ESTUDO DE
CASO INTERINSTITUCIONAL – UM OLHAR ÀS FRONTEIRAS DA INTERVENÇÃO
Psicóloga.
Educadora
do SESRUA/Núcleo Central.
O presente
trabalho tem por objetivo discutir uma prática que vem acontecendo de forma
cada vez mais organizada entre os serviços que se propõe a atender crianças e
adolescentes com direitos violados: a discussão de caso interinstitucional.
Vivemos em uma cidade na qual a discussão e implantação de políticas públicas
que se destinam a atenção integral a criança e ao
adolescente é colocada como prioridade. Percebe-se,
nos últimos anos e a partir do surgimento do Estatuto da Criança e do
Adolescente, a criação de vários programas e serviços que procuram dar suporte
às crianças, adolescentes e suas famílias nos momentos de maior dificuldade.
Integram esses serviços profissionais comprometidos, sinceramente preocupados e
com a real intenção de contribuir para a resolução do problema do solicitante.
Muitas vezes a inclusão em bolsa, encaminhamentos para tratamento, atividades
em grupo são intervenções suficientes para que a família, a criança, o
adolescente, consigam se reorganizar. Entretanto, há casos mais complexos, nos
quais intervenções isoladas não surtem efeito. Esses casos denunciam a dificuldade
dos serviços e, principalmente, dos profissionais, de realizarem um trabalho em
rede, em parceria. Essa dificuldade gera um atendimento
fragmentado, que considera apenas um aspecto - o que lhe diz respeito - no
sofrimento do sujeito que vem em busca de auxílio. É comum ouvir-se as
falas: “ O Serviço Social já esgotou sua intervenção.
A partir de agora é um caso de saúde mental.”, ou então, “ isso é ato infracional, é com a DECA”.
Em paralelo
a essa discussão de responsabilidades e papéis, o tempo está passando, a
situação ficando cada vez mais grave. Os profissionais não ficam alheios a esse
fato, percebem a continuidade e agravamento da situação mas, ao mesmo tempo,
sentem-se impotentes dentro de seu campo de intervenção para agir no sentido de
modificar o caso. Muitas vezes, é nesse momento que a rede é acessada, e, na
maioria das vezes, de forma equivocada. Começam as acusações: o outro serviço
está sendo incompetente ou negligente. Quando isso acontece, os serviços
distanciam-se cada vez mais do objeto de sua intervenção: a criança, o
adolescente e a família. Direcionam a sua preocupação em mostrar para seus
pares os encaminhamentos realizados e o esgotamento de suas ações. As acusações
se fazem cada vez mais presentes, gerando um sofrimento maior entre as equipes
de atendimento: além de continuar presenciando a situação de violação de
direitos, sua capacidade profissional é colocada em cheque.
Entende-se
que a discussão de caso interinstitucional é uma
prática que pode auxiliar as equipes dos diferentes serviços a pensar suas
intervenções. Possibilita, a partir de um olhar que contemple o fato desde a
sua integralidade, a divisão de responsabilidades e que se veja, nos outros
componentes da discussão, parceiros comprometidos com a garantia dos direitos
daquele que vem solicitar auxílio.
Para melhor
compreensão dessa proposta, a seguir, será descrito o
funcionamento do Serviço de Educação Social de Rua e a forma como
procura-se realizar a articulação com os outros serviços que compõe a rede de atendimento
à criança e ao adolescente. Será utilizado, como ilustração, um caso que aborda
diversos aspectos desta prática que nos propomos a discutir.
O SESRUA,
atualmente, é composto por duas instâncias: o Núcleo Central e o Núcleo
Intersecretarias. O Núcleo Central é formado por equipe (assistente
administrativo, monitores e técnicos da Psicologia e Serviço Social) vinculada
à Fundação de Assistência Social e Cidadania-PMPA. O
Núcleo Intersecretarias, por sua vez, é composto por membros de diversas
secretarias municipais ligadas às políticas de assistência, saúde, educação,
esporte e cultura. Entre suas atividades o Núcleo Central realiza abordagens
solicitadas pela população além de abordagens sistemáticas (em locais
conhecidos com grande concentração de crianças e adolescentes com histórico de
vida na rua). Na abordagem, o educador aproxima-se da criança e do adolescente
com o intuito de fazer um reconhecimento da situação encontrada e na tentativa
de estabelecimento do vínculo, condição essencial para a construção dos
posteriores encaminhamentos. A partir das informações recebidas durante a
abordagem, os educadores iniciam a composição da história de vida do sujeito
que será examinada a partir de três olhares, levando em conta a história oral, familiar e institucional. A história de
vida oral, consiste na fala da criança e do adolescente, durante a abordagem,
sobre a família e sobre os motivos que o levam a estar na rua. A história
familiar é obtida por meio de relato dos familiares, principalmente através das
visitas domiciliares realizadas pela equipe. A história institucional consiste
na verificação das intervenções realizadas pelas instituições (Conselho
Tutelar, escola, abrigos, Juizado da Infância e da Juventude) envolvidas com a
criança ou adolescente em questão. Entende-se que a articulação desses três
eixos é fundamental para que as intervenções sejam realizadas a partir do
reconhecimento da criança e do adolescente como um sujeito integral.
