Afonso Armando Konzen
Procurador
de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul.
1. Até a vigência da atual Constituição Federal, a
Educação, no Brasil, era havida, genericamente, como uma necessidade e um importante
fator de mudança social, subordinada, entretanto, e em muito, às injunções e
aos acontecimentos políticos, econômicos, históricos e culturais. A normatividade de então limitava-se,
como se fazia expressamente na Constituição Federal de 1967, com a redação que
lhe deu a Emenda Constitucional nº01, de 17 de outubro de 1969, ao afirmar da
Educação como um direito de todos e dever do Estado, com a conseqüente
obrigatoriedade do ensino dos 07 aos 14 anos e a gratuidade nos
estabelecimentos oficiais, restringindo-se, quanto ao restante, inclusive na
legislação ordinária, a dispor sobre a organização dos sistemas de ensino. Em
outras palavras, a Educação, ainda que afirmada como direito de todos, não
possuía, sob o enfoque jurídico e em qualquer de seus aspectos, excetuada a
obrigatoriedade da matrícula, qualquer instrumento de exigibilidade, fenômeno
de afirmação de determinado valor como direito suscetível de gerar efeitos
práticos e concretos no contexto pessoal dos destinatários da norma. A oferta
de ensino e a qualidade dessa oferta situava-se, em síntese, no campo da
discricionariedade do administrador público, ladeada por critérios de
conveniência e de oportunidade[1].
Com o advento da Constituição de 1988 e dos diplomas legais complementares, o panorama jurídico alterou-se significativamente, em especial no que diz para com a educação infantil e o ensino fundamental da criança e do adolescente. De todos os direitos sociais constitucionalmente assegurados, nenhum mereceu, explicitamente, por parte do legislador constituinte e ordinário, o cuidado, a clareza e a contundência do que a regulamentação do Direito à Educação. Afirmado como o primeiro e o mais importante de todos os direitos sociais, fez-se compreender a Educação como valor de cidadania e de dignidade da pessoa humana, itens essenciais ao Estado Democrático de Direito e condição para a realização dos ideais da República, de construir uma sociedade livre, justa e solidária, nacionalmente desenvolvida, com a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais e regionais e livre de quaisquer formas de discriminação (artigo 3º da Constituição Federal), o imaginário de Nação inscrito na Carta Magna Brasileira.
O enfoque produziu uma nova matriz. Da centralidade na
definição do perfil organizacional dos sistemas de ensino e das diretrizes de
natureza pedagógica, a preocupação do legislador voltou-se também para a
eleição de instrumentos de exigência, conferindo ao conjunto de normas o
indispensável sentido de coerência. A realidade educacional brasileira,
infelizmente ainda carregada de insuficiências, apesar dos esforços históricos
dos educadores para superá-los e dos avanços formais da legislação, deve,
então, merecer, com urgência, a adesão dos operadores da Justiça e de todo o sistema
de garantia dos direitos da criança e do adolescente, condição essencial para
dar razão de ser e de efetividade ao que se anuncia como sendo, hoje, no
Brasil, o DIREITO à EDUCAÇÃO[1].
2. Segundo preceitua o artigo 1º da Lei nº 9.394, de
20 de dezembro de 1996 (LDB), “a educação abrange os processos formativos que
se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos
movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações
culturais”. A abordagem da presente exposição pretende limitar-se ao tema da
educação escolar, para responder ao significado material de alguém ser sujeito
do direito à educação escolar, de quais são os instrumentos de exigibilidade
desse direito, de quais são os pontos suscetíveis de se permitir o acesso ao
Poder Judiciário para a asseguração e de quem está legitimado para o exercício.
A regulamentação da matéria permite responder aos questionamentos sem maiores
dúvidas quanto à sua liquidez e certeza. É o que se pretende demonstrar, ainda
que sem esgotar a análise ou tampouco ingressar em eventuais controvérsias.
