FAMÍLIA, RELATIVISMO
CULTURAL E INJUSTIÇA SOCIAL NO CAMPO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
Fernando
Lefêvre
Professor
Doutor da Faculdade de Saúde Pública USP.
Resumo: Há um grave equívoco subjacente à
propaganda a crítica (e à prática que dela decorre) que se faz hoje do
relativismo cultural que consiste em confundir a perspectiva antropológica que
- muito justamente – enterrou definitivamente todas as formas de etnocentrismo
e, junto com elas, as idéias nazistas e eugênicas da raça ou cultura superior,
com a perspectiva sociológica que - de modo igualmente justo - busca descrever
a persistência e, por que não, o incremento da injustiça social.
Estas duas perspectivas
enfocam aspectos visceralmente distintos da realidade que, se confundidos, dão
margem a graves problemas. Tais problemas que dificultam e, às vezes, impedem à
compreensão adequada do mundo contemporâneo, fazendo com que as pessoas
encontrem dificuldades para distinguir, simplificando, padrões culturais de
pobreza. Estes equívocos e as confusões deles decorrentes permeiam, também, o
campo da família e do desenvolvimento humano.
Palavras-chaves: Família, Relativismo cultural,
Desenvolvimento Humano, Sociologia, Antropologia.
"Quase 15 milhões de crianças e adolescentes um quarto da população
infarto-juvenil do País - pertencem às famílias indigentes, representando
metade do total de 32 milhões de brasileiros que vivem na miséria. Os números são
do estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a pedido do Conselho Nacional dos Direitos da Criança
e do Adolescente (Conanda)" (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 1994).
"...se a criança em seu meio sócio-cultural é capaz de utilizar a linguagem
e os instrumentos conforme as características do seu grupo e não consegue
aprender os conhecimentos escolares é porque o trabalho educacional não está
organizado para atender a diversidade social e cultural das crianças e, assim
para construir novos conhecimentos e habilidades" (WERNER; ESPÍRITO
SANTO, 1993).
As idéias
expressas acima são
interessantes, porque permitem introduzir e ilustrar, de modo bastante claro e
conciso, um certo modo de ver as coisas do Desenvolvimento Humano, sobre o que
se faz necessário um posicionamento definido.
Quanto à primeira, qualquer
comentário é supérfluo; os dados falam por si mesmo. Já a segunda, é bastante
provável que, numa primeira leitura superficial, o leitor - notadamente aquele
situado mais "à esquerda" - sinta um movimento de simpatia pelas
idéias expostas. Com efeito, no texto, ou mais precisamente, na sua superfície,
estão presentes semantismos com os quais todos
concordamos: crianças competentes, crítica à pedagogia
escolar tradicional, respeito pela criança, etc..
Este movimento de simpatia - que, por certo,
anima sinceramente os seus autores e àqueles que comungam das mesmas idéias -
não deve inibir nosso senso crítico, impedindo que assinalemos alguns sérios
equívocos, que levam - mesmo que isso não seja o desejo de ninguém - a certos
impasses teórico-práticos no campo do Desenvolvimento Humano.
Comecemos pelo começo:
"...se a criança em seu meio sócio-cultural é capaz de utilizar a linguagem
e os instrumentos conforme as características do seu grupo..."
É claro que é possível falar
em "meio sócio-cultural" da criança, mas, esta formulação híbrida, a
despeito de sua eficiência retórica, é de pouca utilidade prática na medida em
que leva a confundir duas realidades, que, como veremos a seguir, merecem ser consideradas separadamente: a sociedade e a cultura,
respectivamente como um "sistema de posições " e um "sistema de
opções".
Da mesma forma, "ser
capaz de utilizar a linguagem e os instrumentos (é necessário explicitar o que se
entende por 'instrumentos` neste contexto) conforme as características do seu
grupo" é uma formulação possível, mas perigosa, porque, na sua
generalidade obscurece a distinção fundamental para o equipo do Desenvolvimento
Humano (mas nem sempre fácil de ser estabelecida), entre subcódigos
e variantes lingüísticas próprias de um dado grupo, de um lado, e, parir
simplificar, "linguagens mal faladas" de outro.
