O MINISTÉRIO PÚBLICO E A ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL*

 

Olympio de Sá Sotto Maior Neto
Procurador de Justiça – PR.

 

É cumprindo responsabilidade não só profissional, mas também política e ética, que trago ao 12° Congresso Nacional do Ministério Público tema pertinente ao trabalho infantil, significando retirá-lo do terreno baldio das políticas públicas e debaixo do tapete das ações governamentais, para levá-lo aos gabinetes dos defensores da sociedade, transformando-o em objeto da reflexão e, no que é mais importante, da pauta diária dos que querem ver instalada uma sociedade progressivamente melhor e mais justa.

 

 Discutir trabalho infantil - e intervir significativamente para a sua erradicação - consiste tarefa indispensável na nossa atual quadra histórica para se alcançar, o quanto antes, as soluções esperadas pela nação brasileira, que não quer ver seus filhos vítimas da exploração e opressão.

 É necessário implantar projetos que assegurem à nossa população infanto-juvenil a possibilidade de exercício dos direitos elementares da pessoa humana, garantam às crianças e adolescentes brasileiros a materialização da situação jurídica de cidadania prometida na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo exigível, portanto, e com urgência, interferência positiva em relação a esta chaga social.

 

 Pensando nisto, lembrei-me de episódio ocorrido há cerca de um ano e meio, na Vila Pinto em Curitiba, em seminário organizado pelo Movimento de Defesa do Favelado que objetivava discutir o Estatuto da Criança e do Adolescente na perspectiva de utilizá-lo como instrumento para efetivação de direitos, pois a maioria da população - aliás, exatamente quem mais se encontra socialmente marginalizado e excluído - não conhece suas previsões ou delas recebeu informações equivocadas. Daí, restarem reproduzidos, inclusive pelos meios de comunicação social, comentários como, por exemplo, de que "o Estatuto da Criança e do Adolescente é uma lei inadequada para nossa realidade social", determinou "a permanência de crianças e adolescente nas ruas cheirando cola, mendigando, praticando furtos, já que não permite o trabalho", significa "porteira aberta para a impunidade dos adolescentes, que praticam crimes e estão imunes a qualquer resposta da Justiça", e assim por diante. E é frente ao desconhecimento ou desinformação sobre o ECA que passam - como eu disse os que dele mais poderiam fazer uso para de defesa dos seus direitos - a desenvolver incompreensíveis sentimentos de aversão e antagonismo ao texto da lei, inviabilizando-o dessa forma como o instrumento possível de cidadania. Objetivando então propiciar acesso à informação, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Criança e do Adolescente e o Movimento de Defesa dos Favelados organizaram mencionado seminário. Após horas de debate sobre o ECA, com a participação da comunidade, no final da seção, uma senhora já de certa idade (destas que caminham pelas ruas de Curitiba empurrando carrinhos de papel e de desilusão, na demonstração indisputável que o "primeiro mundo" ainda não é para todos os curitibanos), aproximou-se de mim e disse: "Doutor, agora eu acho que entendi este tal de Estatuto da Criança e do Adolescente, ele diz que é para gente querer para os filhos dos outros o mesmo bem que a gente quer para os nossos filhos".

 Os membros do Ministério Público Brasileiro, bem sei, conseguem enxergar nos filhos dos outros os próprios filhos, tratam-se de pessoas que possuem sensibilidade e sentimento de solidariedade capaz de dedicar o melhor dos seus esforços no sentido de assegurar para o filho dos outros aquilo que nossos filhos já podem exercitar em termos de direito, que fazem da luta por dias melhores para a infância e juventude motivo a embalar com fraternidade suas existências.

O importante neste momento histórico, antes de mais nada, é reconhecer o Estatuto da Criança e do Adolescente como legislação destinada ao resgate da cidadania de milhões e milhões de infantes e jovens brasileiros. Uma das mais freqüentes e reiteradas críticas que se faz ao Estatuto é a de que seria ele uma lei inadequada à nossa realidade social. Dizem: "criaram uma lei para país desenvolvido, de 1º mundo, e querem que dê certo aqui no Brasil. É uma lei inadequada para a nossa situação de país subdesenvolvido". Há de se ter em mente então, num primeiro momento, que nós vivemos no país dos "sem-teto", dos "sem-terra", dos "sem-educação", dos "sem-saúde", dos "sem cultura", enfim, "dos-sem-oportunidade-de-vida-digna". O jurista e cientista político Norberto Bobbio, no livro a "Era dos Direitos", apresenta tese que serve para reflexão da sociedade brasileira, hoje vivendo em situação de insegurança. O raciocínio desenvolvido por Bobbio é no sentido de que o asseguramento dos direitos da pessoa humana, democracia e paz social são três momentos de um mesmo movimento histórico: sem a inscrição e efetivação dos direitos humanos não é possível ver instalado um Estado genuinamente democrático e sem a existência de em Estado Democrático de Direito não se criam as condições indispensáveis à superação pacífica dos conflitos sociais.

 Este pensamento é fundamental para que possamos entender porque, quando menos se espera, acabam em confronto armado os "sem terra" e a polícia; porque se estabelece - de maneira inaceitável, diga-se - conflitos entre segmentos sociais e as crianças e adolescentes; porque o homem comum, em desespero, torna-se cada vez mais violento no seio de sua família ou da própria sociedade; ou seja, para compreender os motivos determinantes do aprofundamento dos conflitos sociais e a dificuldade da superação pacífica dos mesmos, é necessário ter claro que o elemento primeiro para a garantia da paz social se traduz na efetivação dos direitos elementares da pessoa humana, que nos países desenvolvidos já atinge os chamados direitos de quarta geração.

Nos países de primeiro mundo, a bandeira da materialização dos direitos encontra já o seu espaço objetivando assegurar à população o meio ambiente sadio, o acesso a medicamentos sofisticados, o acesso à engenharia genética, etc., enquanto que nossa luta, no Brasil subdesenvolvido, é para assegurar a todos a possibilidade de exercício dos direitos mais elementares, como de saúde, educação, alimentação, habitação, trabalho e remuneração dignos; sendo que o Estatuto da Criança e do Adolescente caminha exatamente nessa trilha de busca da cidadania, portanto absolutamente adequado à realidade de desassistência e abandono da infância e juventude, ao tempo em que o Estado Brasileiro não tem cumprido com o seu papel institucional e indelegável de atuar concretamente na área da promoção dos direitos de todos os brasileiros. Alguns dizem que o ECA "só estabelece direitos", querendo aí indicar crítica negativa. O ECA está, sim, estabelecendo os direitos fundamentais da pessoa humana, como o direito à vida, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, à saúde, à educação, à profissionalização, etc., encontrando-se exatamente nesse aspecto o seu ponto mais positivo, coerente com a proposta de mudar a história das nossas crianças e adolescentes.

