Fórum Estadual de Erradicação do
Trabalho Infantil e Proteção do Adolescente no Trabalho
“Erradicar o trabalho infantil e todas
as formas de exploração do trabalho de adolescente”..., é mais uma das metas do
Plano Mais Santa Catarina.
O Governo do Estado, através da
Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social e da Família, em convênio com o
Ministério da Justiça, divulga uma das reflexões mais atuais no Brasil sobre “TRABALHO EDUCATIVO”.
No Brasil, sete milhões de crianças são
exploradas no trabalho. Em Santa Catarina, campanhas pela erradicação do
trabalho infantil e proteção ao trabalho do adolescente vêm elaborando
subsídios técnicos, conscientizando e esclarecendo a população.
A infância é o período que deve ser
dedicado ao lúdico, ao desenvolvimento sociocultural, à educação formal da
criança. A melhor ocupação, nessa época, é a escola e todas as ações devem
convergir para essa direção.
O trabalho educativo não substitui a
escolarização básica e nem a formação técnico-profissional escolar. Ao
contrário, o desenvolvimento de atividades laborais
“educativas” deve, mais do que ser compatível com a freqüência à escola,
contribuir para que o adolescente tenha permanência e sucesso escolar.
Contribuir para o pleno desenvolvimento
da criança e do adolescente fará, com certeza, SANTA CATARINA UM ESTADO VENCEDOR.
Florianópolis, abril/1999
MARLI BARRENTIN NACIF
Secretária de Estado do Desenvolvimento Social e da Família
O histórico processo de exclusão e desigualdades sociais, em nosso País, vem se aprofundando face à fragilidade do compromisso das políticas públicas com o processo democrático e a qualidade do desenvolvimento humano e da cidadania.
Grande contingente das camadas
populares vive hoje na periferia das grandes e médias cidades, em extremo
estado de pobreza, sem ter assegurados os seus direitos sociais fundamentais.
O enfrentamento e a organização do
cotidiano exigem das famílias esforços infindáveis e extenuantes. A riqueza de
práticas e saberes por elas acumulada é pouco valorizada e reconhecida no
universo urbano, o que provoca a perda da auto-estima e da identidade entre os
moradores das comunidades. Fragilizadas, as famílias tornam visíveis os sinais
de seu stress, expresso das mais
diversas formas, como a dependência química, a depressão, a agressividade, a
submissão e a desconfiança nas soluções vigentes. Os sonhos, defensivamente,
permanecem escondidos ou aparentemente esquecidos nas atribuições da luta
diária. Inúmeras são as dificuldades
para a materialização de sua condição de sujeitos integrais, plenos e
indivisíveis, sujeitos em processo permanente de aprendizagem e
desenvolvimento, sujeitos de direitos à fruição e usufruto da natureza, ao
intercâmbio de suas práticas e saberes com o patrimônio produzido
historicamente por toda a humanidade nos diversos campos da cultura e da
sociedade, em diferentes tempos e espaços. Vivem uma espécie de apartheid velado, o
que contradiz, na realidade, as conquistas sociais no plano
jurídico-constitucional.
O estatuto de cidadania crítica e
criativa é para muitas famílias um paradigma distante,
inatingível, por sua difícil realização nas relações concretas a que estão submetidas. Seu horizonte
é o imediato, a saber, a sobrevivência, o convívio com a violência da fome, da
moradia precária, da insalubridade, do desemprego, da ausência de perspectivas
de trabalho, renda e condições dignas para seus filhos. A ruptura drástica com
o universo histórico cultural de origem fragiliza ainda mais a compreensão da
linha do horizonte possível e do refazimento do imaginário e dos sonhos na
relação com a cidade.
No tocante ao direito à educação,
trabalho e renda, torna-se difícil afirmar que estejam sendo materializados
investimentos em políticas qualificadas de largo e longo alcance para as
camadas populares, segundo padrões tecnológicos, produtivos e artísticos do
final do século XX. O que para elas
se reproduz são políticas públicas degradadas, sem o rigor dos padrões já
conquistados pela humanidade.
Neste contexto, a presente publicação
tem o objetivo de localizar, no âmbito do Estado de Santa Catarina, os dilemas
enfrentados pela sociedade civil e pelo Estado em face da aplicação do art. 68
do Estatuto da Criança e do Adolescente, que versa sobre o programa de trabalho educativo.