"...e
não consegue aprender os conhecimentos escolares é porque o trabalho
educacional não está organizado para atenuar a diversidade social e cultural
das crianças e, assim, para construir novos conhecimentos e habilidades".
Se não resta dúvida que,
muitas vezes, as crianças não conseguem apreender os conhecimentos escolares
por razões pedagógicas ligadas a vários tipos de deficiências na organização
curricular e extracurricular de nossas escolas, ou tantas vezes as crianças não
conseguem ser bem sucedidas nesta tarefa por problemas
que nada têm de pedagógicos, e que estão ligados a todo tipo de conseqüências,
no plano cognitivo, dos gravíssimos desníveis sociais presentes na nossa
formação social.
De um modo geral, parece
absolutamente fundamental para o claro entendimento da problemática em tela,
marcar, de modo o mais preciso possível, a distinção entre os processos de
diferenciação cultural e de diferenciação social, ambos em curso em nossas
famílias e em nossa formação sócio-cultural.
Esta é a temática que se
discute a seguir.
Parece indubitável que o
desenvolvimento pode, também como outros campos da práxis humana, ser encarado
de uma perspectiva etnocêntrica. Simplificadamente (e
deixando de lado o discurso eugênico explícito), a partir de tal perspectiva,
dar-se-á que "desenvolvido" é aquele que atingiu determinados
patamares biológicos e mentais que fazem dele um ser humano. Tais patamares
são, é claro, enunciados como dados universais e naturais, "empurrando-se
para baixo do tapete" a mais que incômoda idéia de que tais "seres
humanos desenvolvidos" parecem-se, coincidentemente, em tudo, com meninos
WASP (sigla que, em inglês, se refere a indivíduos com atributos de brancos,
anglo-saxões e protestantes), ou meninas alemãs, ou adolescentes suíços, ou com
correspondentes situados abaixo da linha do Equador.
É claro que é possível, ainda
hoje, enunciar, a propósito do desenvolvimento humano, discursos forjados
nestes moldes, e que tais discursos são efetivamente pronunciados nos valos
locais em que a discussão sobre o tema possa ter lugar.
É possível, mas não é de bom
tom, notadamente em ambientes instruídos. Com efeito, em função de motivos que
não cabe aqui examinar em detalhe, tais discursos, definitivamente, saíram de
moda: já há algum tempo o adolescente suíço deixou a cena para que o indiozinho
latino-americano ou seus colegas "straat-kinder"
pudessem ocupar o seu lugar, brilhando com todo fulgor na arena internacional,
carreando status e recursos para os seus inúmeros "suporters"
nos primeiro, segundo, e quarto mundos.
É claro que não se trata de recolocar
o adolescente suíço de novo no trono; trata-se, muito mais radicalmente, de
expulsar o próprio trono da cena da história em geral, e da história do
desenvolvimento humano em particular.
A grande conquista da
modernidade, por certo, está ligada à idéia da diversidade cultural tomando
definitivamente o lugar da unicidade e dos modelos; o que o Humano tem de mais
fico é a sua diferença e não a sua semelhança. Por isso, parece tão absurdo
considerar um suiçozinho como rei quanto colocar a
coroa num curumim brasileiro: nenhum deles merece ser coroado justamente porque
a humanidade advém da soma de diferentes e não da subtração de excluídos.