 Participei certa feita de Simpósio sobre Direito Penal e Processual Penal no qual um dos expositores era Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Em dado momento, sabe-se lá porque, passou ele a tecer comentários desairosos acerca do Estatuto da Criança e do Adolescente, afirmando, como ponto culminante, que gostaria de "rasgar algumas páginas" do mesmo. Terminada a exposição, iniciados os debates, observei que, como todo produto da razão humana, o ECA por certo estaria sujeito a revisões direcionadas a mantê-lo sempre próximo à realidade onde quer positivamente intervir. Citei Bachelard quando afirma que todo avanço científico implica na retificação dos erros do passado e concluí que o ECA, nessa perspectiva, deveria conter erros carentes de retificação, mas quando ele se referia a "rasgar páginas", eu, apreensivo, esperava que a pretensão manifestada não se dirigisse a destruir exatamente aquelas asseguradoras dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, que certamente ele não pretendia eliminar do texto legal os direitos a educação, saúde, profissionalização e liberdade. Desejava saber então, precisamente, quais as referidas páginas ou, para facilitar, quais os artigos do ECA que deveriam ser alterados e por que motivo. Ao fim, um artigo sequer foi indicado como de modificação necessária, demonstrando e assumindo o desconhecimento da lei que criticara. Sem intenção, acabei por submetê-lo a desagradável constrangimento, determinado pelo fato de, levianamente e não obstante sua grande cultura jurídica, naquele momento reproduzira a palavra do ignorante. A voz do repórter policial de quinta categoria se utilizando da figura (nesse momento triste) do Ministro de Tribunal Superior, que acabou reconhecendo ser incapaz de apresentar proposta concreta de alteração das normas do Estatuto da Criança e do Adolescente, tendo finalizado afirmando que não suprimiria os artigos que objetivam a garantia da cidadania da infância e da juventude brasileira.

 Eu insisto que se trata de uma lei adequada à nossa realidade social porque seria absolutamente desnecessária, por exemplo, a atuação de um parlamentar francês no sentido de apresentar projeto de lei destinado a assegurar às crianças francesas o direito à saúde, como seria inadequado um parlamentar suíço apresentar projeto de lei para assegurar à criança e ao adolescente do seu país o direito à educação. O raciocínio é elementar: nos países desenvolvidos o Estado intervém para concretizar os seus deveres institucionais, exsurgindo uma lei, com o conteúdo do ECA, realmente desnecessária. É necessária e adequada para uma realidade social como a brasileira, onde a grande maioria da população não tem condições para o exercício desses direitos corolários da cidadania.

 O ECA é, assim, um instrumento para a desejada superação das desigualdades sociais, pois sabemos ser o Brasil o país que apresenta, em termos mundiais, o mais alto índice de concentração de riquezas nas mãos de poucas pessoas. Dados comparativos do Banco Mundial indicam o Brasil em primeiro lugar, seguido de Botswana, na África, sendo que aqui 10% dos mais ricos detém 56% do nosso produto interno bruto e 5% dos mais detém 37% do nosso PIB. Isto significa concretamente que as riquezas produzidas por todos os brasileiros não são distribuídas entre todos os brasileiros e acabam concentradas em mãos de grupos minoritários, que se beneficiam da estrutura social injusta estabelecida no país. Se de um lado da moeda se tem concentração de riqueza, de outro, inevitavelmente, estará a marginalidade, ou seja a grande maioria da população à margem dos benefícios produzidos pela sociedade.

 E se falamos na efetivação de políticas sociais públicas, se estamos querendo garantia de educação, saúde, etc., é necessário partir do raciocínio de que historicamente o Estado Brasileiro manteve-se comprometido, em aliança, exatamente com esses detentores do poder econômico. Os processos eleitorais, não raras vezes marcados pelo abuso do poder econômico e administrativo (do uso da máquina administrativa), têm determinado a escolha de governantes que, no (des)cumprimento de seu papel, acabam privilegiando os interesses desses mesmos detentores do poder econômico. As candidaturas bancadas pelo poder econômico, não se tenha dúvida, vinculam-se à contrapartida da atividade parlamentar ou do chefe do Poder Executivo e, como disse, muitas vezes em detrimento dos interesses da grande maioria da população, conforme constatável, aliás, tão só pela política econômica, concentradora de riquezas, que vem de há muito sendo desenvolvida no país.

 E é este quadro social no qual temos que trabalhar em prol das crianças e adolescentes, de modo a ultrapassar trágica realidade.

 Há que se pensar nas crianças e adolescentes trabalhando precocemente ou naquelas que são vítimas de exploração marcada pela prostituição infantil ou, também, nas que se encontram nas ruas em busca da sobrevivência. Temos que reconhecer qual a atuação necessária quando a marca mais significativa de nossa realidade social se perfaz com o contraste estabelecido entre a existência de um país extremamente rico e de uma nação absolutamente pobre; de um pais que deseja ser a 7ª economia do mundo, mas cuja população se encontra em 74º lugar quando se trata de qualidade de vida; de um país que é o 5º maior produtor de alimentos do mundo, mas cuja população é desnutrida, passa fome, morre de fome.

 Portanto, para se saber a reposta do por que há trabalho precoce, crianças esmolando nas ruas, crianças e adolescentes entregues à prostituição, indispensável considerar o fato de que o trabalhador brasileiro recebe, hoje, um salário mínimo que não garante a satisfação de suas necessidades básicas e de sua família. Um salário mínimo que corresponde a 17,45% do seu valor real quando instituído em 1940, aduzindo-se a isto que, sabemos, 52% dos brasileiros integram famílias cuja renda per capita é inferior a meio salário mínimo.

