VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA ESCRAVA NO SÉCULO XIX
Maria de Fátima
Rodrigues das Neves[*]
Pesquisadora do CDHAL.
O sistema escravagista vigente em quase quatro séculos de nossa História gerou comportamentos coletivos de mandonismo, de exploração e de violência contra o mais fraco, difíceis de serem banidos da sociedade, apesar do ato de Abolição em 1888. O conhecimento mais sistemático e aprofundado desses comportamentos no passado são meios, inclusive, de se buscar formas de extirpá-los e de se construir a cidadania para os vencidos da História.
O CEDHAL vem desenvolvendo um vasto projeto interdisciplinar de pesquisa para recuperar a criança na História da população brasileira, privilegiando a mais desvalida. Este projeto, idealizado e dirigido pela professora Maria Luiza Marcílio, inclui o estudo da criança escrava em suas dimensões demográficas, sociais e culturais. O presente artigo, parte deste estudo em andamento, mostra facetas da utilização do pequeno escravo em São Paulo
A imagem do moleque,
companheiro de brincadeiras e de infância do menino branco que, em geral, o
ganhava como “presente” logo que deixava o berço e aprendia a andar, permeia a
mentalidade brasileira na época da escravidão.
A narrativa dos viajantes estrangeiros, que visitaram o Brasil no século passado, freqüentemente traz a imagem que, dos pequenos escravos, tinham os brancos:
Nas casas de muitos dos fluminenses ricos pode-se atravessar uma fila de crianças de cabeça lanosa, na maioria despidas de qualquer roupa, que têm licença de correr por toda casa e de se divertirem vendo as visitas. Nas famílias que têm algum tintura de costumes europeus, esses desagradáveis pequeninos bípedes são conservados no quintal. Um dos meus amigos costumava jantar freqüentemente em casa de um velho general, da alta sociedade, em torno de cuja mesa pulavam dois pequeninos pretos de azeviche, que quase se penduravam no “pai” (como eles o chamavam até receberem o seu bocado de comida[1].
Este proprietário poderia estar seguindo as instruções do jesuíta Antonil que, no início do século XVIII, aconselhava os senhores de escravos a darem “alguma coisa dos sobejos da mesa” aos filhos pequenos dos escravos, para que estes últimos os sirvam de boa vontade e se alegrem de lhes multiplicar servos e servas [2]
Como pequenos
cãezinhos a receber restos do jantar, também viram-se
representadas duas crianças escravas em uma gravura de Debret.
Este, ao explicá-la, elucida:
No Rio, como em todas as outras
cidades do Brasil, é costume, durante o “tete-à-tete”
de um jantar conjugal, que o marido se ocupa silenciosamente com seus negócios
e a mulher se distrai com os negrinhos que substituem os doguezinhos
(....). Estes molecotes mimados até a idade de cinco
ou seis anos são em seguida entregues à tirania dos outros escravos que os
domam a chicotadas e os habituam assim a compartilhar com eles das fadigas e
dissabores do trabalho. Essas pobres crianças, revoltadas por não mais
receberem das mãos carinhosas de suas donas manjares suculentos e doces, procuram
compensar a faltam, roubando as frutas do jardim ou disputando aos animais
domésticos os restos de comida[3]
Além de desempenharem a função de animais de estimação, os pequenos escravos serviam, também, de divertimento para as visitas. Em uma passagem do relato der sua viagem ao Brasil, o casal Luiz e Elizabeth Agassiz comentou:
Á noite, quando depois do jantar
tomávamos o café na varanda, uma orquestra composta de escravos pertencentes à
fazenda nos proporcionou boa música (...) . No fim da noite, os músicos foram
introduzidos nas salas e tivemos um espetáculo de dança dado por negrinhos que
eram dos mais cômicos. Como uns diabretes, dançavam, com tal rapidez de
movimentos, com tal animação de vida e alegria espontânea que era impossível
não os acompanhar[4].
Em um trecho bastante divertido de suas crônicas, Ina Von Binzer, educadora alemã
que ministrava aulas aos filhos de fazendeiros do Rio de Janeiro e depois de
São Paulo, em fins do século passado, indicava a prática de se dar de presente
aos pequenos das famílias abastadas um cativo que tivesse mais ou menos a sua
idade. Dizia ela:
Um desses domingos estava sentada num dos bancos deste jardim paradisíaco, um baixo de uma imponente
mangueira e sonhava (...) com carvalhos alemães quando, de repente, olhando
para cima, vi uma horrenda criaturinha preta que me apavorou (...) Imagine: aparentava mais ou menos 12 anos,
parecendo mais macaco do que gente, abrindo um sorriso até as orelhas, a
carapinha repugnante, um dedo na testa, a barriga terrivelmente gorda, pernas
como paus pretos, recobertos de cor lilá, de tanto pó. Faça uma idéia desse
conjunto, vestido apenas com uma edição muito resumida de camisa de cor
indefinível e compreenderá que não me sentisse arrebatada por esse nobre
concidadão.
Ao contrário, parece que me sobressaltei de tanto
susto, porque detrás de um arbusto surgiu imediatamente a pequena Leonila que me disse acalmando-me com ar meio protetor: “N´ayez pas peur,
Mademoiselle, c’est Jacob”; mas, vendo, depois, que
meu rosto não exprimia ainda grande entusiasmo pela honra de travar
conhecimento com o santo pai da igreja, acrescentou meio indignada, meio
elucidativa: “Il
est à moi,
grand’maman m´en a fait cadeau
à mon jour de féte”[5].
Nem sempre eram os escravinhos – posses das crianças da camada mais privilegiada de nossa sociedade do passado – tratados com o carinho e a afeição demonstrados por Leonila na passagem de Ina Von Binzer que acabamos de transcrever; sujeitar-se ao trabalho prematuro e a satisfazer os caprichos dos sinhozinhos a que pertenciam, divertir uma platéia entediada pela monotonia da vida rural parecia custar pouco aos escravinhos quando comparados às crueldades a que tantas vezes estavam expostos.
