O QUE É INSTITUCIONALIZAÇÃO/PRISIONIZAÇÃO

 


Roberto da Silva

É pedagogo, mestre e doutor em Educação, professor de Políticas Educacionais, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo; Conselheiro Científico do ILANUD (Instituto Latino Americano para Prevenção ao Delito e Tratamento do Delinqüente) e autor do livro "Os filhos do Governo", editora Ática.

 

 

No âmbito das discussões sobre o atendimento à criança e ao adolescente, muito se fala contra a institucionalização, mas pouco se compreende sobre ela. Nem mesmo em relação aos danos advindos da institucionalização, uma vez que há quem ainda hoje defenda a construção de mais abrigos, de mais internatos e de mais prisões. É preciso, portanto, decompor o fenômeno da institucionalização em seus múltiplos aspectos, para que se tenha uma visão mais científica do que ela significa, como operam os diversos mecanismos e como o indivíduo reage a ela.

 

A validade de estudar os fenômenos da institucionalização consiste em poder compreender como se formam as diversas facetas da identidade da criança e do adolescente submetido a longos períodos de institucionalização e como se dá a metamorfose destas identidades.

 

Por institucionalização entende-se o processo de confinamento de crianças e de adolescentes em estabelecimentos públicos ou privados, com características de instituição total, nos termos definidos por Goffman na obra Manicômios, prisões e conventos (1967).

 

O estudo do fenômeno mostra-se particularmente válido em uma pesquisa longitudinal que comporte uma geração de pessoas, e mostra-se mais enfático ainda quando o universo da pesquisa é composto por crianças órfãs e abandonadas, institucionalizadas desde a mais tenra idade. Esta forma de delimitação do universo da pesquisa permite excluir possíveis variáveis intervenientes, tal como a influência da família e do meio externo à instituição.

Na cultura jurídica brasileira, o Poder Judiciário, por suas prerrogativas legais, sempre teve um peso decisivo na formação da identidade da criança institucionalizada, pois podia destituir os pais dos direitos de pátrio poder; podia decretar o estado de abandono de uma criança recém-nascida e determinar a adoção ou a institucionalização até os 18 anos. O Código Civil Brasileiro estabelece que os pais devem dar o nome aos seus filhos. Não havendo, entretanto, dados que permitam o registro do recém-nascido de acordo com seus referenciais familiares, um juiz podia também lhe determinar o nome, o sobrenome, a data e local de nascimento, e em casos extremos, o nome dos pais.

 

Isto significa que uma criança recém-nascida ou de tenra idade declarada em estado de abandono podia ter todos os dados constitutivos de sua identidade documental forjados em dissonância com a identidade do seu eu.

 

Ora, o processo de constituição da identidade tem a ver com o papel e a função social que a pessoa cumpre em determinado tempo e espaço e a condição de orfandade e de abandono coloca a criança em uma condição de completa dependência institucional.

 

Esta dissonância na constituição da identidade constituir-se-á em uma agravante na constituição psíquica da criança, por menor que seja, se ela tiver algumas reminiscências que se constituam em memórias.

 

Se a mãe eventualmente já tiver atribuído um nome à criança, provavelmente ela terá constituído os rudimentos de uma memória auditiva que lhe permitirá tanto reconhecer a voz característica da mãe quanto o timbre e a entonação com que é pronunciado o seu nome.

 

Se a criança chegou a ser amamentada, provavelmente terá constituído uma memória olfativa e uma memória gustativa que são a expressão da relação orgânica que a liga à mãe.

Se a criança chegou a permanecer algum tempo em casa, por qualquer tempo que seja, provavelmente terá constituído uma memória espacial que é a sua forma característica de perceber o ambiente e sua relação com ele, e que pode estar intimamente relacionada à sua percepção de limites.

 

Tais memórias tanto podem ser constituídas durante a vida intra-uterina quanto durante os primeiros contatos externos com a mãe e com o ambiente doméstico.

 

Se a gravidez foi plenamente aceita pela mãe, podemos supor que ela transferirá bons sentimentos para o feto e com isso contribuirá para a formação de uma memória intra-uterina positiva, que forjará a estrutura mental da criança ao nascer e que dará os arquétipos sobre os quais desenvolver-se-ão os mecanismos da afetividade, da auto-imagem, da cognição e do controle emocional. Podemos conceber a memória intra-uterina mais como uma memória celular e de caráter orgânica do que como uma memória cognitiva.