As crianças e adolescentes que estão trabalhando precocemente, esmolando ou se prostituindo, não são, como se vê, produto da "natureza das coisas", não são produto do "acaso". Se vamos enfrentar referida situação, é necessário considerar essa realidade social de concentração de riquezas, que produz 40 milhões de crianças e adolescentes carentes abandonados e estabelece uma taxa de mortalidade infantil que instala no país um holocausto permanente: são 500 mil crianças que morrem todos os anos no país. É o equivalente a duas vezes os efeitos mortais da bomba de Hiroshima, nove vezes o número de americanos que morreram no Guerra do Vietnã, e isto ocorre todos os anos no Brasil e nós convivemos com esta amarga perversidade. Ainda nesse campo das tragédias, cabe anotar que o Brasil, segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), encontra-se em 3º lugar do mundo pelo número de acidentes de trabalho e 1º lugar em acidentes de trabalho com morte.

 Quero então consignar que, com o ECA, conseguiu-se trazer para o cenário brasileiro uma lei capaz de servir de instrumento para transformação social, uma lei que pode ser instrumento de modificação desse lamentável estado de coisas.

 Observando historicamente a importância da interferência da Inglaterra na abolição da escravatura no Brasil, decorrente do fato de que à competitividade dos mercados não interessava o baixo custo dos produtos brasileiros e colocava em risco os interesses econômicos da Inglaterra, o que determinou o conhecido posicionamento abolicionista, registro que vivemos hoje um momento parecido em relação ao trabalho infantil. O processo advindo dos ventos neoliberais no sentido de globalização da economia significa, nada mais nada menos, transferência do foro das decisões políticas, econômicas e sociais dos espaços da soberania estatal para as sedes das entidades multinacionais e transnacionais.

 Durante muito tempo reclamamos da falta de "vontade política" dos governantes, que fazem discursos a favor da educação, são fotografados no período de campanha eleitoral com crianças no colo, visitam creches, etc. e, quando assumem, não concretizam as ações indispensáveis a favor das crianças e adolescentes.

 A grande preocupação hoje é que, diante da mencionada proposta de globalização da economia, a idéia de competitividade entre os mercados internacionais leve a uma situação que - mesmo havendo vontade política - não seja possível intervir de forma decisiva nesta questão social. Verifique-se, como exemplo disto, que já estamos a viver um processo de desconstitucionalização de direitos sociais que são produtos de lutas genuinamente democráticas, como direito à assistência social, à paridade dos proventos de aposentadoria, etc.. Assim, num primeiro momento, realiza-se a desconstitucionalização de direitos para, no segundo, proceder-se à deslegalização dos mesmos. Retirar do ordenamento jurídico, sob o argumento da necessidade de diminuir o chamado "custo Brasil", determinados direitos sociais que foram inscritos através de lutas históricas representa emblematicamente o momento de crise que se aproxima.

 Na China ou em Taiwan, vamos encontrar trabalhadores que não possuem os mesmos direitos estabelecidos na legislação trabalhista brasileira (não obstante tenham pelo Estado assegurado a satisfação de suas necessidades básicas) e o propósito de manter a competitividade se dirige à diminuição do "custo Brasil" através da supressão dos encargos sociais nas relações de trabalho ou dos próprios direitos trabalhistas, como já se acena com o denominado "contrato de trabalho temporário". Outra proposta agregada a esta falácia chamada de "modernidade econômica"' consiste em ampliar a produção sem, entretanto, aumentar o número de empregos, aliás, ao contrário, apostando na diminuição da mão-de-obra. Daí viver o país um processo recessivo e de desemprego.

 Hoje internacionalmente se combate a exploração do trabalho infantil, como em tempos passados combateu-se a escravidão. O móvel, não há que se iludir, vai desde a preocupação competitiva dos grupos multinacionais com o baixo custo dessa mão-de-obra até a necessidade dos governos dos países "globalizados" de manter o mínimo de empregos - para os adultos - nas suas economias "modernizadas", pois, como se sabe, uma das faces perversas do trabalho infanto-juvenil é a exatamente o de tirar postos dos adultos, mantendo o sistema de exploração da mão-de-obra das crianças e adolescentes em detrimento da renda média relativa das famílias.

 Assim, poderemos encontrar aliados contextuais, aproveitando portanto essa força internacional que chega ao Brasil com o discurso de se ver erradicado o trabalho infantil (não estou me referindo, por óbvio, à Marcha Global Contra o Trabalho Infantil, movimento da sociedade civil que congrega 27 entidades das Américas, Europa, Ásia e África e que apresenta genuíno objetivo de "combater a exploração econômica de crianças", lutando para lhes garantir o acesso à educação e à proteção contra qualquer atividade que comprometa seu desenvolvimento físico, intelectual, espiritual, moral e social).

 Por outro lado, precisamos ter a consciência de que, conforme restou permanentemente assentado durante a mobilização para o surgimento do ECA, não basta a inscrição dos direitos, não basta a lei estar prevendo os direitos fundamentais da pessoa humana; mais que isso é necessário fazer com que as normas legais não permaneçam como meras declarações retóricas ou exortações morais, não sejam tratadas como singelo programa indicado pelos legisladores aos governantes. É que a lei, por si só, não tem o condão de alterar a realidade social. O exercício daquilo que está previsto na lei - e o correlato enfrentamento dos problemas cotidianos - é que vão produzir as transformações sociais desejadas. Mas para exercitar os direitos é necessário, por óbvio, conhecê-los. A difusão do ECA para a população é fragmentada, quando não inteiramente equívoca. Os meios de comunicação social, de maneira geral e infelizmente, desinformam a população acerca das suas previsões. Um possível grande aliado seria o sistema educacional, que também está mal informado sobre a lei.

 A Ordem dos Advogados do Brasil - Secção do Paraná fez recente levantamento quanto ao conhecimento de várias categorias sobre o ECA. Ouviu juízes, promotores de justiça, policiais militares e civis, professores, donas-de-casa, acadêmicos de direito e prefeitos municipais. E, por incrível que pareça, o conhecimento dos professores sobre a multicitada lei era inferior ao de todas as demais categorias. Havia rejeição ao ECA porque também no sistema educacional a sua difusão foi equivocada, assentando-se erroneamente que as suas normas significariam proposta de "violação das relações de autoridade no sistema educacional" já que "agora, com esse tal de Estatuto da Criança e do Adolescente, o aluno pode fazer o que bem quer e nós, os educadores, não temos capacidade de manter a disciplina dentro do sistema". Há, sem dúvida, absoluto desconhecimento da lei, vez que o ECA prevê como regra geral e inafastável tão só o dever do educador em tratar o educando com dignidade e respeito, o que todo bom educador já vinha fazendo, independentemente do agora vigente texto de lei. Quanto à questão do autoritarismo, conhecida dentro do sistema educacional, o ECA pode, sim, ser uma arma para combatê-lo e superá-lo, na ampla perspectiva de que a educação é, antes de mais nada, preparo para o exercício da cidadania.