3. Além da
Constituição Federal e das respectivas constituições estaduais e municipais
(leis orgânicas dos Municípios), importa, ao estudo da exigibilidade do Direito
à Educação, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº8.069, de 13
de julho de 1990), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei
Federal nº9.394, de 20 de dezembro de 1996), a Lei da Ação Civil Pública (Lei
Federal nº7.347, de 24 de julho de 1985), a Lei da Probidade Administrativa
(Lei Federal nº 8.429, de 02 de junho de 1992) e as leis de responsabilidade
(Lei Federal nº1.079, de 10 de abril de 1950, e Decreto-Lei nº 201, de 27 de
fevereiro de 1967), além das normas procedimentais do Código de Processo Civil,
do Mandado de Segurança e da Ação Popular. Especificamente, está no Estatuto da
Criança e do Adolescente o detalhamento do conteúdo material do direito à
educação escolar, já que a LDB concentra-se em tratar da oferta, especialmente
pela regulação dos respectivos sistemas de ensino.
4. Pode-se
resumir, sob o enfoque estrito do conteúdo material, o Direito à Educação
Escolar aos seguintes pontos:
4.1–
Universalidade do acesso e da permanência:
Colocada na Constituição Federal (artigo 206, inciso
I) e na LDB (artigo 3º, inciso I) como mero princípio do ensino, o Estatuto
assegura à criança e ao adolescente a igualdade de condições para o acesso e a
permanência na escola. Vale dizer que o Direito à Educação da criança e do
adolescente impõe ao sistema educacional, considerado no seu todo ou em relação
a qualquer uma de suas instituições de ensino em particular, a eliminação de
todas as formas de discriminação para a matrícula ou para a permanência na
escola.
A permanência na escola constitui-se no maior desafio
da educação escolar brasileira, porque os indicativos de exclusão ainda
ilustram de forma constrangedora as resenhas estatísticas. Não se pretende aqui
apontar ou analisar as causas e as conseqüências do fenômeno. Cabe assinalar,
no entanto, que a falta da criança ou do adolescente às aulas ou o gradativo
abandono da escola, assim como a repetência do ano escolar,
deixaram de ser questões de foro interno da instituição de ensino. O
Estatuto cerca a escola com uma rede de atores e de providências, concebidos
para auxiliá-la no cumprimento de sua missão. Nesse particular, o Direito à
Educação não é mais tão-só o direito à vaga, mas é o direito ao ingresso, à
permanência e ao sucesso.
Percebe-se, portanto, que a responsabilidade pelo
desenvolvimento do processo educativo pertence ao educador, papel no qual é
insubstituível. A obrigação, no entanto, de velar pelo integral asseguramento do direito de ser educado envolve um conjunto
de ações, para cujo desenvolvimento exige-se a participação dos pais, do
professor, da direção da escola e também dos titulares das atribuições de
atendimento à criança e ao adolescente em situação de dificuldade, como
proposto, pelo sistema de proteção especial, com suas medidas e programas de
proteção especial, no Estatuto da Criança e do Adolescente.
4.2
Gratuidade e obrigatoriedade do ensino
fundamental:
O ensino da primeira à oitava série deve ser oferecido
gratuitamente a todo brasileiro, inclusive para os que a ele não tiveram acesso
na idade própria. O acesso é direito público subjetivo (parágrafo primeiro do
artigo 208 da Constituição Federal). Vale dizer que o acesso ao ensino
fundamental é direito líquido e certo de qualquer cidadão brasileiro maior de
sete anos, exigível do Poder Público a qualquer tempo, sem importar a condição
pessoal, econômica ou social do inconcluinte. Ainda
não se percebe a mesma condição de liquidez e certeza em relação ao acesso ao
ensino médio, em face da regra programática da progressiva universalização
dessa etapa final da educação básica.
