INFÂNCIA, LEI E DEMOCRACIA: UMA  "QUESTÃO  DE JUSTIÇA”

 

 

Emilio García-Méndez

Assessor Regional da Área de Direitos do Unicef para a América Latina e Caribe.

 

 

Minhas propostas de esclarecimento daquilo que chamo a compreensão paradigmática de fundo do direito e da Constituição devem ser entendidas como uma contribuição polêmica, que se dirige, sobretudo, contra o crescente cepticismo jurídico que parece difundir-se entre meus colegas juristas. e, principalmente, contra esse realismo, a meu ver falso, que subestima a eficiência social das pressuposições normativas das práticas jurídicas existentes. “Jurgen Habermas - "Facticidad y Validez"

 

 

Sumário: 1 . A Convenção e o retomo da democracia na América Latina; 2. Os processos de reforma legislativa; 3. Direito e realidade: a "contribuição" do "substancialismo"; 4. Direito e pedagogia: da discricionariedade à justiça; Direito e autoritarismo; 6. Infância e democracia; 7. Direito e realidade: a "contribuição" do masoquismo institucional; 8. Globalização, infância e direitos humanos; 9. Memória do futuro: A infância, uma questão de justiça.

 

1.      A convenção e o retorno da democracia na América Latina

 

Em novembro de 1989, ao cumprir dez anos de trabalhos preparatórios, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou por unanimidade a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. Na data, todos os países do planeta, com duas únicas exceções, Estados Unidos e Somália[1] , ratificaram esta Convenção. A região da América Latina e o Caribe foram pioneiros no processo mundial de ratificações desse tratado internacional, "omnicompreensivo" dos direitos humanos de todos aqueles que ainda não atingiram os dezoito anos. Mais ainda, todos os países da América Latina e  o Caribe não só ratificaram a Convenção, mas também a transformaram em lei nacional mediante um processo de aprovação parlamentar. Na América Latina, particularmente no contexto da tradição jurídica napoleônica do direito  codificado, o processo de transformação da Convenção em lei nacional gerou uma verdadeira situação de esquizofrenia jurídica. Esquizofrenia jurídica referente à vigência simultânea de duas leis, que regulamentando a mesma matéria, resultam de natureza antagônica: por um lado, a Convenção e pelo outro, as velhas leis de menores baseadas na doutrina da situação irregular. A inércia político - cultural, somada a alguns problemas de técnica jurídica processual determinaram que, no plano judicial, se continuasse com a aplicação maciça e rotineira das, velhas leis de menores, ao mesmo tempo que a aplicação da Convenção sé convertia num fato excepcional e fragmentário.

 

Se as coisas houvessem seguido seu curso "natural", é provável que a Convenção houvesse permanecido, talvez por muitos anos, como um "simpático" instrumento do direito internacional. No entanto, o Brasil mudou o rumo "natural" da história, desencadeando um processo absolutamente participativa do direito, neste caso, de um novo direito para a infância. Um processo - que dito nas palavras de Pietro Barcellona - permitiu "redescobrir que o caráter estruturalmente normativo do ser social é um recurso de poder, porque a capacidade de produzir normas é uma competência social difusa e não somente uma prerrogativa dos parlamentos"[2]. Este processo foi em outra parte analisado de forma detalhada por alguns de seus principais protagonistas[3].... merece aqui um breve resumo, sobretudo pelo seu enorme impacto e repercussão fora das fronteiras do Brasil.

 

Não parece exagerado afirmar que o processo de transformações jurídicas que resultou na aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente do Brasil em 1990, constitui talvez o motivo de maior intercâmbio e integração que, no campo social, o Brasil teve com o resto da América Latina, pondo fim a uma longa tradição de mútua ignorância com o resto da região.

 

Ao descobrir, de forma empírica, a íntima conexão entre os problemas da infância e os problemas da democracia e, no limiar do processo popular de construção de uma nova Constituição que indicava com clareza o fim de um quarto de século de autoritarismo militar, o embrionário movimento de luta pelos direitos da infância se articulou em volta da preparação de duas emendas populares a serem introduzidas na nova Constituição (mecanismo previsto pela própria Convenção Constituinte). O resultado foi a incorporação à nova Constituição Brasileira, aprovada finalmente em outubro de 1988, de dois artigos básicos para todo o desenvolvimento de um novo tipo de política social para a infância: a política social pública. O artigo 227 constitui uma admirável síntese da futura Convenção, que na época circulava em forma de ante projeto entre os movimentos de luta pelos direitos da infância. O outro artigo decisivo foi o 204 (particularmente no seu inciso II) que, legitimando a articulação de esforços coordenados entre governo e sociedade civil, colocava as bases explicitamente jurídicas para a reformulação de uma política pública, já não mais entendida como mero sinônimo de política governamental , mas sim como o resultado de uma articulação entre governo  e sociedade civil.[4]

 

2.      Os  processos  de  reforma  legislativa

 

Que uma reivindicação pela melhoria das condições materiais da infância se expressasse sob a forma de uma norma jurídica, nada menos que de caráter constitucional, significava uma dupla ruptura inédita na região. Em primeiro lugar, uma ruptura com "um sentido jurídico comum" que, na época de forma aberta e hoje de forma obscura e envergonhada, se expressa na trilhada frase "na América Latina temos maravilhosas legislações de menores que infelizmente não se aplicam". Em segundo lugar, uma ruptura com o acordo tácito de que a Constituição, muito especialmente suas garantias individuais, invariavelmente consagradas normativamente para todos os habitantes, não deviam interferir na prática com as tarefas de "compaixão - repressão" próprias do (não) direito e as políticas de menores. Aprovadas finalmente a nova Constituição, os artigos 204 e 227 puseram de imediato em . evidência o caráter flagrantemente inconstitucional da legislação menorista vigente: o código de menores de 1979, dispositivo central na política social  do autoritarismo militar das décadas passadas.

 

Estes são, de forma muito rápida e esquemática, os antecedentes do primeiro processo de reforma legislativa na América Latina no contexto da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança.

 

Na realidade se pode dizer que na América Latina houve duas etapas de reformas jurídicas no que se refere ao direito da infância. Uma primeira etapa, 1919 a 1939, que introduz a especificação do direito de menores e cria um novo tipo de institucionalização: a justiça de menores.[5] Uma Segunda etapa que começa em 1990 e continua aberta e em evolução até nossos dias.

 

Cumprida a primeira etapa do processo de reformas, desde 1940 a 1990, as poucas mudanças jurídicas ocorridas foram invariavelmente intranscendentais: variações sobre um mesmo assunto para decidi-lo de forma um pouco mais elegante. O processo de mudança jurídica e social que os movimentos de luta pelos direitos da infância concretizam no Brasil em 1990, (mas que reconhece antecedentes imediatos e diretos pelo menos desde 1986), constitui um exemplo extraordinário de conjunção de três coordenadas fundamentais: infância, lei e democracia. Neste caso, a experiência demonstra  que os diversos problemas da infância só podem ser reconstruídos numa perspectiva diferente à "compaixão - repressão" quando se intersectam com o tema da lei e o tema da democracia.

