividade social ao direito à saúde, em
toda a sua amplitude, reconhecendo-o como direito público subjetivo. E, neste
contexto, o instrumento processual de defesa em Juízo de tais direitos é a ação
civil pública.
No âmbito
Constitucional, Ives Gandra Martins ensina que:
“na competência comum da União, dos Estados e dos Municípios, além do
Distrito Federal, está a tarefa de cuidarem da saúde e assistência pública,
além da proteção das pessoas portadoras de deficiência. Cuidar da saúde
pertence à vocação maior do Estado, de rigor, a meu ver
voltada para ofertar segurança pública interna e externa, administração
da justiça, saúde, educação e assistência social latu sensu” (Comentários à
Constituição do Brasil, vol. III, 1988, pág. 382).
Mais adiante, complementa:
“É também da competência comum cuidar da assistência pública. A
expressão assistência pública, em sua amplitude, deve ser entendida não apenas
à assistência social ‘stricto sensu’ mas a toda a espécie de assistência que o
Estado deve ofertar aos mais carentes, desde a saúde, previdência até a
orientação (...)”.
“Por assistência pública não se deve apenas entender a assistência
social, mas também toda a assistência que o cidadão ou residente merece do
Estado, por nele viver. A parte final do discurso legislativo
supremo é apenas reiterativo dos princípios anteriores, visto que ao
cuidar o Estado da assistência pública ou da saúde, dela não pode excluir as
pessoas portadoras de deficiência. O que talvez tenha pretendido o
legislador foi realçar a necessidade de cuidado maior com as pessoas que têm
menores condições físicas, destacando a relevância que tal tratamento jurídico
e humanitário deva merecer da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. O
pleonasmo enfático do discurso constitucional pode, inclusive, ser interpretado
como devendo o Estado cuidar mais de tais pessoas que dos demais cidadãos,
posto que são mais dependentes e possuem limitações a serem supridas pelo Poder
de forma mais acentuada” (ob. cit. pág. 384/385 — grifo nosso).
Sempre é bom ter
em vista que se encontram elencadas na Constituição Federal a cidadania e a
dignidade da pessoa humana como fundamentos do Estado Democrático (art. 1°).
Foram arrolados como objetivos principais (art. 3°) a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento da nação; a
erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigualdades sociais
e regionais, bem como, importante para a questão presente, a promoção do bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação. Assim, deve o Estado criar as condições que gerem o
desenvolvimento do povo, tornando viável a vida, o que também significa medidas
preventivas e corretivas no âmbito da saúde individual e coletiva. Foi
exatamente por tal motivo que à saúde foi conferido tratamento especial na Carta Magna, erigidos seus serviços e ações como
de relevância pública (art. 196 da CF). O tema ainda ganhou constitucionalmente
seção própria e foi abordado dando-se ênfase ao acesso universal e igualitário
às ações e serviços.
Com efeito,
encontra-se em causa a proteção ao “mínimo existencial” de que cuida a
Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948): “Art. 25 — Toda pessoa tem
direito a um nível de vida suficiente para assegurar a sua saúde (....)”. Sem
saúde, ou melhor, sem a adequada prestação dos essenciais serviços de saúde não
há liberdade e igualdade. Ora, o gozo das liberdades clássicas só é possível
com um mínimo de bem-estar, envolvendo a saúde. Neste sentido, mencionando o
parecer do Digno Promotor de Justiça José Jesus Cazetta Júnior no Mandado de
Segurança n. 743/053.00.011924-8 (11ª Vara da Faz. Pública):
“Sensata,
portanto, a observação de Isaiah Berlin: ‘É um fato que proporcionar direitos
ou salvaguardas políticas contra a intervenção do Estado no que diz respeito a
homens que mal têm o que vestir, que são analfabetos, subnutridos e doentes, é
o mesmo que caçoar de sua condição: esses homens precisam de instrução ou de
cuidados médicos antes de poderem entender ou utilizar uma liberdade mais ampla
(cf. “Quatro Ensaios sobre a Liberdade”, Brasília: Ed.
Universidade de Brasília, 1981, pág. 138). Em tom menos candente, mas
substancialmente igual, John Rawls advertiu que, entre constrições definitivas
da liberdade, figura ‘a ausência generalizada de meios’ (CF. “A Theory of Justice”, Oxford: Oxford University
Press, 1980, pág. 204)”.
É exatamente por
tal motivo que a Carta Magna atribui ao Estado a responsabilidade pela
assistência terapêutica integral e gratuita, questão básica para se atingir as
outras liberdades e a própria Democracia.
Interessante é ainda trazer à colação o constante no V. Acórdão, oriundo do
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (Relator Waldir
Leôncio Júnior), citando a r. sentença analisada e o
mestre José Afonso da Silva:
“A saúde é um direito social conforme entende o
art. 6° da Constituição e como direito fundamental do cidadão não é norma
programática, não encerra somente uma promessa de atuação do Estado, mas tem
aplicação imediata. Na lição do insigne constitucionalista José Afonso da Silva
‘os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são
prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que
possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a
realizar a equalização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos
que se conectam com o direito da igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos
direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias
ao aferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais
compatível com o exercício efetivo da liberdade’. Não é despiciendo registrar
ainda que se insere entre os objetivos fundamentais da República Brasileira
‘estabelecer uma sociedade livre, justa e solidária’, tendo-se
em vista a realização da justiça social, ou seja, busca a nação a promoção do
‘bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação’”.
Mais adiante,
asseverou, mencionando outro V. Acórdão, que a jurisprudência de nossos
Tribunais Superiores é pacífica no sentido da observância dos dispositivos
constitucionais, no que concerne ao ‘direito à saúde’. A proteção, como já
visto, também é ampla no caso das pessoas portadoras de deficiência.
Na apelação cível
n. 22.786-0, analisando questão individual, a Câmara Especial do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, decidiu que:
“se o Estado não pode proporcionar tratamento adequado a todos os
menores deficientes, deve promover este tratamento por outros meios, às suas
expensas. Jamais utilizar a falta de estrutura como justificativa para sua
omissão”.
A questão do
autismo é idêntica. Os autistas têm direito ao recebimento de atendimento
especializado e também de não ingressar em mera fila de espera da superação da
inércia estatal. Isso não é tratamento adequado. Se o Estado não pode
proporcionar diretamente tal tratamento aos autistas, deve promover e financiar
este cuidado essencial por outros meios, ou seja, às suas expensas, inclusive
sob pena de multa suficientemente alta para inibir e desencorajar o Estado em
descumprir mandamento judicial, porquanto fosse ela fixada de forma menos
gravosa aos cofres públicos, haveria o risco de deixar o autista entregue ao
criminoso critério do custo/benefício quando o valor da multa pelo
descumprimento for inferior a uma diária em obra adequada ao
tratamento especializado, o Estado certamente estará tentado a
descumprir a decisão judicial.
