EXCELENTÍSSIMA SENHORA DOUTORA JUÍZA DE DIREITO DO JUÍZO DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DE VOTORANTIM/SP:

 

 

 

 



Ref.: Procedimento Verificatório n. 130/03

 

“Pelo que fizeram se hão de condenar muitos, pelo que não fizeram, a todos. A omissão é um pecado que se faz não fazendo” (Padre Antonio Vieira).

 

  O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, através do Promotor de Justiça infra-assinado, amparado pela Constituição Federal, precisamente em seus artigos 129, incisos II e III, e 227, e nos artigos 201, V, 210, I, 86/88, 90, 148, IV, 208/210, do Estatuto da Criança e do Adolescente, e nos dispositivos da Lei nº 7.347/85, vem respeitosamente perante Vossa Excelência propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, COM PEDIDO DE LIMINAR, pelo rito ordinário, em face do MUNICÍPIO de VOTORANTIM, pelos fatos e fundamentos que passa a narrar:

 

 

Passados quase treze anos da entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente, a municipalidade Votorantinense não oferece à comunidade os recursos e programas que lhe couberam com o advento da Lei nº 8.069/90, como era de seu dever, não contemplando suas crianças e adolescentes carentes com o mínimo necessário em termos de atendimento, pelo que, o representante da sociedade, ou seja, o Ministério Público, inconformado com tal proceder, propõe a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, visando, desta feita, a oferta e manutenção da medida prevista no artigo 101, VII, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

É unânime em nossa sociedade o pensamento de que a rua não é lugar para criança ou para adolescente. Tal sentimento se traduziu nas medidas protetivas previstas na legislação em vigor.

 

Entre estas medidas, o abrigo desponta, em face da falta de conscientização, educação e preparo das famílias, como uma das mais necessárias, diante do sempre crescente número de crianças e adolescentes em estado de abandono ou sem possibilidades de reintegração familiar, por motivos diversos.

 

A discussão a respeito da instalação de um abrigo em Votorantim vem se arrastando desde 1989, informa o relatório de fls 02/09, firmado pelo Serviço Social do Fórum da cidade.

 

E neste mesmo Serviço Social, o autor recolheu a informação no sentido de que, nos dias atuais, há uma demanda estimada entre 20 e 25 crianças e adolescentes em situação de risco que exige o seu abrigamento.

 

Porém, ao longo dos últimos anos, muito se discutiu, mas nada, efetivamente, foi feito. Houve até a doação de um terreno para a construção do abrigo, em claro reconhecimento da necessidade premente da medida, mas a intenção não saiu do papel.

 

Dita omissão afronta, inclusive, um dos dispositivos da própria Lei Orgânica do Município de Votorantim, em cujo artigo 4o, inciso III, pode-se ler:

 

Art. 4o – O Município, como entidade autônoma e base da Federação, garantirá vida digna aos seus moradores e será administrado:

 

I – (...);

II – (...);

III – com prioridade no atendimento à criança e ao desamparado.

 

Não é isso, porém, que o dia a dia tem noticiado. Tratando-se de adolescentes carentes, Votorantim tem de se socorrer, basicamente, de entidades de atendimento não governamentais da região ou de outras cidades que, muitas vezes, não possuem vagas suficientes para o acolhimento dos menores negligenciados pelas famílias. Prova disso tem-se no relatório antes referido, que menciona todo o calvário porque passam as assistentes sociais e os Conselheiros Tutelares quando se vêem diante de um caso onde se reclama o abrigamento provisório de adolescentes, justamente pela falta de entidade que os acolha em nossa cidade.

 

No entanto, a julgar pela postura já publicamente declarada pelo Senhor Prefeito Municipal, em reportagens publicadas pelos jornais “Folha de Votorantim” e “Cruzeiro do Sul”, este de Sorocaba (fls 19/20), o município entende que a medida pleiteada nesta ação não é pertinente.

 

Dessas mesmas reportagens, às quais deve ser acrescido o relato do episódio envolvendo os adolescentes L.A.S. e F.S.M., pode ser extraída a necessidade real da cidade em manter o seu abrigo para crianças e adolescentes, pois em tais passagens se tem notícia dos problemas ocasionados por menores que vivem pelas ruas de nossa cidade, por conta do abandono e negligência a que são relegados pelos pais.

 

Porém, como se vê naquelas notícias da imprensa escrita, o senhor alcaide declarou ser contrário à criação e instalação de abrigo na cidade, pois é de seu sentir que os menores de rua têm pai e mãe e não seria conveniente abrigá-los.

