TERMO DE AUDIÊNCIA
Vara do Trabalho de ltapeva/SP
Processo 0784/01-3
Vistos etc,
O Ministério Público do Trabalho, por sua
Procuradoria Regional do Trabalho da Décima Quinta Região, faz chegar ao
conhecimento deste Juízo que, em oito de fevereiro de 2000, o menor G. A. S.
acidentou-se enquanto trabalhava sem registro para V. G., na montagem de caixas
de madeiras utilizadas rio armazenamento de tomates e pimentões; que o menor
tinha à época dez anos de idade; que no local existem outros menores fazendo o
mesmo trabalho; que não eram fornecidos
os EPls (Equipamentos de proteção Individual) necessários; que o acidente
aconteceu quando o menor foi bater o martelo em um prego e este
"voou" em seu olho; que o olho, segundo o menor "começou a sair
água"; que o atendimento prestado pelo tomador dos serviços se limitou à
colocação de uma gaze com esparadrapo; que não foi levado imediatamente ao
hospital pelo tomador dos serviços, que ainda lhe pediu que montasse algumas
caixas, no que foi parcialmente atendido pelo menor; que o automóvel
pertencente ao tomador do serviços não
levou o menor ao hospital pois, segundo o menor (f. 24/25), o tomador ainda
tinha outras tarefas a fazer, quais sejam "engraxar todas as rodas do
caminhão"; que, tendo a mãe do
menor levado-o ao hospital, foi verificado que parte do prego ainda continuava
dentro do seu olho, tendo lá permanecido inexplicavelmente por
cerca de 10 dias, que o acidente lhe custo a visão do olho esquerdo, que
precisou ser extraído e substituído por prótese, que o tomador dos serviços,
instadas através de Inquérito Civil Público manejado pela Procuradoria, comprometeu-se a não mais
empregar menores na sua fazenda e a registrar o contrato de trabalho que
inequivocamente manteve com o menor acidentado, a fim de que o mesmo tenha
acesso ao beneficio previdenciário oficial (fls. 32/33); que o segundo
compromisso assumido não chegou a se concretizar já que a Delegacia Regional do
Trabalho não emitia a Carteira de Trabalho, dada a tenra idade do menor
acidentado.
Junta decisão do Supremo Tribunal Federal, em sede
de Recurso Extra-
ordinário, onde o contrato de menores é reconhecido em situações
especiais (fls. 36/64), onde funcionou como Relator o Ministro Francisco Resek.
Formula o pedido de autorização judicial para que a Delegacia Regional do
Trabalho expeça o documento profissional ao menor G. A. S. possibilitando a ele
o acesso ao beneficio previdenciário.
São os fatos, como chegam, ora expostos em
relatório.
Decide-se.
A Vara conhece a ação proposta como sendo de
jurisdição voluntária, dado que não existe parte contrária a ser citada para
formação de litiscontestatio.
Impossível proceder-se a leitura dos autos
presentes sem que se faça apurada
reflexão, e sem deixar de registrar o que é notório que neste país ainda se explora o trabalho infantil,
hiporremunerado e barateado às custas de sonegação de impostos e tributos. Nas esquinas deste
Brasil, cujos dados não aparecem nas estatísticas oficiais, uma criança de dez
anos trabalha para
ganhar cinco centavos por cada caixa produzida, sem equipamentos de
segurança, sem estar na escola se formando, estudando ou brincando, como é direito de toda criança em tão tenra
idade. Tudo, autorizado pelos pais, que
sem conhecer as leis protetivas do menor que trouxeram ao mundo, se valem do
resultado de seu trabalho como importante, às vezes única fonte de
sobrevivência. Pais para os quais os direitos da criança e do adolescente não passam
de propagandas no rádio e na TV, assumindo a categoria de assuntos
intangíveis e abstratos, que passam ao largo do cotidiano de penúria e
pobreza que os cercam.
É incontroverso que o menor G. A. S. prestou
serviços ao Sr . V. G, no período de 18,1.00 a 8.2.00, na função de Ajudante
Geral, com salário de RS 0,05 por caixa montada (fl. 32). Esta a questão que se
impõe e exige solução.
Neste contexto, passa-se à análise que o caso sub oculis impõe, adentrando, ab initio, na discussão sobre a legalidade do contrato de trabalho
que o tomador reconheceu ter mantido com o menor acidentado.
É regra da
ciência do direito que o contrato é tido como nulo quando celebrado por pessoa
absolutamente incapaz ou quando ilícito o objeto, tudo nos conformes do que
disciplina o artigo 145 do CCB.
Ao direito civil, a conseqüência emanada de
contratação envolvendo o incapaz é a nulidade absoluta do contrato, já que o
princípio norteador de tal ramo do Direito é a tão propalada igualdade entre as
partes, descabendo falar em parte hipossuficiente ou regras protetivas que vise
igualá-las. Não se perca de vista que, mesmo em sede civilista, corrente
considerável de pensamento, evolui a fim de abandonar a leitura automaticista das
leis.
