CIDADANIA: CONSTRUIR A PAZ OU ACEITAR A VIOLÊNCIA?(*)

 

 

Feizi M. Milani

Médico hebeatra, doutorando do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, presidente do INPAZ (Instituto Nacional de Educação para a Paz e os Direitos Humanos) e Fellow da Ashoka Empreendedores Sociais.

 

 

Nesta virada de milênio, o clamor pela paz chegou às ruas. Não por acaso, 2000 foi o Ano Internacional da Cultura de Paz. Freqüentemente temos testemunhado manifestações em prol desta causa, pessoas desconhecidas e famosas, lado a lado, bradando contra a violência. Angustiadas com o clima de medo que impera nos centros urbanos do Brasil, elas se questionam o porque dessa situação e aonde vai nos levar. A paz deixou de ser um ideal abstrato nutrido por um punhado de sonhadores e poetas; tornou-se uma necessidade concreta para a maioria da população e meta prioritária para os governantes.

Esse quadro de  mobilização social difere bastante da situação que vivenciei quinze anos atrás. Recordo-me que às vésperas do Ano Internacional da Paz (1986), era divulgado, em todos países, o documento A Promessa da Paz Mundial.[1] Tenho a impressão de que, naquela época, a maioria das pessoas não foi capaz de perceber a importância e urgência do que a obra propunha. A questão da paz parecia ser algo tão distante da realidade brasileira. Participei de vários eventos nos quais seu rico teor foi debatido – em universidades, seminários, audiências com autoridades e líderes do pensamento, palestras públicas, exibições artísticas – e presenciei comentários do tipo “O Brasil é um país pacífico, nunca se envolveu em guerras”, “Mesmo que haja uma guerra nuclear, estamos a salvo”, “Temos tantos problemas sociais pra resolver... para que essa preocupação toda com a paz?”, “Eu já faço a minha parte: medito diariamente”, dentre outros.

O tempo demonstrou que, tal qual todos os povos, nós, brasileiros, precisamos aprender a construir a paz, uma vez que paz é muito mais do que a mera ausência de guerra. Demonstrou também que a nossa lentidão nesse aprendizado já custou a vida, a saúde ou o bem-estar de milhares de vítimas, uma vez que violência não se restringe a homicídios e agressões físicas. A violência pode assumir inúmeras roupagens: fome, racismo, exclusão, abusos verbais, morais ou sexuais, falta de acesso à saúde, à educação e à justiça, opressão contra a mulher e desigualdade de oportunidades, dentre outras.

Imagine se tivéssemos aproveitado a oportunidade oferecida pelo Ano da Paz e os princípios delineados no referido documento... teríamos implantado programas educativos direcionados aos valores da paz em todas escolas! Assim, a geração infanto-juvenil de hoje seria a garantia e a certeza de que este país se transformará numa sociedade mais justa e solidária. No entanto, nossa escolha foi a omissão e as conseqüências disto nos horrorizam a cada dia – crianças e adolescentes assassinando e sendo assassinados, gente com medo de gente, etc.

Encontramo-nos agora diante de um grave dilema – tanto como coletividade quanto como indivíduos: permitiremos que as coisas continuem como estão ou assumiremos a responsabilidade que cabe a cada um de nós na concretização de profundas mudanças que garantirão a tão desejada paz? 

Se escolhermos dar uma chance à paz, creio que há alguns passos fundamentais que precisamos dar. É necessário que refutemos a crença de que o ser humano é inerentemente violento. Apesar de carecer de qualquer fundamento científico, trata-se de um pressuposto implícito em algumas abordagens ou posicionamentos. A Dra. Minayo sintetiza a questão afirmando que “é, hoje, praticamente unânime (...) a idéia de que a violência não faz parte da natureza humana e que a mesma não tem raízes biológicas”. [2]

A Promessa da Paz demonstra que essa crença gera uma “contradição paralisante nos afazeres humanos”: por um lado, as pessoas dizem querer a paz e estar dispostas a estabelecê-la. Por outro lado, elas se permitem acreditar que “os seres humanos são incorrigivelmente egoístas e agressivos”. Como é possível “erigir um sistema social (...) progressivo e pacífico, dinâmico e harmonioso” tendo essa premissa como verdadeira? [3]

A agressão e o egoísmo não são impulsos intrínsecos e incontroláveis, mas sim sinais de estágios menos maduros da evolução humana – tanto em nível individual como coletivo. Basta observar o desenvolvimento infantil: o bebê não admite partilhar seus brinquedos; a criança aceita emprestar o seu brinquedo a outra, desde que haja uma permuta; a criança maior já é capaz de participar em esportes coletivos; e o adolescente busca ativamente engajar-se em algum grupo e sente prazer na partilha. O amadurecimento se dá em direção a relações de cooperação, reciprocidade e interdependência.