Era a própria criança branca, “proprietária” do menor escravo, que dava início ao martírio que o acompanharia durante toda a sua existência. Gilberto Freyre nos traz trechos de trabalho de alguns estudiosos que demonstram as agruras por que tantas vezes devia passar o menor cativo. Retomando Henry Koster, afirma o sociólogo:
Logo que a criança deixa o berço (...) dão-lhe um escravo do seu sexo e
de sua idade, pouco mais ou menos, por camarada, ou antes, para seus
brinquedos. Crescem juntos e o escravo torna-se um objeto sobre o qual o menino
exerce os seus caprichos, empregam-no em tudo e além disso incorre sempre em
censura e em punição (...) . Enfim, a ridícula ternura dos pais anima o
insuportável despotismo dos filhos[6].
Júlio Belo
também é lembrado por Freyre ao assinalar que o melhor brinquedo dos meninos de
engenho de outrora era montar a cavalo em carneiros, porém, na ausência destes,
usavam moleques: um barbante servia de rédea; um galho de goiabeira, de
chicote. Os moleques serviam para tudo, mesmo nas brincadeiras mais brutais dos
filhos de senhores de engenho: “eram bois de carro, eram cavalos de montaria,
eram bestas de almanjarras, eram burros de liteiras e de cargas as mais
pesadas. Mas principalmente de cavalos de carro”[7].
Tal tratamento, no entanto, ainda representava pouco sofrimento quando comparado às crueldades que recolhemos em inúmeros tipos de documentos datados do século XIX. Os relatos dos viajantes são os primeiros a nos fornecer indicações acerca dos abusos físicos aos quais estavam sujeitas as crianças escravas. Relatórios de chefes de polícia, anexos, em geral, aos relatórios de presidentes de província, trazem-nos casos surpreendentes de maus tratos e até assassinatos de pequenos cativos. Estes informes foram selecionados no conjunto dos Processos Criminais e Policiais relativos ao ano a que se refere o dito relatório. Por fim, a imprensa ocupou-se, vez por outra, em denunciar casos de violência física e castigos excessivos a escravos de pouca idade. Recorremos a esse material e dele recortamos e passagens significativas da violência a que estava exposta a infância escravizada brasileira no século XIX.
Castigos e controle social
A violência de
que nos ocuparemos neste trabalho é aquela decorrente dos abusos físicos contra
a criança escrava, especialmente daqueles infligidos pelos próprios
proprietários dos cativos. A historiografia que se ocupava, até pouco tempo, do
regime escravista de trabalho, no Brasil, apresentava, invariavelmente, como
pano de fundo para discussão, a relação que se estabelecia entre violência e
escravidão. As tendências defensoras do paternalismo da sociedade
brasileira, preocupadas em explicar o caráter “pacífico” das atuais relações
raciais em nosso país, negavam a existência dessa relação, ao passo que
aquelas ligadas aos ideais abolicionistas denunciavam-na enfaticamente. A
revisão sistemática pela qual passavam as teses da benevolência e suavidade da
escravidão nos últimos 30 anos, levou à formulação da hipótese da violência
enquanto elemento inerente ao sistema escravista que propiciava sua manutenção
ao ser tida como uma forma de controle social. Estudos mais recentes que
focalizam o escravismo brasileiro buscam, por outro lado, como clarificou
Silvia Lara, “mergulhar nas vivências senhoriais e escravas, na dinâmica de
seus confrontos cotidianos, nas relações de luta e resistência, acomodamentos e
solidariedades”[8]. Silvia Lara vê na existência implícita à
escravidão uma parte importante, imprescindível, da dominação dos senhores
sobre seus escravos no interior das unidades produtivas[9].
Maria Helena Machado também acredita que a sociedade escravista brasileira tinha por fundamento a violência. Esta, em sua opinião, era subjacente ao escravismo e apresentava-se na subjugação de uma raça a outra, na classificação social do trabalhador e não se restringia simplesmente ao monopólio da força detido pela camada senhorial. A sociedade escravista foi capaz de produzir uma ampla rede de controle social, visando proteger op estrato dominante escravocrata dos confrontos abertos com os cativos, combinando o argumento da força com outros mecanismos de dominação (juízes, padres, feitores, camaradas, agregados)[10].
Interessa-nos aqui problematizar a visão da violência das regiões escravistas, vistas apenas como estratégia para obtenção de obediência, trabalho e submissão, tendo por mostra os casos de violência contra a criança escrava que pudemos encontrar. Problematizar, não negar.
No decorrer da primeira parte do seu livro sobre Campos de Goytacazes da segunda metade do século XVIII e início do XIX, Silvia Lara destaca a violência implícita ao sistema escravista como mecanismo essencial encarregado de assegurar a continuidade da dominação do senhor sobre seus escravos, perpetuando a exploração entre eles e garantindo, para a metrópole portuguesa a exploração colonial [11]. O castigo do escravo infrator, nesse sentido, apresentava-se enquanto parte do “governo econômico dos senhores”, aliado ao trabalho excessivo e ao alimento suficiente. Defendido por religiosos jesuítas, interessados, ao que parece, em ignorar os sofrimentos dos negros cativos, objetivava o “governo econômico” equilibrar a produção lucrativa, a sobrevivência do escravo e a continuação da dominação senhorial[12]. Punir o escravo que houvesse cometido uma falta era não só um direito, mas também uma obrigação do senhor e isso os próprios escravos foram levados a aceitar. O conhecimento social da prática dos castigos de escravos, no entanto, esbarrava na questão da justiça e da moderação, pois somente o castigo aplicado nessas condições corresponderia ao que dele se esperava; a disciplina e a educação. A punição injusta e excessiva provocava, por seu turno, descontentamento e revolta.
Porém, os escravos não estavam expostos somente a castigos decorrentes de faltas cometidas. Inúmeras vezes os castigos físicos eram adotados de um caráter pedagógico e exemplar, visando, em última instância, reativar o poder senhorial pelo medo e pelo respeito imposto naquele momento. Em uma frase: “o castigo dos escravos (...) não foi apenas punitivo, mas esteve voltado para o futuro, prevenindo rebeliões, atemorizando possíveis faltosos, ensinando o que era ser escravo, mantendo e conservando os escravos, enquanto escravos, continuamente”[13].