Caio Mário, citado por Carlos Alberto Moreira
Xavier, Presidente do Egrégio TRT da 15a Região - Campinas, ensina que
"os efeitos emergentes das nulidades sofrem
algumas exceções, emanando-se dos atos nulos algumas conseqüências, bem como
efeitos indiretos, o princípio impensáveis" ("Fundamentos do Direito
do Trabalho, Estudos em Homenagem ao Min. Milton de Moura França", pág.
360). .
Na mesma linha, De Page.
Referida corrente evolutiva no âmbito civilista,
que tem em Clóvis Bevilacqua importante expoente, assim se manifesta em
comentário ao art. 83 do CCB:
"Nos contratos bilaterais, se viria das partes
é capaz e a outra é incapaz, aquela não
pode alegar a incapacidade desta, em seu próprio benefício, porque devia saber com quem tratava e porque um remédio tutelar instituído em favor do
incapaz não poderia ser aplicado em seu detrimento." (sem os grifos no
original)
Se o direito civil evoluiu no sentido de frear os
efeitos da nulidade dos contratos o Direito do Trabalho por maior razão não
pode prestar um "obséquio ao principio formal da legalidade", para
utilizar expressão
feliz de Cino Vitta, citado por
Délio Maranhão, in Direito do Trabalho, 17ª
edição Ed Fundação Getúlio Vargas.
Amenizar os efeitos de um contrato, a princípio
nulo, significa reconhecimento expresso
por parte da doutrina e jurisprudência,
de que nem sempre a regra teórica de se devolver às partes o status quo ante encontra aplicação fio
terreno da prática, sobretudo quando o objeto do contrato é o trabalho.
Ainda na esteira do que leciona Carlos A, M Xavier, na obra supracitada:
"A reposição das partes ao status quo ante impõe-se como a
principal ocorrência do ato nulo, e a nulidade qualifica-se como de pleno
direito, gerando eleitos ox tunc. Tais legras acolhidas à unanimidade pela
doutrina e jurisprudência, levadas ao direito do trabalho sofrem importantes
adaptações e adequações, mormente quando a nulidade emerge do fato de
participar como protagonista empregado no contrato de trabalho, alguém que seja
absolutamente incapaz."
A questão da incapacidade do empregado nas
pactuações laborais por parte de Orlando Gomes e Elson Gottschaick interessante
abordagem
“ não se pode deixar de reconhecer a
inetroatividade da nulidade como regra dominante no contrato de trabalho, visto que os direitos e
obrigações que engendra tem continuidade, e a prestação do serviço não pode
confundir com as prestações
patrimoniais.”
Do ponto de vista do direito material, a regra
anteriormente vigente para a capacidade do empregado, prevista na Constituição
da República no patamar de 14 anos (art. 7°, XXXIII), foi alterada pela Emenda
Constitucional n°. 20/98, que proíbe o trabalho do menor de 16 anos, salvo a
condição de aprendiz. Tal comando mantém os menores de 16 anos absolutamente
incapazes.
O artigo 7º
da Constituição da República não pode,
contudo, ser analisado isoladamente. O artigo 227 da mesma Carla Magna
estabelece que a proteção do menor é dever da sociedade, muito mais que apenas
da família. Estabelece, ainda em seu parágrafo 3º , proteção especial aos
direitos trabalhistas e previdenciários do menor.
Não se pode olvidar que a intenção do legislador ao
proibir o trabalho do menor foi de protegê-lo, de destinar-lhe uma infância
saudável e que corresse às margens das exigências e estresses comuns ao
ambiente de
trabalho. Conforme alardeado -- corri
propriedade por determinada propaganda oficial, lugar de criança é na escola. E
adite-se, na praça, nos parques, brincando enfim.
Délio Maranhão, assevera a cerca do assunto
“O menor
que não pode legalmente, manifestar a
sua vontade, pode, apesar disso, de fato, trabalhar. Se a lei proíbe que o faça
é em seu beneficio. Ora, se apesar disso, de fato, trabalhou, não pode disso se
aproveitar quem, em proveito próprio, se beneficiou." (obra supracitada)
É, pois, inexata a afirmação categórica de que o
ato nulo nunca gerará qualquer efeito.
Nunca é demais relembrar que, a despeito de tantas
recentes investidas o sentido de se afastar o Estado do regramento que envolve
o capital e o trabalho, a origem do Direito do Trabalho tem fincas na
necessidade de se igualar partes materialmente desiguais. O intuito sempre foi,
velado ou não, o de impedir que a subordinação decorrente da desigualdade,
retornassem as partes envolvidas na dação do labor, ao nada nostálgico período
da escravatura, onde reinava o mais absoluto hiato de direitos civis.
O Direito do Trabalho se desenvolve sob o hábito
protetivo, razão jurídica não havendo para se proteger aquele que tem sua
inferioridade potencializada com o fato menoridade. Não há cotejo justificável
à regra crua da lei. E não se trata in casu, de uma menoridade qualquer.
Trata-se de uma criança de dez anos, absolutamente desprotegida num ambiente de
trabalho onde sequer o martelo era fornecido pelo tomador dos seus serviços.
