A CRIANÇA COMO PRIORIDADE

Serviços e rede de serviços de proteção especial às crianças e aos adolescentes

 

 

Rodrigo Lobato Junqueira Enout[*]
Juiz de Direito, SP.

 

 

Este singelo e despretensioso escrito, alinhavado por um aprendiz que há anos vem se preocupando com a lamentável situação em que nos encontramos neste país, neste Brasil campeão de desrespeito aos mais elementares direitos humanos, onde se cultiva com rara competência a malandragem, a violação do direito alheio como um triunfo do opressor, visa apenas mais uma reflexão sobre aquilo que podemos fazer em benefício da melhoria de nossa sociedade, da qualidade de vida, tomando como assunto principal as providências que A TODOS NÓS INCUMBE POR FORÇA DE LEI E DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL e pelo estudo histórico do movimento revolucionário que se convencionou chamar de ILUMINISMO, das doutrinas religiosas e pacifistas e do culto à defesa e proteção dos direitos humanos.

 

Temos de pensar maior, na atuação coletiva, fazendo, construindo, provocando ações e projetos de atendimento mais amplos, pois a meu ver é muito pouco o que se faz no âmbito do Poder Público, das Varas da Infância e da Juventude atualmente, não obstante o denodado esforço dos juízes e juízas, dos profissionais que nelas atuam, Promotores de Justiça, psicólogos, assistentes sociais, etc.

 

Muito se fala e é teorizado em relação ao tema da criança como especial objeto da atenção do legislador, do educador, da medicina e de outras disciplinas. Todavia, em termos práticos, de efetiva implementação de políticas de atendimento aos jovens, muito pouco se faz em nossa sociedade.

 

Esta é a situação, de quase completo descaso para com a complexa problemática da denominada proteção integral, em que vivemos e que vem gerando insuportáveis taxas de violência infanto-juvenil, tendo como causas, dentre outras, a falta de estrutura familiar, a desinformação e o despreparo dos pais, a má qualidade do ensino público obrigatório, a inadequação dos educadores no trato com o jovem, a ausência de vontade e de empenho das autoridades públicas para um completo e duradouro projeto de atendimentos dos direitos da criança e do adolescente, dentre outras causas não menos importantes.

 

Não custa lembrar, ao menos em linhas gerais, o conteúdo dos artigos 3º, 4º e 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente, escritos como corolários do art. 227 da Constituição Federal, que estabelece como absolutamente prioritários os direitos da criança e como absoluta prioridade da família, da sociedade e do Estado o dever de assegurar tais direitos. E dentre os órgãos do Estado está a obrigação da Justiça da Infância e da Juventude de, por seus integrantes, pelo juiz, pelo promotor de justiça, pelos profissionais que a integram, dar atenção prioritária à proteção integral da criança e do adolescente.

 

Sempre cabe destacar a atuação que nós, juízas e juízes, temos de enfrentar nesta área, da qual depende a formação de uma nação desenvolvida. Como nós podemos atuar, enquanto autoridades públicas, como membros do Poder Judiciário, no desenvolvimento tanto de ações isoladas quanto de políticas articuladas de proteção à criança e ao adolescente?

 

A defesa de todos os direitos das crianças e dos adolescentes, tais como direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, é também de nossa responsabilidade, é dever prioritário da população e do magistrado, a quem cabe colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, Constituição Federal).

 

Para quem ainda não está vivenciando em sua plenitude a conscientização de seus deveres para com a defesa dos direitos da criança e do adolescente, basta ser lembrada a redação do artigo 4º do ECA, que explicita, em seu caput e no § único, as garantias para que essa prioridade seja assegurada.

 

É do senso comum o mandamento que resulta da combinação de vários destes dispositivos, de que cabe a todos nós, sociedade, família, comunidade e Poder Público priorizar a defesa e a proteção dos direitos da criança e do adolescente, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, toda as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade (ECA, arts. 3 e 4).

 

Estamos, nós todos, lutado com todas as forças para que a criança e o adolescente tenham seus direitos atendidos? Quais as ações e políticas que temos desenvolvido em benefício da criança e de sua família? O que temos feito em relação a temas, como por exemplo, o da paternidade responsável?

