O JUDICIÁRIO E OS NOVOS PARADIGMAS CONCEITUAIS E
NORMATIVOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE: CONTEÚDO DA NORMA INTERNA[1]
Antônio Fernando do
Amaral e Silva
Desembargador TJSC.
Sumário
1. Introdução
2.1. A “Crise da Justiça
de Menores e do Direito do Menor”
2.2. A nova
doutrina
2.3. O novo
Direito
3. A Carta
Política e a Convenção
4. O
Estatuto e a Convenção - conteúdo da norma interna
5. Conclusões
1. Introdução
O presente trabalho constitui despretensiosa abordagem a respeito da identidade entre o conteúdo da norma interna, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Convenção Internacional.
A “Crise da Justiça de
Menores e do Direito do Menor” é explicitados como fonte material da evolução da
Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral, gestada nos movimentos populares pró-criança, da
Constituinte.
A seguir sintetizam-se os
princípios da nova Doutrina e do novo Direito, o Direito da Criança e do
Adolescente.
Depois de fazer um
paralelo entre o artigo 227 da Carta Política e a Convenção, passa-se a
analisar o Estatuto, destacando-se os principais pontos de convergência com o
Tratado.
Seguem as conclusões.
2.1. A “Crise da
Justiça de Menores e do Direito do Menor”
Especialistas vêm
denunciando a crise do Direito do Menor e da Justiça Tutelar (1). Argumentam
que a máxima do “melhor interesse da criança” (“a regra de ouro do Direito do
Menor”) nem sempre corresponde e, podendo ser interpretada de diferentes
maneiras, há necessidade de garantir os direitos fundamentais, principalmente
em relação aos jovens acusados, submetidos, freqüentemente, a sanções mais
severas do que, em iguais circunstâncias, seriam impostas aos adultos.
Grünspun, em 1985 (1) advertia: “A posição paternalista
não está resolvendo a situação porque ela é autoritária e antijurídica”.
Criticando “a mudança de nomes para tentar mudar o significado repressivo sem
conteúdo substantivo”, observava: “Estes discursos de autores vêem os menores
já apenados com as modernas visões de assistência e reeducação, substituindo
reformatórios e institutos correcionais”. Autores brasileiros como Cavallieri (19) ou Bulhões de Carvalho (16), que idealizam
novos códigos para resolver o grave problema da criminalidade infantil e das
crianças abandonadas, não encontram soluções, além de suas críticas
construtivas, porque não visualizam um Direito de Menores centralizado nos
diretos subjetivos e objetivos dos menores.
Jason Albergaria (2), depois de se referir à dimensão
mundial da crise, afirma: “Realmente, a legislação comparada, já em muitos
países, realiza essa vocação universal de atualização do Direito Tutelar, para
adequá-lo aos novos princípios constitucionais e ao avanço das ciências
humanas”.
Os mitos (“juiz
bondoso”), os eufemismos (“medidas em qualquer hipótese de proteção”), a falta
de critérios objetivos capazes de garantir o indivíduo contra o possível
arbítrio do Estado (casos “Gault” e “Miranda”),
puseram a nú, não só nos Estados Unidos, mas a nível
internacional, a crise da chamada “Justiça Tutelar”.
No Brasil a conjuntura
gerou os movimentos “Criança e Constituinte” e “Criança Prioridade Nacional”,
que lograram inserir na Carta Política normas afinadas com a Doutrina das
Nações Unidas para Proteção Integral, resultando na ab-rogação do Código de
Menores e da Doutrina da Situação Irregular.
Enquanto a Doutrina da
Situação Irregular preconizava a necessidade de restringir o alcance das normas
de Direito do Menor, que não deveriam mencionar direitos, a Doutrina da
Proteção Integral apregoava a necessidade de disposições capazes de garantir
todos os direitos fundamentais, vida, saúde, educação, lazer,
profissionalização, cultura, liberdade etc.
A proposta de Rafael Sajon mereceu crítica de Cavallieri,
que não visualizava a possibilidade de conciliar a proteção integral com a
“tutela oferecida pelo direito no sistema jurídico do Estado” (3). O mestre, à
época, não teve presente as ações cíveis públicas em
torno dos direitos difusos ou coletivos. Por isso, afirmou: (4) “Num raciocínio
simplista, colocaríamos uma questão: — que ação asseguraria direitos genéricos,
oriundos de um consenso humanístico universal, o ideal de proteção amplo, que
se desenvolve desde o direito de ter um nome, uma nacionalidade, de tratamento
médico ao incapaz físico ou mental, de educação, recreação, diversão?”
