PORQUÊ EDUCAR PARA A PAZ
Martha Jalali Rabbani
Pedagoga
pela UNICAMP e Doutora em Humanidades pela Universidade Jaime I na Espanha.
Assessora Técnica do INPAZ.
Partindo de uma definição
positiva da paz como justiça, educar os seres humanos para uma sociedade
pacífica é tarefa especialmente desafiadora. Jamais houve na história humana
uma sociedade pacífica e ao mesmo tempo justa, ou seja, vivendo em justa paz.
Tampouco os problemas humanos foram tão complexos e de tal magnitude no que se
refere às exigências de sua solução.
A realidade de nossa sociedade moderna se assemelha ao conto do beduíno que vivia no deserto com seu camelo, vendendo água aos viajantes. Uma manhã, ao despertar, o beduíno observa incrédulo como seu camelo continuava dormindo. Pensa consigo que o animal talvez esteja ferido e começa um detalhado exame. Verifica cautelosamente suas patas, suas orelhas, seus olhos, sua boca e nariz. Todas as partes estavam, no entanto, intactas e bem compostas, o camelo parecia normal, como sempre. O beduíno não conseguia identificar o real problema porque não havia visto um camelo morto até então...
Em nossas sociedades modernizadas, altamente evoluídas, com um acúmulo de conhecimento e técnica sem precedentes, e com recursos materiais suficientes para garantir a satisfação das necessidades básicas de todos os seres humanos, nos perguntamos: onde está o problema, por que não conseguimos criar um mundo que em nossas intuições morais mais profundas sabemos desejar? Por que, apesar de sua aparente normal prosperidade, nossa “sociedade-camelo” está repleta de violência direta, estrutural e cultural – que é justamente a inversão dos valores humanos, a perda do referencial, do horizonte moral a partir do qual podemos discernir o bem do mal, o justo do injusto?
Intuir, imaginar,
compreender a razão da violência, da pobreza, das injustiças, é tarefa difícil,
mas não impossível. Exige, sem dúvida, um esforço coletivo por buscar soluções
comuns e consensuais, através de um diálogo que reconheça a todos os seres
humanos como interlocutores válidos. Requer também uma educação para a paz, ou
seja, para o diálogo e para o respeito e exercício dos princípios que se
acordem a partir desse diálogo.
Entretanto, como pedra
angular de nosso esforço por criar um mundo mais pacífico está a compreensão do
elemento vital que falta à nossa sociedade. Sem essa compreensão, o argumento
pelo diálogo da sociedade civil e por uma educação que o promova se reduz a uma
simples decisão estratégica, a um acordo tácito para garantir unicamente a
sobrevivência da espécie ou uma paz sem justiça, um corpo sem alma.
Quero sugerir que a alma que nos falta, que nos diz porque é
valiosa a paz e justifica o valor de uma educação para a paz e o diálogo, é a
consciência da Unidade Humana. A
verdade da Unidade está além do consenso que possamos alcançar os seres
humanos, é um princípio universal cuja existência permite e dá sentido à busca
do diálogo. O argumento de que devemos educar e atuar para a paz se mantém a
partir da consciência de que compartilhamos igualmente uma mesma condição, a
condição da liberdade e de que
interdependemos uns dos outros na necessidade
do reconhecimento, para exercer essa liberdade.
Quando reconhecemos a
Unidade dos seres humanos, e educar nessa verdade deveria ser a primeira
preocupação dos educadores para a paz, já não podemos dividir o mundo em
vencedores e perdedores, superiores e inferiores. Passamos a compreender que
nossa própria humanidade é função das relações de reconhecimento que
estabelecemos com os demais e que nessa relação dependemos igualmente uns dos
outros. Compreendemos que a divisão e dependência só são possíveis quando
reduzimos nosso valor ao que temos e
que, no entanto, não são nossas posses mas nossa capacidade de criar e
valorizar esses objetos o que determina nosso valor como seres humanos.