 

São indagações que nos levam a uma reflexão autocrítica e crítica de nossa sociedade, que muito alardeia mas pouco faz em benefício do desenvolvimento sadio da criança e do adolescente e sofre na carne as conseqüência desse descaso de décadas, especialmente com o recrudescimento da miséria e da violência.

 

Se um dos principais direitos da criança, senão o mais importante deles, é o direito à convivência familiar a que se refere o art. 19 do ECA, quais as políticas públicas e os serviços, públicos ou particulares, de atendimento à família existentes em nossa comunidade?

 

Não cabe aqui, dada a complexidade e amplitude do tema, abordar questões relativas a política e a projetos de atendimento, mas apenas referentes ao assunto específico desta palestra, pertinentes aos serviços especiais de proteção a que alude o art. 87, III, do Estatuto.

 

Esta é a limitação que existe, por óbvias razões de tempo, ao assunto de que trataremos nesta oportunidade, pelo simples fato de que é inesgotável o tema que tem como objetivo principal os direitos da criança elencados na Constituição, na legislação infraconstitucional e em nossos espíritos de cidadãos mais ou menos impregnados de doutrina humanista.

 

Direito à convivência familiar e comunitária

 

Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. (ECA, art. 19)

 

Na interpretação e na execução dos mandamentos deste sensato dispositivo legal é que reside um dos maiores tormentos que aflige a atuação daqueles que militam na área do atendimento à criança e ao adolescentes, principalmente aqueles que trabalham com o instituto do abrigamento e no atendimento a famílias.

 

Certos exageros, ou melhor dizendo, alguns enfoques não muito sensatos, muitas vezes recheados de preconceitos morais e religiosos, acabam por fazer letra morta dessa regra que constitui um dos alicerces do Estatuto da Criança e do Adolescente, nosso lindo diploma legislativo que veio, em verdade, consubstanciar a melhor e atualíssima doutrina da proteção integral.

 

Alguns entendidos dizem que o direito da criança e do adolescente à convivência familiar é exigível apenas de seus pais, naturais ou adotivos. Isto é verdadeiro, mas apenas em parte. Evidentemente que o direito da criança à convivência familiar depende da vontade, da disposição, do desejo dos pais em terem consigo seus filhos. Nesse sentido temos a conclusão que basta a recusa dos pais, ou pela má vontade de um ou de ambos, que estará prejudicada a convivência familiar no seio da família biológica, devendo ser buscada a convivência em família substituta. Não. No meu entender esse entendimento é equivocado.

É sabido que o direito à convivência familiar não se restringe ao direito de estar e de ser criado e educado pelos pais. Quantos de nós fomos criados e educados por um avô, por uma avó, por tias ou tios ou por outros parentes mais distantes? Faço aqui o elogio àqueles, profissionais do Poder Judiciário ou não, que efetivamente têm praticado, exercitado a defesa desse direito da criança e do adolescente, buscando a solução além dos pais biológicos e depois de esgotadas as tentativas de estruturação familiar para o acolhimento do jovem no seio da própria família natural.

 

Não cabe aqui desenvolver discurso e estabelecer conceitos sobre a importância da família para o desenvolvimento do ser humano, para a formação física, psicológica, espiritual e moral da criança e do adolescente, e também do adulto, matéria tão debatida e do conhecimento de quem tenha um mínimo de formação nas áreas de psicologia, de serviço social, de pedagogia, no campo jurídico e em outras disciplinas afins.

 

O certo é que a legislação veio tornar jurídico o que antes era somente científico, impondo assim essa responsabilidade não somente aos cientistas, psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, mas também a juízes, a promotores de justiça e a todos os agentes públicos, à sociedade, à família, a todos enfim.

 

Da Política de Atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente

 

Arts. 86 a 89 do ECA

 

Entrando agora na matéria específica de nossa discussão, passemos então à área dos serviços especiais de proteção.

 

A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da União, dos Estados, do distrito Federal e dos Municípios (art. 86).

 

Prevê o art. 87 que são linhas da ação política de atendimento:

 

I - políticas sociais básicas;

 

II - políticas e programas de assistência social, em caráter supletivo, para aqueles que dela necessitem;

 

III- serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão;

 

IV - serviço de identificação e localização de pais, responsável, crianças e adolescentes desaparecidos;

 

V - proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente.

 

É tema de estudo, nesta oportunidade que me é dada, as disposições do inciso III deste art. 87, que têm como destinatários as pessoas menores de 18 anos de idade vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão e seus agressores, dentro e fora da família.

