MENINOS (AS)  EM SITUAÇÃO  DE RUA  NA CIDADE DE  RIO GRANDE:  VIDA NA RUA E VIDA NA INSTITUIÇÃO[1]

 

 

Maria Angela Mattar Yunes

Mestre em Psicologia do Desenvolvimento.

 

Maria Rosaura de Oliveira Arrieche

Bolsista de Iniciação Científica da FAPERGS.

 

Maria de Fátima  Abrantes Tavares

Bolsista de Iniciação Científica do CNPq.

 

 

 

Resumo: O presente trabalho visa oferecer informações sobre alguns aspectos das vivências de crianças em situação de rua. Foram entrevistadas 21 crianças que se encontravam nas instituições assistenciais, mas que apresentavam expressiva vivência nas ruas. Os resultados mostram que estas crianças são do sexo masculino, de 13 a 17 anos de idade,  oriundas de Rio Grande, possuem familiares e os abandonaram devido a relações familiares conflituosas. Há fortes indicativos das preferências das crianças pela vida na instituição em contraposição com a vida na rua. Portanto, são feitas algumas sugestões sobre o desenvolvimento de programas específicos de intervenção mais eficientes.

 

Palavras-chave: Crianças de rua, família, instituições.

 

Abstract: The present paper aims to present some information about street children and some aspects of their personal experiences. Twenty-one children were interviewed at the time they were living at the local institutions, but they presented a long-time experience living on the streets by themselves. The results show that those children are male, from 13 to 17 years old, from Rio Grande, had a family and left them due to conflicts in the family relationships. There is strong indication that those children prefer to live in the institution rather than with their families or in the streets.  The discussion suggests the improvement and creation of specific and efficient programs to work with these children.

Key-words: Street children, family, institutions.

 

 

Introdução

Atualmente, tanto a mídia, quanto os órgãos governamentais e algumas instituições privadas, tem abordado e discutido o tema "meninos de rua". Observa-se, no entanto que proporcionalmente à gravidade e amplitude das conseqüências sociais que esta questão envolve, pouco se sabe sobre as crianças que vivem nas ruas, o que poderia colaborar na maior compreensão de alguns fenômenos, bem como auxiliar na tomada de decisão de uma política de intervenção relativa ao funcionamento mais eficiente das instituições de atendimento a esta população.

 

A começar pelo número de "crianças de rua", as pesquisas mais recentes tem mostrado controvérsias quanto ao número estimado, sendo que alguns autores revelam que no Brasil há entre 7 e 10 milhões de crianças que ficam a maior parte do tempo perambulando pelas ruas, afastados de seus pais ou responsáveis (Baker & Knaul, 1991; Maciel, Schmidt, Santoro, Azevedo, & Guerra, 1991). Outros autores (Forster, Barros, Tannhauser, & Tannhauser, 1992) afirmam que estes números podem não expressar a realidade, havendo um certo exagero nesta estimativa. Em São Paulo, a maior capital do país, foram contados no ano de 1993, 4520 meninos (as) de rua no período diurno e 895 no noturno (Secretaria da Criança, Família e Bem-Estar Social do Estado de São Paulo, 1993). Quanto ao Estado do Rio Grande do Sul, vários estudos indicam que, em Porto Alegre, haja aproximadamente 500 crianças vivendo permanentemente nas ruas (Hutz, Koller, & Bandeira, 1995). De outras grandes cidades do Brasil não se tem estimativas confiáveis, pois as técnicas e procedimentos utilizados nas pesquisas de contagem das crianças divergem consideravelmente de um estudo para outro. Além disso, somam-se as dificuldades na caracterização de crianças que são efetivamente consideradas "crianças de rua".

 

Alguns pesquisadores referem-se a crianças de rua e crianças na rua, diferenciando-as a partir de alguns aspectos tais como: a manutenção ou não de vínculo familiar (Alves, 1991, Forster et al., 1992, Rosemberg, 1990). Outros estudos revelam ainda que muitas destas crianças foram abandonadas por seus pais ou fugiram de casa. Vivem em pequenos grupos que, obedecendo hierarquização, seguem regras e utilizam vocabulário característico (Carlini - Cotrim e Carlini, 1988; Forster et al., 1992; Lucchini, 1990;  Silva et al., 1991).