A obrigatoriedade do ensino fundamental confere aos
pais ou ao responsável (guardião ou tutor) o dever da matrícula. A falta da
providência pode significar a prática do delito de abandono intelectual (artigo
246 do Código Penal). A ausência da matrícula e da regular freqüência à escola
coloca a criança e o adolescente em situação de tutela especial, suscetível à
incidência das chamadas medidas de proteção definidas no artigo 101 do
Estatuto. Aos pais ou ao responsável em falta podem ser aplicadas as medidas
previstas no artigo 129 do mesmo diploma legal referido, inclusive a medida de
acompanhar a freqüência e o aproveitamento escolar do filho. Estarão os pais,
ou o responsável, em caso de descumprimento da obrigação, na condição de
autores da infração administrativa capitulada no artigo 249 do Estatuto, pelo
descumprimento de dever inerente ao pátrio poder. Como se vê, a obrigatoriedade
não se restringe tão-só ao dever da matrícula. Alcança a regular freqüência e
aproveitamento, condição inerente ao Direito à Educação de toda criança e
adolescente, direito indisponível não só para o destinatário da norma
protetora, mas para todos os legitimados ao exercício desse direito, sejam tais
legitimados os pais, o professor, o dirigente do estabelecimento educacional ou
qualquer outra autoridade.
A ausência de oferta ou a oferta irregular importa em
responsabilidade da autoridade competente. Não há tipo penal específico para o
enquadramento do autor da conduta omissiva, seja a conduta dolosa ou culposa.
No entanto, se comprovada a negligência, a conduta da autoridade competente
pela garantia do oferecimento pode configurar a prática de crime de
responsabilidade (parágrafo quarto do artigo 5º da LDB)[3], como prevêem os diplomas legais específicos sobre a matéria. O
comportamento omissivo poderia ser enquadrado, ainda, na hipótese do desvio dos
recursos públicos para outras finalidades, na lei da improbidade
administrativa.
4.3
- Atendimento
especializado aos portadores de deficiência:
O esforço pela inclusão social da pessoa portadora de
deficiência merece especial destaque na atual legislação brasileira, o que
passou a ser um dos principais objetivos da assistência social (artigo 203, incisos IV e V, da Constituição Federal). A
inclusão social do portador de necessidades especiais, na linguagem dos artigos
58 a 60 da LDB, passa pela inclusão escolar. Por isso, a regra do atendimento
diferenciado, preferencialmente na rede regular de ensino e nas condições
explicitadas.
4.4
–
Atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis:
A oferta da educação
infantil, sinônimo de creche e pré-escola, passou a ser obrigação do
Poder Público. Não há a obrigatoriedade da matrícula. No entanto, toda vez que
os pais ou o responsável quiserem ou necessitarem do
atendimento, nasce a correspondente obrigação pela oferta. A LDB, ao incumbir
aos Municípios a responsabilidade pela oferta (artigo 11, inciso V), também
retirou a creche e a pré-escola do âmbito das políticas de proteção especial e
transferiu todo o encargo para o sistema educacional. Assim, a creche e a
pré-escola não podem mais ser considerados uma espécie dos
programas de apoio sócio-familiar (artigo 90, inciso I, do Estatuto),
como até então, em geral, vinham entendendo os Conselhos de Direitos da Criança
e do Adolescente, e tampouco integram as políticas de assistência social de
caráter supletivo, mas passaram a se constituir em política social básica de
educação.
4.5
– Oferta de
ensino noturno regular e adequado às condições do adolescente trabalhador:
O gradativo
ingresso do adolescente no mercado de trabalho faz parte do roteiro de
socialização dos jovens, especialmente para a juventude originada dentre os economicamente menos favorecidos.
Por isso, a necessária compatibilização entre o trabalho e a freqüência à
escola. A conjugação das disposições do artigo 54, inciso VI, do Estatuto, com
as do artigo 4º, incisos VI e VII, da LDB, não deixa qualquer dúvida acerca da
certeza da obrigação da oferta do ensino fundamental noturno para o atendimento
dos jovens inseridos no mercado de trabalho.