 

Tais arquétipos e as mesmas estruturas poderão desenvolver-se de forma negativa se a mãe rejeitar a gravidez, e pior ainda, se houver tentativas mal sucedidas de aborto. Os sentimentos de rejeição da mãe em relação ao seu feto constituir-se-ão na primeira experiência de rejeição da futura criança e sobre essa experiência da rejeição orgânica também formar-se-ão os mecanismos da afetividade, da auto-imagem, da cognição e do controle emocional.

 

A experiência da rejeição orgânica pode ser agravada com o abandono de fato, trazendo-a ao plano da consciência pela experiência efetivamente vivida. A intersecção entre as linhas horizontal e a vertical, no diagrama acima, indicam o momento do corte do cordão umbilical, em que a criança torna-se independente do organismo materno e começa a construir suas próprias experiências.

 

Nesse momento começam a constituir-se as memórias externas, que possuem diversas dimensões, sem que, entretanto, haja uma ruptura com a memória intra-uterina: a memória espacial, com a percepção da mudança de ambiente; a memória sinestésica, pela proximidade com o corpo da mãe; a memória gustativa e a memória olfativa, pelo ato da amamentação. Se essa criança vivesse em um ambiente doméstico e familiar, a constituição dessas memórias externas dar-se-ia de forma positiva, e a ela acrescentar-se-iam outras expressões dessa memória, à medida que se intensificasse a relação com o meio e a interação com o espaço, com o tempo e com outras pessoas e coisas.

 

A escala progressiva indica que quanto mais precocemente a criança for institucionalizada, mais essas memórias externas estarão sendo constituídas em ambientes hostis. Dado o caráter impessoal do atendimento nessas instituições, desde cedo a criança adaptar-se-á organicamente a essa especificidade, atribuindo outros sentidos ao choro, por exemplo, resistindo ao toque e às carícias de tantas pessoas diferentes, ao mesmo tempo em que internalizará a lógica que orienta a vida e o cotidiano institucional.

 

Quanto mais tempo a institucionalização prolongar-se, mais fortemente estarão arraigadas essas memórias externas e mais fortemente ela internalizará a lógica institucional, ao ponto de constituírem-se no único referencial para ela. Isso é o que chamo de "dependência orgânica em relação à instituição", que é, analogamente, do mesmo gênero das fortes ligações que a pessoa desenvolve para com sua terra natal, com o ambiente doméstico, com a mãe e com objetos.

 

Essa dinâmica do processo de institucionalização redundará em graves conseqüências, se, por exemplo, essa criança for encaminhada para adoção ou colocada em família substituta.

 

Nos primeiros meses, a criança será o objeto da atenção e da curiosidade de todos, mas passado o período da novidade, logo os pais, os irmãos, e eventualmente, outros parentes, amigos e vizinhos perceberão que ela é uma criança diferente. Diferente no exercício da sociabilidade, diferente na expressão da afetividade, diferente no rendimento escolar, e diferente nos hábitos e nos costumes também. Tais diferenças expressam-se mais comumente como um déficit geral de desenvolvimento.

 

Sem acompanhamento e sem orientação adequada, a família deparar-se-á com situações que não precisou enfrentar com seus filhos biológicos e pode sentir-se incapaz de lidar com tal problemática. Esse é um dos principais fatores que resultam na devolução de crianças encaminhadas para adoção. É preciso dizer que a experiência da devolução de uma criança colocada sob adoção pode ser tão ou mais forte do que a primeira experiência de abandono, uma vez que os mecanismos que compõem a subjetividade da criança já estarão em vias de estruturação, ou dependendo da idade, até mesmo já estruturados os mecanismos da cognição, da afetividade, da auto-identificação e da emotividade.

 

O ato da institucionalização dar-se-á, portanto, em substituição aos rudimentos de uma memória e de uma identidade, incipientes sim, mas que começavam a dar os primeiros contornos à subjetividade da criança e que certamente comporia a marca de sua individualidade.

 

A dinâmica da institucionalização é a supressão da intimidade, da individualidade e das características individuais, introduzindo a criança em um meio onde ela nunca será sujeito e onde todas as dimensões de sua vida passarão a ser vista do ponto de vista da conveniência da instituição, sobretudo de suas regras funcionais e disciplinares.

