O DESAFIO DA POLÍTICA DE ATENDIMENTO À FAMÍLIA: DAR VIDA ÀS LEIS - UMA QUESTÃO DE POSTURA

 

 

Geney M. Karazawa Takashima[1]

Professora Adjunta do Departamento de Serviço Social.

 

 

 

Família - este micro-universo que, por vício das políticas sociais e setoriais, sempre foi objeto de intervenção de uma maneira eclipsada e até banalizada, salvo raras e sérias exceções. A tendência destas grandes políticas sempre conduziu à compreensão da mesma isolada de seu contexto e dos valores sócio-culturais, com predominância generalizante.

 

Questiona-se, hoje, que resultados provocaram estas políticas.

Um agir profissional também fragmentado, uma postura, por vezes inconsciente, mas reprodutora dos discursos institucionais, fragilizados pela ausência de crítica e criatividade, contribuiu para a compartimentalização da realidade familiar e comunitária em sua globalidade.

 

As conseqüências desta caminhada são os resultados patenteados no doloroso perfil dos grupos familiares e suas situações, agravadas e complexificadas a cada dia, mês e ano que avança, confirmadas pelas trágicas estatísticas.

A partir desta percepção espaço-temporal quase estática, a  família passou a ter nova configuração, tanto na Constituição Federal de 1988, como no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) com um parâmetro fundamental, através do estímulo à convivência familiar e comunitária.

 

O próprio princípio norteador do Ano Internacional da Família (AIF) - 1994, consiste na "família como unidade básica da sociedade, instrumento essencial de preservação, transmissão  de valores culturais, instituição que educa, forma e motiva o homem e merece uma atenção especial de proteção e assistência. Na concepção de instrumento essencial de ação, a família assume responsabilidade conforme a Declaração Universal dos Direitos do Homem e Acordos e Convenções das Nações Unidas".

 

Portanto, um eixo básico que não deixa dúvidas, nem às instituições e tampouco aos que pretendem abordar as famílias, de que o papel do Estado deveria ser não substituto, mas um grande aliado e fortalecedor deste grupo, proporcionando apoio ao desempenho de suas responsabilidades e missão.

 

 

Apoio e orientação à família na política de atendimento

 

Abordar a política de atendimento à família no Brasil implica uma análise qualitativa das políticas sociais, seu desempenho e abrangência de proteção das mesmas.

 

A família brasileira é a grande penalizada, sobretudo a menos favorecida: parte da estigmatizada legião de 32 milhões de pessoas famintas que depende, em grande medida, destas políticas no desempenho de suas funções, qual seja, assumir o cuidado e a formação de suas crianças e adolescentes.

 

A crise que o Estado brasileiro vem atravessando, ao longo de vários anos, tem revelado, conforme indicadores do Produto Interno Bruto (PIB) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE para o período 80/90, oscilações marcantes, trazendo sérios agravantes ao universo familiar dos menos favorecidos.

 

A análise dos gastos sociais feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV)/IBGE para o período 76/86 confirma que, apesar da significativa expansão na aplicação de 24,5 para 40,0 bilhões de dólares, foram enfatizados apenas três tipos básicos de política social - saúde, assistência e previdência. Nestes, a participação da União decaiu 5,0% no mesmo período (76/86), enquanto a dos Estados e Municípios cresceu apenas um pouco mais. Apesar do resultado final do aparente aumento da oferta de políticas sociais e setoriais, estas não se revelaram como uma prioridade  eficiente e significativa, capaz de contemplar ou considerar o universo familiar como um todo.

 

Vale destacar que esse investimento, em seu desempenho final, se alterou por força de outra variável, qual seja o alto custo de sua administração e dos encargos sociais.

 

Mas, apesar dos recursos públicos estarem alocados em todos os níveis - federal, estadual e municipal, o resultado efetivo retrata apenas o progressivo empobrecimento das famílias e suas funestas conseqüências entre os mais vulneráveis, representando parcela significativa de crianças e adolescentes do país.