 

Segundo Martins (1996), a caracterização destas crianças em termos científicos está ainda nos seus primeiros estágios. Através dos resultados de um censo realizado na cidade de São José do Rio Preto, SP, Martins (1996) sugere cinco categorias de classificação destas crianças e adolescentes, evidenciando a heterogeneidade desta população. O autor diferencia os meninos de rua quanto à presença (tipo 2) ou ausência (tipo 4) de  vínculo  familiar. Os outros três tipos seriam as crianças e adolescentes que trabalham e passam grande parte do dia nas ruas, mas dormem e tem lazer em casa (tipo 1); ou crianças que trabalham e tem lazer nas ruas, mas dormem e alimentam-se em casa (tipo 3) e aqueles que tem na rua apenas o seu espaço de lazer (tipo 5).

 

No entanto, por maior que seja a somatória de trabalhos nesta área, ainda é difícil definir critérios que limitem com precisão quem é exatamente uma criança de rua ou uma criança na rua. Koller & Hutz (1996) fazem uma extensa revisão sobre este assunto  salientando a necessidade de uma terminologia mais adequada, haja vista a diversidade e complexidade do uso do espaço de rua por diferentes pessoas, de diferentes idades em diferentes regiões e com objetivos também diversos. Os autores sugerem o uso do termo crianças em situação de rua  e  parece-nos ser este, o que melhor representa  a população em questão, levando-se em conta que possíveis agrupamentos, de acordo com certos critérios, poderão ser efetuados. Cabe ressaltar que o mesmo já vem sendo utilizado por alguns pesquisadores da área.

 

Com o objetivo de melhor conhecer o universo mental destas crianças e compreender algumas peculiaridades relativas a sua organização de vida, valores, formas de pensamento, concepções de mundo, etc,  Silva et al. (1991), ouviram 100 crianças, em grupos de 5, ao longo de um ano. Estas crianças eram provenientes do Projeto Crianças de Rua. Os resultados sugerem que a maioria das crianças entrevistadas tem uma família de referência, original ou substituta, sendo que a interação familiar foi rompida abruptamente e a possibilidade de restabelecer o contato parece, na maioria das vezes, impossível, dado às condições de violência ou abandono sob as quais viviam. O trabalho apresenta um relato detalhado de peculiaridades sobre a organização dos grupos de rua, suas regras e normas de funcionamento, estrutura das relações sociais, a questão da sexualidade, o significado das instituições em suas vidas e suas perspectivas de futuro. Segundo os autores, estas crianças precisam de um espaço institucional com características peculiares, onde o relacionamento entre os membros seja facilitador de sua integração no chamado "mundo da sociedade". Como afirma Marin (1988) "... a Instituição pode ser um espaço alternativo para o processo de Identificação da criança, desde que não se camufle como uma família. Parece ser sua função, desde que a família não tenha condições para assumir seus filhos, colocar-se como um espaço para que as crianças possam realizar suas necessidades, encontrando um suporte adequado para o desenvolvimento bio-psico-social." Um ponto importante destacado por Silva et al. (1991) é a importância da individualização do atendimento, não no sentido terapêutico individual nos moldes tradicionais, mas de reconhecimento de seus direitos e de suas  necessidades, haja vista a percepção de si mesma como indiferenciadas, percepção esta confirmada por aqueles que trabalham nas instituições e as tratam indiscriminadamente sem valorizar suas histórias pessoais e as diferenças individuais.

 

O objetivo do presente estudo foi conhecer a percepção que  crianças em situação de rua, institucionalizadas na ocasião da coleta de dados, tem de suas vivências na rua em contraposição com suas experiências nas instituições locais da cidade. Vários aspectos da realidade destas crianças foram levantados tais como: suas origens, histórico das relações familiares e sociais, perspectivas atuais e futuras, bem como se investigou alguns elementos do funcionamento das instituições que os assistem.