 

Isto significa uma rejeição profunda a considerar os temas da infância desde qualquer perspectiva fragmentada e sobretudo corporativista. A nova relação infância - lei implica numa profunda revalorização crítica do sentido e natureza do vínculo entre a condição jurídica e a condição material da infância.

 

Mas as transformações da segunda etapa de reformas legislativas (de 1990 em diante) não se referem só a uma mudança profunda e substancial nos conteúdos da lei. Trata-se além do mais, de uma mudança nos mecanismos de produção do direito; de um novo direito para todas as crianças, não só para aquelas em "situação irregular". A partir da experiência do Brasil, todo o resto das reformas legislativas (com maior ou menor nível de participação social e com uma melhor ou pior técnica jurídica), deixaram de ser esotéricas e clandestinas reuniões de "expertos" que trabalham nos porões dos Ministérios de Justiça, para converter-se em imensos laboratórios político - sociais de produção jurídica democrática.

 

A década de 80 para a América Latina em geral e sua segunda metade para o Brasil em particular, coincide com a retirada, mais ou menos organizada, mais ou menos caótica, das ditaduras militares instauradas na década de 70.

 

Na América Latina, o complexo, difícil e contraditório retorno à democracia coincide com o surgimento e difusão da Convenção. Pela primeira vez, um instrumento com a forma da lei capta seriamente a atenção dos movimentos sociais, por outro lado, politicamente enfrentados, em geral, aos governos autoritários. No entanto, a assimilação deste instrumento legal não foi fácil e não faltaram as críticas de diferentes tipos. Desde aqueles que afirmavam que qualquer tentativa de juridificar os direitos da infância significava na prática negar ou, pelo menos, por uma camisa de força a seus direitos naturais, até aqueles que viam na Convenção outra mais ou menos sutil intervenção do imperialismo. Na realidade, os motivos profundos pelos quais a Convenção consegue finalmente impor-se com tanta intensidade esperam uma análise mais detalhada. É possível, no entanto, que sua compreensão e aceitação como instrumento específico dos direitos humanos tenha representado um papel fundamental na sua instalação sócio - jurídica definitiva. Também é provável que tenha sido decisiva a intuição de alguns grupos de ativistas sociais, no sentido de que não é só a democracia a que garante a luta pelos direitos, mas que é também, e fundamentalmente a luta pelos direitos o que garante a democracia.[6]

 

Foi, precisamente, esta "intuição" a que exerceu um papel importante na primeira incorporação constitucional da Convenção. No Brasil de fins dos 80, foram juristas com sensibilidade educativa e, principalmente, educadores com uma altíssima sensibilidade jurídica, os que instalaram um tipo, felizmente heterodoxo, de luta pelos direitos no campo do direito. Articulação esta última que abre as bases para a urgente e necessária reformulação das relações entre pedagogia[7] e justiça, reestruturação que encontra no texto de Antônio Carlos Comes da Costa seu melhor exemplo, eximindo-me aqui de posteriores reflexões.

 

3.      Direito  e  realidade:  a "contribuição" do"substancialismo"

 

Como era de esperar, "substancialistas" de diversos tipos e nostálgicos defensores da (des) ordem jurídica anterior, ficaram respectivamente marginalizados e confrontados com este processo. Se os nostálgicos defensores da velha ordem jurídica - cultivadores vários do cadáver insepulto da doutrina da situação irregular - não necessitam ser posteriormente explicados, sim, parece-me que aqueles que aqui denomino "substanciaIistas” merecem uma mais detalhada explicação. Denomino aqui com o termo "substancialistas" aqueles que, desde diferentes posições político - ideológicas, subestimam as capacidades reais, positivas ou negativas, do direito. São os mesmos que outorgam um caráter automático e inelutavelmente condicionante ao que eles, arbitrariamente, definem como condições materiais determinantes. Na prática são aqueles que nos alertam sobre a inutilidade de qualquer reforma que não seja "profundamente estrutural". São os portadores, conscientes ou inconscientes, da perspectiva que produz o efeito duplamente perverso da pobreza. Uma vez como produtora de situações concretas de profundo mal-estar social e perda da dignidade humana (nos pobres), e outra vez (nos não pobres) em seu uso instrumental como mau coringa que explica (e sugere) as várias formas de resignação. "Aqui não se podem respeitar os direitos humanos até que a pobreza não seja erradicada" é a frase feita do simplismo que melhor sintetiza a posição "substancialista".

 

Esta posição esquece que a história crítica do desenvolvimento social ensina exatamente o contrário: que são precisamente as formas  de resolução pacífica e respeitosa da dignidade humana dos conflitos sociais e individuais, as condições sine qua non (ainda que não suficientes) para um desenvolvimento sustentável que permita uma verdadeira erradicação da pobreza. Os vários exemplos demonstram que tem sido um investimento maciço em educação (direito que habilita para o exercício de outros direitos), o que permitiu o desenvolvimento e a erradicação real da pobreza, e não o contrário,[8] deveriam, pelo menos, induzir os "substancialistas" a uma profunda revisão dos seus dogmas, por outro lado, tão inúteis quanto prejudiciais.

 

O processo atual de reformas legislativas põe em evidência que é, precisamente, nessa falta de compreensão da natureza complexa da relação direito - realidade, onde se estabelece um elemento fundamental para explicar a fragilidade das instituições e a democracia na América Latina. É sobre a base deste raciocínio que, muito em especial no campo da infância, a justiça resulta ser substituída pela piedade e principalmente por aquela bondade paternalista que tanto repugnava Kant.[9]

 

O enfoque "substancialista" se caracteriza por sustentar, objetivamente, uma tosca versão materialista do direito, herdeira do marxismo mais vulgar. Assim, ao direito, dimensão abstrata e ideológica, se opõe a ação concreta sobre a realidade social. O direito, neste caso, deve ser "reflexo fiel da realidade". Como Funes o memorioso, do maravilhoso relato de Borges, cujas lembranças de um dia eram tão minuciosas que duravam exatamente um dia, o enfoque "substancialista" exige que o direito seja (para não ser abstrato e ideológico) um fiel reflexo da realidade. Visto sob essa perspectiva, não é de estranhar que se perceba o direito como algo na realidade supérfluo. Para continuar com Borges, é a história daquele imperador chinês que queria um mapa perfeitamente fiel de seu império. Milhares de cartógrafos trabalharam durante anos na confecção do mapa que acabou tendo o mesmo tamanho que o império e, consequentemente, se tornou completamente inútil[10]....

