Recorridos:
Fazenda Pública do Estado de São Paulo e Município de Bauru
Razões de Apelação
Egrégio Tribunal de Justiça
Colenda Câmara
Douta Procuradoria de Justiça
1. O Representante do Ministério Público que esta subscreve, legitimado pelos artigos 129, inciso II, da Constituição Federal, 5º da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), 201, inciso V, do Estatuto da Criança e do Adolescente e artigo 5º da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) ajuizou a presente ação civil pública em face da Fazenda Pública do Estado de São Paulo e do Município de Bauru, pois, em resumo, apurou-se nos autos do procedimento preparatório de inquérito civil n.º 1/99 que tais entes públicos não estão cumprindo a obrigação de oferecer às crianças e adolescentes vagas no ensino fundamental suficientes e próximas das respectivas moradias, razão pela qual pleiteou-se a condenação solidária dos apelados a:
a)
obrigação de fazer, consistente na
disponibilização de vagas no ensino fundamental para os próximos anos letivos,
inclusive o ano 2.000, de sorte que as crianças e os adolescentes sejam
atendidos nas proximidades de suas moradias, sendo possível o deslocamento das
mesmas à escola sem a necessidade de transporte coletivo, sob pena de pagar
cada acionado multa no valor de R$ 1.000,00 (mil reais) por dia e por criança
ou adolescente que esteja fora da escola por falta de vaga nas redes públicas
estadual e municipal, e responderem por crimes de desobediência e de
responsabilidade;
b)
enquanto o pedido supra não for atendido com a disponibilização de vagas no
ensino fundamental próximas das residências dos alunos, que os acionados sejam
condenados solidariamente na obrigação
de fazer, consistente no transporte gratuito das crianças e adolescentes,
sem prejuízo do que já vem sendo realizado, de suas moradas para as escolas das
redes estadual e municipal onde houver vaga para o ensino fundamental, de sorte
que nenhum deles fique fora da escola, sob pena de pagar cada acionado multa no
valor de R$ 1.000,00 (mil reais) por dia e por criança ou adolescente que
esteja fora da escola por falta de transporte e/ou de vaga nas redes públicas
estadual e municipal, e responderem por crimes de desobediência e de
responsabilidade;
c)
obrigação de fazer, consistente na
realização de recenseamento da população em idade escolar em todos os conjuntos
habitacionais construídos nos últimos 10 (dez) anos, objetivando aferir a
demanda e combater a evasão escolar (art. 5º, § 1º, I, da LDB);
d)
obrigação de fazer, consistente na
realização de “chamadas públicas” pelo rádio, jornais e televisão e outros
meios de comunicação, bem como através de funcionários ou voluntários,
convocando crianças e adolescentes na faixa de sete a quatorze anos para se
matricularem no ensino fundamental das redes públicas estadual e municipal
(art. 5º, § 1º, I, da LDB), anunciando, inclusive, o transporte gratuito;
e)
sem prejuízo dos pedidos retro, requeiro também que o Município de Bauru seja
condenado na obrigação de não fazer,
consistente na não concessão de autorização para construção de novos conjuntos
habitacionais sem a previsão de construção de escola pública para atender
crianças e adolescentes no ensino fundamental, sob pena de, em caso de
autorizar, pagar multa diária no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais),
contados da autorização.
Pleiteou-se,
ainda, o não fechamento de classes do ensino fundamental na escola “Mercedes
Paz Bueno” (fls. 10, letra f).
2.
Após regular instrução, por sentença prolatada no dia 20 de julho de 2001,
julgou-se procedente em parte a presente ação civil pública, condenando-se os
recorridos a:
a) incluir nas suas propostas orçamentárias
do ano vindouro os recursos necessários para disponibilização de vagas no
ensino fundamental, para os próximos anos letivos, de sorte que os estudantes
não se desloquem mais de dois quilômetros de suas moradias para estudar, sob
pena de cada acionado pagar multa no valor de R$ 1.000,00 por dia e por criança
ou adolescente que esteja fora da escola, por falta de vaga, e responderem por
crimes de desobediência e responsabilidade; b) enquanto não forem
disponibilizadas as vagas próximas das residências, no ensino fundamental,
façam os requeridos incluir na proposta orçamentária, recursos necessários para
a execução do transporte gratuito, para aqueles que estudam a mais de dois
quilômetros de suas moradias, sob pena de pagar cada acionado multa de R$
1.000,00 por dias e por criança ou adolescente que esteja fora da escola por
falta de transporte e/ou vaga e a responderem por crime de desobediência e
responsabilidade e c) não promovam a entrega de casas em núcleos habitacionais sem que antes esteja em
funcionamento equipamento de ensino fundamental a distância inferior a dois
quilômetros das moradias, sob pena de pagar a multa de R$ 5.000,00 por dia,
contado a partir da entrega das casas, até a entrega do equipamento em
funcionamento... (fls. 1.497/1.504).
