O JOGO E O BRINQUEDO COMO ELEMENTOS DA CULTURA

 

 

Gildo Volpato

 

 

Resumo: Esse artigo tem como objetivo apresentar algumas reflexões acerca do jogo e do brinquedo, considerando que, por estar inserido num contexto social e cultural, pressupõe determinantes sócio-culturais. Nesse sentido, procuramos apresentar algumas considerações sobre as representações de papéis sociais implícitas no brinquedo e no ato de brincar. Discussões a respeito da invasão da cultura de massa sobre a cultura popular e o crescente processo de homogeneização das formas de brincar no mundo globalizado, também foram priorizadas nesse trabalho.

 

Introdução

Estudar o jogo e o brinquedo, é sempre algo fascinante; pois a magia, o entusiasmo, a emoção presentes em situações lúdicas, não podem ficar ausentes em pesquisa e literatura.

Já faz algum tempo que o fenômeno jogo deixou de ser entendido como atividade natural de satisfação dos instintos infantis ou como forma de descarregar energia acumulada, ou como preparação para a vida séria ou ainda para despertar tendências que se encontrassem latentes no indivíduo, ou como catarse para purgar o indivíduo de tendências anti-sociais, sexuais, etc.

No inicio deste século, Vygotsky já dizia que é por meio do jogo e da brincadeira, que a criança se apropria dos signos sociais, o que deu novos indicativos para buscar compreendê-lo enquanto elemento sócio-cultural.

Sendo o brinquedo considerado o material utilizado para jogar e brincar, torna-se também um objeto de estudo de profunda riqueza. Revela nossa cultura, nossos valores, crenças e concepções de mundo.

Portanto, jogo e brinquedo só podem ser entendidos vinculados aos fatores históricos e culturais que propiciaram seu aparecimento, ou seja, dentro da produção coletiva dos homens em sociedade.

Para que possamos apreendê-lo, precisamos levar em consideração as palavras de Max Weber (apud Geertz, 1978, p. 15), quando diz que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu.

Trataremos aqui do jogo e do brinquedo que supõem um contexto social e cultural. Portanto, partiremos do pressuposto que a criança está inserida, desde o seu nascimento, num contexto social e seus comportamentos estão impregnados por essa imersão inevitável. Dessa forma, o jogo e o brinquedo são considerados como o resultado de relações interpessoais, portanto de cultura. 

Nesse sentido, precisamos voltar nosso olhar para os princípios que sustentam os motivos, as escolhas, o usufruto e as organizações que envolvem o que chamamos brinquedo e jogo. 

Se pudermos interpretar o conteúdo das mensagens e os comportamentos apresentados em situações de brinquedo, certamente encontraremos diversidade de significados que falam de heranças sócio-culturais. Pois, como diz Huizinga (1996, p. 3,4),

 

O jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. Ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa em jogo que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação.

 

Nesse sentido, por meio deste estudo, discutiremos os significados do jogo e do brinquedo como elementos da cultura, procurando estabelecer um diálogo entre autores de Antropologia e clássicos na abordagem deste assunto.

 

Um pouco da história

Era uma vez ...

O jogo contém dimensões antropológicas, sociais e políticas de profunda densidade.

Falar em jogo, portanto, consiste em mexer em questões que nos remetem a lembrar desde a origem até as formas mais sofisticadas de produção de brinquedos e de brincar. Remete-nos a pensar a criança e seus brinquedos, como fonte de saber e conhecimentos, pois, como bem lembrou Benjamin (1984) onde as crianças brincam, existe um segredo enterrado.

Tentar definir o jogo não é tarefa difícil; no entanto, quando se pronuncia a palavra "jogo” cada um pode entendê-lo de maneira diferente.

De acordo com Raabe nada permite afirmar, categoricamente, que determinado tipo de comportamento é jogo ou que determinado tipo de objeto é brinquedo. Qualquer julgamento neste campo seria subjetivo. O mesmo objeto, uma panela por exemplo, seria um utensílio doméstico nas mãos da dona de casa e um brinquedo para seu filho.

Cada contexto social constrói uma imagem de jogo, conforme seus valores e modos de vida que se expressa por meio das ações e representações dos sujeitos.