Não é nosso objetivo, aqui questionar a pedagogia implícita à prática dos castigos físicos de escravos. Acreditamos, contudo, que, em inúmeras ocasiões, tal prática perdeu o caráter pedagógico e assumiu uma feição sádica.
Vítimas de sevícias desmedidas, censuradas inclusive pela sociedade, foram muitas vezes, as crianças escravas brasileiras, aquelas que pareciam, mais facilmente, atrair para si a violência do conjunto social. Pode-se atribuir o rigor dos castigos físicos infligidos a pequenos cativos ao seu menor valor de mercado, ou seja, exposta a uma mortalidade elevada, a criança escrava não recebida, da parte do proprietário, um tratamento muito interessado em sua preservação.
Castigos de escravos
Durante toda a sua existência, achava-se o cativo atemorizado pela ameaça da punição física. Os métodos utilizados em sua consecução eram, por vezes, os mais “bárbaros”, e os instrumentos de punição convertiam-se facilmente em objetos de suplício, pode-se verificar a ameaça de castigo que pairava constantemente no cotidiano, observando alguma das gravuras de Debret. Ao representar uma senhora brasileira em seu lar, o artista teve o cuidado de colocar ao alcance de sua mão um chicote de couro[14]. É também um chicote que aparece pendurado numa sala de venda de escravos no mercado da rua do Valongo[15].
Pior, no entanto, que a ameaça das punições físicas, era a sua consumação. Relembremos alguns dos castigos a que constantemente eram submetidos os escravos faltosos. De acordo com a classificação de Artur Ramos em seu Castigos de Escravos [16], dentre os instrumentos destinados à captura e à contenção de cativos, encontram-se as correntes, a gonilha ou golilha, a gargalheira, o tronco e o vira-mundo, as algemas, os machos, o cepo e a peia. Apesar de serem classificados como instrumentos de captura e contenção, podiam tais utensílios transformarem-se facilmente em instrumentos de suplício, no dizer do próprio Artur Ramos, pois ao provocar “a imobilidade forçada, tornam-se um verdadeiro suplício”[17]. Como instrumentos de suplício foram arrolados pelo autor em questão, a máscara de flandres, os anjinhos, o bacalhau, e a palmatória e, para o aviltamento dos escravos, os senhores faziam uso da gonilha e do libambo, do ferro para marcar, e de placas de ferro com inscrições aviltantes.
O bacalhau ou chicote e a palmatória eram os instrumentos de punição que mais freqüentemente, ao que parece, eram utilizados pelos senhores para punir seus cativos. O proprietário inclusive que não quisesse açoitar pessoalmente um seu escravo ou ordenar a seus prepostos que o fizessem, poderia solicitar tal procedimento a autoridade pública.
Os castigos e açoites eram ministrados ao escravo faltoso diante dos demais escravos da fazenda ou em locais públicos, em geral, na praça onde se instalara o pelourinho, a fim de servir de exemplo a quem se aventurasse a desafiar o poder senhorial. Por vezes, permitia-se algum requinte na crueldade da aplicação desses castigos. Costumava-se, após fustigar o escravo com o chicote, derramar sobre as suas costas lanhadas, muitas vezes em carne viva, uma “salgadura” a que, às vezes, se ajuntava pimenta pilada. Noutras ocasiões, o escravo era condenado ao suplício das novenas e trezenas, isto é, todos os dias, em hora certa, era o cativo açoitado com um certo número de chicotadas. A flagelação repetida reabria, as feridas produzidas anteriormente, impedindo a cicatrização completa.
Aos escravos domésticos cabia a palmatória como utensílio de castigo mais freqüente. A prancha n° 4/10 de Rugendas deixa isso bem claro[18], assim como a prancha n° 19 de Debret que representa uma sapataria, na qual um artesão português, fazendo uso da palmatória fustiga a mão de um escravo[19]. Não devemos esquecer também da cena presenciada por Weelch, que observa uma senhora desferindo, segundo ele, cerca de 50 palmatórias em sua escrava e açoitando uma menina que, com as mãos já inchadas, pediu à senhora que não mais a castigasse com a palmatória[20].
O tronco e o
vira-mundo assemelhavam-se muito quanto à finalidade só variando o tamanho e a
natureza do material que os constituía. Ambos consistiam em um pedaço de
madeira ou ferro retangulares, aberto em duas metades, com buracos maiores para
a cabeça, e menores, para os pés e mãos do escravo. O negro era colocado entre
as duas metades da peça, preso pelo pescoço, pelos tornozelos e pelos pulsos,
cuja extremidade era fechada por um cadeado. Temos a representação desses
instrumentos na prancha n° 45 de Debret[21].
Às correntes e
aos ferros, muitos escravos acostumavam-se desde pequenos. As gargalheiras eram
usadas para atrelar os escravos uns aos outros, no transporte destes de um
lugar para o outro como demonstra a prancha n° 41 de DEBRET[22].
O libambo por sua vez tinha como função impedir a
fuga do escravo que já havia tentado escapar alguma vez. Tratava-se de um
instrumento que prendia o pescoço do escravo numa argola de ferro, de onde por
uma haste longa também de ferro, que se dirigia para cima, ultrapassando o
nível da cabeça do escravo. Esta haste terminava ora em um chocalho, ora por
trifurgação de pontas retorcidas[23]. Destinado somente
aos negros fujões, o libambo servia para dificultar a
fuga do escravo, através do barulho do chocalho, ou das pontas retorcidas que
facilmente prendiam-se aos ganchos das árvores. Algemas,
machos e peias prendiam as mãos e pés dos escravos, dificultando-lhes os
movimentos, enquanto que das gonilhas ou polilhas presas ao pescoço, partiam correntes que prendiam
os membros do negro ao corpo. A todos esses tormentos não estavam imunes os
pequenos cativos. Artur Ramos disse-nos ter lido um jornal do tempo da escravidão
que uma criança de 10 anos “trazia ao pescoço uma enorme gargalheira de ferro
que pesava quatro quilos”. O pescoço estava em carne viva e a criança mal podia
andar, pois seus punhos e tornozelos apresentavam sinais de terem carregado o
tronco de campanha[24].