A capacidade de criação, a liberdade, todos os seres humanos a
temos por igual, como seres humanos que somos. Não obstante, a expressão da
liberdade se dá com a compreensão e o respeito à nossa Unidade, a nossa igual
necessidade de reconhecer e ser reconhecidos como livres para potencializar
nossa liberdade. Se argumentamos por uma educação para
a paz, a justiça, a cooperação e a solidariedade, não é simplesmente porque
queremos continuar vivos ou também consumir mais e ter melhor qualidade de vida
material, como um corpo sem alma.
Defendemos a Educação para a
Paz como forma de conscientizar os seres humanos de que são unidos, ou iguais e
interdependentes, e que, portanto, só a ação que siga o princípio universal da
Unidade pode fazer justiça à nossa humanidade ou tornar todos e cada um
plenamente humanos, livres.
Quando nos
referimos à justiça ou à uma sociedade justa, sua
condição de possibilidade, seu requisito fundamental, não são leis que tratem a
todos como iguais, que não discriminem as distintas realizações de seus
participantes. Tampouco é uma sociedade que assegure a liberdade de cada
indivíduo, sempre que não interfira na liberdade alheia. Esses requisitos são
válidos somente quando fundamentados na condição primordial de toda relação de
justiça: a consciência da
interdependência humana em sua necessidade de reconhecimento para a
auto-realização.
Essa consciência
primordial da interdependência humana é o que permite a reapropriação
de uma norma ou convenção social e sua transformação em uma realização, ou em
uma realidade com sentido e valor singular para cada pessoa. O sentido e o
valor de qualquer realidade é função do questionamento, do dar e demandar
razões para a construção do seu porquê. Poderíamos dizer em outras palavras,
então, que uma sociedade justa é aquela
que permite a oposição, a crítica, não pelo valor da oposição em si mas para a
permanente construção coletiva do porquê dessa sociedade e, portanto, para a
auto-realização de seus membros.
Como a
justiça das leis e de uma determinada sociedade é função do reconhecimento, pelos
seus membros, da sua interdependência, antes de tudo há que promover esse
reconhecimento. E este basicamente é o objetivo de uma educação para paz: contribuir para uma ordem justa, global ou local, promovendo o reconhecimento de nossa
interdependência ou unidade na realização de nossa humanidade.
Podemos
dizer, em outras palavras, que a auto-realização, ou a valorização e o sentido
de qualquer realidade, depende da relação de reconhecimento entre os seres
humanos. O reconhecimento que nos une por uma razão particular como membros de
uma comunidade ou grupo social, termina levando a uma compreensão limitada de
nossas ações. Como não permite transcender a inevitabilidade e especificidade
totalizadora das normas e costumes da comunidade ou alterar os fundamentos de
suas relações – o modelo de reconhecimento social – tampouco permite que as
ações de seus membros se transformem em realizações.
O
reconhecimento da unidade humana, por sua vez, só é possível através de um
procedimento dialógico ou de uma educação em
paz. O diálogo tanto reflete o
reconhecimento da unidade humana como a promove. Só aceitamos dialogar com
um outro igual e ao mesmo tempo distinto. É o reconhecimento da condição de
igualdade do outro, ou sua capacidade de compreensão, e ao mesmo tempo
acreditar que esse outro tem algo a dizer que desconhecemos, que nos leva a dar
e demandar razões mutuamente. É por isso que dizemos que o diálogo parte da
suposição da unidade humana, ou da igualdade e diversidade, determinando sua
interdependência.
Além disso,
o diálogo promove a unidade ou a auto-realização coletiva. Quando além das
razões específicas que damos para reconhecer a humanidade do outro, nos
reconhecemos também por nossa interdependência na necessidade de reconhecimento
para realização, deixamos de saber apenas o significado
– o que se deve fazer ou deixar de fazer para garantir o reconhecimento – para
compreender também o sentido e o valor das experiências comunitárias. O sentido de nossa prática está em sua
universalidade, ou seja, em elevar o específico ao nível de princípio e
identificar esses princípios em distintas situações. O valor está na ampliação das possibilidades de ação em vez de sua
redução[1].