 

Entre meninos ou meninas com as mesmas perdas, com as mesmas carências e as mesmas necessidades, que estão desprovidos de um referencial que substitua a altura àquilo que perderam, é natural que novas regras e novos referenciais passem a ser construídos, agora em função da dinâmica do próprio grupo onde o menino ou a menina estejam inseridos.

 

Ser visto, percebido, tocado, querido e valorizado é uma necessidade geral, da mesma forma que a busca pela auto-afirmação, a defesa da integridade física e moral e a afirmação da identidade sexual. Todas estas necessidades precisam ser satisfeitas dentro do grupo e dos subgrupos de socialização e isto introduz para nós a segunda ordem de fatores que não podem deixar de ser considerados; a relação interpares dentro da instituição.

 

Para efeito das relações interpares e intra-institucionais, a identidade documental pouco serve para orientar a percepção sobre o outro. Esta percepção primária é orientada, exclusivamente, pelo papel e pela função que a criança passará a desempenhar dentro dos grupos de socialização, contribuindo para isto também sua aparência e sua compleição física.

 

Esta percepção geralmente se traduz em um apelido e/ou em uma certa forma de tratamento, e como sabemos, ninguém escolhe o apelido que tem e, nos estágios iniciais da vida, não escolhe também a forma pela qual quer ser tratado. O apelido é atribuído em função de fatores que somente são do conhecimento do grupo onde acontece a socialização e a forma de tratamento enuncia o papel e a função que, se espera, a criança venha a cumprir junto ao grupo. Este processo é análogo ao processo clássico de socialização primária, que ocorre junto à família, onde as identidades são estabelecidas de acordo com o papel e a função que o membro ocupa dentro dela. Assim como não é possível livrar-se de um apelido, também não é possível livrar-se da identidade institucional, especialmente se o indivíduo não se afastar deste meio.

 

A identidade institucional, uma vez constituída, passa a ser a referência tanto para as outras crianças quanto para os funcionários. Sem esta identidade, seja ela positiva ou negativa, o indivíduo não será reconhecido no meio institucional e isto faz com que, pela submissão voluntária ou pelo usufruto do status adquirido, a criança introjete os estereótipos próprios da representação social que o grupo e a instituição fazem de si.

 

Em um estudo longitudinal podemos identificar, por exemplo, que o desabrigamento, seja por fuga, por colocação em família substituta ou por maioridade, não significa o fim da identidade institucional nem dos estereótipos adquiridos em função do processo de institucionalização.

 

Uma terceira ordem de fatores é dada pela própria instituição. A instituição e seus agentes não participam diretamente da privacidade e da intimidade da criança, por isto não pode ser imputada a eles a responsabilidade pela formação das filigranas de que ambas são compostas; isto é uma prerrogativa do modo de socialização da criança e das relações interpares. O que a instituição faz, e esmera-se em fazer, é manipular as condições externas em que se dá este processo de socialização da criança.

Por territorialização e desterritorialização, por exemplo, podemos entender a forma como a instituição dispõe do espaço físico, a distribuição das crianças neste espaço e a concessão do direito de uso que, a guisa de prêmio e de castigo, ela permite que seja usufruído por uns e obstruído a outros. Isto significa que a instituição e seus agentes permitem que determinadas crianças e adolescentes constituam territórios dentro da instituição e tais territórios de domínio passam a ser uma forma de conceder, atribuir ou legitimar liderança e poder a quem, de outra forma, nenhum instrumento teria para exercitá-los.

 

O domínio territorial dentro da instituição passa a ser, portanto, um fator de aglutinação, em torno do qual constituir-se-á um amplo espectro de indivíduos e de interesses.

 

O uso da força ou a disposição para usá-la é outro fator de aglutinação de indivíduos e de interesses. A ameaça do uso da força, seu uso efetivo ou a disposição para usá-la é o pretexto, tanto para a busca da auto-afirmação quanto para a defesa da integridade física e moral. Por defesa da integridade moral deve-se entender, no âmbito das instituições totais, principalmente a defesa da integridade sexual.

 

Em universos estritamente masculino ou feminino, a construção da identidade sexual de meninos e de meninas passa necessariamente pela descoberta do corpo, pela descoberta das diferenças (ou igualdades), pela puberdade, pela menarca e pela erotização. Na ausência dos elementos distintivos que constituam a oposição e que ressaltem as diferenças de gênero, a identidade sexual será definida dentro de uma relação de poder e de força em que alguém assume o papel de homem e outro assume o papel de mulher.

