EXMO. SR. JUIZ DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DO FORO REGIONAL DE PINHEIROS

 

 

 

 

 

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por seu Promotor de Justiça designado, vem, mui respeitosamente à presença de V. Exa. para, nos termos do art. 129, inc. III da Constituição Federal, art. 25, inc. IV, a, da Lei 8.625/93, art. 103, VIII da Lei Complementar Estadual 734/93, arts. 4º e 5º da Lei 7.347/85 e arts. 208 e ss. da Lei 8.069/90, propor esta AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA em face da  FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, representada por seu Procurador Geral do Estado, no Prédio da Procuradoria Geral do Estado, Pátio do Colégio s/n, nesta, e que, por sua Secretaria de Educação vem descumprindo sistematicamente o disposto no art. 50 da Constituição Estadual, deixando de realizar e publicar o censo educacional a que se refere aquele dispositivo.

 

I. DOS DISPOSITIVOS LEGAIS E CONSTITUCIONAIS PERTINENTES AO TEMA:

 

Dispõe a Constituição do Estado de São Paulo, em seu Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que:

 

Art. 50. Até o ano 2000, bienalmente, o Estado e os Municípios publicarão censos que aferirão os índices de analfabetismo e sua relação com a universalização do ensino fundamental, de conformidade com o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal.

 

Antes mesmo desse dispositivo, a própria Constituição Federal já consagrara a educação como direito social fundamental, dispondo sobre ela, dentre outros, nos seguintes artigos:

 

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

 

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

 

Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em inúmeros de seus dispositivos, registra o dever do Poder Público para com a educação. Destaca-se, nesse contexto, o próprio art. 4º do Estatuto, assim descrito:

 

Art. 4º. É dever ... do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos concernentes à ... educação.

 

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

...........................................................................

 c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

 

 d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à  infância e à juventude.

 

Depois desse, também o art. 54 do Estatuto ao dispor que:

 

Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:

 

I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito ...

 

II - progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio;

 

III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiências, preferencialmente na rede regular de ensino;

...........................................................................

 

VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do adolescente trabalhador;

 

VII - atendimento no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

...........................................................................

 

§ 2º. O não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público ou sua oferta irregular importa responsabilidade da autoridade competente.

 

Também merece destaque a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 9.394/96, que sobre o tema estabelece que:

 

Art. 70 - Considerar-se-ão como de manutenção e desenvolvimento do ensino as despesas realizadas com vistas à consecução dos objetivos básicos das instituições educacionais de todos os níveis, compreendendo as que se destinam a:

...........................................................................

 

IV - levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas visando precipuamente ao aprimoramento da qualidade e à expansão do ensino;

 

II - DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO

 

Inicialmente é preciso considerar que com a edição da Lei nº 7347/85 e a promulgação da Constituição da República em 1988, a doutrina já proclamava a legitimidade ativa do Ministério Público para a propositura de ação civil pública. Essa posição autorizada do Promotor de Justiça HUGO NIGRO MAZZILLI:

 

“São legitimados ativos para a ação civil pública, de forma concorrente: o Ministério Público (federal  ou estadual, cada um atuando perante a Justiça respectiva), a União, os Estados, os Municípios, autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou associação que esteja constituída  há pelo menos um ano, nos termos da lei civil, e que inclua, entre suas finalidades institucionais a proteção a um dos interesses de que cuida a lei (art. 5º)”. (v. MAZZILLI HUGO NIGRO, in “A defesa dos interesses difusos em Juízo” pág. 42, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1.988).

 

Na norma do artigo 129, inciso III, da Carta Magna o legislador ampliou ao Ministério Público as hipóteses de legitimação concorrente, estendendo-a para além das disposições da Lei 7347/85 à todas as demais hipóteses futuras decorrentes de lei especial.

 

Com o Estatuto da Criança e do Adolescente o legislador estabeleceu expressamente a proteção a proteção dos interesses difusos e coletivos relacionados à criança e ao adolescente, conferindo ao Ministério Público a  legitimidade ativa para a propositura da competente ação civil pública, nos termos dos artigos 208, inciso VI e parágrafo único, c.c. o artigo 210, inciso I, todos da Lei nº 8.069/90.

