O ADULTO NA BRINCADEIRA DA CRIANÇA

 

 

Elizabeth Tunes[*]

 

 

Vamos imaginar que façamos a um adolescente a seguinte pergunta: por que os adultos trabalham? Suponhamos que ele nos apresente a seguinte resposta: os adultos trabalham por prazer. Com certeza, muitas pessoas irão discordar dessa resposta. Umas irão afirmar que isso não é verdade para todos os adultos, pois alguns podem não gostar de trabalhar e outros não gostarem do trabalho que fazem. Imaginemos, ainda, que indaguemos àquele adolescente o porquê de sua afirmação e que ele nos diga que, se os adultos não trabalhassem por prazer, não haveria como explicar porque dedicam tanto tempo de suas vidas ao trabalho e, até mesmo, em seu nome, abdicarem, muitas vezes, de atividades de lazer.

 

É esse, de fato, o quadro que temos à nossa frente. Nós, adultos, dedicamos um tempo incomensurável de nossas vidas dedicado ao trabalho. Quantas vezes não deixamos de estar com nossos filhos e familiares, renunciamos a atividades de lazer e, inclusive, ao descanso, em nome do trabalho? Diante desse cenário da vida e por não nos entendermos masoquistas, salta aos nossos olhos, de imediato, a idéia de que somente o prazer pode explicar tamanha dedicação e envolvimento. Mas, ao mesmo tempo, nós, que trabalhamos, sentimos um certo incômodo com essa resposta. Afinal, sabemos que o trabalho, é verdade, traz-nos muitas alegrias, permite-nos realizar muitas aspirações e dá-nos muito sentido para a nossa vida. Todavia, temos também plena consciência de que acarreta muitos dissabores e frustrações. No cotidiano do nosso trabalho, lidamos com muitas tensões, sofremos reveses, enfrentamos muitas situações que nos deixam profundamente aborrecidos. O estresse, tão comum nos dias de hoje, afinal, não ocorre porque as pessoas estão de papo pro ar, não é mesmo? Apesar de tudo isso, continuamos a trabalhar. Ora, se é assim, o que nos move em direção ao trabalho?

É muito comum ouvirmos as pessoas dizerem que trabalhamos por necessidade. E é essa, em geral, a resposta que damos aos nossos filhos pequenos quando nos imploram para não os deixarmos, para não irmos trabalhar. Você, leitor(a), já pensou quantas vezes já se pronunciou a frase: A mamãe (o papai) vai trabalhar porque precisa. Para ganhar dinheiro e comprar comida pra você, pra comprar suas roupinhas, seus brinquedos. Não é porque a mamãe(o papai) quer deixar você. É porque a mamãe(o papai) precisa! Trabalhamos por necessidade. É o que a mãe (o pai) acabou de nos dizer. O que nos move em direção ao trabalho é alguma necessidade. Essa é, certamente, uma resposta em torno da qual talvez haja maior convergência de opiniões. Então, se quisermos compreender a nossa relação com o trabalho, precisamos, entre outras coisas, identificar a necessidade (ou necessidades) que nos move (movem) em direção a ele.

 

Assim também devemos proceder se desejarmos entender a relação da criança com a atividade de brincar. Muitas pessoas costumam afirmar que as crianças brincam por prazer, exatamente porque observam que elas dedicam muito tempo de suas vidas às brincadeiras. Muitas vezes, elas resistem ao sono, ao cansaço, renunciam ao alimento, recusam o banho, porque querem brincar ou continuar brincando. Por observarmos isso com muita freqüência, somos levados a pensar que a brincadeira é para a criança o universo do prazer. Entretanto, um exame mais aprofundado da questão mostra que, do mesmo modo que o trabalho para o adulto, a intensidade da dedicação e do envolvimento das crianças nas atividades de brincar não significa que elas brinquem apenas por prazer. Assim como a mãe (o pai) do nosso exemplo, elas precisam brincar. Brincam por necessidade: o que as move em direção à brincadeira é alguma necessidade. Então, se quisermos compreender a relação das crianças com o brincar, devemos, entre outras coisas, identificar a necessidade (ou necessidades) que as move (movem) em direção a essa atividade.

 

“Mamãe, mim leva com ocê po seu tabaio?”

 

Todos nós sabemos que o homem é um mamífero e que mamíferos são animais que mamam. E daí? O que tem isso a ver com o nosso assunto?

 

Bem, a questão é que, por sermos mamíferos, temos um contato extremamente íntimo e prolongado com nossa mãe, desde a concepção e por muito tempo depois de nascermos. Essa contingência é da maior importância para o nosso desenvolvimento e liga-se com a grande necessidade que temos de toque, de carícias e de contato físico com outras pessoas. São muitas e demasiado importantes as conseqüências da amamentação e do convívio íntimo que temos com nossa mãe nos primeiros meses de nossa vida.