Dessa forma, enquanto fato social, enquanto cultura, o jogo assume a imagem, o sentido que cada sociedade lhe atribui. É esse o aspecto que nos mostra porque, dependendo do lugar e da época, os jogos assumem significações diferentes. Como exemplo podemos citar o arco e a flecha, hoje considerados como brinquedos, em certas culturas indígenas representam instrumentos para a arte da caça e da pesca.

Muitos outros objetos foram utilizados no trabalho, em atividades artísticas, místicas, sacras, antes de serem utilizados em jogos e considerados brinquedos. Podemos citar o "Cavalo de Pau" que foi uma imitação das atitudes dos adultos, numa época (Idade Média) em que o cavalo era o principal meio de transporte e de tração. Da mesma forma a técnica dos moinhos de vento, citada por Ariés (1981), iniciada na Idade Média, logo foi motivo de imitação das crianças com as pás que giravam na ponta de uma vareta. Apesar de os moinhos de vento terem desaparecido na maioria dos países, os cata-ventos continuam sendo confeccionados e vendidos, principalmente em feiras e festas religiosas.

O balanço, conforme Nilsson, fazia parte dos ritos da Aiora, a Festa da Juventude, interpretada como o rito da fecundidade, freqüente ainda no século XVIII. Nesse ritual os meninos pulavam sobre odes cheios de vinho, e as meninas eram empurradas em balanços. Havia estreita ligação entre a cerimônia religiosa comunitária e a brincadeira, que com o tempo se libertou do simbolismo religioso, tornando-se o balanço um brinquedo cada vez mais reservado às crianças.

A boneca é brinquedo para uma criança que brinca de "filhinha", mas para certas tribos indígenas, conforme pesquisas etnográficas, é símbolo de divindade, objeto de adoração.

No livro, Os Melhores Jogos do Mundo podemos identificar a origem do xadrez e da perna de pau. O xadrez teve sua origem na Índia há muitos séculos e, na sua trajetória para o ocidente, peças representando elefantes, marajás e carros de guerras foram sendo transformados em bispos, reis e torres de castelos, mostrando a influência dos acontecimentos de uma determinada época, principalmente dos acontecimentos políticos. Na época de Napoleão Bonaparte, o rei branco do xadrez foi substituído pela figura do general e imperador.

A perna-de-pau está associada a práticas religiosas e mitológicas bastante remotas. Era utilizada na África pelos feiticeiros, em ritos de iniciação nos quais os jovens eram admitidos no mundo adulto.

O chocalho, um dos primeiros brinquedos presenteados aos bebês, foi inicialmente um objeto de adoração indígena, e, conforme Benjamin (1984, p.72), desde tempos remotos é um instrumento de defesa contra maus espíritos, o qual justamente deve ser dado ao recém-nascido.

O papagaio, cujo significado representava a alma, já possuiu um papel mágico, principalmente nas grandes festas religiosas do Extremo Oriente.

Muitos dos mais antigos brinquedos (a bola, o papagaio, o arco, a roda de penas), foram de certa forma, impostos às crianças como objetos de culto e somente mais tarde, devido à força de imaginação das crianças, transformados em brinquedos.

Havia certa margem de ambigüidade em torno dos brinquedos, principalmente na sua origem. A maioria deles eram partilhados tanto por adultos, quanto por crianças, tanto por meninos quanto por meninas, nas mais diversas situações do cotidiano. Essa ambigüidade começou a desaparecer, principalmente com o início da especialização dos brinquedos, que passou a ocorrer no século XVIII, com o avanço do capitalismo.

O brinquedo passou a ser mercadoria comercializada com fins lucrativos. A partir daí, os objetivos do brinquedo começam a se afastar da sua origem.

Conforme Benjamin (1984, p.68), "Uma emancipação do brinquedo começa a se impor; quanto mais a industrialização avança, mais decididamente o brinquedo subtrai-se ao controle da família, tornando-se cada vez mais estranho não só às crianças, mas também aos pais".

Pela crescente tendência de racionalização, principalmente das sociedades ocidentais, as características do brincar e jogar foram mudando radicalmente. O que antes era motivo de profundas relações familiares, com valores e sentidos culturais muito significativos, torna-se um objeto destinado a um público alvo, com um fim em si mesmo.

Valores simbólicos e papéis sociais

É de menino ou de menina?