 

 

Repercussões no cotidiano dessas famílias empobrecidas

 

"Pobreza é fundamentalmente uma experiência humana frustrada, uma deteriorada qualidade de vida. Não seria, somente, uma determinada relação das pessoas com as coisas, mas uma relação destas consigo mesmas, com os outros e com o ambiente psicológico, social e ecológico", afirmam Amat et alii (1984).

 

O sentido das necessidades básicas das famílias pobres deve suplantar a mera visão biologista e incluir outras como psicológicas, sociais e éticas, de auto-estima, de uma relação significativa com os outros, de crescimento da própria competência ou de uma participação na definição do significado de sua vida pessoal e dos demais.

 

Pesquisas econômicas recentes, direcionadas às questões de estratégias de sobrevivência, tanto no Brasil como em países da América Latina, têm revelado, categoricamente, a impossibilidade de se estudar ou intervir fragmentariamente junto aos membros da família.

 

No plano da cidadania, o dia-a-dia da família, em seu nível privado, é o locus do exercício das relações democráticas entre seus membros enquanto grupo para, a partir desta socialização, serem capazes de vivenciar o nível de esfera pública.

 

Na socialização, também a família é o agente mais importante no processo de internalização e aprendizagem, pois fornece o marco para a definição e conservação das diferenças humanas, dando forma aos papéis básicos.

 

Abordar e mediar famílias, na tentativa de apoiá-las e fortalecê-las em seu dia-a-dia, através de políticas de atendimento, é o grande desafio, na medida em que se constituem por partes que se relacionam entre si, de forma que uma não pode prescindir da outra.

 

Da pesquisa realizada em 1993 por acadêmicos de Serviço Social, em dois Centros de Educação Complementar da Prefeitura Municipal de Florianópolis (Rech et alii, 1993), foi constatado que 73,3% das famílias entrevistadas eram do tipo nuclear, com a presença de pais biológicos ou não; destas, 40,0% se autodenominavam "desestruturadas" com problemas na dinâmica de interação.

 

A pesquisa revelou que esta família nuclear apresentava flexibilidade e, a despeito da figura masculina, as mulheres desempenhavam um papel expressivo e central. As famílias matrifocais constituíam 23,3% da amostra, modalidade que tem aumentado consideravelmente.

O dado surpreendente é que 64,0% dos "pais físicos" eram considerados ausentes pelas mães entrevistadas. Ausência  esta tanto no processo de educação dos filhos e no psicológico, quanto no cômputo das rendas da família, além do aspecto do poder, no autoritarismo, no alcoolismo crônico e na violência do comportamento.

 

Este sentido de ausência vem sendo transmitido de uma a outra geração, negando o desejo de cada filho de ser assumido pelo pai, fragilizando seu processo de identificação.

 

A vivência destas famílias revelou que 76,0% dos pais não auxiliavam em nenhuma atividade doméstica e apenas 24,0% deles o faziam em pelo menos uma atividade doméstica, enquanto 76,0% das mães tinham dupla jornada de trabalho.

 

Na configuração final, o perfil das famílias revelou pais despreparados e impotentes para enfrentarem as dificuldades da vida e suas responsabilidades, aliado ao distanciamento afetivo e às relações violentas e tensas, transformando-os em parâmetros inaceitáveis de identificação.

 

Um dos traços marcantes revelados foi o alto índice de utilização do álcool, envolvendo o uso diário até a embriaguez, em cada família pesquisada, de todos os membros: pais, filhos, companheiros e, em maior escala, ex-maridos - todas as figuras masculinas acabavam tumultuando ainda mais as relações e enfraquecendo a figura paterna como autoridade afetiva e responsável.

 

Por que se permanece neste ciclo de reprodução destas formas verticalizadas, deficitárias e negativas de relações? Há possibilidade de alguma transformação mais horizontal nas relações? Há intenção consciente por um novo projeto?

 

Um dado significativo do estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA revelou que, do total de 9 milhões de famílias indigentes, mais da metade está concentrada em pequenos municípios com menos de 50 mil habitantes e não nas grandes cidades. Pelo contrário, estão assim distribuídas: 1,5 milhão de famílias em regiões metropolitanas; 3,5 milhões nas zonas urbanas não metropolitanas e 4,5 milhões em zonas rurais. Quanto à situação de trabalho, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) declarou em setembro de 1993 que, de cada 100 empregos gerados no Brasil nos últimos dois anos, 81 o foram no setor informal, em pequenas empresas, com baixos salários e sem proteção da legislação trabalhista.