 

Os Serviços Especiais de Proteção e as Medidas Específicas de Proteção à Criança e ao Adolescente no ECA

 

Art. 87, III, c.c. arts. 101 e 129.

 

Ao lado e em complemento às políticas sociais básicas e das políticas e programas supletivos a que se referem os incisos. I e II do art. 87, a lei prevê os serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial aos menores vitimizados por negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão (inciso. III).

 

Verificada a situação do art. 98 (ECA), de violação de direitos por a) ação ou omissão da sociedade ou do Estado, b) por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável, c) em razão da própria conduta da criança ou do adolescente, está caracterizada a necessidade de tomada de medidas específicas de proteção em relação ao jovem vitimizado, que pode referir-se tanto ao atendimento ao menor como a seus familiares e ao agressor.

 

Considerando a condição do menor de 18 anos de idade, temos como exemplos de destinatários da norma legal a criança e o adolescente, como exposto na edição do ECA patrocinada pelo antigo CBIA:

 

- vítima de abandono e tráfico;

 

- vítima de abuso, opressão, negligência e maus tratos na família;

 

- que fazem da rua o seu espaço de luta pela sobrevivência ou de moradia;

 

- vítimas do trabalho abusivo, explorador e ilegal;

 

- envolvidos no uso e tráfico de substância ilícita;

 

- envolvidos em prostituição;

 

- em conflito com a lei em razão de cometimento de ato infracional (criança);

 

- em outras circunstâncias que impliquem riscos à sua integridade física, psicológica ou moral.

 

Embora a legislação dê a denominação de medida de proteção somente àquelas que têm como objeto os cuidados destinados à criança e ao adolescente (art. 101), têm igualmente caráter protetivo, também com nítido conteúdo preventivo e/ou terapêutico, aquelas preconizadas no art. 129, destinadas aos adultos que, por, por ação ou omissão, criaram ou permitiram que se criasse a situação de violação dos direitos reconhecidos e assegurados na lei e na doutrina da proteção integral.

Quais, em linhas gerais, as medidas específicas de proteção destinadas ao menor vítima de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão? São aquelas do art. 101.

 

E quais são as medidas aplicáveis aos pais ou ao responsável pelo menor? Aquelas do art. 129 e mais as normas de repressão previstas no próprio ECA e na legislação penal.

 

Tomada a medida protetiva considerada melhor, é de rigor o prosseguimento do estudo do caso, do acompanhamento e aprofundamento do diagnóstico social da família, daquela mãe ou das pessoas que podem ser consideradas membros da entidade familiar, e do diagnóstico psicológico dessas pessoas, também com o acompanhamento do desenvolvimento da criança e do adolescente, através de entrevistas e de relatórios da entidade de atendimento, tudo para em determinado momento, num futuro imediato ou próximo, seja cumprido estritamente o que está determinado no art. 19 do ECA, a fim de que seja assegurada a sadia convivência familiar e comunitária, com a reestruturação da família.

 

Dos serviços de proteção especial (art. 87, III) existentes da Capital

 

Existem alguns trabalhos, dentre os quais um levantamento realizado pela entidade Pró Mulher, Família e Cidadania, mediante convênio com a Secretaria de Estado da Assistência e Desenvolvimento Social, a respeito da demanda e dos recursos da Zona Oeste do Município da Capital, no qual consta a relação das entidades de atendimento às vítimas da violência.

 

Existe também uma relação elaborada pela Pastoral do Menor, da Arquidiocese, das entidades vinculadas a ela. Sei que outros trabalhos foram feitos com a mesma finalidade, de divulgar os dados das entidades de atendimento ao menor na Capital.

 

Todavia, não obstante a iniciativa profícua de organizações governamentais e não-governamentais, não se concretizou ainda um conjunto sistematizado de informações relativas ao trabalho e ao procedimento dessas entidades de atendimento, especialmente em relação aos chamados serviços especiais, de atendimento à criança e ao adolescente vitimizado, destinado, esse trabalho de informação, a subsidiar a formação de uma rede coesa que possa ser assim considerada.

 

Rede e formação da rede

 

Tenho participado de alguns encontros de especialistas cujo propósito é a discussão de como formar uma eficiente rede envolvendo as entidades de atendimento à criança e ao adolescente. Sou quase leigo no assunto, mas ouso trazer a este seleto auditório uma reflexão minha para a análise crítica de vocês.

