ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: UMA LEI “GARANTISTA” E “RESPONSABILIZANTE”

 

 

Mauro Campello

 

 

O ECA no banco dos réus

 

Nos últimos anos, tem-se acirrado no Brasil um amplo debate sobre a violência praticada por adolescentes, sua suposta impunidade e a apresentação das mais diversas soluções para estas questões.

 

As notícias que são veiculadas diariamente em todos os periódicos de nosso país, retratando ações isoladas ou o envolvimento de adolescentes em grupos comandados por maiores na prática de infrações bárbaras ou no crime organizado, deixa-nos cada vez mais perplexos e estarrecidos pela crueldade e malvadeza que os caracterizam.

 

Estes jovens demostram a insensibilidade e o desprezo pela vida alheia e até pela própria, produzindo e reproduzindo atos de violência, absolutamente desmotivados, desprovidos de qualquer sentido. Estes atos atualmente não são praticados apenas por adolescentes, registrando-se casos de envolvimento de crianças, o que nos assusta ainda mais.

 

Tais características de comportamento, torna evidente que a delinqüência juvenil está a merecer reflexões aprofundadas e urgentes e que, na verdade, extrapolam questões jurídicas e soluções meramente legislativas de natureza repressiva, para situar-se num campo mais amplo e diversificado, que possibilite uma análise global do problema.

 

Dessa forma, sem qualquer pretensão de realizar nesta oportunidade uma análise aprofundada da questão, cumpre-nos o dever de pelo menos situá-la dentro de parâmetros técnicos, que geralmente não são abordados nas discussões, em especial naquelas promovidas pelos meios de comunicação de massa, pois buscam dar um caráter sensacionalista, gerando uma “histeria social”, que acaba legitimando no imaginário social uma resposta violenta aos adolescentes ou mesmo às crianças que venham a cometer uma infração penal, indo desde a redução da responsabilidade penal até a pena de morte.  

 

O crescente índice de infrações cometidas por adolescentes na maioria dos Estados, nada mais representa do que o reflexo do aumento da crise econômica e da incapacidade do Poder Público em promover o reequilíbrio social.

 

É flagrante nos municípios a falta de apoio que os jovens e suas famílias necessitam e que deveria ser colocado à disposição destes por parte do Poder Público e da própria sociedade, para que preventivamente evitasse o ingresso dos adolescentes na delinqüência.

 

A ausência de políticas públicas na área infanto-juvenil ou da qualidade do atendimento dos poucos programas que existem, está levando os jovens brasileiros a adentrarem a passos largos no caminho da marginalidade, a olho nu da sociedade, fazendo de nossos adolescentes verdadeiros personagens da trágica dramaturgia, na qual só existem vítimas.

Nós, atores sociais, que estamos ligados diretamente às questões referentes à área infanto-juvenil, percebemos que a violência destes adolescentes, nada mais reflete do que a violência do meio em que vivem.

 

A desestrutura familiar, a falta de programas sociais e de políticas educacionais e de saúde, aliadas à crise econômica, ao desemprego, ao desvio de verbas públicas e à recessão, somados às cenas de violência transmitidas cotidianamente pelos meios de comunicação, integram todos estes o conjunto dos principais vilões da geração dessa entre os jovens. Os adolescentes como verdadeiros atores do teatro da vida, ao subirem no palco, acabam exprimindo como resposta para esta mesma sociedade, os atos de violência que sofrem e convivem.

 

A verdade é que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), vigente desde outubro de 1990, ou seja, 10 anos, nunca foi aplicado na sua globalidade, tornando-se erroneamente para a população como o grande criador do aumento da delinqüência juvenil e de sua impunidade.

 

Esta legislação, ao contrário do que muitos pensam, prevê e estimula ações práticas e concretas de prevenção à delinqüência e de controle desta, mediante uma política de atendimento e de um sistema de responsabilização sócio-educativo, com a previsão de sanções progressivas a serem aplicadas aos adolescentes que cometam ato infracional, que são: a advertência, a obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a semiliberdade e a internação em estabelecimento educacional, todas estas capazes de evitar a reincidência, preparando-os para o exercício da cidadania.

