“PROTEÇÃO” – PRETEXTO PARA
CONTROLE SOCIAL ARBITRÁRIO DE ADOLESCENTES E A SOBREVIVÊNCIA DA “DOUTRINA DA
SITUAÇÃO IRREGULAR”
Antônio
Fernando do Amaral e Silva
Desembargador do
Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.
1. Generalidades
1.1
Situação irregular – um viés que
teima em não morrer.
Em que
pese a Convenção Internacional, o Estatuto e as novas posições interpretativas
da Doutrina da Proteção Integral, a “proteção”, que não passa de preconceituosa
e odiosa opressão de crianças e adolescentes vulneráveis, persiste resistindo
fortemente às mudanças substanciais de paradigma.
Ao modelo da proteção integral, do garantismo, se opõe a ambigüidade de que nos fala García Mendéz[1]
, em excelente artigo,
sob o título “Infância, Lei e Democracia: Uma Questão de Justiça”:
“Frente aos paradigmas
instalados e confrontados da situação irregular e a proteção integral, o
paradigma da ambigüidade se apresenta como uma síntese eclética, apropriada
para esta época de ‘fim das ideologias’. O paradigma da ambigüidade se encontra
muito bem representado por aqueles que, rejeitando de imediato o paradigma da
situação irregular, não conseguem acompanhar – talvez pela diminuição
significativa das práticas discricionais e paternalistas no trato com as
crianças – as transformações reais e potenciais que se deduzem da aplicação
conseqüente do paradigma da proteção integral, que considera a criança e o
adolescente um sujeito de direitos, e, não menos, de responsabilidades. Nesse
ponto me parece importante arriscar uma explicação que permita entender melhor
o por quê da aparição (e difusão) do paradigma da ambigüidade”.
“Se considerarmos o caráter
de revolução copernicana da mudança de paradigma da situação irregular à
proteção integral, sobretudo no sentido da diminuição radical da
discricionariedade na cultura e práticas de ‘proteção’ (lembre-se que a
história é muito clara ao mostrar as piores atrocidades contra a infância
cometidas muito mais em nome do amor e da proteção, que em nome explícito da
própria repressão), é necessário admitir que o direito (a Convenção)
desempenhou um papel decisivo na objetivação das relações da infância com os
adultos e com o Estado”.
“Esta objetividade (entendida como a tendência oposta à
discricionariedade), que se expressa não só por um novo tipo de direito, mas
também por um novo tipo de institucionalização, assim como por novos mecanismos
de cumprimento e exigibilidade, transforma substancialmente o sentido do
trabalho dos especialistas ‘tradicionais’, desde os juristas até os pedagogos,
para atingir toda a variada gama destes operadores sociais. Estas
transformações se referem, especialmente, à redução da capacidade omnímoda para
diagnosticar discricionalmente a existência e características da ‘disfunção’
social ou individual; e muito especialmente, o sentido e características das
medidas, sejam estas jurídicas, terapêuticas ou sociais. As metáforas da
medicina cada vez dão menos conta da nova situação. O fato de considerar os
adolescentes em conflito com a lei penal, de uma vaga categoria sociológica que
comete feitos anti-sociais (situação irregular), a uma precisa categoria
jurídica que comete infrações penais, típicas,
antijurídicas e culpáveis (proteção integral), constitui um exemplo bem
representativo desta situação”.
As novas disposições, garantistas e responsabilizantes do Estatuto continuam a ser interpretadas com os mesmos princípios simplistas e autoritários da antiga postura, própria do ab-rogado Código de Menores.
A “proteção”, o “superior interesse”,
o “bem-estar da criança e do adolescente”, a “reeducação”, a “ressocialização”
justificam tudo.
As medidas sócio-educativas, de
índole nitidamente retributiva e penalizante, são impostas sob a falácia do
caráter “pedagógico”, “tutelar”, “protetor”, muitas vezes desnecessariamente.
Em que pesem as
garantias constitucionais e legais, arbitrariedades continuam justificadas por
eufemismos, como acontece, por exemplo, com a “internação” e principalmente com
a “liberdade assistida” apresentada como intervenções meramente educativas como
se as palavras pudessem alterar a substância das coisas.
Internação, liberdade assistida e
prestação de serviços à comunidade são exibidas como benefícios, institutos
bons para o adolescente.