Para tanto, foram estudados
os projetos de programas comunitários enviados para o Ministério da Previdência
e Assistência Social que participaram do I Processo Especial de Seleção de
Projetos para o Programa Brasil Criança Cidadã, bem como aqueles encaminhados
para o concurso de Projetos Sociais da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho e
para o Programa Comunidade em Ação da Rede Brasil Sul (RBS), com a finalidade
de análise das contradições constatadas entre as propostas formuladas e os
ditames legais disciplinadores do programa de trabalho educativo, à luz da
construção doutrinária que se edificou sobre o tema, especialmente o valioso
artigo do Professor Benedito Rodrigues dos Santos, intitulado “A Regulamentação
do Trabalho Educativo”, elaborado para subsidiar a Frente Parlamentar dos
Direitos da Criança, e que nos ofereceu subsídios históricos, jurídicos e
políticos a fim de enfrentarmos com criticidade e determinação
a realidade do trabalho educativo no Estado de Santa Catarina.
Ousamos formular algumas considerações sobre programas que vêm sendo apresentados sob a denominação de trabalho educativo, em face da doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente, na forma tutelada pelo ordenamento legal, sem nos olvidarmos, entretanto, de que a elaboração de soluções pertinentes deve partir, como condição inarredável, dos diversos atores que compõem a sociedade local organizada, conscientes de que a humanidade só poderá alcançar a sua emancipação quando a proteção à infância e à adolescência constituir-se realmente em prioridade absoluta.
FÓRUM ESTADUAL PELA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO
INFANTIL E PROTEÇÃO DO ADOLESCENTE NO TRABALHO
O ordenamento legal
pátrio atual permite o exercício do trabalho comum, pelo adolescente, após 16
anos de idade, conforme Emenda Constitucional nº 20, publicada em
15/12/98.
Na condição de aprendiz, o trabalho foi
autorizado apenas a partir de 14 anos. A proibição de
trabalho insalubre, noturno e perigoso aos menores de 18 anos foi
mantida.
Paralelamente, como forma de irradiação
da doutrina da proteção integral, a ele, adolescente trabalhador, foi destinada
uma série de garantias especiais. Dessa forma, em consonância com a
Constituição Federal/88, a Convenção Internacional sobre os Direitos da
Criança, assinada em Nova York, em 1989, e o Estatuto da Criança e do
Adolescente ficou atribuído à família, ao Estado e à sociedade o dever de
implementar todos os meios necessários para o desenvolvimento
físico, mental, moral, espiritual e social do adolescente, em condições
de liberdade e dignidade.
Se remetermos a nossa atenção aos
ditames do artigo 227 “caput” da Constituição Federal, poderemos verificar que
a proteção que se pretendeu garantir ao adolescente alberga o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Portanto, não obstante o direito ao
trabalho, no caso nos referimos ao trabalho produtivo, seja também consagrado
pela ordem constitucional, o direito que o antecede, que lhe é prioritário, sob
o prisma da teoria da proteção integral, é o direito à educação, à
profissionalização e à cultura, direitos que, efetivamente, oferecem ao
adolescente a oportunidade de enfrentamento futuro do mercado de trabalho em
condições de concorrência.
Não se pode afirmar, contudo, que a
tutela jurídica voltada ao adolescente esteja sendo rigorosamente cumprida. Ao
contrário, o que se verifica é que o conteúdo meramente assistencialista que
vem sendo impresso nas políticas públicas de proteção a esta faixa etária vem
invertendo, no mais das vezes, as prioridades fixadas na escala de garantias
que são conferidas ao adolescente, inviabilizando o caminho para o resgate da
sua cidadania, tomando-o, assim, como anteriormente ao ECA,
objeto de simples filantropia ao invés de sujeito de direitos.
Isso ocorre, por exemplo, quando se
investe numa política de emprego e renda ao adolescente em detrimento de
medidas que visam a sua formação educacional. Ou, ainda, no afã legítimo e
rigorosamente compreensível de se solucionar o problema do menino de rua ou de
evasão escolar, opta-se por programas rotulados como de trabalho educativo e que, no entanto, por não serem comprometidos
com o aspecto pedagógico em si, no mais das vezes se prestam tão somente a
ocupar o tempo ocioso dos adolescentes ou constituir-se como fonte de renda,
sem lhes garantir a contraprestação da educação.