Regulando a ordem jurídica, a lei tem o seu império garantido pelo Estado ao
declarar ou satisfazer o direito subjetivo material. “O Direito de ação, desta
sorte, há de referir-se a um caso concreto”.(10)
O eminente jurista,
depois de criticar a recomendação nº 16 do 8º Congresso da Associação
Internacional de Juízes de Menores (Genebra, 1970), no sentido de serem
introduzidos no direito positivo os princípios enunciados na declaração da ONU,
coloca o aspecto restritivo do Direito do Menor: “Estamos tentando clarificar
uma posição doutrinária de conseqüências práticas relevantes. Não conseguimos
conciliar a idéia de proteção integral com a tutela oferecida pelo direito no
sistema jurídico do Estado. Aqui, seguimos a lição de Groppali,
indicando que a tutela do direito, através dos órgãos jurisdicionais, visa a
conseguir a observância das normas jurídicas, emanadas do poder legislativo,
resolvendo controvérsias de acordo com tais normas, surgidas entre cidadãos e
entre estes e entidades públicas, executando coativamente
as sentenças ...”(14)
Mais adiante, insiste: “É
necessário limitar os alcances do Direito do Menor, sob pena de decretar-se sua
falência, pela impossibilidade da prestação judicial que ele envolve. Uma
desmesurada extensão do conceito do Direito do Menor, com a conseqüente
expressão que dele deflui, resultará em desmoralização do Poder Judiciário”.
Bem por isso, o ab-rogado
Código não mencionava direitos, apenas “medidas de proteção” e, entre elas,
medidas de segurança detentivas, que podiam ser aplicadas, inclusive, por fatos
penalmente irrelevantes (desvio de conduta). (Código, arts.
2º, V e 41)
O viés de restringir o
Direito do Menor aos menores tipificados como em “situação de patologia
jurídico-social” para serem “diagnosticados” e “tratados”, gerou o fenômeno da
“carrocinha de menores” e do “ciclo perverso da apreensão, triagem e
deportação”, identificados por Rivera (5) e Costa
(6).
Crianças pobres (Código,
art. 2º, b) eram apreendidas (art. 94) e encaminhadas para o “diagnóstico” e
“tratamento”, sem qualquer medida de apoio à família.
O sistema, que não
distinguia abandonados e infratores, infrações leves e gravíssimas, produtor e
reprodutor de violência e delinqüência, provocou justa
indignação, desaguando nas memoráveis campanhas pró-criança, da Constituinte.
Tais movimentos
enfatizavam a impropriedade da Doutrina da Situação Irregular e insistiam na
nova Doutrina da Proteção Integral, baseada nos documentos de
direitos humanos das Nações Unidas.
Invocavam-se o Projeto de
Convenção, as Regras Mínimas para a Justiça Juvenil (Beijing,
novembro de 1985), as Diretrizes para a Prevenção da Delinqüência Juvenil (Riad, março de 1988), o Projeto de Diretrizes para a
Proteção dos Jovens Privados de Liberdade e as Recomendações da Associação
Internacional de Magistrados da Juventude e da Família (Genebra, 1970 e Rio,
1986).
Os movimentos restaram
vitoriosos e o artigo 227 consolidou na ordem jurídica interna os princípios da
doutrina internacional.
A Doutrina das Nações
Unidas para a Proteção da Infância, além de deslegitimar política e
juridicamente o velho Direito de Menores, colocando-o em situação irregular
(7), reconhece a criança e o adolescente como sujeitos plenos de direitos,
gozando de todos os direitos fundamentais e sociais, inclusive da prioridade
absoluta, decorrência da peculiar situação como pessoas em desenvolvimento.
Dentre seus postulados encontramos
os seguintes:
No direito-ciência e no
direito-norma deve haver um ramo dirigido a todas as crianças e jovens,
independentemente da situação em que se encontrem, mencionando direitos e
garantindo sua efetivação através de ações individuais, coletivas ou difusas.
Nas relações jurídicas, a
família, a sociedade e o Estado devem encarar crianças e jovens como
verdadeiros sujeitos de direito e não como meros objetos de proteção.
A tormentosa questão da
chamada delinqüência juvenil deve ser enfrentada de forma realista
e científica, aceitando-se a possibilidade do crime juvenil e a necessidade de
resposta sócio-educativa, garantidos o devido processo legal, a
presunção de inocência e os critérios de proporcionalidade e legalidade.
