O COTIDIANO DO ACOLHIMENTO NOTURNO: UMA CONSTRUÇÃO COLETIVA

 

 

Julia da Silva

Patricia Dias

Silvia Moura

 

 

Apresentação

 

Transcorrido um ano de funcionamento do Serviço de Acolhimento Noturno para adolescentes em situação de rua, faremos um relato dessa experiência. Sem abranger a totalidade e complexidade do serviço, destacaremos os aspectos mais significativos dessa trajetória e os principais desafios enfrentados pela equipe de trabalho.

 

O que apresentaremos a seguir é resultado de um trabalho conjunto entre a monitoria do serviço e a coordenação do mesmo. Achamos importante explicitar os lugares de onde falamos, pois nos coloca numa posição particular de muita riqueza no conhecimento dessa realidade, isto é, dos meninos e meninas que acessam o serviço, esses serão os personagens principais desse relato.

 

Diferente de outras realidades, onde existe uma equipe técnica que oferece suporte ao trabalho da monitoria nós, do Serviço de Acolhimento Noturno, buscamos a sustentação dentro da própria equipe, ou junto a uma coordenação envolvida com uma pluralidade de questões. É no processo de socialização das dúvidas, das frustrações, descobertas, erros e acertos, que temos construído nosso fazer.

 

A descrição apresentada não tem nenhum compromisso com a cientificidade ou com qualquer rigor acadêmico. É antes de tudo, a descrição de uma trajetória onde as relações de afeto e cuidado transformaram-se na condição do exercício profissional.

 

Contexto da criação do acolhimento noturno

 

No contexto de surgimento do Acolhimento Noturno é importante ressaltar a peculiaridade da população que se esperava receber: adolescentes em situação de rua há muito tempo, em história de ruptura quase total com os vínculos familiares, sendo que, em sua maioria, já haviam passado por inúmeras situações de proteção fracassadas, tais como abrigos e famílias substitutas.

 

A proposta de criação do Acolhimento Noturno surgiu como um espaço de transição para uma futura abrigagem ou volta à família. Avaliava-se que estes adolescentes, acostumados num universo muito particular do viver na rua, com suas leis, regras e práticas necessárias à sobrevivência, acabavam evadindo-se dos sistemas de proteção a eles oferecidos, porque a permanência nos abrigos implicava uma ruptura total com as drogas e adaptação às regras rígidas de funcionamento.

 

Segundo matéria publicada no Jornal Já, em Junho de 2001, a cidade de Porto Alegre tinha 384 crianças e adolescentes em situação de rua, de acordo com dados da pesquisa PUC- FASC.

 

Em função deste percentual de moradores de rua e as dificuldades já elencadas, de inserção destes adolescentes, em 2001, com a instalação do quarto governo da Administração Popular na Prefeitura Municipal de Porto Alegre, o então, prefeito Tarso Genro, solicitou medidas que interviessem nessa realidade. Pensou-se num espaço de acolhida, onde o tempo de permanência fosse reduzido, diminuindo tensões e, progressivamente, construindo vínculos afetivos para que esses, no decorrer do processo, pudessem resgatar sua integridade em ações básicas, como: cuidados com o corpo, higiene, saúde e sociabilidade. A proposta era, também, reduzir os danos provocados por mais uma noite passada na rua, expostos as mais diversas violações de direitos. Este conceito de redução de danos também se aplica ao uso de drogas: doze horas longe de uma substância psicoativa acabaria fazendo a diferença, com o passar do tempo.

 

Hoje, adolescentes que antes faziam uso de “loló” durante todo o seu tempo desperto, conseguem acessar o serviço e beneficiar-se dele durante suas doze horas. Com certeza esta redução de uso acaba influindo em seu projeto de vida, sobrepondo-se ao projeto de morte já pactuado com a droga. No inverno de 2001 foi criado o serviço de Acolhimento Noturno, tendo como Gestora Pública a Fundação de Assistência Social e Cidadania.

 

A constituição da equipe de trabalho

 

Éramos uma equipe formada por 18 monitores, sendo quatro monitores e quatorze monitoras, divididos em plantões A e B, duas auxiliares de enfermagem, uma assistente social, uma estagiária de enfermagem, quatro funcionários de serviços gerais, oito vigilantes e seis funcionários do setor de nutrição, mais um assistente de gerência e uma assistente administrativa. Do total de monitores, apenas dois tinham experiência em serviço de abrigagem com adolescentes, os demais eram profissionais recém nomeados, chamados para compor o grupo de trabalho do novo serviço.