 

É neste processo de múltiplas facetas que se firmará a representação social que cada interno passará a ter dentro dos grupos e subgrupos. Pelos diversos mecanismos de pressão e de cobrança próprios do meio institucional, tais representações acabam por consolidar-se e cristalizar-se na forma de uma identidade institucional. Identidade esta que é referenciada por todos os fatores acima elencados: um apelido, uma forma específica de relacionar-se com os agentes institucionais e com os seus pares, a disposição que tem para usar a violência ou para delinqüir e a identidade sexual pela qual é reconhecido.

É importante notar que esta identidade institucional vem sobrepor-se a uma identidade documental, que por sua vez, no caso da criança órfã ou abandonada, já foi sobreposta à identidade do eu.

 

A impermeabilidade entre universos com código lingüístico, símbolos e valores tão distintos é o principal obstáculo ao que comumente se chama de "(re)integração social". A desinternação coloca a criança diante de um mundo para qual ela não foi preparada a enfrentar. A pessoa institucionalizada conhece a violência bruta, iminente, sempre pronta a reduzi-la a obediência, a ceder ou a colocar-se no seu lugar. É uma violência sem subterfúgios, mas que a pessoa consegue bem avaliar porque conhece o meio e sabe da disposição do outro em efetivá-la.

 

O desabrigamento coloca a criança diante de uma expressão de violência que não lhe é familiar e para a qual ela não está preparada; a violência simbólica. É a discriminação pela origem, pela constituição física, pela cor, pela baixa escolarização, pela falta de profissionalização, pelos antecedentes de institucionalização, etc.

 

O sentimento de inferioridade diante de uma pessoa fora do meio institucional, a auto-estima reduzida, a pobreza de vocabulário e a falta de um aparato conceitual para lidar diplomaticamente com situações adversas, como a recusa de um emprego, negociações de moradia ou relações afetivas, expõe a pessoa a constrangimentos que acabam por revelar a sua completa impotência diante deste novo universo.

 

A institucionalização total e prolongada cria, para a criança e para o adolescente, um quadro de referências que permeia toda a sua vida cognitiva, afetiva e emocional, que norteia todos as suas relações e que dita as suas respostas comportamentais. Enquanto institucionalizada, toda a busca da pessoa por aprovação, valoração e reconhecimento se dá dentro deste quadro de referencias que é a antítese da vida, pois valoriza atitudes, comportamentos e coisas que fora da instituição são rejeitadas e estigmatizadas.

 

A percepção do deslocamento provocado pela cultura institucional acontece, via de regra, quando a pessoa é colocada frente a frente com um universo distinto, cujos códigos, símbolos e valores ela não domina, como nos casos de colocação em família substituta, a adoção ou a inclusão em uma escola da comunidade. Esta percepção de não-pertencimento, se não trabalhada adequadamente, resulta em atitudes e comportamentos de resistência, de busca dos grupos e subgrupos de origem, o que, na verdade, significará a auto-exclusão.

 

Se a pessoa, no momento de defrontar-se com tais conflitos, já tiver delinqüido, já tiver se enturmado na rua ou estiver vivendo solitariamente, enfim, se estiver em situações onde os reforços negativos sejam mais prováveis, a sua sensação de deslocamento pode inseri-lo em uma cultura de exclusão, em que ele deliberadamente recusa a (re)integração nos grupos socialmente aceitos.

 

A consciência das próprias limitações coaduna-se com a resistência à convivência familiar, com a inadaptação escolar, com a exclusão do mercado de trabalho, com a limitação das possibilidades de consumo, com a exclusão escolar, com a falta de participação política e com a ausência de perspectivas em relação ao futuro. A sua única gratificação imediata advêm do reconhecimento, da valoração e do espaço que sabe que pode ocupar dentro dos grupos marginalizados e dos círculos institucionais.

 

Voltar à vida institucional, portanto, seja pelo reabrigamento, pela devolução ou pelo aprisionamento, não tem para ele o peso de uma ruptura nem a conotação de restrição a um direito, dada a relação orgânica que ele possui com a instituição e sua inadequação para viver em liberdade.

 

É neste sentido que o estudo da reincidência institucional deve merecer alguns cuidados, geralmente ausente nos estudos tradicionais, razão porque julgo pertinente chamar a atenção para as diferentes modalidades de reincidência possíveis a partir deste exemplo.