Aprofundando-nos mais sobre a questão,
reportamo-nos aos antecedentes destes programas denominados como de trabalho
educativo que, muito embora se encontrem em dissonância com as diretrizes do ECA e, em conseqüência, em desacordo com a teoria da
proteção integral albergada por este diploma legal, vêm ganhando a legitimidade
e o respaldo da sociedade pelas inegáveis boas intenções que impulsionaram a
sua criação.
Neste aspecto, fazemos remissão ao valioso
trabalho intitulado “A Regulamentação do Trabalho Educativo”, da autoria de
Benedito Rodrigues dos Santos, quem, de forma muito oportuna, procedeu a uma
análise dos aspectos históricos, políticos e sociais que delinearam o atual
perfil dos programas, denominados como de trabalho educativo, que vêm se
multiplicando pelo País.
Já na década de 70, conta o Professor
da Universidade Católica de Goiás, começaram a ser criados
“programas alternativos para meninos de rua” com o objetivo premente de
contornar os seguintes problemas [1]:
a) a presença incômoda de grande contingente de crianças nas ruas; b) o envolvimento crescente de crianças e adolescentes no cometimento de delitos e no uso de tóxicos; c) a avaliação de que tanto a família quanto a escola estavam falhando na socialização de determinados segmentos da população infantil d) a crítica de que a política oficial para a ressocialização dos chamados “menores carentes”, abandonados de rua ou infratores, além de perversa era ineficiente e ineficaz na reeducação de crianças e adolescentes; e) o sistema de capacitação profissional montado pelos empresários não alcançava essa população excluída.
Foi, portanto, neste contexto em que se
buscavam soluções que nem a sociedade nem o Estado estavam oferecendo, que
estes programas foram criados, visando a que as crianças e adolescentes em
situação de risco passassem a se tornar sujeitos de um
processo pedagógico, apresentando-se, portanto, como nova alternativa
para contornar os problemas emergentes. No que diz respeito ao exercício do
trabalho por adolescentes, esses projetos, quase sempre de iniciativa não
governamental, desenvolviam atividades de geração de renda. Como lembra
Benedito Rodrigues dos Santos, esses programas eram promovidos por Entidades
Sociais Particulares (ESPs) que hoje encontram-se indiferenciadamente categorizadas como Organizações Não
Governamentais (ONG’s). Estes programas eram desenvolvidos primordialmente em
escolas cooperativas e escolas.
Mas, as concepções que inspiravam estes
programas alternativos eram distinguidas, já à época, entre aquelas que visavam
à educação pelo trabalho, ou seja, através deste, e as que almejavam a educação
para o trabalho, visando à adequação da mão-de-obra para as necessidades de
mercado.
O que diferenciava uma concepção da
outra, como ainda ensina Benedito Rodrigues dos Santos, é que, na primeira, o
educando participava do planejamento da produção, auferia conhecimento
técnico-científico em relação ao que estava produzindo e definia o destino do
lucro e da produção realizada coletivamente. Já na educação para o trabalho
reinava o princípio do “aprender-fazendo”, ou seja, o aspecto prático
suplantava o educativo.
Paralelamente às oficinas de trabalho,
promovidas pelas ESPs, através de escolas cooperativas, escolas empresas etc.,
foi lançado oficialmente, na década de 80, na vigência do Código de Menores,
considerado pelo Procurador do Trabalho Ricardo Tadeu Marques da Fonseca “o
arcabouço ideológico das normas meramente assistenciais” [2], o Programa
Bom Menino, através do decreto n.º 94.338/87 que regulamentou o Decreto-Lei
2.318/’ 86, o qual obrigava as empresas a contratarem “menores carentes” sob o
pagamento de meio salário mínimo, jornada de 4 horas diárias, sem garantia dos
direitos trabalhistas ou previdenciários. Estes adolescentes eram simplesmente
inseridos no sistema produtivo das empresas sem que lhes fosse assegurada
qualquer forma de profissionalização.
Particularmente, o Programa Bom Menino
não foi recepcionado pela Constituição de 1988, porquanto a concepção que o
norteou afrontava indubitavelmente a doutrina da proteção integral, preconizada
no texto constitucional, uma vez que não garantia o direito à
profissionalização e acentuava uma situação discriminatória, na medida em que
acabava por formar um contingente de mão-de-obra sem qualificação e sem a
correspondente garantia dos direitos trabalhistas e previdenciários. Ainda,
como bem alude o Professor Oris de Oliveira, tal iniciativa oficial acabava por
estigmatizar a pobreza, referida como “situação irregular” pelo Código de
Menores, deixando à margem de proteção os jovens carentes, enquanto a lei
conferia aos socialmente privilegiados, nas mesmas condições de trabalho, todos
os direitos trabalhistas, por não se encontrarem albergados pelo programa [3].