A ação de pretensão
sócio-educativa, embora disponível, deve ser pública.
Para os casos sem
relevância, deve ser admitida a remissão e, inclusive, a
transação.
Com a Doutrina da Proteção
Integral, agasalhada na Carta Política, desaparece o Direito do Menor para
surgir o Direito da Criança e do Adolescente.
O ramo, agora dirigido a
toda menoridade, garante a efetivação dos direitos fundamentais, sociais e
próprios de crianças e jovens.
O Direito do Menor não
era o direito da menoridade, apenas dos menores de 18 anos e, ainda assim,
quando se encontrassem em “situação irregular”, como tal, tipificada
legalmente.
De aplicação restrita,
uma de suas características era não mencionar direitos, mas “medidas
terapêuticas”.
O menor em “situação
irregular” era visto como em estado de “patologia social”, portador de
necessidades.
O viés era considerar a
vítima em situação irregular.
Sendo situação irregular
sinônimo de estado de ilegalidade (8), estará naquela posição o pai que
abandonar ou descurar do pátrio poder e o Estado que negligenciar políticas
públicas, jamais a criança abandonada ou negligenciada.
Na relação jurídica em
que seus direitos foram violados, a criança não se encontra na ilegalidade. Em
situação irregular encontram-se os que faltaram com os seus deveres.
Com o Estatuto, o direito positivo, caracterizado pela coercibilidade,
passou a mencionar e garantir direitos.
Desapareceu da ordem
jurídica interna o ramo baseado na lei “estranha, extravagante” de que nos
falava Mendonça (9) “espanando princípios, abandonando regras fundamentais,
princípios fundamentais do Direito, fixando que a iniciativa é informal, a
presença do advogado é necessária só em grau de recurso; se a medida adequada
ao caso não estiver prevista em lei, o juiz decide livremente, e o que é mais
sério,” -prossegue o menorista no seu elogio ao
ab-rogado Código- “na aplicação desta lei, o interesse do menor se sobrepõe a
qualquer bem ou interesse juridicamente tutelado. Fica inserido no Poder
Judiciário um homem com super poder, tendo que se auto-policiar
para aplicá-lo com justiça, equilíbrio e eqüidade”.
O novo ramo, criado a
partir da Constituição de 88, inspirado na Doutrina da Proteção Integral e
regulamentado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, prende-se aos
princípios gerais, às regras técnicas, aos conceitos da ciência jurídica.
No novo modelo, a cada
ator o seu papel.
Nada de eufemismos ou
mitos.
O juiz surge como o magistrado
que previne e compõe litígios.
O Ministério Público é o
fiscal da lei, titular da ação de pretensão sócio-educativa.
O advogado aparece como o
causídico, defensor do jovem.
As questões de pobreza e
assistência social deixam os juizados e passam à responsabilidade das
administrações locais, com os Conselhos Tutelares.
3. A Carta Política e a Convenção
Se entre os signatários
da Convenção só agora começam os movimentos visando adequar as respectivas
legislações, o Brasil exsurge como um dos raros
países onde a normativa já foi substancialmente inserida no direito interno.
Basta cotejar o artigo
227 da Carta Política e o Estatuto com a Convenção, para perceber a perfeita
identidade entre o tratado e as normas internas.
Ao contrário de outros países,
no Brasil, as disposições locais precederam a normativa internacional. É que o
projeto de Convenção serviu de fonte ao direito interno.
O caput do artigo 227
sintetiza os preceitos do Tratado:
“É dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Prossegue a Carta,
determinando que se promovam programas de assistência integral à saúde,
inclusive proteção materno-infantil; atendimento aos portadores de deficiência;
idade mínima para o trabalho; que sejam garantidos os direitos previdenciários
e trabalhistas; o acesso do trabalhador à escola; o devido processo em caso de
acusação e os princípios de brevidade, excepcionalidade
e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da
aplicação de qualquer medida privativa de liberdade; incentivo ao acolhimento;
programas de prevenção e atendimento especializado ao dependente de
entorpecentes e drogas afins; a igualdade dos filhos, independentemente da
natureza da filiação, proibida qualquer discriminação.
A Carta assegura, ainda,
a participação da sociedade civil na formulação de políticas de assistência
social e no controle das respectivas ações e a inimputabilidade penal até os 18
anos.