Os anjinhos, objetos utilizados especialmente para obter confissões, eram instrumentos que prendiam os dedos polegares da vítima em dois anéis que comprimiam gradualmente por intermédio de uma pequena chave ou parafuso. Já a máscara destinava-se ao cativo que se entregava ao pernicioso vício da bebida, ou furtava cana, ou que “comia terra”. Nas regiões de exploração do ouro ou de diamantes, tal utensílio visava impedir que o escravo engolisse alguma descoberta de valor, recuperando-a posteriormente.
Artur Ramos
esclarece-nos, todavia, que estas eram as formas de punição a que geralmente
sujeitavam-se os escravos, admitindo que ocasiões houve em que a “fantasia de
alguns fazendeiros engendrou outros instrumentos de suplício que escaparam a esta
descrição”[25].
Uma vida de suplício não era prerrogativa, como querem alguns do escravo da zona rural: tanto os escravos domésticos quanto os empregados nas atividades urbanas recebiam castigos por vezes mais cruéis que os do cito.
Violência social e infância escrava
Dispomos de alguns exemplos da violência do corpus social como um todo contra a criança escrava. Antes, porém, cumpre lembrar que um lento processo de urbanização tem início nas primeiras décadas do século XIX em algumas vilas brasileiras, dentre as quais São Paulo, favorecida pela importância comercial que o café vinha adquirindo no mercado externo. Por certo, o espaço urbano propiciava a ocorrência de episódios violentos pela proximidade física em que convivem os grupos sociais e pela chance de ascensão social, propulsora de uma relação competitiva entre eles. Além disso, a criação de organismos destinados ao controle social no meio urbano permite que cheguem ao conhecimento de um maior número de pessoas os acontecimentos que, no campo, ficariam restritos aos limites das fazendas. Logo, foi nas cidades que encontramos um maior número de ocorrências envolvendo práticas violentas contra crianças escravas.
Em maio de 1857, o inspetor da Cadeia de Delegacia da cidade de São Paulo comunicou ao delegado que havia recolhido, conforme instruções recebidas, o português Antonio Mariano da Cunha Simas, preso pela patrulha por ter dado uma relhada num moleque de nome Anselmo, de aproximadamente 10 anos de idade, cujo nome do proprietário não apareceu mencionado nas peças do processo. Executado o exame do corpo de delito pelos peritos designados pelo mesmo delegado, constatou-se que o menor apresentava “uma escoriação na face, na região maxilar direita, de extensão de três polegadas e de largura de meia polegada.” Os facultativos declararam ainda que o instrumento que ocasionou o ferimento era de natureza escoriante., mais do que contundente, que dele não decorreriam seqüelas, como destruição ou mutilação de algum membro ou órgão, ou inabilitação para o trabalho ou grave incômodo de saúde e, por isso, o valor do dano causado era “coisa nenhuma”[26]. Interrogado posteriormente, o réu disse ter 22 anos de idade e servir como criado, confirmou os depoimentos das testemunhas que o acusaram e alegou em sua defesa que dera efetivamente duas relhadas com uma cinta de couro no moleque Anselmo, por este e outros o haverem vaiado além de pô-lo por bobo. Decidiu o delegado, neste caso, réu fosse solto por não ter sido preso em flagrante e por ser o crime passível de fiança.
Outra situação – que nos permite concluir que a criança escrava era um alvo fácil da violência social urbana e que, em geral, as ofensas físicas a que constantemente estavam expostas não repercutiam de maneira muito negativa no todo social – deu-se em maio de 1853. Tendo recebido o delegado de polícia da cidade de São Paulo a denúncia de que o pardinho Constâncio, escravo de dona Maria dos Anjos havia sido ofendido por Francisco de Bethen, ordenou que se procedesse ao exame de corpo de delito. Os facultativos examinaram o dito pardinho e declararam que existia, com efeito, “nos limites da região parietal esquerda com a frontal um ferimento de uma polegada de extensão, que compreendeu os tecido moles, por onde saiu algum sangue que existe derramado pela testa, e parte anterior da camisa; foi feito – o ferimento – com corpo contundente e cortante podendo ficar bom em seis a oito dias com a despesa de 5$000rs” [27]. Inquiriu, então, o delegado ao ofendido e este declarou ter sido agredido por Chico de Bethen, na rua da Forca, “em casa de uma mulher chamada Maria de Barros”. Segundo a sua versão, o agressor tomou-lhe a cabeça nas mãos e segurando-a deu com ela no batente da porta e isso “unicamente porque ele respondente lhe disse na rua – Adeus nho Chico...”[28]. O acusado das ofensas físicas alegou em sua defesa, que não fora ele quem ferira o dito pardinho, mas que este último vinha pela rua atirando pedras em sua direção ao que o réu respondeu com a ameaça de lhe bater. Nisso, Constâncio correu e entrou em uma venda, segundo as declarações do acusado, lá se machucando. As testemunhas Escolástica Maria de Jesus, casada, quarenta e tantos anos, confirmou o depoimento do acusado, enquanto Bernardino José Barbosa garantiu ter visto o dito acusado seviciando o menino. Pode ser que, realmente, o menino tivesse provocado o réu e, por isso, este se viu no direito de dar-lhe com a cabeça na porta, como afirmou uma das testemunhas. As demais, no entanto, não mostraram nenhum interesse em ver punido um cidadão que havia seviciado a criança. Os interesses ocultos atrás dessa atitude mereceriam ser desvendados. Na verdade, o objetivo do senhor que abria um inquérito policial quando um seu cativo era ofendido fisicamente era o de recuperar o dinheiro gasto no cuidado dos ferimentos.