Em Santa Catarina, após amplo debate, as entidades governamentais e não
governamentais decidiram não implantar oficialmente o referido programa por
entenderem que o mesmo iria discriminar ainda mais os adolescente
pobres e, em especial, não atenderia aos requisitos da proteção
integral.
As críticas dirigidas aos projetos em
oficinas que visavam a educação para o trabalho, bem
como ao Programa Bom Menino, consubstanciavam-se em que a mera geração de renda
e o adestramento de mão-de-obra não satisfaziam
as necessidades do jovem como cidadão. Tais críticas ganharam maior respaldo a
partir das mudanças verificadas nos anos 90 no que tange às relações de
trabalho, impondo um novo posicionamento que conduzia à superação dos
paradigmas educação para o trabalho e educação pelo trabalho, porquanto a
educação fundamental passou a configurar-se como requisito imprescindível da
profissionalização.
Como efeito, de acordo com o Professor
Oris de Oliveira, o processo produtivo moderno rechaça a formação técnico-profissional
tipo fordista ou taylorista, exigindo um profissional multiqualificado, com ênfase à
educação básica e média [4].
Já no início da década de 90, constatou-se a necessidade do surgimento de um “novo trabalhador, mais escolarizado, mais participativo e polivalente”, como resultado daquilo que Eduardo Mattoso, Professor de Economia da Unicamp, chama de “novo padrão de industrialização formado sob a ofensiva do capital reestruturado”. Este novo trabalhador seria o contraponto de uma crescente massa de trabalhadores que perdem seus antigos direitos e, não se inserindo de forma competitiva, embora funcional, no novo paradigma tecnológico, tornam-se desempregados, marginalizados ou trabalham sob novas formas de trabalho ou de qualificação, em relações muitas vezes precárias e não padronizadas [5].
A necessidade do aparecimento desse
trabalhador de novo perfil é também aventada na obra “Trabalho do Adolescente:
Mitos e Dilemas”, de Irandi Pereira e outros, segundo a qual “o desemprego
estrutural e as novas demandas do mercado de trabalho deixam claro que o
trabalhador hoje precisa de: formação educacional mínima de 1º grau completo,
profissionalização versátil e polivalente, bem como socialização”, requisitos
capazes de “instrumentalizar o indivíduo para as relações sociais, para a arte
da negociação, para o pensamento flexível e criativo, enfim, para o domínio da
cultura de seu tempo” [6].
Rifkin, citado por Mário Volpi,
ressalta que os avanços tecnológicos e a reorganização do mercado conduzem a
outras formas de produção, nas quais apenas um grupo privilegiado de
profissionais encontrará funções minimamente estáveis [7].
Neste sentido, verifica-se que o ensino
fundamental é ainda a forma mais eficaz de se garantir o acesso ao mercado de
trabalho. Portanto, investir maciçamente no ensino público gratuito, na criação
de escolas particularmente atraentes e equipadas com os recursos humanos e
materiais necessários - são providências hoje que prevalecem em face de
qualquer outra alternativa se quisermos, enfim, pelo
menos viabilizar o acesso do menino pobre no mercado de trabalho em condições
de igualdade.
Neste contexto, a forma mais perversa
de perpetuar o círculo da pobreza é acentuar a idéia de que ao pobre é
reservado o trabalho e ao rico a educação. Ou seja, o pobre ocioso estaria
condenado à delinqüência. No entanto, não se pensa nas formas de preenchimento
do tempo que são utilizadas para os meninos de classe média e alta.
Com o advento do Estatuto da Criança e
do Adolescente, chegou-se a imaginar que o seu art. 68, que trata dos programas
de trabalho educativo, tivesse sinalizado balizas fortes para refrear a
perspectiva de inserir o adolescente no mercado de trabalho, através destes
mesmos programas, porquanto a “mens legis” deste
dispositivo, segundo aqueles que o redigiram, era garantir primordialmente o
desenvolvimento pessoal e social do educando e não a sua subsistência [8].
