BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O ART.122, INCISO III DA LEI Nº8.069/90
Murillo José Digiácomo
A internação por descumprimento de medida sócio-educativa anteriormente imposta, também conhecida como "internação-sanção", prevista no art.122, inciso III da Lei nº8.069/90, é tema altamente polêmico por uma série de razões, valendo mencionar que, por ocasião da elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, muitos de seus idealizadores e colaboradores se opuseram à ela com veemência, havendo mesmo no presente quem alegue, não por mero acaso, que a mesma se trata da única "pena" prevista na legislação pátria a adolescentes em conflito com a lei.
O que tenho notado, em virtude de minha atuação junto ao Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Estado do Paraná, é que a referida medida vem sendo aplicada e executada de forma completamente equivocada, não apenas nesta Unidade da Federação, mas em todo o Brasil.
Como ponto de partida para análise do tema, é preciso considerar que os fundamentos e objetivos dessa modalidade de internação são completamente diversos das demais hipóteses de aplicação da medida privativa de liberdade extrema, previstas no art.122, incisos I e II da Lei nº8.069/90.
Enquanto nestes casos (ato infracional praticado mediante grave ameaça ou violência à pessoa e em razão da reiteração na prática de outras infrações consideradas graves), a internação (ao menos em tese) é aplicada desde logo, face à gravidade do ato infracional praticado e, acima de tudo, por ter se mostrado necessária, como único meio de realizar o trabalho psicossocial de que o adolescente é credor (conforme art.112, §1º, c/c arts.100, 113 e 121, caput, todos da Lei nº8.069/90), no caso da internação por descumprimento de medida, a privação de liberdade pode ocorrer mesmo tendo sido a infração praticada de natureza leve, haja vista que esta serve para dar um certo grau de "coercibilidade" às medidas originalmente aplicadas em meio aberto e mesmo à semiliberdade.
Daí a razão, creio, de se falar que essa modalidade de internação possui um "caráter assecuratório", pois estaria servindo como uma verdadeira "espada de Dâmocles", pairando por sobre a cabeça do adolescente submetido a medidas em meio aberto para alertá-lo de que, em havendo o descumprimento reiterado e injustificável destas (assim apurado em procedimento contraditório próprio, em que seja garantida a ampla defesa ao jovem, com a intervenção de defensor habilitado, conforme art.5º, incisos LIV e LV, ambos da Constituição Federal), poderá ocorrer algo pior, qual seja, sua privação de liberdade.
Um dos grandes problemas hoje enfrentados é a aplicação sistemática e indiscriminada, dessa modalidade de internação, pelo período integral previsto no art.122, §1º da Lei nº8.069/90, quando na verdade o dispositivo se refere ao prazo máximo para sua duração, que a exemplo do que ocorre com as demais modalidades de internação, é indeterminado (art. 121, §2º, 1ª parte, da Lei nº8069/90) devendo ser condicionado unicamente à assimilação, por parte do adolescente, da importância e necessidade de que o mesmo se submeta ao comando da sentença impositiva da medida sócio-educativa original em meio aberto (ou semiliberdade), com sua predisposição em cumpri-la fiel e integralmente.
Tendo em vista a inevitável incidência, mesmo para essa modalidade de internação, do disposto no art.121, §2º, primeira parte, da Lei nº8.069/90, não é admissível que a autoridade judiciária estabeleça um prazo certo para duração da medida, notadamente quando tal prazo for o máximo previsto no citado art.122, §1º do mesmo Diploma Legal, pois é perfeitamente possível que o adolescente, passadas algumas semanas ou mesmo dias da internação, se proponha a cumprir a(s) medida(s) em meio aberto (ou de inserção em regime de semiliberdade) originalmente imposta(s), tendo assim a medida atingido seus objetivos e não mais se justificando a manutenção da privação da liberdade de seu destinatário, a bem do princípio constitucional da brevidade da internação, insculpido no art.227, §3º, inciso V, primeira parte de nossa Carta Magna e reproduzido no art.121, caput, primeira parte, da Lei nº8.069/90.
Assim sendo, nada impede que, poucas semanas ou mesmo dias após a internação do adolescente por descumprimento de medida anteriormente imposta (art.122, inciso III e §1º, ambos da Lei nº8.069/90), uma vez que se obtenha do jovem o compromisso de que doravante irá se submeter ao comando da sentença e cumprir a medida originalmente aplicada, seja desde logo encaminhado, pela entidade encarregada de executar a medida privativa de liberdade, relatório fundamentado contendo prognóstico favorável à desinternação, independentemente de constar ou não, da decisão que decretou a privação de liberdade do jovem, prazo certo para sua duração, disposição que se presente, por afrontar o citado art.121, §2º, primeira parte da Lei nº8.069/90, é nula de pleno direito, não tendo assim qualquer força vinculante.