 

Método

Inicialmente foi feito um levantamento de todas as instituições e entidades locais que prestam atendimento à população em estudo na cidade de Rio Grande. Encontraram-se as seguintes instituições:

1. SORAN (Sociedade Riograndina de Auxílio aos Necessitados);

2. CAM (Centro de Apoio ao Menor).

 

 

Participantes

 

Foram entrevistados 21 (vinte e um) adolescentes que na ocasião estavam vivendo nas referidas instituições, sendo que 11 (onze) estavam na SORAN e 10 (dez) no CAM. Todos os entrevistados apresentavam vivência nas ruas anterior à institucionalização.

 

Os entrevistadores receberam treinamento específico para a abordagem destas crianças  e para a realização das entrevistas. Foram seguidas as mesmas etapas de Gunther et al. (1989), quanto à preparação do entrevistador, seleção dos sujeitos para a entrevista e entrosamento com os mesmos. Como parte do treinamento, os entrevistadores aplicaram preliminarmente a entrevista com guardadores de carro.

      

Material

O instrumento utilizado foi um questionário semi-estruturado com um roteiro básico elaborado em colaboração com o grupo de profissionais do CEP-RUA (Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Koller, Bandeira, & Raffaelli, 1995). O questionário constava de três partes, a seguir:

a. dados de identificação;

b. 24 sentenças abertas a serem completadas oralmente pelo entrevistado;

c. questões específicas para levantar dados sobre a vida na rua, família, escola, atividades durante a noite e vida na instituição.

 

Procedimentos

 

Os dados foram coletados por dois entrevistadores que solicitaram um espaço na instituição para que as entrevistas pudessem ser realizadas individualmente. O entrevistador solicitava a colaboração do sujeito, explicava os objetivos da pesquisa e assegurava a confidenciabilidade dos dados. Após a concordância[2] do sujeito em ser entrevistado, as verbalizações eram anotadas na íntegra no momento da entrevista e observações posteriores ou comentários do entrevistador foram posteriormente registrados.

 

Resultados

Os dados obtidos foram computados em análises de freqüência e percentagens. Os resultados mostram que os adolescentes são predominantemente do sexo masculino, visto que nenhuma menina encontrava-se institucionalizada na ocasião da coleta de dados. Suas idades variam de 13 a 17 anos, sendo  que a grande maioria (80%) é oriunda da cidade de Rio Grande. Dentre todos os entrevistados, 95,2% declararam ter família, e os motivos mais citados para justificar o abandono do lar foram abuso [3], briga com a família e miséria conforme aponta a Tabela 1.

 

 

TABELA 1

                 Percentagem dos motivos mais citados para justificar o abandono do lar

 

Motivo

%

Abuso

47,6

Briga com a família

33,3

Miséria

19,0

 

 

Ao serem questionados sobre seus contatos com os familiares, aproximadamente 40% não sabiam  indicar quando os visitaram pela última vez e 14,3% o fizeram há mais de um ano.  Um número expressivo de entrevistados alegou desconhecer a opinião de seus pais sobre sua opção em viver na rua (38%) ou afirmaram pensar que eles são indiferentes a este fato (23,8%).

 

Vida na rua:

Quanto à vida na rua, a maioria dos entrevistados apresentou mais referências a  aspectos negativos (52,4%) do que positivos (9,5%). Os demais sujeitos deram a resposta "mais ou menos" (38%). As referências negativas mais freqüentes foram feitas a prisões com relatos de  violência, principalmente dos policiais, hospitalização, envolvimento com drogas e outros eventos de risco. O que fica confirmado pelo relato de experiências mais significativas passadas na vida na rua destes adolescentes apresentados na Tabela 2.

 

TABELA  2

         Relatos das experiências mais significativas passadas da vida de rua (em %)*

 

Evento

%    

Prisão

85,7

Hospitalização

80,9

Acidentes

71,4

Fome

76,1

Esmolas

95,2

Uso de drogas

90,4

Atividade Sexual

71,4

*Cada item foi investigado em questões distintas.