No entanto, deparamo-nos com o
desvirtuamento na aplicação do art. 68 do ECA, na
medida em que os programas, rotulados como de trabalho educativo, a exemplo
daqueles criados na década de 70, têm por objetivo a simples geração de renda,
sequer visando a integrar o processo educativo com o trabalho, pelo que
efetivamente não vêm correspondendo aos ditames do indigitado dispositivo legal
e, ademais, vêm servindo como meio de reprodução da pobreza, uma vez que os
adolescentes neles albergados serão, no futuro, alijados da oportunidade de
concorrerem em condições de igualdade por vagas de emprego, porquanto, ao invés
de obterem conhecimentos de línguas, computação, artes e outros conhecimentos
que contribuam para o desenvolvimento da criatividade, repetem, nestes
programas, simples tarefas mecânicas, dissociadas do processo produtivo geral,
em que o fazer é mais importante que o saber. Muitas vezes, os adolescentes, no
desempenho das tarefas que lhes são competidas, permanecem expostos a agentes
insalubres e perigosos, como nas oficinas de marcenaria, padaria e serralheria,
das quais saem com conhecimentos teórico-práticos limitados em relação ao
processo produtivo contemporâneo. Enfim, estes adolescentes não corresponderão
às exigências de mercado e constituirão um exército de mão-de-obra
desqualificada, vulnerável e, portanto, manipulável.
Verifica-se ainda que, quando da
criação destes programas, não se questiona acerca das inclinações do mercado de
trabalho através de pesquisas de mercado local, preferindo-se as atividades
manuais às intelectuais. E o caso, por exemplo, de um programa que era
desenvolvido em um município catarinense, em que os adolescentes trabalhavam na
rodoviária praticamente carregando malas de passageiros. Sem embargo dos
benefícios assistenciais e até pedagógicos desse programa, que incluía o
pagamento de bolsa mensal, aulas de dança, noções de higiene e freqüência
obrigatória à escola, não havia a intenção de formar futuros guias turísticos,
com o oferecimento de aulas de história, idiomas, apesar de o município possuir
uma vocação notadamente turística. O que se percebe em programas como estes é
apenas o caráter paternalista e filantrópico que pouco contribui para a
formação da cidadania do adolescente. Esses programas, contudo, por estarem
oferecendo uma solução imediata à problemática ganham o respaldo da sociedade.
Ao lado das entidades que instituem programas
de geração de renda também merecem atenção àquelas que procedem à intermediação
de mão-de-obra de adolescentes para empresas. Neste ponto, há um agravante
porque o jovem que está trabalhando nas empresas sem a contrapartida da
profissionalização e sem os direitos trabalhistas e previdenciários que
normalmente lhe seriam assegurados está ocupando a
vaga de um membro adulto da família e favorecendo tão-somente o empresário que
pode contar com uma mão-de-obra dócil, sem poder reivindicatório, que aufere
salários menores e não onera o empregador com encargos legais. Quem é
beneficiado por essa situação? Naturalmente que não é o adolescente, que não
está sendo preparado para no futuro obter vagas de emprego, nem a sociedade
que indiretamente sentirá os efeitos da marginalização dos futuros adultos com
precária qualificação. Esta situação apenas beneficia a empresa e o atual
sistema, legitimando o histórico processo de exclusão social.
Os programas rotulados como de trabalho
educativo, que têm por fim a colocação do adolescente na
empresa, devem ser profundamente questionados porque o direito à
profissionalização não pode constituir-se em pretexto para a inserção do
adolescente no mercado de trabalho sem os direitos que normalmente lhe seriam
atribuídos.
Por essa razão, não podemos nos posicionar favoravelmente aos projetos de lei que tramitam hoje no Congresso e que visam à regulamentação do art. 68 do ECA, permitindo que o trabalho educativo se desenvolva no âmbito da empresa. Com efeito, numa empresa, o aspecto produtivo nunca será suplantado pelo aspecto pedagógico, porque, como bem ressalta o Prof. Oris de Oliveira, o que a empresa visa é o lucro e não a educação. Sem dúvida, a volta de programas oficiais decorrentes de uma regulamentação equivocada do art. 68 do ECA representaria um retrocesso inconcebível.