4.6
-
Atendimento no ensino fundamental através de programas suplementares de
material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde:
De pouco adiantam as obrigações da matrícula e da
oferta da vaga se o educando não encontrar condições físicas de comparecer à
escola e sentir-se obrigado a freqüentá-la sem os elementos indispensáveis para
o aprendizado. Por isso, é condição inerente à regular
oferta de ensino fundamental a oferta complementar das condições mínimas não só
para o comparecimento, mas também para a permanência proveitosa na escola.
4.7
– Direito
de ser respeitado pelos educadores:
O respeito é um dos chamados direitos fundamentais de
toda criança e adolescente (artigo 227, caput, da Constituição Federal), na
forma regulamentada pelo artigo 17 do Estatuto, base sobre a qual se assenta a
integridade física, psicológica, moral e cultural do educando, elementos
indispensáveis na estrutura curricular e no quotidiano dos relacionamentos
entre crianças, adolescentes e adultos na vida escolar[4]. O direito ao respeito freqüentemente vem sendo confundido como
sinônimo da falta de legitimidade para o estabelecimento da ordem e da
disciplina. Ora, o direito a ser respeitado não significa a aquisição da
liberdade de desrespeitar. Portanto, o respeito, como um dos elementos
integradores do processo educativo, necessita da reciprocidade. Não significa,
a citada garantia do educando, qualquer perda de autoridade do professor ou do
dirigente do estabelecimento de ensino.
A conduta desrespeitosa ao educando criança ou
adolescente pode configurar ilícito penal, como dispõe o artigo 232 do
Estatuto.
4.8
– Direito
de contestar os critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares
superiores:
A cidadania é um dos pilares de sustentação do Estado
Democrático de Direito e ninguém nasce sabendo exercer todas as prerrogativas
inerentes à condição de cidadão. Por isso, a preparação para o exercício da
cidadania é um dos objetivos da Educação. A escola, então, deve oportunizar aos
educandos formas de exercer a cidadania. A afirmação do direito de contestar os
critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores
(artigo 53, inciso III, do Estatuto), é uma das formas de exercer cidadania. É
assim que se aprende.
Os regimentos das escolas é que devem tratar da
matéria, com a explicitação das formalidades de encaminhamento da reclamação do
aluno contra a avaliação do seu aproveitamento.
4.9
– Direito
de organização e participação em entidades estudantis:
A liberdade de reunião e de associação é garantia
fundamental do cidadão brasileiro (artigo 5º, incisos XVI e
XVII, da Constituição Federal). A organização estudantil é decorrência
dessa liberdade. Veda-se, portanto, à escola, ou ao sistema de ensino, a
colocação de impedimentos ou obstáculos à organização ou à participação do
educando em entidades do seu interesse.
4.10 -
Acesso à escola próxima da residência:
O dispositivo regulamentador
não deixa qualquer dúvida acerca da vedação de se discriminar o educando em
relação à freqüência da escola que o privilegia geograficamente, com o que se
impõe aos sistemas de ensino o estabelecimento de critérios objetivos para a
organização da matrícula.
4.11–
Ciência dos titulares do pátrio poder do processo pedagógico e participação na definição da proposta
educacional:
Os principais agentes da efetividade da educação dos
filhos são os pais, na qualidade de detentores do pátrio poder. Antes de titulares
de direitos, são os pais atores de obrigações. Se lhes compete responder pela
educação, nada mais natural do que permitir a influência dos pais também na
educação escolar dos filhos. A proposição legal objetiva muito mais do que uma
presença meramente contemplativa. Quer a integração entre os pais e os
responsáveis pela escola, a ponto de se comungar a responsabilidade pela
definição da proposta educacional, além da plena ciência do processo pedagógico
adotado pela escola. A forma de participação dos pais, inclusive a ciência do
processo pedagógico, deve ser objeto de regulamentação pelos respectivos
sistemas.