Mesmo com todas as mudanças que ocorreram ao longo dos tempos, as crianças continuam brincando, continuam jogando e se expressando por meio das atividades lúdicas. Se isso ocorre, apesar de vivermos numa sociedade que supervaloriza o trabalho em detrimento do lazer e que atribui ao tempo um valor financeiro, é porque é atribuído ao brinquedo e ao brincar algum sentido, ou valor social, principalmente na vida das crianças.

Conforme Brougère (1997), é preciso aceitar o fato de que o brinquedo está inserido em um sistema social e suporta funções sociais que lhe conferem razão de ser. Diz ainda: "Para que existam brinquedos é preciso que certos membros da sociedade dêem sentido ao fato de que se produza, distribua e se consuma brinquedos" (p.7).

Podemos dizer que muitos dos brinquedos são fabricados para "ensinar' comportamentos, gestos, atitudes, valores, considerados "corretos" em nossa sociedade. Por isso, a maioria deles, já vêm prontos, catalogados, contendo todas as instruções de uso, idade, sexo, número de participantes, tempo de duração: Basta segui-las.

Como diz Santim (1990, p.26),

 

Infelizmente o homem adulto, do negócio e do trabalho, acabou se aproveitando desta dimensão lúdica da criança. Explorando essa ludicidade da criança, o adulto a induz, com artifícios, a adotar os valores do adulto. A astúcia do adulto começa pela produção de brinquedos que a introduzem no mundo do trabalho e das funções do adulto.

 

É provável que a criança vá procurar imagens sedutoras de adultos para se espelhar. Portanto, procura nos brinquedos, principalmente naqueles que são miniaturas de objetos de uso adulto, imitar os papéis sociais estabelecidos na prática cotidiana.

Essa procura parece uma prática livre, autônoma, mas não é bem assim, conforme diz Vygotsky (1994), "Em um sentido, no brinquedo a criança é livre para determinar suas próprias ações No entanto, em outro sentido uma liberdade ilusória, pois suas ações são de fato subordinadas aos significados dos objetos, e a criança age de acordo com eles" (p.136).

Geralmente, qualquer que seja o brinquedo, vai propor à criança uma imagem que exalta o adulto, cujas características o transformam num personagem que merece atenção. 

Geralmente os meninos são presenteados com carrinhos, revólveres, espadas, robôs, etc, enquanto as meninas com bonecas, carrinhos de bebê, e objetos de uso doméstico em miniatura. Assim, os papéis são desenhados com muita clareza: a menina, no ato de brincar torna-se mãe, professora, tia, comadre, irmã; por sua vez, o menino torna-se pai, motorista, índio, polícia, ladrão.

Sendo assim, parece-nos mais comum os meninos aprenderem brincadeiras que tenham relação uma aceitação de atitudes masculinas, como ser destemido, arriscar mais, explorar, correr, enquanto brincar de boneca e de casinha demonstra afetividade, sensibilidade, carinho, que em nossa sociedade encerram sentimentos relacionados às meninas, futuras mães, mulheres.

Brougère afirma que "O universo feminino parece ficar junto da família e do cotidiano, enquanto o do menino, que começa, sem dúvida com a miniatura do automóvel, traduz a vocação para a descoberta dos espaços longínquos, escapando do peso do cotidiano" (idem, p.21).

Essas atitudes, para cada sexo, são consideradas "normais" em situações de brinquedo, pois este tipo de comportamento faz parte de suas rotinas.

Isto nos lembra Bourdieu (1990) quando diz

 

Se o mundo social tende a ser percebido como evidente e a ser apreendido (...) é porque as disposições dos agentes, o seu habitus, isto é, as estruturas mentais através das quais eles apreendem o mundo social, são em essência produto da interiorização das estruturas do mundo social (p.158).

 

Dessa forma, os pais, para garantirem a continuidade dos hábitos de sua coletividade, procuram direcionar, por meio dos brinquedos e jogos, as atitudes e gostos considerados característicos para cada sexo.

Conforme Brougére (1997, p.63), o brinquedo trata-se da "materialização de um projeto adulto destinado às crianças (portanto vetor cultural e social) e que tais objetos são reconhecidos como propriedade da criança, oferecendo-lhe a possibilidade de usá-los conforme a sua vontade, no âmbito de um controle adulto limitado."