 Os Conselhos de Direito, Municipal e Tutelar, são os instrumentos de que dispomos para trabalhar, em nossas comunidades, a difusão adequada do ECA, pois a população precisa ter conhecimento, como no exemplo da Vila Pinto de Curitiba, dos direitos que, embora inscritos, ainda se encontram distantes da vida cotidiana das crianças e adolescentes.

 A proposta é de ampliarmos o número de pessoas a fazerem a defesa do ECA, exercitando os seus direitos e das demais crianças e adolescentes. Divulgadores do conhecimento de que o ECA consiste, concretamente, no detalhamento do comando do art. 227, da Constituição Federal, que prevê ser "dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão." O ECA além de especificar, de detalhar, de pormenorizar, essas promessas genéricas de cidadania, cria mecanismos para efetivação de tais direitos, estabelece atribuições e competências para as instituições que intervêm na área da infância e juventude, objetivando o asseguramento dos direitos da criança e do adolescente.

 Para a população, isso significa a possibilidade de assegurar e materializar os direitos contidos no ordenamento jurídico através da via gratuita - sem pagamento de honorários advocatícios ou custas processuais - do Ministério Público e do Poder Judiciário, quando administrativamente não se alcança a solução desejada.

 O ECA cria o caminho de utilização das ações civis públicas para a proteção aos interesses individuais, coletivos e difusos relativos à infância e a juventude. Por exemplo, a falta de creche para atender a demanda das crianças de O a 6 anos da comunidade enseja a propositura de uma ação civil pública de caráter coletivo objetivando o cumprimento desta norma do ECA. Assim, como se sabe, não é necessário que cada pessoa individualmente ingresse com o pedido judicial, pois com uma única ação - proposta pelo Ministério Público ou até por entidades da sociedade civil que atuam na defesa de crianças e adolescentes - é possível a obtenção de determinação judicial de alcance coletivo, no sentido do cumprimento da lei.

 No efetivo engajamento do Ministério Público, temos visto a interposição de ações civis públicas objetivando a instalação e funcionamento adequado dos Conselhos dos Direitos da Criança e Adolescente e Tutelar, a garantia de acesso ao sistema educacional, a instituição de programas oficiais de auxílio a famílias carentes, a criação de casas de abrigo, postos de saúde, etc., de modo a encaminhar a implementação do ECA.

 Em Curitiba, iniciamos a execução do projeto das Promotorias da Comunidade, cuja proposta essencial é aproximar o membro do Ministério Público, o Promotor de Justiça, da população a que deve servir. Assim, dividimos Curitiba em oito regiões e, uma vez por semana, no período noturno, o Promotor de Justiça, juntamente com Estagiários Acadêmicos de Direitos, deslocam-se para um bairro periférico do Município de Curitiba, onde em espaços comunitários, como escolas, creches, sede de associações de moradores e igrejas, atende a população.

 Antes de iniciar a execução do mencionado projeto fizemos reuniões com Presidentes de Associações de Moradores, líderes comunitários e sindicais, pessoas enfim ligadas à comunidade, para ouvir a opinião dos mesmos sobre o assunto. Informamos que o objetivo fundamental era atuar na materialização dos direitos já prometidos no ordenamento jurídico para toda a população. Com a presença do Promotor de Justiça na comunidade, anotamos, poderiam ser verificadas questões específicas que acarretam graves problemas locais. O Promotor de Justiça poderia verificar as condições de funcionamento de indústrias e fábricas no que tange ao cumprimento das normas de segurança do trabalho, ao invés de esperar no seu gabinete a chegada do trabalhador mutilado em razão de um acidente ou de familiares de um trabalhador vítima de um acidente de trabalho fatal. Em defesa do consumidor, poderia verificar dentro da comunidade a situação jurídica dos lotes colocados à venda, evitando que o trabalhador adquira um imóvel de alguém que sequer seja seu proprietário ou que integre um loteamento clandestino ou irregular. Na área da infância e juventude - que aqui também deve ter prioridade absoluta - indiquei que seriam múltiplas as atividades a se desenvolver, arrolando vários direitos previstos no ECA.

 Ao término de uma das reuniões, ao tempo em que recebíamos apoio integral para o projeto, ouviu-se a manifestação de um Presidente de Associação de Moradores com, mais ou menos, o seguinte teor: "Doutor, a Promotoria de Comunidade vai ter todo o nosso apoio. Vai ser bom contar com o apoio de um Promotor de Justiça para garantir nossos direitos. É o que queremos, mas fiquei preocupado quando o senhor falou de ter acesso à Justiça, porque o povo, aqui do bairro, não gosta da Justiça".

 A partir disto, tenho dito aos Promotores de Justiça que o nosso grande desafio, o desafio da Instituição incumbida da defesa da sociedade, é de fazer uma Justiça da qual o povo possa gostar, que seja o espaço não da manutenção dos privilégios estabelecidos em favor de poucos, mas sim de asseguramento e efetivação dos direitos da grande maioria da população brasileira. Recentemente divulgou-se que cerca de 80% (oitenta por cento) do povo brasileiro não tem acesso à Justiça para garantir seus direitos, embora mantenha relações com ela enquanto réus pobres do direito penal, enquanto réus nas ações possessórias, de despejo ou de execução. Portanto, essa bandeira da Justiça como espaço de luta para transformação da sociedade, como espaço para garantia de cidadania, também pode - e deve - ser desfraldada na área da infância e juventude.

Todos sabemos que a creche é o campo inicial para o adequado ingresso - e sucesso - no ensino fundamental, pois é neste momento da vida que a criança forma a sua personalidade, passa a ter percepção e introjeta os valores sociais mais significativos. No entanto, vemos crianças com idade inferior a quatro anos esmolando nas esquinas, no abandono das ruas e aprendendo regras e códigos distantes de um processo educativo preparatório à inserção no sistema educacional. O resultado, quando chega a ocorrer o ingresso, acaba sendo o abandono da escola logo no primeiro ou segundo ano do primeiro grau.

 Durante mais de três anos fui Promotor de Justiça da então Vara de Menores da Comarca de Curitiba-Setor Infratores. Ouvia todos os adolescentes autores de ato infracional e sempre perguntava quanto à escolaridade, recebendo freqüentes respostas no sentido de que: "Estudei até o 1° ano, daí a tia disse que eu não tinha cabeça para acompanhar a turma". Ou "Estudei até a metade do 1°ano e a tia me chamou para dizer que não adiantava eu continuar indo para a aula, porque eu não ia mesmo tirar nota para passar no final do ano". Ou, ainda, "Estudei até o 1°ano porque daí a tia me mandava sentar no final da sala porque ela dizia que eu cheirava mal".

