PODER JUDICIÁRIO, MINISTÉRIO PÚBLICO E A PRIORIDADE ABSOLUTA PARA A INFÂNCIA E A JUVENTUDE

 

 

Olympio de Sá Sotto Maior Neto
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná.

 

 

Quando da Assembléia Nacional Constituinte, mediante emenda popular com mais de dois milhões de assinaturas e buscando traduzir a máxima do “superior interesse da criança” contida nos documentos internacionais, inscreveu o legislador constituinte pátrio princípio constitucional no sentido de que o atendimento aos interesses da infância e juventude deve ocorrer com absoluta prioridade (art. 227, da CF), traduzindo-se a regra - além dos deveres da família e sociedade - na obrigatoriedade para o Estado em, de maneira preferencial, formular e executar políticas públicas capazes de garantir às crianças e adolescentes proteção integral (isto é, a possibilidade do exercício dos direitos fundamentais da pessoa humana e, também, daqueles especiais e inerentes à condição de pessoas em peculiar fase de desenvolvimento), bem como, identicamente de forma privilegiada, destinar os recursos necessários à consecução dos programas e ações estabelecidos em favor de tal população (art. 4º, do ECA).

Diante de um contexto de desassistência e abandono, experimentado pela grande maioria das crianças e adolescentes brasileiros (calcula-se a existência de cerca de 40 milhões de carentes e abandonados), pretende-se que o comando da Constituição Federal (repetido nas Constituições Estaduais e nas Leis Orgânicas Municipais) não permaneça mera declaração retórica, exortação moral, singelo conselho ao administrador e, porque assim tomado, postergado na sua efetivação ou relegado ao abandono.

As crianças vítimas do holocausto permanente ditado pela mortalidade infantil, aquelas que apresentam lesões cerebrais irreversíveis decorrentes da subnutrição, as que se encontram nas ruas sobrevivendo através da esmola degradante, bem como as que não têm acesso à educação ou à saúde, enfim as sem oportunidade de vida digna, não podem mais aguardar que a “natureza das coisas” ou o “processo histórico” venham a intervir para a materialização daquilo que lhes foi prometido como direitos fundamentais (até porque entre nós já comparece concreta - e produzindo seus efeitos nocivos - a proposta da hipocrisia neoliberal travestida de globalização econômica, tendente a transferir os foros das decisões políticas, sociais e econômicas dos espaços da soberania nacional para os escritórios acarpetados das empresas multinacionais ou transacionais, com significativos prejuízos às questões sociais (afinal, não é por acaso que o governo brasileiro se vangloria do pagamento da dívida externa e não se envergonha com a sua crescente dívida social), sendo que “a mão invisível do mercado”, por certo, não tem olhos (nem coração) para enxergar nossas crianças entregues à miséria social e conseqüente subcidadania).

Em razão exatamente disto (e do significado da matéria prioridade absoluta para o tema “Direitos Humanos e a Proteção da Infância e da Juventude”) é que se quer colher manifestação dos participantes do 19º Congresso Brasileiro de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e Juventude no sentido de que, evidentemente, também ao Poder Judiciário e ao Ministério Público se aplica, até com maior rigor, o princípio da prioridade absoluta, seja em razão, no que diz respeito ao Poder Judiciário, do princípio da “inafastabilidade” da jurisdição ou, no que tange ao Ministério Público, de ser ele o defensor do povo, incumbido de "zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia" (art. 129, II, CF).

Neste momento em que as nossas crianças e adolescentes passam a ser tratados como bodes expiatórios da caótica situação social (e de insegurança) vivida no país, com o surgimento de levianas propostas para restabelecimento do Código de Menores ou da diminuição da imputabilidade penal (na verdade, a sociedade brasileira tem o direito de se indignar diante da tragédia que envolve nossas crianças e adolescentes, entretanto, tal indignação deve ser canalizada a favor da infância e da juventude e não contra ela, na correta perspectiva de que a melhor forma para evitar violência e criminalidade é superar a marginalidade, retirando-se aqueles que se encontram à margem dos benefícios produzidos pela sociedade para conduzi-los à cidadania plena), urge intervenção dos Magistrados e agentes do Ministério Público objetivando a implementação da regra constitucional que contempla a população infanto-juvenil com a garantia prioritária do exercício dos direitos relacionados à vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e a convivência familiar e comunitária, assim como das diretrizes e programas de atendimento estabelecidos em favor das crianças e adolescentes na Lei nº 8.069/90.

Pensando nessa linha é que se pretende ver consagrada, pela manifestação de seus próprios membros, a obrigação legal do estabelecimento pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público de políticas institucionais capaz de conduzir à efetivação no país do princípio constitucional da prioridade absoluta, assumindo-se, com essa postura, a responsabilidade funcional, ética e social de se escrever uma nova história para a nossa infância e juventude.