 

A equipe de monitoria tinha vários profissionais com formação superior na área de Pedagogia, Serviço Social e Ciências Sociais embora tivéssemos muito claro o nosso papel, a qualificação de cada um muito ajudou no trabalho, principalmente disciplinou os nossos olhares, frente à realidade dos adolescentes que acessavam o serviço.

 

 A leitura da monitoria supriu a ausência de uma equipe técnica em momentos cruciais, onde precisávamos refletir sobre as nossas ações, especialmente em situações de tensão e conflito. A técnica que compunha a equipe do serviço exonerou-se aproximadamente 30 dias após a abertura da casa, deixando-nos a primeira sensação de perda, pela prematuridade do afastamento. Outros afastamentos ocorreram ao longo deste ano, e a sensação se repete, principalmente pela natureza do trabalho, onde a construção de vínculos afetivos é primordial.

 

Houve um intervalo de 60 dias entre a nossa nomeação e a abertura do Acolhimento Noturno, destinados à capacitação. Esse período foi muito fecundo, porque nele se formou o sentimento de pertencimento dentro da equipe de trabalho, fundamental ao êxito desta trajetória. Essa fase tinha como objetivo apresentar a rede de atendimento à criança e adolescente, especialmente em situação de rua. Além dos serviços públicos de abrigagem e educação, conhecemos organizações não-governamentais, Conselho Tutelar e Juizado da Infância e da Juventude. Alguns colegas tinham outras atividades diurnas e foram provisoriamente lotados na Casa de Acolhimento, numa experiência muita positiva para o futuro trabalho.

 

Essa fase foi de muita expectativa e problematização. Apesar da inexperiência quanto ao trabalho, tínhamos presente o significado da proposta e as dificuldades que teríamos. Sabíamos o desafio de criar um espaço de acolhida para esta população, cujos vínculos sociais apresentariam-se fragilizados ao extremo. Queríamos disputá-los com a sedução da rua, com as drogas, não sabíamos exatamente como, e isso gerava uma inquietação positiva.

 

O equilíbrio advinha das diferentes trajetórias que cada monitor possuía, dando uma solidez e um comprometimento à construção do trabalho.

 

Decisivo nesse momento foi a atuação da Gerência, que acolheu a equipe de forma muito afetiva, muito receptiva e estabeleceu uma relação de parceria e entusiasmo. Quando inaugurou o serviço, estávamos mobilizados e comprometidos a fazer da história do novo serviço, uma história de sucesso no contexto das políticas públicas. Um ano depois o saldo é que tivemos muito trabalho, mas temos muito orgulho dessa trajetória.

 

 

 

A abrangência do serviço

 

A primeira constatação que chegamos foi quanto a inviabilidade de atendermos 100 adolescentes por noite, como era a capacidade prevista no projeto, embora a estrutura física comportasse esse número. Percebemos que, quando o número era maior que 50, instaurava-se um ambiente de muita agitação, de tal sorte que o nosso trabalho resumia-se a evitar conflitos e desmobilizar tensões entre os usuários. Nesse panorama, não conseguíamos fazer intervenções educativas ou uma escuta qualificada de suas necessidades. Quando todos dormiam, estávamos extenuados. A forma como acessavam o serviço, a inexistência de vínculos com a monitoria, e a ausência de um diálogo mínimo demandavam muito trabalho. Num relato dessa natureza, não podemos perder de vista as especificidades desse público com o qual trabalhamos. É importante ressaltar que eles operam com uma noção de tempo particular e, portanto, precisamos estar atentos no acompanhamento dessa temporalidade juvenil marcada pelas urgências na formação e abandono de desejos, e isso influencia principalmente os acompanhamentos propostos. Com isso queremos dizer que, no Serviço de Acolhimento Noturno, trabalhamos com uma realidade que é muito dinâmica. Assim, a avaliação de dados, sejam eles qualitativos ou quantitativos só tem valor quando se incorpora essa dimensão da rotatividade com a qual trabalhamos.   

 

Nos primeiros meses recebíamos, em média, 50 adolescentes por noite e, mensalmente, 120 adolescentes diferentes passam pelo serviço com diversas situações: evasões de abrigo, evasões de casa, crianças e adolescentes encaminhados pelo Conselho Tutelar, e adolescentes em situação de rua. Do total de meninas e meninos em situação de rua, que vincularam-se ao serviço, 45 deles foram encaminhados para abrigagem ou retornaram paras as suas famílias.