Fala-se de um sistema “reeducativo”
ideal, que não existe.
Esquecidos da triste realidade das
verdadeiras “prisões de meninos pobres”, apaixonados, “novos menoristas”
exorcizam propostas garantistas, jurídicas, que, restringindo a
discricionariedade, apenas propõem limites ao arbítrio, acoimando-as de
retrocesso e compromisso com propostas de “lei e ordem”, como se o sistema, em
relação aos infratores, fosse, mesmo, educativo de qualidade.
Esquecem-se integrantes do sistema
administrativo e judicial da vergonha dos “internatos”, verdadeiras prisões,
geralmente piores do que as dos adultos.
Programas de “liberdade assistida”,
“prestação de serviços à comunidade”, geralmente, não passam de improvisações.
Não há efetivo
controle jurisdicional de resultados, muito menos de integração ou de
assistência educativa à família.
“Relatórios”, “diagnósticos”
justificadores de puro assistencialismo e inadequadas intervenções continuam
existindo.
A chamada “proposta pedagógica”
persiste de pano de fundo da arbitrariedade.
Justificando sistemas pesados, caros,
produtores e reprodutores de violência e criminalidade, salvo raríssimas
exceções, a chamada “proposta pedagógica” continua reproduzindo o sistema
penitenciário.
Reeducação e ressocialização
não passam de mitos convenientes.
“Proposta pedagógica”: falácia que
ninguém definiu, regulamentou.
Salvo exceções, sentenças, acórdãos,
pareceres, defesas, recursos, relatórios, estudos de caso, diagnósticos
refletem os vieses do sistema “protetor”, onde os adolescentes, ditos
infratores, são “protegidos”, “reeducados”, “ressocializados”.
Se o sistema é protetor; se todos os
atores processuais e administrativos buscam “o melhor interesse” do adolescente;
se as medidas sócio-educativas são um bem para o adolescente; se, ao impor uma
medida sócio-educativa está-se realizando um dever relativamente ao direito à
educação; não há necessidade de grandes e profundas justificativas. Basta
aludir ao “superior interesse” do menino que precisa ser educado. Educação por
meio dos benefícios da liberdade assistida, da prestação de serviços à
comunidade, da internação, é óbvio.
Sob tal falácia acabam os
“protegidos” sujeitos a verdadeiras penas indeterminadas, impostas
subjetivamente sem garantias objetivas, como, por exemplo, os critérios de
legalidade e proporcionalidade.
A individualização das medidas, via
de regra, não é justificada por critérios objetivos. Diante de tanta
“proteção”, eles são desnecessários. “O sistema não é penal. O adolescente não
comete infração penal. Pratica ato infracional”. Predominando o subjetivismo,
em nome da “reeducação”, adolescentes ficam sujeitos a respostas mais severas
do que em iguais circunstâncias seriam impostas aos adultos.
A execução continua sem limites
claros e precisos. Não há um devido processo legal explicitamente colocado.
Subjetivismo e improvisações de toda
ordem persistem tanto nas remissões como nas sentenças.
Insisto: via de
regra, adolescentes são punidos com maior rigor que adultos, acobertada
a arbitrariedade pelas falácias da “proteção”, da “proposta pedagógica” e do
“sistema tutelar”.
Erros judiciários e
administrativos seja no processo de conhecimento, seja na fase de execução, repetem-se, tudo
praticado em nome do “bem-estar do menor”, do seu “melhor interesse”, da
“reeducação” como se o sistema correspondesse, caracterizando-se como
educacional e de excelente qualidade.
É preciso dar um basta nisso.
É necessário assumir a postura
realista e científica preconizada na Doutrina da Proteção Integral.
Apesar do Estatuto, da Convenção e da
nova doutrina, os “infratores” continuam sem cometer crimes.
Não cometendo crimes, mas “atos
infracionais”, a eles não se aplicam “penas”.
“As medidas, por serem pedagógicas,
não são retributivas e, não tendo caráter penal, são aplicadas em benefício dos
adolescentes”. Assim, não há necessidade de tantos cuidados na certeza da
autoria, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.
Não praticando crimes, “não têm
direito” aos benefícios dos adultos – prescrição,
graça e indulto.