 

A Política de Atendimento e Proteção se torna uma exigência emergencial, política, ética e pedagógica a curto prazo. Para Herbert de Souza (1993) em 60 anos de industrialização o Brasil gerou três categorias sociais - ricos, pobres e indigentes. Um contingente humano que, ao nosso lado, passa fome, é excluído, não tem cidadania e é discriminado, o que exige um posicionamento de toda a sociedade civil, dos que detêm o poder, o saber, o capital e a cidadania.

 

 

O diagnóstico da política de atendimento

 

A família brasileira sempre foi centrada em políticas sociais e de atendimento com base nas figuras da "maternidade e infância", "menor abandonado, delinqüente", "menino de rua", "excepcional" e "idoso" e, como agravante, todos considerados solitários e descontextualizados, até mesmo dos seus valores sócio-culturais.

 

Esta ótica governamental exerceu e continua exercendo, ainda hoje, influência institucional e profissional, tanto nos órgãos oficiais como nos não-governamentais, reproduzindo, na ausência de um parâmetro geral mais crítico, um desempenho bastante comprometedor no tratamento da família como um todo.

 

As milhares de famílias em condições de miserabilidade adquirem, cada vez mais, dimensões complexas e desumanas e constituem uma verdadeira violência social, onde os seres humanos não passam de números descartáveis ou considerados biodegradáveis.

 

Ressalta-se que, quando no discurso político é mencionada a questão do atendimento à família, é perceptível um descompasso, por uma série de pontos significativos, a saber:

 

1) Os recursos financeiros alocados em geral são escassos: incapazes, portanto, de atender às necessidades básicas do  grupo familiar em situação de risco. Insuficientes também para o pagamento de pessoal ou a aquisição de material didático operacional, visando programas de qualidade e reduzindo-os a atendimentos normalmente bastante residuais, inconstantes e imprevisíveis;

 

2) os convênios são burocratizados, desarticulados de outros programas  ou políticas, incompatíveis com as necessidades, e provocando, por outro lado, duplicidade ou descontinuidade no atendimento às famílias;

 

3) redução na convergência dos projetos coletivos de atendimentos às famílias face ao privilégio concedido à forma atomizada de ação;

 

4) a localização espacial dos programas de atendimento à família inclui espaços distantes da sua área de moradia e nem sempre apropriados, seja pelo tamanho reduzido, seja pelo local pouco privilegiado, como garagens, porões, salas pequenas e sem ventilação, má decoração e outras deficiências. O reflexo da imagem que se faz dessas famílias atendidas é que elas são pobres e desprovidas das mínimas condições de higiene;

 

5) as demais dependências da instituição pública ou privada são as áreas nobres da "burocracia", misteriosas para as famílias usuárias, impondo barreiras técnicas, administrativas e mágicas, que acabam absorvendo parcela significativa dos parcos recursos para os trabalhos com as famílias propriamente ditas. Mais grave ainda, os serviços de natureza pública mantidos com verba pública, ao tentar manter "distância" e se preservar da família-cliente, tomam-se quase "privados";

 

6) o personagem fundamental neste cenário da política de atendimento é o recurso humano, ou seja, o pessoal atuante com os grupos familiares. Com um imaginário sustentado  em bases empíricas, derivado de seu próprio existencial familiar, sem o devido preparo, substituem qualquer  referencial técnico e, com posturas bastante moralizantes e normatizadoras, agem com despreparo.

 

Não se pode deixar de reconhecer que há uma significativa desvalorização, tanto na remuneração, como no plano de cargos, por conta da reduzida alocação de recursos para a área social. Os recursos humanos refletem esta lógica, ao serem contratados sem vantagens, direitos e isentos de exigência por maior qualificação em seu desempenho funcional. Em geral, basta "boa vontade" para trabalhar com "pessoas e famílias", o que, sem dúvida, é necessário, mas é preciso uma capacitação e competência apropriadas.