Ou como diz Benjamin (1984, p. 14), de maneira geral, os brinquedos documentam como os adultos se colocam com relação ao mundo da criança.

Sendo o brinquedo um elemento que transmite certos conteúdos simbólicos, imagens e representações produzidas pela sociedade, faz-se necessário refletirmos sobre outros valores, além dos já mencionados, que estão sendo veiculados.

Em nossa sociedade capitalista, é comum encontrarmos brinquedos que estimulam a competição, o individualismo e a vitória a qualquer preço, efetuando como diz Neto (1996, p.113), "uma associação ideológica desses valores com os países capitalistas centrais, como os Estados Unidos".

Conforme Oliveira (1986),

 

Inúmeros brinquedos lançados no mercado são orientados explicitamente à exaltação do herói, cultuando o desempenho individual e ultrapoderoso de certos personagens. Essa reverência é levada ao exagero, privilegiando-se o caráter individualista, as façanhas de um ser superdotado, capaz de derrotar tudo e todos, fazendo-se reconhecer, distintivamente em relação aos simples mortais, por sua força, sua invencibilidade, seu poder. Na maior pane dos casos, os heróis não aparecem localizados historicamente. Em geral, são apátridas. Mas, mesmo quando isso ocorre, seus nomes são, invariavelmente, americanos (p.85).

 

Outro tipo de jogos ou brinquedos que merecem ser destacados são os eletrônicos, que, espalhados em quase todos os países, passam determinados valores condenáveis. Para exemplificarmos, podemos citar partes do conteúdo da matéria publicada na folha de São Paulo, Videogames racistas e neonazistas viram mania em escola da Áustria, de autoria de Sandra Lacut, da France Press.

Esses jogos estimulam preconceitos racistas, incentivando a derrota de tudo que se opõem aos valores arianos, consagrando assim o nazismo.

Esses jogos estimulam preconceitos racistas, incentivando a derrota de tudo que se opõem aos valores arianos, consagrando assim o nazismo.

Diz Lacut, "Os videogames trivializam o Holocausto (assassinato em massa de judeus, ciganos, homossexuais e dissidentes, durante o nazismo) e incitam ao ódio contra os judeus e os turcos".

Outro jogo tem como objetivo propor hierarquização das pessoas por raças, fazendo crer na hegemonia da raça ariana.

Conforme Lacut, (p. 114),

 

Outro, chamado 'Prova Ariana', coloca perguntas que revelam ao jogador seu grau de pureza racial. Aquele que for apenas 'meio ariano' pode se desforrar, 'matando comunistas'. De acordo com o grau de 'impureza do sangue', o jogador só pode ser varredor ou limpador de privadas. E o 'judeu' é automaticamente atirado na câmara de gás.

 

Neto (1996) conclui dizendo que é possível que o autor do jogo se tenha inspirado no terrível mundo criado por Aldous Huley chamado "Admirável Mundo Novo", onde as pessoas eram divididas em castas desde o berço, sendo que os "Alfas" representavam o topo da hierarquia, enquanto os "Ipsilons" o seu grau mais baixo sendo responsáveis por "limpar privadas".

Infelizmente, esses valores que podem estar implícitos no jogo, nem sempre são observados, ou melhor, raramente são apreendidos, analisados e criticados. Eles geralmente se escondem atrás de muita ação, de muita cor, luz e som, características dos brinquedos eletrônicos.

Outro fato que gostaríamos de destacar, são os fatores que influenciam na definição dos desejos e gostos por determinados brinquedos e jogos, ou seja, a influência dos meios de comunicação de massa.

Cultura de massa e cultura popular

Só eu não tenho um desses!

Não temos dúvida que, com a chegada dos meios de comunicação de massa, os modos de experiência e os padrões de interação em nossa sociedade se transformaram.

Na cultura moderna, os modos de transmissão orais e escritos foram quase que substituídos por modos de transmissão baseados nos meios eletrônicos.

Conforme Thompson (1995, p.318), "todo indivíduo presente num local doméstico privado, possuidor de um aparelho de televisão, tem acesso potencial à esfera da publicidade criada e mediada pela televisão"

Desse modo as crianças são alvo fácil da indústria cultural do brinquedo. Por meio da propaganda são informadas sobre novos brinquedos no mercado, que prometem proporcionar-lhes maior prazer, emoção, alegria.