Um segundo passo consiste em redefinir o conceito de cidadania. Enquanto entendermos cidadania apenas como cobrar direitos e exigir que o governo resolva os problemas que afetam a sociedade, estaremos nos restringindo a uma cidadania reativa. Enquanto se propagar uma cidadania reducionista que se limita a “não jogar lixo no chão”, “não furar a fila” e “não ultrapassar o sinal vermelho”, não estaremos contribuindo para a transformação social. A conquista da paz só será possível quando exercermos uma cidadania proativa, que defino como uma postura de vida do indivíduo caracterizada pelo exercício consciente de seus direitos e deveres, pela participação ativa nos processos de busca de melhorias coletivas[4], e pela responsabilidade para com tudo aquilo que afeta a sua vida e/ou as vidas de outras pessoas.

Decorre desse conceito a noção de que ser um cidadão de paz é muito mais do que não ser um indivíduo violento. Fazer o bem é algo infinitamente maior do que não fazer o mal. Não praticar atos violentos é o mínimo que se espera de qualquer pessoa que pretenda viver em sociedade. Praticar a paz é viver, construir e ensinar a paz, pois ela só será alcançada se cada cidadão, família, organização e comunidade se engajar ativamente na construção de relações baseadas no respeito, unidade na diversidade e empatia.

Mais ainda: se vivemos num mundo globalizado, interligado instantaneamente pelas tecnologias da informação e comunicação e interdependente economicamente, é preciso que aprendamos a ser cidadãos do mundo. Bahá’u’lláh já havia proclamado essa nova visão há mais de cem anos: “A Terra é um só país e os seres humanos, seus cidadãos”.[5] É impossível estabelecer a paz enquanto as pessoas estiverem classificando e dividindo o mundo entre “nós” e “eles”. Nós – (quer seja) esta família, ou moradores desta rua, ou torcedores deste time, ou seguidores desta igreja, ou membros desta raça, ou cidadãos deste país, etc. – contra eles, os que são diferentes. Essa separação é completamente falsa e ilusória. Ser diferente não comporta qualquer juízo de valor, portanto, não tem nenhuma relação com ser superior ou inferior, correto ou equivocado, melhor ou pior.

Além disto, não é difícil constatar que todos os seres humanos compartilham das mesmas necessidades essenciais – portanto, somos absolutamente semelhantes em nossa essência. A única possibilidade de haver paz no mundo, no país ou no bairro é reconhecermos essa unidade essencial e vivermos de acordo com ela. Pois essa compreensão nos faz aceitar o outro (por mais diferente que seja), respeitar as suas necessidades e direitos, e buscar os meios de estabelecer a verdadeira justiça. “A ordem mundial só pode ser estabelecida sobre uma consciência inabalável da unidade da humanidade, uma verdade espiritual que todas as ciências humanas confirmam. (...) O reconhecimento desta verdade requer o abandono (...) de tudo o que faz com que as pessoas se sintam superiores umas às outras. (...) A aceitação universal deste princípio espiritual é a essência do êxito de qualquer tentativa de se estabelecer a paz mundial.”[6] Unidade gera reciprocidade, justiça e liberdade; consequentemente, gera a paz. Viver essa consciência é a base da paz. Exercer a cidadania mundial  é compreender, praticar e promover a unidade do gênero humano, condição sine qua non da paz.

Outro passo fundamental na caminhada rumo à paz consiste em questionar como lidar com o problema da violência. É possível agrupar, grosso modo, três paradigmas distintos que implícita ou explicitamente estão presentes nas discussões sobre esse tema – o da repressão, o estrutural e o da cultura de paz. Parece-me apropriado analisar os pressupostos e impactos de cada um desses modelos de pensamento.

O modelo baseado na repressão preconiza, como solução para o problema da violência, medidas de força tais como: o aumento do policiamento, o endurecimento das leis e a construção de mais presídios. Esta perspectiva possui uma deficiência grave: falha em reconhecer as mazelas estruturais e as injustiças sócio-econômicas do país. Apesar disto, é a mais popular pois, aparentemente dá resultados rápidos e contribui para uma sensação abstrata (mas fundamental) de segurança e de que os crimes serão punidos. Sem dúvida, o Brasil necessita de reformas que permitam maior eficiência na aplicação universal das leis, que estabeleçam mecanismos de controle social sobre o poder judiciário, e que reduzam drasticamente a corrupção e impunidade. São também prementes mudanças no sistema policial, colocando-o a serviço da coletividade, capacitando-o, e expurgando o banditismo de seu seio. Apesar de necessárias, essas transformações são insuficientes para se alcançar resultados efetivos e duradouros.

