JOVENS E DEFICIÊNCIA: COMPORTAMENTO E CORPOS DESVIANTES

 

 

Patricia Martins Montanari[1]
Cientista social, mestre em saúde pública.

 

 

Introdução

 

A adolescência constitui uma temática de grande relevância e preocupação no âmbito da saúde pública. Dentro dessa perspectiva, tem-se pesquisado aspectos relativos à saúde reprodutiva da adolescente; conhecimento e uso de contraceptivos; gravidez na adolescência, ora do ponto de vista da adolescente grávida, ora do ponto de vista das instituições de saúde; questões de gênero e identidade sexual; drogas e alcoolismo (Schor, 1996; Reis, 1995; Peres, 1996; Domingues, 1997; Moura, 1996; Ayres, 1996).

 

Trabalhos que proponham uma discussão de tal temática conjugada à deficiência são poucos, e apresentam um recorte eminentemente epidemiológico, fixando a abordagem em aspectos biológicos, tanto para discutir adolescência, que é vista como fator de risco, quanto à condição de deficiência, que aparece como conseqüência de acidentes, muitas vezes, associados à irresponsabilidade e vontade de testar os limites do perigo, próprias da adolescência.

 

Portanto, o aspecto da deficiência, aqui considerado, é o de sua construção social (Berger & Luckman, 1994); localizando nesta o processo de constituição da identidade social dos jovens em geral e dos jovens portadores de deficiências. Nesse sentido, a deficiência entre jovens é pensada como fator de diversificação cultural, que pode ser traduzida e assimilada socialmente como o que Velho chamou de “desvio social” (Velho, 1985).

 

Um fato concreto é que o portador de deficiência, na nossa sociedade, ainda é objeto de discriminação e preconceito; pois, ser diferente, significa neste caso ser inferior, desviar da média, sobressair de forma “negativa” no meio da multidão, criando tensões, tornando-se, assim, objeto de preconceitos. Desse modo, no plano social, a diferença transforma-se em desigualdade e, portanto, coloca o portador de deficiência em desvantagem, em relação aos demais membros da sociedade.

 

Segundo Velho (1981), o grande paradoxo da sociedade moderna é gerar a diferenciação e somente conviver com ela por meio de mecanismos discriminatórios. A coerção normalizadora, a fabricação initerrupta de desviantes, entre outras práticas, são resultado dessa realidade. A questão da deficiência, embora muito anterior ao surgimento das sociedades complexas, se enquadra nessa dificuldade de assimilação e integração do diferente. Daí, a necessidade de neutralizar a diferença; encobrindo-a por meio de uma falsa integração, na qual essa diferença não é respeitada.

 

Uma das grandes lutas dos portadores de deficiência é justamente poder ser diferente, sem estar em desvantagem. Mas isso pode conduzir-nos a mais uma armadilha da questão: o paternalismo dos não-deficientes - como estratégia para lidar com a diferença - e a visão científica cada vez mais especializada e setorizada acabam impedindo que os portadores sejam vistos por inteiro. Não se respeita a diferença e a deficiência se confunde com ineficiência.

 

Portanto, faz-se necessária uma reflexão sobre a constituição da identidade social do jovem portador de deficiência, a partir da qual é possível levantarmos algumas questões: será que essa fase da vida tem o mesmo sentido para as jovens portadoras de deficiência? É possível falar sobre adolescência/juventude para os deficientes? Ou falamos de uma adolescência “deficiente”?

 

Ser jovem: desvio social?

 

Vemos, atualmente, um debate no Brasil e no mundo sobre a adolescência e a juventude. As pessoas se perguntam: quem são esses jovens de hoje, o que eles esperam da vida, qual o futuro que planejam para si, entre outras indagações. Nesse cenário, inscrevem-se questões como a do “menor”, gravidez na adolescência; adolescência e Aids; drogas e violência (Costa, 1986; Rinaldo, 1983; Sader, 1987; Seixas, 1991; Silva, 1987 e Zaluar, 1989), que talvez sejam as mais paradigmáticas das questões sociais dos anos 80 e 90, entre tantas outras relações possíveis a esta fase da vida.