 

A rotina do serviço

O acesso

Partes da descrição da rotina serão feita no tempo passado, como forma de garantir que elementos importantes sejam recuperados, o que não quer dizer que hoje, tenhamos alterado todos os aspectos, alguns permanecem. Ao longo dessa descrição iremos indicando as alterações ocorridas.

 

Ao chegarem no portão, os adolescentes eram identificados pela gerente ou por seu assistente. Logo após, procedia-se a revista aos adolescentes, com a finalidade de evitar que os mesmos acessassem portando drogas ou armas. Esse momento era muito difícil pela contradição que está implicada nesta prática, principalmente, pelo caráter de violência simbólica contida numa revista, necessária à segurança de todos.

 

Alguns adolescentes chegavam sob o efeito de substâncias psicoativas ou então, quando passavam por situações muito difíceis durante o dia, usavam esse momento como espaço de explosão, negavam-se a ser revistados ou criavam dificuldades, exigindo muita paciência do monitor responsável por esta atividade.

 

Após a revista, processava-se a identificação e a guarda dos pertences. No começo eles traziam muitos volumes, roupas, calçados e objetos diversos que carregavam consigo. Acreditávamos que era pela ausência de um “território” que não fosse o espaço da rua, a causa geradora desse apego a pertences, em muitos casos apenas de valor simbólico. Esses volumes, um ano depois, estão reduzidos de forma que, hoje, basicamente, eles guardam documentos, cigarros, dinheiro, preservativos e tênis.

 

Éramos muito rígidos na exigência de guardarem todos os objetos para evitar conflitos por situações de perda ou apropriação indébita. Hoje temos mais segurança desse processo e permitimos a entrada de alguns pertences, principalmente CD(s), radiofone, brinquedos ou objetos, os quais não ofereçam riscos à segurança.

 

As condições de saúde dos adolescentes

 

Nesse primeiro momento, os adolescentes chegavam muito debilitados pelo estado de drogadição, associado a uma má alimentação e higiene precária. Muitos acessavam com problemas de saúde, doenças dermatológicas, escabiose e pediculose. A preocupação e os cuidados com a saúde desses meninos e meninas foi talvez a primeira resposta positiva desses adolescentes ao serviço. Nas primeiras noites, quase todos passavam pela enfermaria. Durante esse ano de funcionamento, o serviço de enfermagem contabilizou um total de 5.331 atendimentos, intervenções de todo o tipo: nebulizações, curativos, orientações sobre diversas doenças, principalmente sobre DST/AIDS, solicitações de consultas, acompanhamento em emergências e outras.

 

Percebemos que os adolescentes manifestam dificuldades em lidar com os riscos extremos, tais como o HIV, muitas vezes um exame ou consulta são marcados várias vezes até que o adolescente entenda a gravidade da situação e cumpra com seu compromisso de auto cuidar-se.

 

A rotina da rouparia

 

Após a revista, os adolescentes dirigiam-se para a rouparia, onde deviam pegar roupa e toalha, tomar banho para, então, entrarem no refeitório, jantarem e integrarem-se nas atividades da noite, das quais ouvir música, assistir filmes, desenhar e pintar eram as principais opções.

 

A questão da rouparia foi e continua sendo um dos grandes “nós” do serviço, porque existem duas relações básicas implicadas. Primeiro, precisamos administrar uma quantia muito pequena de roupas que chegam através de doações ou compradas pela FASC, para uma população que consome suas roupas quase da mesma forma que o alimento. Precisamos diariamente dispor de roupas e agasalhos que são entregues sem nenhuma garantia de retorno no dia seguinte e, na maioria das vezes, perde-se, principalmente, meias, cuecas, moletons. Por outro lado, não podemos abrir mão dessa rotina, como forma de garantir condições de higiene e de saúde desses meninos e meninas. Aqui ressaltamos que as meninas são muito mais exigentes que os meninos, entretanto, zelam e valorizam muito mais seus pertences e suas roupas quando estas são de seu agrado.