Sério foi o fato ocorrido na capital da Província de São Paulo, em 1856, quando a menor Teresa, de 11 anos de idade, mais ou menos, escrava do Recolhimento de Santa Teresa, foi estuprada por um estudante de Direito. A pedido da madre regente do Recolhimento, ao qual pertencia a escravinha, iniciou-se com o interrogatório à ofendida, a qual afirmou que:
Passando
ela pela rua da Boa-Morte, quando fronteava a casa em que morou o Capitão Macedo,
e que ora reside o estudante Orozimbo, este, de
dentro do corredor, chamou a ela respondente mostrando-lhe uma nota de dez
tostões; que ela respondente nessa ocasião em que descia, não entrou, mas na
volta, o mesmo Orozimbo de novo a chamou, e que ela
informante não querendo entrar parou na porta, e ele chegando-se a ela
respondente agarrou-a e levou-a para dentro, e lançou-a a força sobre um
colchão que se achava no chão em um quarto, levantou a roupa dela informante, e
desabotoando-se besuntou-se com cuspe o pênis e
introduziu nela informante; e que ela informante gritou muito com as dores que
produzia o que o mesmo Orozimbo fez; que na varanda
da casa havia porção de moços, mas que ninguém acudiu-a; (...) que quando o
dito Orozimbo concluiu a cópula deu-lhe água fria em
uma bacia de louça pintada azul para se lavar e estancar o sangue que saía em
grande quantidade; que Orozimbo deu-lhe dez tostões,
os quais ela declarante gastou.[29]
O exame de corpo de delito foi solicitado pelo delegado e, após examinar a menina, concluíram os peritos:
Que
encontraram na paciente uma úlcera que parece ser
sifilítica situada na começura posterior dos grandes
lábios; e logo acima dela se acharam carúnculos mirtiformes, à entrada da vulva, situadas na mesma parte posterior;
completa ausência da membrana himem e por isso
entrada franca da vagina, pela qual se fazia um corrimento purulento algum
tanto abundante.
Teve início, então, o interrogatório às testemunhas e surpreendeu-nos a presença de José Nabuco de Araújo, na época com 20 anos de idade, e estudante da Faculdade de Direito, procurando visivelmente proteger o amigo com quem morava. Inquirido sobre as peças do processo respondeu que não presenciou o fato, mas soubera por uma vizinha que, no dia em que se deu a ocorrência, a ofendida, que ele alega nem conhecer, tinha ido levar um recado a Orozimbo, o qual a havia “engambelado” e deflorado, dando-lhe uma banana-maçã; de acordo com Nabuco de Araújo, a vizinha também havia visto a menina sair ensangüentada da casa do réu. Alguns dias depois, informou o inquirido, disse-lhe a mesma vizinha que a “ofendida era rapariga de maus costumes e que não tinha sido violentada, senão gritava”. Desta opinião partilhava o depoente, pois muitos já haviam lhe contado que a ofendida se entregara a Orozimbo, por não a terem ouvido gritar quando o acusado a agredia sexualmente. Além disso, contou a testemunha que a menor tinha cabelos cortados no púbis, mostrando sua intenção em desenvolver-se fora do tempo. Finalizando o interrogatório, perguntou o delegado a Nabuco de Araújo o que o acusado lhe havia contado relativamente ao fato, ao que a testemunha respondeu:
Orozimbo lhe dissera que tinha estado com a ofendida, mas que ela não era virgem e que já tinha moléstias sifilíticas que ele Orozimbo não possuía (...) e que estando a ofendida com essas moléstias sifilíticas na vagina e tendo ele Orozimbo o pênis bastante desenvolvido, era provável que com a introdução houvesse irritado os padecimentos que a ofendida já tinha.
Espantaram-nos as declarações de Nabuco de Araújo, defensor obstinado, em 1871, da Lei do Ventre Livre, concordando que uma menina de apenas 11 anos, escrava de um estabelecimento religioso pudesse ser “de maus costumes” e se houvesse entregado tranqüilamente aos desejos de um estudante.
Posteriormente, em seu depoimento, a vizinha Ana Bernardina Gonçalves de Souza, a quem Nabuco de Araújo atribuía comentários maldosos acerca do comportamento da menina, negou as declarações do futuro advogado afirmando que “não disse ser a dita Teresa de maus costumes, pois nunca viu a ofendida praticar atos alguns de maus costumes, sendo que até vinha a sua casa e brincava com os filhos dela, testemunha”.
Também a testemunha que Nabuco de Araújo informou ter comentado que a menor havia se entregado voluntariamente ao estudante, seu amigo, Maria escrava de dona Jesuína Maria do Carmo e que servia como cozinheira a Orozimbo, negou que tivesse dito tal coisa e que, antes pelo contrário “ouviu do dito Nabuco e Felício de Castro, companheiros de Orozimbo, no dia seguinte ao acontecimento, que o dito Orozimbo tinha feito mal, isto é, tinha deflorado uma rapariga”.
Até mesmo alguns colegas do ofensor confirmaram o que foi declarado pela ofendida, como é o caso de Afonso Celso de Assis Figueiredo que chegou a informar que acharam no quarto do réu um lençol ensangüentado, bem como nódoas de sangue no assoalho. Este lençol, segundo o testemunho de uma escrava do tenente coronel Bento Ferraz Gonçalves, Florinda, foi mostrado alegremente pelo acusado aos outros rapazes que com ele moravam, do que eles riram muito. Declarou a mesma Florinda que a pretinha ficou muito doente após a data do acontecido.
Foram inúmeros os testemunhos contra Orozimbo. Ele, no entanto, durante seu interrogatório, afirmou que quase todas as testemunhas eram suas inimigas; que não havia preparado provas que atestassem sua inocência, mas que logo o faria e comprovaria que não havia estuprado a menina Teresa. Finalmente, que protestava contra a incompetência do Juízo e contra a marcha do processo, instaurado, em sua opinião, e seguido sem as fórmulas legais, visto não ter ele, acusado, sido citado para assistir a inquirição das testemunhas.
O tramitar inadequado do processo somado ao pagamento da fiança de 866$000 pelo réu, fizeram com que ele, em janeiro de 1857, fosse considerado inocente.
A referência à prostituição infantil no processo que acabamos de apresentar não deve causar espanto, especialmente se se pensa na camada escrava da população. Em uma passagem de sua obra Casa Grande e Senzala, Gilberto Freyre chama a atenção para o fato de senhoras de escravos explorarem suas cativas. Fala-nos o autor:
Às
vezes negrinhas de dez, doze anos já estavam na rua se oferecendo a marinheiros
enormes, graganzás ruivos que desembarcavam dos
veleiros ingleses e franceses com uma fome doida de mulher. E toda essa
superexcitação dos gigantes louros, bestiais, descarregava-se sobre
molequinhas; e além da superexcitação, a sífilis [30].