 

Jornais, revistas, televisão, livros, teses e discursos versam sobre as práticas de violência social, familiar, institucional e policial contra adolescentes, mais especificamente os “menores”, que seriam as crianças e jovens de classes subalternas. A nossa vida social e cultural, portanto, separa a rebeldia de alguns indivíduos da marginalidade, desvio e pobreza de outros, apesar de todos pertencerem à mesma faixa de idade.

 

Assim, mais que atributos físicos e/ou biológicos, são os aspectos sócio-econômicos e culturais que circunscrevem o que é juventude e o que é ser jovem. Se fizermos um recorte de classe social, por exemplo, teremos que a gravidez, para as adolescentes de classe média, pode ser resolvida através de sua interrupção, e, nesse caso, ter ou não filhos indesejados, inoportunamente, coloca-se como escolha. Para as adolescentes em situação de rua ou mais pobres, o destino - não a escolha - é a maternidade, condição que as colocam como agentes de um problema, que se transforma em questão de saúde pública.

 

Quando colocamos a condição de deficiência como outro recorte para pensar a construção da identidade social do jovem, percebemos que as formas e os estilos de vida, que fornecem os parâmetros para a construção “desta” juventude, também se conformam de maneira diferenciada, fortemente ligados à condição de diferença em que a deficiência se inscreve.

 

O “ser jovem” e a “condição de deficiente”, nessas circunstâncias, são categorias opostas. A primeira versa sobre a rebeldia; o inconformismo; a busca de diversão, prazeres e novas emoções; o despertar de uma sexualidade que não quer ser reprimida; a “curtição” de algumas drogas; a definição de uma vocação ou de uma profissão; a capacidade de inovar; romper; características que conformam o imaginário social da juventude (Chaia, 1987; D'andrea, 1991 e Gouveia, 1983). A segunda traduz a desordem familiar, o ingresso tardio na escola, a dificuldade em estabelecer laços de amizade, a peregrinação pelos serviços de saúde e reabilitação, o trabalho mal remunerado e a exploração, a marginalidade, a imperfeição corporal associada à falta e ao desvio, portanto, uma sexualidade que se deve reprimir e que coloca em relevo as falhas e a perversidade do nosso sistema social (Velho, 1985).

 

Pode-se dizer que tais categorias, que se enfocam mutuamente, por meio da oposição e do contraste, demonstram a coexistência, numa mesma sociedade, de opostos radicais, revelando toda a ambigüidade de um Brasil que é moderno, progressista, capitalista e democrático, ao mesmo tempo em que é tradicionalista, hierárquico, atrasado e autoritário.

 

É isso que torna necessária a coexistência das indagações iniciais, que são importantes para entender as relações entre gerações, classes de idade, estratos e grupos sociais no Brasil; perguntas que se referem a definições de papéis temporários, identidades e estilos de vida, pois os jovens médios crescerão e, dependendo de sua condição social, tornar-se-ão cidadãos. E os jovens portadores de deficiência?

 

Na vida cotidiana e na relação com as instituições, esses jovens vivem a condição instável de estar entre a rejeição e a proteção familiar; a educação, o projeto de integração e a vigilância da escola; entre a possibilidade de melhora e a repressão das instituições de reabilitação; entre a dificuldade e direito à profissionalização e a necessidade de trabalho; entre a possibilidade de diversões - onde podem exercer seus modos de ser - e a impossibilidade de um lazer valorizado socialmente e adequado a sua condição, entre outros dilemas.

 

Desde sempre, a sociedade moderna pensa a juventude, sua própria criação, como um “problema” e, nesse sentido, o comportamento do jovem é, por excelência, encarado como “desvio”; pois no cotidiano, o ser jovem é inquietante, aos olhos dos adultos; sua imagem corresponde a de estranhos indivíduos: nem crianças, nem homens ou mulheres, cujo passado recente causa estranhamento.

 

Tal sentimento está presente nas preocupações cotidianas, morais e políticas dos homens e das instituições, no pensamento sociológico, em seus diversos momentos e correntes, passando também por outras ciências humanas e psicológicas (Blanchard, 1921; Fau, 1960; Jersild, 1961; Havighurst, 1968).