 

 

O consumo de drogas na rua foi também investigado separadamente e 90,4 % dos entrevistados declararam ser usuários, sendo que 85,7% afirmaram que o faziam há mais de um ano. A Tabela 3 mostra as drogas mais freqüentemente citadas como consumidas pelos adolescentes.

 

TABELA 3

Incidência de drogas mais freqüentemente consumidas (em %)

 

Droga

%

Cola

71,4

Maconha

61,9

Álcool

33,3

Cocaína

28,6

Obs.: Múltipla escolha

 

 

Vida na Instituição:

Quanto à vida na instituição, 60% dos adolescentes apresentou citações favoráveis de suas vivências até  aquele momento. A totalidade dos entrevistados alegou receber ajuda e  71,4%  afirmaram que se sentiam seguros nos locais. Referências negativas foram feitas a aspectos tais como indisciplina e falta de organização, sendo esta última enfatizada pela maioria dos entrevistados como um aspecto a ser mudado em ambas entidades observadas.

 

A seguir apresentamos alguns elementos referentes ao funcionamento das duas instituições [4] que puderam ser observados durante a realização das entrevistas.

 

A SORAN  localiza-se no perímetro urbano e mantém em  funcionamento o projeto do SESI em parceria com a SMSAS (Secretaria Municipal de Saúde e Ação Social) para atendimento de meninos de rua. A instituição oferece  à clientela abrigo, alimentação e encaminhamento ao mercado de trabalho e/ou escola. Além da assistente social e cozinheiras, duas educadoras atuam em tempo integral organizando atividades tais como: reforço escolar, artesanato, recreação e jogos. O espaço institucional organiza-se com determinadas regras estabelecidas em comum acordo por funcionários e usuários da instituição.

 

O CAM  caracteriza-se por ser uma entidade filantrópica, mantida por sócios e doações da comunidade. Localiza-se no Balneário Cassino. A instituição possui apenas uma funcionária encarregada da cozinha e da organização do local. Um dos meninos que reside na casa é referido como  sendo um monitor da  instituição, porém suas funções caracterizam-se mais a de um zelador do local. As atividades são livres e ocorrem de forma espontânea, sem orientação definida durante a maior parte do tempo. Uma vez por semana, uma pessoa que é nomeada como professor visita a casa e desenvolve tarefas do tipo manual.

 

As  diferenças nas propostas de organização das instituições revelaram-se claramente quando se investigou  as opiniões dos entrevistados sobre as mesmas.(ver a Tabela 4)

 

TABELA 4

    Opinião dos entrevistados sobre as Instituições

 

 

Instituições

 

SORAM

CAM

 

%

%

Boa

70

50

Ruim

10  

40

Mais ou menos

10

0

Não sabe       

10

10

 

 

Além disso, 40% dos entrevistados do CAM alegaram perceber a instituição como positiva, por ser a provedora de abrigo e sustento  com mais freqüência do que os entrevistados da SORAN (10%). Estes últimos enfatizaram nada ver de negativo no funcionamento da instituição (60%) enquanto que os adolescentes do CAM enfatizaram a falta de organização e a indisciplina (50%).

 

Outras diferenças apareceram no que tange às percentagens de meninos envolvidos em atividades profissionais e que recebiam educação formal sistematicamente, conforme apresenta  a Tabela 5.

 

TABELA    5

Percentagem de adolescentes que realizam atividades profissionais e recebem educação formal

 

 

Instituições

 

SORAM

CAM

Atividades

%

%

Trabalho com registro

54,5

20

Escola

63,6

40

 

 

Perguntados sobre suas expectativas de futuro, após os 18 anos, a expressiva maioria dos adolescentes  em ambas  instituições (76,6%)  fez  referências vagas afirmando não saberem o que os espera, ou através de alegações do tipo: ²vou embora daqui, ²morar embaixo da ponte”, ²vão me dar um pontapé” ou ²nada’’.