Perguntem aos “protegidos”,
“reeducandos”, “educandos” e principalmente aos internos, se estão satisfeitos
com a “proteção”, com o sistema.
Perguntem se o sistema é justo.
Tem-se dito que o sistema difere do
dos adultos porque o “Estado tem o compromisso de proteger, educando ou
reeducando”.
Os defensores da “doutrina da
ambigüidade”, justificando suas posições “paternalistas”, falam de um sistema
ideal, perfeito. Daquilo que não existe. E jamais existirá!
Mas, se existisse, ainda assim,
haveria o estigma da sentença e do sistema que não seria o educacional comum,
mas reservado a uma classe especial de pessoas: os infratores.
Se a
simples intervenção do sistema “educacional”, das chamadas Febens, não for
estigmatizante, porque destinado aos “menores” ou “adolescentes infratores”,
bastaria a sentença, a passagem pelo sistema de
justiça para justificar o estigma e redobradas cautelas. Cuidados para não
envolver desnecessariamente quem quer que seja.
Acreditarei na excelência do sistema
educacional dos “infratores”, quando desembargadores, juízes, promotores,
assistentes sociais, psicólogos e pedagogos encaminharem os filhos para serem
protegidos, educados nas internações, nas liberdades assistidas ou nas
prestações de serviço à comunidade.
Enquanto o sistema for reservado aos
“infratores”, tenham eles o nome que tiverem, não será “protetor” dos
adolescentes, será, como tem sido, e necessariamente tem de ser, um sistema
retributivo e de proteção da sociedade. Jamais dos adolescentes!
Adolescentes são protegidos por meio
de políticas básicas, principalmente da política de educação nos
estabelecimentos da rede comum de ensino.
O direito à educação e o
correspondente dever são exercidos dentro da
normalidade.
Se o Estado tem de impor, agindo coercitivamente a medida que tomar, atingindo direitos fundamentais da
pessoa humana, tem de ater-se ao princípio da legalidade. Vale dizer, da excepcionalidade
devidamente justificada.
Aos que necessitarem apenas proteção,
educação e não respostas preventivas e
repressivas, que sejam encaminhados ao sistema educacional comum.
Seria iníquo submeter, sem
necessidade, qualquer pessoa a um sistema educacional especial, reservado a
infratores.
No momento em que se cria um sistema
“educacional” paralelo de intervenção estatal coativa, com restrições,
inclusive privação de liberdade, o sistema deixa de ser simplesmente educativo,
protetor, para ser, também, limitador dos direitos fundamentais, numa palavra: repressivo.
Lamentavelmente
a chamada “doutrina da situação irregular”, preocupada com “denominações” e
“estigmas”, persiste viva naqueles em que teimam em ver nas medidas
sócio-educativas tão-somente o caráter pedagógico, esquecidos
que, substancialmente, sendo respostas a condutas reprovadas, tem caráter
retributivo, interferindo na liberdade, na autodeterminação e, até, na
intimidade das pessoas.
Desde quando privação coativa da
liberdade, semiliberdade, prestação de serviços à comunidade, desde quando
restrições aos direitos fundamentais podem ser consideradas um bem para a
pessoa humana restringida, submetida ao Estado? Constitui, isto sim, um mal.
Um mal necessário, mas um mal.
São um bem para a sociedade, para a prevenção e
repressão da delinqüência juvenil.
Esta a verdade que precisa ser
compreendida e aceita.
E a eufemística
liberdade assistida, tão “assistida”, que o descumprimento de suas regras pode
implicar também na eufemística “internação”, ou seja, privação de liberdade por
até três meses.
É preciso ter coragem e assumir o
verdadeiro significado das palavras. Impõe-se, em nome dos direitos humanos,
ver o que existe de verdadeiro no sistema dito “Tutelar”.
O atual jogo de palavras, procurando
suavizar institutos de Direito Penal com a simples alteração de nomes,
possibilita injustiças em relação aos adolescentes. A postura provoca
preconceitos e severidade.
Argumentam os defensores do paradigma
identificado por García Mendéz:
“Sendo um bem, as
medidas sócio-educativas, não há porque livrar o adolescente do
sistema”.
Insisto: Com base na falácia da
“reeducação”, “educação” e “integração sócio-familiar”, adolescentes continuam sendo
jogados no sistema, como se as medidas sócio-educativas fossem um bem.