 

Ultrapassando uma visão generalizante, empobrecedora ou fatalista dos jovens, Rezende (1989) diz não haver uma única entidade Juventude, mas sim juventudes, tanto nas vivências cotidianas dos diversos jovens, como nas muitas relações destes com os adultos. Uma visão unívoca de juventude perde de vista o que é tão flagrante: a grande heterogeneidade social e cultural do cotidiano de toda sociedade moderna (Marx, 1977; 1983). E mais, perde o esqueleto hierárquico que serve de molde para a sociedade brasileira (Da Matta, 1979; Fernandes, 1961).

 

Nesse sentido, pensar os jovens como sujeitos sociais implica pensá-los dentro de determinado contexto social, negociando com as instituições e com eles próprios o sentido do ser jovem, do ser adolescente (Peres, 1995), principalmente quando estes pertencem a classes sociais ou grupos culturais e étnicos subalternos e estigmatizados pela sociedade. Sujeitos que, de acordo com aquela concepção geral de juventude, são olhados e tratados, geralmente, apenas no que lhe é apontado como carente, insuficiente e no que lhe periga a marginalidade e imoralidade.

 

É preciso que se reconheça a existência de juventudes na realidade cotidiana, e não é possível falarmos de uma única juventude/adolescência. E como os jovens constituem-se como sujeitos sociais, são dotados de comportamentos e atividades culturais próprios. Assim, não se está falando do processo de socialização, tomado como um processo de padronização de atitudes e pensamentos segundo moldes adultos (Berger, 1972; Berger e Berger, 1977), uma vez que as relações sociais e as atividades entre os diferentes jovens não se constituem como meras assimilações do mundo adulto.

 

Tal afirmação poderia ser considerada óbvia, tendo em vista as notáveis diferenças dos comportamentos dos jovens e diante do estranhamento dos adultos em relação a estes. Em suas atividades culturais, de lazer e de sociabilidade, as juventudes criam suas próprias identidades e “modos de ser” jovem, que se diversificam segundo os modos de ser de jovens de determinadas classes sociais, grupos, etnias, por exemplo, ou como no caso de jovens portadoras de deficiência física. Mas, ao mesmo tempo, há um processo contrário que é o da tentativa de diluição dessas identidades em nome (ou substituição) de identidades e papéis adultos.

 

Nesse processo, aparecem os desvios (Velho, 1985) e os conflitos entre as gerações (Foracchi, 1972) que caracterizam formas e modos de resistência dos diferentes grupos e jovens, por meio dos quais sua socialização se potencializa.

 

Pensando, pois, a relação entre o mundo adulto e o mundo jovem, encontro um mediador importante desta relação: a sexualidade. A manipulação dessa sexualidade e a conseqüente relação estabelecida com ela caracteriza o status a que o jovem/adolescente pertence, onde destacam-se as intervenções que a sociedade tenta realizar nas práticas, pensamentos e valores sexuais e morais dos jovens, na tentativa de modificá-los, sobretudo quando identifica “desvios”, e adaptá-los aos padrões vigentes adultos (Blanchard, 1921; Simonetti, 1989).

 

Dessa forma, a questão da sexualidade pode ser apreendida dentro das práticas, valores e discursos da juventude estudada e na intersecção e conflitos desta juventude com a sociedade “adulta”, que possui diferentes instituições e grupos de controle especializados: escolas, igrejas, polícia, instituições de saúde.

 

A discussão sociológica da juventude e da deficiência permite, portanto, mapear as diferentes juventudes, que só podem ser percebidas no plano sócio-cultural. Assim, os jovens portadores de deficiências, além de ter um comportamento desviante, porque jovens, possuem um corpo também desviante, por portar deficiência (Amaral, 1995).

 

O corpo desviante e seus sinais: estigma e estereótipos

 

As discussões sobre juventude e deficiência, sobre o que é a deficiência, o que é ser deficiente, o significado de ser jovem e deficiente, revelam a dificuldade que todos temos em lidar com os chamados desvios sociais, ou seja, com tudo aquilo que foge aos parâmetros de normalidade, celebrados socialmente.

 

A deficiência pensada de uma maneira genérica associa-se à idéia de limitação e assim, portar uma deficiência é estar sujeito a limites, que vão desde os corporais, ligados à incapacidade física de andar, executar determinados movimentos, à imperfeição corporal e estética, que reduz possibilidades afetivas e sexuais, até as barreiras físicas, que apontam para a realidade de que as grandes cidades e os estabelecimentos públicos não são/estão adaptados, ou seja, preparados para estas pessoas.

