Ato infracional e Medida Sócio-Educativa
Diversas
especificidades marcam a temática do ato infracional e medida sócio-educativa
em relação às demais áreas nas quais se subdivide o Acervo.
Aqui, talvez
mais do que nos outros subtemas, o debate é apaixonado e partidarizado,
gravitando as polêmicas ao redor dos referenciais técnico-ideológicos
antagônicos que opõem a doutrina tutelar-discricionária e segregatória da
situação irregular (e suas expressões neomenoristas) à teoria garantista,
anti-segregatória e antidiscriminatória da proteção integral.
Neste
panorama não há como se conservar neutro, e assim deliberadamente não quis manter-se
a coordenação da área. Afiliando-se à linha editorial mais ampla do Acervo, de
plena adesão (sem renunciar à crítica, quando necessária) à teoria da proteção
integral conforme desenhada na Constituição da República, no Estatuto da
Criança e do Adolescente e na Convenção Internacional sobre os Direitos da
Criança, a seleção do material incluído observou critérios de ajustamento a
diretrizes claras, como, por exemplo: a) não redução da maioridade penal; b)
intransigente respeito às garantias substanciais e processuais do cidadão
adolescente suspeito da prática de ato infracional; c) reconhecimento do
indisfarçável caráter sancionatório e aflitivo da medida sócio-educativa por
mais que se busque direcionar sua execução à promoção humana; d) compreensão da
medida de internação como estratégia essencialmente equivocada, tanto de defesa
social quanto de inclusão social, devendo ser, portanto, de uso efetivamente
excepcional e de duração breve; e) rejeição às correntes criminológicas que
explicam o fenômeno criminal juvenil a partir de uma perspectiva
unidimensional, alojando exclusiva ou predominantemente na subjetividade do
infrator ou em seu entorno próximo as geratrizes da
transgressão.
Neste
referencial valorativo inspirou-se a coleta e a seleção de textos,
jurisprudência, experiências e modelos, guardadas algumas particularidades
locais.
Textos. Bem se sabe que o Direito da Criança e do Adolescente
não freqüenta, com a assiduidade necessária, as grades curriculares dos cursos
que formam operadores do ECA. Àqueles que desejam suprir a escassa formação
básica com iniciativas autodidáticas não raramente falta um caminho mais definido
a seguir, ante a notória escassez de manuais de formação abrangentes e
consistentes do ponto de vista teórico. Sobre ato infracional e medida
sócio-educativa o mercado editorial nacional ainda espera por alguma obra
clássica de referência como tantas existem, por exemplo, no âmbito do Direito
Penal. Partindo deste panorama e ciente do espaço que nele passa a ocupar, esta
secção do Acervo, agregando textos dos mais variados níveis de complexidade,
pretendeu facilitar a jornada dos que se iniciam na área tanto quanto
qualificar a reflexão daqueles que nela persistem tocados pela inquietação que
a riqueza dos casos particulares evocam.
Em tons, portanto, que variam do propedêutico ao analítico-crítico e do mais geral ao mais específico, os textos
cobrem parte significativa dos assuntos relacionados ao tema, mas evidentemente não os esgotam. O material
recolhido acabou resultando num simples, mas qualificado e criterioroso,
recorte da produção nacional extremamente dispersa em periódicos, muitas vezes
não especializados, editados em todos os cantos do país. Muitos textos de
grande qualidade, todavia, acabaram não inseridos em face das naturais
dificuldades de contatar autores e contornar questões de direitos autorais.
Os artigos em
sua maioria dão enfoque jurídico ao tema, reputado prioritário - por razões
meramente operacionais - pela coordenação de área para esta primeira versão do
Acervo. A identificação de textos que permitam a compreensão do fenômeno da
criminalidade infanto-juvenil à luz de outras disciplinas como Psicologia,
Sociologia, Criminologia e Pedagogia, até por ser indispensável para a correta
aplicação e compreensão do Direito, norteará os trabalhos de complementação e
atualização do material, que passará a incluir pesquisas empíricas por ora não
contempladas.