A relação
dialógica permite essa compreensão de nossos valores posto que, por definição,
não restringe o questionamento às realizações comunitárias. Não exclui ninguém
ou nenhuma crítica em nome do reconhecimento de realizações ou razões
particulares, ou melhor, de dogmas e doutrinações, já que não podem ser
questionados. O questionamento tem o objetivo de esclarecer as vontades e
interesses que essas realizações representam e recriá-las em consonância com as
vontades singulares de cada um.
Se o
reconhecimento é destinado somente a aqueles que atuam de acordo com
determinadas normas, como ao aluno que mais agrada ao professor, ou seja, está
condicionado a uma realização pré-determinada, não há então como questionar e
compreender o valor dessa norma.
Se, por
outro lado, as pessoas são reconhecidas antes de tudo pela forma insubstituível
como definem nossa existência, então participar em uma relação de diálogo se
torna vital para a produção de
realizações e a justiça social. Não há diferença se essas são realizações
científicas, religiosas ou culturais. Quando o processo de aprendizagem e
aquisição desses valores e realizações culturais não permite a compreensão de
seu sentido e a valorização individual, então sua existência se mantém através
da reprodução. E qualquer reprodução
submete o ser humano às suas exigências em vez de estar submetido a este.
É
importante esclarecer que os seres humanos não são livres para decidir sobre as
normas e convenções que querem seguir. Ainda que isso possa ocorrer, a
liberdade, no sentido de auto-realização que estamos utilizando aqui, se refere
à compreensão da realidade ou apropriação dos valores sociais, tornando-lhes
próprios. Somos livres assim porque todos e cada um podemos compreender a mesma
realidade de forma única e irrepetível.
Toda
crítica à opressão e injustiça social parte da aceitação da singularidade
humana. Do contrário não haveria como sustentar a interdependência (partes
idênticas não se necessitam) e estaria justificada a dependência de alguns em
relação a outros. Como dependentes não temos outra opção a não ser submeter-nos
à vontade daquele de quem dependemos. Nossa reflexão é justamente no sentido de
argumentar que qualquer dependência entre os seres humanos é aparente, que se
mantém por uma relação de reconhecimento e que, sobrepondo-se a realização ao
reconhecimento, impossibilita-se o fim natural do reconhecimento: a realização.
Romper com a dependência e apropriar-se do sentido e valor da própria
experiência se vem dando historicamente de distintas formas. Na medida
em que essas novas relações permitem a seus participantes uma contínua
compreensão de seus fundamentos e sua conseqüente recriação, a ordem que essas
relações criam é justa. Quando os símbolos e valores de uma sociedade – como,
por exemplo, o conhecimento formal que transmitem as escolas – se consolidam ao ponto de determinar as relações de reconhecimento,
inevitavelmente essa sociedade começa a autodestruir-se. Leis e regulamentos
são criados que, sem valor e sentido, são violados e reforçados por novas leis
e assim sucessivamente em uma cadeia de opressão coletiva. Como essa ordem não
consegue mais transformar o querer de seus membros em poder (não permite a
auto-realização), será então substituída por uma nova que, no caso de que não
esteja fundamentada na consciência da interdependência, será tão opressora como
a anterior.
É a formação coletiva das vontades individuais através
do diálogo, a participação de todos os afetados na construção do sentido e
valor dos fundamentos de sua relação, o que permite a realização e determina a
justiça de determinada ordem social.
A Educação Dialógica
Educar
para a paz é uma forma de romper com a dependência, ajudando na compreensão das
realizações coletivas e promovendo a realização individual através de uma
educação dialógica. Mais que uma determinada informação, educar para a paz é favorecer
uma determinada relação, independente do conteúdo ensinado – ainda que
evidentemente alguns conteúdos estejam diretamente mais relacionados com a paz
que outros. Seu objetivo é educar para a consciência da razão fundamental pela
qual os seres humanos se unem, identificar quando essa razão está sendo
desvirtuada e atuar para a justiça das relações. Essa consciência se forma e se
expressa através de relações que não excluam a ninguém, que permitam a todos os
participantes confrontar suas vontades, decidir sobre os fundamentos de suas
relações, construir coletivamente os símbolos e valores de sua comunidade.