 

É nesse gostar que surge a segunda relação com a rouparia. No começo, definimos que todas as roupas seriam de uso coletivo e cada um, ao acessar, escolheria o modelo de acordo com o seu gosto. Dessa opção, resultaram muitos conflitos e tensões, visto que o grupo como um todo adotava gosto muito semelhante entre si. Assim, os primeiros a entrarem escolhiam o que existia de mais bonito, segundo seus critérios, e os demais recusavam-se a aceitar que não dispúnhamos de cinqüenta bermudas “transadas,” por exemplo.

 

Era uma negociação demorada, difícil e, muitas vezes, instauravam-se as relações de poder existentes entre eles na rua, na disputa por uma ou outra peça de roupa. Os menores, por medo ou por necessidade de proteção, acabavam renunciando ao direito de usar uma determinada roupa, quando um adolescente maior mostrava-se interessado. Portanto, ocorriam dois níveis de tensão, um no balcão, quando havia a escolha da roupa e, outro, quando encontravam alguém com uma roupa “legal” e a desejavam para si. Essa relação estabelecida entre os adolescentes e as roupas fornecidas pelo serviço era muito significativa na subjetividade desses adolescentes. Colocavam-se como sujeitos que tinham direito à escolha de suas roupas, de acordo com o seu gosto. Embora essas roupas fossem doações, eles podiam criar a fantasia de que eram um “cidadões” exercendo o seu direito, comportavam-se como se estivessem em uma loja. Nesse momento, ele, sujeito portador de direitos e “bom gosto”, era o centro das atenções, e os demais estavam aguardando o momento de fazerem a sua escolha. Ficavam muito felizes e vaidosos quando elogiávamos a sua opção. Se um outro adolescente fazia o elogio, esse dizia que a roupa era sua, comprada por sua mãe.

 

Quando avaliamos a trajetória de vida e de abandono materno a que estão submetidos, entendíamos que a escolha da roupa fosse um momento raro na vida desses adolescentes. Sabíamos que, para muitos, esta era a primeira experiência desse tipo, e esta inexperiência se traduzia por uma ansiedade e confusão no modo de agir. Pouco a pouco fomos conhecendo-os melhor e aprendendo a administrar esse quesito rouparia. Hoje, há um relativo número de usuários que possuem suas roupas individuais, separadas em seus respectivos escaninhos. Porém, isso não significa que tenhamos resolvido os tensionamentos, apenas incorporamos uma realidade dinâmica, que nos exige cotidianamente um fazer e um refazer das nossas práticas na busca de acertos e revisão de erros.

 

Refeitório

 

Após passar pela rouparia, dirigiam-se ao banho e para o refeitório. No começo esse era, também, um espaço trabalhoso e se caracterizava por um lugar onde podiam acontecer duas situações: uma forte sociabilidade ou então conflitos sérios, porque na hora da janta, o dia vivido na rua é discutido amplamente entre eles, que também gostam de fazer relatos para a monitoria, tanto de si, como de seus pares, e nem sempre havia consenso sobre o que era dito, principalmente quando as meninas estavam presentes e eram as personagens centrais dos relatos. Os meninos costumavam a referir-se a elas sempre em conotação pejorativa, com ironias e deboches, e isso deixava-as muito irritadas. Vários pratos de comida e canecas de chocolate foram jogadas no refeitório nesse contexto.

 

Os espaços de lazer e o uso do cigarro

 

Os espaços de lazer inicialmente estavam divididos entre masculino e feminino, mas, como o número de meninas era muito reduzido, a equipe de trabalho decidiu unificar os dois espaços como forma de facilitar o trabalho. Os adolescentes gostavam muito de ouvir música e dançar, aliás a dança é uma das marcas de identificação do serviço, de tal sorte que não nos reconheceríamos sem a presença de um grupo de adolescentes dançando. Além da música costumavam assistir filmes diariamente.

 

Uma questão muito debatida, durante as reuniões iniciais, antes de abertura do Serviço, foi a permissão para o consumo do cigarro. Criou-se um impasse na equipe, visto que, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, não poderiam fumar. Sabíamos que este público ficaria 12 horas sem consumir as drogas habituais, e a ausência do cigarro, associado a outras drogas ilícitas, principalmente o “loló,” poderia aumentar a tensão.

Decidimos instituir dois cigarros por noite. Um após a janta e outro após a ceia. Entretanto, na fase inicial o consumo tornou-se livre. A partir de novembro de 2001 começamos a diminuir o consumo, deixando de ser flexíveis como havíamos sido no começo.