Na opinião de João Álvares de Azevedo Macedo Jr., médico que, em meados do século XIX, apresentou sua tese à Academia de Medicina, via-se nas ruas do Sabão e da Alfândega, no Rio de Janeiro, “escravas de dez, doze, quinze anos, mostrando-se às janelas, seminuas; escravas a quem seus senhores e suas senhoras (geralmente maitresses de Maison) obrigavam a vender seus favores, tirando desse comércio os meios de subsistência” [31].
Sadismo senhorial e criança escrava
Sem, dúvida alguma, foram os senhores quem mais se dedicaram a martirizar, de forma sistemática, o dia-a-dia dos escravos desde a mais tenra idade. Seria necessário avaliar os efeitos do sadismo sobre a psique humana para compreender algumas das crueldades praticadas por senhores contra seus cativos que nos chegam hoje, através de inúmeras fontes.
Pohl veicula a notícia de que uma paulista, enciumada com a beleza de suas duas filhas, eliminou-as. Aduz o naturalista austríaco: “Esse mesmo monstro matou o filhinho de uma de suas escravas e apresentou ao marido, que suspeitava fosse o pai do mesmo, o cadáver da criança assado e enfiado num espeto”[32].
São notícias de excessos de castigos físicos que, mais freqüentemente, chegam ao nosso conhecimento. O chefe da polícia do termo da capital relatava, no ano 1873, ter chegado a seus ouvidos que na chácara de Brasílico de Aguiar e Castro tinha morrido uma pequena escrava de Alberto Maria de Azevedo Marques, em conseqüência de castigos excessivos. O cadáver foi exumado e os peritos verificaram a existência de sevícias que produziram a morte. O senhor da menor foi pronunciado e logrou fugir [33]. Igual sorte não tiveram os responsáveis pela morte de uma escrava de 10 anos, de Jacinto Gomes de Morais, a qual sucumbiu por excessivos castigos recebidos da mão de uma mulher que com aquele vivia. O cadáver da menina foi exumado e os acusados, presos.
Em maio de 1858, o delegado de polícia da cidade de São Paulo recebeu uma denúncia da parte de José Mariano de Abreu que afirmava ter Felisberto Cardoso de Melo, morador da aldeia de São Miguel, espancado barbaramente um seu escravo de aproximadamente sete anos de idade, cujo nome era Benedito, “a ponto de ficar o mesmo em estado de não poder se mover, pelo que até hoje está envolto em folhas de bananeiras, muito dilacerado sem poder comer e em perigo imediato de vida”[34]. Foi ordenado, então pelo subdelegado da Freguesia da Penha, o exame de corpo de delito do menor, o qual teve lugar na casa do proprietário do pequeno escravo. Concluíram os peritos, após exame, que encontraram o corpo do menino bastante seviciado, mas que já não havia risco de vida. Arbitraram, ao concluir o exame, em 15$000, o valor do dano causado. Este parecer, à vista da denuncia feita, pareceu-nos extremamente benevolente para com o proprietário do escravinho. Tal opinião foi também partilhada pelo delegado Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça que, ao receber os autos do exame juntamente com uma petição do inspetor do 4º Quarteirão da Cidade na qual este assinala o perigo de vida em que ainda se encontrava o menino, solicitou novo exame médico. Na segunda avaliação, pareceu que, longe das vistas do senhor, os médicos puderam ser mais precisos em seu diagnóstico e, após as investigações necessárias, concluíram que os maus tratos infligidos ao menor foram tão desmedidas que, em conseqüência deles, a vitima poderia vir a falecer. Os ferimentos que encontraram efetivamente, já se achavam em fase de cicatrização; todavia, notaram os facultativos que o peito do ofendido do lado esquerdo estava inchado e, nesse local, as dores internas eram muitas; além disso, chamou-lhes a atenção o fato do menino ter o corpo todo chagado, especialmente sobre o rim, e sua roupa estar toda suja de “maldade” e não de sangue; ainda sentiram no pequeno uma dureza sobre o umbigo. Interpelado Benedito, os médicos descobriram que ele havia permanecido na cama por oito dias, período durante o qual deitou muito sangue pela boca. Os peritos, finalmente, declararam que tal estado de saúde provocava grave incômodo ao cativo, que o inabilitaria por mais de 30 dias ao serviço e que seu tratamento custaria cerca de 100$000rs.
Foi o inspetor do Quarteirão, Henrique de Vasconcelos, que, em outubro de 1880, levou ao conhecimento do subdelegado da capital paulista outro caso de castigos moderados infligidos a uma criança escrava por seus proprietários. O inspetor, que recebeu a denúncia dos vizinhos da casa onde tinham lugar as sevícias, informava, em sua petição, que “na casa n° 48 da rua da Constituição em que mora um Sr Ferreira, dão-se castigos por demais bárbaros a uma preta menor, ao ponto de deixá-la moribunda”[36]. Confirmando a informação do inspetor, um dos vizinhos de Antonio Ferreira, o jovem Alfredo Rhem, cidadão alemão, de 23 anos de idade, ocupado no serviço público declarou que:
Na
casa destes seus vizinhos se infligem castigos bárbaros na menor Vicência, de 8
anos de idade, e que esses castigos são aplicados pela senhora de Ferreira
(...). Sabe mais que o estado da menor é grave pela desumanidade com que são
infligidos os castigos e que a continuarem estas cousas a
escrava necessariamente sucumbirá, acrescentando mais que deitam
a menor castigada no quintal sem lhe darem alimento algum.