 

Dessa forma, o deficiente tem sempre de provar para si e para as pessoas que é capaz, e tais dificuldades acabam se transformando em estímulos para ultrapassar tais barreiras, que o colocam numa posição não menos confortáveis, de “heróis”. No caso de portadores de deficiência física motora a incapacidade liga-se aos membros inferiores do corpo. A cabeça e as mãos, portanto, podem e devem trabalhar mais e se exercitam quando estão no âmbito escolar ou no mundo do trabalho, o que pode compensar a incapacidade e limites físicos/corpóreos.

 

Tal hierarquização, concebida a partir de critérios biológicos, é atualizada no plano social, onde o portador de deficiência assume rótulos, carrega estigmas e está em desvantagem, não importando o grau de incapacidade, e o fato de ter ou não autonomia para a realização de determinadas tarefas torna-se, então, o critério social, a referência a partir da qual é possível identificar quem é deficiente em oposição a quem é eficiente.

 

A experiência de ser portador de deficiência está ligada à história da vida particular de cada indivíduo, e muito embora se reconheça semelhanças e similaridades entre elas, não é possível falar de uma identidade de deficiente, enquanto grupo. De todo modo, do ponto de vista sócio-cultural, usar muletas, próteses visíveis ou andar de cadeira de rodas indica os sinais diacríticos que identificam-nas como portadoras de deficiência, e a maneira pela qual lidam com estes sinais, define sua representação sobre essa identificação e sobre a deficiência.

 

Aproximando-me de como se dá esse processo de identificação, percebo que ele não se apresenta de forma linear, pois ao mesmo tempo que se edifica na identificação com a deficiência, desintegra-se na necessidade que o portador tem de disfarçar e se colocar avesso aos estigmas e rótulos negativos.

 

A contrapartida da visão construída socialmente, acerca do deficiente, que via de regra rege comportamentos que o estigmatizam, é o mecanismo da negação da deficiência e desta imagem desfocada, mecanismo este que não se encerra em si mesmo, mas conduz à constituição de uma outra imagem que aponta substancialmente para a superação de dificuldades, a percepção de total adaptação - por parte do deficiente - e capacitação.

 

Tratar a representação da própria deficiência, em termos da percepção da auto-imagem, implica considerar as singularidades de cada indivíduo. De certa maneira, falar de uma deficiência em particular, as diferencia dos demais portadores, não só no aspecto físico, mas no significado que lhe atribuem, na forma de lidar com a diferença e nas estratégias de sobrevivência.

 

Entretanto, o confronto entre experiências deve revelar proximidades que se constituem como referência e espelho ao “outro”, qual seja, os grupos sociais que os deficientes integram e com os quais negociam o (seu) sentido da deficiência, onde aparece uma tendência a amenizar a deficiência, revelando que são tantas e diversas deficiências que a deficiência particular não pode carregar sozinha o rótulo da “deficiência”. Não é apenas uma forma de disfarçar a diferença, mas de “desviarse” do estigma provocado por essa diferença.

 

O processo de identificação pressupõe, necessariamente, a mediação do outro como espelho. É através do outro que podemos nos construir e termos a dimensão de nós mesmos. É através de um jogo de espelhos, que se refletem mutuamente, que a identidade é construída.

 

A concepção do corpo esteticamente perfeito, por outro lado, é construída culturalmente nas diversas sociedades e o significado e a forma do corpo perfeito ou ideal e desejado variou historicamente.

 

É importante, pois, levantar aspectos genéricos sobre determinados contextos históricos importantes, pois a partir daí é possível compreender como a idéia de corpo envolve questões históricas e culturais amplas, típicas do ocidente, do contexto que nos é próprio.

 

Desse ponto de vista, o marco que fornece elementos para a construção que hoje temos do corpo é o Iluminismo, quando o ideal de beleza do corpo grego é retomado e atualizado, corpo este que apresenta uma definição de músculos, dos órgãos, e uma necessária harmonia entre as diversas partes que o compõem. A idéia de corpo perfeito, portanto, mistura o ideal do corpo helênico, com valores burgueses criados pela Revolução.