Julgou-se
improcedente os pedidos insertos nas letras c
(recenseamento), d (chamadas
públicas) e f (não fechamento de
classes da escola “Mercedes Paz Bueno”) da inicial por falta de provas (fls.
1.497/1.505).
3.
Inconformado, recorre o Ministério Público a este Egrégio Tribunal, postulando
a reforma da sentença, expondo, para tanto, as razões que segue:
Este o relato do necessário.
Senão
vejamos,
4.2.
A educação como garantia constitucional.
E a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação, como não poderia deixar de fazê-lo, reiterou no artigo 2º
que a educação é um dever da família e do Estado.
O
Estatuto da Criança e do Adolescente, por seu turno, considerando a educação
como um dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, assim dispõe:
Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes:
I - igualdade de condições para o
acesso e permanência na escola; ... omissis
V - acesso à escola pública e
gratuita próxima de sua residência.
O acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo.
Impende
observar, desde logo, que o ensino fundamental é obrigatório, gratuito e
corresponde a fase intermediária da educação básica[1], tendo duração de
oito anos (art. 32 “caput” da LBD). Esta fase da educação básica atende
crianças e adolescentes de 07 (sete) a 14 (quatorze) anos de idade, tendo como
objetivo a “formação básica do cidadão”.
Em
suma, toda criança e adolescente tem o direito público subjetivo de estudar em
escola pública gratuita situada nas proximidades de sua residência, não podendo
o Estado colocar vagas à disposição daqueles em lugares distantes, impedindo
indiretamente o acesso, pois é sabido que os mais carentes não terão condições
de arcar com o transporte coletivo.
Daí
a procedência dos pedidos.
4.3.
Não ofensa ao Princípio Discricionário
ou ao da Independência dos Poderes.
Ora,
a discricionariedade, como bem adverte Hely
Lopes Meirelles,
Não se confunde com poder arbitrário. Discricionariedade
e arbítrio são atitudes inteiramente diversas. Discricionariedade é liberdade
de ação administrativa, dentro dos limites permitidos em lei; arbítrio é
ação contrária ou excedente da lei. (sublinhei) (in Direito Administrativo
Brasileiro, 18ª edição, Ed. Malheiros, pág. 103).
É
evidente, assim, que o poder discricionário não representa um escudo para o
administrador, de forma a permitir que o mesmo descumpra a lei e os direitos
dos administradores, dentre eles o de acesso ao ensino gratuito. A ninguém é
permitido descumprir a lei, nem mesmo o Poder Estatal.
Mesmo
se entendermos que a disponibilização de vagas seria um ato discricionário – o
que, “data venia” já seria um absurdo – imperiosa a atuação do Poder Judiciário
ante a omissão do Poder Executivo, que ofende direito constitucional
assegurado, como acima exposto.
O
que é inadmissível é simplesmente ignorarmos a omissão do Município e da
Fazenda Pública do Estado de São Paulo in
casu, permitindo que o administrador possa construir escola quando bem
entender.
Confira-se,
a propósito, a seguinte fundamentação inserta no acórdão referente à apelação
cível n.º 61.146-5/0, da Comarca de São Paulo, da lavra do Desembargador Lineu Peinado:
Vê-se,
pois, não se estar violando a disposição constante do artigo 2º, da
Constituição da República, mesmo porque cabe exclusivamente ao Poder Judiciário
dizer o Direito. E na hipótese concreta outra coisa não se está fazendo senão
dizer o Direito, determinando-se seja cumprida a Constituição da República em
sua inteireza. A existindo norma constitucional determinando seja prestado o
atendimento social não há se falar em opção da Administração, pois a liberdade
do administrador cessa ante o texto expresso de lei.
No
caso em testilha a discricionariedade dos apelados cingir-se-á na forma como
criarão as vagas para atender a demanda, isto é, se construirão escolas na zona
norte e, depois, na zona sul, ou se as vagas serão disponibilizadas nos prédios
próprios, etc.
4.4.