Aberto o inquérito, revelou o exame de delito, que passaremos a descrever minudentemente, os tormentos a que se achava exposta a pequena Vicência. Disseram os médicos que a examinaram que lhes foi
apresentada uma menina (...) trajando (...) uma camisa curta de algodão ordinário suja de pus, sangue e matéria fecal; seu estado de magreza, bastante pronunciado, torna-a um pequeno esqueleto, cujas partes componentes se podem contar. O andar vagaroso da paciente é devido a dificuldade de movimentos e locomoção, ocasionada sobre as nádegas e região lombar. A cabeça é despida de cabelos em diversos lugares onde pela natureza excessiva e brilho do couro cabeludo se reconhece ter havido destruição de tecidos, que comprometeu os bulbos capilares qual se comprova pela existência atual de abcessos que os suporam ou estão em marcha de cicatrização. A região óculo-palpebral esquerda é ocupada por extensa esquimose. Uma contusão larga, profunda, coberta por uma crosta sanguíneo-purulenta assente sobre a face anterior da região húmero-radial esquerda, e é lateralizada por dois abcessos profundos. Encontra-se em todo corpo da paciente cicatrizes de diversos tamanhos, estados e datas.
Esta não é a aparência mais adequada para uma menina de oito anos de idade que, além do que foi exposto pelo auto de corpo de delito, ainda apresentava temperatura elevada, sede, brilho nos olhos, tensão e rapidez do pulso, denotando febre intensa, que coincide com desvairamento mental sonolência e fome voraz. Concluíram, enfim, que não só as lesões traumática descritas, mas também o depauperamento geral que delas resulta, aumentado pela falta de alimentação da paciente, a inabilitariam de serviços por mais de 30 dias e que avaliavam o dano causado em 500$000rs.
Inúmeras testemunhas foram ouvidas no inquérito e todas, unanimemente, declararam que Vicência era quase que diariamente castigada de maneira bárbara pelos seus senhores a quem não faltava imaginação para supliciar a escravinha. Como se não bastassem as sevícias, ainda era ela deixada sem comer por muito tempo. Nela batiam com pau e chicote e cada um dos depoentes teve a oportunidade de presenciar uma “requintada” cena de violência.
Os viajantes que passaram pelo país, no século passado, não se furtaram à chance de descrever alguns castigos infligidos a escravos, que puderam presenciar. Walsh é um exemplo: conta-nos o religioso que, pousando, certa feita, num rancho, mantido por uma mulher que lá morava com cinco ou seis negros, viu um menino sendo barbaramente seviciado. Dizia ele:
A mulher era jovem e bastante bonita, mas naquele momento se achava evidentemente embriagada (...). depois de ter esvaziado uma garrafa de cachaça (...) veio para fora, com as faces afogueadas e um chicote na mão – a própria personificação de Tisífone. Um dos seus escravos era um pobre menino de doze anos sobre o qual ela descarregava todos os seus impulsos malignos. Toda vez que o encontrava, ela o atacava a chicotadas, no rosto, no corpo, deixando-o depois gemendo e sangrando – e isso sem nenhuma razão a não ser por simples e cruel capricho[37].
Prossegue Walsch, narrando que, ao jantar
quando
o menino, a quem ela havia tratado tão cruelmente, colocava a comida na mesa
ele deixou derramar um pouco de caldo. A mulher agarrou-o pelo pescoço,
lançou-o no chão e se pos a pisoteá-lo (...). Sobre a mesa havia uma faca
afiada (...). Ela agarrou-a e, batendo com a ponta na mesa, avançou com a intenção
de ferir a mim ou a criança, mas eu a arranquei de sua mão[38].
Interessante é assinalar porém, que chegaram até nós, notícias de crianças escravas quais, inconformadas com os maus tratos recebidos, recorreram às autoridades a fim de que estas tomassem providências. No caso de um ingênuo “maltrapilho, quando, excessivamente emagrecido, com o corpo chagado de queimaduras, escoriações e cicatrizes, que invadiu a casa do juiz de direito de Feira de Santana, suplicando-lhe que não o mandasse de volta a seu senhor”, pouco adiantou tal expediente. O Juiz “entregou a criança ao chefe de polícia que, por sua vez, devolveu ao pretenso ‘senhor’, recomendando que lhe aplicasse uma surra, a fim de que o fedelho não mais se animasse a apresentar queixas a juizes”[39].
Sorte igual teve a menor Catarina, escrava de Maria Leonor, natural de Areias, de aproximadamente 12 anos de idade. Apresentando-se ao subdelegado da capital de São Paulo, em novembro de 1877, após ter fugido da casa de sua senhora, disse-lhe que se havia evadido
por achar-se bastante seviciada e queimada por sua senhora que é má e muitos maus tratos inflige respondente, e já não é a primeira vez que foge em virtude dos maus tratos, pois agora o que motivou sua fuga foi ter sua senhora mandado aquentar café e ao mesmo tempo ordenar à respondente que varresse a casa o que ocasionou ferver o café e cair no fogo, razão pela qual sua senhora enfurecendo-se deu com uma barra de ferro pancadas na respondente que a prostraram por terra, e imediatamente sua senhora atirou-lhe com o café fervendo, produzindo-lhe ferimentos que apresentava [40].
Ordenado o exame de corpo de delito, constatou-se que a menor achava-se muito seviciada, apresentando “sinais de castigos antigos e recentes, dentes estragados, bastante suja e até exalando mau cheiro, o que contribuem – os médicos – às feridas”[41]. De qualquer maneira foi Catarina devolvida à sua senhora.
Conclusão
Ao encerar tão crua narrativa, na qual desfilaram bárbaras crueldades, parece importante retornar nossa reflexão já apresentada: a relação entre violência e controle social. Efetivamente, não se buscou negar, no decorrer destas páginas, a existência de dita relação. Contudo, recuperando as “ pérolas” do abuso físico sobre pequenos cativos, recolhidos de várias fontes documentais, pode-se ter a clara noção de que o sadismo era um dos elementos constitutivos da personalidade do brasileiro, desde a mais tenra idade. E esse sadismo aflorava, obviamente, de maneira mais intensa, na relação senhor-escravo. Os “leva-pancadas” não foram só brinquedo de “sinhozinhos de engenho” malcriados; serviam também como instrumentos sobre os quais liberava-se o ódio, frustrações, desajustes presentes em mentes doentias de alguns de nossos proprietários de escravos do passado.