O Núcleo
Intersecretarias é composto por educadores que, além de acolher as crianças e
adolescentes nos espaços de atendimento, compõem, sistematicamente, com a
equipe de educadores do núcleo central as abordagens na rua. Esse núcleo
reúne-se, semanalmente, para trocas de informações, discussão e proposição de
encaminhamentos das diversas situações acompanhadas. No entanto, percebeu-se
que além destes serviços, existiam mais instituições envolvidas nos
atendimentos, como Conselho Tutelar, Ministério Público, Juizado da Infância e
Juventude, abrigos da rede estadual, entre outras.
Na medida
em que se estabelecia algum contato com essas instituições, via-se que muitos
dos encaminhamentos e proposições ocorriam de forma paralela e sem conhecimento
dos demais serviços. Sentiu-se, então, a importância da composição de um outro
momento que reunisse os serviços envolvidos no atendimento daquele sujeito.
Constituiu-se, assim, o espaço de discussão do estudo de caso interinstitucional. Buscou-se, por meio desse, uma maior
consistência e aprofundamento na apropriação e encaminhamento de cada situação.
Diante da
emergência de inúmeras situações, tornou-se necessário fazer uma seleção dos
casos a serem discutidos. Passou-se, periodicamente, a elaborar um cronograma,
com a indicação dos nomes das crianças e adolescentes a serem acompanhadas. A
seleção das indicações é feita pela equipe do núcleo intersecretarias, sendo um
dos critérios de prioridade o acompanhamento em um maior número de serviços e,
dentro destes serviços, a criança/adolescente que possui maior frequência. As crianças e adolescentes que costumam ser atendidas nesta rede de serviços, são, principalmente,
aquelas que utilizam a rua como moradia e sobrevivência.
Os outros
casos, que envolvem as situações de mendicância e exploração do trabalho
infantil, por possuírem características diferenciadas, com um maior vínculo
familiar e comunitário acabam por constituir um espaço de discussão de caso interinstitucional que podemos considerar como assistemático, não possuindo um calendário específico de
discussão.
Dentro do
que foi colocado, entendemos que seria importante ilustrar nossa prática com um
caso acompanhado pelo SESRUA e levado para discussão interinstitucional.
Por questões éticas, usaremos nomes fictícios e trocaremos o
nomes de algumas localidades, sem prejuízo do entendimento do caso.
Há algum
tempo, os educadores do SESRUA vinham encontrando em abordagens, solicitadas
pela população, cerca de quinze crianças e adolescentes que mendigavam em
sinaleiras nas imediações de um bairro na zona norte de Porto Alegre. A partir
dessas abordagens, foi sendo construída a história oral,
familiar e institucional de cada um dos sujeitos encontrados. Foi
verificado que pertenciam, principalmente, a dois grupos familiares.
Identificou-se que uma das famílias, aqui denominada família Silva, estava
sendo acompanhada em Programa de Apoio e Proteção à Família. Foram realizados
encaminhamentos diante de cada situação encontrada, feitos contatos com a
comunidade onde a família era atendida, com a escola e com o Conselho Tutelar
da região. A outra família, aqui chamada de Cruz, após sistemáticas abordagens
e posterior avaliação da situação familiar, foi incluída, por indicação do SESRUA,
em Programa de Apoio e Proteção à Família junto a um núcleo conveniado.
Apesar de
todos esses encaminhamentos e do acompanhamento realizado às famílias em
programas da assistência, as crianças e adolescentes continuavam sendo
abordadas na rua. Em uma abordagem noturna, um grupo composto por seis
crianças, pertencentes a essas duas famílias, foi encontrado dormindo sob uma
marquise, todos muito molhados.