 Infelizmente, nosso sistema educacional faz por excluir exatamente aquelas crianças e adolescentes que mais dele precisariam; aqueles que não recebem educação em casa e precisam da escola para apreender as regras sociais e de relacionamento interpessoal mais elementares, até as de higiene. Na escola eles deveriam receber as informações necessárias quanto aos seus direitos, vez que a Constituição Federal assevera que o processo educacional, antes de qualquer coisa, deve cumprir o objetivo de preparo para o futuro exercício da cidadania.

 A crítica não é apenas ao professor e sim, especialmente, ao sucateamento do ensino público desencadeado ao longo dos anos pelos governantes e que agora se tenta reverter. Eu mesmo fui aluno do Grupo Escolar Professor Brandão, do Colégio Estadual do Paraná e da Universidade Federal do Paraná, portanto, formado no sistema público de ensino e, ressalte-se, da melhor qualidade.

 Na perspectiva do cumprimento das normas constitucionais e do ECA, considerado, no Paraná, até a existência de vagas compatíveis com a demanda, faz-se necessário acompanhar as questões pertinentes aos elevados índices de repetência e à evasão escolar. Essa preocupação é de tal ordem que a lei estabeleceu expressamente competir ao Conselho Tutelar apreciar hipóteses de reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, uma vez esgotados os recursos do próprio sistema educacional. Ainda, incumbe ao Conselho Tutelar analisar os casos de elevados níveis de repetência. O ECA estabelece a obrigatoriedade dos dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental em comunicar ao Conselho Tutelar os elevados níveis de repetência e a evasão escolar exatamente para diagnosticar, por exemplo, por que motivo a criança que deveria estar integrada ao sistema educacional se encontra dele afastado e cortando cana, inviabilizando a proposta de permanência e sucesso na escola. Para o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, enquanto formulador das políticas de atendimento à infância e juventude, bem como controlador das ações governamentais em todos níveis, o diagnóstico desta ordem é instrumental técnico indispensável para fundamentar o estabelecimento de programas e ações adequadas à realidade de cada comunidade.

 Pelas suas características de cidade de pequeno porte, de zona rural, não se vai tratar em Bocaiúva do Sul de tema como o de meninos de rua, mas sim o da criança que precocemente se afasta da escola para se dedicar ao trabalho. Diversamente, em Curitiba, há que se superar a situação de centenas de crianças e adolescentes que, por falta de opção, fazem da rua o espaço de moradia e sobrevivência. O trabalho do educador de rua e outros programas correlatos objetiva então identificar quem é essa população de crianças e adolescentes que estão nas ruas, analisá-los não como seres que pairam isolados na realidade social, mas que integram (ou menos deveriam integrar) uma família e pertencem a uma comunidade.

 O diagnóstico da situação familiar e social e indispensável como base para a formulação das políticas sociais públicas. É através dele que resta identificada a existência de crianças de rua, entregues à prostituição ou ao trabalho precoce; que se vai estabelecer o perfil das famílias de onde são eles oriundos; ou seja, situa no tempo e no espaço a população infanto-juvenil de cada localidade.

 Vale reafirmar o raciocínio de que a garantia do direito à educação, de permanência na escola, é o melhor remédio para todas as crianças e adolescentes que se encontram indevidamente no trabalho ou nas ruas. Aliás, há que se superar aquela estratégia estabelecida nos anos 80, quando se considerava bom mesmo que as crianças e adolescentes estivessem vivendo nas ruas, denunciadores que eram da inexistência de políticas sociais públicas e das injustiças sociais. Estamos em quadra histórica onde não se admite mais a perda de gerações e gerações de crianças brasileiras, transformadas nos adultos da subcidadania, até porque, diferentemente do Código de Menores, o ECA estabelece agora o dever do Estado, da sociedade e da família intervirem para o devido cumprimento dos direitos de nossa infância e juventude. Devemos afastar nossas crianças da trilha da marginalidade, que muitas vezes leva à delinqüência, estabelecendo uma ponte de ouro no sentido da cidadania.

 Falando-se especificamente do trabalho infantil, há que se registrar de plano que a primeira mobilização deve ter como meta a conscientização da sociedade quanto aos malefícios, aos prejuízos para o desenvolvimento de uma criança que se agregam ao trabalho precoce, vez que não raras vezes, menos por má-fé e mais por ignorância, deparamo-nos com discursos inflamados a favor do trabalho infantil - depois reproduzidos com a mesma ou maior intensidade pelo senso comum - tendo como argumento a realidade econômica e social das famílias brasileiras. "É melhor estar desde cedo trabalhando, ajudando a sobrevivência da família, do que nas ruas esmolando ou roubando", dizem.

 Nessa linha de pensamento, vale lembrar fato ocorrido aqui mesmo no Paraná, mais ou menos cinco anos atrás, quando houve denúncia de que numa determinada fazenda em Laranjeiras do Sul trabalhadores estavam sendo submetidos a trabalho escravo, viviam em condição análoga à de escravo. Chegando-se ao local indicado, a televisão entrevistou uma senhora que vivia, com um filho de três anos de idade, numa pocilga. Isto mesmo, a trabalhadora e seu filho moravam numa baia de um grande chiqueiro. A surpresa se deu quando ela respondeu que se encontrava muito bem ali, que o dono da fazenda era muito bom, pois lhe dera onde morar e garantia sua alimentação, isto em troca do seu trabalho.

 Quer dizer, a miséria era tão grande que a situação análoga à de escravo para ela gerava agradecimentos. Com certeza a referida senhora deve ter se revoltado contra ação do Promotor de Justiça, que acabou interferindo numa relação aparente de segurança, porquanto era desde logo possível prever o futuro de infortúnios que lhe esperava.

 A questão do trabalho infantil, creio, passa por contornos análogos aos experimentados pelos trabalhadores escravos e miseráveis.

 Lembro-me de ter lido certa vez um romance que tratava do momento em que, na Inglaterra, proibiu-se as crianças com menos de oito anos de idade de trabalhar nas minas de carvão. Houve então revolta dos patrões e as notícias eram de que essa proibição absurda prejudicaria a produção industrial e que as famílias estariam prestes a passar fome. Por certo que hoje, na Inglaterra, não há uma criança sequer - com menos ou com mais de oito anos de idade - trabalhando em mina de carvão ou em qualquer outra atividade.