 

Atualmente administramos a quantia de dois cigarros por noite, que são retidos pelo adolescente ao entrar no equipamento e temos como meta diminuir gradualmente o consumo.

 

O espaço do sono

 

Inicialmente o adormecer sendo intranqüilo, era uma atividade desgastante para a monitoria, pois eram extremamente agitados, faziam guerra de tênis e quaisquer objetos disponíveis (as sobras dos sabões utilizados nos banhos eram escondidos embaixo dos colchões para posterior uso), e constrangimentos verbais eram comuns.

 

Essas dificuldades começaram a ser superadas quando a monitoria começou a assumir, neste espaço, uma postura maternal, que envolvia o contar histórias, fazer cafuné e ouvir relatos individuais ao “pé do ouvido”. A partir desse momento, o quarto assumiu uma nova conotação, tornando-se um espaço muito rico de trocas afetivas e de auxílio na reelaboração da maternidade, e desassociação de mãe ao abandono. No começo era uma novidade que eles não sabiam muito bem como lidar, e hoje eles exigem a nossa presença junto as suas camas. Embora alguns não consigam verbalizar essa vontade, criam estranhas sutilezas para chamar a atenção e ter a presença de algum monitor ao seu lado.

 

No início não havia nenhum zelo no dormir, jogavam-se de qualquer jeito, sem preocupação de arrumar a cama, de tirar o tênis e roupa em excesso. Ao serem interpelados, alegavam não gostar de usar lençóis. Não tiravam o tênis por medo do furto. Com o passar do tempo, conseguiram estabelecer rituais próprios ao adormecer: organizar a sua cama, procurar dormir sempre no mesmo local, tirar o tênis e roupas.

 

Além disso, observamos que, inicialmente, os adolescentes dormiam em postura fetal, com o rosto coberto por camiseta ou moletom. Qualquer barulho despertava-os instantaneamente (como se ainda estivessem na rua). E, durante a noite, muitos acordavam alegando terem perdido o sono.

 

No começo, os adolescentes não aceitavam nenhum toque dos monitores masculinos, pois associavam ao homossexualismo. Hoje, diluiu-se esta idéia, e muitos constróem o referencial paterno através de trocas afetivas estabelecidas entre eles (conversas, relatos).

 

Assim como todo grupo social preserva a integridade de seus adolescentes, nossa equipe tenta preservá-los dos riscos da noite. Utilizamos todos os recursos de convencimento para que o adolescente usufrua desta proteção, isto é, entre, permaneça, durma e sinta-se bem acolhido para retornar na noite seguinte.

 

 Para alguns é difícil, pois a maioria está há muito tempo vivenciando a experiência da rua. O serviço disputa, a cada minuto, com este mundo.

 

Consideramos um ganho o restabelecimento do sono para esses adolescentes que dormem no serviço, visto que a realidade da rua normalmente se dá de maneira truncada, perigosa e sem condições humanamente mínimas (higiene, espaço adequado, silêncio, segurança, etc.). Quando falamos em segurança é porque sabe-se que durante o sono, à noite, os adolescentes em situação de rua tornam-se alvos fáceis a agressores de todo o gênero.

 

A principal dificuldade enfrentada pela monitoria

 

A principal dificuldade enfrentada na fase inicial era a violência trazida da rua, que dentro do serviço se caracterizava por agressividade. Nesse período havia muitas brigas entre os adolescentes e muita revolta quando precisávamos dizer não a eles. Essa revolta se traduzia por danos ao patrimônio, chutes, pontapés, socos nos vidros da janela, mas nenhum registro de agressão física à monitoria. Apenas nas situações de contenção em surtos, quase sempre resultantes do uso de drogas, a agressividade era dirigida aos monitores.

Quando falamos em contenção, estamos nos referindo à contenção física. Essa contenção física implicava em retirar o adolescente do espaço coletivo, colocá-lo em outro com o apoio dos vigilantes e, após acalmá-lo, tentava-se reestabelecer o diálogo e firmar combinações para que pudesse retornar ao ambiente inicial.