 

No lugar de ser um programa de ação futura, e um instrumento para conseguir o que ainda não existe, se o direito deve refletir a realidade, então só pode e deve existir quando já não é mais necessário. O resultado deste raciocínio (incorreto e falso), consiste em confirmar a subestima da função do direito: outra profecia na qual os "substancialistas" trabalham incansavelmente para sua auto - realização. Assim, um direito à educação que reflita a "realidade" deve concluir, por exemplo, que a educação de qualidade é um direito daquelas crianças cujos pais têm um nível de renda que permita tal tipo de educação.

 

Nenhum direito" reflete melhor a realidade" que aqueles "direitos especiais" que partem, paradoxalmente, do reconhecimento da  impossibilidade de universalizar na prática as políticas sociais básicas (saúde e educação para todos). A conquista de benefícios sociais para as crianças[11] trabalhadoras constitui o melhor dos exemplos. Com a desculpa e a suposta legitimidade de sua proteção, algumas pessoas ou instituições promovem a obtenção de benefícios sociais para as crianças trabalhadoras (seguro médico, por exemplo). Esta posição constitui um triplo e gravíssimo erro. Em primeiro lugar, do ponto de vista que se poderia chamar imediatista pragmático, porque normalmente os recursos que se canalizam através de políticas assistenciais se deduzem ou subtraem das políticas sociais básicas. Mais "benefícios"  para as crianças trabalhadoras significa (a curto e médio prazo) menos recursos para as crianças nas escolas. Em segundo lugar, porque a transferência de  benefícios sociais das políticas universais às assistenciais, implica um aumento geométrico da discricionariedade no manejo destas últimas, que é o melhor motivo para aumentar, e sobretudo, para legitimar as mil variáveis das piores práticas do clientilismo político. Num processo similar mas inverso ao que transformou os súditos em cidadãos, as proteções "especiais", quando desnecessárias como neste caso, tendem a transformar - involuindo – os cidadãos em clientes. Em terceiro lugar, estas "conquistas" vão consolidando e confirmando uma cultura de apartheid que percebe o trabalho infantil como uma solução[12] e, as crianças trabalhadoras, como uma realidade imodificável, equiparável a uma catástrofe natural.

 

Deste pensamento desconexo, mas que tem a força da inércia das coisas e o apoio do "sentido comum" surgiu um novo paradigma: é o paradigma da ambigüidade.[13]

 

Frente aos paradigmas instalados e confrontados da situação irregular e a proteção integral, o paradigma da ambigüidade se apresenta como uma síntese eclética, apropriada para esta época de "fim das ideologias". O paradigma da ambigüidade se encontra muito bem representado por aqueles que, rejeitando de imediato o paradigma da situação irregular, não conseguem acompanhar - talvez pela diminuição significativa das práticas discricionais e paternalistas no trato com as crianças - as transformações reais e potenciais que se deduzem da aplicação conseqüente do paradigma da proteção integral, que considera a criança e o adolescente um sujeito de direitos, e não menos,  de responsabilidades. Neste ponto me parece importante arriscar uma explicação que permita entender melhor o por quê da aparição (e difusão) do paradigma da ambigüidade.

 

Se consideramos o caráter de revolução copernicana da mudança de paradigma da situação irregular à proteção integral, sobretudo no sentido da .diminuição radical da discricionariedade na cultura e práticas de "proteção" (lembre-se que a história é muito clara ao mostrar as piores atrocidades contra a infância cometidas muito mais em nome do amor e da proteção, que em nome explícito da própria repressão), é necessário admitir que o direito (a Convenção) desempenhou um papel decisivo na objetivação das relações da infância com os adultos e com o Estado.[14]

 

Esta objetividade (entendida como a tendência oposta à discricionariedade), que se expressa não só por um novo tipo de direito, mas também por um novo tipo de institucionalização, assim como por novos mecanismos de cumprimento e exigibilidade, transforma substancialmente o sentido do trabalho dos especialistas "tradicionais", desde os juristas até os pedagogos[15] para atingir toda a variada gama destes operadores sociais.  Estas transformações se referem, especialmente, à redução da capacidade omnímoda para diagnosticar discricionalmente a existência e características da "disfunção" social ou individual; e muito especialmente, o sentido e características das medidas, sejam estas jurídicas, terapêuticas ou sociais. As metáforas da medicina cada vez dão menos conta da nova situação. O fato de considerar os adolescentes em conflito com a lei penal, de uma vaga categoria sociológica que comete feitos anti-sociais (situação irregular), a uma precisa categoria jurídica que comete infrações penais, típicas, anti jurídicas e culpáveis (proteção integral), constitui um exemplo bem representativo desta situação.[16]

 

O novo direito da infância reduz drasticamente os níveis de discricionariedade, não só jurídica mas também pedagógica. Neste contexto é que se produz a rejeição aberta ou mascarada dos velhos especialistas ao novo direito e sua adesão mais ou menos espontânea e objetiva ao paradigma da ambigüidade (é óbvio que o conceito de velho e novo se refere aqui a uma categoria político - cultural e não a uma categoria cronológica).

 

4.  Direito  e  pedagogia   da  discrição  à  justiça

 

Convém recordar que na história da "proteção dos menores", os eufemismos da bondade não conhecem limites. Barnardo, a figura mais relevante no campo da "proteção" dos "menores da rua e abandonado" na Inglaterra de fins do século XIX, o expressa com uma clareza que não precisa maiores comentários. A prática de arrancar (é o único verbo que dá conta literalmente das verdadeiras metodologias de "proteção") crianças de suas famílias "inadequadas" e dar-lhes melhores condições de vida, emigrando maciçamente ao Canadá, eram denominadas com o termo "seqüestro filantrópico"[17]. Com estes precedentes, não cabem dúvidas que o paradigma da situação irregular foi indiscutivelmente hegemônico durante sete décadas na América Latina (1919 - 1990).

 

Aos céticos, com respeito às capacidades do direito para influenciar sobre a política social, deve-se recordar-lhes que as leis de menores outorgaram aos juizes (de menores), a capacidade real de desenhar – e parcialmente executar - as políticas para a infância pobre durante todo o período de vigência plena da doutrina da situação irregular.

 

A prova do caráter hegemônico durante pelo menos setenta anos do paradigma da situação irregular, resulta do fato que as discussões e confrontos entre os intérpretes da lei (Juízes) e os aplicadores de suas conseqüências (psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, etc.,), se dava invariavelmente nos moldes e no estreito âmbito do paradigma hegemônico. O velho direito e velha pedagogia constituíam, apenas, variações temáticas (e complementares) da cultura da discricionariedade[18].