É, portanto, necessário que tentemos
realizar uma abordagem crítica da situação concreta do trabalho educativo para
não aderirmos a soluções que não interessam nem ao Estado, nem à sociedade e
tampouco ao adolescente, pois a busca de respostas imediatistas de pobreza do
adolescente transforma um adulto expropriado de suas oportunidades de
desenvolvimento da cidadania.
As entidades que promovem esses
programas acabam por passar uma visão equivocada para a sociedade de que a
única solução para o problema seria o trabalho, inclusive o de crianças,
sensibilizando a comunidade neste sentido, a qual crê que os programas de
geração de renda ou aqueles que visam à intermediação de mão-de-obra
adolescente para empresas representariam a forma mais eficaz de enfrentar
questões como a evasão escolar, o aliciamento de jovens para o crime, etc.
É importante, inclusive, ressaltar uma
questão abordada no trabalho do Professor Benedito Rodrigues dos Santos,
atinente a que essas entidades referidas não se encaixam no conceito moderno de
ONG’s que, como referido na Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena,
em 1996, desempenham relevante papel na promoção dos direitos humanos e nas
atividades humanitárias em geral em níveis regional, nacional e internacional,
isto porque, efetivamente, as referidas entidades não preparam o jovem para o
mundo do trabalho. Ao contrário, limitam-se a
desenvolver ações que não acirrem as contradições do sistema, trabalhando sobre
efeitos já consumados, sem qualquer intervenção eficaz nas causas do problema.
As soluções para os problemas da
infância e da adolescência, contudo, não podem ser resolvidas por esta ou por
aquela entidade, mas pela sociedade local devidamente articulada. Isto porque o
esforço integrado de ações apresenta-se como condição para que a criança e o
adolescente sejam atendidos em seus diversos planos de necessidade. Neste
sentido, cita-se a criação do Fórum pela Erradicação do Trabalho Infantil e
Proteção do Adolescente no Trabalho, criado em âmbito nacional, estadual e regional, que se constitui em um espaço em que
diversas entidades governamentais e da sociedade civil debatem sobre o tema,
visando ações complementares e integradas que, enfim, são coordenadas de modo a
estabelecerem-se os papéis e as ações de cada uma para o enfrentamento de
problemas específicos.
O Estado de Santa Catarina mais uma vez
dá o exemplo de como uma política de ação integrada poderá apontar as soluções
para o problema da infância e da juventude. Recentemente, foi expedido pela
Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça de Santa Catarina o Provimento nº
19/1 997, (antes da vigência da Emenda Constitucional nº 20/98) por meio
do qual foi enfatizado que aos adolescentes antes dos 14 anos não podem ser
concedidas autorizações para o trabalho, devendo o mesmo, no caso, ser
encaminhado pelo Magistrado ao Conselho Tutelar para que este avalie a
oportunidade de incluí-lo em programa comunitário ou oficial que, em
consonância com as diretrizes do ECA, possa satisfazer
os direitos elencados em seu art. 3º.
Verifica-se, portanto, que a solução
adotada passou a possuir uma conotação menos imediatista, porque calcada na
premissa de que a exploração do trabalho da criança e do adolescente demanda
esforço conjunto dos diversos atores sociais, o que se afigura como medida
responsável e compromissada porque torna possível o enfrentamento direto das
causas deste repulsivo fenômeno. Tal proposta de solução viabiliza-se através
de processo complexo e de efeitos a médio e curto prazo, dado seu caráter
altamente transformador, não se limitando a ações que, almejando dirimir de
pronto a problemática, perpetuam um sistema discriminatório que aparta do
direito de receber a necessária educação os socialmente desfavorecidos.
Portanto, importa que a comunidade se
reúna, que as diversas entidades que atuam sobre a causa questionem o tipo de escola que o município possui,
se há escolas e professores suficientes, se a escola é atrativa, quais os meios
de que a sociedade, representada por seus vários segmentos, dispõe para adequar
a realidade às exigências que tornam a criança e o adolescente cidadãos. A
imediata opção por programas que visam à mera geração de rendas não se
constitui como alternativa comprometida com os fins do ECA.