O segundo paradigma afirma que a causa da  violência reside na estrutura social e no modelo econômico. Consequentemente, se a exclusão e as injustiças não forem sanadas, não há muito o que se fazer para evitar a violência. Apesar de bem intencionado ao propor mudanças que culminem numa sociedade mais justa, esse modelo termina por gerar, a curto prazo, sentimentos de impotência. Ao vincular a solução de um problema que afeta as pessoas de forma imediata e concreta – violência – a questões complexas e demoradas que se situam fora da possibilidade de intervenção dos indivíduos – desemprego, miséria etc. – o resultado, em geral, é o desânimo e a desistência. Ao gerar imobilismo, esse modelo contribui para o estado coletivo de medo e paranóia que é, por sua vez, um dos fatores que retroalimenta a violência.

É importante evidenciar a violência estrutural, pois ela encontra-se incorporada ao cotidiano da sociedade brasileira. Busca ocultar-se sob as máscaras da naturalidade ou da inevitabilidade, mas está na raiz de outras formas de violência, mais fáceis de serem identificadas e denunciadas. Não obstante, é essencial que sejam dados passos concretos nos aspectos da realidade que estão ao nosso alcance, ao mesmo tempo em que se luta por mudanças nos sistemas econômico, político e jurídico. A batalha por transformações nos níveis macro e micro não são excludentes; ao contrário, são complementares.

O terceiro é o paradigma da cultura de paz, que propõe mudanças de consciência e comportamento tanto de parte de indivíduos como de instituições, inspiradas em valores de paz. Os defensores desta perspectiva não deixam de reconhecer que as outras, acima descritas, também têm sua contribuição a oferecer. Mas enfatizam a necessidade, a urgência e a viabilidade de se reduzir os níveis de violência através de intervenções integradas e multi-estratégicas fundamentadas na Educação, na Saúde, na Ética, na participação cidadã e na melhoria da qualidade de vida. Trata-se de um modelo que valoriza a prevenção, colocando ênfase em valores universais como a paz, a diversidade, o respeito e a empatia.

Este enfoque difere dos demais tanto em sua proposta quanto em seus desdobramentos. O paradigma da repressão tende a interpretar a violência como uma expressão exclusivamente individual de pessoas más ou incapacitadas para o convívio social, enquanto o paradigma estrutural tende a considerar o indivíduo violento ou criminoso como vítima da sociedade. No modelo da cultura de paz, a violência é entendida como uma enfermidade coletiva que pode manifestar-se tanto por expressões individuais, grupais ou institucionais. A cura dessa enfermidade exigirá mudanças – culturais, espirituais, sociais – de parte de todos. Creio ser oportuno salientar que a “cultura” materialista, voltada para o consumo e o prazer imediato, que impera na sociedade ocidental contemporânea (afetando em especial, a juventude), têm uma relação de causalidade com o estado de violência que estamos vivenciando.

A desconstrução desse estado de violência exige o envolvimento dos sujeitos, das instituições e da sociedade, em suas multidimensionalidades – física, mental, emocional, ética, espiritual, econômica, jurídica, política, etc. O sistema educacional tem uma responsabilidade especial nesse processo. Se, por um lado, é fundamental não ceder à tentação de colocar a responsabilidade pela transformação da sociedade nos ombros da educação ou de considerar que as injustiças sócio-econômicas poderão ser solucionadas por um ensino de qualidade, por outro lado, é inegável o papel crucial que a escola desempenha na formação intelectual e moral das novas gerações.

Construir a paz ou aceitar a violência é uma escolha da qual não podemos nos omitir. De nossa decisão dependerá a qualidade da vida que nós e nossos filhos experimentaremos daqui a quinze, trinta ou cinqüenta anos. Aceitar a paz e desconstruir a violência são os desafios que se colocam perante cada um – em sua vida pessoal, relações familiares, papel profissional e participação cívica. Oxalá possamos nos orgulhar de nossa escolha.

 

Notas

[1] Trata-se de uma mensagem da Casa Universal de Justiça, órgão supremo da Comunidade Bahá’í, dirigida “aos povos do mundo”. Ainda hoje é considerado, por renomados especialistas, um dos textos mais importantes e profundos sobre a paz.

[2] Minayo, Maria Cecília S. A violência social sob a perspectiva da saúde pública. In: Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 07-18, 1994.

[3] Casa Universal de Justiça. A Promessa da Paz Mundial. Editora Bahá’í. 4ª ed. 1988. (pag. 3)

[4]  Essas melhoras coletivas vão se expressar na conquista de novos direitos e, consequentemente, de novos deveres, num processo de evolução social. (Conceito trabalhado in:. Jesus, Rita de Cássia Dias P. Cidadão no papel: a construção da cidadania nas propostas curriculares das redes de ensino público e privado de Salvador. Dissertação de Mestrado. FACED/UFBA. 2000)

[5] Citado em A Promessa da Paz Mundial, secção II, p. 13

[6] Op. Cit., secção III, p. 16

 

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(*) Publicado no livro CIDADANIA MUNDIAL, A BASE DA PAZ, constituído por textos de autoria dos agraciados com o Prêmio Cidadania Mundial. Editora Planeta Paz, Mogi Mirim, 2000. Org.: Marilene de Freitas.