Referindo-se ao processo
de adequação do Tratado às legislações locais, o argentino Emilio Garcia Mendez (10) identifica quatro hipóteses:
— países em que o efeito
da Convenção foi nulo;
— outros em que está em
curso o processo de mudança;
— países em que houve adequação
meramente formal e eufemística, permanecendo inalterados o espírito e a substância da doutrina da
situação irregular;
— países em que a
adequação foi substancial, citando como exemplo o Brasil.
O interessante tema da
adequação não pode ser abordado sem apelo a exegese histórica e sistemática.
Nenhuma interpretação
dispensará textos como a Declaração de Genebra, de 1924; a Declaração Universal
dos Direitos da Criança, de 1959; o Projeto de Convenção e o texto definitivo,
de 1989; as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da
Juventude; as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência
Juvenil; o projeto das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos
Jovens Privados de Liberdade.
Tais documentos serviram
de base à proposta de mudança, constituindo argumentos de peso junto à
Constituinte e, posteriormente, à aprovação do Estatuto.
4. O Estatuto e a
Convenção – conteúdo da norma interna
As duas principais
diretrizes identificadas por Costa (11) na Convenção, o interesse superior da
criança e sua posição como sujeito de direito, caracterizam o Estatuto, que, no
artigo 1º, deixa explícita a opção pela Doutrina das Nações Unidas: “Esta lei
dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”.
O italiano Paolo Verceloni, presidente da Associação Internacional de
Magistrados da Juventude e da Família, referindo-se ao Estatuto, diz que ele
tem conteúdo e forma de uma verdadeira Constituição. Depois de aplaudir o art.
3º, explica: (12) “Crianças e adolescentes não são mais pessoas capitis deminutae,
mas sujeitos de direitos plenos; eles têm, inclusive, mais direitos que os
outros cidadãos, isto é, eles têm direitos específicos depois indicados nos
títulos sucessivos da primeira parte; e estes direitos específicos são
exatamente aqueles que têm que lhes assegurar o desenvolvimento, o crescimento,
o cumprimento de suas potencialidades, para tornarem-se cidadãos adultos livres
e dignos.”
O Estatuto, atendendo à
Doutrina das Nações Unidas, ao tempo em que reconhece a criança e o adolescente
como sujeitos de direito, garante, com a coercibilidade
que lhe é própria, os direitos fundamentais à vida e à saúde (Cap. I); à liberdade, ao respeito e à dignidade (Cap. II); à
convivência familiar e comunitária (Cap. III); à educação, à cultura, ao
esporte e ao lazer (Cap. IV); à profissionalização e à proteção no trabalho
(Cap. V).
Os direitos à saúde,
educação e assistência social são garantidos, inclusive, através de ações civis
públicas.
O direito à convivência
familiar é assegurado por meio de ações individuais.
O direito à vida é
protegido por normas penais, agravadas em caso de morte (art. 233).
A grande inovação, as ações civis públicas em torno dos direitos difusos ou coletivos,
tornou possível o cumprimento coercitivo dos direitos preconizados na
Carta Política e na Convenção, principalmente no art. 4º do Tratado. Confira-se
o capítulo VII do Título VI.
A simples leitura da
normativa internacional e do Estatuto evidencia a perfeita identidade entre a proposta
da ONU e a solução brasileira.
Os direitos à vida, à
saúde, aos laços familiares, à opinião, à liberdade de expressão e de
pensamento, artigos 6º a 9º, 12 a 14 do Tratado, coincidem com os artigos do
Estatuto, 7º a 14 (vida e saúde), 15 a 18 (liberdade, respeito e dignidade), arts. 28, § 1º, 45, § 2º, 168 e 190, § 2º (liberdade de
opinião).
Há, ainda, convergência
entre o artigo 14, que trata da liberdade de consciência e religião, o artigo
15 (liberdade de associação) e os artigos 16, III e 53, IV, do Estatuto.
O acesso à informação
apropriada, a responsabilidade dos pais, a proteção contra o abuso e
negligência, a adoção, os direitos das crianças deficientes, o direito à
educação e a proteção no trabalho, contemplados no Tratado,
mereceram do Estatuto cuidadosa regulamentação. Vejam-se, entre outros, os
artigos 5º, 12, 19, 23, 27, 39-52, 54, 58, 60-69, 208 e 228-244.