 

Tem-se presente que as normas acima referidas do Estatuto da Criança e do Adolescente encontram-se em consonância com o artigo 129, III, da Constituição da República e artigo 1º, inciso IV, da Lei nº 7.347/85.

 

Assim, é incontroversa a orientação quanto à legitimidade ativa do Ministério Público para a propositura de ações civis públicas sempre que houver lesão a interesses difusos ou coletivos.

 

Recente julgado proveniente do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, perfeitamente amoldado aos limites desta causa, dispõe que:

 

 EMENTA: Ação civil pública. O interesse de agir do Ministério Público é, dentre outros, o de obter a observância da ordem jurídica, estabelecida pelas normas legais em vigor (art. 127 da CF). Uma dessas normas é precisamente o quanto disposto no art. 37, § 1º, da Constituição da República. Pode o Ministério Público postular, em ação civil pública, o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer (art. 3º da Lei 7.347/85). Interesse de agir positivado e demonstrado nos autos. Apelação provida para o fim de determinar o prosseguimento da ação civil pública perante o Juízo monocrático. (TJSP, Apel. 243.559-1/7, Rel. Luigi Chierichetti, j. 15.04.96).

 

III. DA COMPETÊNCIA DA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE

 

Não suscita dúvida a competência absoluta para processo e julgamento da causa por qualquer Vara da Infância e da Juventude da Capital, não sendo razoável pretextar-se  que vigora a competência do juízo especializado em causas em que figurem como parte a Fazenda Pública, sendo esta inquestionável, segundo os arts. 35 e 36 da Lei de Organização Judiciária do Estado de São Paulo.

 

O art. 148, inc. IV do Estatuto da Criança e do Adolescente, que é Lei Federal (nº 8.069, de 13 de julho de 1990), estabelece que:

 

Art. 148. A Justiça da Infância e da Juventude é competente para:

..........................................................................

 

IV - conhecer de ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente, observado o disposto no art. 209;

 

O art. 209, por seu turno, dispõe que:

 

Art. 209. As ações previstas neste Capítulo serão propostas no foro do local onde ocorreu ou deva ocorrer a ação ou omissão, cujo juízo terá competência absoluta para processar a causa, ressalvada a competência da Justiça Federal e a competência originária dos Tribunais Superiores.

 

IV - DOS FATOS E DO DIREITO

 

No acompanhamento habitual das despesas públicas e qualidade da educação, a Assembléia Legislativa do Estado, atendendo a requerimento do Deputado Renato Simões, solicitou informações da Secretaria de Educação sobre o cumprimento do disposto no art. 50 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Estadual, já transcrito.

 

Em resposta argumenta evasivamente, como que para justificar sua habitual omissão, a Secretaria de Educação diz valer-se de dados de censo educacional realizado pelo Serviço de Estatística Educacional do MEC, ao invés de realizá-lo diretamente e em atendimento estrito aos termos do art. 50 do ADCT Estadual.

 

Por força dessa canhestra interpretação vem prevaricando no seu dever funcional e constitucional local de realizar o referido censo escolar cujos dados permitiriam significativa melhora da qualidade de ensino com mais rápida e eficiente eliminação do analfabetismo no Estado de São Paulo. Não importa afirmar que tal índice vem decaindo se, por outro lado, ainda estamos longe de cifras ideais em função de nossos recursos e potencialidades.

 

Assim, não importa sob qual argumento, mas está equivocado o Estado, lamentavelmente uma vez mais, trazendo sérios prejuízos à educação de seu povo, notadamente de suas crianças e adolescentes, procedimento esse não inédito, lamentavelmente também uma vez mais.

 

Desde a edição da Constituição Estadual em 1989 nenhuma única vez se realizou o censo a que alude o art. 50 do ADCT Estadual. Omitiu-se-o em 1990, 1992, 1994, 1996 ... quer se evitar que se o omita também em 1998 e 2000.