A determinação de inclusão em orçamento.
Com efeito,
mesmo se os recorridos incluírem em suas propostas orçamentárias verba para a
construção de escolas, nada assegura que, realmente, vagas serão
disponibilizadas, na medida em que: a) as propostas podem não ser aprovadas
pelo Legislativo e, mesmo se aprovadas e incluídas no orçamento, b) nada
assegura que o recurso será obtido e que as escolas serão construídas; ademais,
c) há possibilidade de remanejamento da verba na mesma área da educação. De
resto, quanto tempo terão os recorridos para construírem as escolas???
Em
suma, o fato de constar do orçamento verba para construção de escola não obriga
juridicamente o executor ao r. cumprimento, como acima exposto. Por isso, na
forma como prolatada, nada assegura a r. sentença. Daí o inconformismo ora exposto.
Como
se não bastasse, temos ser absolutamente impossível à Fazenda Pública do Estado
de São Paulo incluir em seu orçamento verba para a construção de escola no
município de Bauru, já que a rubrica se limita a indicar a área na qual será
empregada a verba, e não o município para o qual será destinada.
De
resto, nada impede que mesmo sem a inclusão no orçamento obtenha o
administrador verba para a construção de escola, mediante convênio ou
empréstimo celebrado com outras entidades de direito público no exercício
financeiro. Enfim, a problemática orçamentária deve ser enfrentada pelo
Administrador e não pelo Poder Judiciário.
Somente
com o acolhimento integral dos pedidos é que o direito ao ensino será
assegurado às crianças e adolescentes, pois certamente os apelados lograrão
êxito na obtenção de recursos e na construção das escolas.
4.5.
Distância entre a escola e a moradia.
Ademais,
a distância admitida na r. sentença entre a escola e moradia – 2.000 metros – é
por demais longa, acarretando sofrimento excessivo aos alunos, se considerarmos
que a freqüência no ensino fundamental se inicia aos 7 (sete) anos de idade,
tudo a incentivar a evasão escolar.
Uma
criança não tem estrutura física para caminhar por 4 Km ao dia, mormente se
levarmos em conta a violência que assola a sociedade. Razoável admitir-se como
percurso máximo o de 1 (um) quilômetro.
5.
TRANSPORTE ESCOLAR.
Conforme
admitido na r. sentença, é também direito assegurado no ordenamento jurídico o
custeio do transporte escolar para alunos do ensino fundamental (art. 208, VII,
da CF, e art. 54, VII, do ECA).
Assim,
insuficiente, pelas razões expostas no item 3.4. supra a determinação de
inclusão da verba na proposta orçamentária para o custeio do transporte.
É
preciso que o Poder Judiciário, incumbido pelo ordenamento jurídico como o
órgão competente para apreciar lesão a direito, determine expressa e claramente
aos apelados o imediato cumprimento das normas legais acima citadas, vigentes
há mais de 10 (dez) anos, mas sem cumprimento até a presente data, denotando
evidente falta de interesse político na efetivação do direito.
6.
O RECENSEAMENTO ESCOLAR E CHAMADA
PÚBLICA – OBRIGAÇÕES DOS APELADOS. PRESUNÇÃO DOS FATOS ALEGADOS.
A
Lei de Diretrizes e Bases impõe aos Estados e Municípios, em regime de
colaboração, “recensear a população em
idade escolar para o ensino fundamental, e os jovens e adultos que a ele não
tiveram acesso” (art. 5º, § 1º, I). A Constituição Federal (art. 208, § 3º)
e o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 54, § 3º) também tratam do censo
escolar.
Idêntico
regramento existe em relação às chamadas públicas.
Buscando
tornar efetivo o direito público subjetivo ao ensino fundamental, a
Constituição Federal[2], o Estatuto da Criança e do Adolescente[3] e
a Lei de Diretrizes e Bases atribuem aos Estados e Municípios o dever de fazer
a chamada pública das crianças e adolescentes em idade escolar para o ensino
fundamental, ou seja, aquelas pessoas entre 07 (sete) e 14 (quatorze) anos de
idade. Nesse sentido confira-se o artigo 5º, inciso II do último diploma retro
citado.
Somente
com a realização da chamada pública, realizada de forma eficiente e por todos
os meios de comunicação e com a utilização de servidores deslocando-se nos
bairros, é que será possível tornar efetivo o acesso e permanência de crianças
e adolescentes no ensino fundamental, e combater a evasão escolar verificada
nos bairros.