De acordo com a lição do Professor Oris
de Oliveira, para que o trabalho seja educativo é necessário [9]:
a) que ele se associe com a educação do
cidadão, contribuindo para o desenvolvimento do educando com vistas a realizar
suas potencialidades intrínsecas e à formação e ao desenvolvimento de sua
personalidade;
b) que no aspecto biopsicológico,
extraia do adolescente o que ele tem de próprio e original. O trabalho deve
suprir as necessidades individuais - respeito ao desenvolvimento harmônico do
corpo e do espírito - promover o desenvolvimento emocional - incentivar a
formação de um espírito crítico - promover o desenvolvimento de valores morais
e culturais de todo tipo;
c) no aspecto social, promova o
desenvolvimento de senso de responsabilidade - instrumentalização para
participação nas transformações e no progresso sociais.
Nestes termos, consideramos dissonantes
com a teoria da proteção integral, preconizada pelo ECA,
os programas:
1. que não estabelecem a fixação de cronograma de conteúdo
pedagógico;
2. que oferecem atividades que tradicionalmente são destinadas ao
futuro operário pobre, deixando de contar com parceiros como o SINE ou o
SEBRAE, que poderiam se manifestar sobre as tendências de mercado da região;
3. que colocam em risco a integridade física dos adolescentes;
4. que estabelecem tarefas a serem exercidas nas ruas, como no
caso dos guardas-mirins de trânsito, em que o aliciamento para as atividades
ilegais e criminosas torna-se facilitado;
5. que intermediam os adolescentes para as empresas, porquanto,
como vimos, o trabalho educativo se incompatibiliza de forma inconteste com os
ditames do art. 68 do ECA;
6. que estabelecem idade mínima inferior a 14 anos, ou seja, antes da conclusão do ensino
básico fundamental.
A solução deve vir da comunidade local
organizada, da fiscalização do Conselho Tutelar, da atuação da Secretaria da
Educação, da autuação do Ministério Público etc. Releva enfatizar que mais
importante do que simplesmente proceder à fiscalização é orientar para a necessária
adequação, de modo que esses serviços implementados pelas entidades sejam fiéis
às diretrizes do ECA e não simplesmente extintos, o
que também seria uma conseqüência sem compromisso com a realidade.
Como alude Mário Volpi, “não seria
equivocado afirmar que o retardamento do ingresso do adolescente no trabalho,
associado a um programa consistente de profissionalização, escolarização e
programas de incremento de renda
familiar, apresenta-se como uma alternativa mais
sintonizada com o nosso tempo”.
Por outro lado, não podem ser
menosprezadas as dificuldades reais enfrentadas pelas entidades que tentam dar
fiel cumprimento ao art. 68 do ECA. Como bem alude o
Professor Bendito Rodrigues dos Santos, “muitos programas
adeptos à visão mais crítica em relação ao trabalho, e que podem ser
enquadrados na categoria educativos, não escapam a um dilema de natureza
estrutural entre formação técnico-profissional e produção/produtividade. Quando
se dedicam mais à formação, a produção baixa em volume e em qualidade; quando a
ênfase maior é à produção, o ensino metódico e sistemático, vinculado a
aspectos teóricos e práticos, desaparece da agenda do programa. Alguns,
perseguindo a meta da auto-sustentação, terminam por se transformar em
microempresas, que quase sempre empregam adolescentes sem proteção aos seus
direitos, inclusive com remuneração irrisória, reproduzindo as relações
empregatícias precarizadas. Os programas que persistem na linha de formação
profissional não conseguem recursos para a manutenção da instituição e os adolescentes que necessitam de
recursos para sobrevivência não podem concluir a capacitação profissional.
Ainda assim, enfrentando dilemas como o acima mencionado, é este tipo de
programa que possui os paradigmas que inspiraram a instituição da figura
jurídica do trabalho educativo no ECA e que devem
fornecer parâmetros para a regulamentação do art. 68, buscando mecanismos
legais para superar a continuidade histórica de programas de geração de renda e
trabalho que adotam a perspectiva do adestramento da mão-de-obra e da
reprodução do ciclo da pobreza” [10].
Por fim, deve ser ressaltada uma das
conclusões retiradas do Seminário Parlamentar sobre o Adolescente e o Trabalho,
que ocorreu em Brasília, entre 10 e 11 de setembro de 1997, no sentido de que
“é preciso vencer a idéia de que qualquer tipo de profissionalização é útil.
Ela exige uma grande sintonia com o mercado e com os direitos de cidadania”.