 

Com o passar do tempo, observamos que alguns adolescentes se comportavam de maneira inadequada, causando choque entre seus pares para estabelecer um “litígio”, deslocando-se para outro ambiente, demonstrando insatisfação e justificando, assim, sua evasão naquela noite. Outra situação muito comum era o “surto simulado,” com o objetivo de criar uma negociação favorável ao interesse do adolescente, podendo ser um tênis, uma roupa ou até mesmo um cigarro. Observamos a fragilidade do nosso manejo quando constatamos que, ao “chutar” e ameaçar, acabávamos cedendo aos desejos do adolescente em questão. A agressividade era um mecanismo de barganha até então.

 

A estrutura social da rua estava muito presente, dificultando o manejo e intervenção educativas. Existia uma hierarquia no grupo inicialmente desconhecida pela monitoria, que emperrava a intervenção com os mesmos. Em determinadas situações em que íamos intervir, o grupo se mobilizava na defesa do adolescente em questão, repetindo a realidade da rua e as táticas de sobrevivência. Com o passar do tempo, os vínculos entre os usuários e a monitoria foram fortalecidos, criando um sentimento de segurança e confiança de que aquela pessoa que está ali “age desta maneira porque se preocupa comigo,” e os demais não se sentindo ameaçados. Com isto, não queremos afirmar que a hierarquia da rua tenha desaparecido. Os líderes continuam a existir, entretanto, não se faz necessário o uso desta liderança dentro do Acolhimento Noturno.

 

Uma situação que evidenciava as relações de poder no Acolhimento Noturno era a disputa por roupas. Hoje, percebe-se que a prática é pedir emprestada, ainda que esse pedir não admita recusa, aquele que empresta sente-se menos coagido e sabe que pode recorrer aos monitores para intervir e/ou solucionar possíveis atritos.

 

Meninos e meninas do acolhimento noturno

 

A realidade, hoje, é que vivemos uma defasagem de vagas em abrigos residenciais, e o número de crianças e adolescentes aptos à adoção não é suficiente para a extensa lista de 800 adotantes à espera somente no Juizado da Infância e da Juventude do Rio Grande do Sul. Ou seja, as vagas em abrigos transitórios acabam continuando ocupadas. Essa realidade acaba colaborando para que, hoje, tenhamos adolescentes fixos no Serviço de Acolhimento Noturno, esperando alternativas de moradia.

 

Para nós que trabalhamos diretamente com essa realidade, o primeiro exercício é desmitificar essa visão de “coitadinhos” e perceber a heterogeneidade do grupo. Podemos afirmar que eles, como qualquer ser humano, são resultado das experiências e das trajetórias vividas até o momento. Sabemos que uma criança aprende a dar aquilo que ela recebe. Nenhuma criança que tenha nascido numa família acolhedora, que tenha ganho proteção, segurança, afeto, deixará a sua família.

 

Porém, essa trajetória de abandono e violência familiar da qual quase todos são vítimas, não os transforma automaticamente em “coitadinhos”, enquanto “meninos de rua.” Quando esse sai de casa, ele rompe um ciclo de sua vida e constrói um outro para poder sobreviver na rua. E esta construção não é igual para todos, a diferença está nas potencialidades desse indivíduo, escolaridade, poder de liderança, articulação, etc. A agressividade e promiscuidade que “choca” a tantos, na maioria das vezes, está inscrita na trajetória de vida familiar desses adolescentes.

 

Quando se quer intervir de forma positiva é preciso resgatar a sua história, primeiro para compreender suas atitudes e também descobrir “brechas,” através das quais seja possível o restabelecimento dos vínculos familiares. Isto é, talvez nem tudo seja abandono e violência, ou em muitos casos trata-se de uma família também abandonada. Mães que foram incapazes de proteger e dar afeto aos seus filhos, porque também nunca receberam. A isso soma-se o comportamento peculiar do processo de adolescer: um período de transição e de muita ansiedade, rebeldia e contestação da autoridade paterna/materna. O desejo de ser “livre,” de não precisar dar explicações a ninguém, impulsiona muitos jovens a abandonarem suas casas e sua comunidade de origem, nesse contexto anteriormente descrito.

 

Mas, para além dessa realidade há outra, mais perversa, que é o envolvimento desses adolescentes com o tráfico de drogas, nessas comunidades, que literalmente rouba as perspectivas de construção de uma vida digna e pressiona a fuga desses jovens para o centro da cidade como excluídos, principalmente, da capacidade de sonhar.