As medidas protetivas
podem ser consideradas um bem. Basta ver a separação que o Estatuto faz entre
umas e outras.
Vítimas e vitimizadores reclamam apenas por justiça.
O sistema não deve ser encarado nem
como bem como um mal, mas como uma resposta justa e adequada ao fenômeno da
delinqüência juvenil.
Tenha-se presente: enquanto há
adultos que se livram por meio da prescrição, do indulto, da anistia, da graça,
adolescentes são compelidos, forçados a medidas sócio-educativas.
Insisto: justificam-se medidas
restritivas de direito e privativas de liberdade sob o falacioso argumento de
que constituem um benefício para os adolescentes.
Chega-se a dizer que a medida não é
imposta, é “aplicada”. E o é no subjetivismo do “melhor interesse” e da
“proteção”, dogmas, há muito, superados pela “Doutrina da Proteção Integral”.
Viés dos piores, a interpretação do
Estatuto, com base no subjetivismo, nos mitos e nas falácias do antigo Direito,
só será superada quando os operadores judiciais e administrativos se
convencerem da necessidade da interpretação sociológica, teleológica do artigo
6º do Estatuto, que se baseia no garantismo.
O Direito-Norma, o Estatuto, tem de
ser interpretado e aplicado sociológica e sistematicamente, reconhecendo e
separando o intérprete, as hipóteses em que adolescentes são vítimas daquela em
que aparecem como vitimizadores.
Medidas protetivas
para crianças e adolescentes vítimas. Sócio-educativas para vitimizadores
sempre que necessárias como respostas justas e adequadas.
Repito: não é mais possível conviver
com mitos, eufemismos e falácias.
É preciso identificar corretamente,
separando institutos de proteção da criança e do adolescente dos institutos de
proteção da sociedade.
É preciso assumir a postura
técnico-científica, abandonando o paternalismo inconseqüente e a repressão
disfarçada.
Só assim os operadores
administrativos e judiciais estarão desempenhando o verdadeiro papel de
realizar justiça, que é o que se espera de um sistema judiciário e
administrativo.
2.
Medidas sócio-educativas ou o controle social arbitrário de adolescentes: um
viés que precisa morrer
Válida a advertência de Mário Volpi[2]:
“Portanto, o momento
presente não se caracteriza pela necessidade de ecletismos ou sincretismos
doutrinários, mas sim de superação de antigas doutrinas para a consolidação de
uma nova, despida de todos os vícios do passado. Trata-se realmente de um
paradigma (da situação irregular) a ser superado e da transição a um novo
paradigma: da proteção integral. Não há, então, espaço para a ambigüidade. Há a
necessidade de um posicionamento firme e de um compromisso real para promover
crianças e adolescentes à inclusão social e à sua participação crítica e
criativa no Estado Democrático de Direito”.
Antes de aprofundar o
tema a respeito da realidade da aplicação e execução das medidas
sócio-educativas, impõe-se aclarar seu verdadeiro caráter, se pedagógicas ou
retributivas.
Estamos no campo do
Direito. A análise não é feita a partir da ótica do pedagogo, do psicólogo ou
do assistente social. A visão é jurídica.
Não tenho a menor dúvida:
juridicamente consideradas, as medidas sócio-educativas são retributivas,
pedagógicas e, inclusive, repressivas.
São retributivas porque constituem
resposta à prática de um ato infracional, portanto legalmente reprovável.
Só o autor do ato infracional
(eufemismo que corresponde a crime ou contravenção penal – ECA, art. 103), pode
ser submetido (apenado) a uma medida
sócio-educativa.
Não se olvide: as medidas são
impostas coercitivamente.
Não se diga que a possibilidade da
remissão, da não imposição de qualquer medida ou a faculdade que tem o Juiz de
aplicar medidas de proteção retira o caráter retributivo das medidas
sócio-educativas, porquanto essas providências despenalizantes nada têm com a
natureza da medida. Existem, inclusive, no Direito Penal Comum: a suspensão
condicional do processo, da pena, o perdão judicial etc...
O caráter retributivo é visível na
mais branda das medidas – a advertência –, onde o Juiz admoesta, vale dizer,
avisa, adverte, repreende.