A diversidade de imagens que mostram crianças brincando com os mais variados tipos de bonecas, bicicletas, carrinhos e outros brinquedos, incentivando e apontando estratégias de como consegui-los com seus pais, são cada vez mais freqüentes na televisão, principalmente em determinadas datas do ano, como Natal e Dia das Crianças.

A propaganda procura passar uma realidade que não é a de todas as crianças. A de que o brinquedo pode ser adquirido por toda e qualquer pessoa. Mas a realidade não é essa, e as diferenças podem ser verificadas nas ruas no dia seguinte a essas datas. Basta olharmos nas mãos das crianças. Mas esse é "apenas" um pormenor que não importa muito aos meios de comunicação de massa.

Conforme Chauí (1994), os assuntos transmitidos pelos meios de comunicação de massa, "colocam os receptores num universo de atualidade por eles desejado, ainda que as transmissões possam reforçar a apropriação desigual dos chamados bens culturais pelas diferentes classes sociais" (p.32).

Um fato que merece atenção, é que os meios de comunicação, pela fala dos especialistas, tendem a invalidar os brinquedos e jogos confeccionados pelas próprias crianças, que se sentem inferiorizadas por não possuírem um igual ao veiculado pela mídia. Dessa forma há uma invasão da chamada cultura de massa à cultura popular.

Os meios de comunicação de massa, pela sua capacidade intimadora, impõem, conforme Chauí (ibidem, p.40), uma estrutura cultural na qual os indivíduos são convidados a participar, sob pena de exclusão e invalidação sociais ou de destituição cultural.

Mundialização da cultura e homogeneização do brincar

Eu quero um igualzinho àquele!

Dia após dia, aumenta o número de palavras e imagens, informações e idéias a respeito de produtos e acontecimentos, via televisão, rádio e jornais, tornando-se pontos de referência comuns para milhões de indivíduos de diversos pontos do país e até mesmo do mundo.

Conforme Thompson 1995, (p.219):

 

Mesmo as formas de entretenimento que existiram por muito séculos, tais como a música popular e a competição esportiva, estão hoje entrelaçadas com os meios de comunicação de massa. Música popular, esportes e outras atividades são em grande parte mantidas pelas indústrias da mídia, que estão envolvidas não apenas na transmissão e apoio financeiro de formas culturais preexistentes, mas também na transformação ativa dessas formas.

 

Neste mundo globalizado, os artefatos e imagens de uma vida agradável nos ideais americanos, são exportados facilmente para o mundo inteiro. Esse fato tem sido visto por alguns críticos, conforme observa Featherstone (1997, p.24), como indicador da homogeneização global da cultura, na qual a tradição dá lugar à cultura americana do consumo de massa.

Voltamos a colocar o brinquedo e o jogo no centro desta discussão.

Tanto o brinquedo, quanto as formas de brincar e jogar já passaram por inúmeras transformações ao longo da história. Porém, esta mesma história não nos mostra outro tempo em que ocorreram tantas mudanças e massificações em torno do brinquedo e do brincar como nestes últimos anos, coincidindo com o crescimento da informação. Isso não é difícil de entender se levarmos em consideração que, num mundo globalizado, "o cidadão" passa a ser "o consumidor", não somente de seu país, mas internacionalmente.

Conforme Ortiz ( 1994, p, 122) "O dever primeiro de todo o cidadão é ser um bom consumidor. O universo do consumo surge assim, como lugar privilegiado da cidadania. Por isso os diversos símbolos de identidade têm origem na esfera do mercado".

O crescente processo de homogeneização em torno do brinquedo é considerado por Marcellino (1990) como um furto e desrespeito em relação à cultura do lazer na infância, enquanto Benjamin (1984) acusa a indústria cultural do brinquedo, por colocar a criança frente a uma realidade pré-fabricada.

Recentemente presenciamos dois fenômenos típicos de massificação dos brinquedos e padronização do brincar. Foi o caso do "bichinho virtual" chamado Tamaguchi, que virou mania internacional, fazendo com que crianças do mundo inteiro atendessem às solicitações programadas nele, tais como: dar de comer, beber, tomar banho, ser vacinado, apagar a luz, fazer carinho, fazer estudar, entre outras.