Percebia-se,
nessas abordagens que o quadro estava se agravando, pois, já estava acontecendo
de, eventualmente, pernoitarem na rua, o que levou a que fosse realizada uma
discussão interna, no SESRUA, demandada pelo educador que vinha fazendo contato
com os mesmos. Paralelamente, o SESRUA foi procurado pela família Cruz,
preocupada com o desaparecimento de casa, há cerca de duas semanas, de um de
seus filhos, de oito anos. Passou-se, então, a um outro momento da discussão,
buscando maior apropriação da equipe, a partir das histórias individuais, da
rede familiar, institucional e social, por onde circulavam estas crianças e
adolescentes.
Verificou-se
que a primogênita da família Silva, hoje uma jovem adulta,
levada pelas dificuldades familiares e sociais, iniciou com a
mendicância desde muito cedo. Com o passar do tempo, passou a envolver-se com
grupos que usavam a rua como moradia, a usar substâncias psicoativas,
o que levou a que saísse de casa e passasse a convidar seus irmãos e amigos
também a saírem. Dessa forma, um de seus irmãos e o primogênito da família
Cruz, em sua companhia, também passaram a usar o espaço da rua como moradia e
sobrevivência. Acessavam, separadamente, diversos serviços do Programa
Municipal de Atenção Integral a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua
(PAICA), como a Escola Porto Alegre (EPA) e o Acolhimento Noturno (A.N.). Passavam
alguns períodos em casa, e cada vez mais longos, períodos na rua.
Em relação
às outras crianças, percebia-se uma importante familiaridade com a rua, espaço
onde à noite estavam permanecendo por mais tempo. Os adolescentes e crianças
maiores levavam os menores para a rua. Um dos filhos da família Cruz, com cerca
de oito anos, já havia sofrido mais de um acidente na sinaleira e
encontrava-se, na época, em situação de rua. Por esta razão, foram realizados
novos contatos com os núcleos de atendimento comunitário, foram obtidas
informações junto ao Fórum Central, sendo que, em relação a algumas das
crianças, encontrou-se indicação de abrigagem,
provavelmente ocasionada a partir de medidas indicadas pelo Conselho Tutelar.
Com uma
maior apropriação desses dados, não apenas individualmente, mas fazendo parte
de uma rede interligada, percebeu-se a necessidade de uma intervenção conjunta,
de uma concentração dos esforços dos vários agentes envolvidos. Viu-se que
haviam ocorrido movimentos neste sentido, mas na sua maioria parciais,
abarcando alguns dos serviços. Essas ações paralelas acabavam por não dar conta
do conjunto de situações, levando a críticas e mal entendidos desnecessários
entre todos os envolvidos. A partir desta constatação foi marcada uma discussão
de caso interinstitucional. Por uma questão prática,
não seria possível reunir todas as instituições envolvidas no atendimento das
duas famílias. Optou-se pela discussão de cada um dos núcleos familiares, sem
perder de vistas as ligações existentes entre eles.
Nestas
discussões em que participaram representantes dos diversos serviços envolvidos
no acompanhamento da família Silva, foram vistas, pensadas e avaliadas, o
conjunto de intervenções até então realizadas. Foi visto que a família
encontrava-se já há algum tempo em atendimento pelo Centro Regional,
participando em Programa de Apoio e Proteção à Família. As crianças em idade de
serem atendidas no serviço de atendimento sócio-educativo (SASE), foram
incluídas. Os adolescentes foram vinculados a programas próprios para esta
faixa etária, como Agente Jovem, ou grupo de trabalho educativo. As crianças de menor idade foram inscritos em creche junto à
comunidade, no entanto, a família considerou melhor mantê-los em casa. Foram,
também, incluídos em Programa de Leite, junto à Unidade de Saúde. No entanto, a
família não os levava para o acompanhamento em saúde, o que levou a que fossem
desligados do Programa.
Apareceram,
assim, no decurso das discussões, as dificuldades dessa família em usar em
benefício próprio o que lhe era oferecido pelos diversos programas em que foram
incluídos. Entendeu-se que, neste momento, as metas da assistência social e da
educação estavam sendo de certa forma cumpridas. As crianças e adolescentes
estavam mais freqüentes à escola e aos programas da assistência. No entanto, a
situação da jovem adulta, foragida da justiça depois de ter assassinado um
rapaz, o vínculo com a rua estabelecido, principalmente,
pelas crianças e adolescentes denotavam uma importante negligência, uma
grande permissividade destes pais nos cuidados prestados aos filhos. Os pais
verbalizavam, em algumas entrevistas, uma concepção de que as crianças se criam
sozinhas. Consideravam a rua como um espaço de aprendizagem, parecendo não
terem consciência do risco existente nesta autonomia precoce e inversamente
estabelecida. Pode-se pensar que há uma inversão da função parental, materna e
paterna, na medida em que os pais ficam em casa, e os filhos são chamados a
proverem e cuidarem da família.