 Infelizmente, o mesmo não pode ser dito da realidade brasileira.

 A falsa compreensão de que o trabalho é certo e bom para as crianças está impregnada no pensamento da sociedade brasileira, não obstante, por óbvio, tal proposta seja exclusivamente dirigida aos filhos das classes empobrecidas e despossuídas. Agora há que se atuar no sentido de convencer a sociedade e as famílias vítimas concretas de tais situações que não é bom para o desenvolvimento de uma criança o trabalho precoce, seja pelo aspecto físico (são mais vulneráveis aos elementos agressivos, que podem acarretar sérias debilidades, prejudiciais à saúde, crescimento e desenvolvimento), psíquico (virar adulto antes do tempo implica desgaste, atenção contínua e redobrada, alterando o desenvolvimento da identidade e personalidade, podendo produzir ruptura entre o nível de responsabilidade e de maturidade) ou, principalmente, educacional, pois enquanto está trabalhando deixa de adquirir - ou adquire mal - os conhecimentos necessários para formá-lo cidadão de melhor categoria, isso sem contar com os riscos das atividades insalubres e perigosas, inadequadas e desumanas, que estão a vitimar - com doença e morte - milhares de crianças e adolescentes.

 Durante a realização de um seminário sobre o tema, ouviu-se o testemunho de um Juiz de Direito afirmando que  trabalhara desde os dez anos de idade e tivera sucesso na vida, sendo assim, por que outras crianças não poderiam fazer o mesmo?, indagou.

 Fiz então questão de ressaltar a excepcionalidade da sua trajetória de vida porquanto, como não é difícil de constatar, a regra geral encaminha as crianças do trabalho precoce para o futuro de integrar o contingente dos cerca de 22 milhões de indigentes que existem no país. Ou seja, ao contrário da exceção, os hoje vítimas do desemprego e dos subempregos - ou mesmo do salário mínimo aviltante - certamente são aqueles que iniciaram as atividades laborais por volta dos dez anos de idade e não possuem hoje a qualificação necessária para disputar uma vaga no mercado de trabalho, que se torna, sabemos, cada vez mais selvagem e competitivo.

 Portanto, o raciocínio correto a ser desenvolvido é que as crianças que se encontram trabalhando, aparentemente resolvendo situação imediata, serão no futuro aqueles que não contaram com inserção adequada no mercado de trabalho, não significando a precocidade qualquer ponto positivo no seu projeto de vida.

 No Globo Rural, outro dia, passou uma reportagem que abordava a situação de crianças que trabalhavam em canaviais. Levantavam às quatro horas da madrugada para, num caminhão de bóias-frias, deslocarem-se ao canavial. Mostrou meninos de 12 e 13 anos - e de aspecto de 20 anos - que não estudavam e, por isso mesmo, não tinham qualquer projeto de vida, sendo que um deles, mesmo diante do contexto de miséria vivido, manifestou seu desejo de ser "cortador de cana como meu pai". Concomitantemente, foram apresentados casos referentes a outros adolescentes que se encontravam participando de projetos de iniciação profissional, inclusive com um deles, de forma otimista, contando de sua perspectiva de ser advogado.

 Estas diferenças patentes significam igualdade de oportunidade para ascensão social, para realização pessoal e participação comunitária?

 Num Estado de Direito efetivamente democrático seria aceitável essa desigualdade que marca desde cedo para um futuro de infelicidade ?

 A criança fora da escola, no trabalho precoce, com certeza não terá chances de, como resultado da democracia, exercitar os direitos elementares da pessoa humana, ou de realização pessoal ou profissional, quanto mais de participação comunitária.

 É sob esta ótica que devemos discutir com a sociedade brasileira a chaga do trabalho infantil.

 Já falei que o Brasil, infelizmente, acaba assumindo posto de destaque mundial naquilo que é ruim. Em relação ao trabalho infantil, os dados da OIT apontam o Brasil com maior índice de crianças e adolescentes trabalhando precocemente. Freqüentemente, nesse tema, faz-se referência ao México, mas nem este país tem índices tão elevados quanto o nosso de crianças entre 10 e 14 anos trabalhando. No Brasil são dois milhões e oitocentas mil crianças e adolescentes já inseridos no mercado de trabalho. 18,3% da população na faixa etária de 10 a 14 anos encontra-se já economicamente ativa e dedicada ao trabalho, sendo que na Inglaterra, EUA, Japão, Espanha, Rússia e Itália este índice é nulo. Já na faixa etária de 14 a 19 anos, nós temos 57,1%, ou seja 8 milhões e 100 mil adolescentes inseridos no mercado de trabalho

 Quando analisamos estas estatísticas, como a da taxa de mortalidade infantil e de desnutrição, do índice de analfabetismo, do número de crianças de rua ou exploradas na prostituição infantil, da falta de assistência à saúde etc., pensa-se logo na participação do Nordeste, região que estaria a determinar a tragédia constatada. Entretanto, como está a situação do Brasil no que tange ao trabalho da criança e do adolescente? É a seguinte: o maior índice é do Piauí, mas em segundo lugar está o Paraná, com 37% de crianças e adolescentes inseridas no mercado de trabalho, ou seja 13% população economicamente ativa do Estado do Paraná é formada de crianças e adolescentes. Este índice é do IBGE e da OIT do ano de 1992.

 Estatística recente do IBGE aponta que o percentual de crianças e adolescentes paranaenses, na faixa etária de 10 à 13 anos e economicamente ativos, é de 20%, quando a média nacional está em 14%.

 Enfrentar tal situação do Paraná e do Brasil, portanto, surge como emergencial e impostergável, carecendo estabelecer mecanismos políticos e jurídicos eficazes, além da participação, integrada, de segmentos da sociedade civil e governamentais.