Mas a perspectiva sociológica
do problema mostra, de modo insofismável, que na soma que
resulta na Humanidade, cada um dos membros somados deve ser igualmente
possuidor de Humanidade: a soma de todo e qualquer Homem,
independentemente da sua condição social, não resulta em Humanidade, porque a
injustiça social subtraiu de muitos deles - da maioria - talvez - qualquer
condição humana: um indiozinho mexicano, cuja família foi destituída de suas
terras e que virou um pequeno elo do tráfico de drogas no Cidade do México, ou
uma pequena nordestina de 8 anos que abandonada pela família, virou prostituta
em algum garimpo, não contribuem mais para uma soma que resulte em
"Humanidade" ; não, evidentemente, porque sejam seres
"primitivos" mas porque foram obrigados a se transformarem em animais para sobreviverem à
injustiça social. Considerar, por exemplo, o indiozinho-traficante como membro
de uma suposta subcultura "indígeno-traficante"
implica em criar um "frankenstein antropossociológico" sob todos os títulos
inadmissíveis.
É claro, pois, que levar o
relativismo cultural às últimas conseqüências implica em transformar a
exploração desumanizadora em dado etnográfico; o que não apenas revela a
incompreensão daqueles que realizam esta operação conceitual como fornece um
simpático álibi para os exploradores de todo tipo, já que o processo de
exploração, denunciado pela que a neodireita chama de
"sociologia atrasada de esquerda", é substituído, magicamente, pela
"interação entre os diferentes", minuciosamente escrutinada por uma
"etno-metodologia triunfante" (MINAYO,
1992).
O Desenvolvimento numa formação sócio-cultural concreta
Como entender o
desenvolvimento de crianças e adolescentes reais, que tem lugar num dado
contexto familiar, que se insere, por sua vez, numa dada formação
sócio-cultural concreta?
Antes de
mais nada, é preciso
entender que as ditas formações e as famílias que nelas vicejam são permeadas
por dois processos simultâneos de diferenciação: um processo de diferenciação
social e um de diferenciação cultural.
Em muitas sociedades, e na
nossa em particular, a diferenciação cultural, fator de progresso em direção à
humanização do Homem, coexiste com a diferenciação social, fator de retrocesso,
o que dá lugar a um conflito desagregador no Sistema como um todo.
Em uma formação
sócio-cultural como a brasileira contemporânea, este conflito reveste-se de
tons dramáticos na medida em que somos aguda e simultaneamente drenados pelos
dois processos de diferenciação. Temos, com efeito, uma importante parcela da
população vivenciando processos de diferenciação cultural: as mulheres, as
minorias sexuais, as diversas subculturas religiosas,
os grupos alternativos no campo das práticas de saúde, etc. Mas temos, ao mesmo
tempo, uma outra e mais expressiva parcela da população não ou mal
escolarizada, vivendo em condições subumanas de habitação, submetida a intenso
processo de exploração nas fábricas ou serviços, etc.
Ora, considerar, como se
costuma fazer com ligeireza, que o Desenvolvimento Humano implica,
simplesmente, em aprendizagem, aquisição e prática de comportamentos adaptivos, leva a considerar como equivalentes os processos
adaptivos próprios da diferenciação social, que
constituem - no campo dos explorados - aquilo que se convencionou chamar de
"estratégias de sobrevivência" (que são sempre condutas passivas
associadas que estrio a uma relação social de dependência recíproca, que se
verifica quando um setor da sociedade opta por um dado modo de viver que
implica, necessariamente, que outro setor perde a capacidade e a possibilidade
de efetuar a sua opção) e os processos genuinamente adaptativos de integração
cultural.
A criança que aprende -
algumas vezes dentro da própria família - a prostituir-se para sobreviver - o
que é um indicador claro de falência familiar - está adaptando- se mas não se
desenvolvendo; está diferenciando-se social mais não culturalmente, salvo se
excluirmos qualquer conteúdo de Humanização da noção de diferenciação cultural,
confundindo-a, assim, com a de diferenciação social.
Formações socialmente homogêneas
e culturalmente diferenciadas e Desenvolvimento Humano
Em países como o nosso e em
campos, no sentido que BOURDIEU (1990) confere ao termo como o do
Desenvolvimento Humano, temos, necessariamente, que direcionar nossa ação tendo
como princípios orientadores a homogeinização social
e a diferenciação cultural. Caso não adoremos, simultaneamente, estes dois
princípios, qualquer trabalho ou conceituação, nesse campo, fica afetada.