Conforme cópias
que acompanham a presente (fls. 08/17) já foi ajuizada, visando
resguardar os direitos de autista, ação ordinária de obrigação de
fazer, com pedido de antecipação de tutela, contra a Fazenda Pública do Estado
de São Paulo. Em decisão judiciosa e lúcida o Eminente Magistrado da 2ª Vara da
Fazenda Pública deliberou:
“(...) 2. Defiro a antecipação da tutela requerida. Em
conseqüência fica a Fazenda do Estado de São Paulo obrigada a arcar com os
custos de tratamento e internação do autor em entidade especializada, próxima a
residência do mesmo, até que sejam construídas unidades especializadas no tratamento, acompanhamento e internação especializado no âmbito do
Sistema Único de Saúde (SUS). 3. A tutela antecipada é concedida na forma
acima exposta pois há verossimilhança nas alegações ofertadas, tendo em vista
os documentos juntados com a petição inicial, e considerando os seguintes
dispositivos Constitucionais e legais: artigos 6°, 23, II, 196, 197 e 198 da
Constituição da República; e artigos 219, parágrafo único, “2”, e 223, I e II,
alínea “f”, e inciso IX, da Constituição Bandeirante. Acrescente-se que o
sentido da expressão ‘acesso universal e igualitário’, inserido nos artigos 2°,
parágrafos 1° e 7°, inciso IV, da Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8080/90) é
precisamente o de garantir à população o acesso aos serviços e ações de saúde,
de forma indireta, sem privilégios de qualquer espécie. 4. Além disso, existe
também o ‘fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação’ (artigo
273, inciso II, do CPC) em face das características da enfermidade do autor. 5.
Observo, ainda, que não há perigo de irreversibilidade do provimento
antecipado. (...)” (fls.
18 e fls. 07).
Por fim, cabe
asseverar que a tutela jurisdicional à saúde tem sido considerada tão ampla que
até tratamentos médicos especializados no exterior têm sido objeto de ações que
geraram a obrigação do poder público em ressarcir o particular. Para
exemplificar, de mencionar-se o “AC 96.01.10504-2/MG — Apelação Cível, Juiz
Hilton Queiroz — Quarta Turma do TRF”, nos seguintes termos:
“A indenização por gastos efetuados com tratamento de saúde de filho
menor, no exterior, funda-se no cumprimento do artigo 196 da Constituição
Federal, ficando afastada a alegação de ofensa aos artigos 2° e 167-II da mesma
Constituição, pois o Juiz apenas decidiu o caso concreto, no exercício de
jurisdição contenciosa, nem, com sua sentença, elaborou lei orçamentária”.
c) Licitação e previsão orçamentária, em face do pedido de
tutela antecipada a ser realizado.
Por primeiro,
apenas por excesso de zelo, deve ser referenciado que a Lei Complementar n.
101, de 4 de maio de 2000, estabelecedora de normas de finanças públicas
voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, denominada Lei de
Responsabilidade Fiscal, não impede qualquer atuação judicial tendente a
reparar a situação de perigo à vida e à saúde, já que tal possibilidade
encontra nascedouro e amparo diretamente na Constituição Federal. Assim,
considerando que a lei em comento foi idealizada para defender as finanças
públicas dos administradores irresponsáveis, ela visou obviamente a lisura administrativa para a consecução do bem comum,
porquanto as finanças não constituem um valor em si. Desta forma, toda a
discussão sobre eventual impossibilidade de realização de despesa cai por
terra. Ora, na hipótese, são direitos constitucionais os que estão sendo aqui
discutidos. Devido à existência de tais direitos é que se pretende a tutela (à
vida, à saúde, à assistência), isto é, a própria razão de ser da lisura
administrativa. Caso contrário, situação fática levada a Juízo cuja decisão
teria como conseqüência a vida ou a morte do interessado, encontraria a absurda
resposta da impossibilidade da tutela.
O debate sobre
licitação e prévia previsão orçamentária, o que envolve também a Lei de
Responsabilidade Fiscal, é importante principalmente tendo em vista o pedido de
tutela antecipada que será realizado.
Sobre o tema, em
questões semelhantes, já se manifestaram os Tribunais:
“O Judiciário não desconhece o rigorismo da Constituição ao vedar a
realização de despesas pelos órgãos públicos além daquelas em que há previsão
orçamentária; este Poder, todavia, sempre consciente de sua importância como
integrante de um dos Poderes do Estado, como pacificador dos conflitos sociais
e defensor da Justiça e do bem comum, tem agido com maior justeza optando pela
defesa do bem maior, veementemente defendido pela Constituição — A VIDA —
interpretando a lei de acordo com as necessidades sociais imediatas que ela se
propõe a satisfazer” (Apel. Cível n. 98.006204-7, Santa Catarina, Rel. Nilton Macedo Machado,
08/09/98).
Mais adiante,
neste mesmo decisório:
“Com relação à previsão orçamentária para o custeio dos medicamentos específicos, basta relembrar que já há, no orçamento do
Estado, dotação apropriada; da mesma forma não pode o apelante pretender
eximir-se de suas responsabilidades sob a alegação de que enfrenta sérios
problemas financeiros, em face da escassez de recursos, o que soa falso em face
dos gastos publicitários que se vê nos meios de comunicação, apregoando obras e
realizações governamentais (...)”.
Citando Celso de Mello em caso também relativo à saúde:
“A singularidade do caso (...), a imprescindibilidade da medida
cautelar concedida pelo Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina (...) e a
impostergabilidade do cumprimento do dever político constitucional que se impõe
ao Poder Público, em todas as dimensões da organização federativa, de assegurar
a todos a proteção à saúde (CF, art. 6°, c.c. art. 227, Parágrafo 1°)
constituem fatores, que, associados a um imperativo de solidariedade humana,
desautorizam o deferimento do pedido ora formulado pelo Estado de Santa
Catarina (...). Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se
qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição
da República (art. 5°, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa
fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo — uma vez
configurado esse dilema — que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador
uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida”.
Destaque-se que a
atual ausência de estabelecimentos adequados para tratamento dos autistas
afetam seus direitos indeclináveis à saúde e à vida, posto que, desamparados,
permanecem, sabe-se lá como, no interior de casas, de favelas ou pelas ruas sem
qualquer tratamento que gere pelo menos uma esperança de um futuro melhor, com
a adaptação ao meio social e físico de forma gradativa.
Ainda no que
respeita à necessidade ou não de licitação, para o cumprimento da tutela
preliminar pretendida (e mesmo, ao final), tem-se que a própria Lei de
Licitações (n. 8666/93) dispensa a necessidade de licitação, sempre que
caracterizada a urgência do caso. É o que prescreve o art. 24,
inciso IV, do referido diploma legal:
“(...) é dispensável a licitação nos casos de emergência ou de
calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação
que possa ocasionar prejuízo à segurança da pessoa”.
Sobre tal tema,
assim se posicionou Marçal Justen Filho (Comentários à Lei de Licitações e
Contratos Administrativos, 4ª ed., Aide Editora, pág. 152):
“o dispositivo enfocado refere-se aos casos onde o decurso de tempo
necessário ao procedimento licitatório normal impediria a adoção de medidas
indispensáveis para evitar danos irreparáveis. Quando fosse concluída a
licitação, o dano já estaria concretizado. A dispensa de licitação e a
contratação imediata representam uma modalidade de atividade acautelatória do
interesse público”.