 

Discussão e conclusões

Os resultados demonstram claramente que, ao contrário do que se poderia pensar, estas crianças não são abandonadas por seus familiares, e sim abandonam o lar devido às circunstâncias insatisfatórias de suas vidas. Confirmam-se portanto, os mesmos dados obtidos no estudo realizado por Silva et al. (1991) no que se refere aos aspectos mencionados.

 

No geral, problemas no relacionamento e conflitos familiares que culminam em situações de violência  e abuso, são as principais razões que levam estas crianças da cidade de Rio Grande a procurar, na rua, um espaço para sobreviver. Estes achados são similares aos de Bandeira et al. (1994) que constataram que 52 % das crianças de rua de Porto Alegre, com idades de 9 a 17 anos, deixaram suas casas pelos mesmos motivos.

 

Poderíamos sugerir que, nestes casos, a rua tem o significado de libertação de um contexto familiar incapaz de respeitar e aceitar as necessidades do desenvolvimento infantil. Os sentimentos de indiferença em relação aos familiares ficam evidentes pelo pouco contato que estas crianças mantém com seus pais ou responsáveis. Bandeira et al.(1994) também verificaram em seu estudo que 36% das crianças relataram ter perdido o contato com seus familiares. Nossos resultados mostram que este sentimento de indiferença  é percebido pelas crianças como recíproco, pois ao que tudo indica, a família pouco intervém para modificar sua decisão de viver na rua. Portanto, apesar da maioria dos relatos  evidenciarem a referência de um grupo familiar, este, caracteriza-se, na maioria dos casos, como ausente, inadequado ou hostil, na percepção dos entrevistados.

 

Vários estudos têm demonstrado que tal  situação não é apenas típica de crianças de rua de países em desenvolvimento, pois, situações familiares caóticas, abuso, alcoolismo e alienação são motivos, freqüentemente, alegados por crianças encontradas nas ruas de todo o mundo (Tyler et al., 1987).

 

Uma vez nas ruas, sem contato com seus familiares, estas crianças passam a viver sob condições precárias e de grande risco, estando propensas a envolver-se em atividades ilegais, usarem drogas, engajar-se em atividades sexuais prematuramente, passarem fome,  esmolarem, conforme confirmam os dados obtidos nesta pesquisa. Estas experiências, na maioria das vezes vivenciadas por períodos prolongados da infância, podem trazer alterações no desenvolvimento  destas crianças (Aptekar, 1989a). Não se pode afirmar contudo, que a vida na rua possa ser um desencadeante de desordens mentais, pois para muitas crianças, sair de casa não representa fragilidade emocional, mas sim sinal de resiliência e uma tentativa de reorganização de vida fora da nocividade do âmbito familiar (Koller & Hutz, 1996, Aptekar, 1996). Como afirmam Hutz & Koller (1997): “Mesmo que não cause dano psicológico, a rua não é lugar saudável para qualquer ser humano viver.”

 

Em contraposição com a vivência nas ruas, nossos entrevistados perceberam a instituição como uma alternativa de vida mais adequada. Deve-se ressaltar a ausência de crianças do sexo feminino nestas instituições. Como explicar este fato? Alguns autores afirmam que isto provavelmente deve-se ao fato de que as meninas são mais requisitadas para o serviço doméstico e para o cuidado dos irmãos menores, enquanto que os meninos são de alguma forma impelidos a ir para a rua mais cedo (Aptekar, 1996). Esta é uma área que carece de estudos e pesquisas específicas.

