ESTA CRIANÇA É UM BANDIDO!  ESTE BANDIDO É UMA CRIANÇA

 

Fernando Lefevre
Professor Doutor do Departamento de Prática de
Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP.

 

 Resumo: Procura-se, neste trabalho, analisar o imaginário sócio-cultural brasileiro no que toca à dicotomia criança-bandido. Busca-se com a análise deste imaginário, detectar as linhas de força que definem as representações sociais correntes sobre a categoria "criança-bandido".

Com vistas a superar as polarizações políticas e ideológicas associadas às duas posições de conflito sobre o tema, procura-se exercer uma reflexão crítica sobre esta base imaginária, propondo-se a análise da questão em termos de várias exclusões a que estão sujeitas as crianças-bandido.

Palavras-chave: criança-bandido, imaginário, Brasil, ECA.

 

Introdução

 As duas frases do título deste trabalho, por estarem firmemente fincadas na realidade, são um convite para discutir a dicotomia criança-bandido, em nosso país, ou seja, a relação entre estes dois papéis sociais e entre os seres humanos que os encarnam.

 Cremos que a discussão e a reflexão sobre o tema não podem (sob pena de ineficácia) ser levadas no vazio mas apenas a partir da realidade que, por sua vez, é "acessável" através deste par de frases.

O par de frases exprime a realidade, ou seja, o discurso do real, enquanto que o exame da relação criança-bandido, em si mesmo, exprime o discurso sobre o real, de caráter reflexivo. Mas tanto uma como outra das opções, consideradas isoladamente, produzem conhecimento viciado, seja pelo empirismo, que não permite o descolamento do real, necessário à compreensão do cotidiano, seja pelo teoricismo, que rompe as pontes com a realidade, rumando em direção ao discurso delirante.

É preciso, portanto, deixar de lado a análise com base nessas perspectivas isoladas e procurar relacionar o empírico com o reflexivo, partindo do primeiro para chegar ao segundo[2].

Sendo assim, ocupemo-nos, inicialmente, do discurso da realidade.

 

Esta criança é um bandido! este bandido é uma criança?

 Neste plano, o que nos diz a primeira frase do par, ou seja, "Esta criança é um bandido!"?

Ela nos diz ou nos fala a respeito de uma dissolução ou de uma fusão do ser criança no ser bandido. Caso estivéssemos na televisão, a "telinha" nos mostraria, através de recurso da fusão, a transformação da imagem e do imaginário da infância na imagem e no imaginário da marginalidade. A transformação da inocência no medo. Com a conseqüente transformação da reação de encantamento no reflexo de defesa, isto é, a diferença entre sacar da bolsa a sua Nikon, para flagrar o encantamento e sacar do coldre o seu 38, em legítima defesa da sua vida ameaçada.

"Isto não é mais uma criança!" poderia ser vista como uma paráfrase de "Esta criança é um bandido!" A paráfrase, por seu turno, tem como uma de suas possíveis conseqüências o fato de que os dedos deste ser humano em formação, que é a criança, a despeito disso, são perfeitamente capazes de empurrar o gatilho para trás; o que os transforma de dedos infantis em dedos funcionais, trazendo abruptamente à luz do dia a ameaça da morte, que é preciso, a qualquer custo, evitar.

"Esta criança é um bandido!" é a frase que faz cair a "máscara", permitindo que surja, da "mentira" da criança, a "verdade" do bandido, o que equivale a uma autorização para matar.

Com efeito, com este deslocamento do imaginário não há mais assassinato de crianças, mas eliminação de bandidos.

Como (ousar) falar, neste contexto, de direitos da criança? Já que esta criança é um assassino (ou uma promessa de assassino, o que dá no mesmo, porque gera o mesmo medo), só lhe resta o "direito" de morrer. Aliás, e mais precisamente, o justo e ético "direito" de ser morto, para que seja impedido de exercer o injusto e anti-ético "direito" de matar. "Não matarás" diz a Bíblia, "matar-te-ei para que não possas matar", diz o justiceiro de Diadema, seguro de estar atualizando e interpretando corretamente o mandamento bíblico e, portanto, de não estar incorrendo em pecado.

A outra frase do par: "Este bandido é uma criança!" muda tudo. Como diriam os partidários da primeira, é a frase de eleição do "pessoal dos Direitos Humanos[3]". Traduz ela a operação imaginária inversa que transforma o bandido em criança.

É, portanto, a sentença (no sentido jurídico e lingüístico) que inocenta (no duplo sentido de absolver e de devolver a inocência infantil) por antecipação.