 

O descaso nas políticas de prevenção e no controle da delinqüência juvenil

 

Por outro lado, também é verdade que em quase todos os Estados e Municípios os sistemas de prevenção e de controle judicial da delinqüência ainda estão bastante atrasados.

 

Nossas crianças e adolescentes estão crescendo abandonados, desnutridos, sem afeto, sem teto, sem saúde, sem educação, explorados e convivendo diretamente com a violência, por falta de políticas públicas básicas, ou melhor, pela ausência do sistema de prevenção.

 

Assim, após a promulgação do ECA pouco foi feito ou mudado para atender de educação, saúde, segurança, assistência social e de justiça os jovens e seus familiares.

 

Ao contrário, estamos assistindo a total falta de sensibilidade dos administradores e políticos que, a pretexto de ajustarem seus orçamentos, cortam serviços, verbas e funcionários destinados a atender os poucos programas existentes para os nossos jovens, como se fossem objetos descartáveis, dispensáveis ou supérfluos.

 

O compromisso com a profissão que abraçamos e com a área de atuação escolhida, faz-nos conclamar por uma mobilização social tendente a priorizar a implantação de ações de qualidade na área educacional, como a da gestão colegiada, a autonomia financeira da escola, o horário integral desta, a qualificação permanente dos professores, a existência de creches nos bairros, o retorno a nossas praças de projetos de arte, música, poesia e esporte, e na área da saúde a existência dos programas médico da família, de vacinação, de saneamento básico e de prevenção e tratamento às questões das drogas. Não podendo esquecer da família, com projetos habitacionais, de geração de renda e de emprego e de atendimento psicossocial.

 

Observa-se que estas ações estão previstas no ECA, no capítulo que trata sobre a política de atendimento, referente às políticas sociais básicas e aos programas de prevenção à situação de risco pessoal e social de nossas crianças e adolescentes, necessitando apenas da vontade política de colocá-los em prática.

 

Na área do controle judicial da delinqüência juvenil, verifica-se que tampouco foi feito ou mudado pela Justiça no sentido de se aperfeiçoar com rapidez o atendimento das necessidades dos jovens que acabam ingressando neste sistema.

 

Não podemos mais ficar com a venda da hipocrisia a tapar nossos olhos, atribuindo somente à legislação vigente, aos demais poderes ou à sociedade, a culpa pelo aumento da violência juvenil. Urge que os atores do novo sistema de controle judicial da delinqüência juvenil criem e desenvolvam programas que visem ações de articulação e parcerias, para a agilização dos procedimentos referentes ao adolescente autor de ato infracional.

 

Rua-delegacia-rua: um ciclo vicioso

 

A lentidão da Justiça da Infância e da Juventude na prestação da tutela jurisdicional tem sido um dos fatores de descrédito e da sensação de impunidade, quanto à questão do controle da delinqüência juvenil no Brasil, entre a opinião pública, a mídia e a polícia.

 

É comum ouvir-se o questionamento “do que adianta apreender o adolescente num dia se no outro dia ele estará nas ruas?”, ou mesmo a crítica direta de que o Estatuto é uma lei da Suíça que apenas garante direitos aos menores, não os responsabilizando por suas condutas delituosas. É a falsa idéia de que a legislação em vigor propicia um ciclo vicioso ao adolescente em conflito com a lei, ou seja, “RUA-DELEGACIA-RUA”.

 

Todavia isto não é verdade. O ECA criou no Brasil um sistema de controle judicial da delinqüência juvenil, baseado na responsabilização sócio-educativa dos jovens entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade, que venham a descrever um comportamento definido como crime ou contravenção penal, denominado ato infracional.