Portanto, a política pública que visa a
educar, com o compromisso de formar o futuro trabalhador cidadão, é
aquela que enfatiza o direito de ser criança, que garante o acesso ao
ensino básico fundamental, bem como cria condições para que este seja
devidamente completado, e permite o desenvolvimento de atividades lúdicas,
esportivas e artísticas no decorrer da infância e da juventude. Sintonizar os
programas existentes com as diretrizes do ECA
significa, pois, repensar seus conteúdos, de modo que os fins atinentes à
geração de renda não comprometam a cidadania da criança e do adolescente, e que
os novos padrões tecnológicos, artísticos e produtivos lhes sejam efetivamente
acessíveis.
Florianópolis, dezembro/1998
Fórum pela Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Adolescente no
Trabalho
BIBLIOGRAFIA
FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O Direito à Profissionalização. Corolário da
Proteção Integral das Crianças e Adolescentes, resenha
da dissertação de mestrado apresentada pelo autor em 1966, Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo.
MATTOSO, Jorge Eduardo. O Novo e Inseguro Mundo do Trabalho nos Países Avançados, in Comin, Álvaro Augusto e
Outros. O Mundo do Trabalho: Crise e Mudança no Final do Século. São Paulo,
Editora Página Aberta, 1994.
PEREIRA, Irandir
e Outros. Trabalho do Adolescente. Mitos
e Dilemas. São Paulo, Instituto de Estudos Especiais da PUC/SP, maio de
1994.
OLIVEIRA, Oris
de. O Trabalho da Criança e do Adolescente. São Paulo, Ed. LTr, 1994.
OLIVEIRA, Oris. A Profissionalização do Adolescente. Palestra apresentada no
Seminário Parlamentar sobre o Adolescente e o Trabalho, realizado em Brasília,
em 10 e 11 de setembro de 1998.
SANTOS, Benedito Rodrigues dos. A Regulamentação do Trabalho Educativo. Texto
elaborado por solicitação das organizações UNICEF e INESC, visando a subsidiar
a Frente Parlamentar dos Direitos da Criança, do Congresso Nacional, na
apresentação e proposição de projetos de lei relacionados à infância e à
adolescência.
VOLPI, Mário. Normas Gerais para o
Trabalho do Adolescente. A Profissionalização do Adolescente. Palestra
apresentada no Seminário Parlamentar sobre o Adolescente e o Trabalho,
realizado em Brasília, em 10 e 11 de setembro de 1998.
NOTAS
[1] SANTOS, Benedito Rodrigues dos. A
Regulamentação do Trabalho Educativo. Texto elaborado por solicitação das
organizações UNICEF e INESC, visando a subsidiar a Frente Parlamentar dos
Direitos da Criança, do Congresso Nacional, na apresentação e proposição de
projetos de lei relacionados à infância e à adolescência, pág. 10
[2] FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O Direito à Profissionalização. Corolário da Proteção Integral das Crianças e Adolescentes, resenha da
dissertação de mestrado apresentada pelo autor em 1966, Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo
[3] OLIVEIRA, Oris. A
Profissionalização do Adolescente. Palestra apresentada no Seminário
Parlamentar sobre o Adolescente e o Trabalho,
realizado em Brasília, em 10 e 11 de setembro de 1998.
[4] Id, ibid.
[5] MATTOSO, Jorge Eduardo. O Novo e Inseguro Mundo do Trabalho nos
Países Avançados, in Comin, Álvaro Augusto e Outros. O Mundo do Trabalho: Crise
e Mudança no Final do Século. São Paulo, Editora Página Aberta, 1994, págs.
523/524.
[6] PEREIRA, Irandir e Outros. Trabalho do Adolescente. Mitos e Dilemas. São Paulo, Instituto de Estudos Especiais da PUC/SP, maio de 1994, pág. 19.
[7] VOLPI, Mário. Normas Gerais
para o Trabalho do Adolescente. A Profissionalização do Adolescente.
Palestra apresentada no Seminário Parlamentar sobre o Adolescente e o Trabalho,
realizado em Brasília, em 10 e 11 de setembro de 1998.
[8] SANTOS, Benedito Rodrigues dos, op. cit., pág. 12
[9] OLIVEIRA, Oris. A
Profissionalização do Adolescente. Palestra apresentada no Seminário
Parlamentar sobre o Adolescente e o Trabalho, realizado em Brasília, em 10 e 11
de setembro de 1998.
[10] OLIVEIRA, Oris de. O Trabalho da Criança e do Adolescente. São
Paulo, Ed. LTr, 1994, pág. 166.