5. O
Estatuto da Criança e do Adolescente, ao regular, no Brasil, a doutrina da
proteção integral preconizada pela Convenção sobre os Direitos da Criança[5], reorganizou todo o sistema de
atendimento. Preocupado em inibir as transferências de problemas e a imposição
de soluções alheias à realidade local, retirou o legislador atribuições até
então da Polícia Judiciária e do Poder Judiciário, órgãos do Estados da
Federação, repassando-as para organismos do Município, a quem coube, como
instância mais próxima da população, a tarefa de responder pela organização,
manutenção e controle das estruturas de atendimento. Percebe-se a transferência
de responsabilidades, freqüente queixa dos municipalistas.
Mas percebe-se também a transferência de autoridade.
O principal
serviço público de atendimento à criança e ao adolescente, organizado e mantido
pelo Município, é, sem dúvida, o Conselho Tutelar. Legitimados
pelo peculiar processo de escolha e de investidura, compete aos
conselheiros tutelares atender a criança e o adolescente, assim como os seus
pais ou o responsável, toda vez que se afigurar uma situação de risco pessoal
ou social, quer pela ação ou omissão da sociedade ou do Poder Público, quer
pela falta, omissão ou abuso dos pais ou do responsável, quer em razão da
conduta da própria criança ou adolescente. Assim, ressalvado o atendimento do
adolescente autor de ato infracional, representa o Conselho Tutelar a porta de entrada do sistema de atendimento, intervenção
concebida sob a perspectiva da promoção social das pessoas envolvidas, mister
para a qual o conselheiro viu-se investido de prerrogativas de autoridade
pública. A observação atenta das suas atribuições e das medidas de sua
competência, configura no Conselho Tutelar um serviço público voltado
principalmente para a tarefa de prevenir. Atua na base do tecido social, a
partir da célula mais primária, a família, para acompanhar o processo de socialização
do indivíduo. No momento seguinte, incide em relação aos serviços de saúde e de
educação.
Criança sem escola, criança excluída da escola,
criança com sintomas de maus-tratos, criança com faltas injustificadas, criança
sem adequado aproveitamento, criança com desvios de conduta, é criança em
situação de risco e, em conseqüência, em situação de tutela. Devem agir, lado a
lado, em tais situações, o Conselho Tutelar e a escola. O Conselho não possui a
atribuição de controle sobre a atuação da escola. Reúne, entretanto,
legitimidade para verificar o aproveitamento escolar de determinada criança,
não para corrigir a escola, mas para impor aos pais as providências para a
correção, de onde vem a razão para a obrigatoriedade
da comunicação dos casos de maus-tratos, reiteração de faltas, de evasão e dos
elevados níveis de repetência (artigo 56 do Estatuto). Na falta da atuação
adequada dos pais e na impossibilidade de solução pela escola, deve intervir
uma nova instância administrativa, um serviço público especialmente criado para
esse fim. Constitui-se, portanto, o Conselho Tutelar, a esfera auxiliar da
escola para a superação das dificuldades individuais da criança e do
adolescente com vistas à permanência e ao sucesso escolar.
6. O Poder
Judiciário, mas especificamente o Juiz da Infância e da Juventude, é o
legitimado maior para o exercício do poder-dever de garantir os direitos da
criança e do adolescente, dentre os quais está o Direito à Educação. Assim,
seja a oferta ausente ou irregular, situe-se o interesse no campo individual,
difuso ou coletivo, é o Poder Judiciário o destinatário natural da pretensão.
A exigibilidade do Direito à Educação sustenta-se nos
seguintes pilares básicos: ou a conduta, por ação ou omissão, é tipificada como
ilícito penal, previsão sancionadora na qual o infrator deve encontrar a
retribuição pela ilicitude (como, por exemplo, o delito de abandono intelectual
ou os crimes de responsabilidade ou de improbidade); ou a conduta constitui-se
em infração administrativa (como, por exemplo, a falta de comunicação ao
Conselho Tutelar dos casos de maus-tratos – artigo 245 do Estatuto); ou a
conduta representa a prática de infração disciplinar ou de natureza funcional;
ou, por último, a superação da irregularidade pode ser objeto de provimento
judicial específico, ordem a ser buscada em ação própria pelos respectivos
legitimados. Nesse último tópico consiste exatamente o avanço introduzido com o
advento do Estatuto, pela possibilidade jurídica da defesa judicial do
interesses individuais, difusos e coletivos, dentre os quais o Direito à
Educação[6].