 Não resta dúvida de que o ideal seria um contexto de pleno emprego para os adultos, de salário justo e digno, de garantia de renda mínima para as famílias, de programas oficiais de auxílio a famílias carentes e de assistência social a quem dela necessitar. Entretanto, desde logo, ressalte-se algumas ações possíveis: a) estabelecer canais de denúncia e de fiscalização dos casos de descumprimento da lei; b) definir e implementar programas para a eliminação do trabalho infantil em áreas reconhecidas como de risco; c) investir contra a evasão escolar, garantindo-se não só o direito de acesso mas, principalmente, de permanência no sistema escolar, contando com a participação do Conselho Tutelar e da Justiça da Infância e Juventude para tal propósito; d) atuar objetivando a conscientização popular no sentido de que o trabalho de criança é proibido por lei e que entre a idade de 14 a 18 anos se deve buscar formação técnico-profissional, observados a freqüência obrigatória ao ensino regular, a atividade compatível com o desenvolvimento do adolescente e o horário especial para o exercício das atividades; e) instituir programas da espécie do de renda mínima, de auxílio a famílias carentes ou outros que garantam a subsistência da criança ou adolescente que, abandonando o trabalho, seja matriculado no sistema educacional; f) como efetivos defensores dos direitos das crianças e adolescentes, intervir o Ministério Público, Estadual, Federal e do Trabalho, de modo a restarem cumpridos os comandos da Constituição Federal, do ECA, da legislação trabalhista e penal, observando-se que o trabalho precoce, de regra, contempla a prática do delito de abandono intelectual, previsto no Código Penal Brasileiro.

 Aliás, o Código Penal trata como crime tanto o abandono intelectual quanto o abandono material, este último, como se sabe, quando os pais deixam de prover o necessário para manutenção da criança, adolescente e família. Embora a omissão dos pais no sentido de matricular os filhos no sistema educacional seja crime, não pode ser esquecido que muitas crianças e adolescentes deixaram de ser inseridas na escola por fatores alheios à vontade dos pais, não por opção voluntária e sim por falta de condições sócio-econômicas.

Na realidade brasileira, o raciocínio perverso que se faz é de responsabilizar os marginalizados pela própria marginalidade, como se eles tivessem optado pela não integração social, optado por não exercitarem os direitos previstos no ordenamento jurídico, como se preferissem viver à margem dos benefícios produzidos pela sociedade. Portanto, um raciocínio que parte de premissa falsa, aquela de se imaginar que vivemos numa sociedade que oferece oportunidades iguais para todos de ascensão social e, a partir daí, conclui-se, por exemplo, que o trabalhador poderia adquirir sua casa própria pelo Sistema Financeiro de Habitação mas que prefere invadir propriedade alheia e viver com sua família em condições subumanas, fazendo cabanas de lona sua residência. O fundamental, então, é reconhecer que ninguém opta voluntariamente pela exclusão social.

 Quando da formulação do ECA, atuou-se para superar o mito jurídico de que a igualdade se garante ao tempo em que todos são tratados de forma igual perante a lei. Na verdade, se a realidade social está a apresentar desigualdades, tratar todos de forma igual perante a lei jamais importará no estabelecimento da isonomia, ao contrário a tendência será de se dar legalidade, de se cristalizar as desigualdades sociais.

 

O ECA tem como base teórica a doutrina da proteção integral, com tese fundamental no sentido de que a lei deve assegurar a crianças e adolescentes a possibilidade do exercício dos direitos fundamentais da pessoa humana, ao tempo em que não devem ser eles tratados como meros objetos de intervenção do Estado e sim como sujeitos de direito. A lei deve então tratar de forma desigual, privilegiada, aqueles que são marginalizados, vitimizados, perseguidos na realidade social.

 Devemos então combater o trabalho infantil com a efetivação dos direitos da cidadania, no reconhecimento de que vivemos num país miserável e que, não raras vezes, a subsistência da família se dá com a atividade laboral de suas crianças. Assim, a conscientização dos prejuízos do trabalho não basta, porquanto se mostra ele necessário para a sobrevivência da família. O discurso deverá vir então acompanhado de programas oficiais suplementares, garantidores de renda para manutenção da família.

 O governo do Estado do Paraná, através da Secretaria da Criança e Assuntos da Família, desenvolve o programa denominado "Da Rua para a Escola", cujo objetivo é retirar a criança da rua, do trabalho ou da prostituição para ingresso no sistema educacional, sendo que sua família passa a receber cesta básica, desincumbindo a criança da responsabilidade de gerar a subsistência familiar. Por outro lado, a Secretaria de Educação implantou, graças à proposta da professora Chloris Justem, então do Conselho Estadual de Educação, a chamada matrícula extraordinária que permite a qualquer época do ano o ingresso da criança ou do adolescente no sistema educacional, suplantando aquelas barreiras que as impediam de ter imediatamente acesso à escola.

 O ECA prevê a obrigatoriedade do poder público implantar programas oficiais de auxílio a famílias carentes, atuando-se na promoção social da criança via promoção social de sua família que, muitas vezes desestruturada, necessita de atendimento prioritário através dos recursos do Estado.

 Estima-se que 81% das crianças e adolescentes inseridos no mercado de trabalho não tenham carteira profissional assinada, fazendo portanto parte do contingente cuja mão-de-obra é extremamente barata, além de afastado dos direitos previdenciários e trabalhistas.

 Fundamental que se exija, então, paralelamente aos projetos que retiram as crianças das ruas (através dos educadores sociais e não, por certo, da polícia), a implementação de programas de subsistência familiar, para garantir a manutenção da criança no seio da sua família, afora a ampliação da rede de escolas integrais, garantindo à criança e adolescente uma formação integral, com ensino de qualidade, iniciação ao trabalho, profissionalização etc., significando projetá-lo para uma atividade laboral futura revestida de dignidade.

 Dá-se ênfase à profissionalização na perspectiva de se evitar tarefas que não servem para iniciação em trabalho algum, que não auxiliam em nada quando da busca de inserção do indivíduo no mercado de trabalho, como por exemplo, o menino empacotador do supermercado, carregador de pacotes nas feiras, guardião de veículos, etc. São propostas de "profissionalização" sem qualquer exigência pedagógica e que deixam de apresentar conteúdos de capacitação para o exercício de atividade regular remunerada; produzindo no futuro os desempregados que buscam na criminalidade a forma de subsistência. Não é por acaso que mais de 80% dos integrantes do sistema penitenciário são pobres, foram condenados por crimes contra o patrimônio e vão permanecer nos cárceres também sem possibilidade de profissionalização, distanciados de qualquer projeto de vida futura e retornando à sociedade como cidadãos de pior categoria.