 

Dessa maneira, as leis penais são o ponto de referência para a verificação se a conduta de um adolescente caracterizou-se em ato infracional, a fim de que possa ser responsabilizado.

 

Portanto, a atual legislação, introduziu no Brasil, pela primeira vez, a responsabilidade sócio-educativa ao adolescente autor de ato infracional a partir dos 12 (doze) anos de idade.

Isto significa, que o jovem com apenas 12 (doze) anos de idade e que venha a cometer um crime ou contravenção penal, poderá ser apreendido em flagrante, sofrerá uma acusação por um promotor e terá direito a se defender através de um advogado, ou por outras palavras, sentará no banco dos réus, mesmo com esta tenra idade, juntamente com seus pais ou responsável, para ser julgado por um juiz de direito, cuja sentença que reconhecer a prática do ato infracional terá natureza condenatória e autorizará a aplicação no adolescente de uma ou mais sanções, perdendo a sua primariedade, como efeito da decisão que o condenar.

O Estatuto responsabiliza o adolescente autor de ato infracional mediante um devido processo legal, estabelecendo sanções, sob a forma de medidas sócio-educativas. É o marco histórico do rompimento do paradigma da legislação anterior, que permitia a internação do adolescente como medida de tratamento, sem direito à defesa e sem determinação de tempo.

 

Ao adolescente em conflito com a lei foi-lhe assegurado pela nova legislação, o direito de se defender de uma acusação formal através de advogado; o direito de receber todas as informações sobre sua situação processual e seus direitos; a comunicação imediata de sua apreensão ao juiz, à família ou a qualquer pessoa que o adolescente indique; além dessa apreensão só acontecer em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada do juiz. Direitos estes iguais ao do cidadão maior de 18 (dezoito) anos, que venha a cometer uma infração penal.

 

As garantias processuais indicam a possibilidade de um julgamento mais justo e mais eficiente no rompimento do processo de delinqüência juvenil, além de evitar a discriminação de cor e de situação econômica entre os adolescentes que são apresentados na Justiça.

 

O julgamento com as garantias processuais tem maior eficácia na responsabilização do adolescente, pois ele estará ciente de que suas justificativas estão sendo consideradas e de que há uma autoridade isenta examinando seu comportamento à luz das normas do convívio social.

 

Respeitando a normativa internacional e de acordo com a Constituição Federal, o Estatuto transformou radicalmente o ordenamento jurídico vigente há época, ao reconhecer o adolescente não mais como objeto de direito e sim como sujeito de direito, propiciando a formação de um devido processo legal, com prazos menores e formas mais simplificadas do que a atual legislação processual penal, favorecendo desta forma o surgimento de um procedimento capaz de alcançar um julgamento mais rápido.

 

Com essa mudança de paradigma, uma nova era foi implantada em nosso sistema jurídico, exigindo o reordenamento do Sistema de Justiça da Infância e da Juventude e das entidades executoras das medidas sócio-educativas.

 

Justiça Dinâmica – Um novo conceito de atuação

 

Assim, a Vara da Infância e da Juventude de Boa Vista/RR elaborou um projeto juntamente com a sociedade e órgãos governamentais para implementar o novo sistema de controle judicial da delinqüência juvenil, com envolvimento de todos os participantes e com a finalidade de agilizar os julgamentos para diminuir o número de processos e a reincidência.

Em 01 de agosto de 1998, o Juizado lançou o programa denominado “JUSTIÇA DINÂMICA”, a fim de executar todos os procedimentos necessários à responsabilização do adolescente no período de tempo mais próximo do cometimento da infração, através de trabalho articulado entre os agentes do novo sistema.

 

Para a implementação dos procedimentos exigidos na legislação, foram realizados diversos cursos de capacitação para todos os atores envolvidos neste sistema de justiça. Estes cursos tiveram como objeto a compreensão da nova doutrina da Proteção Integral e sobretudo da existência de vidas dentro dos processos, demonstrando que o funcionamento do sistema para uma imediata solução do caso dependia da rapidez de suas atuações.

