Competência. Habeas Corpus. Ato de Tribunal de Justiça. Na dicção da ilustrada maioria (seis votos a favor e cinco contra), entendimento em relação ao qual guardo reservas, compete ao Supremo Tribunal Federal julgar todo e qualquer habeas corpus impetrado contra ato de tribunal, tenha este, ou não, qualificação de superior. Habeas Corpus. Pertinência. Estatuto da Criança. Internação. Estando em questão a liberdade de ir e vir do adolescente, cabível é o habeas corpus, perquirindo-se até que ponto a providência jurisdicional implica ato de constrangimento. Menor. Liberdade assistida x internação. A teor do disposto no § 2º do artigo 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente "em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada". Exsurge conflitante com o preceito ato de órgão revisor que, às vésperas da entrevista final, decorrente de liberdade assistida de seis meses, deferida pelo Juízo a partir de contato direto com os envolvidos, substitua a medida pela internação na FEBEM, olvidando pareceres positivos sobre a conduta do adolescente, inclusive com retorno à escola. (Habeas Corpus nº 75.629-8/SP, Segunda Turma do STF, Relator: Ministro Marco Aurélio, Julgado 21/10/1997)

 

 

ACÓRDÃO

 

 

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em segunda turma, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em deferir o habeas corpus para cassar o acórdão e restabelecer a sentença.

Brasília, 21 de outubro de 1997

Néri da Silveira, Presidente

Marco Aurélio, Relator

 

 

RELATÓRIO

 

O Senhor Ministro Marco Aurélio: Este habeas corpus tem o auspício da Procuradoria do Estado São Paulo, na função própria de defesa pública. O Procurador que subscreve a inicial aponta estar sendo o Paciente, menor de dezoito anos, alvo de ato de constrangimento, a cercear-lhe a liberdade de ir e vir. Foi-lhe imposta, pelo Juízo, medida de estudo social, dirigido por técnica designada, para avaliar-se-lhe a condição social e respaldo familiar, concluindo-se pela suficiência da medida sócio-educativa de liberdade assistida. Afirma o Procurador também que, desde 26 de dezembro de 1995, restou confirmada, mediante relatórios, a inexistência de vivência infracional. Por isso a liberdade assistida ficara balizada em seis meses. Ainda de acordo com a inicial, vinha o Paciente cumprindo as obrigações a si pertinentes, estando matriculado na 5ª série da rede escolar, profissionalizando-se e mantendo relação positiva com a família, não se havendo envolvido na prática de outro ato infracional quando, às vésperas da última apresentação, viu-se surpreendido com o mandado de busca e apreensão, ante a circunstância de o Ministério Público haver recorrido contra a decisão de primeira instância e logrado provimento no sentido da aplicação da medida de privação de liberdade de que cuida o artigo 122, inciso I, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Segundo esse acórdão, a continuar o Paciente com esse ritmo de vida "em breve poderá estar atuando contra a vida de outras pes-soas da sociedade, porquanto patente a falta de amparo e estrutura familiar no sentido de orientação para o convívio social sadio e harmônico".

Busca-se demonstrar a insubsistência de tal conclusão, considerados os relató-rios técnicos elaborados no campo da Psicologia e, também, o fato de, passados dois anos do ato infracional cometido, não haver retomado o Paciente a prática condenável. Sustenta-se que o mandado de busca e apreensão apanhou-o em "franco progresso em seu processo evolutivo para atingir a fase adulta". Alude-se à prova do que alegado e empolga-se o disposto no § 2º do artigo 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo o qual "em nenhuma hipótese será aplicada a internação havendo outra medida adequada". Traz-se à baila lição de Roberto João Elias, em Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo a qual:

 

"Se houver desrespeito à legislação, decretando-se a medida em casos indevidos, é cabível o habeas corpus para corrigir a injustiça. É que, conquanto a medida deva sempre ter o caráter pedagógico, mesmo assim, pelo fato de ser privativa de liberdade, representa uma violação ao princípio da legalidade". (1994, Saraiva, p. 101)

 

Pleiteou-se a concessão de liminar, bem como o deferimento final da ordem para afastar-se a internação. Com a inicial, juntaram-se aos autos as peças de fls.