Aliás,
acertadamente, em todos os casos ajuizados por este Grupo de Atuação perante os
Excelentíssimos Juízes da Fazenda Pública não houve decisões contrárias a tais
preceitos.
Irrelevante se
mostra eventual falta de prévia dotação orçamentária que possibilite o
cumprimento da antecipação da tutela. Consoante, enfatiza com lucidez João
Angélico (Contabilidade Pública, Ed. Atlas, pág. 35):
“Durante a execução orçamentária, o Poder
Executivo pode solicitar ao Legislativo, e este conceder, novos créditos
orçamentários. Eles serão adicionados aos créditos que integram o orçamento em
vigor. Por essa razão, denominam-se créditos adicionais. Os créditos adicionais
aumentam a despesa pública do exercício, já fixada no orçamento”.
De qualquer
forma, a obrigação de não excluir os autistas de serviços especializados de
saúde e educação é dever do Estado, já que assim deve agir indistintamente,
para com todos os cidadãos (AI n. 96.010901-3 — TJ-SC).
Importante o
decidido com total propriedade pelo Des. Xavier Vieira, no V.Acórdão referente
ao agravo de instrumento n. 96.012721-6:
“sendo a saúde direito de todos e dever do Estado
(CF, art. 196, CE, art. 153), torna-se o cidadão credor desse benefício, ainda
que não haja serviço oficial ou particular no País para o tratamento reclamado.
A existência de previsão orçamentária própria é irrelevante, não servindo tal
pretexto como escusa, uma vez que o executivo pode socorrer-se de créditos
adicionais. A vida, dom maior, não tem preço, mesmo para uma sociedade que
perdeu o sentido da solidariedade, num mundo marcado pelo egoísmo, hedonista e
insensível. Contudo, o reconhecimento do direito à sua manutenção (...), não
tem balizamento caritativo, posto que carrega em si mesmo, o selo da
legitimidade constitucional e está ancorado em legislação obediente àquele
comando. Além do mais, não há necessidade de procedimento licitatório em casos
de emergência, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que
possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras e
serviços” (vide também Apelação cível n. 98.001145-0 e 98.001146-9,
Santa Catarina, Relator Des. Newton Trisotto).
José Cretella
Júnior, na obra “Comentários à Constituição de 1988”, vol. III, pág. 4331,
citando Zanobini asseverou que
“nenhum bem da vida apresenta tão claramente
unidos o interesse individual e o interesse social, como o da saúde, ou seja,
do bem-estar físico que provém da perfeita harmonia de todos os elementos que
constituem o seu organismo e de seu perfeito funcionamento. Para o indivíduo
saúde é pressuposto e condição indispensável de toda atividade econômica e
especulativa, de todo prazer material ou intelectual. O estado de doença não só
constitui a negação de todos estes bens, como também representa perigo, mais ou
menos próximo, para a própria existência do indivíduo e, nos casos mais graves,
a causa determinante da morte. Para o corpo social a saúde de seus componentes
é condição indispensável de sua conservação, da defesa interna e externa, do
bem-estar geral, de todo progresso material, moral e político. As pessoas
doentes representam ônus e perigo contínuo para a sociedade: ônus, na medida em
que não lhe trazem nenhuma contribuição de trabalho e exigem cuidados e
assistência que comprometem meios econômicos e
atividades de outras pessoas; perigo, pela possibilidade da propagação da
doença a outras pessoas e, em alguns casos, à propagação rápida, de caráter
epidêmico”.
Nota-se, pois, o
interesse até mesmo econômico do Estado em regularizar as situações relativas à
saúde. Autista sem atendimento especializado não progride, adoece em
“cercadinhos” como se fosse um animal, o que, com o tempo, implica na
realização de outros gastos por parte do Estado.
O Supremo
Tribunal Federal, reitere-se dada a importância,
através do eminente Ministro Celso Mello, apreciando pedido de suspensão de
liminar formulado pelo Estado de Santa Catarina, em petição n. 1246-1,
concluiu:
“Entre proteger a
inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo
inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5°, caput),
ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse
financeiro e secundário do Estado, entendo — uma vez configurado esse dilema —
que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível ação: o
respeito indeclinável à vida”.
Assim, a mais
elevada Corte de Justiça do país considerou que as decisões judiciais na área
da defesa da saúde e da vida contra a omissão do Estado, longe de caracterizar
ameaça à ordem pública e administrativa, traduz-se em gestos digno de reverente
e solidário apreço à vida dos destinatários dos serviços de saúde como os
autistas (vide Agravo de Instrumento n. 97.002948-9, Santa Catarina, Des.
Relator Gaspar Rubik).
Eventuais
alegações do Estado, de forma cômoda defendendo intransigentemente o respeito à
previsão orçamentária elaborada pela Casa Legislativa, no sentido de que não
possui verbas para custear as despesas advindas dos pedidos
liminar e principal, carecem de fundamento. Com efeito, a previsão
orçamentária é passível de alterações.
Interessante
também é referir que a ação civil pública e a ação popular
são meios à disposição de entidades, do Ministério Público e dos
cidadãos para fiscalizar o orçamento e sua execução. De outra parte, vale
dizer, a lei orçamentária é norma programática. Mesmo sendo lei, como visto,
não possui coerção típica de uma lei. É possível o seu não cumprimento, já que
o interesse público não é estático e pode ser modificado. Sobre a utilização da
ação civil pública para adequar a conduta do administrador, ressalte-se
novamente que isso não representa ingerência alguma, porquanto é a própria
Constituição Federal (art. 129, inciso III) e as leis que lhe especificam que
admitem tal proceder. Colocadas tais premissas mostra-se inviável se acenar com
falsos argumentos como a falta de previsão orçamentária. Aliás, neste aspecto,
importante é trazer à colação parte do V. Acórdão proferido no Agravo de
Instrumento n. 82.036-5, da Oitava Câmara de Direito Público do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, Rel. José Santana, tratando sobre o
fornecimento de medicamento especial em ação intentada em face da Fazenda
Pública:
“A respeito, cabe
ver que a Portaria n. 21, de 21.3.95, do Ministério da Saúde, já recomendava a
utilização da combinação de novos medicamentos com o então conhecido AZT, de
modo que, somente atribuível à incúria da Administração não ter ela já
licitado, — inclusive com previsão orçamentária — de modo a permitir, de modo
continuado, o fornecimento de tais medicamentos aos dele necessitados, em
quantidades adequadas. Portanto, não socorre a agravante o argumento de
necessidade de licitação prévia ou previsão orçamentária, muito menos cabe-lhe colocar em dúvida a eficácia dos remédios em
questão, os quais, aliás, são sempre receitados pelos médicos”.
III — DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
O Estado sempre
procura safar-se de suas obrigações alegando que o Poder Judiciário ao conferir
as medidas necessárias para regularizar a situação caótica, está em verdade
invadindo a discricionariedade administrativa, não respeitando a divisão de
poderes, não observando os critérios da conveniência e oportunidade do
administrador.
Sem razão, porém.
A teoria clássica da repartição de funções estatais dentre vários órgãos
independentes, cujos contornos iniciais surgiram com Aristóteles, reservou ao
Poder Executivo as funções de gerenciamento da “res” pública e prestação de
serviços à comunidade. Contudo, para o bom desempenho dessas funções e o
alcance efetivo de suas finalidades, a Administração Pública tem
assegurada uma posição de supremacia em relação aos administrados com a
existência de diversos poderes da administração. Essa posição hierarquicamente
superior da Administração Pública deve coadunar-se com as regras básicas de um
Estado de Direito e vislumbra, sempre, o interesse público, não podendo
confundir-se com arbítrio.
Relevante
ponderar que a Administração Pública deve, assim como todos os administrados,
total obediência ao primado da Constituição e da legalidade.
Dessa maneira, os
poderes exercidos pelo administrador público são norteados e regrados pelas
normas constitucionais e legais, mesmo nas hipóteses em que o ordenamento
jurídico permite uma maior interação da vontade subjetiva da administração na
formação do ato administrativo.
Segundo lição de
Hely Lopes Meirelles, poder discricionário não se confunde com poder
arbitrário. Discricionariedade e arbítrio são atitudes inteiramente diversas.
Discricionariedade é liberdade de ação administrativa, dentro dos limites
permitidos em lei; arbítrio é ação contrária ou excedente da lei. Ato
discricionário, quando autorizado pelo direito, é legal e válido; ato
arbitrário é sempre ilegítimo e inválido (Direito Administrativo Brasileiro,
Editora Revista dos Tribunais, 1991, página 98). Ademais: “só a Justiça poderá
dizer da legalidade da invocada discricionariedade e dos limites de opção do
agente administrativo” (obra citada).
O que é aqui
tratado, pondere-se de passagem, não cuida de mera opção do administrador, mas
total omissão que afronta as normas constitucionais e legais. O administrador,
por óbvio, não pode optar pelo nada fazer e observar passivelmente o sofrimento alheio, agindo de forma omissa e ineficiente.
Quando o
Magistrado em sua função jurisdicional determina a observância das condições
necessárias para reverter quadro prejudicial à saúde da população, não se
encontra à evidência exorbitando. O Estado sim, é que exorbita, ao negar até o
básico. Com certeza, repise-se, não se encontra no âmbito da conveniência e
oportunidade do administrador dar ou não o básico, ou seja, fazer ou não
permanecer situação que pode levar ao dano irreparável à saúde e à vida de
várias pessoas! O pedido na espécie, pois, visará o básico necessário para
evitar ocorrências lesivas à saúde e ao progresso dos autistas, destinatários
também dos serviços de saúde pública, assistenciais e educacionais, pelo menos
deveriam ser.
Não tem sido
outro o posicionamento jurisprudencial:
“não pode ser
aceita a alegação da agravante, de que não tem condições imediatas de resolver
o problema e que a ação significa indevida intromissão do Judiciário no Poder
Executivo. Após a concessão da liminar, algumas providências foram adotadas
pela Municipalidade, o que demonstra que de fato havia uma situação de perigo e
que impossível não é a solução do problema. E, convenha-se, o direito à
saúde e ao saneamento é garantia constitucional e sua preservação pelo
Judiciário não significa interferência no Executivo” (g.n.) (Agrav. de
Instr. N. 204.059-1 — Terceira Câmara do Tribunal de Justiça — Relator Gonzaga
Franceschini).
Pondere-se ainda que:
“dúvida não
sucede no tocante às limitações do conteúdo discricionário da Administração a fim
de harmonizá-lo com o superior princípio constitucional da moralidade, e
possibilitar-lhe a missão de servir ao bem comum do povo. Enfim, a opção que
cabe ao administrador adotar é a tendente a alcançar soluções enquadradas na
legalidade, com vistas postas no interesse público, máxime se difusos e
correlacionados com incontornável interesse social, ad instar da espécie sob
exame. Vale dizer: a execução do ato administrativo é vinculada à obrigação
legal imposta ao Poder Público” (g.n.). (Agrav. de Instr. n. 221.677-1 —
2a. Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo — Rel. Vasconcellos Pereira).
De referir-se também o Acórdão da Oitava
Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Agravo
de Instrumento n. 86.815-5 — São Paulo):
“Sequer se pode
falar em ofensa ao princípio da separação dos Poderes, consagrado na
Constituição da República. É que, por força de preceito constitucional, é
assegurado a todos o acesso à Justiça, impondo-se ao Judiciário o dever de
apreciar todas as questões que lhe forem apresentadas. Assim sendo, como bem
decidiu o eminente Desembargador Nigro Conceição, ‘se é assegurado a todos,
indistintamente, o acesso à Justiça, a fim de assegurar direitos postergados ou
violados, inegavelmente, não tem o Judiciário, para cumprir sua sagrada missão
de julgar, outra alternativa senão a de apreciá-los,
em face das normas que os concedem ou asseguram, para garantir-lhes o exercício
ou eficácia. Limitar a atuação do Judiciário, nesse campo, data maxima venia, é
obstar o próprio cumprimento da Lei Maior quando assegura o acesso à Justiça,
sempre que exista um direito violado ou na iminência de o ser’”.
Aliás, o
executivo não tem o poder de vida e de morte sobre os administrados, de forma
que não lhe cabe a opção entre realizar ou não obras e serviços que minimizem
os riscos à saúde, que propiciem serviços especializados à parcela necessitada
da população. Assim, o Judiciário não só pode, como deve, impedir que a
atividade administrativa ou a omissão, reveladoras de um descaso ou
esquecimento, sejam nocivas à saúde pública, à assistência social e aos
direitos dos deficientes.
Não se pode negar
que a Administração, na implementação de seus desideratos ligados ao bem comum,
tem obrigações e deveres variados, da mesma forma que é investida de direitos e
faculdades. Quando atua ou se omite, o administrador, por vezes, equivoca-se,
divorciando-se do bem comum, mantendo-se na contemplação distorcida da verdade
social, omitindo-se e negligenciando uma situação grave. Aí é que surge a
possibilidade de correção da omissão ou do desvio praticado por intermédio dos
mecanismos de controle da administração, entre os quais destaca-se o Poder
Judiciário. A tutela jurisdicional, repise-se, não representa uma interferência
indébita que contraria a regra da divisão de Poderes. É cediço que a harmonia
entre os Poderes exige uma interdependência recíproca. Sob tal ângulo de
apreciação, os norte-americanos construíram a teoria dos freios e dos
contrapesos (“checke and balances) que permite a ingerência
de um Poder na vida do outro de maneira a propiciar o necessário equilíbrio do
Estado. Ora, ante a inviabilidade de exclusivismo e isolamento, não há
negar a interdependência dos poderes, em virtude do que a teoria dos poderes
pode e deve, técnica e cientificamente, ser caracterizada como a teoria da
interdependência dos poderes (vide Aderson de Menezes, in Teoria Geral do
Estado, 1984, p. 258).