 

Um  novo conceito de atuação estava lançado, onde cada colaborador da Justiça Infanto-Juvenil conseguiu visualizar vidas nas páginas e carimbos dos autos do processo, passando a obedecer os prazos previstos no ECA, e consequentemente proporcionando a ordem normal do processo, quase sempre concluído no mesmo dia, ou dentro do prazo máximo de 45 (quarenta e cinco) dias.

 

Ao juiz facilitou a sua tarefa de julgar, visto que o processo passou a ser bem conduzido e ao adolescente possibilitou o recebimento imediato da resposta ao seu comportamento tipificado como ato infracional, com a sua inclusão em um processo sócio-pedagógico capaz de romper com a caminhada da delinqüência e evitar a reincidência.

 

Dessa forma, o primeiro passo para implantação do programa foi reduzir todos os procedimentos antigos relativos a adolescentes em conflito com a lei, organizando-se um amplo mutirão nos setores do Juizado, com a realização diária de 10 audiências, ou seja, 210 audiências mensais. Com isto, a Vara não ficou mais amarrada a uma infinidade de processos antigos que impediam o rápido atendimento dos casos do momento.

 

Ao mesmo tempo, o Tribunal de Justiça dispensou todo apoio à implantação do programa no Juizado, não medindo esforços em adequar novos espaços físicos para a execução deste em uma mesma sede, bem como de informatizar os setores de atendimento, instalando, inclusive, o programa SIPIA do Ministério da Justiça.

 

Com o apoio necessário e com o número suficiente de servidores, o Juizado ampliou o seu horário de atendimento passando a ser feito das 07h30min às 18h, em todos os dias úteis, contando nos finais de semana e feriados com plantões, o que se denominou nesta fase de implantação do programa de “Plantão Integral”.

 

Com o atendimento imediato evitou-se que o decurso do tempo para o julgamento do caso acarretasse a desresponsabilização do adolescente, que acabaria contribuindo para sua permanência na trajetória de marginalização e da idéia de impunidade.

 

O programa, através de ações articuladas e integradas, teve o condão de romper com preconceitos e posições corporativistas, fazendo com que o magistrado saísse de seu “castelo” e passasse a compartilhar suas decisões com todos os novos atores do sistema, sem perder sua autoridade definida no ECA.

 

Esse programa rompeu também com o caldo de cultura gerado pela idéia de impunidade do adolescente que mata, rouba, estupra e comercializa drogas, para passarmos ao que determina a lei – a responsabilização do adolescente infrator, aplicando a este uma sanção, medida necessária a evitar a reincidência e assim romper com seu processo de delinqüência.  

O programa proporcionou uma definição clara do andamento do processo e das atribuições dos atores do sistema (Polícias Militar e Civil, Ministério Público, Defensoria Pública, Juizado da Infância e da Juventude e Entidades de atendimento).

 

No Juizado, os servidores foram envolvidos na realização de suas tarefas através de capacitação, treinamento e de reuniões constantes de avaliação e planejamento, que ocorriam às sextas-feiras.

 

O cartório passou a agilizar os processos de forma simples e prática, dividindo-se em setores de atuação: do ato infracional, do cível e da execução de medidas.

 

O setor interprofissional assumiu sua verdadeira identidade dividindo-se também em grupos de atuação nas áreas infracional, execução de medidas sócio-educativas e cível. O primeiro grupo procede uma imediata intervenção no adolescente em conflito com a lei e seus familiares, elaborando não só o estudo de caso, como indica ao Juízo a melhor medida a ser aplicada no caso de reconhecimento da prática do ato infracional. Garante nesta intervenção, em sendo necessária, a escolarização, saúde, assistência social e outros programas necessários ao desenvolvimento do adolescente e seus familiares, conscientizando estes últimos da responsabilidade em acompanhar o filho em todo o processo. O segundo grupo elabora uma rotina de fiscalização das entidades executoras dos programas sócio-educativos, monitorando sua proposta pedagógica e articulando a sua melhoria, além de acompanhar cada processo judicial de execução da medida, emitindo pareceres visando auxiliar o Juiz. O último grupo, que atua na área cível, além de assessorar o Juízo em processos desta natureza (adoção, guarda, destituição ou suspensão de pátrio poder, alimentos, etc.), desenvolve programas de reatamento e manutenção do vínculo familiar em parceria com outros órgãos.