Até por se
tratar do tema que mais insere a questão infanto-juvenil na pauta da grande
mídia, foram identificados inúmeros textos que abordam, de forma competente, a
questão do rebaixamento da maioridade penal. Para atenuar redundâncias o ACERVO
optou por incluir apenas alguns deles, priorizando os de maior amplitude e
originalidade.
Por
entendê-los absolutamente compatíveis com os princípios da proteção integral e
com as diretrizes do Estatuto, textos compostos sob a ótica do Direito Penal
Juvenil também foram incluídos, não significando, todavia, qualquer adesão
editorial incondicionada a tal corrente.
Jurisprudência. Na prática forense diária,
igualmente, como em nenhuma outra das áreas atendidas, as questões ligadas à
aplicação e execução de medida sócio-educativa emergem profusivamente,
alimentando um debate judicial cada vez mais intenso e diversificado. O
resultado converge num significativo conjunto de precedentes dos Tribunais,
grande parte dele examinado pela equipe do Acervo. O levantamento mostrou um panorama
jurisprudencial marcado fortemente pela ótica tutelar-antigarantista e
segregatória herdeira do menorismo secular incrustado na cultura jurídica
nacional. Fiel à sua missão de colaborar na implementação do Estatuto a partir
da formação dos operadores da lei, o Acervo prestigiou os julgados que
renunciam à resposta segregatória e se aferram à necessária observância das
garantias processuais e substanciais de que são titulares os
adolescentes-cidadãos suspeitos de crime. A jurisprudência selecionada,
portanto, não teve qualquer pretensão de refletir as tendências majoritárias
das Cortes Estaduais ou Federais, nem tampouco de espelhar a diversidade de
posicionamentos para cada questão. O recorte do Acervo, aqui, foi bem preciso e
direcionado, tendo o cuidado, todavia, de contemplar diversos julgados, a
título exemplificativo, que consagram a posição contrária.
Todo material disponibilizado nesta área foi recolhido das páginas
eletrônicas dos Tribunais na internet (à exceção das ementas do Estado do
Paraná, emprestadas da página do Ministério Público local) donde podem ser
retirados, pelos que se interessarem, mais dados sobre os julgamentos e não
raras vezes sua versão integral.
Experiências. Por todo o país despontam iniciativas altamente
inovadoras na aplicação e na execução de programas voltados direta ou
indiretamente à problemática infracional juvenil. A municipalização do
atendimento das medidas sócio-educativas em meio aberto favoreceu enormente
este processo. O conjunto das iniciativas locais e regionais carece, todavia,
de qualquer sistematização, algo que se refletiu na dificuldade de o Acervo contemplar
uma amostra minimamente representativa das experiências. Valeu-se a coordenação
da área, sobretudo dos trabalhos de compilação do Instituto Pólis (http://www.polis.org.br/projetos)
e do Prêmio Sócio-Educando, selecionando-se os trabalhos menos por sua eficácia
prática comprovada (dada a inexistência de
referenciais avaliatórios claros) e mais pelo seu potencial enquanto idéia de
intervenção a ser disseminada, testada e adaptada às diversas realidades
locais.
Modelos. Embora a produção seja vasta, posto que ligada a
exigências de natureza profissional comuns a todos os
operadores do direito, houve dificuldades de se compilar modelos de peças
jurídicas ou técnicas (ex. laudos) ligadas à área. A divulgação dos trabalhos
forenses de qualidade na área do ato infracional e medidas sócio-educativas
encontra limitações de toda ordem, entre elas a ausência de uma cultura e de
espaços de socialização das produções individuais e a incidência do segredo de
Justiça. Assim, ante a pouca oferta de trabalhos disponibilizados para inserção
no acervo, de boa parte do material incluído – que foi quase todo ele retirado
da internet – aproveita-se mais a forma (o que é importante para os iniciantes)
do que propriamente o conteúdo. Talvez um pouco mais do que nos outros segmentos,
neste em especial o ACERVO está em construção e necessita da colaboração de
todos para consolidar a obra.
Flávio
Américo Frasseto
Procurador do Estado
de Assistência Judiciária/SP