 

A visão, no entanto, é equivocada. Primeiro, porque os termos do Estatuto não dão margem à opção. As medidas nele previstas para a proteção dos direitos de crianças e adolescentes não permitem transigir. E segundo porque tenham ou não pai e mãe, essas crianças e adolescentes têm o direito de se virem a salvo da negligência e descaso de seus pais e mães, encontrando local onde possam estar livres da ameaça das ruas enquanto aguardam colocação em família substituta.

 

Faz-se urgente, portanto, a criação e manutenção pela ré de abrigo para as crianças e adolescentes carentes do município.

 

As crianças e adolescentes não podem esperar. Diagnosticada a necessidade da medida de abrigo, urge determinar a sua instalação. Se a municipalidade se omite a esse respeito, cabe ao Poder Judiciário instá-la a cumprir o seu dever.

 

A Constituição Federal assegura, em seu artigo 227, “caput”, às crianças e adolescentes, com absoluta prioridade o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, em seu artigo 7º que:

 

“A criança e o adolescente têm direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.

 

A partir do momento em que o Estado, através do Juízo da Infância e Juventude, conclui que uma criança ou adolescente não possuem condições de desenvolver-se sadia e harmoniosamente no seio de sua família, necessitando de proteção especial e delibera pela aplicação da medida de abrigo, cabe ao Poder Executivo dar condições para que estes infantes e jovens recebam tratamento prioritário em perfeita sintonia com as normas contidas na legislação supra citada.

 

Estabelece o artigo 204, da Constituição Federal, que as ações governamentais na área da assistência social serão realizadas e organizadas de forma descentralizada, cabendo à União a coordenação e a emissão de normas gerais e ao Estado-membro e ao Município a coordenação e a execução de programas.

 

O artigo 88, do Estatuto, reza serem diretrizes de atendimento à criança e adolescente:

- a municipalização do atendimento (inciso I);

- a criação e manutenção de programas específicos, observada a descentralização político-administrativa (inciso III);

- a mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade (inciso VI).

 

Contudo, embora esteja o Estatuto da Criança e do Adolescente em vigor desde 14/10/90, não organizou a ré, até a presente data, o programa de proteção previsto no artigo 90, IV, combinado com o artigo 101, VII, daquela Lei. Não observou os mandamentos constitucionais de defesa dos menores, ignorou o contido no Estatuto da Criança e do Adolescente e, ainda, fechou os olhos ao que determina o artigo 4o, III, de sua própria Lei Orgânica, a Constituição Municipal.

 

De outra parte, sem a retaguarda do referido programa é quase inócuo o trabalho da Justiça da Infância e da Juventude com a criança e o adolescente desamparados, devendo-se atentar para o disposto no artigo 208, VI, do Estatuto.

 

Sintetizando os novos rumos da Administração Pública, advindos com o Estatuto da Criança e do Adolescente, é possível concluir que prioridade absoluta para a infância e juventude, nos termos do artigo 227 da Constituição Federal, significa os administradores da coisa pública dedicarem à criança e ao adolescente a maior parte do seu tempo, significa despender com a infância e juventude parte considerável das verbas públicas. Enfim, investir na infra-estrutura social.

 

Tanto é assim que também o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 4o, dispõe ser dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, definindo ainda que a garantia de prioridade compreende, dentre outros aspectos, a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude (parágrafo único, alínea “d”).

Assim, diante da imperatividade do regramento legal em torno da proteção da infância e juventude, necessária se torna a urgente adoção de medidas tendentes a sanar a omissão do Poder Público, omissão esta que vem, ao longo dos últimos 13 anos, colocando em risco a proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes votorantinenses, muitos dos quais assassinados nesse período.

 

Não há exagero no afirmado, bastando atentar para o que se contém no 9o parágrafo do relatório de fls 09:

 

“Triste é tomar conhecimento de mortes de adolescentes que atendemos e, devido à problemática familiar, acabaram na rua ou vítimas da sociedade”.

 

Quantos mais haverão de morrer para que os termos do Estatuto sejam respeitados?

 

DO PEDIDO LIMINAR

 

A instalação de abrigo em condições adequadas, com a fiel observância do que está contido nos artigos 92 e 94 do Estatuto da Criança e do Adolescente, exige o dispêndio de recursos que, a toda evidência, não estão previstos no atual orçamento do município.