Assim, quando o
Poder Judiciário atua na avaliação de determinados interesses públicos, o faz
na condição de revisor da violação de direitos subjetivos e coletivos que deles
derivam, impedindo omissões e desvios administrativos. Desnudados os limites da
discricionariedade, não pode o Judiciário, a pretexto de garantir o equilíbrio
do Estado, furtar-se de sua função de órgão revisor da violação de direitos,
mas deve pronunciar a cada caso o Direito. A Carta Federal, pondere-se,
estabeleceu o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. A ação
civil pública, em tal contexto, busca a submissão da Administração à
legalidade.
O direito à saúde
e à vida, bem como a tutela de tais bens, devem ser tratados com prioridade,
inclusive porque a Constituição em seu art. 197 colocou, de forma singular, as
ações e serviços de saúde como de relevância pública, ou seja, estabeleceu-se,
constitucionalmente, a prioridade com que deve ser tratada a questão.
Em suma, o caso cuida de inércia injustificável, não se trata de poder de
eleição pelo autor ou pelo Judiciário de diretrizes governamentais, mas de
reverter situação calamitosa e dramática. Portanto, não há ingerência indébita
no poder executivo. Não há violação ao disposto no Artigo 2° da Constituição
Federal.
Como salientado
por Tomás-Ramón Fernández deve-se:
“conceder à
administração — nos limites casuisticamente permitidos pela Constituição —
tanta liberdade quanto necessite para o eficaz cumprimento de suas complexas
tarefas” (Arbitrariedad y discrecionalidad. Barcelona: Civitas, 1991, p. 117).
Ora, o
administrador não tem a discricionariedade, em conseqüência, para deixar de
cumprir suas tarefas constitucionalmente previstas, não existe liberdade neste
aspecto, mas dever do Estado e direito do cidadão.
Verifica-se,
portanto, a necessidade do Poder Judiciário (CF, art. 5°, XXXV), em defesa dos
direitos fundamentais e serviços essenciais previstos pela Carta Magna — vida,
dignidade da pessoa humana, saúde — garantir a eficiência dos serviços
prestados, inclusive responsabilizando as autoridades omissas, porquanto
conforme leciona Alejandro Nieto:
“quando o cidadão
se sente maltratado pela inatividade da administração e não tem um remédio
jurídico para socorrer-se, irá acudir-se inevitavelmente de pressões políticas,
corrupção, tráfico de influência, violências individual e
institucionalizada, acabando por gerar intranqüilidade social,
questionando-se a própria utilidade do Estado” (La inactividad material de la
administración. Madri: Documentacion administrativa n. 208, 1986, p. 16).
Consigne-se, por
fim, que o tratamento ao autista constitui serviço essencial
de saúde e assistencial, pelo que deveria ser contínuo. A prestação
devida à sociedade pelo Estado, coloca-os na condição de consumidor e prestador
(vide art. 2° da Lei n. 8078/90). Ora, nos exatos termos do art. 22 dessa mesma
Lei os órgãos públicos são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes,
seguros e, quanto aos essenciais, contínuos, sendo que nos casos de
descumprimento, total ou parcial, das obrigações mencionadas, serão as pessoas
jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados.
V — DO AUTISTA COMO PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA — DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE AUTISTA
A “Convenção
Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as
Pessoas Portadoras de Deficiências”, realizada na Guatemala, quando da
Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos — OEA (Convención
Interamericana para la eliminación de todas las formas de discriminación contra
las personas com discapacidad, apobada em la primera sesión plenária, celebrada
el 7 de junio de 1999), firmou que “deficiência” significa uma
restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória,
que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais à
vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social. Nos termos
de tal Resolução os autistas vêm sofrendo certa discriminação em nosso âmbito
porque se estabeleceu que esta atitude contra:
“as pessoas
portadoras de deficiência significa toda diferenciação, exclusão ou restrição
baseada em deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência de deficiência
anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou
propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte
das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas
liberdades fundamentais”.
Ora, a
discriminação no caso ocorre de forma institucionalizada porque, apesar de ser
do conhecimento do governo o problema dos autistas, muitos deles vivendo como
animais completamente desamparados, sem quaisquer perspectivas, jogados à sua
própria sorte, não ocorre a disponibilização dos serviços, ensejando sérios
prejuízos à liberdade fundamental do indivíduo. Especificamente, neste
contexto, a tutela Constitucional é ampla, inclusive determinando a prestação
assistencial objetivando sua integração à vida comunitária (art. 203, IV),
sendo que o art. 208, inciso III, prevê o dever do
Estado de prestar educação especial aos portadores de deficiência. Segundo já
foi assinalado anteriormente, a Lei n. 7853/89, principalmente em seu art. 2°,
estabelece a obrigação do Estado fornecer tratamento prioritário, educação
especial e serviços de saúde aos portadores de deficiência, estabelecendo como
uma garantia o oferecimento de estabelecimentos de saúde para os cuidados
adequados (“sob normas técnicas e padrões de conduta apropriados”).
O art. 227,
caput, por outro lado, dispõe sobre o dever do Estado de dar proteção especial
às crianças e aos adolescentes portadores de deficiência. Isso para não falar
de todos os direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Importante é ter isso em mente porque, embora não esgote o campo dos
destinatários dos serviços de saúde e especiais na área do autismo, o universo
infantil e adolescente compreende significativa parcela do todo. O art. 3°
(ECA) prescreve que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, com proteção integral, assegurando-lhes
todas as oportunidades para o desenvolvimento físico, mental,
moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. O art.
4° estabelece que é também dever do Poder Público assegurar, com absoluta
prioridade, a efetivação dos direitos referentes, dentre outros, à vida e à
saúde. A garantia compreende a precedência de atendimento nos serviços públicos
ou de relevância pública. O art. 7° determina:
“a criança e o
adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde,
mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e
o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.
Importante mesmo
é o disposto no art. 11, caput:
“É assegurado
atendimento médico à criança e ao adolescente, através do Sistema Único de
Saúde, garantindo o acesso universal e igualitário às ações e serviços para
promoção, proteção e recuperação da saúde. § 1° A criança e o adolescente
portadores de deficiência receberão atendimento especializado. § 2° Incumbe ao Poder Público fornecer gratuitamente àqueles
que necessitarem os medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao
tratamento, habilitação ou reabilitação”.
No próprio corpo
do “Tomo I Caderno 4 do Fórum São Paulo Século XXI” (fls. 121/142v. dos autos
de inquérito civil), publicado em suplemento no Diário Oficial do Estado no dia
6 de junho de 2000, sob responsabilidade conjunta da “Assembléia Legislativa de
São Paulo”, do “Seade — Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados”, do
“Fórum Século XXI” e do “Governo do Estado de São Paulo” ficou consignado (fls.