São pedagógicas, porque têm caráter
eminentemente educativo, mas são repressivas (do latim, repressio, de reprimere
– reprimir, impedir, fazer cessar).
O caráter repressivo das medidas
sócio-educativas não reflete o sentido vulgar da palavra, mas o significado
técnico-jurídico de “oposição”, “resistência”, “impedimento”.
Como explica De Plácido e Silva[3]
no Vocabulário Jurídico:
“As medidas impostas pela repressão
ou para reprimir alguma coisa, podem chegar até o castigo. Mas, propriamente,
repressão não é castigo: é meio de fazer cessar, de fazer parar, de impedir, ou
de moderar”.
As medidas sócio-educativas visam prevenir e reprimir a delinqüência juvenil vale dizer, fazê-la parar
relativamente ao agente e impedir ou moderar o fenômeno em relação aos demais
adolescentes.
Admitir o caráter repressivo, penal especial (diferente do penal
comum dos adultos) insisto: é útil aos direitos humanos de vítimas e
vitimizadores.
É necessário superar o viés da
“proteção”: ciente o aplicador da medida que, além de imposta, é repressiva,
redobrar-se-á em cautelas para não impô-la sem os critérios da fundamentação da
despenalização, da excepcionalidade, da legalidade, da brevidade, da
proporcionalidade e da resposta justa e adequada.
Despenalização concretizada pela
remissão pura e simples.
Proporcionalidade para impedir a
imposição de medida severa por fato irrelevante.
Como as penas criminais, as medidas
sócio-educativas são restritivas de direito (advertência, obrigação de reparar
o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida) e privativas
de liberdade (semiliberdade e internação).
Enquanto as penas criminais são
determinadas e subordinadas a critérios objetivos e limitativos (os adultos
gozam da suspensão condicional do processo e da substituição de penas
privativas de liberdade por restritivas de direito), os adolescentes continuam
submetidos a medidas indeterminadas e sem critérios prévios, claros e
objetivos, capazes de conter o possível arbítrio do Estado.
Carecem adolescentes de mais
garantias, explícitas e objetivas, capazes de proporcionarem a justa
individualização da medida.
O subjetivismo, segundo o qual (§ 2º do
art. 122) “em nenhuma hipótese será aplicada internação, havendo outra medida
adequada”, constitui porta aberta ao arbítrio.
A prevalência dos princípios
enviesados da antiga “doutrina”, segundo a qual as medidas do chamado “Direito
do Menor” sempre visam o melhor interesse dos adolescentes, tem propiciado a
imposição de respostas mais severas do que em iguais circunstâncias seriam
impostas aos adultos pelo Direito Penal Comum.
Uma correta visão das medidas
sócio-educativas, o aplicador ciente do seu caráter predominantemente
pedagógico, mas repressivo, nitidamente penal, favorecerá os adolescentes,
porque a imposição ou o ajuste (remissão) passará a ser restritivo, submetido
ao princípio da estrita legalidade.
Favorecerá a sociedade e os
adolescentes, reforçando o compromisso com a cidadania, com o reconhecimento da
dignidade de ser sujeito de direitos e obrigações.
3. Prescrição – Direito universalmente
reconhecido e sonegado aos adolescentes
Não se deve confundir a
natureza da medida com seus objetivos. Proteção, educação, reeducação,
reintegração sócio-familiar, fortalecimento de vínculos familiares são os
objetivos das medidas sócio-educativas, mas sua natureza, sob o ângulo
jurídico, é penal.
Para o jurista importa mais a
natureza do que o objetivo, porque este pode ser alcançado de outro meio, sem o
estigma do ato infracional, por intermédio das medidas de proteção. Comparem-se
os artigos 101, 112 e 114 do Estatuto.
O pedagogo prioriza os objetivos; o
jurista, a natureza e o reflexo da intervenção estatal coercitiva sobre os
direitos da pessoa humana.
Para o pedagogo, por exemplo, a
liberdade assistida, vista da ótica dos objetivos, pode ser encarada como um
bem, mas para o jurista, atento às restrições aos direitos e
à imposição, é sempre encarada como um mal. Um mal necessário, mas um
mal. Assim, sua imposição só pode ocorrer com observância dos princípios da
estrita legalidade, da excepcionalidade e da brevidade.