 

O trabalho democrático que incentiva uma relação horizontal, comunitária, de abertura ao outro, a partir de uma leitura da realidade familiar abrangente, envolvendo todas as áreas das necessidades básicas para o encaminhamento à cidadania, não é um aspecto muito priorizado pelas autoridades e tampouco considerado pela sociedade. Sem dúvida, não se pode generalizar, pois sabe-se de esforços marcantes e desafiadores que estão sendo protagonizados em diferentes cantos do Brasil.

 

O que se está tentando delinear, neste momento difícil, é a revisão de uma série de atitudes que poderão ser superadas.

 

 

Das posturas tradicionais às inovadoras na política de atendimento

 

Há uma variedade de posturas nos diferentes enfoques de atendimento às famílias. Entretanto, serão cotejadas duas delas, que não existem de forma tão explícita na prática, mas sim didática. Tentar-se-á caracterizá-las, não dicotomizando, mas identificando algumas linhas observadas na  forma convencional,  além de outras que começam a emergir, denominadas alternativas, em pequena escala, porém visíveis através de documentos, informes e narrações.

 

 

Particular x Coletivo

 

A forma mais tradicional privilegia o atendimento individualizado das pessoas, atomizando o universo familiar. Ela ressalta o individualismo, reflexo da própria visão econômica da sociedade, regulado mais pela competição do que pela troca e constituindo um "privado egoísta", no dizer de Quijano (1988), próprio da lógica mercantil: "apenas o meu problema me interessa resolver".

 

A política alternativa de atendimento, como postura inovadora, é baseada em outra racionalidade, a partir de uma organização solidária, construída democraticamente e que se distingue como "privado social". Tem sido uma das formas de organização cotidiana das famílias e de experiências vitais de vastas parcelas das populações da América Latina, na dramática busca de organização pela sobrevivência e resistência frente à crise do capitalismo.

 

Sua institucionalização tem densidade suficiente para ser admitida como prática social, pois é amplamente vivenciada e consolidada pelos moradores das periferias e áreas pobres das  cidades.

 

Gestos de solidariedade os quais, além da possibilidade de constituição dos atores populares como atores políticos, implica reciprocidade e torna-se visível a partir de sua prática cotidiana.

 

Pesquisas têm identificado formas de ação grupal de apoio à sobrevivência, em que as famílias pobres passam pelo processo gradativo de transição entre o plano doméstico de satisfação das necessidades para o plano coletivo de objetivos externos ampliados:

 

1) redes espontâneas de solidariedade entre vizinhos (casos de morte, incêndio, doença etc.);

 

2) práticas informais organizadas - a própria comunidade assume a criança abandonada, denuncia casos de violência etc.;

 

3) práticas formalmente organizadas, com agente externo motivador. Exemplos: sacolão; fábrica de sabão envolvendo mulheres de mais idade, retirando-as da mendicância; projetos de geração de renda que envolvem adultos (homens e mulheres); Movimento de Combate à Fome e ao Desemprego.

 

São práticas que constroem laços comunais que se pode denominar de ação coletiva e que direcionam ao atendimento de algumas necessidades comuns, a saber:

 

1) básicas para reprodução biológica, alimentação, saúde, habitação;

 

2) emergenciais do dia-a-dia: problemas críticos que extrapolam os recursos das famílias. No Morro do Horácio, em Florianópolis, o Conselho tem uma "caixinha" para atender às emergências de enterro, parto, táxi das famílias;

 

3) sócio-culturais: envolvem o lazer para jovens, adolescentes e adultos, festividades da Igreja, blocos de Carnaval, danças etc. ;

 

4) área física comum:  resolver a questão da água, luz, lixo,  esgoto.

 

Na questão do gênero, a figura da mulher é uma das principais personagens do cotidiano, tanto nas gestões, quanto nos processos reivindicativos, pois vivenciam, no dia-a-dia, a responsabilidade pela reprodução da família.