Este habeas corpus foi impetrado no curso das férias de julho último, razão pela qual o pedido de concessão de medida acauteladora veio a ser apreciado pelo Presidente do Tribunal, Ministro Celso de Mello, que o deixou de agasalhar. Anexaram-se as informações de fls., nas quais consta menção à ofensa ao disposto no artigo 157, § 2º, incisos I e II, combinado com o artigo 69, todos do Código Penal, bem como à tramitação de ação. Acostou o autor das informações peças dos autos, pronunciando-se a Procuradoria Geral da República, na pena do Subprocurador Geral Doutor Edinaldo de Holanda Borges, pelo deferimento da ordem.

Estes autos vieram-me conclusos, para exame, em 6 de outubro de 1997, neles havendo lançado visto no dia 16 imediato, quando designei como data de julgamento, visando à ciência do Impetrante, a de hoje, 21 de outubro.

É o relatório.

 

 

VOTO

 

O Senhor Marco Aurélio (Relator): Inicialmente, ressalvo entendimento pes-soal sobre a competência para julgar este habeas corpus, cuja definição, continuo convencido, ocorre consideradas as pessoas envolvidas na hipótese sob exame. O Paciente não goza de prerrogativa de foro. Assim, cabe perquirir a situação daqueles que integram o Órgão apontado como coator – o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Os desembargadores estão submetidos à jurisdição direta, nos crimes comuns e de responsabilidade, do Superior Tribunal de Justiça – alínea "a" do inciso I do artigo 105 da Constituição Federal, o que atrai a pertinência do disposto na alínea "c" do referido inciso, segundo a qual compete àquela Corte julgar os habeas corpus quando o coator ou o paciente for qualquer das pessoas mencionadas na alínea "a", ou quando o coator for Ministro de Estado, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral. Todavia, até aqui este não é o entendimento prevalente. O Plenário, ao concluir o julgamento da Reclamação n. 314/DF, em que funcionou como Relator o Ministro Moreira Alves, assentou que compete ao Supremo Tribunal Federal julgar todo e qualquer habeas corpus, desde que não haja substitutivo de recurso ordinário, interposto contra ato de tribunal, ainda que não guarde a qualificação de superior. Na oportunidade, fiquei vencido na companhia honrosa dos Ministros Ilmar Galvão, Carlos Velloso e Celso de Mello, tendo findado o julgamento em 30 de novembro de 1993. Conheço do pedido ora formulado.

Assente-se o início do procedimento que desaguou no quadro revelado nestes autos: o Ministério Público do Estado de São Paulo representou, perante o Juiz de Direito da Vara da Infância Juventude da comarca de Barueri, revelando que o adolescente H. L. F., agindo em concurso e unidade de propósitos com outra pessoa não identificada, deu voz de assalto às vítimas, mediante ameaça com arma de fogo, determinando-lhes tirassem as blusas e tênis, no que foi atendido. Ao recolher a res, veio a desferir socos e pontapés contra as vítimas, ameaçando-as de morte. A ação foi notada por testemunhas e policiais, que lograram deter o Paciente, apreendendo-lhe a arma. A partir de tais premissas, indicou-se o enquadramento do ato delituoso nos incisos I e II do § 2º do artigo 157, combinado com o artigo 69 do Código Penal, cogitando-se, na representação, da observância de medida sócio-educativa. O Juízo, como já ressaltado no pequeno relato supra, determinou fossem efetivados estudos, sob o ângulo social, que revelaram encontrar-se o Paciente, à época – em setembro de 1995 – com quinze anos de idade, residindo com a genitora, pessoa do lar, bem como com o padrasto operário e um irmão de dez anos, sendo órfão de pai. Aludiu-se à boa convivência com o padrasto, desde que o Paciente contava seis anos de idade, havendo demonstrações de vínculo afetivo. Elucidou-se, mais, não ter o Paciente trabalho fixo, desenvolvendo atividades como ajudante de eletricista de um certo cunhado, sendo que manifestou desejo de retornar aos estudos, paralisados em 1994, quando cursava a 5ª série. Concluiu-se: "na entrevista, H. se portou de forma ansiosa, atenta e disponível, expressava uma crítica à sua própria situação individual e social, através de linguagem própria: "deveria ter agido de forma diferente, conversando e procurando outra forma para resolver o problema". Por sua vez, a genitora ressaltara o bom comportamento do filho, a ajuda nos afazeres domésticos, bem como haver sido o episódio o primeiro a envolvê-lo. A Assistente Social Maria Gardênia da Silva Leite assinalou ser a família aparentemente estruturada, advindo do primeiro casamento da mãe do Paciente oito filhos, sendo ele o último dessa série, estando os outros sete casados, com famílias formadas e independentes. Preconizou-se, diante desse quadro, "medida sócio-educativa de liberdade assistida", no caso, a mais adequada.