Com efeito, uma criança não pode ser bandido, porque se trata de naturezas mutuamente exclusivas: ou uma ou outra coisa. O bandido e a "malvadeza" que o acompanha, são atributos do homem formado e a criança, ser em formação, carrega a "bondade" na sua essência. Por isso uma coisa não pode, ao mesmo tempo, ser a outra. Esta aliás, parece ser a interpretação do binômio criança-bandido presente no Estatuto da Criança e do Adolescente[4] (ECA).

Como acontece, na prática, que crianças exerçam a "bandidagem", alguma coisa – no plano prático, e no plano jurídico – precisa ser feita (e estas coisas são previstas no ECA) com a formação do ser em formação, para que ele não se "gradue" ou "amadureça" bandido : um ser bandido em formação não é um ser bandido mas um "estar" bandido, ou seja, uma criança desencaminhada que é possível e necessário recolocar nos trilhos da infantilidade.

Do que foi dito não se pode concluir, contudo, que as duas frases sejam, a despeito do seu paralelismo, exatamente, uma o inverso da outra.

Com efeito, a primeira frase nega que se trate de uma criança: para ela, o que parece ser uma criança é, na verdade, um bandido: mas segundo a frase não nega, propriamente, o bandido, ela o perdoa. Antes da primeira frase há um "Cuidado!"  (Esta criança é um bandido!); antes da segunda frase há um "Coitado!" (Este bandido é uma criança!). Portanto, a primeira é uma frase fascista e pragmática e a segunda uma frase cristã.

Cabe-nos, de um ângulo desapaixonado, não ser nem fascista nem cristão. E isso não apenas por cientificismo.

Com efeito, ter que adotar uma ou outra das frases em conflito nos levaria ao impasse, conduzindo a nossa discussão e a nossa prática para o beco sem saída da "libanização da questão da criança.

De fato, como é possível negar o sentimento de ódio e a reação de defesa ou de revanche diante do ato marginal, seja ele praticado por uma criança, um adolescente ou um adulto? Por outro lado, a apologia da reação de defesa ou da revanche como meio de fazer face à conduta marginal, seja ela infantil ou adulta, implica em propaganda da selvageria como "Política de Estado". Entender, portanto, as coisas com base neste imaginário bipolar vai necessariamente significar que nós, civilizados e cristãos renitentes, continuaremos pregando sobre os "direitos humanos" para auditórios cada vez menores de crentes já convencidos de antemão, enquanto hordas de bandidos e contra-bandidos aniquilam-se uns aos outros.

É necessário, portanto, fazer um esforço para se descolar desse imaginário aprisionante, buscando entender o "ser criança" e o "ser bandido", bem como seu relacionamento. Isto de um modo reflexivo que, num movimento dialético, parta do real, deste imaginário em estado bruto (que procuramos ilustrar com a análise do par de frases) para exercer, sobre e a partir dele, a crítica/reflexão, visando, em seguida, voltar ao real[5], contribuindo assim para a transformação do imaginário inicial.

 

 A criança – bandido como vitima de múltiplas exclusões

 Assim, com vistas à transformação do referido imaginário, é necessário considerar que o "debate" entre fascistas, partidários do extermínio das crianças-bandido e os cristãos, partidários dos "direitos humanos" das crianças-inocência, "naturaliza" a questão, conduzindo a um falso e irredutível conflito de essências.

Portanto, para superar esta impossibilidade e fazer as coisas avançarem, é necessário "desnaturalizar" e "desessencializar" a discussão, colocando em cena a categoria histórica específica da exclusão.

Nesse sentido, o que inicialmente poderia ser dito num discurso reflexivo de tipo empírico-crítico, é a idéia de que a criança-bandido é vitima de várias exclusões.

A primeira delas atinge a criança-bandido genericamente, porque diz respeito à categoria geral das crianças e não especificamente à sub-categoria das crianças-bandido.

Como as crianças em geral, as crianças-bandido são excluídas (por não serem consideradas, ainda, homens) do direito de casar, de ter conta em banco, de dirigir, de beber bebida alcoólica, de ter filhos, etc.

Poder-se-ia argumentar que não se trata, propriamente, de exclusão, porque o excluído é aquele que poderia estar em um dado lugar e não está; ora, como a criança poderia não estar nestes lugares (de marido, pai, etc) não se trata de uma exclusão.

A verdade é que, na consciência das crianças, existe a sensação de exclusão do chamado "mundo adulto" (basta você, adulto, fazer um pequeno esforço e se lembrará desta sensação na sua infância); e, mais do que isso, as bases que fundamentam esta exclusão são relativas, porque se fundam não em impossibilidades naturais mas culturais, fundadas estas, por sua vez, no imaginário do ser criança (e adolescente).