 

O que acontece é que se, por um lado, resulta óbvio e evidente que o novo direito exige uma profunda renovação nas filas dos operadores jurídicos (juízes, fiscais, defensores), não está tão clara a extensão e profundidade da renovação necessária no campo dos operadores sociais (pedagogos, assistentes sociais, psicólogos, etc..). Neste sentido este livro (muito mais que este artigo) deve ser entendido também como um convite à reestruturação de um diálogo, articulado e respeitoso, entre os operadores sociais e os juristas. O "pacto de cavalheiros" entre a corporação médica e a jurídica que nas décadas de 20 e 30 concluiu com uma institucionalização híbrida e eclética - a justiça de menores - está absolutamente esgotado. Uma justiça com as aparências objetivas e abstratas da lei, mas, com os conteúdos e o funcionamento real de discricionariedade médica, se encontra em processo de extinção.

 

Mas, como na bela metáfora de Gramsci para descrever a crise, também aqui o velho não terminou de morrer e o novo não terminou de nascer. No entanto, me permitem aqui uma (única) indicação referente à direção que implica a nova relação entre o direito e a pedagogia. Historicamente, e amparado no conceito de inter-disciplinaridade, a "velha pedagogia" tem impregnado cada milímetro do (não) direito de menores. Psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais, entre outros, têm transitado e transitam com naturalidade nas instâncias da velha (e nova) justiça para a infância. Talvez haja chegado a hora de que operadores da defesa técnica (advogados públicos ou  particulares) comecem a transitar com a mesma naturalidade nos espaços de tratamento e reabilitação. Para uma pedagogia das garantias (que é a única forma que a pedagogia pode assumir no contexto do novo direito da infância), a pertinência jurídica do sujeito de uma medida sócio - educativa constitui o primeiro requisito para considerar, só posteriormente, a bondade ou maldade intrínseca da medida pedagógica.

 

Na reestruturação das relações entre o direito e a pedagogia cabem perfeitamente as palavras de Antônio Machado no período imediatamente posterior à Guerra Civil Espanhola: "Temos que inventar até a verdade".

 

4.      Direito e autoritarismo

 

O processo de reformas legislativas que começa a mediados da década de 80 no Brasil, e se estende até nossos dias a todos os países da América Latina, deve ser também entendido como um imenso laboratório para a democracia e para o direito.

 

Na Europa dos anos 80, muito particularmente na Itália e em menor medida na França, surge um movimento de uso alternativo do direito que projetou na América Latina uma certa influência no plano intelectual e acadêmico, ainda que não no plano da política. O ambiente político onde nasce e se desenvolve o movimento do uso alternativo do direito (na Europa) poderia de forma esquemática, sintetizar-se como segue. Num contexto de bloqueio da situação política caracterizado pela imobilidade do percentual eleitoral dos partidos progressistas, de uma crescente produção intelectual crítica no campo do direito e da profissionalização democrática dos operadores da justiça (concursos públicos e carreira judicial), surge a proposta de utilizar numa chave diferente à tradicional, o direito existente. A falta de uma maior base de sustentação política e a incapacidade ou  impossibilidade de políticas de alianças, determinaram a inexistência de condições para a transformação legislativa. Tratava-se, em outras palavras, de usar, com um conteúdo progressista e transformador, a discricionariedade própria da função judicial. É a tentativa de utilização crítica de um direito muitas vezes - razoavelmente democrático ou a rejeição às interpretações regressivas das normas jurídicas processuais, impostas e legitimadas pelas várias faces da emergência (máfia, terrorismo, etc.).

 

No entanto, e provavelmente como conseqüência não desejada, a utilização crítica do direito por parte de seus operadores (os juizes) levou a reforçar os níveis de discricionariedade judicial. Resulta pelo menos paradoxal que Pietro Barcellona, um dos inspiradores do movimento do uso alternativo do direito há vinte anos, se expresse nos seguintes termos num escrito muito recente: "a universidade elaborou teorias legitimadoras de um inadmissível  poder dos juízes. Basta pensar na cada vez mais freqüente afirmativa sobre a função criativa do juiz e na ênfase sobre um direito vivente como alternativa à primazia de um legislador confuso e contraditório"[19].

 

Muito diferente é a situação no contexto latino-americano. Na América Latina dos 80, não só carecíamos de um direito "razoavelmente democrático'', mas também contávamos com um direito explicitamente autoritário e antidemocrático. Esta situação era, particularmente, evidente nas áreas do (não) direito constitucional e do direito penal. O direito de menores, baseado na doutrina da situação irregular, não constitui, é lógico, um subproduto das ditaduras militares dos anos 70, mas se adaptou maravilhosamente a seu projeto "social". A discricionariedade omnímoda do direito de menores legitimada na bondade protetora de setores fracos e sobre tudo incapazes, constituiu uma fonte excelente de inspiração para o direito penal e constitucional do autoritarismo. É por isso que, se hoje o projeto de construção de cidadania da infância descansa na constitucionalização de seu direito, o projeto regressivo do autoritarismo, dos anos 70 e 80, de converter cidadãos em súditos, descansava na "menorização" de todo o direito, muito especialmente o penal e o constitucional.

 

Das múltiplas conseqüências perversas, produto dos autoritarismos dos anos 70 e 80, uma delas se refere a seu impacto negativo sobre a já frágil cultura do direito na América Latina. Sem dúvida, o autoritarismo e suas seqüelas exacerbaram todas as tendências negativas que, sobre tudo no  plano das relações direito - realidade, direito - democracia e direito - cidadania, imperaram e imperam desde a colonização até nossos dias.

 

Ainda com o objetivo de destruir a democracia e a condição de cidadania, os governos autoritários não subestimaram as capacidades técnicas do direito como instrumento eficiente de dominação[20].

 

O direito de menores - particularmente em seu caráter de eficiente instrumento de controle social, especialmente através de sua conhecida "vocação" para a criminalidade da pobreza, conviveu comodamente com toda a política do autoritarismo e não só com sua política social. A discricionariedade omnímoda do direito de menores, onde a legalidade consistia na mera legitimação do "que acredite mais conveniente" o responsável de sua aplicação, constituiu uma fonte excelente de inspiração para o direito penal e constitucional do autoritarismo.

 

O uso profícuo do direito por parte dos governos autoritários confirmou aos "substancialistas", no momento de retorno à democracia, a necessidade de relativizar as capacidades transformadoras do direito e, principalmente, relativizar a qualidade do vínculo entre direito e democracia. A necessidade de que o direito só reflita a realidade parece ser a reação dos que negam por meramente ideológico, um direito diferente à realidade; em outras palavras, dos que explicitamente negam as possibilidades do direito como instrumento pedagógico e proposta democrática de transformação social.