 

Bem por isso, o pedido de concessão de tutela antecipada para que se determine ao Estado de São Paulo a imediata realização do censo, em obediência ao preceito estabelecido no art. 50 do ADCT da Constituição Estadual.

 

É manifesta a ofensa à regularidade administrativa na gestão estadual desde o exercício de 1990. Ademais disso, há violação direta de preceito constitucional local.

 

Nem se diga que tal censo demandaria recursos públicos que teriam de ser desviados da educação, uma vez que segundo o art. 70, IV da Lei 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, considerar-se-ão como de manutenção e desenvolvimento do ensino as despesas realizadas com vistas à consecução dos objetivos básicos das instituições educacionais de todos os níveis, compreendendo as que se destinam a levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas visando precipuamente ao aprimoramento da qualidade e à expansão do ensino.

 

Trata-se, pois, de dinheiro que já tem destinação legal demonstrada e cujo gasto é investimento em qualidade de ensino.

 

Trata-se assim, de norma de observância  obrigatória, cogente e de ordem pública, instituída  em favor do significativo interesse público primário, e por esta razão, deve merecer criteriosa observância dos agentes públicos, bem como daqueles que, ocupando cargos públicos, administram os recursos públicos e os aplicam no interesse da comunidade  que representam.

 

Até porque, um dos princípios básicos da Administração Pública é o da legalidade (artigo 37, “caput”, da Constituição Federal).

 

Neste particular, temos a magnífica lição do saudoso mestre Hely Lopes Meirelles, em “Direito Administrativo Brasileiro”, 14ª edição, ed. RT, pág. 78, preconizando que:

 

A legalidade, como princípio de administração, significa que o Administrador Público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei, e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.

 

A eficácia de toda a atividade administrativa está condicionada ao atendimento da lei.

 

Na Administração Pública, não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa  “pode fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim”.

 

As leis administrativas são normalmente, de ordem pública, e seus preceitos não devem ser descumpridos, nem mesmo por acordo ou vontade conjunta de seus aplicadores e destinatários, uma vez que contém verdadeiros poderes-deveres, irrelegáveis pelos agentes públicos. Por outras palavras, a natureza da função pública  e a finalidade do Estado impedem que seus agentes deixem de exercitar os poderes e de cumprir os deveres que a lei lhes impõe. Tais poderes, conferidos à Administração Pública para serem utilizados em benefícios da coletividade, não podem ser renunciados ou descumpridos pelo administrador, sem ofensa ao bem-comum, que é o supremo e único objetivo de toda a ação administrativa.

 

Trata-se de caso de discricionariedade restrita do administrador. Não pode escolher entre fazer  ou não fazer. Impõe-se-lhe pela Constituição local o facere.

 

De todo o exposto, se depreende  que as normas referidas são de observância obrigatória, pois o censo educacional é garantia de planejamento seguro dos novos programas educacionais para o Estado, priorizando-se o combate ao analfabetismo, medida essa que, como visto não está inserido, num primeiro momento, no âmbito da discricionariedade do administrador público, pois não se sujeita ao binômio da conveniência e da oportunidade  por ele livremente aquilatado.

 

Adotado esse entendimento, a discricionariedade somente se estabeleceria num momento posterior, ou seja, só seria lícito ao Estado deliberar sobre a que áreas do ensino os recursos seriam dirigidos, nunca podendo lançar determinação no que pertine ao percentual da arrecadação a ser aplicado, uma vez que, tanto na legislação ordinária como na Constituição Federal, já existem normas a este respeito, as quais, diga-se mais uma vez, são de observância obrigatória.

 

Nesse diapasão, não pode ser acolhida eventual argumentação de que o ensino estadual ou índices de analfabetismo se encontram a contento, o que, à primeira vista, justificaria a falta de destinação da alíquota mínima de arrecadação  a este setor, pois a principal preocupação do legislador não foi só a de garantir o ensino básico e fundamental, mas sim propiciar, com esta canalização de recursos, o crescente aperfeiçoamento e desenvolvimento do ensino em todos os níveis e regiões de nosso país, de modo a elevá-lo aos padrões existentes no primeiro mundo.