 

Mais contemporaneamente é possível perceber que após a Segunda Guerra Mundial, a necessidade de ter saúde ou de manter-se saudável tornou-se latente. São possíveis algumas relações com as conseqüências da guerra, como o avanço da medicina, concomitante ao surgimento de novas doenças, programas sociais de previdência e assistência, também fruto de um melhor conhecimento demográfico.

 

Na sociedade brasileira, todos esses elementos apontados são essencialmente nacionais, como a sensualidade corporal ligada ao samba, à ginga, à malandragem, por exemplo, e são agrupados e reelaborados, de forma a apontar para nosso tipo ideal de corpo e, por conseguinte, para o tipo brasileiro.

 

Na verdade, a construção do corpo e de concepções sobre ele estão sempre sendo atualizadas com a substituição de velhos valores por novos, próprios da dinâmica cultural em que se inscreve e que refletem, ao mesmo tempo, movimentos mais globais.

 

Nos últimos anos, por exemplo, podemos identificar também como elementos definidores de um ideal de corpo, aqueles suscitados pelos movimentos ecologistas, uma espécie de onda que aclama a volta a uma vida mais saudável, fortalecimento e manutenção do corpo através dos esportes, de uma alimentação natural, de reiteradas campanhas oficiais contra o tabagismo, etc.

 

De maneira geral, o corpo desejado deve apresentar uma estética harmônica e também ser capaz de funcionar. A estética conjugada a um bom funcionamento orgânico define um ideal de corpo, pois na nossa sociedade, a imperfeição estética é astutamente percebida e quase nunca passa impune aos olhos das pessoas. Os sinais que revelam a existência de deficiências traduzem-se, pois, como a marca da diferença, sendo possível reconhecê-la, identificá-la logo num primeiro contato.

 

Sendo assim, a deficiência vem colocar uma desordem não só no que diz respeito à estética, mas também à funcionalidade. Portanto, o portador de deficiência nunca terá o corpo ideal, terá sim um corpo sempre associado à idéia de desordem, disfuncionalidade, desvio e limitação.

 

Determinada deficiência, que passa desapercebida diante dos olhos, não é identificada e classificada de imediato pela sociedade. O que ocorre é que o portador de tal deficiência “sutil”, acaba manipulando sua condição de liminaridade entre a normalidade (corpo ideal) e a anormalidade (deficiência), como mostra trecho do depoimento a mim concedido:

 

“O grande lance é não mancar... a minha deficiência não é muito visível, às vezes não dá para sentir, você já incorporou, mas às vezes você passa na vitrine se olhando, ou alguma coisa como espelho. Acho que tem um jogo de corpo (...) Eu não gosto muito do meu corpo. Uma, que eu não firmo meu lado direito. Isso eu estou aprendendo a me adaptar. Eu gosto de usar roupas folgadas e tal, porque se uma pessoa nunca viu você arrumada, quando te ver, vai te achar linda, aí eu gosto de andar bem bagunçadinha, para no dia que eu for para uma festa, tudo, deixar todo mundo meio surpreendido”. “Nossa!”. “Ela não está tão feia hoje, ela está bonita, não sei o que” (...)” (Jerusa).

 

 

Quando a marca da diferença é impossível de ser escondida, o portador de deficiência deverá sempre criar uma estratégia para amenizá-la ou mesmo disfarçá-la. Como portar uma deficiência implica em desordem social e estética, em algum sentido, “fugir” dos padrões de corpo ideal é quase que a condição mesma da deficiência.

 

Considerações finais

 

Quando o preconceito e a discriminação, frente a alguém ou algum grupo social se evidenciam, eis aí o resultado da desinformação e do desconhecimento sobre dada realidade. Por outro lado, os preconceitos também se  originam no processo histórico-cultural, econômico e, principalmente, moral de cada sociedade; transformando-se, assim, em sentimento. Dessa forma, apenas a informação não é suficiente para erradica-lo. O preconceito vai além da desinformação, é muito mais profundo que isso, pois mexe com todo o sistema de representação e valores que vão sendo construídos no indivíduo, à medida que ele vai sendo socializado, e corresponde ao substrato pelo qual se constrói o estigma (Goffman, 1982).

 

E é nesse momento que o preconceito, em princípio abstrato, materializa-se na forma de discriminação.

 

Portanto, o preconceito desencadeia o ato (ações) de discriminar e este aparece pautado por julgamentos valorativos que hierarquizam os indivíduos entre piores e melhores, inferiores e superiores, portanto, entre pobres e ricos, pretos e brancos, deficientes e normais.