 

Anteriormente, falávamos de um grupo heterogêneo. Esse aspecto é mais visível entre os adolescentes do sexo masculino. As meninas constituem um grupo mais homogêneo, seja na idade ou nos interesses comuns. E até mesmo no tempo de rua que, em geral, é menor do que o tempo dos adolescentes do sexo masculino. Esses apresentam-se em subgrupos com diferenças que passam pela idade, pelo tamanho, pelos locais onde costumam ficar, etc.

 

No Serviço de Acolhimento Noturno, em alguns casos, a família procura o adolescente, telefonando ou vindo pessoalmente. Geralmente as famílias que os procuram estão inseridos em Programa de Apoio à Família, e sentem-se motivadas a resgatar o filho, verbalizando este sentimento. Outras famílias, quando telefonamos comunicando que o adolescente acessou o serviço, manifestam diferenciados sentimentos, algumas vezes contraditórios. Muitas crianças e adolescentes foram levados para casa pela equipe, durante a noite. Algumas, recebidas afetuosamente. Outras, com visível indiferença.

 

Atualmente,  um dos grandes desafios do serviço é quanto à chegada da maior idade, como prepará-los para a autonomia. Como sair de um espaço protegido para enfrentar uma vida independente?

 

Observamos também que, em geral, os chamados jovens adultos, jovens que atingiram a maioridade tendo passado a adolescência em situação de rua têm maior dificuldade em adaptar-se aos serviços oferecidos à população adulta.

 

Os principais eventos do acolhimento noturno

 

Neste primeiro ano, realizamos a Festa das Bruxas, de Natal, Ano Novo, idas a sessões de teatro e cinema, passeios em Ipanema, no Parcão, na Bienal de Artes Plásticas e outros. Nossa festa de primeiro aniversário foi um sucesso: os adolescentes mostraram a casa para os visitantes, jantaram todos juntos em uma grande mesa, dançaram e cantaram utilizando microfones. Percebemos que eles sentiram-se, realmente, homenageados. E esta era a proposta.

 

Durante esse ano, um grupo de adolescentes do Serviço de Acolhimento Noturno participou de uma Oficina de Cinema, dentro do Projeto Olho da Rua, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura através da Coordenação de Cinema, onde criaram o roteiro, atuaram e auxiliaram na direção do filme “Estórias Curtas”, foi uma bela experiência a exibição deste filme, em telão, no pátio interno. Essa proposta não visava identificar atores ou outras especialidades, e sim aproximá-los do fazer cinematográfico, propiciando que conhecessem esta linguagem, além de possibilitar que tenham assistidos filmes de curta e longa metragem, no decorrer da oficina.

 

Também, durante o II Fórum Social Mundial, os meninos e meninas mostraram seus dotes artísticos: o grupo musical Farra de Rua e uma esquete teatral foram apresentados durante a Oficina do PAICA-Rua, com grande sucesso. Neste dia, aliás, os adolescentes viveram uma experiência nova: o Serviço de Acolhimento Noturno funcionou durante o dia. Como a oficina foi à tarde, eles não foram acordados, e sim despertaram naturalmente. Tomaram café, inseriram-se nas atividades oferecidas, após almoçaram e, à tarde, foram para o Plaza São Rafael, onde foi realizada a oficina. Eram cinqüenta adolescentes, brilhando para o mundo.

 

A rotina dos adolescente que não acessam o serviço

 

Rotineiramente tentam acessar crianças e adolescentes que não têm história de vida na rua. Estes são entrevistados em uma sala separada do atendimento direto, onde obtemos dados que possam indicar o encaminhamento mais adequado. Acessamos, então, a família, ou, na impossibilidade de acessá-la, o Conselho Tutelar de origem, tratando-se de outras cidades, ou o Plantão Noturno do Conselho Tutelar de Porto Alegre. Muitas vezes, o Conselho Tutelar da cidade solicita um pernoite, para dar continuidade ao caso no outro dia, já em sua micro-região de origem. Para isso, busca o jovem cidadão pela manhã. Nessas situações a criança ou o adolescente dorme separado do grande grupo, com o qual não tem contato.

 

Em outras situações, identificamos que a criança ou adolescente em questão é evadido de abrigos governamentais estaduais ou municipais, ou não-governamentais, conveniados ou não. Nesses casos, após um convencimento frustado de levá-lo de volta, acionamos o abrigo de origem, para que um funcionário vinculado venha buscá-lo. O que nem sempre é feito.