A despenalização, o
Direito Penal Mínimo, próprios das garantias e dos benefícios do direito
ciência e do direito norma não podem ser recusados aos adolescentes
inimputáveis. Inimputáveis perante o Direito Penal Comum, mas responsáveis
diante das normas da legislação especial de que trata o artigo 228 da Carta
Política.
Outra interpretação, baseada nos
“bons objetivos” em detrimento da natureza das medidas sócio-educativas,
constitui a falácia que choca flagrantemente com a
hermenêutica jurídica e os mais elementares princípios da justiça, da
eqüidade, dos fins do direito.
A exegese, para ser adequada aos
princípios da Convenção Internacional, não pode prescindir das diretrizes do
artigo 6º do Estatuto. Interpretação, finalística, teleológica, sociológica,
que não pode ser isolada, tem de ser sistemática.
Tenha-se presente: o ato infracional
corresponde a crime ou contravenção penal (art. 103).
A prescrição (garantia só excluída em
casos excepcionalíssimos – CF, art. 5º, XLIV) não pode ser recusada aos
adolescentes.
O inescondível caráter retributivo
das medidas sócio-educativas, a maioria claramente repressiva, obriga o
intérprete a se socorrer do Direito Penal no que ele tem de garantias.
Dentro desses pressupostos, ao
invocar-se a parte especial (repressiva) da Lei Penal Comum para punir o autor
do ato infracional, há que se ter em conta, também, a parte geral,
principalmente os seus benefícios, dentre eles a prescrição.
Justiça, eqüidade, antíteses da
iniqüidade, da negação do Direito (princípios e diretrizes da correta
interpretação) têm de ser levados em conta, principalmente a analogia, aplicável
no Direito Penal, sempre que para beneficiar ou excluir a sanção.
Liberdade assistida (vigiada),
prestação de serviços à comunidade, semiliberdade e internação, eufemismo
definido como medida privativa de liberdade, não podem ser impostos sem limites.
O Estado não pode continuar sem
atribuir aos adolescentes um direito universalmente reconhecido a todos, a
prescrição, sob a falácia da proteção, do seu bem-estar, da sua educação, como
se esses objetivos ilidissem a natureza repressiva, própria
de toda medida que limite ou suprima direitos, principalmente a
liberdade.
4. Conclusão
A nova
doutrina da Proteção Integral, preconizando que crianças e adolescentes são
sujeitos de direito, afastou completamente os enviesados princípios da antiga
“doutrina da situação irregular”, entre eles o subjetivismo e o arbítrio,
travestidos da falácia da “proteção”, que não passava de odiosa opressão.
Há que assumir o modelo garantista e
responsabilizante do Estatuto e da Convenção.
Palavras e institutos têm de ser interpretados
e aplicados com base na ciência e na técnica, sem mistificações, dentro dos
princípios da Hermenêutica Jurídica e do Direito.
A delinqüência juvenil é um fenômeno
social que exige respostas justas, e estas não podem persistir baseadas em mitos,
eufemismos e falácias.
Para o jurista, o que importa,
fundamentalmente, não é o objetivo (reeducação), mas a natureza repressiva das
medidas sócio-educativas. Sendo claramente restritivas de direitos
fundamentais, embora marcadas pela excepcionalidade e brevidade (CF, art. 227,
§ 2º, V), as medidas sócio-educativas não podem ser impostas sem se submeterem
a uma das garantias básicas da pessoa humana, a prescrição.
Notas:
[1] MENDÉZ,
Emilio García. Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina
– ESMESC. Temas de Direito da Criança e do Adolescente. v. 5, ano 4, 1998, p. 27/28.
[2] VOLPI,
Mário. Apud: SARAIVA,
João Batista da Costa. Adolescente e ato infracional: garantias processuais e medidas
socioeducativas. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 08.
[3] SILVA, De
Plácido e. Vocabulário jurídico. v. 4. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
MENDÉZ, Emilio García. Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina
– ESMESC. Temas de Direito da Criança e do Adolescente. v. 5, ano 4, 1998, p. 27/28.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. v.4.
11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 105.
VOLPI, Mário. Apud: SARAIVA, João Batista
da Costa. Adolescente e ato infracional: garantias processuais e medidas socioeducativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p.
08.