Otavio Magano, assim aborda a questão:
A natureza especial da relação de emprego não se
coaduna com os efeitos retroativos da nulidade. Normalmente esta faz-se com que
as partes sejam respostas no status quo ante, não porém no que concentre ao
contrato de trabalho, porque a atividade
humana é irreversível ou, como dizem Orlando Gomes e Élson Gottschalk, a
retroatividade só teria cabimento se o empregador pudesse devolver ao empregado
a energia que gastou no trabalho In "Manual de Direito Individual do
Trabalho", 4ª ed., vol. II.
.Na mesma linha, Amauri Mascaro Nascimento:
"Se o direito do trabalho se utilizasse aqui
dos critérios do direito civil estaria permitindo uma solução injusta. Desse
modo, ainda quando o agente é incapaz, os direitos trabalhistas são assegurados
ao trabalhador. Três são os principais fundamentos doutrinários que autorizam
essa conclusão. Primeiro, o princípio da irretroatividade das nulidades segundo
o qual no contrato de trabalho todos os efeitos se produzem até o momento em
que for declarada pela autoridade competente a sua nulidade. Segundo, o
princípio do enriquecimento sem causa, segundo o qual o empregador estaria se
locupletando ilicitamente do trabalho humano caso pudesse sem ônus dispor do
trabalho do incapaz. Terceiro, a impossibilidade da restituição das partes à
situação anterior, uma vez que o trabalho é a emanação da personalidade e da
força de alguém: uma vez prestado não pode ser devolvido o atente, com o que é
impossível restituído ao trabalhador, não sendo justo deixá-lo sem a reparação.
Poderia cogitar-se aqui de meras reparações de direito civil. No entanto seriam
de difícil fixação, com o que é mais prático e equânime garantir ao empregado
os mesmos direitos, pelo trabalho prestado, assegurados aos demais, nos termos
da legislação trabalhista." Amauri Mascaro Nascimento, "Iniciação ao
Direito do Trabalho", São Paulo, LTr, pág, 133.
Tem-se como nulo o contrato de trabalho envolvendo
o menor G. A. S. e V. G. Contudo toda a discussão doutrinária acerca da nulidade do ato, bem
como dos reflexos que tal ato pode ou não gerar no cenário jurídico, não é
suficiente para deixar de aplicar-se ao caso concreto a lição de Mário de La
Cueva, de que o contrato de trabalho é um contrato-realidade, impondo-se sobre
os aspectos formais o que aconteceu no terreiro dos fatos.
Assim, a reconhecida nulidade não pode impedir que
o menor, tendo sido vítima do já relatado acidente de trabalho, venha a ter
registrado o referido contrato em documento próprio, a ser expedido pela
Delegacia Regional do Trabalho.
Arrematando, impera lembrar palavras aprendidas
ainda nos bancos da faculdade, da lavra de Eduardo Couture, ainda hoje presente
na lida diária da aplicação do Direito:
"Teu dever é lutar pelo Direito.
Se, porém, um dia, encontrares o Direito em
conflito com a Justiça, Luta pela Justiça."
De tudo,
somente se espera que a situação reflita efeitos outros, nas órbitas cível e
penal, a fim de que tudo não se limite ao presente desconforto, nem á questão
previdenciária.
A questão foi assim colocada e exigiu solução. Esta
é a que se apresenta mais lógica, jurídica e justa, já que se tratando de
processo de jurisdição voluntária, ao Juiz é dado decidir com equidade.
Qualquer outra, respeitados os entendimentos em contrário,
consubstanciaria em consagração do
absurdo.
Conclusão:
Tudo posto, resolve a Vara do Trabalho de
Itapeva/SP, sem divergência, acolher os pedidos
formulados pela Procuradora Regional do Trabalho da Décinia Quinta Região,
para, suprindo o fato de menor não contar ainda corri 16 anos, determinar que a
Delegacia Regional do Trabalho de ltapeva, ou qualquer outra que tenha em sua
competência ter territorial a Comarca de Ribeirão Branco, expeça excepcionalmente a Carteira de
Trabalho ao menor G. A. S., em cujo documento deverá constar expressamente a
proibição de trabalho até que mesmo que complete 16 anos, conforme regra
expressa no artigo 7º, XXXIII da Constituição Federal.
Expeça-se, de imediato e com urgência, mandado
judicial (ofício) à Delegacia Regional do Trabalho de ltapeva, para cumprimento
da determinação supra.
Tendo em vista a possibilidade de ônus à
Administração, ainda que de forma indireta com a obtenção do benefício
previdenciário e por cautela, determina-se a remessa necessária ao Egrégio
Tribunal Regional do Trabalho, sem prejuízo da expedição supra determinada.
Intime-se o nobre representante do Ministério
Público do Trabalho, na forma da lei. Nada mais.
Márcia Cristina Sampaio Mendes
Juíza do Trabalho Substituta.
Benedito José de Oliveira,
JC dos Empregados
Jona Locatelli,
JC dos Empregadores