 

Sabemos que o homem, quando nasce, ainda não completou toda a formação e o desenvolvimento funcional de seus órgãos. O cérebro encontra-se ainda em formação; a visão ainda está desenvolvendo-se, só para dar alguns exemplos. Assim, os bebês mamíferos acham-se numa situação de dependência dos adultos que tem uma duração relativamente extensa e vai muito além do período de amamentação. A maternidade é universal entre os mamíferos. Com raras exceções, todos os mamíferos são sociais, ou seja, vivem e executam as atividades em grupos. Há neles uma predisposição inata para o contato social, pois, de outro modo, não sobreviveriam.

 

É somente entre os mamíferos que ocorrem o que nós denominamos, propriamente, de brincadeiras infantis. Isso acontece,

 

“primeiro, porque entre os grupos animais somente eles apresentam infância propriamente dita: aves, répteis, invertebrados e outros não dependem de indivíduos adultos quando nascem e, quando dependem, é por um curto período de tempo. Segundo, porque os mamíferos não nascem com o sistema sensório-motor plenamente desenvolvido, e terceiro, porque são, essencialmente, animais sociais. Estas três características, juntas, podem explicar a razão da existência da brincadeira entre mamíferos.” (TUNES & TUNES, 2001)

 

 

As brincadeiras realizadas pelos jovens mamíferos propiciam o desenvolvimento de competências que se ligam, de algum modo, a outras que tornarão o adulto capaz de sobreviver. Quando brincam, exercitam sua visão tridimensional, seu olfato, audição e sua coordenação motora e todo esse exercício é importante para o próprio desenvolvimento do cérebro que, nessa fase, cresce mais do que outras partes e órgãos do corpo. Quando brincam entre si e com outros membros do grupo, além de exercitarem o sistema sensório-motor, começam a compreender o seu lugar e papel no grupo, na medida em que tomam contato com a força e a competência dos outros e de si mesmos. Conforme apontam VYGOTSKY e LURIA (1996), é em relação aos mamíferos que podemos falar em infância, no sentido próprio da palavra e, em relação com a infância, podemos falar em brincadeiras infantis.

 

Todos os mamíferos brincam. Sabemos disso. Mas, reconhecemos também que as brincadeiras dos bebês humanos muito cedo começam a diferenciar-se daquelas de outros jovens mamíferos, ainda que possam, bem no início, guardar semelhanças entre si. Uma criança de dois ou três anos de idade, por exemplo, brinca de faz-de-conta. Até onde sabemos, os demais mamíferos não apresentam essa modalidade de brincadeira. Por que e como isso acontece? A que isso se deve? E, retomando nossa pergunta, que necessidade move o bebê humano em direção a essa modalidade de brincadeira? Trataremos, a seguir, do exame dessas questões.

 

Conforme já dissemos, após o nascimento, o bebê humano vive um período relativamente longo de dependência e intimidade plenas em relação ao adulto que dele cuida. Assim, ele tem, ao nascer, uma predisposição para o contato com o outro que é, inclusive, o que lhe garante a sobrevivência. É como se a gestação continuasse. A mãe, ao parir, apenas mostra ao filho o outro lado de seu ventre, ventre do qual ele ainda continua profundamente dependente. Mas, agora, quando a mãe dá a luz”, a criança pode ver. E ela olha tudo que pode e não apenas o ventre que a continha. Ela vê, agora, quem a embala, na sua inteireza, como uma totalidade. Sim, porque a percepção do bebê não é analítica como a do adulto, que, diante de um objeto, pode nele distinguir e destacar as partes. O bebê humano vê o objeto como um todo impartível. Além disso, por um valor de sobrevivência, interessa-lhe sobretudo a mãe ou quem dele cuida, quem oferece o próprio corpo para o contato, acalento, aplaca-lhe a dor, o frio e a fome. Ele dirige sua atenção a essa pessoa e sente-a como uma espécie de extensão do seu próprio corpo.