Para tanto, afora a criação e instalação de órgãos de apoio às respectivas atividades funcionais (os Serviços de Apoio à Infância do Poder Judiciário e os Centros de Apoio Operacional das Promotorias da Infância e Juventude do Ministério Público, dotados de recursos humanos e materiais suficientes ao seu pleno funcionamento, inclusive no que tange à orientação para a política institucional a ser traçada), e outras medidas internas como a criação de Varas e Promotorias Especializadas nas Comarcas de maior densidade populacional (prevendo-se também o suporte de serviços auxiliares, especialmente de cunho técnico), a realização permanente de cursos para o aperfeiçoamento funcional dos seus membros, as publicações institucionais contemplando matérias referentes à área da infância e juventude, a inserção nas correições de tópicos pertinentes à política de atendimento da infância e juventude de cada localidade, etc. (além, é claro, da preferência e agilidade na tramitação dos feitos da área), indispensável que os Magistrados e agentes do Ministério Público verifiquem, em todos os níveis (municipal, estadual e federal) e em todas as instâncias de poder (Executivo, Legislativo e Judiciário), a existência de adequada e preferencial política pública de atendimento à infância e juventude, assim como a destinação privilegiada de recursos para essa área social.

Partindo-se da intervenção para a indispensável criação dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e dos Conselhos Tutelares (art. 88, inc. II e 132, do ECA), necessário interferir no sentido da existência de políticas públicas capazes de fazer das crianças e adolescentes efetivamente sujeitos de direito (e não mais meros objetos de intervenção do Estado), garantindo-se, entre outros e guardadas as peculiaridades locais, os relacionados à vida (p. ex., identificando a taxa e os fatores responsáveis pela mortalidade infantil nos municípios da Comarca), à saúde (p. ex., verificando a cobertura integral das vacinações recomendadas pelas autoridades sanitárias, a realização pelos hospitais dos exames visando ao diagnóstico e terapêutica de anormalidades do metabolismo; a existência de programas destinados à nutrição, à assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos), à convivência familiar (p. ex., providenciando a materialização dos programas oficiais de auxílio e orientação a famílias carentes, bem assim os de desinstitucionalização de crianças e adolescentes abrigados e também os destinados à adequada aproximação e retirada das crianças e adolescentes das ruas), à educação (p. ex., realizando atividades direcionadas à garantia de educação infantil, também de ingresso, permanência e sucesso no ensino fundamental; conferindo a existência dos conselhos de acompanhamento e controle social Fundef, assim como dos planos de cargos, salários e valorização do magistério e, ainda, dos programas suplementares de material didático-escolar, transporte alimentação e assistência à saúde), à profissionalização (p. ex., providenciando o desenvolvimento de programas de iniciação profissional, bem como de proteção no trabalho, impedindo atividades insalubres, penosas e perigosas ou que impossibilitem a regular escolaridade) e às medidas sócio-educativas (p. ex., promovendo a instituição de programa para a prestação de serviços à comunidade e, principalmente, à execução de liberdade assistida). Anote-se que, dos temas emergenciais aqui elencados (quase sempre, reflexos da situação familiar determinada pela inexistência de política de pleno emprego, de salário justo, de programas de renda mínima ou, ao menos, de efetiva assistência social para quem dela necessite) e afora, obviamente, o combate à tragédia da mortalidade infantil, destaque-se a necessidade da implementação dos projetos governamentais destinados ao auxilio a famílias carentes, já que, na maioria absoluta das vezes, a promoção social de uma criança ou adolescente implicará resgatar para a cidadania também os seus familiares. Uma vez atendidas as condições materiais indispensáveis à subsistência, o caminho seguinte a ser trilhado se traduz no encaminhamento de todas as crianças e adolescente para o sistema educacional, pois, como sempre se diz - e isto exsurge indisputável em relação aos nossos filhos - lugar de criança é na escola. Dentre os direitos fundamentais consagrados à infância e juventude, sem dúvida avulta em significado o pertinente à educação, observado também que o sistema educacional se constitui - juntamente com a família - em extraordinária agência de socialização do ser humano (isso sem contar com a possibilidade de importante interferência, enquanto aparelho ideológico do Estado, na formação do pensamento acerca da sociedade em que se vive e do papel que cada um pode nela desempenhar). A educação, devidamente entendida como direito de todos e dever do Estado, destina-se, conforme prevê a regra constitucional, ao pleno desenvolvimento da pessoa, sua qualificação para o trabalho e, principalmente, ao preparo para o exercício da cidadania (art. 205, da CF). O direito de acesso, permanência e sucesso no sistema educacional comparecem como antídoto à marginalização social que encaminha crianças e adolescentes à mendicância, ao trabalho precoce, à prostituição e à delinqüência. Não é por acaso que, na verificação dos adolescentes sujeitos às medidas sócio-educativas (especialmente as privativas de liberdade), alcança-se índices elevadíssimos no referente ao afastamento (muitas vezes por exclusão imposta indevidamente pela própria escola) do direito à educação. A luta por novos e melhores dias para a infância e juventude brasileiras só pode estar embandeirada - e ter como ponto de partida - a efetivação do direito à educação. Por isso, o legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao mesmo tempo em que arrola os seus princípios informadores (art. 53) e as formas de sua materialização (art. 54), asseveram que “o acesso ao ensino obrigatório gratuito é direito público subjetivo”, e que “o não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, assim como a sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente” (art. 54, §§ 1º e 2º). Então, na perspectiva da formação de verdadeiros cidadãos, o processo educativo deve atender a propósitos de valorização do ser humano, de seu enriquecimento no campo das relações interpessoais, de respeito ao semelhante e, igualmente, de desenvolvimento do senso crítico, da responsabilidade social, do sentimento participativo, da expressão franca e livre do pensamento, enfim, constituindo-se a escola em espaço democrático propício ao desenvolvimento harmônico do educando. Ainda em tal aspecto, convém anotar a importância de restar concretizado, para todas as crianças de 0 a 6 anos, o direito a creche e pré-escola, capaz de atendê-los quanto à saúde e alimentação (eliminando-se, principalmente, os riscos das lesões cerebrais irreversíveis decorrentes da subnutrição), bem como a oportuna introjeção de valores ético-sociais, além do preparo para o ingresso no ensino fundamental, caminho para uma cidadania que se quer ver atingindo por todas as nossas crianças e adolescentes.