 

O que é rede? Um conjunto de pessoas, jurídicas e físicas, que, unidas num mesmo desiderato, em comunhão de propósitos, esteja em articulação para a otimização de seus serviços e de finalidade a que se propõem?

 

Na definição do mestre Aurélio, rede é, no sentido figurado, o conjunto de estabelecimentos, agências, ou mesmo de indivíduos, pertencentes a organização que se destina a prestar determinado serviço.

 

Vejo, em acréscimo a este conceito, que rede de serviço pressupõe a criação de um sistema articulado de informações a respeito da dinâmica e do funcionamento de seus diversos componentes, destinado, esse sistema, a propiciar o trabalho integrado de atendimento a suas finalidades.

 

A formação de uma rede de atendimento à pessoa, seja na área da saúde, da educação, de defesa de direitos, etc., implica na sistematização dessas informações e no gerenciamento dos dados coletados, cuidando primordialmente de sua divulgação eficiente. Um dos meios para que se atinja essa eficiência é a publicação das informações e a promoção de formas de integração dos serviços e das entidades através de visitas e encontros de seus dirigentes.

 

E a “rede” é a manutenção, no tempo, dessa integração.

Aqui, então, cabe um apelo a todos nós, interessados na defesa e no aprimoramento do atendimento ao menor, para a criação da rede na Capital e em todo o Estado de São Paulo, o que, no meu entendimento, somente poderá ser conseguido com a efetiva implementação de um projeto governamental, que na realidade já existe e é denominado SIPIA - Sistema de Informação para a Infância e a Adolescência.

 

O SIPIA propõe a criação de uma sistema de registro e informações sobre a garantia dos direitos fundamentais preconizados no ECA, como um poderoso instrumento para a ações eficiente dos Conselhos Tutelares, dos Conselhos de Direitos, das Varas da Infância e da Juventude e das próprias entidades de atendimento, dentre os diversos usuários.

 

É um sistema informatizado desenvolvido pela Secretaria Nacional dos Direitos Humanos e de seu Departamento da Criança e do Adolescente com a cooperação técnica do CONDECA - Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, da Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social - SADS e da PRODESP, destinado a:

 

- padronizar as informações em nível nacional;

 

- facilitar o registro dessas informações;

 

- agilizar e automatizar o processo decisório;

 

- registrar o histórico de cada caso;

 

- possibilitar o intercâmbio das informações

 

Tem, o SIPIA, três objetivos primordiais:

 

- possibilitar a mais objetiva e completa leitura da queixa ou da situação da criança ou adolescente;

 

- encaminhar a aplicação da medida mais adequada para sanar a situação de violação de direitos;

 

- subsidiar as diversas instâncias - Conselho de Direitos e autoridades - na formulação e gestão de políticas de atendimento

 

Conclusão

 

O que concluo dessa curta mas rica experiência de dois anos à frente de uma Vara da Infância e da Juventude da Capital de São Paulo, mas de longa data ocupado com o tema relativo à educação e à formação da juventude, é que não obstante a notória falta de recursos humanos e materiais, o Poder Judiciário vem fazendo um trabalho, de forma isolada, sem adequada articulação com os outros raros recursos do Estado e da comunidade, sem método, e principalmente sem o reconhecimento, dentro e fora da instituição judiciária, da importância da atividade de atendimento jurisdicional à criança e ao adolescente e da riqueza do cabedal adquirido nestes 9 anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, e porque não dizer, resultado também da experiência anterior, adquirido às custas da dedicação de seus profissionais no trato diário com a crua realidade social em que vivemos.

 

Temos muito a dar, a construir, mas para tanto precisamos de recursos humanos e materiais, treinamentos, diálogo com estudiosos e profissionais das mais diversas áreas e principalmente de liberdade e de incentivo moral, para participarmos de um movimento de sensibilização da sociedade e dos governantes mostrando-lhes como pode ser nossa contribuição para o desenvolvimento das mais diversas ações de atendimento à família, ao jovem e ao adolescente.

 

São Paulo, 21 de setembro de 1999.

 

 

 

NOTAS SOBRE O AUTOR:

[*] Juiz de Direito da Vara da Infância e da Juventude do Foro Regional de Pinheiros - São Paulo.