O lazer, a recreação e as
atividades culturais, a questão das drogas, a exploração
sexual, a tortura e a privação indevida da liberdade também estão disciplinados
de maneira uniforme, havendo no Estatuto salvaguardas satisfatórias,
seja por meio de medidas de apoio, auxílio e orientação, seja através da criminalização de ações nocivas. Nesse sentido, entre
outros, os artigos 58, 59, 101- VI, 233 e 243.
A administração da
Justiça, frente à chamada delinqüência juvenil, está conforme, em ambos os
documentos. É perfeita a identidade entre as Regras Mínimas, a Convenção e o
Estatuto. O artigo 40 do Tratado corresponde aos capítulos I a III do título
III da lei local.
Só desavisadamente
não se encontraria correspondência entre o artigo 3º, que
trata da prevalência dos melhores interesses da criança, e o artigo 6º
do Estatuto, que traça normas de interpretação.
Diz o documento
Internacional: “Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por
instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades
administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o
interesse maior da criança.”
No artigo 6º, a Lei
Brasileira completa: “Na interpretação desta lei levar-se-ão em conta os fins
sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres
individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como
pessoas em desenvolvimento”.
O dispositivo,
interpretado sistematicamente, deixa claro que o melhor interesse constitui
diretriz hermenêutica do novo modelo. É o que se extrai do contexto do
Estatuto, principalmente de suas disposições preliminares. Bem por isso, o
artigo 1º explicitou que a lei dispõe sobre proteção integral. Portanto, suas
normas não podem ser interpretadas em prejuízo dos destinatários dessa
proteção, que é total e completa. Acrescenta o artigo 3º, que a criança e o
adolescente gozam de todos os direitos fundamentais da pessoa humana, sem
prejuízo da proteção integral”. O art. 4º, que todos
devem garantir os direitos de crianças e jovens, com absoluta prioridade. O 5º,
que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,
discriminação, crueldade e opressão”.
Ao se referir aos fins
sociais, o Estatuto explicitou a opção pela exegese teleológica, ou seja, a da
proteção integral, com prevalência do melhor interesse.
Não há mais um “melhor
interesse”, subjetivamente estabelecido, o que poderia conduzir ao arbítrio,
mas um superior interesse, baseado em normas objetivas, finalísticas,
voltadas à proteção integral.
Os fins sociais do
Estatuto, consubstanciados na promoção e defesa dos direitos, constituem
diretriz para que o superior interesse seja mesmo o da criança e do adolescente
e não mais, um duvidoso e suposto melhor interesse, a critério subjetivo do
intérprete.
A orientação zetética, balizada pelo art. 6º, deixa claro o cuidado em
jungir a aplicação da nova lei às normas, aos princípios do direito-ciência. No
caso, da Hermenêutica Jurídica.
Em todos os países
discute-se a chamada “crise da Justiça de Menores”.
A posição meramente paternalista
não está resolvendo porque é autoritária e antijurídica. (Grünspun,
1985)
No Brasil, a crise,
somada a outras fontes, desaguou no fenômeno social impulsionador das mudanças
na Constituinte, que resultaram na evolução da Doutrina da Situação Irregular
para a Doutrina de Proteção Integral.
É perceptível a tendência
universal, no sentido da atualização do Direito Tutelar, para adequá-lo aos
princípios do direito-ciência e às normas constitucionais.
Com o advento da
Convenção sobre os Direitos da Criança surgiu um novo Direito, evolução natural
do Direito do Menor, o Direito da Criança, baseado na Doutrina das Nações
Unidas para a Proteção Integral.
O novo ramo preconiza que
o direito tutelar deve se submeter aos princípios, às normas e às regras do
direito-ciência, da epistemologia e da hermenêutica jurídicas, garantindo a
efetividade dos direitos fundamentais e sociais, próprios de crianças e
adolescentes. Também, que deve dispor a respeito de respostas pela prática de
atos conceituados como infrações penais, que essa resposta deve ter caráter
sócio-educativo e pode ser imposta somente com observância das garantias
constitucionais, da presunção da inocência e do devido processo legal, entre
outras.
A atualização brasileira
do Direito Tutelar, inclusive a nível constitucional, está perfeitamente
adequada à Convenção e aos princípios da Doutrina da Proteção Integral.
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Notas:
[1] Palestra proferida ao ensejo da “Reunião de Cúpula
do Judiciário sobre o Novo Direito da Infância e da Juventude”, realizada em
Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul, promovida pela Associação dos
Magistrados Brasileiros, Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul e Unicef,
março, 1995.