 

5.      Infância e democracia

 

O novo direito da infância - adolescência na América Latina constitui nos fatos (e valha o jogo de palavras, no direito) um desmentido rotundo às profecias do realismo "substancialista". Desde o Estatuto do Brasil de 1990, até a nova lei de infância da Nicarágua aprovada no parlamento em março de 1998, todas as leis gestionadas pelos movimentos de luta pelos direitos da infância têm sido profundamente negadoras da realidade. Se houvesse sido realizado o "check reality" apregoado pelo "realismo substancialista", as recorrentes políticas de ajuste estrutural e as erráticas políticas de segurança produto do alarme social pela delinqüência juvenil, haveriam determinado que todas estas leis fossem não tanto (e só) inúteis senão que além do mais impossíveis. Neste livro se encontram, também para desmentir o "realismo substancialista", as leis, projetos e anteprojetos "impossíveis" de dezesseis países que se atreveram a construir normas jurídicas que não refletem a realidade mas que são muito melhores que a realidade mesma (Exclui-se desta afirmativa o Código de menores de Colômbia, e por isso o número de países se reduz a dezesseis). Leis que, se bem que ninguém interpreta como instrumentos mágicos, e muito menos suficientes para qualquer mudança profunda nas condições materiais da infância, serviram para ser entendidos como condição sine qua non da melhoria da situação das crianças e adolescentes e sobretudo da qualidade de nossa vida democrática. Projetos de lei que acabaram sendo, na feliz expressão de Antônio Carlos Gomes da Costa, verdadeiros projetos de sociedade. Talvez seja conveniente recordar aqui que, neste continente de paradoxos, os que menos fazem são precisamente os homens "práticos e pragmáticos", e não fazem nada porque empregam todo seu tempo em explicar-nos "cientificamente" o caráter inelutável do existente porque o que é, é o único que pode ser e o que não é, liso e claro não pode ser. Assim como o afirma Alessandro Baratta, neste desprezo da utopia, entendida particularmente em sua dimensão do que “ainda não é", se encontra a explicação de uma parte não pouco importante dos problemas da nossa democracia. Das crianças - continua afirmando Baratta - que não perderam esta capacidade, porque seu mundo de vida ainda não foi colonizado pela razão cínica; temos, sem exageros nem demagogias, muitíssimo que aprender[21].

 

O movimento do novo direito da infância não só espera um balanço crítico (que oxalá seja externo à sua lógica, à sua cultura e. a seu funcionamento), senão que também uma profunda reflexão relativa a suas potenciais conseqüências e a seu caráter contaminante positivo (e se fosse o caso negativo) sobre o resto do direito.

 

 

6.      Direito e realidades a "contribuição" do masoquismo institucional

 

Se em algum lugar o pensamento regressivo teve (e em boa parte tem ainda) um caráter hegemônico é no campo do direito. Faz já alguns anos (quando imperavam na América Latina governos abertamente autoritários), ocupei-me especificamente do tema sustentando que a hegemonia jurídica constituía (também) para os grupos dominantes, uma forma de recuperar o desgaste, conseqüência das relações abertas de dominação que se exerciam no plano da política[22]. Mas se a afirmativa anterior explica em parte as causas da hegemonia jurídica, diz em troca muito pouco a respeito de seu conteúdo e manifestações concretas.

Em poucas áreas da vida social a hegemonia jurídica regressiva se manifestou com mais força (e eficiência) que na área da "política social para os mais necessitados". Mais ainda, não me parece exagerado repetir que desde 1919, as leis de menores têm conduzido, ideológica e materialmente, a política para as crianças pobres na América Latina. Ainda que pareça paradoxal, a hegemonia jurídica do pensamento regressivo se manifesta (também) na subestima que do direito e do jurídico fazem os setores que politicamente se auto consideram como progressistas e - sem dúvida alguma - como modernizadores. Esta perspectiva, mas sobretudo este problema na América Latina, remete à muito pouco explorada com seriedade e atenção, relação entre direito e realidade. É assim que a cultura garantista e democrática encontra um obstáculo político-cultural considerável em algumas manifestações - recorrentes - do pensamento "substancialista" próprio do paradigma da ambigüidade.

 

A formulação de políticas, ou o que é pior, de propostas legislativas em função das deficiências, das omissões, das violações, definitivamente, do que não é, em vez de em função do que deveria ser, teve e tem conseqüências negativas gravíssimas sobre a cultura dos direitos e sobre a própria democracia (mutatis mutandi algo bastante similar se pode dizer das leis e políticas que só se referem aos excessos intoleráveis). As leis "protetoras" da criança trabalhadora constituem, como já se mencionou, um bom exemplo de erro elevado à categoria de política jurídica e social. De fato, as leis "protetoras" tendem objetivamente a legitimar, consolidar e, sem dúvida, também a reproduzir de forma ampliada as violações e omissões que a própria lei protetora pretende paliar.

 

Relativizar também normativamente, uma violação aos direitos consagrados numa norma jurídica de classe superior (exemplo, a Convenção ou a própria Constituição), implica objetivamente em renunciar ao direito como um instrumento eficaz que assinale o caminho para reduzir e eliminar injustiças flagrantes e desigualdades intoleráveis. Neste contexto, flexibilizar de forma "realista" a legislação para "proteger" a criança trabalhadora, por exemplo, não se diferenciaria política ou conceitualmente em nada, de suavizar as normas que castigam a violência policial, utilizando o argumento de sua alta freqüência.

 

De modo similar que a relação direito - pedagogia, também a percepção social da relação direito - realidade na América Latina exige uma análise critica renovada.

 

A percepção social dominante a respeito da relação direito – realidade é sobretudo, a história de sombrias profecias que - geralmente - se auto-realizam A percepção "popular" proporciona alguns exemplos que merecem uma atenção muito mais séria que a dispensada até agora. Do "se acata mas não se cumpre” ao para os amigos tudo, para os inimigos a lei" (frase esta última que se atribui a Getúlio Vargas, mas que na realidade poderia ser de tantos outros), existe uma maciça continuidade negativa que, curiosamente quase nunca aparece manifesta nas análises que explicam os problemas e fragilidade de nossas democracias. À análise das funções específicas do direito como mecanismo co-ativo de integração social no contexto dos governos autoritários[23] não se seguiu até agora, uma análise similar em condições democráticas.

 

O pensamento "substancialista" contribuiu para consolidar a visão de uma relação perversa entre direito e realidade. A percepção dominante da relação entre condições materiais e condições jurídicas da infância; oferece um exemplo que merece uma menção mais explícita e profunda.

 

A experiência dos processos de reforma legislativa destes últimos anos (...) demonstra que, enquanto num pais convivem condições materiais da infância graves e preocupantes (desnutrição, mortalidade infantil, detenções ilegais e arbitrárias, etc.), com condições jurídicas similares, quer dizer, com leis velhas e desprestigiadas (negadora do direito, carentes de garantias ou inclusive tecnicamente vergonhosas), a "opinião pública" (que como se sabe, muitas vezes é a menos pública das opiniões), tende a ignorá-la, neste caso, correspondência entre direito e realidade. No entanto apenas um país onde as condições materiais da infância são graves aprova uma lei democrática em seu processo de produção e garantista em seu conteúdo, começa um processo brutal de exigências de natureza quase milagrosas à. nova lei.