Em nível nacional, presenciamos um rápido esvaziar nas prateleiras de supermercados e lojas de brinquedos de um bambolê chamado "bambotcham", do grupo É o Tchan numa versão mais colorida, mais atraente, principalmente por fazer parte da coreografia de uma música chamada Bambolê, desse mesmo grupo.

Conforme Kunz (1994), a crescente homogeneização que faz com que os brinquedos e jogos das crianças na Europa, EUA, Japão ou Brasil se assemelham, não acontece apenas por interesses mercadológicos.

 

Há um certo interesse, também, no controle social pela influência dos brinquedos e objetos de jogo industrializado, sobre o imaginário infantil. Pois, a criança forma o seu imaginário social, cultural e lúdico, através do seu pensar, agir e sentir, que até a idade do adolescente, configura-se, especialmente, pela brincadeira e o jogo. No entanto, se pelo simples brincar a criança é afastada de sua realidade, o seu imaginário é facilmente dominado e sua subjetividade controlada, facilitando assim, a submissão e a obediência (p.87).

 

No seu brincar a criança constrói e reconstrói simbolicamente sua realidade e recria o existente. Porém, o brincar, criativo, simbólico e imaginário, enquanto poder infantil de conhecer o mundo e se apropriar originalmente do real, está sendo ameaçado pela interferência da indústria do brinquedo.

Considerações finais

É interessante levarmos em consideração o fato de que, apesar de toda interferência dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural do brinquedo, as crianças não são meras receptoras do que é veiculado. Nesse processo, há também elaboração pelas próprias crianças dos elementos de seu patrimônio cultural.

Mesmo dizendo que as crianças geralmente agem incorporando normas e padrões de comportamentos, a partir dos elementos simbólicos que a sociedade lhes impõe, não estamos afirmando que não existam mudanças e contradições.

Os brinquedos, como afirma Brougère (1997, p,105),

 

orientam a brincadeira, trazem-lhe a matéria. (...) Só se pode brincar com o que se tem, e a criatividade, tal como a evocamos, permite, justamente, ultrapassar esse ambiente, sempre particular e limitado.

 

Afinal, não podemos ignorar o fato de que, mesmo com toda a produção de telefones infantis, o barbante amarrado em duas latinhas continua se tornando um telefone; as latas de alumínio sobrepostas se transformam em jogo de boliche; pneus, plásticos, madeiras e muitos outros objetos, aparentemente sem conotação lúdica, continuam despertando a atenção das crianças, as quais os transformam em prazerosos brinquedos.

A esse respeito são especiais as palavras de Walter Benjamin (1984) ao dizer que:

 

Elas (as crianças) sentem-se irresistivelmente atraídas pelos destroços que surgem da construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nesses restos que sobram elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e só para elas. Nesses restos elas estão menos empenhadas em imitar as obras dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais, através daquilo que criam em suas brincadeiras, uma nova e incoerente relação (p.77).

 

A reflexão aqui apresentada tem a intenção de evidenciar que atividades, aparentemente sem importância, podem ter significado especial para os que a vivenciam, significado que, muitas vezes apresentados de modo diferente do nosso habitual entendimento, revela nossa relativa limitação em compreender as realizações do outro.

A responsabilidade social é de cada um e de todos nós. Por isso, essas atividades que continuam apesar do novo, nos lançam o desafio de perseguir, de encontrar e de cultivar essas práticas e pensamentos em nós mesmos, no mundo que nos cerca, nas pessoas que conosco convivem, ainda que, utilizando as palavras de Oliveira (1997, p. 114), "isto venha a constituir um caminho dissidente, que se recusa a aderir à tirania do novo pelo novo".

Somente dessa forma poderemos considerar que o processo de globalização não produz a uniformidade cultural. Ela nos torna, sim, conscientes de novos níveis de diversidade, como nos diz Featherstone (1997, p.31).

Gostaríamos de concluir, lembrando as palavras de Geertz (1968): "Cada análise cultural séria começa com um desvio inicial e termina onde consegue chegar antes de exaurir seu impulso intelectual" (p.35).

Portanto, um assunto tão polêmico, que longe de estar esgotado, promete muitas descobertas e novos vôos.