 

Neste sentido, temos os artigos  208, 213, e 214, da Constituição Federal, bem como da Lei nº 9.394/96, fazendo esta última, menção à melhoria  crescente da qualidade do ensino, o desenvolvimento  da pesquisa educacional, o aperfeiçoamento  dos recursos humanos necessários à manutenção e desenvolvimento do ensino, o progresso quantitativo e qualitativo  dos serviços de educação, além do estímulo à educação e a justa distribuição de seus benefícios.

 

V. DO PERICULUM IN MORA E DA TUTELA ANTECIPADA

 

Fácil de ser visto o periculum in mora com a recusa na publicação das informações, que dificulta o acompanhamento dos gastos com educação pelos legítimos representantes dos eleitores, pelo Ministério Público e pelos cidadãos em geral.

 

Dezenas, talvez centenas de milhares de crianças e adolescentes continuam banidos do direito à cidadania pela impossibilidade de freqüentar educação formal no Estado de São Paulo simplesmente porque a Secretaria não sabe onde estão, ou em que série estão ou onde deveriam estar. Isso porque omite as providências do censo escolar que a Constituição Estadual exige.

 

Trata-se de dano irreparável a direitos fundamentais de todo cidadão, que merece redobrada tutela jurisdicional liminar em casos de defesa dos interesses de crianças e adolescentes.

 

A jurisprudência, sobre a concessão de tutela antecipada, inclusive em ação civil pública, tem se manifestado em termos seguintes:

 

Na decisão liminar o juiz valoriza situações a fatos, sem ficar eqüidistante dos reais sentimentos de justiça correntes na sociedade procurando uma interpretação amoldada aqueles sentimentos, dando maior utilidade aos provimentos jurisdicionais.

O periculum in mora, desprendendo-se de vinculação privada, pode estar sob a vigiliatura do interesse publico, favorecendo a atividade criadora pela convicção do juiz, sob o signo da provisoriedade, adiantando solução acautelatória. (STJ, Ag. Reg. 209-93-DF, Rel. Min. Milton Luiz Pereira, DJU 07.03.94, p. 3606)

 

Ademais disso, dispõe o art. 273 do Código de Processo Civil, em sua nova redação, que:

 

Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verosimilhança da alegação e:

 

I - haja fundado de receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou

 

II - fique caracterizado o abuso de direito ou de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.

 

Não há dúvida quanto ao risco ao direito à educação decorrente da não publicação de demonstrativos de onde, quando e como são aplicados os recursos à educação. Ademais disso, a medida não traz nenhum ônus ao Estado.

 

Ademais, não concedê-la seria privilegiar em demasia um Poder Público que omite, posterga, sonega mesmo o acesso igualitário à educação, o que equivaleria a dizer-se que revela seu propósito protelatório e abusa de poderes da Administração.

 

VI - DO PEDIDO 

 

Diante do quadro exposto, claro está que se exige do poder público municipal o imediato cumprimento do dever legal de realizar e publicar o censo educacional a que se refere o art. 50 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Estadual, até 31 de dezembro de 1998.

 

Assim, requer-se:

 

                          Seja concedida a TUTELA ANTECIPADA para que se determine à Fazenda Pública do Estado de São Paulo por sua Secretária de Educação que tome as providências necessárias para a realização do aludido censo.

 

                            Outrossim, requer, afinal seja a ação julgada inteiramente procedente, nos moldes da inicial.

 

                            Protesta-se pela produção de todos os meios de prova legalmente admissíveis, especialmente a prova pericial se fizer necessária.

 

Dá-se à causa o valor R$ 1.000,00 (hum mil reais).

Termos em que

Pede deferimento.

São Paulo, 24 de agosto de 1998.

 

Mauricio Antonio Ribeiro Lopes

Promotor de Justiça

 

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