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Notas
[*]Pesquisadora do CDHAL – Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina/USP. Este artigo insere-se no Projeto-Nuclear do CEDHAL, intitulado: “ A criança na História do Brasil”, financiado pela FINEP e pelo CNPq. Caixa Postal 8105 – São Paulo – Cep 05508 – Fone (011) 815-5273.
[1] KIDDER, Daniel P. e FLEITCHER, James C, O Brasil e os brasileiros Vol I, São Paulo, Cia Editora Nacional, 1941, pp. 148-9
[2]ANTONIL, André J. Cultura e Opulência do Brasil, 3ª ed Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1982, p, 92
[3] DEBRET, Jean-Baptiste, Viagem Pitoresca e Histórica do Brasil. Tom I, vol. 2, Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia?EDUSp, 1978, prancha 7, pp 195-8
[4] AGASSIZ, Luis e AGASSIZ, Elisabeth. Viagem ao Brasil (1865-1866) São Paulo, Cia Editora Nacional, 1938, p. 165.
[5] BINZER, Ina Von. Os meus romanos; Alegrias e Tristezas de uma Educadora no Brasil. 2ª ed. , Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, p.22
[6] KOSTER, Henry, Travels in Brazil, Londres 1816, p.388-9, Apud Freyre, Gilberto Casa Grande e Senzala, 25ª ed., Rio de Janeiro, José Olimpio, 1987, p.336
[7] Apud Freyre, Gilberto, Op. Et., p. 336
[8] LARA, Silvia H., Campos de Violência Rio de Janeiro, Paz e Terá, 1988, p.21. Outros trabalhos que procuram resgatar as vivencias cotidianas no interior do sistema escravista, tendo na violência social a base para estudo, são: ALGRANTI, Leila Mexan O Feitor Ausente, Petrópolis Vozes, 1988; MACHADO, Maria Helena P T., Crime e Escravidão, São Paulo, Brasiliense, 1987.
[9] LARA, Silvia H, Op. Cit. P.17
[10] MACHADO, Maria Helena P. T., Op. Cit. P.17
[11] LARA, Silvia H .Op. cit.;
[12] Aparecem como representantes dessa maneira de pensar, os jesuítas Benci e Antonil, além do Padre Manoel ribeiro da Rocha e do bispo Azeredo Coutinho. Todos eles falam em seus escritos que o Senhor deveria destinar, aos seus escravos, o alimento, o vestuário e o descanso necessários à sua sobrevivência, bem como ensinamentos da doutrina cristã, que permitiriam a salvação da alma do cativo, e castigos moderados. BENCI, Jorge, Economia Cristã dos Senhores do Governo dos Escravos, São Paulo, Grijalbo, 1977; ANTONIL, André João, Op, Cit, ROCHA, Pe Manoel Ribeiro, Resgatado , empenhado, sustentado, corrigido, instruído e liberado. Discurso (Theológo, jurídico em que se propôs o modo de comerciar, haver e possuir validamente, quanto a um e outro foro, os pretos cativos africanos e as principais obrigações que concorrem a quem deles se servir. Lisboa, Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1758; COUTINHO, José Joaquim da Cunha Azeredo. Análise sobre a justiça do Comercio do Resgate dos Escravos da Costa da África, novamente revista e acrescentada por seu autor (1808). In HOLANDA, Sergio Buarque de, (org.) Obras Econômicas de J.J. da Cunha Azeredo Coutinho, São Paulo, Cia. Editora \Nacional, 1966 pp. 231, 307.
[13] LARA, Silvia H, Op. Cit, p.96.
[14] DEBRET, Jena-Baptiste. Op.Cit., tomo I, vol.II, prancha n º 6, pp. 184-6.
[15] Idem, prancha n º 23, pp. 258-60.
[16] RAMOS, Artur, Castigos de Escravos. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, 47: 79-104, 1938.
[17] Idem, p. 99.
[18] RUGENDAS. J. M. Op. Cit. 20. DEBRET, J. B. Op. Cit., tomo I, vol. II, pp. 280-3.
[19] DEBRET, J. B., Op. Cit., tomo I, vol. II, prancha n° 45.
[20] WEELCH, F. Friedrich Von. Reise Uber
[21] DEBRET, J. B., Op. Cit., tomo I, vol. II, prancha n° 45.
[22] Idem prancha n° 41
[23] RAMOS, Artur 0p. cit. P.9
[24] Idem p.101
[25] Idem p.98
[26] PROCESSOS POLICIAIS. A. E. S. P, Ordem 3208, Lata 1857
[27] PROCESSOS POLICIAIS. A. E. S.P. Ordem 3203, lata 2, 1853.
[28] Idem
[29]PROCESSOS POLICIAIS. A. E. S. P. Ordem 3206, Lata 5, 1856.
[30] FREYRE, Gilberto. Op Cit. p.449
[31]MACEDO JUNIOR, João Álvares de Azevedo, Da Prostituição do Rio de Janeiro e de sua Influência sobre a Saúde Pública” Tese apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1869, apud, Freyre Gilberto, Op, cit., p.449
[32]POHL, João Emanuel, vol I, Viagem no Interior do Brasil, Rio de Janeiro, 1951, p.302
[33]Relatório de chefe de policia da Província de São Paulo, 1873.
[34] PROCESSOS POLICIAIS, A. E. S. P, Ordem 3210, Latas 9, 1858
[35] PROCESSOS POLICIAIS, A. E. S. P, Ordem 3218, Lata 17, 1880
[36] WALSH, Robert. Noticias do Brasil (1828 – 1829), Vol. II, Belo Horizonte / São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1985, p.131.
[37] Idem, p. 131.
[38] GOULART, José Alípio, Da Palmatória ao Patíbulo, Castigos de Escravos no Brasil, Rio de Janeiro, Conquista, 1971, p.79
[39] PROCESSOS POLICIAIS, A. E. S. P., Ordem 3217 lata 1877
[40] Idem.
Fonte
NEVES, M. F. R Violência contra a Criança Escrava no Século
XIX. Rev. Brás. Cresc.
Des. Hum. II (I), São
Paulo, 1992.