Educar
para paz requer assim um determinado procedimento, uma metodologia de ensino: a
metodologia da educação dialógica. Tradicionalmente a educação tem sido
unilateral ou monológica, do professor para o aluno e
sobre um conhecimento e uma verdade prontas para serem apreendidas. A relação
entre professor e aluno tem sido entre observadores. Entre objetos que,
privados de seu poder ser singular ou de sua liberdade, se têm submetido à
força do “conhecimento científico”. A dependência do saber, presente nesse
modelo educacional, tem impossibilitado a auto-realização tanto de alunos como
professores.
A única forma de se permitir
uma autorealização coletiva é através do diálogo. Em
termos da relação de ensino e aprendizagem isso significa ser reconhecido como
um igual na construção do conhecimento e não como um inferior ou superior em
posse de um saber que garante o reconhecimento. Quem pode interpelar ao outro
ou participar no dar e demandar razões para o que está ensinando, ou seja,
dialogar, está em realidade expressando sua singularidade e permitindo ao outro
que expresse a sua. Compreendendo o sentido e o valor do próprio ato de
participar e da informação que se recebe sobre a paz, sobre os problemas e
injustiças sociais, aluno e professor passam a relacionar-se dessa mesma forma
também em outros contextos. Reconhecem a sua igualdade e interdependência e
expõem suas afirmações ao questionamento dos demais, solucionando qualquer
problema ou tomando decisões sempre coletivas e nunca individuais.
Por isso justamente não é
suficiente educar sobre a paz, sobre alguns determinados valores e
símbolos de reconhecimento, sobre uma determinada verdade. Tal educação prepara
para uma situação existente, para a manutenção das relações como estão, não
prepara, todavia, para sua transformação. Quando, além de saber que devemos
relacionar-nos com todos os seres humanos como iguais, também dialogamos,
estamos tendo a iniciativa de mudar as estruturas sociais e não só nos
adaptando a elas.
O
indivíduo que tenha aprendido monologicamente, ainda
que seja sobre a paz, entende tal ação como um dever, uma obrigação imposta
como condição para o reconhecimento de seus semelhantes, seu professor, seus
colegas, família, etc. Parece-lhe mais vantajoso atuar de determinada forma,
posto que lhe garante a satisfação do reconhecimento. Não percebe, além disso,
em que medida suas ações e decisões se contradizem mutuamente, impossibilitando
a auto-realização.
A educação através do
diálogo, ou em paz, por sua vez,
implica que o professor expõe suas verdades à crítica e critica a verdade dos
demais, facilitando a sua auto-realização e a dos alunos. A oportunidade de
participar em um questionamento coletivo do saber legitimado permite a reapropriação desse saber, com um sentido e valor único
para cada um. A educação dialógica forma cidadãos que criticam os símbolos de
reconhecimento porque não temem ser excluídos ou perder a referência do que
leva à realização. De fato, esse aluno continua tão dependente do
reconhecimento de seus semelhantes como os demais. Essa dependência enquanto
interdependência, entretanto, lhe dá a liberdade de reapropriar-se
dos objetos de reconhecimento e modelá-los de acordo com a própria
singularidade.
Sem a possibilidade de
participar no processo de ensino e aprendizagem e compreender o sentido das
informações que recebemos, é impossível educar para a paz ou para exercício da
liberdade criadora, para a realização humana.
Notas
[1] Por exemplo, se compreendo o sentido do amor ao próximo, sou
capaz de amar a todos os seres humanos e não apenas aqueles que me ensinaram a
amar ou quando esteja com aqueles cujo reconhecimento valorizo particularmente.
O amor se torna uma questão de princípio, amo inclusive os que não conheço ou
os que não me amam. O valor desse princípio deixa de estar restrito ao seu
poder de regulação e controle de minha atitude para permitir infinitas
expressões de minha capacidade de amar, isto é, deixa de limitar para liberar o
meu ser.