 

Frente ao panorama geral dos resultados encontrados e considerando-se a ausência de programas de prevenção, pode-se dizer que cabe às instituições a importante responsabilidade de cumprir seu papel  social,  no sentido de oferecer mais do que abrigo e sustento a esta clientela. Enquanto contextos, estas entidades representam papel determinante no destino destas crianças, devendo portanto, garantir juntamente com outros órgãos competentes, o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente. Para tanto, a definição de propostas pedagógicas claras e programas específicos, dentro de uma filosofia norteadora e com ênfase não só na criança,  mas também nas suas famílias, faz-se necessária, no sentido de promover o desenvolvimento e a autonomia dos indivíduos envolvidos. A exemplo do Projeto Axé, o trabalho com criança em situação de rua não pode negar o seu histórico individual. Sua  vivência nas ruas deve ser valorizada antes que elas sejam inseridas em instituições de educação formal, totalmente despreparadas ou com uma visão estigmatizada de ‘meninos(as) de rua’.  Portanto, o trabalho das instituições não deve limitar-se apenas à matrícula da criança na escola ou sua inserção no mercado de trabalho. Ao contrário, conforme demonstram  os educadores envolvidos no projeto Axé, todas as suas experiências devem ser o ponto de partida para a definição de qualquer proposta pedagógica que estimule a compreensão de si mesmo e de seu mundo de maneira crítica e singular. Especial atenção deve ser dada à figura dos educadores, monitores ou qualquer pessoa que se proponha a participar de projetos desta natureza. Haja vista que estas crianças apresentam experiências de violência, abuso e negligência, a construção de um vínculo afetivo e uma relação de confiança tornam-se essenciais para o sucesso dos programas.

 

Dentro desta ótica, parece-nos necessário remarcar que é preciso, também, trabalhar com as  representações sociais da comunidade sobre  crianças em situação de rua, ou seja, qual é a percepção que se tem delas?  Que sentimentos elas despertam mais freqüentemente? Qual é o nível de hostilidade que elas recebem e provocam? Esta é outra área de pesquisa que necessita de aprofundamentos, dado a importância da figura dos educadores nas instituições, como peças básicas para o desenvolvimento eficaz de qualquer projeto institucional, juntamente com a participação de toda a comunidade.

 

Acredita-se  que somente  um trabalho de parceria,  pode mudar a atual realidade das instituições e melhorar  a qualidade de vida destas crianças, beneficiando-as no sentido de que elas  possam ter seus  projetos de vida bem mais definidos e viáveis do que puderam expressar os nossos entrevistados, o que provavelmente é o reflexo da indefinição de metas e ausência de  projetos das nossas instituições locais.

 

A situação de violência, abandono e a ausência de assistência já vivenciada tão intensamente pela maioria destas crianças desde os primeiros estágios de suas vidas, não PODE e não DEVE  ser  reproduzida e revivida dentro do espaço institucional.

 

Agradecimentos: Os autores agradecem ao CNPq e FAPERGS pelas concessões de Bolsas de Iniciação Científica. Expressamos também nossa gratidão pela colaboração do grupo de profissionais do CEP-RUA da UFRGS e em especial à coordenadora deste Centro, Dra. Sílvia H. Koller, pelos comentários e atenção dispensada nos diversos momentos deste trabalho de pesquisa.

 

 

 

Notas:

 

[1] Artigo publicado na revista MOMENTO (Depto. de Educação e Ciências do Comportamento da Fundação Universidade Federal de Rio Grande)

[2] Legalmente, crianças (mesmo crianças de rua)  menores de idade não podem dar seu consentimento  visto que,  do ponto de vista cognitivo, as mesmas  podem não estar capacitadas para compreender por completo a natureza  e  as implicações deste tipo de pesquisa (Fischer, 1993; Thompson,1990). Portanto, durante este estudo, os órgãos competentes tais como Conselho Tutelar, Conselho Municipal dos Direitos da Infância e Juventude, Juiz Curador de Menores foram informados dos objetivos do projeto e sobre a realização das entrevistas.

[3] A categoria abuso refere-se a atos de violência física, psicológica ou sexual praticado por pais, parentes ou responsáveis, sendo capazes de causar dano físico, psicológico ou sexual à vítima (Azevedo & Guerra, 1995). Nenhum dos sujeitos entrevistados fez referência a  situações de abuso sexual, foram apenas citadas ocorrências de violência física.

[4] Deve-se ressaltar que tais dados de observação referem-se ao período de coleta de dados desta pesquisa (junho a outubro de 1996).

 

 

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