 

 

Assistência x Organização

 

Dado o enfoque imediato, o atendimento à família se reveste de cunho assistencial, mas desarticulado e dependente. Seus membros são tratados menos como pessoas com direitos e mais como receptores de "benesses" das instituições. O mais grave neste processo de estatização da família é que os profissionais que dele se ocupam acabam, com certa naturalidade, "invadindo como um trator" sua privacidade. Ao invés de fortificar e descobrir suas potencialidades, acabam permitindo a opacidade de sua identidade.

 

Por outro lado, a forma inovadora rompe com o assistencialismo, trabalha com a postura sócio-educativa através do atendimento às necessidades básicas como direito do cidadão e sua família, mas articulado com a organização comunitária, âmbito de inserção dos grupos familiares.

 

O fundamento dessa postura alternativa é que a população pobre e desorganizada não tem condições de competir  eficientemente na luta por seus direitos, serviços e benefícios públicos. A estratégia, portanto, é o esclarecimento, a mobilização, a participação e a organização popular.

 

Em comunidades ainda não organizadas, as relações não se encontram suficientemente consolidadas, nem por identidade, parentesco ou procedência, e nelas emerge o oposto da solidariedade. A própria proximidade das casas e barracos, em precárias condições; a privacidade exposta ao público; o som em alto volume; as brigas de casais; as discussões; o lixo próximo; a água que corre pelos terrenos vizinhos; as brigas de crianças e adultos; os roubos; o alcoolismo e as drogas são fatores de violência social e familiar que acabam dificultando as relações mais solidárias.

 

Outros fatores limitantes no processo participativo mais amplo são o cansaço, a fome (de cada cinco brasileiros, um passa fome), a falta de dinheiro para transporte, a doença, as tarefas domésticas da dupla jornada de trabalho, que acabam por dificultar as reuniões.

 

O traço comum da trajetória histórica dessas comunidades é o sentido de pertencer ao próprio bairro e, mesmo com suas diferenças culturais, políticas e até econômicas, elas tentarem se nuclear.

 

 

Passividade X Participação

 

De modo geral, o próprio rendimento individualista/assistencialista da relação formal e hierárquica provoca uma atitude de passividade e apatia por parte dos usuários.

 

Uma postura que estabelece uma subordinação das famílias-clientes ao saber do profissional, desde o vocabulário até o local de atendimento e a atitude da entrevista, gera um ambiente desconhecido e enigmático.

 

 

Os serviços alternativos de apoio à família devem contemplar a articulação do público e do privado, através de uma metodologia dialógica, aberta e não determinada por um arsenal de instrumentos técnicos. Enfim, uma coordenação entre os sujeitos sociais e a participação das famílias numa relação de horizontalidade.

 

Neste momento que se intenta concretizar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o processo participativo das famílias, é interessante destacar Hopenhayn (1989), o qual afirma haver formas que permitem desenvolver capacidades e atualizar potencialidades daquelas por meio de :

 

1) maior acesso aos serviços, através da otimização ou pressão contra  obstáculos estruturais ou institucionais;

 

2) maior integração a processos de forma humanizadora, de  enriquecimento mútuo, sem inibir a criatividade e nem ser excludente;

 

3) maior auto-estima de ratificação social para aumentar a confiança em si e nas famílias, valorizando-as como ser social e transformando, pela auto-estima, em relações de interdependência aquelas que eram de dependência.

 

A proposta inovadora busca, pela participação social, mesmo com reduzido número de pessoas e com estruturas não tão burocratizantes, informais, que seja reduzida a distância entre o líder e os demais participantes, e organizada comunitariamente para produzir e gestionar bens e serviços à comunidade. É uma forma de garantir os direitos até das minorias divergentes.

 

As experiências concretas da Comissão de Convivência Familiar do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, de Santa Catarina (CEDCA/SC, 1992), têm revelado de forma paradigmática esta participação social das famílias nas comunidades e respondido a um conjunto mais abrangente de necessidades humanas, tais como: subsistência, comunicação, afetividade, criatividade, identidade e proteção; portanto, um ponto de inflexão entre o político e o individual, o comunitário e o público, a subjetividade e a sociabilidade.