 

É possível perceber que o preconceito e a discriminação podem se manifestar em todas as esferas da vida, e tanto no espaço da intimidade, como no espaço público, elas operam no sentido da transformação da diferença em desigualdade.

 

No caso específico de jovens portadores de deficiência, reconhece-se o sofrimento em relação ao preconceito e discriminação, muitas vezes não distinguindo o limite entre os dois. Em contrapartida, a resposta a isso traz aparente indiferença, quando ignoram sua existência, ou exercitam suas potencialidades ao máximo, na tentativa de demonstrar que são iguais. Ocorre aí um erro de avaliação, de manipulação da linguagem, que reflete o quanto estamos confusos quando o assunto é direito e cidadania.

 

Na verdade, é difícil ignorar o efeito do preconceito e da discriminação, pois a existência desses sentimentos e dos conseqüentes comportamentos é a prova empírica do tratamento desigual dispensado aos indivíduos considerados “cidadãos de segunda classe”.

 

Outro aspecto que define tratamentos desiguais é o estigma. Em primeiro lugar, a identificação com a falta - de membros - ou à disformidade, e, em segundo lugar, a apreensão moral deste sinal que é culturalmente construída e, portanto, valorativa.

 

Ou, ainda, segundo Goffman (1982), “o termo estigma será usado em referência a um atributo depreciativo”. E tais atributos depreciativos expressam-se através de expressões da linguagem coloquial como “aleijado”, “coxo”, “mané sem braço”, “cego é aquele que não quer ver”, “desculpa de aleijado é muleta”, etc.

 

Dessa forma, os portadores de deficiências são julgados pela marca que possuem, ou seja, pelo estigma. Toma-se o todo pela parte: considera-se o corpo inteiro e, por conseguinte, a pessoa em sua totalidade como deficiente e não apenas a parte lesada. Por isso, a ênfase na capacidade intelectual e na habilidade manual mostrou-se tão significante.

 

Outra forma pela qual o estigma manifesta-se é através da representação que se tem acerca do portador de deficiência, na qual este aparece como “coitadinho”. Aqui, emerge um sentimento pouco desejado e bastante rejeitado pelas entrevistadas: a piedade. O oposto complementar a essa idéia é o rótulo de “herói”, que se liga diretamente à idéia de superação da deficiência. Essa imagem do herói remete o portador a uma dimensão quase sobre-humana, tanto quando enfatiza a necessidade de superar e ultrapassar sua limitação, quanto nas situações onde o restante do mundo exige que ele prove sua supracapacidade.

 

Vê-se que o rótulo ou a imagem do herói é acompanhada de expressões como “apesar de ser deficiente, você faz tantas coisas”, como se isso não fosse possível, como se freqüentar uma escola ou trabalhar não pudesse fazer parte do mundo da pessoa com deficiência.

 

Na verdade, embora estes jovens não queiram ser identificados como heróis, em certa medida, sempre o serão; pois encarar a vida de frente, assumir uma postura de vencer e ultrapassar as limitações, como as narrativas colhidas na minha dissertação[2] apontaram, não corresponde ao comportamento esperado pela sociedade e vai significar fugir dos rótulos. Assim, a conotação de “soma” que tal imagem traz confere-lhes outro status, o de “diferentes e mais”, que também é estigmatizante.

 

Essa dicotomia - coitados e heróis - parece ser a chave para o entendimento real de todos os aspectos implicados na deficiência, traduzida socialmente em desvantagem. A intersecção desses atributos, ao meu ver, é onde se encontra a possibilidade da sociedade de restituir a cidadania a essas pessoas.

 

 


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Notas:

 

[1] Patricia Martins Montanari - Cientista social, Mestre em saúde pública e aluna de doutorado do Departamento de Saúde Materno-Infantil da FSP/USP. Texto escrito a partir da dissertação apresentada ao Departamento de Saúde Materno-Infantil da FSP/USP, defendida em novembro de 1998, intitulada “Do limite da deficiência à superação na vida: jovens, portadoras de deficiência física”.

 

[2]  Texto extraído em: http://www.adolec.br/bvs/adolec/P/cadernos/capitulo/cap11/cap11.htm