86 do suplemento — fls. 130v.) que a Constituição Federal de 1998 determina que
é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios
cuidarem, da educação e da saúde das pessoas portadoras de deficiência,
garantindo-lhes assistência e proteção, tanto para as moradoras de áreas
urbanas, quanto para as de áreas rurais. Definiu ainda deficiência como “perda
total ou parcial de estrutura ou função fisiológica ou psicológica”, aduzindo
conceitos de “incapacidade” e de “desvantagem”. Apesar de tal reconhecimento,
verifica-se que o Estado, como já afirmado, não vem fornecendo o necessário
cuidado aos autistas.
Da mesma forma,
em novo suplemento do Diário Oficial do Estado, Seção I do Poder Executivo,
datado de 08 de agosto de 2000, comemorativo dos 10 anos do Estatuto da Criança
e do Adolescente, sob responsabilidade do “Governo do Estado de São Paulo” e da
“Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social” (fls. 113/120v.) há o
reconhecimento de forma plena, com base no art. 4° da Lei n. 8069/90, que é
dever do poder público assegurar com absoluta prioridade a efetivação dos
direitos referentes, dentre outros, à vida, à saúde e à educação. Em seu
parágrafo único estabeleceu-se que a prioridade absoluta compreende a primazia
de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, precedência de
atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, preferência na
formulação e na execução das políticas sociais públicas e a destinação
privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à
infância e à juventude. A fls. 04/05 do suplemento, o próprio Estado reconhece
como direitos à promoção, à proteção e à recuperação da saúde com acesso
universal e igualitário a todas as ações e serviços (art. 11 do
ECA). Outrossim, especificamente afirma ser direito das crianças e dos
adolescentes a prestação de atendimento médico especializado e outros recursos
para tratamento, habilitação ou reabilitação de portadores de deficiência (fls.
05 do referido suplemento).
O art. 54 do ECA e o mencionado suplemento editado pelo Governo do
Estado indicam que é dever do poder público assegurar “atendimento educacional
especializado aos portadores de deficiência”.
Agora sob a égide
dos diplomas internacionais de mencionar a “Convenção sobre os Direitos da
Criança”, adotada pela Resolução n. L. 44 — XLIV, da Assembléia Geral das
Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil em 24 de
setembro de 1990, que, em seu art. 23 estabelece o reconhecimento pelos
Estados-partes do direito da criança deficiente física ou mental de uma vida
plena e decente, estabelecendo como princípio a gratuidade da assistência,
visando assegurar o acesso à educação, à capacitação, aos serviços de saúde,
aos serviços de reabilitação, etc. Esta Convenção, bom de ser esclarecido,
conceituou criança todo ser humano menor de 18 anos de idade (art. 1°).
VI — DA LEGITIMIDADE PASSIVA — DO ESTADO DE SÃO PAULO
Primeiramente,
cabe referenciar que o art. 4° Parágrafo 1°, da Lei Complementar n. 791, de 9
de março de 1995, estabelece que
“por serem de relevância pública, as ações e
os serviços públicos e privados de saúde implicam co-participação do Estado,
dos Municípios, das pessoas e da sociedade em geral, na consecução de
resultados qualitativos e quantitativos para o bem comum em matéria de saúde”.
Devemos salientar
que o serviço a ser deferido aos autistas é especializado porque envolve
diversas disciplinas seja no campo da saúde, seja no educacional, isto é,
trata-se de sistema de alta complexidade, de responsabilidade da gestão
estadual, nos termos do inciso VI do Artigo 15 da mencionada Lei Complementar.
Além do mais, em seu § 1º encontra-se prescrito que o Estado é responsável
pelas ações e serviços de saúde nos Municípios, no limite das deficiências
locais. O Artigo 17, inciso I, da mesma forma, confere responsabilidade à
direção estadual do “SUS” nas ações e serviços de assistência integral à saúde.
O inciso II deste artigo (letra “a”) prescreve de forma clara que lhe compete,
em articulação com os Municípios, “as medidas de proteção especial à criança,
ao adolescente, ao idoso, ao portador de deficiência e à pessoa acometida de
transtorno mental”. Importante mesmo é o teor da letra “b” que confere outras
responsabilidades ao Estado:
“o atendimento
integral aos portadores de deficiências, de caráter regionalizado,
descentralizado e hierarquizado em níveis de complexidade crescente, abrangendo
desde a atenção primária de saúde até o fornecimento dos equipamentos
necessários à sua integração social”.
Assim, de ponderar-se
que como o Estado recebe recursos do “SUS” deve responsabilizar-se também
quanto à omissão neste âmbito. Além do mais, a omissão encontra-se no âmbito
estadual.
Em igual direção
encontra-se o Art. 17 da Lei n. 8080 de 19 de setembro de 1990.
A própria
Constituição Estadual estabelece responsabilidades conjuntas do Estado e dos
Municípios que deverão garantir, mediante o acesso universal e igualitário, o
direito à saúde com atendimento integral do indivíduo, abrangendo a promoção,
preservação e recuperação (art. 219, “2” e “4”). Tanto é verdade que o Artigo
222, caput e incisos IV e V estabelecem respectivamente:
“As ações e os serviços de saúde executados e
desenvolvidos pelos órgãos e instituições públicas estaduais e municipais, da
administração direta, indireta e fundacional, constituem o sistema único de
saúde, nos termos da Constituição Federal, que se organizará ao nível do Estado
de acordo com as seguintes diretrizes e bases:
IV — universalização da assistência de igual qualidade com instalação e
acesso a todos os níveis, dos serviços de saúde à população urbana e rural;
V — gratuidade dos serviços prestados, vedada a cobrança de despesas e taxa,
sob qualquer título”.
Patente, pois, a
responsabilidade do Estado quanto à matéria, bem como sua legitimidade passiva.
Além do mais, a ausência de atuação Municipal na área enseja a obrigação de
suprimento por parte do Estado de São Paulo, mesmo porque se trata de questão
de saúde (educação e assistencial) de alta complexidade.
Por sua vez, a
Norma Operacional Básica — SUS/1992, anexo I à Portaria n. 234-SNAS, de 07 de
fevereiro de 1992, expressou em termos claros e precisos, a divisão das
atribuições entre as instâncias do Sistema Único de Saúde, atribuições essas
determinadas nos artigos 16, 17 e 18 da Lei n. 8080/90:
“Traz (a Lei n.
8080/90), de forma muito clara, como incumbência primária do Município, a
exceção das ações e a gestão dos serviços de saúde. Atribui aos Estados, neste
particular, apenas o que o nível municipal for incapaz de assumir, e ao
Ministério da Saúde apenas o que estiver acima do nível estadual de
competência”.
Depreende-se,
pois, que sistemas mais complexos são de direta responsabilidade do Estado.
Importante,
também, abordar a questão atinente ao “financiamento da Saúde”, previsto na
Constituição Estadual e nas Leis ns. 8080/90 e 8689/93. Tais normas especificam
quais os recursos destinados, em cada esfera de governo, ao custeio da
seguridade social, em cuja área se insere a saúde.