O Juízo, em contato direto com as peculiaridades da situação e com o próprio Paciente, teve em conta a estrutura da família e a viabilidade desta de propiciar-lhe a almejada reintegração social. Impôs, por isso mesmo, a liberdade assistida. Entrementes, o Órgão revisor, considerada a persistência do Ministério Público, veio a transmudar a medida em internação junto à FEBEM.

O acórdão impugnado consigna a inexistência de antecedentes perante a Vara da Infância e da Juventude, mas mesmo assim colocou-se em plano secundário tal fato, bem como o caráter positivo do parecer emitido pela Assistente Social. Falou mais alto a circunstância de, além de não estar freqüentando escola, à época do lamentável acontecimento, o Paciente, com quinze anos, não vir contando com a orientação da família, o que teria sido demonstrado pela ausência de seleção de amizades, a desaguar na busca de amparo em indivíduos que acabaram prejudicando-lhe a formação do caráter.

As premissas do acórdão não respaldam procedimento tão severo, especialmente diante do fato de o Estatuto da Criança e do Adolescente revelar ser a internação medida extrema. A realidade brasileira dispensa a justificativa, neste voto, a razão de ser, do preceito do § 2º do mencionado artigo 122. Repita-se: a liberdade assistida viabilizou a volta do Paciente aos estudos. Na declaração da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo consta registrado que:

"A direção juntamente com os professores do aluno H. L. F. – 5ª série B – noturno – declara que até a presente data o mesmo está freqüente (sic) e com bom comportamento na Unidade Escolar.

Sem mais.

Barueri, 8 de abril de 1997

 

 

Juraci Cardono César, Diretor da Escola"

O documento da FEBEM consigna o comparecimento do Paciente ao plantão, conforme agendado, e, portanto, com pontualidade, demonstrando boa aparência e postura, mantendo ótima conversação, afigurando-se com senso crítico frente à vida no cotidiano, em 13 de maio de 1997. Foi designada a data de 10 de junho de 1997 para a entrevista final, à qual faltou o Paciente, havendo sido registrado.

"O jovem não compareceu para a entrevista final conforme o agendamento, fato esse que nos causou estranheza diante dos nossos contatos anteriores. Iremos convocá-lo por aerograma."

No dia seguinte, a Coordenadora do Sistema de Apoio recebeu um telefonema por meio do qual informações acerca do caso eram solicitadas sob a alegação de que ocorrera a reforma da medida inicial, determinando-se a internação. Mais uma vez externou-se surpresa diante da justificativa para a falta de comparecimento à entrevista final, registrando-se, até mesmo, sentimento de lamentação.

Senhor Presidente, a mais não poder, caminhou-se para decisão extremada, conflitante com o § 2º do artigo 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

"Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada".

É que a solução encontrada pelo Juízo resultou em conseqüências plenamente satisfatórias.