 

Logo ao nascer, os objetos que se encontram ao seu redor interessam-lhe muito pouco, se é que, de fato, exerçam sobre ele alguma atração. É ao outro que dele cuida que ele dirige grande parte de seus esforços de atenção. É, pois, esse adulto que irá propiciar a transição da atenção do bebê para os objetos. Você, leitor (a), com certeza, já reparou que, quando vamos brincar com um bebê bem pequeno, mostrando-lhe um objeto, costumamos balançá-lo junto ao nosso próprio rosto (os bebês parecem ter em nosso rosto o foco preferencial de atenção) ou, então, provocar com ele algum barulho para chamar a atenção do bebê. Quando fazemos isso, estamos desencadeando um processo de desvio da atenção do bebê de nosso corpo em direção aos objetos. Fazemos isso tão automaticamente e com tanta freqüência que nem nos damos conta de nossas ações. Por sua vez, o bebê aprende com tamanha rapidez e facilidade que damos por certo que o fez naturalmente e não tomamos consciência de nossa participação no processo. Costumamos, por isso, acreditar que o interesse dos bebês pelos objetos é algo naturalmente dado, que ele já nasceu com esse interesse e que nosso papel é apenas de colocar ao seu alcance os objetos. Mas, como estamos podendo perceber, não é bem assim que as coisas acontecem. Sem a nossa atuação, o interesse dos bebês pelos objetos que estão ao seu redor será bastante precário. O que ele quer mesmo somos nós que cuidamos dele. O objeto somente virá a interessá-lo se colaborarmos no processo de transição de sua atenção. E por que tal transição é possível?

 

Como dissemos anteriormente, a percepção do bebê é global. Ele nos vê em nossa inteireza, incluindo nesta os objetos que temos junto ao nosso corpo. Quem já não viveu a delícia e o perigo, respectivamente, de ter em nossos braços um bebê de colo que, apalpando nosso rosto, arranca-nos os óculos ou os brincos, atira-os longe, completamente desinteressado dos mesmos e continua a brincar com nosso rosto, tentando apertar com os dedos os nossos olhos e a nossa boca? Os óculos e os brincos são vistos por ele como participantes de nossa inteireza, mas, tão logo extirpados de nosso corpo, deixam de constituí-la e, por isso, não mais lhe são atrativos. A criança não quer os óculos como objeto em si mas, de fato, o adulto que os tem e em cuja totalidade eles se acham inseridos.

Quando o bebê atira longe nossos óculos ou brincos, comumente, mencionamos com ênfase e automaticamente essas palavras (Meus óculos! Meus brincos!) e, num piscar de olhos, estamos pegando-os ou pedindo para que alguém o faça, recolocando-os em seu lugar ou, por precaução, em outro, distante da criança. Assim, por meio da fala e de nossas ações, estamos propiciando ao bebê a inauguração de seus processos analíticos. Estamos apresentando-lhe as nossas formas de recortar, de fatiar o mundo ao nosso redor. Nossas ações são apenas inaugurais. O processo será relativamente longo; está apenas começando. Nossa participação continuará. Procuraremos, de muitas formas, chamar a atenção do bebê para os objetos: balançando-os à sua frente, produzindo barulhos com eles, tocando-os em sua pele, em nosso próprio corpo, agitando-os, destacando, de alguma forma, suas propriedades e sempre falando deles. E, assim, para o bebê, o mundo começa a se partir e sua atenção passa a se focalizar, também, nos objetos.

 

O que falamos até aqui pode ser resumido da seguinte forma: o interesse do bebê pelo adulto é naturalmente dado mas o seu interesse pelos objetos à sua volta é socialmente constituído, sendo, portanto, a participação das pessoas que cuidam dele primordial para desencadear o processo de transição de sua atenção ao outro em direção aos objetos. Feita a transição, e esta é rápida, a criança passa a distrair-se com os objetos com tal envolvimento que nos parece que seu interesse sempre existiu. Mas isso é somente na aparência. Como dissemos, sem a atuação do outro, o interesse da criança pelos objetos seria bastante precário. Vemos, assim, que o que move a criança em direção aos objetos, como brinquedos, é, originalmente, a necessidade de contato próximo com outras pessoas, especialmente aquelas que estão profundamente ligadas com os seus cuidados.

 