 

Em agosto de 1992 realizou-se em Florianópolis a III Oficina Estadual de Estudos e Estratégias para Trabalho com Famílias, conforme os artigos 19 e 24 do ECA. Participaram do evento representantes de organizações não-govemamentais como Escola de Pais, Movimentos, Igrejas de diferentes denominações, Fundações, Grupos Voluntários, Associações, além de técnicos e pesquisadores de organizações governamentais, bem como Universidades.

 

A pretensão foi debater como as instituições poderiam responder ao apelo das Famílias em Risco e a possibilidade de formação da Rede de Solidariedade.

 

Das conclusões alcançadas, destacaram-se : priorizar a questão familiar nos trabalhos das organizações, independentemente da função principal de cada uma delas (Saúde, Escola, Creches etc.); garantir estratégias para conhecimento da realidade das famílias que se pretendia atingir; capacitar os seus técnicos e voluntários; promover ações articuladas entre as instituições. Quanto à Rede de Solidariedade, a Comissão deveria elaborar um cadastro com as organizações governamentais e não-governamentais - OGs e ONGs que atuam com famílias para compor uma Rede de Apoio: divulgar aos municípios a multiplicação das oficinas e suas conclusões; pesquisar, assessorar tecnicamente, subsidiando as instituições que trabalham com famílias; encaminhar e desenvolver trabalhos que possam garantir políticas sociais básicas e divulgá-las nos meios de comunicação.

 

No momento em que as várias famílias, principalmente as mulheres, identificaram os problemas e as situações existenciais  comuns, passaram a aprender a se conhecer e a ajudar-se mutuamente na gestão e educação dos filhos, aprendendo a "lutar" em grupos de auto-ajuda. O próprio processo vai indicando os caminhos, na medida em que os participantes desta rede de solidariedade e apoio passam a revelar uma melhor auto-imagem. O importante é reagir frente às irregularidades de cada encontro, sem definir um modelo de rede "a priori". 

 

Na construção da cultura democrática, os novos movimentos sociais têm construído, para as famílias, embriões de sociabilidade alternativa, com maior horizontalidade nas relações, substituindo laços de competição por laços de solidariedade e a vontade de multiplicar toda a sociedade, uma articulação mais orgânica entre o pessoal e o social, girando em torno dos direitos da mulher, da criança, das minorias étnicas, da defesa das tradições, dos interesses regionais e dos direitos humanos em geral.

 

 

Mediadores e interdisciplinaridade

 

Neste momento de crise brasileira, a questão social das famílias é não apenas um grande desafio a todos os profissionais, como também requer compromisso e urgência.

 

Os serviços alternativos e interdisciplinares devem partir destes marcos, conscientes da complexidade, amplitude e heterogeneidade de necessidades e direitos a serem alcançados.

 

Não basta ter uma equipe técnica, mas uma equipe de trabalho convergente para uma mesma intencionalidade. Não deve haver a dissociação entre os que pensam e os que fazem, mas uma consciência de que todos são responsáveis e que devem ser vencidos preconceitos entre os membros da equipe, até os de escolaridade, abrindo espaços para uma participação efetiva e global.

 

Os profissionais que pretendem compreender e mediar as famílias deverão ter a perfeita consciência de que sem este encontro na intimidade das instituições, entre famílias e profissionais, será difícil tomar parte no processo. Qualquer apoio a um projeto novo, significativo, implica aceitação, abertura de espaço, consciência direta da vida, comunicação.

 

As interlocuções nos momentos de entrevistas, reuniões, visitas, aprofundam o significado da cultura e da realidade familiar, sendo possível a introdução de valores mais democráticos, através dos diálogos entre suas redes de convivência, da postura de transparência nas ações, do espaço de discussão sem censura de todos os aspectos do cotidiano de suas vidas.

 

O projeto institucional ou da equipe de trabalho, apontando para o reforço, a valorização e a abertura para acolhimento como figura significativa nas relações entre adultos e crianças nos locais de abordagem e atendimento familiar decidirá, de forma marcante, um processo de profundas transformações.