Senhor Presidente, o sentimento de Justiça é inerente à condição humana e uma das características que mais distinguem o homem das outras espécies. Precioso demais à convivência social, há de ser reforçado como fator de aperfeiçoamento da humanidade, sob pena de grassar a desordem, o caos. O sentimento de Justiça é, quem sabe, o responsável pelos maiores feitos, pelas causas mais nobres que honram e elevam as civilizações. Pois bem, estamos diante de um caso em que se cuida de preservar, num jovem, a boa expectativa no poder da Justiça, na certeza de que os passos na direção do bem conduzirão sempre a uma vida digna. Se decidirmos de forma contrária, como convencê-lo de que vale a pena esforçar-se, reprimir os impulsos mais egoístas da sobrevivência, não ceder diante dos irresistíveis chamados do consumismo moderno, conformar-se e dar sua própria contribuição em favor da diminuição das desigualdades inerentes ao sistema capitalista?

Uma das mais belas páginas da Literatura universal dá conta de uma vida perdida por causa do furto de um pão. Trata-se da pungente obra de Victor Hugo, Os Miseráveis. Tal denúncia, ainda que relatada com matizes artísticos, provocou posteriormente verdadeira revolução nos métodos punitivos e na concepção da pena. A França, berço das liberdades democráticas, rendeu-se à força do apelo em favor da humanização da pena. Toda a humanidade refletiu e aprendeu. Não poderemos jamais olvidar tal acontecimento.

Ora, guardadas as devidas proporções, estamos diante de uma situação parecida: o Paciente foi condenado à medida extrema de internação por haver desejado para si peças de roupa e calçados de outrem e para isso usou a força. Foi um erro, que reconheceu e do qual se arrependeu. À época, o Juízo lhe asseverou que, cumpridas as determinações que se lhe impunham, seria "perdoado". Deu-se-lhe nova chance, até mesmo em reconhecimento à falibilidade da natureza humana. O jovem redimiu-se perante o tecido social, mostrando boa vontade, apesar dos obstáculos: voltou a estudar, resolveu aprender um ofício e, se tinha personalidade agressiva, dominou-a completamente, como atestam seus professores. Honrou louvavelmente o ajuste a que se comprometeu. Eis, entrementes, que a outra parte foge ao compromisso: as demonstrações de bom comportamento, de lisura, enfim, de plena remissão não foram consideradas suficientes ao rigoroso crivo do Órgão revisor que, de uma feita, ignorou todos os esforços do Paciente – e nunca saberemos, na realidade, quão imensos poderão ter sido, porque temos uma enorme dificuldade de calçar os sapatos com os pés dos outros.

Muito já se disse sobre o objetivo reparador da punição. É hora, portanto, de fazer valer a coerência: a existência do erro demanda a reparação. Um deslize não pode levar à condenação definitiva, senão desnecessária afigurar-se-ia a pena: melhor seria poupar os parcos recursos públicos e partir-se para a absoluta rejeição desse ser humano como peça irremediavelmente defeituosa, recusando-se-lhe a oportunidade de soerguer-se. Todavia, a História é testemunha contundente do poder do perdão no resgate dos seres humanos, força esta que, na maioria das vezes, tem efeito cicatrizante, curando mazelas que acontecem, num átimo de segundo, por um desatino, e não podem macular uma vida inteira. Por isso vale o crédito no sentido aperfeiçoador da pena – que, cabe lembrar, vem também da censura pública, da desaprovação social – mostrando-se um contra-senso anuir-se com uma decisão que redunde no agravamento do estado do Paciente, resultado indiscutível da convivência com internos contumazes.

Diante do exposto, concedo a ordem para cassar o acórdão proferido, restabelecendo, assim, o quadro revelado em sentença.

É o meu voto.

 

 

VOTO

O Senhor Ministro Maurício Corrêa: Senhor Presidente, julgamos na Turma matéria similar, mas não com essa bem lançada fundamentação ora feita pelo eminente Ministro Marco Aurélio, cujo voto acompanho para conceder a ordem.