 

O que norteia nossa insistência para que as famílias e abrigos venham buscá-los é acreditarmos no poder que vínculo possa ter para reverter um quadro de início de permanência na rua, que pode vir a ser trágico. Nos últimos anos, em Porto Alegre, observamos vários óbitos em decorrência de complicações derivadas da AIDS ou de assassinatos vitimando a população infanto-juvenil em situação de rua.

 

Outras interfaces

 

Atualmente, a equipe técnica do Serviço de Educação Social de Rua/FASC é que realiza a quase totalidade do acompanhamento dos casos, articulados com a comunidade de origem, através dos serviços locais de acompanhamento social. Muitas famílias destes adolescentes estão, hoje, em atendimento em Programas de Apoio à Família (NASF, PETI, FAMÍLIA CIDADÃ). Durante o dia, os adolescentes acessam os serviços que compõe o PAICA- Rua. Estes serviços, juntamente com o Acolhimento Noturno, participam de reuniões semanais intersecretarias, onde a realidade e os casos são discutidos.

 

A equipe do Serviço de Acolhimento Noturno conta com um estagiário de Direito, que trabalha a partir da proposta de construção do acesso popular à justiça. Esse realiza o acompanhamento dos adolescentes em conflito com a lei, orientando-os e procedendo aos encaminhamentos necessários. Articula-se, internamente, com a coordenação jurídica da FASC e, externamente, com o DECA, DECA-Vítima, Juizado da Infância e da Juventude, PEMSE, Conselhos Tutelares e outros.

 

Utilizamos, também, os serviços emergenciais de saúde, tais como: SAMU, HPS, assim como Hospitais gerais, Plantão de Saúde Mental, Hospital Psiquiátrico São Pedro e outros. Durante o dia, os adolescentes também acessam a Casa Harmonia, Pró-Jovem, COAS e outros.

 

Em situações ocorridas na calçada, ou seja, fora do prédio, acionamos a Brigada Militar. Atualmente, estamos com uma parceria com a mesma que desloca, diariamente, um efetivo para acompanhar o horário inicial de entrada do serviço.

 

Últimas observações

 

O Serviço de Acolhimento Noturno, hoje, acaba revelando uma demanda considerável de vidas adolescentes que buscam um espaço de pertencimento e que desejam, sim, crescer, viver e amar, como qualquer outro jovem. E este deve ser o nosso desafio. Somente um ano de existência também revela lacunas internas e externas:

 

• como possibilitar que eles tenham atendimento durante o dia, aos sábados, domingos e feriados?

• como acolher “melhor” que a rua, pois os “mocós” continuam existindo?

• como realizar um processo de desligamento gradual e eficaz para a família, abrigos ou projetos de vida adulta?

 

Encerramos este relato simbolicamente com estes desafios, dentre muitos que temos, indicando que um processo permanente de reflexão e crítica deve acompanhar este fazer singular que é o cotidiano do Acolhimento Noturno.

 

Relatos de adolescentes sobre o acolhimento noturno

 

“Eu gosto daqui, dos monitores, das atividades, de ser levado para a escola de Kombi. Só não gosto de cuidar carro”. (L.B.H.S.)

 

“Eu fui expulso da casa onde estava. Fiquei em situação de rua”. (N.V.S.)

 

“Eu tava morando na Assis Brasil, quando uma mulher foi lá, aí depois elas foram lá de novo, pegaram e me chamaram para ir pro Acolhimento Noturno, aí eu vim com meus amigos. Aí me levaram para a casa, aí eu voltei de novo. Tinha vários bagulhos tri na Praça São Geraldo. Nós fazia rango lá numa espiriteira. Tinha umas tias que davam vários bagulhos prá casa, roupa, tênis, ganhei um skate. De ruim tinha só os maconheiros. E eles roubavam, e até apoiavam o cara. Eu cuidava carro”. (I.B.C.)

 

“Antes de conhecer o Acolhimento Noturno eu tava dependendo da rua, do roubo, de muita coisa. Agora, depois que eu conheci o Acolhimento Noturno parei de roubar, com menos droga, me acertando com a minha mãe. Agora eu vou morar com a minha mãe. Tá melhor agora”. (L.B.H.S.)

 

“Só não gosto de acordar cedo”. (L.B.H.S.)

 

“Minha vida é estudar, jogar futebol, brincar.

E como era antes?

Cheirar loló. Agora, claro, eu não cheiro de noite. Fico aqui. Aí não cheiro de noite. (T.F.V.)