 

A divisão de proteção a infância e a juventude (antigo comissariado de menores) criou diversas equipes, desde a de fiscalização de bares, boates, festas, desfiles, aeroportos e rodoviárias, até uma equipe de busca e localização de adolescentes e seus familiares, onde geralmente conseguem localizar membros da família extensa do adolescente, facilitando dessa forma a intervenção do setor interprofissional e das entidades executoras de programas, no fortalecimento dos vínculos familiares.

 

O programa “Justiça Dinâmica” ainda foi mais criativo, pois propiciou ao Judiciário roraimense ser o primeiro no Brasil a criar as assessorias de projeto e de comunicação, inovações estas que ocorreram sob orientações dos Desembargadores Amaral e Silva (SC) e Marcel Hoppe (RS), para desempenharem as funções de divulgação das ações da área infanto-juvenil, de melhor relacionamento e esclarecimento com os meios de comunicação e elaboração de projetos de ponta, para implementação do ECA.

 

Com essa mudança de paradigma, a eficácia do programa “Justiça Dinâmica” alcançou dados estatísticos surpreendentes no ano de 1999, que demonstram que esta ação é capaz de controlar a delinqüência juvenil, especialmente com a aplicação das medidas sócio-educativas em regime aberto.

 

Com a criação e instalação do programa “Justiça Dinâmica”, a Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Boa Vista/RR, que no passado chegou a ter 2.036 processos em tramitação, conseguiu alcançar a marca histórica de 677 processos em andamento, com previsão de ter até dezembro do corrente ano aproximadamente 400 processos aguardando sentença, o que representa uma redução de 81 % de feitos, adequando-se a um número ideal de processos sob responsabilidade de um Juiz, segundo indicadores da AMB - Associação dos Magistrados do Brasil.

 

Inimputabilidade não significa impunidade

 

A Doutrina da Proteção Integral, esculpida em documentos internacionais, em especial nas Regras de Beijing, nas Diretrizes de Riad e nas Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, trouxe para os cultores do novo Direito da Criança e do Adolescente uma nova espécie de sanção, de caráter sócio-educativo, como resposta ao cometimento pelo adolescente de um ato infracional, sem qualquer natureza punitiva, ou melhor, sem correspondência de pena.

 

A Constituição Federal considera o adolescente inimputável, sujeitando-o às normas da legislação especial, além de tratá-lo como uma pessoa em desenvolvimento, titular não só de direitos universais mas também de direitos peculiares à sua idade.

 

Logo, o adolescente que pratique um ato infracional não poderá ter como resposta a esta conduta a aplicação de uma sanção penal e sim a aplicação, quando necessária, de uma ou mais medidas sócio-educativas previstas no ECA.

 

Como se observa do Estatuto a inimputabilidade dos adolescentes autores de delitos não implica em sua irresponsabilidade e impunidade, ficando estes sujeitos à medidas sócio-educativas, inclusive de natureza restritiva ou privativa de liberdade.

 

Assim, na Comarca de Boa Vista/RR foi estruturada uma política de atendimento sócio-educativa, viabilizando-se a aplicação e execução de todas as medidas previstas na lei.

 

As medidas sócio-educativas como processos educacionais especiais, que contemplam propostas sócio-pedagógicas, ou seja, mecanismos próprios e eficazes, são capazes de modificar as situações de fato existentes e que foram causadoras da prática do ato infracional, possibilitando ao sócio-educando um despertar de sua responsabilidade social, a fim de evitar a reincidência.