A partir do
que foi anteriormente mencionado, entende-se que a discussão de caso interinstitucional proporciona um olhar, compartilhado por
vários parceiros, para a especificidade de cada caso, de cada sujeito envolvido
na trama social abordada. Trata-se de uma fronteira em que a linha demarcadora
não encontra-se muito bem definida constituindo-se em
uma espécie de amálgama. A idéia desta fronteira parece ser apropriada na
medida em que o SESRUA é um serviço que, desde sua estrutura, possui esta
característica de dentro/fora, núcleo central e núcleo intersecretarias. Também
a população que é atendida tem esta especificidade fronteiriça, se podemos
dizer assim, muitas vezes é considerada como marginal, à margem da sociedade,
da escola, da família, não são os excluídos? Os que estão fora? Mas, também,
não estão dentro da trama social?
Quando pontua-se a questão do amálgama das intervenções, torna-se
necessária uma reflexão acerca dos limites, das atividades de cada serviço,
para que o processo de integração não se desvie para a confusão e desresponsabilização. Até onde vai o papel do educador
social de rua e onde deve entrar a ação do conselheiro tutelar? Quem toma as
medidas de proteção e quem detecta a demanda? Quem procura o menino na rua? E,
quem continua o trabalho de acompanhamento do caso após os primeiros
encaminhamentos institucionais? Como se articulam as ações sem se sobreporem?
Após a
discussão de caso interinstitucional, os
participantes levam consigo elementos preciosos que poderão enriquecer a sua
intervenção em relação à família ou sujeito discutido. O educador social de
rua, em seu trabalho de abordagem, poderá encontrar novamente um indivíduo que
teve seu caso discutido coletivamente. A partir do momento que está apropriado
dos encaminhamentos propostos na discussão de caso interinstitucional,
poderá atuar de uma forma mais integrada com os demais serviços envolvidos no
acompanhamento, retomando as combinações com o sujeito encontrado.
Morin[1] , pensador
contemporâneo que tem se dedicado a refletir sobre a complexidade da nossa
sociedade, aponta para a necessidade de prestarmos mais atenção às relações,
ou, como fala o autor, interações, entre as partes que compõe o tecido social.
Segundo o autor, as interações permitiriam a organização do sistema. Essa
organização possibilitaria um funcionamento coerente, permeado por regras e
regulações, estruturando as relações.
Nesse
sentido, cabe lembrar que durante a discussão de caso interinstitucional,
ocorre a emergência de idéias que só é possível devido
ao relato das práticas individuais e que, ao final da discussão, não se reduz
apenas a soma das experiências, e sim, a uma ação constituída a partir da
interação dos serviços. Esta interação poderá ser sentida por quem está sendo
atendido ao perceber coerência e complementaridade nas ações propostas pois,
desta forma, não se perde de vista o todo, o sujeito integralmente atendido. A
iniciativa de realizar estudos dos casos em redes de serviços e programas que atuam
direta ou indiretamente com esta população parece ser o que mais se aproxima de
uma ação efetiva para cercear as carências de atendimento e resolver as
demandas.
Com a
ilustração desta prática não queremos colocar um entendimento
completo, fechado, a solução da situação, mas sim possibilitar novos
questionamentos, abrir novas fronteiras, descobrir novos caminhos, mesmo que
todos se pensem mapeados. Como nos diz Saramago[2],
sempre existem novas ilhas a serem descobertas, novas fronteiras a serem
conquistadas.
Verificamos,
nos últimos anos, um aumento substancial da pobreza e o surgimento de uma
categoria que nos deixa atônitos: aqueles situados abaixo da linha de pobreza -
os miseráveis. O crescimento quantitativo vem acompanhado de uma complexificação dos cenários de exclusão: problemas
financeiros somam-se à questão do uso de drogas, da disseminação do vírus HIV e
das dificuldades em relação à saúde mental. Essa transformação exige dos
serviços que se propõe a trabalhar com essa população uma reflexão sobre o seu
fazer e a busca de alternativas que dêem conta dessa problemática. Pensando
nessas questões, propomos, neste artigo, a reflexão de uma prática social que
passamos a utilizar recentemente no Serviço de Educação Social de Rua que é o estudo
de caso interinstitucional. Essa prática visa a participação dos profissionais envolvidos no
acompanhamento de determinadas situações abrindo maiores possibilidades de
apropriação do histórico individual, familiar e institucional da criança e/ou
adolescente.
NOTAS
[1] MORIN,
Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
[2]
SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.