 

O fato de que a nova lei proponha condições materiais muito melhores que as existentes é suficiente para sua condenação como utópica. Mas utópica não no sentido positivo de E.Bloch, que entende a utopia como '"o que ainda não é", mas utópica no sentido de depreciavelmente impossível. Utopia  negativa se refere - geralmente - à impraticabilidade da lei pela ausência (total) de recursos de todo tipo, especialmente financeiros. Como se .os orçamentos, por outra parte quase sempre “sensíveis” à clientela eleitoral, fossem imunes a qualquer tipo de pressão social.

 

Neste contexto, há um "sentido comum latino-americano" que se aproxima muito ao que - com uma certa ironia, ainda que não muita - se poderia denominar de masoquismo institucional. A reação imediata frente a uma boa lei se expressa, muitas vezes, na frase "esta lei é demasiado boa para  nós, essa é uma lei para Suíça ou para Suécia".

 

Uma visão como esta comete - como mínimo - um duplo erro. Em primeiro lugar, subestima tanto o potencial caráter pedagógico da lei, quanto sua condição de instrumento decisivo na construção da cidadania, sobretudo quando é utilizado como ferramenta técnico - política de transformação social. Em segundo lugar, este "realismo" antiutopista dá como certo o caráter imodificável que o capitalismo selvagem do ajuste estrutural assumiu: derrubada da política social e controle férreo das conseqüências do darwinismo social instaurado. Esta percepção não só é incorreta. Desde qualquer perspectiva conseqüente com a consolidação plena de uma verdadeira democracia, além de tudo é falsa. A subestima do papel estratégico do direito num processo de mudança social não é principalmente conseqüência da fragilidade da democracia e suas instituições. É a fragilidade da democracia e suas instituições que são o resultado da subestima das capacidades do direito como forma democraticamente privilegiada de assegurar a justiça e a paz social. Por isso não me parece exagerado afirmar que, se não detivermos no plano político, jurídico e cultural, os avanços "realistas" do "substancialismo", corremos o risco de regressar à situação que existia antes da Revolução Francesa, quando o exercício efetivo dos direitos fundamentais dependia - explicitamente - das condições materiais[24]. É dizer, a uma situação (ideal para os "substancialistas"), na qual o direito refletia fielmente a realidade.

 

7.      Globalização, infância e direitos humanos

 

A década dos anos 90 foi uma década de mudanças muito profundas em todos os âmbitos imagináveis. O processo de globalização modificou radicalmente o compromisso histórico entre Estado e mercado[25] mais precisamente, rompeu-se a inserção no mercado de trabalho como fundamento da cidadania, esta última base do funcionamento da democracia moderna[26].

 

Mas se por um lado o fundamento da cidadania não está mais primordialmente referenciado a um mercado de trabalho cada vez mais volátil, no âmbito da democracia seu fundamento - sobretudo a partir do descrédito com que as democracias "populares" marcaram qualquer projeto de soberania popular - foi se deslocando cada vez com mais força ao plano dos direitos fundamentais do homem[27].

 

A compreensão dos efeitos reais da globalização, sobretudo no plano social, exige o abandono de qualquer forma de aproximação maniqueísta ao problema. Além do mais, se as bases da cidadania e a democracia se encontram num processo profundo de reformulação, a categoria infância está longe de ser uma variável independente ou passiva com respeito a ditas transformações. A Convenção não é só uma carta magna dos direitos humanos da infância adolescência; é também, a base jurídica concreta para restabelecer um conceito de cidadania mais de acordo com os tempos.

 

Se por um lado a "mão invisível do mercado" se encarregou de destruir a "certeza" do trabalho como fundamento da cidadania, por outro lado, " a mão visível do direito" está se encarregando de destruir a outra "certeza" que equiparava e restringia o conceito de cidadania ao mero exercício de alguns direitos políticos. Basta por agora este exemplo para mostrar o caráter profundamente contraditório das tendências que emergem do processo de globalização.

 

Em extraordinário artigo, Alessando Baratta explica como a Convenção constitui ao mesmo tempo causa e efeito de uma nova reestruturação do pacto social. Se, como é sabido, o pacto social da modernidade se baseou, muito particularmente, na exclusão dos não cidadãos (não proprietários, estrangeiros, mulheres e crianças), com cada crise e ruptura de dito pacto original, a pressão social e o direito desempenharam um papel fundamental na ampliação de suas bases de sustentação. Parece-me importante recordar aqui que o "direito", que teve um papel fundamental nos movimentos de reestruturação do pacto, não foi só o direito constitucional, mas também o civil e o de "menores", termo este último com o qual em realidade ainda se denominam os diversos estatutos de incapacidade da infância.

Do mesmo modo que para a mulher[28], também a incapacidade política da infância está precedida por uma incapacidade civil, que por sua vez se baseia e legitima numa ampla série de incapacidades "naturais", que o direto de menores só se tomou o trabalho de "reconhecer" e outorgar status "científico". Mas se o direito autoritário cumpriu um papel fundamental na legitimação das técnicas de exclusão, é necessário conhecer esse direito um pouco mais, não só no seu conteúdo mas também na sua forma. Se o conteúdo do direito autoritário se deixa reconhecer por quem quer que seja de forma .clara e explícita, não sucede o mesmo com sua forma. A forma autoritária do direto remete a seu casuísmo concreto, que no caso do direito de menores se refere à proteção específica de pessoas pertencentes a determinadas categorias (crianças vítimas de abusos sexuais, maltratados, da rua, trabalhadores, privados de liberdade, etc.)[29]. Pelo contrário, a forma emancipativa e construtora de cidadania para todos faz referência ao caráter abstrato e geral da lei.

 

Norberto Bobbio expressa de forma medianamente clara esta "sutil" diferença entre forma e conteúdo quando afirma:

 

"Que a junção igualadora da lei dependa de sua natureza de norma geral que tem por destinatários no só um indivíduo mas também  uma classe   de   indivíduos   que   pode   ser constituída da totalidade dos  membros  do  grupo  social,  está  fora de  discussão. Justamente por causa de sua generalidade uma lei, qualquer que esta seja, e portanto independentemente  de  seu conteúdo, não consente, pelo menos no âmbito  da  categoria de sujeitos aos quais se dirige, nem o privilégio, quer  dizer,  as  disposições  a  favor  de  urna      pessoa,   nem  a discriminação, quer dizer as disposições contra uma só pessoa. Que logo  existam  leis  igualitárias  e  leis  inigualitárias é outro problema.: um problema relativo não à forma da lei, mas sim a seu conteúdo"[30].