 

Verifica-se em Roraima que ao adotar esta nova filosofia a reincidência não chegou a 1% dos sócio-educandos que ingressaram no sistema de controle judicial da delinqüência juvenil, além de não registrar rebeliões na instituição destinada ao cumprimento das medidas em regime fechado.

 

É o rompimento de qualidade, do antigo paradigma, retratado no binômio culpa/castigo para o novo paradigma culpa/educação, que fez o Estado de Roraima ser distinguido pelo Unicef em 1998 com dois “Prêmios Sócio-Educando”, referentes às execuções de medidas sócio-educativas de internação e semiliberdade (Programa Centro Sócio-Educativo) e Prestação de Serviço à Comunidade (Programa Trabalhando o Futuro).

 

A nossa sociedade durante séculos criou e desenvolveu uma cultura punitiva, não inventando, até a virada deste, uma resposta efetiva à diminuição da criminalidade. Preocupou-se apenas em modernizar o tipo de punição, buscando aquela que representasse a resposta pelo mal cometido à vítima (apedrejamento, linchamento, fogueira, forca, guilhotina, fuzilamento, cadeira elétrica, câmara de gás, injeções letais e prisão perpétua), satisfazendo os desejos de retribuição desta, de seus familiares e da própria sociedade, sem encarar a possibilidade de recuperação do agressor, através dos métodos que as ciências colocam à disposição do homem.

 

Sentimos que o ECA ao sair na frente com uma nova proposta, criando um novo paradigma (culpa+educação), acabou encontrando resistências advindas, logicamente, dos efeitos do paradigma anterior (culpa+castigo).

 

Esta mudança de paradigma também é mais um foco de geração da sensação de impunidade, uma vez que ao não sentirmos o sofrimento daquele que nos causou um mal, não estaremos sentindo a resposta merecida ao agressor pelo ato cometido.

 

Nesse contexto ingressamos na discussão sobre a melhor resposta social que pretendemos dar ao jovem infrator. Se for e primeira, de natureza penal, a sanção nada mais será do que o mal pelo mal, em seu caráter retributivo, se for a do ECA, natureza sócio-educativa, a sanção será um processo de (re)socialização e de educação para a cidadania.

 

Situando novamente o tema no Estado de Roraima, com as orientações baseadas neste novo paradigma organizou-se neste setor uma verdadeira rede de apoio ao cumprimento das decisões judiciais, com a participação da sociedade, criando-se inclusive modalidades de medidas sócio-educativas, como por exemplo, a liberdade assistida originária e a do egresso, internação com e sem possibilidade de atividades externas, além de se garantir na instituição responsável pela execução das medidas em regime fechado a chamada incompletude institucional e funcional.

 

Conseguimos desenvolver para todas as medidas sócio-educativas elencadas na lei o respectivo processo sócio-pedagógico, proporcionando ao sócio-educando os elementos necessários para que não volte a praticar outro ato infracional.

 

Esses processos levam em conta as necessidades sócio-pedagógicas do adolescente e o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.

 

Neste rincão amazônico, onde as dificuldades são de toda ordem, a sociedade e o Poder Público ao efetivarem o ECA,  montando um verdadeiro sistema de controle da delinqüência juvenil e de sua recuperação, demonstraram que as medidas sócio-educativas, quando corretamente implantadas, podem responder positivamente à sua finalidade, com eficiência maior que a pura e simples retribuição penal, sem necessidade do ingresso do jovem no sistema penitenciário.

 

Quebrando mitos

 

 Do exposto, destacamos que não se poderia imaginar que o legislador brasileiro fosse tão ingênuo em admitir que o adolescente ao praticar um ato infracional de qualquer natureza pudesse ficar impune.

 

Como visto, apurada a prática do ato infracional em um devido processo legal, caberá ao magistrado definir a melhor sanção prevista na lei para a recuperação do adolescente.