Não
tendo os recorridos contestado a alegação inicial no sentido de não realização
do recenseamento e da chamada pública, é de se presumir a veracidade, nos
termos do art. 319 do Código de Processo Civil, até porque difícil a
comprovação de fato negativo.
Ora,
incumbiria aos apelados anexarem aos autos documentos comprovando o cumprimento
das obrigações impostas pela Lei de Diretrizes e Bases.
7.
OMISSÃO QUE CONFIGURA, EM TESE, CRIME DE
RESPONSABILIDADE E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.
A
Lei de Diretrizes e Bases, na mesma linha, estabelece que:
“Comprovada a negligência da
autoridade competente para garantir o oferecimento do ensino obrigatório,
poderá ela ser imputada por crime de responsabilidade” (art. 5º,
§ 4º).
O
não cumprimento das normas legais já mencionadas enseja, ao menos em tese, a
responsabilização das autoridades responsáveis pela educação estadual e municipal.
Tal responsabilização, importa anotar, será analisada pelo Promotor de Justiça
que atua na área respectiva e para o qual será enviado cópias do presente
feito.
8.
PEDIDOS.
Isto
posto, e ante o mais que dos autos consta, requeiro e aguardo o provimento do
presente recurso, reformando-se a sentença de primeiro grau, condenando-se a
Fazenda Pública do Estado de São Paulo e o Município de Bauru na:
8.1.
obrigação de fazer, consistente na disponibilização de vagas no
ensino fundamental para os próximos anos letivos, notadamente o ano de 2001, de
sorte que as crianças e os adolescentes sejam atendidos nas proximidades de
suas moradias, em distância não superior a 1.000 metros, possibilitando o
deslocamento das mesmas à escola sem a necessidade de transporte coletivo, sob
pena de pagar cada acionado multa no valor de R$ 1.000,00 (mil reais) por dia e
por criança ou adolescente que esteja fora da escola por falta de vaga nas
redes públicas estadual e municipal, e responderem por crimes de desobediência
e de responsabilidade, conforme exposto no item 7 supra;
8.2.
enquanto o pedido supra
não for atendido com a disponibilização de vagas no ensino fundamental próximas
das residências dos alunos, que os recorridos sejam condenados solidariamente
na obrigação de fazer, consistente
no transporte gratuito das crianças e adolescentes matriculados em escolas
situadas a mais de 1.000 metros da moradia, levando-os de suas moradas às
escolas das redes estadual e municipal onde houver vaga para o ensino fundamental,
sob pena de pagar cada acionado multa no valor de R$ 1.000,00 (mil reais) por
dia e por criança ou adolescente que esteja fora da escola por falta de
transporte e/ou de vagas nas redes públicas estadual e municipal, e responderem
por crimes de desobediência e de responsabilidade, conforme exposto no item 6
supra;
8.3.
obrigação de fazer, consistente na realização de recenseamento da
população em idade escolar em todos os conjuntos habitacionais construídos nos
últimos 10 (dez) anos, objetivando aferir a demanda e combater a evasão escolar
no ensino fundamental (art. 5º, § 1º, I, da LDB);
8.4.
obrigação de fazer, consistente na realização de “chamadas
públicas” pelo rádio, jornais e televisão e outros meios de comunicação, bem como
através de funcionários ou voluntários, convocando crianças e adolescentes na
faixa de sete a quatorze anos para se matricularem no ensino fundamental das
redes públicas estadual e municipal (art. 5º, § 1º, I, da LDB), anunciando,
inclusive, o transporte gratuito;
8.5.
Sem prejuízo dos
pedidos retro, requeiro também que o Município de Bauru seja condenado na obrigação de não fazer, consistente na
não concessão de autorização para construção de novos conjuntos habitacionais
sem a previsão de construção de escola pública para atender crianças e
adolescentes no ensino fundamental, sob pena de, em caso de autorizar, pagar
multa diária no valor de R$ 5.000,00
(cinco mil reais), contados da autorização.
Bauru, 28 de agosto de 2001.
Promotor de Justiça
Notas:
[1]
Nos termos do disposto no artigo 21 “caput” e inciso I da Lei de Diretrizes e
Bases, a educação escolar compõe-se de educação básica, formada pela educação
infantil, ensino fundamental e ensino médio, e da educação superior.
[2]
“Art. 208, § 3º - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino
fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsável, pela
freqüência à escola”.
[3] O artigo
54, § 3º do ECA tem redação idêntica a supra.