Existe, assim, em
cada instância política, um determinado orçamento, com destinação de recurso à
área da saúde, pertencente à seguridade social.
Portanto, a
matéria pode ser sistematizada da seguinte maneira: a) a responsabilidade
quanto à saúde é do poder público, através do sistema único de saúde; b) o
sistema único de saúde é informado pelo princípio de ‘descentralização’ com
direção única em cada instância de Governo; c) compete à direção nacional do
sistema único de saúde, primacialmente, o estabelecimento das diretrizes
gerais; d) a execução propriamente dita das ações e serviços de saúde ficaram a
cargo das instâncias ‘estadual e municipal’ do sistema único de saúde; e) cabe
à direção ‘estadual’ do sistema único de saúde, executar ‘supletivamente’ ações
de saúde, ou seja, as mais complexas e nas quais haja omissão dos Municípios.
Na hipótese em
comento, portanto, tem-se caracterizada uma execução supletiva da instância
estadual do sistema único de saúde, por se tratar de matéria complexa,
consistente na disponibilização de serviço de assistência (saúde e educacional)
aos autistas, providência esta que se torna inviável para cada um dos
municípios e deve ser suportada pelo Estado de São Paulo.
Por último, a
sanar todas as eventuais indagações, a Constituição Federal estabelece que é
competência comum da União, Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
cuidarem da educação e da saúde das pessoas portadoras de deficiência. Aqui,
obviamente, a questão encontra solução de forma mais explicita, porquanto
tratamos do conjunto deficiência, saúde e educação (art. 23, II, da
Constituição Federal).
V — DA COMPETÊNCIA E DA COISA JULGADA
A Lei da Ação
Civil Pública e a Lei n. 9494/97 confundiu os efeitos da sentença com a
jurisdição. O legislador não soube distinguir competência de coisa julgada.
Ora, a imutabilidade de uma sentença não guarda relação com a competência do
Magistrado que expede a sentença. Porém, os dispositivos sobre a matéria
trazidos pela Lei n. 9494/97 são absolutamente inócuos, máxime porque o Código
de Defesa do Consumidor não sofreu qualquer alteração em tal aspecto, já que a
sua aplicação é integrada em relação à Lei da Ação Civil Pública.
Assim, o objetivo
deste tópico, matéria que certamente é do conhecimento de Vossa Excelência, é
explicitar que a competência do Juiz que aprecia e julga a causa não tem
relação com os efeitos e conseqüências que uma sentença produz fora da Comarca
em que foi proferida. Desta forma, exemplificando, uma sentença que proíba a
fabricação e o comércio de um produto em todo Estado, terá efeito a nível
estadual, o que não se confunde com a competência do Juiz para proferi-la que,
no caso, seria o da Capital do Estado em que se concretizou o dano.
A questão do
autismo, tratada está no âmbito estadual, a omissão e os danos conseqüentes
ocorridos encontram-se em tal alçada, motivo pelo qual competente para
apreciá-la é de um dos Juízes da Capital do Estado, mais especificamente de um
dos Magistrados de uma das Varas da Fazenda Pública. Aliás, neste aspecto é
totalmente aplicável o inciso II, do art. 93 da Lei n. 8078/90. Outra coisa
será o efeito de seu r. decisório, ressalte-se.
Por último, para
melhor exemplificar a matéria, deve ser trazida à colação a seguinte passagem
da obra de Hugo Nigro Mazzilli, “A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo”, Ed.
Saraiva, fls. 148):
“Enfim, não custa insistir, não se podem
confundir os efeitos que uma sentença pode produzir em todo o País, com a
jurisdição, que o juiz pode não ter sobre todo o território nacional. Assim,
para proibir a comercialização ou a fabricação de um medicamento no país, será
preciso ajuizar ação no Distrito Federal; mas para impedir a fabricação de um
produto onde atualmente esteja sendo produzido, a ação será ajuizada na Comarca
onde se situe a empresa produtora; em ambos os casos, porém, os efeitos das
sentenças vão ser sentidos em todos os lugares do País”.
VI — DO PEDIDO
Diante de todo o
exposto, o Ministério Público do Estado de São Paulo requer a citação do ESTADO
DE SÃO PAULO (FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL DE SÃO PAULO), na pessoa do
Excelentíssimo Procurador-Geral do Estado, em seu Gabinete localizado na Av.
São Luiz, n. 99, 4° andar, nesta Capital, para que, conteste, no prazo legal, a
presente ação, sob pena de suportar os efeitos da revelia (CPC, art. 319), que
deverá ser julgada inteiramente procedente, para condenar o ESTADO DE SÃO PAULO
(Fazenda Pública Estadual de São Paulo) às obrigações de fazer, nos seguintes
termos:
# 1 — arcar com
as custas integrais do tratamento (internação especializada ou em regime integral
ou não), da assistência, da educação e da saúde específicos, ou seja, custear
tratamento especializado em entidade adequada (não estatal, portanto, já que
não existe com tais características uma única no âmbito do Estado) para o
cuidado e assistência aos autistas residentes no Estado de São Paulo que, por
seus representantes legais ou responsáveis, comprovem mediante atestado médico
tal condição (de autista), documento este que deverá ser juntado a requerimento
endereçado ao Exmo. Secretário de Estado da Saúde e protocolado na sede da
Secretaria de Estado da Saúde ou encaminhado por carta com aviso de recebimento
(endereço: Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, n. 188). A partir da data do
protocolo ou do recebimento da carta registrada, conforme o caso, terá o Estado
o prazo de trinta (30) dias para providenciar, às suas expensas, instituição
adequada para o tratamento do autista requerente. A instituição indicada ao
autista solicitante pelo Estado deverá ser a mais próxima possível de sua
residência e de seus familiares, sendo que, porém, no corpo do requerimento
poderá constar a instituição de preferência dos responsáveis ou representantes
dos autistas, cabendo ao Estado fundamentar a inviabilidade da indicação, se
for o caso, e eleger outra entidade adequada.
O regime de
tratamento e atenção em período integral ou parcial (ou internação
especializada) deverá ser especificado por prescrição médica no próprio
atestado médico antes mencionado, devendo o Estado providenciar entidade com
tais características. Após o Estado providenciar a indicação da instituição
deverá notificar o responsável pelo autista, fornecendo os dados necessários
para o início do tratamento. Tudo isso até que o Estado, se o quiser,
providencie unidades especializadas próprias e gratuitas (e não as existentes
para o tratamento de doentes mentais “comuns”) para o tratamento de saúde,
educacional e assistencial aos autistas, em regimes integral ou parcial (ou
internação especializada), porquanto o Ministério Público e o Poder Judiciário
não podem indicar os modos e os meios pelos quais o Poder Executivo deverá
cumprir tais obrigações.