 

Retirar do contexto o seu dia-a-dia, o seu bairro, as suas representações, o seu micro-universo de significações tão marcantes, imaginando soluções mágicas ou dispensando atenção unilateral a apenas uma de suas necessidades, não levará a uma ação transformadora, mas permanecerá numa intervenção periférica e superficial, sujeita a retrocessos. A "praxis" deve estar sempre voltada às programações de efeito sinérgico, onde as necessidades atendidas provoquem nas famílias um aprendizado político e pedagógico, com maior auto-estima e noção de cidadania. Este desenvolvimento das pessoas e famílias não se dá completamente nem apenas na vida privada e tampouco na vida pública - progride numa e noutra.

 

Aprender a respeitar os projetos de vida das famílias, através de uma relação dialógica criativa, eis o grande desafio.

 

Deve-se estar como mediadores, sempre questionando: "É este o mundo que se quer para as famílias populares de periferia? É possível criar, reinventar, enriquecer o meio ambiente, os modos de vida, a sensibilidade para contribuir para alguma transformação na vida das famílias?"

 

 

Reflexões finais: caminhos de transformação

 

Reconstruir as "praxis" humanas, reinventar maneiras de ser no âmbito familiar e comunitário. Buscar, enfim, em conjunto, a forma de ser-em-grupo, buscar e criar novos paradigmas que ampliem ética, estética e politicamente o modo de ser das pessoas e das famílias.

 

Eis o desafio: retirar do inconsciente, do extrato subjetivo, tudo aquilo que foi perdido, em termos de identidade e solidariedade.

 

Reconquistar uma ecologia mental, no dia-a-dia das pessoas, no âmbito doméstico, familiar e de vizinhança; construir um novo projeto social à transformação por uma nova qualidade de vida.

 

O interesse deve se concentrar menos em reformas de leis, decretos, burocracias de cúpula e muito mais em posturas e práticas inovadoras, disseminação de experiências alternativas, centradas no respeito, nas singularidades de trabalho, produção permanente de subjetividades que possam encaminhar à auto-estima e à autonomia e concomitantemente se articular com o restante da sociedade.

 

Nas famílias, as pessoas devem se reapropriar de suas capacidades e criatividades em elaborar e escrever sua trajetória histórica tornando-se, mesmo em meio a suas fragilidades, necessidades de apoio e assistência, em sujeitos de direito a uma cidadania; portanto, meio e fim de um mesmo processo.

 

Neste solo ético, baseado no humanístico, e somente neste fio condutor, é que as linhas destas redes entrecruzadas irão tensionar, fortalecer, abrir seus laços em troca de solidariedade, pressionando, apoiando, unindo, através dos vários protagonistas sociais, desde a  família, comunidades, vizinhos, parentes, profissionais, instituições, lideranças, políticos,  a sociedade civil como um todo.

 

Não há dúvida do quanto, neste sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente pode, através de seus Conselhos, privilegiando a ação localizada nos Municípios no contexto da família, favorecer uma transição e convergência entre OGs e ONGs.

 

Pode também, sem radicalismo, neste processo de transformação, compreender o reflexo da patologia social no privado das famílias. A instituição, revista no seu propósito (abrangência, projetos e pessoal), terá a capacidade de se converter em agência socializadora de acolhimento, de vivências significativas na construção do cotidiano, de vínculos geradores da cidadania, de atenção às necessidades.

 

Ao tentar desmistificar a falácia dos discursos políticos e problematizar mitos e crenças pré-estabelecidos e cenas formas de práticas cristalizadas das instituições, está-se alertando para o despertar da criatividade a partir da perspectiva singular, individual e coletiva, consciente da impossibilidade desse aspecto peculiar fora dos contextos solidários.

 

Em suma: a abertura para questionar o cotidiano de nossa "praxis", em busca de uma revisão ética, pedagógica e política, capaz de lutar por uma Utopia - o fortalecimento da família dentro de uma nova relação social.

 

 

 

NOTAS:

[1] Coordenadora do Núcleo da Criança e do Adolescente e do Curso de Especialização a nível de Pós-Graduação  na área da Família - UFSC, Membro da Comissão de Convivência Familiar e Comunitária - CEDCA/SC e do Comitê Estadual de Paternidade Consciente - FMSS.

 

 

                               

 

BIBLIOGRAFIA

 

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