Com efeito, o que impede uma criança, a partir da puberdade, de ter filhos (e, como sabemos, elas vem exercendo, com desenvoltura este “direito" ou potencialidade natural), ou, talvez mais cedo ainda, de beber bebida alcoólica, de comprar com o próprio cheque (aliás, como todos sabem, elas são apenas impedidas de comprar com seu cheque, mas altamente insufladas a comprar com o cheque da mãe, do pai, do tio, da avó, do padrinho, ou de qualquer outro agente econômico) e, "last but not least", de puxar o gatilho?

Enfim, mesmo sem entrar no mérito da questão da maturidade, é forçoso reconhecer que faz parte do ser criança o vivenciar, as vezes com intensidade, este sentimento de exclusão, vivência esta que pode constituir forte pré-condição para o comportamento delinqüente ou marginal.

Mas além desta exclusão genérica e somando-se a ela, muitas crianças-bandido, entre nós, são também excluídas por serem pobres ou pobres e negros.

Estas crianças-bandido não podem ter um toca-fitas no seu carro não apenas porque não podem, legalmente, ter carro ou assinar um cheque para comprar o carro e o toca-fitas, mas também porque não tem, enquanto unidade familiar, recursos financeiros para comprá-los. Desnecessário mencionar os mais que prováveis efeitos práticos, em termos de comportamento marginal, desta dupla exclusão.

Além disso, as crianças-bandido e, ademais, pobres, são também excluídas do próprio ser criança já que, sendo forçadas, pelas suas circunstâncias sócio-econômicas, a se inserir no campo social e na prática da marginalidade – que, ademais, como todos sabem, é uma esfera do adulto – com vistas a prover a sua subsistência, já que as suas famílias não conseguem fazê-lo, as crianças-bandido pobres estão impedidas de gozar da "irresponsabilidade" do ser criança em formação.

 

Algumas reflexões

 Muito mais coisas poderiam ser ditas a respeito das crianças-bandido mas, creio, mesmo neste estágio, pode-se, pelo menos, avançar na idéia de que o enfrentamento, na prática, dessa relação supõe trabalhar, junto ao corpo social como um todo e junto com a criança e o bandido que coabitam o mesmo corpo biológico e psicológico, a questão das múltiplas exclusões, o que implica, evidentemente, em abordar, integrada e concomitantemente, os aspectos orgânicos, psicológicos, sociológicos, antropológicos e econômicos do problema.

De um modo geral podemos dizer que a relação criança-bandido descolada do imaginário – que é um precário instrumento do qual lançamos mão para encobrir, com falsas certezas, nossas dúvidas, num campo onde é muito incômodo tê-las – nos remete à constatação de que muitas crianças não estão nascendo como resultado de um desejo e de um projeto das famílias e/ou da sociedade, desejo e projeto que teriam que mobilizar um investimento afetivo e material na construção do ser-criança.

Não havendo este desejo/projeto/investimento estaremos nós, famílias e sociedade brasileira, ao por uma criança no mundo, gestando exatamente o que?

Apesar das estatísticas recentes estarem indicando um aumento significativo de mulheres esterilizadas na faixa reprodutiva[6], isto significa apenas que estamos pondo menos crianças no mundo. Ora, esta reação apenas quantitativa ao problema não vai impedir que se continue a gerar, entre nós, "crianças" e "menores” , ou seja, considerando o quadro geral da nossa sociedade hiperconsumista, adoradores – para a vida toda – de bezerros de ouro que, respectivamente, poderão e não poderão usufruir destes bezerros, sabendo-se, é claro, que esta desigualdade no seu usufruto é um dos principais condicionantes da violência.

Não seria o caso, então, em vez de buscar distribuir mais democraticamente os "bezerros" (tarefa, aliás, que parece fadada ao fracasso, como está fortemente a sugerir a débâcle do "socialismo real") pensar, coletivamente, num outro projeto de criança e, conseqüentemente, de homem?

 

Notas:

 

[1] Professor Doutor do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP – Av. Dr. Arnaldo, 715 – São Paulo – SP – CEP: 01246-904 – Tel. 280-3233 r. 266.

[2] MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo – Rio de Janeiro. Hucitee – ABRASCO, 1993.

[3] FOLHA DE SÃO PAULO, Caderno "Mais", 17 de janeiro de 1993.

[4] DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, Lei no 8069 dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, 16 de julho de 1990.

[5] MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo – Rio de Janeiro. Hucitee – ABRASCO, 1993.

[6] FOLHA DE SÃO PAULO, 13 de Dezembro de 1992.