As abordagens, digamos, socio-centradas podem tender a considerar vinculada ou
solidariamente à questão do Desenvolvimento Humano e às questões da injustiça
social, da exploração, da relação privilegiados/desprivilegiados. Caso isso
aconteça, é possível que seus autores concluam, equivocadamente, que o
Desenvolvimento Humano deva ser visto, sobretudo, como um atributo que falta
aos desprivilegiados e às suas famílias,
porque sobra para os privilegiados e para as suas famílias. Isso leva a que se
considere a existência de apenas um padrão de desenvolvimento, que é,
justamente, o dos privilegiados c de suas famílias, ou seja, o padrão
hegemônico. A conseqüência natural deste enfoque, em termos de curso de ação,
seria a de se concentrar as lutas e as reivindicações, basicamente, na
democratização da cultura dominante, o que é claro, conduz a um extremo
empobrecimento do leque de opções culturais. Além disso, tende-se
a considerar que tudo o que foge dos padrões da cultura hegemônica só pode ser
visto como sub-cultura ou, no melhor dos casos, como folclore.
Já as abordagens "culturo-centradas" pecam pelo oposto já que,
desprezando as desigualdades sociais, tendem a considerar, também
equivocadamente, àquilo que chamamos de estratégias passivas de sobrevivência e
às produções incompletas dentro de um dado padrão (por exemplo, os textos que
são, simplesmente, português, no registro da norma culta, mal escrita) como batizamentos ou performances válidas em termos de
Desenvolvimento Humano.
Por isso, quando estamos em
presença de uma formação socialmente heterogênea, fica mais difícil o
reconhecimento dos genuínos processos de diferenciação cultural.
Tomemos como um exemplo banal
no campo da Saúde: uma mulher brasileira, que pertencente às classes sociais
subalternas, tem seu filho em casa, sem nenhum tipo de assistência pré-natal,
servindo-se, durante sua gestação, parto e puerpério,
de práticas precárias de cuidados.
É claro que, neste caso, não
se trata de qualquer tipo de "modo natural de ter crianças" mas de uma
estratégia passiva de sobrevivência desencadeada como resposta à ausência de
acesso a qualquer rede de assistência.
Parece claro, então, que só podemos falar em padrões diferenciados de
Desenvolvimento Humano quando tivermos a possibilidade de optar. No entanto,
para realizar esta opção não será necessário violentar nem explorar o Outro.
Não há como fugir, portanto,
principalmente em países como o nosso, do fato de que temos como horizonte, no
campo do Desenvolvimento Humano, a luta para que todas as crianças possam ter a
possibilidade de se desenvolver num contexto familiar de uma formação
sócio-cultural que ofereça um amplo leque de opções culturais.
É preciso constatar, por
outro lado, que, em nosso pais, estamos ainda longe desta possibilidade, para grande
parte de nossas famílias, para as quais ainda é necessário do que se façam
cumprir os preceitos de documentos legais como o Estatuto da Criança e do
Adolescente, que postula para as famílias e para as suas crianças e os adolescentes, direitos elementares de
cidadania, que lhes assegurem um mínimo de condição humana.
Bibliografia
BOURDIEU,
P. Coisas ditas.
São Paulo, Brasiliense, 1990.
MINISTÉRIO
DA SAÚDE/FIOCRUZ,
Súmula, 47, 1994.
MINAYO,
M.C.S. O desafio do conhecimento.
Pesquisa qualitativa em saúde.S.P./R.J. Hucitec/Abrasco, 1992.
WERNER,
J.; ESPIRITO SANTO, K.A. Desenvolvimento e
aprendizagem da criança. Rev. Bras .Cresc. Des.
Hum. III (1): 99-110, 1993.