 

Se o direito de menores cumpriu um papel (regressivo) fundamental, entre outras coisas por legitimar as exceções às garantias que o direito constitucional oferece a todos os seres humanos, um novo tipo de direito constitucional inspirado na Convenção abre as portas para uma nova reformulação do pacto social, com todas as crianças e adolescentes como sujeitos ativos do novo pacto. Valha como exemplo técnico jurídico o histórico artigo aprovado em junho de 1998 pela Convenção Constituinte do Equador,  consagrado na nova Constituição Nacional. Desvinculando o conceito de cidadania da estreita compreensão que o reduz a um mero sinônimo de direito ao sufrágio, o artigo 6 da Constituição Política do Equador estabelece:

 

"Os equatorianos são por nascimento ou naturalização .Todos os equatorianos são cidadãos e como tais gozam dos direitos estabelecidos nesta Constituição, que se exercerá nos casos e com os requisitos  que determina  a lei ".

 

Estou convencido que a importância desta nova reestruturação do conceito de cidadania dificilmente possa ser subestimada.

 

De seu sentido original, revolucionário em relação à velha ordem feudal que só reconhecia súditos, mas excludente de toda categoria diferente do macho branco, proprietário e não estrangeiro, o conteúdo real do conceito de cidadania pode ser entendido também como um termômetro da democracia.

 

Tal como corretamente o sugere Luigo Ferrajoli[31] , a idéia e prática dos direitos humanos constitui sem dúvida o instrumento mais eficiente para fechar progressivamente a brecha que separa os direitos de (todos) os homens dos direitos de (alguns) cidadãos. Precisamente por isso, não é ocioso - nem muito menos "ideológico" - entender a Convenção e toda a série de leis e projetos (...), como instrumentos específicos de direitos humanos de todas as crianças e dos adolescentes. Neste caso a tarefa de reconstrução da dignidade humana é dupla. Não se trata só de fechar a brecha entre "homens" e cidadãos; trata-se também de fechar a brecha – para começar jurídica - entre crianças e "menores". Neste sentido e sem nenhum exagero, este segundo processo de reformas legislativas deve ser entendido (também) como a Revolução Francesa que com duzentos anos de atraso chega a todas as crianças e adolescentes.

 

8.      Memória do futuro: a infância uma questão  de  justiça

 

Durante sete décadas (1919-1990), as leis de menores foram muito mais que uma epiderme ideológica e mero símbolo de um processo de criminalização da pobreza. As leis de menores foram um instrumento determinante no desenho e execução da política social para a infância pobre.

 

As leis de menores foram um instrumento (legal) determinante para legitimar a alimentação coativa das políticas assistenciais. A polícia - em cumprimento das leis de menores e simultaneamente em flagrante violação dos direitos e garantias individuais consagradas em todas as Constituições da região - converteu-se de fato no provedor majoritário e habitual da clientela das chamadas instituições de "proteção" ou de "bem estar".

 

Até a aparição do Estatuto da Criança e do Adolescente do Brasil em 1990, a "legalidade minorista" e as políticas assistenciais caminharam na mesma direção. É só a partir de 1990, que a lei e o assistencialismo clientelista tomaram caminhos opostos. Também por este motivo é que as novas leis da infância não refletem simplesmente a realidade, mas sim que são muito melhor que ela.

 

Nos últimos anos assistimos na América Latina uma diminuição considerável na qualidade e quantidade das políticas sociais básicas (saúde e educação), que inclusive certos formalismos não conseguem dissimular. Para dar só um exemplo, o acesso praticamente "universal" à educação primária se tem obtido através de duas "variáveis de ajuste" que, por outra parte, a médio prazo só contribuíram para agravar ulteriormente a situação: a redução  das horas de aula e o salário dos professores. À diminuição das políticas sociais básicas seguiu-se um aumento das chamadas políticas assistenciais ou compensatórias, fenômeno que de forma errada alguns (eu mesmo entre eles) atribuíram pressurosamente à mera diminuição do volume do gasto social. Mas se por um lado assistimos a esta tendência preocupante e negativa  desde o ponto de vista de construção de cidadania, pelo outro, o novo direito para a infância tende invariavelmente (para dize-lo de forma  esquemática e resumida) à separação nítida entre problemas sociais e problemas especificamente vinculados à violação da lei penal. De um (não) direito da compaixão - repressão, se tem avançado para um direito das garantias.

 

 É precisamente neste último ponto onde se cruza o tema da infância,  não só com o terna da lei, mas também muito especialmente com o tema maior da democracia.

 

O que acontece é que o deterioro e a diminuição da qualidade e quantidade das políticas sociais básicas não se deixa explicar por meros motivos econômicos. Além das dificuldades crescentes para a determinação do volume real do gasto social, a tendência assinalada anteriormente se verifica inclusive na - paradoxal - situação de aumento do gasto social. "O gasto social se tomou sumamente sensível aos ciclos eleitorais" se afirma  elegantemente num excelente artigo sobre o assunto[32]. É  que o aumento da cobertura das políticas assistenciais e a diminuição das políticas sociais básicas parece explicar-se com uma lógica muito mais política que econômica. Também aqui o conceito de discricionariedade resulta central para entender este fenômeno. Enquanto as políticas sociais básicas tendem a ser percebidas como uma obrigação do Estado das quais os cidadãos, enquanto tais, se sentem credores de um direito, as políticas assistenciais resultam muito mais percebidas como prerrogativas de um governo (quando não de um partido) frente às quais o cidadão se transforma em cliente e o serviço em dádiva.

 

Possivelmente resulta mais claro agora entender que qualquer redução dos âmbitos da discricionariedade resulta diretamente proporcional ao aumento dos espaços reais da democracia. A história e a experiência confirmam que não existe um só exemplo consistente que demonstre que a  discricionariedade (predomínio de qualquer tipo de condição subjetiva) tenha efetivamente funcionado (tal como deveria ser, se nos ativermos a seu discurso declarado) em beneficio dos setores mais fracos ou vulneráveis. Em conclusão, a focalização que é a forma "tecnicamente natural" que assumem as políticas assistenciais, quando não resulta estritamente necessária, se converte não só em parte dos problemas que afligem a política social senão que o que é ainda muito pior, num sério problema para o próprio desenvolvimento democrático.

 

Só se tomamos em consideração os séculos transcorridos na história da "proteção" da infância, não resulta difícil dar-se conta que o processo de construção de sua cidadania apenas está começando com exemplos que seria um grave erro subestimar, como o da recente Constituição equatoriana. O enfoque esquizofrênico da compaixão - repressão perdura ainda hoje em muitas cabeças e em algumas poucas leis; do que não cabe dúvida é de que o presente e o futuro da infância já são uma questão de justiça.