 

Não interessa ao autor que se imponha à municipalidade o início imediato do serviço de abrigo a crianças e adolescentes em condições insatisfatórias, até porque a junção desses dois fatores – ausência de previsão orçamentária e início do serviço em condições precárias – levariam certamente à reversão de provimento jurisdicional liminar assim exarado, até sem muito esforço.

 

Pretende o autor, então, que seja determinada a inclusão de previsão orçamentária suficiente para a destinação de um prédio onde possa ser instalado um abrigo para crianças e adolescentes em situação de risco, com um mínimo de 30 (trinta) vagas e fiel observância, para o seu funcionamento, do que se contém nos artigos 92 e 94, da Lei 8069/90.

 

A matéria envolvendo o orçamento municipal, sua elaboração e prazos para encaminhamento e votação, vêm tratada em dispositivos da Lei Orgânica do Município e do Regimento Interno da Câmara Municipal.

 

Com efeito, o artigo 168 da Lei Orgânica determina que o projeto de lei orçamentário anual será apreciado pela Câmara na forma do seu regimento interno.

 

O regimento interno, a seu turno, dispõe no artigo 155 que o projeto respectivo deverá ser encaminhado pelo Poder Executivo até o dia 30 de setembro do ano anterior, e deverá ser analisado pelas Comissões da Casa no prazo de 30 dias, prorrogáveis por mais 15 dias.

 

Urge então, já que estamos há pouco mais de quatro meses do prazo fatal para remessa do projeto de lei orçamentária do ano vindouro, que seja concedida medida liminar para a inclusão de verba tal como aqui pleiteado.

 

Não se cuida de indevida ingerência no Poder Executivo pela só razão de que as normas que o obrigam a tanto são imperativas, não havendo margem de discricionariedade no tratamento da questão. A não ser assim, a prioridade absoluta a que aludem a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente para esses seres em formação não passará de um conjunto de belas palavras sem o mínimo de efetividade.

 

Diante disso, requer-se a Vossa Excelência seja expedido mandado liminar para que o Município de Votorantim inclua, no projeto de lei orçamentária do ano de 2004, previsão de verba orçamentária efetivamente suficiente para garantir a destinação de um prédio onde possa ser instalado um abrigo para crianças e adolescentes em situação de risco, com um mínimo de 30 (trinta) vagas e fiel observância, para o seu funcionamento, do que se contém nos artigos 92 e 94, da Lei 8069/90.

A “fumaça do bom direito” está demonstrada nos dispositivos já mencionados e o “perigo da demora” está caracterizado pela condição peculiar das crianças e adolescentes, alvos desta ação, pessoas em desenvolvimento, devendo ser ressaltado que a demora na satisfação de suas necessidades básicas pode trazer danos gravíssimos e irreversíveis à saúde física e mental destes pequenos desvalidos.

 

Requer-se seja fixada multa diária de R$ 2.000,00 (dois mil reais), pelo não cumprimento da medida liminar.

 

DO PEDIDO PRINCIPAL

 

O autor pleiteia, em sede principal, provimento jurisdicional que confirme os termos da liminar e condene o réu a incluir, no orçamento do ano de 2004 e nos orçamentos dos anos subseqüentes, previsão de verba orçamentária efetivamente suficiente para garantir a destinação de um prédio onde possa ser instalado um abrigo para crianças e adolescentes em situação de risco, com um mínimo de 30 (trinta) vagas e fiel observância, para o seu funcionamento, do que se contém nos artigos 92 e 94, da Lei 8069/90, determinando-se ainda um prazo de 45 dias, a partir de 01.01.2004¸para que o abrigo inicie as suas atividades, sob pena de multa diária no importe de R$ 2.000,00 (dois mil reais) .

 

DA CITAÇÃO

 

Requer-se, ainda, a citação de municipalidade, para que, querendo, ofereça resposta no prazo legal, sob pena de revelia.

 

DAS PROVAS

 

A questão aqui colocada é de fato e de direito, entendendo o autor não haver necessidade da produção de outras provas em juízo. Se outro for o entendimento, requer-se a produção de todas as provas admitidas em direito, em especial, inspeções judiciais e perícias.

 

DO VALOR DA CAUSA

 

Dá-se à causa o valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais).

 

Nestes termos,

Aguarda-se deferimento.

 

 

Votorantim, 24 de abril de 2003.

 

 

 

Welington dos Santos Veloso

Promotor de Justiça da

Infância e Juventude de Votorantim