Além dos pais ou do responsável, a principal
instituição legitimada para a tomada das providências de natureza judicial em
defesa do Direito à Educação da criança e do adolescente, seja a lide individual,
difusa ou coletiva, é, sem dúvida, o Ministério Público[7]. Estão legitimados concorrentemente a União, os Estados, os
Municípios, o Distrito Federal, os Territórios e as associações legalmente
constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais
a defesa dos interesses e direitos da criança e do adolescente. O instrumento
de exigibilidade é a ação
civil pública, nos termos normatizados pelo
artigo 208 e seguintes do Estatuto da Criança e do Adolescente.
7. A
possibilidade legal da judicialização do
não-oferecimento ou da oferta irregular da educação escolar certamente não
representa a solução para todas as insuficiências da área educacional. Poderá
constituir-se, no entanto, em significativo instrumento de coerção para as mudanças
necessárias e desejadas na legislação brasileira, porque, no dizer de Dom
Luciano Mendes de Almeida, a lei há de contribuir para a mudança da
mentalidade na sociedade brasileira, habituada, infelizmente, a se omitir
diante das injustiças de que são vítimas as crianças e adolescentes. O respeito
à lei fará com que a opressão e o abandono dêem lugar à justiça, à
solidariedade e ao Amor[8].
Porto Alegre,
julho de 1999.
Notas:
[1] Retrospectiva histórica da
legislação educacional no Brasil, ver em Direito da Criança e do Adolescente,
Uma Proposta Interdisciplinar, de Tânia da Silva Pereira, Editora Renovar, pág.
281 e seguintes.
[2] Sobre Educação, Direito e Cidadania,
ver articulado da autoria do Procurador de Justiça Paulo Afonso Garrido de
Paula, publicado em Igualdade, Livro 9, Revista Trimestral do Centro de Apoio
Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Ministério Público
do Paraná,
[3] O parágrafo terceiro do artigo 5º da
LDB prevê a possibilidade de peticionar ao Poder Judiciário na hipótese da
apuração de responsabilidade pela autoridade competente pelo não-oferecimento
do ensino obrigatório e gratuito, ação judicial gratuita e de rito sumário. Não
se sabe de que ação pretendeu tratar o legislador no mencionado dispositivo legal
e tampouco quais as sanções a que estaria sujeita a autoridade omissiva. A
citada norma carece de complementação, tanto em seu sentido sancionador como
procedimental.
[4] Sobre o tema, ver comentários do
educador Antônio Carlos Gomes da Costa, em Estatuto da Criança e do Adolescente
Comentado, Munir Cury e outros, Editora Malheiros, pág. 167.
[5] O texto da Convenção sobre os
Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de
novembro de 1989 e assinada pelo Governo Brasileiro em 26 de janeiro de 1990,
foi aprovado pelo Decreto Legislativo nº28, de 14 de
setembro de 1990.
[6] Sobre a defesa judicial do Direito à
Educação, ver Interesses Difusos e Direitos da Criança e do Adolescente, de Josiane Rose Petry Veronese, Livraria Del
Rey Editora, Belo Horizonte, 1996.
[7] Ver O Ministério Público e o Estatuto
da Criança e do Adolescente, de Hugo Nigro Mazzilli e Paulo Affonso Garrido de
Paula, Edições APMP, série Cadernos Informativos, 1992.
[8] Citação de Antônio Carlos Gomes da Costa,
em É Possível Mudar, Série Direitos da Criança, Malheiros Editores, pág. 07.