A criança passa, então, a envolver-se intensamente com os objetos que estão à sua volta e tenta com eles fazer o que os outros fazem. Eles adquirem uma força motivadora tal que chegam a ditar-lhe as ações a serem realizadas: uma porta induz o abrir e o fechar; uma escada, o subir e uma campainha, o apertar. Todavia, ainda é o adulto ali representado em suas propriedades ou nas ações que permite o que move a criança para os objetos, ainda que a transição da atenção já esteja plenamente em curso. Não é de se estranhar que, no início, as crianças não demonstrem interesse pelos objetos miniaturas que imitam aqueles de uso adulto. Elas não deixam qualquer dúvida de que o que procuram é o objeto real de uso adulto. Quantas vezes não ouvimos ou pronunciamos nós mesmos as frases: “Não consigo entender o que acontece! Comprei um monte de óculos de brinquedo e meu filho não se interessou por eles. Ele insiste em brincar com os meus!” ou “Não é possível, meu filho! Você insiste em apertar os botões da minha televisão. Olha aqui a que a mamãe comprou para você! Não é bonitinha? Tem um monte de botões, igual à da mamãe e do papai. Por que você não brinca com essa aqui? Deixa a mamãe ver a novela?” Novamente, o adulto tem um papel inaugural. É preciso que ele participe ativamente do processo de transição da atenção da criança, propiciando-lhe o movimento de um interesse a outro. Não basta oferecer-lhe inúmeros, variados e coloridos brinquedos que imitam os objetos reais de uso adulto. Faz-se necessário de mostrar-lhe que com as miniaturas podemos, nós adultos, fazer as mesmas coisas, praticar as mesmas ações que praticamos com os objetos reais. E, assim, mais uma vez, a atenção da criança irá deslocando-se, e novas motivações ou movimentos inaugurados.

 

A mesma história vai se repetir na inauguração das brincadeiras de faz-de-conta. É do outro o papel de promover a transição do uso real do objeto para seu uso imaginário, fictício. Leia o episódio abaixo transcrito, extraído de nossas observações:

 

“Sentados ao chão estão Lucas (uma criança de dois anos e seis meses), seu pai e sua mãe. Ele está com vários carrinhos, miniaturas de carros de adultos, brincando. Acontece, então, o seguinte diálogo:

 

Lucas: Papai, vamos brincar de carrinho?

 

Pai: Vamos, sim. Me dá um de seus carrinhos para eu poder brincar?

 

Lucas: Não, não dou.

 

Pai: Então, tá bom. O meu carrinho vai ser esse envelope que está aqui (põe a mão sobre o envelope e apenas imita o som de um carro).

Lucas: Não, isso não é carrinho. Isso é papel.

 

Pai: É o meu carrinho. Olha como ele faz: bruum, bruum, bruum (apenas imitando o som de um carro).

 

Lucas: Não, não é não. É papel. Ele não tem roda.

 

Mãe: Eu também vou brincar. Esse é o meu carrinho (pega uma caixa de fósforo bem grande e, segurando-a, movimenta-a, imitando o movimento de um carro). Por ser uma caixa de fósforo grande, a mãe diz: Não, não é um carro. É um ônibus. Olha como ele faz a curva (fazendo a curva com a caixa de fósforo). E segue fazendo vários movimentos com a caixa de fósforo.

 

Lucas: Não, mamãe. Não é ônibus. Ele não tem roda.

 

Mãe: Mas olha como ele anda bacana. Faz a curva. Bruum, bruum, bruum. Nossa, que ônibus grandão!!!

 

Lucas, em silêncio, observa a mãe conduzir a caixa de fósforo e, em seguida, diz: Mamãe, mim dá o seu ônibus?

 

Pegando-a, faz com ela os movimentos que imitam o movimento de um carro e aceita brincar com a caixa de fósforo como se fosse um carro.(extraído de TUNES & TUNES, 2001)

 

 

Novamente, vemos no episódio transcrito, o importante papel do adulto como promotor da aquisição de novas formas culturais de uso dos objetos. Ao inaugurar novas possibilidades de atenção da parte da criança, o adulto acaba por desencadear novos processos motivacionais na criança, outros movimentos dela em direção ao mundo ao seu redor. Todos eles ancoram-se na necessidade primordial que a criança tem do adulto, mas no processo mesmo de sua emergência, transformam-se e constituem-se em novas modalidades de interesse da criança, modalidades essas de natureza genuinamente culturais.

 

Concluímos, assim, que a análise psicológica da atividade de brincar mostra-se bastante esclarecedora da transição dos processos biológicos para os culturais e, mais do que isso, do exame do papel do outro na constituição das nossas formas culturais de comportamento. Conforme aponta VYGOTSKY (1984), no bebê humano, a brincadeira logo assume a sua forma cultural e permite-nos, pela análise dos momentos de transição, compreender não apenas as origens mas o modo como se desenvolve a brincadeira de faz-de-conta.

 

 

 

NOTAS SOBRE O AUTOR:

 

[*] Universidade Católica de Brasília/Universidade de Brasília.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

TUNES, E. & TUNES, G. A brincadeira, o adulto e a criança. Revista Em Aberto, Brasília, MEC/INEP (no prelo).

 

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. Trad. de J.Cipolla Neto; L. S. Menna Barreto & S.C. Afeche. São Paulo, Martins Fontes, 1984.

 

VYGOTSKY, L. S e LURIA, A. R. Estudos sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Trad. de Lólio Lourenço de Oliveira. Porto Alegre, Artes Médicas, 1996.