Tão logo seja protocolado o referido relatório, a exemplo do que ocorre com os demais pedidos e feitos de interesse de crianças e adolescentes, que por princípio constitucional (art.227, caput da Constituição Federal), gozam de prioridade absoluta de apreciação pelo Poder Judiciário, deve a autoridade judiciária competente dele abrir vista ao Ministério Público (conforme previsto no art.201, inciso II e art.153, in fine, ambos da Lei nº8.069/90) e, por decisão fundamentada, prontamente decidir pela desinternação ou não do adolescente, devendo no primeiro caso determinar o prosseguimento da execução da medida original, com as intimações e advertências necessárias, inclusive junto aos pais ou responsável pelo jovem.
Vale o registro que, em sendo atingido o prazo máximo de internação por descumprimento de medida anteriormente imposta previsto no art.122, §1º, da Lei nº8.069/90, impõe-se à autoridade judiciária a determinação da imediata liberação do adolescente, inclusive sob pena da prática do crime do art.235 da Lei nº8.069/90, com o decreto da extinção da medida originalmente aplicada, que terá então perdido seu objeto.
Tal conclusão decorre, dentre outros fatores, relacionados à interpretação sistemática, lógica e teleológica do Estatuto da Criança e do Adolescente, da constatação de que, caso houvesse o prosseguimento da execução da medida originalmente aplicada após atingido o período máximo de internação previsto no art.122, §1º da Lei nº8.069/90, a persistência de seu reiterado descumprimento por parte do adolescente poderia levar a internações sucessivas, pelo mesma prática infracional, que ao final poderiam resultar na absurda situação de que, por um único ato infracional de natureza leve, permaneceria o adolescente internado por um período superior ao máximo previsto no art.121, §3º do citado Diploma Legal, para a internação sócio-educativa em tese (e sempre em tese, posto que sua aplicação não é obrigatória e nem deve ser a regra, mesmo nessas situações) destinada a infrações de natureza grave.
Outra questão que vem sendo objeto de intenso debate diz respeito à possibilidade de aplicação da internação-sanção a adolescentes que descumprem de forma reiterada e injustificável medidas sócio-educativas aplicadas em sede de remissão, com base no permissivo do art.127 da Lei nº8.069/90.
Em estados como São Paulo e Rio Grande do Sul, tem se pacificado o posicionamento favorável a tal solução, com o qual, data maxima venia, não comungo, por entender que a mesma afronta princípios constitucionais e estatutários básicos, bem como a própria interpretação literal do art.122, inciso III da Lei nº8.069/90.
Com efeito, não me parece razoável concluir que o legislador (como alhures mencionado já relutante com a própria previsão da internação-sanção para medidas aplicadas em procedimentos contraditórios findos, nos quais houve a devida comprovação da autoria e materialidade do ato infracional), teve a intenção de permitir que um adolescente ao qual, por estarem presentes as condições favoráveis do art.126, caput, da Lei nº8.069/90, se entendeu sequer haver necessidade de oferecimento da representação sócio-educativa, possa ser privado de sua liberdade sem a comprovação de sua responsabilidade pela prática do ato infracional de que é acusado (haja vista que a remissão, por força do disposto no art.127, primeira parte, da Lei nº8.069/90, não importa no reconhecimento ou comprovação da responsabilidade), notadamente quando para imposição mesmo de medidas sócio-educativas menos gravosas, exeqüíveis em meio aberto, teve a cautela de exigir o contrário (vide art.114 do mesmo Diploma Legal).
E que não se venha a argumentar que o adolescente, ao aceitar os termos da remissão (que quando cumulada com medida sócio-educativa, seja qual for a autoridade que a concede, apresenta um caráter transacional), "abriu mão" da comprovação de sua responsabilidade sócio-educativa em procedimento contraditório e admitiu (mesmo que isto de fato tenha ocorrido expressamente), a possibilidade de sua internação no caso de descumprimento reiterado e injustificável da medida ajustada, haja vista que as garantias legais e constitucionais referentes ao contraditório e ampla defesa, não admitem renúncia por parte do indivíduo, notadamente enquanto adolescente e, via de regra, sem qualquer conhecimento e/ou orientação jurídica.
Raciocínio similar se aplica ao direito à liberdade, que não comporta renúncia ou transação, não sendo lógico concluir que o legislador, embora tenha vedado a inclusão, em sede de remissão, de medidas privativas de liberdade (art.127, in fine, da Lei nº8.069/90), implicitamente "admitiu" sua aplicação a posteriori, quando do descumprimento das medidas em meio aberto originalmente ajustadas.