 

Desfeitos, portanto, estão os mitos referentes à impunidade do adolescente em conflito com a lei e de que o ECA é o responsável pelo aumento da delinqüência juvenil. As evidências empíricas que apresentaremos a seguir demonstram que estes questionamentos nascem do desconhecimento da população e de interesses ideologicamente camuflados. Com efeito, entendemos que o Estatuto é uma lei suficientemente severa no que concerne às conseqüências jurídicas decorrentes de atos infracionais praticados pelos adolescentes.

 

Chamamos a atenção para os discursos do Ministro da Justiça, José Gregori, e do Ministro Presidente do STJ, Costa Leite, no sentido da aplicação de penas alternativas para os maiores de 18 (dezoito) anos, que muito se aproximam das medidas sócio-educativas de prestação de serviços à comunidade, da liberdade assistida e da obrigação de reparar o dano, para as infrações penais de menor potencial ofensivo, afastando a praxe da privação de liberdade.

 

A ação conjunta e articulada de todos os procedimentos necessários à responsabilização do adolescente autor de ato infracional pelos atores do novo sistema de controle judicial da delinqüência juvenil na Comarca de Boa Vista/RR, proporcionou os seguintes resultados observados no ano de 1999:

 

1º.        Diminuiu a prática de infrações entre os adolescentes;

2º.        Agilizou com eficiência o funcionamento do sistema de controle judicial da delinqüência juvenil, possibilitando o julgamento do caso para o mesmo dia da prática do ato infracional ou da apresentação do adolescente em Juízo;

3º.        Reduziu a impunidade gerada pelo sistema anterior;

4º.        Promoveu a garantia de direitos e adequadas utilizações das medidas sócio-educativas, no estrito  cumprimento do ECA;

5º.        Garantiu a mudança de praxe da banalização da aplicação de medidas em regime fechado, pela prática da utilização das medidas em regime aberto, resultando na aplicação de somente 26 medidas em regime fechado contra 306 em regime aberto, sendo destas 168 advertências;

6º.        Aumentou a utilização do instituto da remissão, registrando 310 remissões concedidas, evitando um maior contato do adolescente com o Sistema de Justiça;

7º.        Reduziu a reincidência, onde dos 595 adolescentes julgados, somente 05 eram reincidentes;

8º.        Promoveu soluções criativas e resolutivas para formação da cidadania dos adolescentes autores de atos infracionais;

9º.        Transformou o processo formal (Ação Sócio-Educativa) em um procedimento também de caráter pedagógico e criação do Processo de Execução de Medidas Sócio-Educativas;

10º.      Rompeu com o imobilismo dos atores da Justiça e proporcionou a experimentação coletiva de novas formas de trabalho;

11º.      Redefiniu as atividades dos setores técnicos, acarretando novos compromissos e uma nova identidade para os profissionais desta área;

12º.      Criou um novo perfil do Juiz, do Promotor, do Defensor, e dos Policiais que atuam no sistema;

13º.      Reduziu o número de processos em tramitação de 2.036 para 677 (maio/2000), com previsão para 400 em dezembro/2000;

14º.      Desmistificou a violência juvenil, demonstrando que os adolescentes cometem muito mais atos infracionais contra o patrimônio do que contra a vida, registrando-se 197 furtos e 29 roubos em face de 40 homicídios tentados ou consumados;

15º.      Possibilitou o ingresso no Sistema de Justiça de adolescentes das diversas faixas de renda familiar e de nível de escolaridade.

 

Destas constatações, concluímos que a implantação correta dos programas relativos às medidas sócio-educativas em Roraima, mostrou-se apta a ser a resposta social, justa e adequada, à prática de atos infracionais por adolescentes, tornando-se desnecessária a redução da idade da atual responsabilidade penal.

 

 

* Este artigo foi publicado na Revista do Instituto dos Magistrados do Brasil – IMB, In Verbis nº 21, ano 04 – 2000, págs. 14/19.