Nessa altura da reflexão - acerca das previsões do ordenamento jurídico e da sua distância da vida concreta de nossas crianças e adolescentes - vale a convocação de todas as forças progressistas da sociedade no sentido do empenho pela materialização dos comandos legais, porquanto, como se sabe, a lei por si só não tem o condão de modificar a realidade social, mas sim o cumprimento das sua regras pelos governantes e o exercício dos direitos nela consagrados pela sociedade civil. Daí, tratando-se da concretude das promessas jurídicas, comparece conveniente o raciocínio de que - além da escola, da família e de outros espaços adequados para o seu desenvolvimento - lugar de criança é nos orçamentos públicos, cumprindo-se com o princípio constitucional da prioridade absoluta em prol da  infância e juventude e propiciando a consecução da política traçada pelos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente. O acompanhamento pelos Magistrados e agentes do Ministério Público da elaboração das leis orçamentárias (desde o plano plurianual, passando pela lei de diretrizes orçamentárias até a lei orçamentária propriamente dita) e de sua execução, não se tenha dúvida, comparece indispensável para a melhoria - sob todos os aspectos - das condições de vida das nossas crianças e adolescentes (relembrando, no referente à educação, a previsão constitucional na linha de que “a União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante dos impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino” - art. 212, da CF). Interessante, inclusive, seria comparar a evolução dos recursos destinados à efetivação de políticas públicas pertinentes a crianças e adolescentes antes e depois de 1988 (de molde a se conferir o cumprimento do novo comando constitucional), além de compará-los com outras rubricas orçamentárias, legalmente consideradas sem prevalência. Para o eventual embate jurídico, cabe registrar que o princípio constitucional da prioridade absoluta (art. 227, da CF), somada ao da democracia participativa (art. 1º, par. único, 204, II e 227, § 7º, todos da CF e concretizados com a atuação dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente na formulação da política - municipal, estadual e nacional - de atendimento aos interesses da população infanto-juvenil - art. 88, II, do ECA), são limitadores e condicionantes ao poder discricionário do administrador público.

Enfim, a atuação dos Magistrados e agentes do Ministério Público em dar concretude (vida e eficácia) ao princípio constitucional da prioridade absoluta para a área da infância e juventude importará efetivo cumprimento de dever institucional prioritário e possibilidade de que as promessas de cidadania contidas no ordenamento jurídico compareçam realidade nas suas vidas cotidianas, universalizando-se os direitos que parte da população infanto-juvenil já exercita. A certeza é de que, interagindo articuladamente com os segmentos organizados da sociedade civil e cumprindo prioritariamente a tarefa de promoção dos direitos das crianças e adolescentes, o Poder Judiciário e o Ministério Público estarão colaborando decisivamente para que a Nação brasileira venha a alcançar um dos seus objetivos fundamentais: o de instalar - digo eu, a partir das crianças e adolescentes - uma sociedade livre, justa e solidária.

 

 

 

CONCLUSÕES:

1) O Poder Judiciário e o Ministério Público, porque também submetidos ao comando constitucional da prioridade absoluta (art. 227, da CF), devem formular, de maneira preferencial, política específica para atuação dos seus membros na área da infância e juventude.

2) Afora a prioridade institucional interna, os Magistrados e os agentes do Ministério Público devem intervir (administrativa ou judicialmente) para o efetivo cumprimento do princípio constitucional da prioridade absoluta, especialmente no pertinente à materialização do direito à educação e à destinação privilegiada de recursos para a área da infância e juventude, adotando as medidas necessárias à sua garantia.

3) O princípio constitucional da prioridade absoluta, somado ao da democracia participativa, são limitadores e condicionantes ao poder discricionário do administrador público.