Afirmar que o contraditório estaria garantido pela presença, quando da instauração do chamado "incidente de regressão" da medida em meio aberto ajustada em sede de remissão, do defensor do adolescente, seja constituído ou nomeado, para apresentação da "justificativa" para o descumprimento, é limitar a discussão acerca do alcance desse verdadeiro princípio constitucional (e universal) ao plano meramente formal, o que obviamente não se admite em se tratando da interpretação de uma lei garantista, que visa romper em definitivo com práticas similares, tão corriqueiras à época do famigerado "Código de Menores", mas que não mais se coadunam com os ditames da doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente, encampadas pela Lei nº8.069/90 e Constituição Federal.
Se tudo o que foi dito não bastasse, a conclusão pela impossibilidade jurídica da aplicação da internação-sanção prevista no art.122, inciso III da Lei nº8.069/90 a adolescentes beneficiados com a concessão de remissão decorre ainda da singela leitura do enunciado do citado dispositivo legal.
Reza o art.122, inciso III, que a internação-sanção pode, em tese, ser aplicada, "por descumprimento reiterado e injustificável de medida anteriormente IMPOSTA" (verbis - grifei).
Ora, consoante acima mencionado, a remissão, quando cumulada com medida sócio-educativa não privativa de liberdade, possui um caráter transacional, não havendo portanto imposição de medida (sob pena de afronta aos já mencionados princípios constitucionais relativos ao devido processo legal, contraditório e à ampla defesa), mas sim um acordo visando seu rápido cumprimento por parte do adolescente.
Uma vez que a medida aplicada por força de remissão não é imposta, mas sim ajustada com o adolescente (devidamente representado ou assistido por seus pais ou responsável), como sustentar que em relação a ela incida a disposição sancionatória contida no art.122, inciso III da Lei nº8.069/90, que como tal, até mesmo em razão do contido no art.5º, inciso XXXIX da Constituição Federal (aqui obviamente interpretado e aplicado de forma analógica), deve ser objeto de uma interpretação obrigatoriamente restritiva?
Pelo exposto, não restam dúvidas acerca da impossibilidade jurídica da aplicação do disposto no art.122, inciso III da Lei nº8.069/90 a adolescentes beneficiados com a concessão de remissão cumulada com medida sócio-educativa não privativa de liberdade, ficando aquela solução, por si só já excepcional, restrita àqueles procedimentos em que a medida sócio-educativa em meio aberto/semiliberdade foi aplicada após a devida comprovação, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, da autoria e da materialidade da infração, ex vi do disposto no art.114, caput da Lei nº8.069/90.
Por oportuno, cabe aqui também mencionar a importância de que adolescentes internados por descumprimento de medida anteriormente imposta, por razões óbvias, sejam mantidos em dependências separadas dos demais internos, respeitado o disposto no art.123 e par. único da Lei nº8.069/90 (quando não em entidade própria, o que é preferível), e que sejam contemplados com um programa de atendimento específico, que contenha uma proposta pedagógica também diferenciada, pois devemos lembrar, sua internação se deu por fundamentos diversos do que ocorre nas demais modalidades do art.122 da Lei nº8.069/90, os objetivos da medida são completamente distintos, e o tempo de duração da mesma é bem mais reduzido, demandando assim uma abordagem própria, por profissionais habilitados.
Por fim, resta mencionar que, também com base nos princípios que norteiam a aplicação e execução de medidas sócio-educativas, bem como em função do disposto no art.120, §2º, da Lei nº8.069/90, é perfeitamente possível que, em sendo comprovado o descumprimento reiterado e injustificável, por parte do adolescente, de medida anteriormente imposta nas condições acima relatadas, seja o mesmo, ao invés de internado, submetido à medida de inserção em regime de semiliberdade pelo prazo máximo previsto no art.122, §1º do mesmo Diploma Legal, solução que, pela via menos gravosa, pode surtir os mesmos efeitos que a privação total da liberdade e assim deve ser preferencialmente adotada, desde que a entidade encarregada de executar essa espécie de medida desenvolva um programa próprio destinado ao atendimento de adolescentes encaminhados por estarem incursos no art.122, inciso III da Lei nº8.069/90.
Como mensagem final, fica o alerta e o conselho para que, antes de se pensar em, apressadamente, responsabilizar o adolescente pelo descumprimento da medida anteriormente aplicada (em meio aberto ou em regime de semiliberdade), sejam apuradas as condições em que a medida está sendo executada pela entidade respectiva, devendo-se em primeiro lugar analisar o projeto sócio-educativo elaborado (que na forma do art.90, par. único da Lei nº8.069/90 deve estar devidamente inscrito no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente), sua proposta pedagógica, a capacitação dos encarregados de sua execução, enfim, deve-se procurar verificar se a resistência demonstrada pelo jovem não é resultante de uma completa inadequação do programa de atendimento e/ou falta de condições materiais e humanas da entidade que o executa, que por sinal devem ser fiscalizadas em caráter permanente pelo Judiciário (notadamente através de seu corpo de agentes de proteção da infância e juventude).