 

 

Notas

 

[1] Por ter enfrentado este problema inúmeras vezes nos últimos tempos em debates e discussões, parece-me interessante apresentar aqui Lima nota explicativa. No caso de Somália, o motivo é óbvio. Faz muitos anos que a guerra civil fez desaparecer todo vestígio do governo central e muito mais do Estado. A Somália se tornou puramente geografia e não consegue constituir-se como sujeito do direito internacional. O caso dos Estados Unidos é muito mais complexo e requer uma explicação que, a meu ver, remete a três motivos de natureza diversa: a) o primeiro, se vincula com uma tradição jurídica do direito anglo - saxônico - profundamente reforçada em oposição ao bloco soviético nos anos da guerra fria - que privilegia os direitos e garantias individuais, isto é, o direito como um instrumento eficaz para restringir a área de intervenção do Estado na vida dos indivíduos. (Uma tradição que resiste à transformação para normas exigíveis) de aspectos vinculados à área econômica - social (saúde, trabalho, moradia, etc.). Neste sentido, é preciso não esquecer que a CIDN é também um catálogo de  direitos econômicos e sociais. b) o segundo motivo se refere a uma imagem (falsa mas eficiente para conquistar credibilidade) que grupos conservadores, geralmente de caráter religioso, propagaram, no sentido de que a CIDN destrói completamente a autoridade dos pais sobre os filhos. Esta percepção é totalmente falsa. No entanto, o que é verdade é que a CIDN reduz drasticamente as relações de discrição entre pais e filhos. Neste sentido, é precisamente que a CIDN reformula radicalmente as relações das crianças, não só com o Estado, mas também com os adultos; e; c) o terceiro motivo, de natureza eminentemente simbólica, não deixa por isso de ser sumamente importante e se vincula estreitamente com os temas de segurança urbana e delinqüência juvenil. Na maioria dos estados dos Estados Unidos, quando um adolescente maior de 14 anos (em vários estados esta idade é ainda inferior), comete um delito muito grave é julgado e sentenciado, podendo, inclusive ser condenado à pena de morte, que se executa uma vez cumprida a maioridade. A ratificação da CIDN faria com que esta última situação fosse, desde o ponto de vista político e,jurídico, impossível, ou pelo menos enormemente complicada.

[2] BARCELLONA,pietro, Política e passioni, Bollati Boringhieri, TURIM, 1997, PÁG.61.

[3] Além da considerável quantidade de bibliografia em português, para os leitores de fala castelhana, se recomenda muito especialmente os trabalhos de Edson Seda (1992) e Antônio Carlos Gomes da Costa (1992).

[4] O art.227 estabelece, “É dever da família, da sociedade e do estado assegurar à criança e ao adolescente, com prioridade absoluta, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à recreação, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão...”. Por sua parte, o art. 204 estabelece: “As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento de seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nos seguintes princípios... II. Participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.

[5] Para uma análise bastante exautiva desta primeira etapa, mas que só abrange cinco países da região (Argentina, Colômbia, Costa Rica, Uruguai e Venezuela) cfr. E. Garcia–Méndez – E. Carranza (1990). Para uma análise mais global referente a toda América Latina, cfr. E. Garcia-Méndez (1997, pp45 e 55).

[6] Sobre este ponto específico da relação direito-democracia, cfr, L. Ferrajoli (1989, especialmente p. 992)

[7] O conceito de “pedagogia” está particularmente referenciado a uma necessária reformulação crítica que, em situação de garantia, deverá realizar a educação e os educadores, sobretudo – ainda que não exclusivamente – em situações vinculadas ao conflito dos adolescentes com a lei penal.

[8] Sobre este ponto específico que explica como o investimento em educação, nos países hoje desenvolvidos, precedeu e possibilitou o desenvolvimento econômico, cfr. M. Weiner (1991, em especial pp. 109-151).

[9] Sobre este ponto que remete também à discrepância, governo dos homens Vs.. governo da lei cfr. N. Bobbio (1995), especialmente pp 182 e 183.

[10] Sobre este ponto, e muito especialmente sobre o uso da metáfora da cartografia, cfr. B. de Souza Santos (1991, pp213 e 55).

[11] Se utiliza aqui o termo “criança” no preciso sentido jurídico que lhe outorga o novo direito da infância na América Latina para designar menores de 12 ou 13 anos. Acima deste limite, as novas leis os reconhecem como adolescentes.

[12] De forma brilhante, Antônio Carlos Gomes da Costa, assinala que um dos principais problemas do trabalho infantil consiste justamente em não ser percebido como tal. Gomes da Costa continua afirmando que as sociedades estão preparadas, no melhor dos casos, para enfrentar problemas e não para enfrentar “soluções”. Ainda que soe paradoxal, para enfrentar o tema do trabalho juvenil ainda devemos realizar mais esforços, principalmente no plano político-cultural, para que a sociedade o perceba como um problema.

[13] Sobre este ponto, cfr. O trabalho de Antônio Carlos Gomes da Costa (1998) – Pedagogia e Justiça.

[14] Sobre o novo direito da infância e, particularmente, a CIDN, entendido como uma reformulação radical das relações entre as crianças e os adultos, e, as crianças e o estado, cfr.; o excelente trabalho de Miguel Cillero sobre “O Interesse Superior da Criança”.

[15] Refiro-me aqui ao educador, entendido este em seu sentido mais amplo.

[16]Cfr. García-Méndez, Emilio, 1997, pags. 209-227.

[17] Cunningham, Hugh, Storia dell infanzia, XVI-XX Secolo, IL Mulino Bolonia, 1997, p. 183.

[18] Cfr. E. García-Méndez, 1997b, pp 27-32.

[19] Barcellona, Pietro, 1997, pag. 40.

[20] Para uma análise mais detalhada sobre as funções específicas do direito no contexto dos autoritarismos dos 70 e dos 80, E. Garzón Valdés (1993), E. García-Méndez (1987) N. Lechner (1997).

[21] Cfr. O artigo de Alessandro Baratta sobre “Infância e Democracia”.

[22] (E. García-Méndez, 1987, pp 231-242)

[23] Cfr. entre outros (n. Lechner, 1977, E. Garzon Valdés 1993).

[24] Sobre este ponto em especial, cfr. S. Rodota (1997), especialmente pp 130-131).

[25] Pietro, Barcellona, 1997, p.49.

[26] (U.Beck, 1997, pp.21-25).

[27] Esta é uma explanção realizada por A Touraine (1992), citado por S. Rodota (1997, p.7).

[28] Para uma análise mais detalhada sobre este problema mas com relação à mulher cfr. O excelente livro de G. Zincone (1992).

[29] Ver tendências a juridificar categorias como estas, no livro segundo do Código da Família e do menor do Panamá.

[30] Cfr. Norberto Bobbio, 1995, pp 176-177.

[31] Ferrajoli, Luigi, 1994, pp. 263-292.

[32] Cfr. Bustelo. E – Minujin. A, 1997