 O Ministro do Trabalho anunciou em recente seminário que está sendo encaminhado ao Congresso Nacional mensagem legislativa que institui o programa de trabalho educativo para adolescentes de 14 a 18 anos e dá outras providências. Nesta reunião estava ao meu lado um integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que confessou não ter conhecimento do referido projeto de lei. Assim, o CONANDA, que é responsável pela formulação das políticas de atendimento à infância e à juventude, que discute o trabalho como aprendizado, dando prevalência ao caráter pedagógico e não produtivo, não foi sequer ouvido sobre a matéria. Aliás, o Ministro da Justiça esteve lá abrindo a reunião e fez seu discurso sem mencionar a existência do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, do qual ele é inclusive presidente.

 Diante de tantas dificuldades, indispensável o desenvolvimento de ações integradas envolvendo as áreas da educação, do trabalho, da promoção social e da justiça.

 Neste processo, é desejável que haja integração entre os órgãos envolvidos, evitando-se conflitos como os que ocorriam na época do Programa Bom Menino, em 1989, quando o Ministério do Trabalho autuava as empresas que tinham adolescentes trabalhando sem garantia dos direitos previdenciários e trabalhistas e o Ministério da Previdência autuava porque a empresa não possuía o número de adolescentes correspondente a 5% do quadro funcional, deixando a todos perplexos.

 O que se mostra necessário é abrir espaço para participação de todos os segmentos da sociedade no sentido de se investir contra o trabalho infantil, sempre na perspectiva de integração, de esforços conjuntos de todos os órgãos com atuação na área.

 Além de sensibilização da sociedade (que não pode aceitar, por exemplo, que na frente da sua casa trabalhe uma criança como "guardador de carros"; que o açougue vizinho tenha uma criança empregada que trabalha desde as quatro horas da madrugada; que o caminhão de bóias-frias passe repleto de crianças encaminhadas ao corte de cana ou à colheita de algodão), devemos criar canais de orientação e denúncia, onde a população se informe quanto ao direito das crianças de não trabalhar e as condições em que a lei permite o trabalho do adolescente.

 Temos que estabelecer linhas de comunicação com a sociedade e os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, que são espaços de participação democrática e deverão ser referência nesse processo. Quando da criação dos Conselhos de Direito, o legislador teve em mente dar concretude à proposta de democracia participativa contida no parágrafo único, do artigo 1°, da Constituição Federal, que pela primeira vez na nossa história constitucional estabeleceu a possibilidade do exercício direto do poder pelo povo, donde a composição paritária e o caráter deliberativo dos mesmos, permitindo aos representantes das entidades da sociedade civil organizada a co-gestão das ações governamentais relativas à infância e juventude, além do controle delas em todos os níveis.

 Por outro lado - e já finalizando - insisto que todo cidadão brasileiro tem o dever de colaborar com o processo já desencadeado de organização popular, vez que somente com a sociedade civil organizada - e por isso mesmo politizada - é que se realizarão as reformas estruturais aguardadas pela nação brasileira, como a reforma agrária, a educacional, a tributária, etc., criando-se as condições para atendimento dos milhões e milhões de brasileiros que vivem hoje distantes das promessas de cidadania. Digo isso porque, por mais competente e dedicado que seja o profissional atuante na área da infância e juventude, ele atende adequadamente uma criança e o sistema está produzindo, naquele exato momento, outras mil com idênticas carências. Ou seja, nós atendemos no varejo e o sistema injusto estabelecido no país produz no atacado. O importante é que cada um de nós, em razão do nosso conhecimento e compromisso possa ser instrumento para organização da sociedade. Os cidadãos organizados politicamente deixam de ser meros objetos da história para se constituir em sujeitos da mesma e, assim, construtores de uma nova ordem social.

 Por pensar assim, termino esta minha tese fazendo o registro de um poema de autoria de um grupo de meninos de rua, de uma comunidade pobre de Curitiba, Profeta Elias. O poema representa a consciência destes meninos, integrados ao Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, politizados e reconhecendo-se como cidadãos, agentes de transformação e não mais meras vítimas do sistema injusto que experimentam. Que o poema fique como emblema da minha participação no 12º Congresso Nacional do Ministério Público e objeto de reflexão para todos:

 Nós também queremos viver,

Nós também amamos a vida

 Para vocês escola - para nós pedir esmola.

Para vocês academia - para nós delegacia.

Para vocês forró - para nós mocó.

Para vocês coca-cola - para nós cheirar cola.

Para vocês avião - para nós camburão.

Para vocês vida bela - para nós morar na favela.

Para vocês televisão - para nós valetão.

Para vocês piscina - para nós chacina.

Para vocês emoção - para nós catar papelão.

Para vocês conhecer a lua - para nós morar na rua.

Para vocês, está bom, felicidade - mas, para nós igualdade.

 Nós também queremos viver,

Nós também amamos a vida.

 Conclusões

 1) O trabalho infantil, situação concreta de violação de regras constitucionais e do Estatuto da Criança e Adolescente, restaria erradicado num contexto de pleno emprego para os trabalhadores adultos, de salário justo e digno, de garantia de renda mínima às famílias, de programas oficiais de auxílio a famílias carentes e de assistência social para quem dela necessite.

 2) Entretanto, desde logo, ressalta-se algumas ações possíveis: a) estabelecer canais de denúncia e de fiscalização dos casos de descumprimento da lei; b) emergencialmente, definir e implementar programas para a eliminação do trabalho infantil em áreas reconhecidas como de risco; c) investir contra a evasão escolar, garantindo-se não só o direito de acesso mas, principalmente, de permanência e sucesso no sistema de ensino, contando com a participação do Conselho Tutelar e da Justiça da Infância e Juventude para tal propósito;  d) atuar objetivando a conscientização popular no sentido de que o trabalho de criança é proibido por lei e que entre a idade de 14 a 18 anos se deve buscar formação técnico-profissional, observadas a freqüência obrigatória ao ensino regular, a atividade compatível com o desenvolvimento do adolescente e o horário especial para o exercício das atividades; e) instituir programas da espécie do de renda mínima, de auxílio a famílias carentes ou outros que garantam a subsistência da criança ou adolescente que, abandonando o trabalho, seja matriculado no sistema educacional; f) como efetivos defensores dos direitos das crianças e adolescentes, e estabelecendo políticas institucionais atendendo ao princípio da prioridade absoluta para a infância e juventude (art. 227, da Constituição Federal), intervir o Ministério Público Estadual, Federal e do Trabalho, de modo a restarem cumpridos os comandos da Constituição Federal, do ECA da legislação trabalhista e penal.

  * Trabalho apresentado no XII Congresso Nacional do Ministério Público, em  Fortaleza - CE