No caso, está-se
apenas, considerada a clássica divisão dos poderes do Estado estabelecida
constitucionalmente, reconhecendo a existência de um direito e da obrigação
conseqüente. Os modos e os meios de cumprimento (convênios — inclusive com
municípios —, organização de entidades estatais que prestem os serviços
especializados diretamente, pagamentos individualizados, “ONGs”, etc) devem ser
eleitos pelo poder executivo, dentro do âmbito — agora sim tem cabimento tal
forma de argumentação — da denominada discricionariedade administrativa. O que
não pode permanecer inalterada é a omissão estatal, já que o Estado ora nega
eficácia a normas legais e constitucionais. Fornecer diretamente ou através da
iniciativa particular é opção do Estado; que, no entanto, não tem a opção de
não fornecer, de forma gratuita, o serviço especializado tão essencial.
# 2 — ao final,
nos termos do art. 11 da mencionada Lei, deferido o pedido, requer-se seja o
requerido condenado ao cumprimento das diversas obrigações de fazer já
especificadas, determinando-se o cumprimento das atividades devidas, sob pena
de cominação de multa diária no valor de R$50.000,00 (cinqüenta mil reais) em
caso de descumprimento de quaisquer das obrigações antes mencionadas, quantias
que deverão ser revertidas para o fundo de reconstituição dos interesses metaindividuais
lesados, criado pelo art. 13 da Lei Federal n. 7347/85.
O atendimento aos
autistas guarda estreita relação com a manutenção da vida e da saúde, o que é
sempre relevante e urgente. Diante da urgência reclamada pela hipótese,
aguarda-se a concessão liminar da antecipação da tutela pretendida,
inaudita altera parte, nos termos do disposto no artigo 273, inciso I do CPC e
artigo 84, Parágrafo 3°, do Código de Defesa do Consumidor, aplicável por força
do artigo 21 da Lei n. 7347/85.
A antecipação da
tutela urge e impera, porquanto o provimento da pretensão a final poderá ser
inócuo para prevenir os danos causados aos autistas, muitos deles no momento
vivendo em “cercadinhos” como se fossem animais, despidos de qualquer
possibilidade de progresso e tratamento. Relevante é o fundamento da lide, pois
presentes estão o “fumus boni juris” e o “periculum in mora”.
Presentes a
aparência do bom direito e o perigo da demora. Conforme já foi exaustivamente
ressaltado, a prestação do serviço de saúde é de relevância pública, e por isto
o requerido deve prestá-lo de modo apropriado aos usuários. Antes de tudo, porém,
o poder público deve oferecer o serviço e não deixar uma parcela da população
desamparada. A obrigação da prestação adequada desse serviço essencial é
princípio que deve ser cumprido plenamente a satisfazer a demanda. Neste
sentido o art. 22 da Lei n. 8078/90, conforme já colocado, segundo o qual:
“Os órgãos públicos, por si ou suas empresas,
concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento,
são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais,
contínuos. Parágrafo único — Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das
obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a
cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código”.
O perigo da demora
também está suficientemente ressaltado nesta petição inicial. Existe
justificado receio de ineficácia do provimento final, razão pela qual é preciso
que seja concedida liminarmente e com urgência a medida pleiteada. Há sério
risco à vida e à saúde dos autistas, não é possível deixar perpétua a situação
exposta, pois os danos estão ocorrendo a cada momento, seja com relação aos
autistas há muito tempo diagnosticados positivamente — porquanto perdem a
oportunidade de uma melhor adaptação com o meio e os conseqüentes progressos e
qualidade de vida — seja com relação a crianças que no momento estão sendo
entendidas como tal e que não dispõem de qualquer opção pública de tratamento
adequado.
É por tais
motivos, ou seja, em situações dramáticas como a presente, que o Código de
Processo civil fornece meios ao Juiz para antecipar, total ou parcialmente, os
efeitos da tutela objetivada.
Conforme leciona
Cândido Rangel Dinamarco (“Tribunal da Magistratura”, 337, Caderno de
Doutrina/julho e agosto 1998):
“Como por diversos modos o tempo pode
conduzir à frustração dos direitos das pessoas que buscam tutela através do
processo, variados são também os instrumentos que ao longo dos séculos se
excogitaram para neutralizar esses efeitos perversos. Há direitos que sucumbem
de modo definitivo e irremediavelmente quando a tutela demora, mas há também
situações em que, mesmo não desaparecendo por completo a utilidade das medidas
judiciais, a espera pela satisfação é fato de insuportável desgaste, em razão
da permanência das angústias e incertezas. Há também o desgaste do processo
mesmo, como fator de pacificação com justiça, o que sucede quando o decurso do
tempo atinge os meios de que ele precisa valer-se para o cumprimento de sua
missão social (prova e bens). Desde a complicação das formas, excesso de atos e
de recursos, até a simples demora judicial na tramitação dos feitos e oferta da
tutela — tudo conjura contra a efetividade do sistema e, para o combate a cada
uma dessas causas, certas medidas são bastante conhecidas e algumas são também
antigas (...)” .
“Um direito é mortalmente atingido, quando as demoras do processo
impedem qualquer utilidade do provimento que ele produziria”.
Na hipótese em apreço, caso não seja concedida
a antecipação da tutela pleiteada, a pretensão dos autistas e de seus
familiares será mortalmente atingida, pois sendo os primeiros destinatários de
serviços especiais de saúde, educacional e assistencial especializados, não
podem aguardar o lento tramitar do processo para somente a final, se a ação for
julgada procedente, vencidos todos os recursos, obter o benefício. Incalculável
o prejuízo que seria alcançado, seja no que concerne ao progresso pessoal, à
integração, à saúde, à educação, enfim, à vida.
Em caso do
deferimento da tutela antecipada, não havendo atendimento integral por parte do
requerido dentro do prazo fixado, aguarda-se a cominação de multa diária de R$
50.000,00, ou outro valor a ser arbitrado por Vossa Excelência, na forma do
Parágrafo 2° do Artigo 12 da Lei n. 7.347/85 (Parágrafos 3° e 4° do Art. 84 do
Código de Defesa do Consumidor).
Requer-se, por
fim, que as intimações do Ministério Público sejam realizadas pessoalmente
(Promotor do GAESP), na forma da lei, na Rua Riachuelo, n. 115, 1° andar, salas
38 e 39, Centro, São Paulo.
Protesta-se pela
produção de provas, por todos os meios admitidos em direito, sobretudo pela
juntada de novos documentos e perícias, além de oitiva de testemunhas e
peritos, caso se faça necessário.
Em virtude de
expressa previsão legal de dispensa de custas, tanto para o demandante quanto
para o demandado, e da vedação constitucional ao recebimento de honorários
advocatícios por parte do Ministério Público, deixa-se de postular nesse
sentido.
Dá-se à causa o valor de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais).
Termos em que,
P. e E.
Deferimento.
São Paulo, 26 de outubro de 2000.
João Luiz Marcondes Júnior
César Pinheiro Rodrigues
Promotores de Justiça do
Grupo de Atuação Especial da Saúde Pública e da Saúde do Consumidor — GAESP —
Órgão de Execução do Ministério Público do Estado de São Paulo — Rua Riachuelo,
n. 115, 1º andar, salas 38 e 39, Tel. 3119-9090.