MODO DE VIDA E RELAÇÃO MÃE CRIANÇA: UM ESTUDO DO ANDAR
Ana Maria Almeida Carvalho
O objetivo deste trabalho é analisar alguns aspectos do
contexto em que o desenvolvimento da criança ocorre, e verificar as implicações
deste contexto sobre o desenvolvimento, especificamente sobre a marcha.
Este objetivo originou-se de uma pesquisa [1] que
visou analisar métodos e instrumentos e desenvolver propostas operacionais de
acompanhamento do desenvolvimento geral infantil em nível institucional. Sua
população foi de crianças na faixa etária de 0 a 2 anos, residentes no sub-distrito de Vila Madalena, São Paulo, inscritas no
programa de Saúde da Criança do Centro de Saúde Geraldo Paula Souza.
O pressuposto teórico de tal pesquisa foi o de que o
desenvolvimento ocorre na interação entre aspectos biológicos e contextuais,
considerados material, social e relacionalmente.
Em função desta premissa, a pesquisa foi realizada
através de visitas domiciliares, em que se procurou estudar a criança e
seu “habitat natural”.
A visita domiciliar desvelou que, ao lado de fatores
sócio-econômicos, há estilos ou modos de vida que caracterizam cada família. A
confrontação direta com o modo de vida e os habitats
das crianças e de suas famílias recrudesceu o ponto de vista de que
comportamentos legitimados socialmente são percebidos como “normais”, ou seja,
de que o ponto de vista do pesquisador é uma fonte de viés etnocêntrico.
Conforme KON (1987), é difícil distinguir entre processo de determinação,
motivação e legitimação, havendo geralmente redução do primeiro ao último. Esta
constatação nos levou a sentir a necessidade de ampliar o referencial de
análise através de uma abordagem comparativa.
Alguns pesquisadores (KONNER, 1972/ 1981) desenvolveram
a convicção de que certas contribuições para compreender a infância viriam de e
talvez apenas de, estudos interculturais e interpopulacionais. PARKE, GROSSMANN
& TINSLEY (1981) sugerem que a razão para se engajar em uma pesquisa
intercultural é ser capaz de variar sistematicamente fatores que não podem ser
variados dentro de uma única população ou sistema cultural. CARVALHO (1989)
considera que o estudo comparativo é útil para a formulação de princípios
gerais de comportamento devido quer às semelhanças quer às diferenças por ele
evidenciadas.
Estudos comparativos podem ir tanto na direção dos
antepassados, quanto na de outros primatas, ou na de povos modernos em
contextos sócio-culturais e históricos diversos.
Neste trabalho, propõe-se analisar os dados obtidos a
respeito das crianças de Vila Madalena cotejando-os com dados relativos a
crianças da cultura Kung.
Os Kung (ou Kung San) são um
povo moderno, nômade, que vive no deserto do Kalahari,
no Sudeste da África, em um modo de vida de caça e coleta. Estão nessa
região há 50.000 anos. Segundo DeVORE & KONNER(1974,
p.23) “os San não são apenas diferentes de nós;
são representativos do modo de vida em que o homem e as relações mãe-filho
humanas evoluiram”. “Eles são seres humanos
modernos cujo estilo de vida tem suas raízes ligadas às origens da humanidade”
(LEAKEY & LEWIS, 1981/1988, p.90). Segundo CARVALHO (1989), o conhecimento
do “ambiente específico da espécie”, ou seja, o ambiente no qual estão
presentes as pressões seletivas responsáveis pela evolução de suas formas
características de adaptação, oferece pistas sobre o funcionamento e o
desenvolvimento do organismo adaptado. Considerado sob este aspecto, este
estudo propõe, parafraseando BLURTON JONES (1972/ 1981), descrever os contextos
de desenvolvimento nos quais o sistema de desenvolvimento característico da
espécie está funcionando, e as conseqüências dessa interação sobre esse mesmo
sistema.
O conceito de “contexto” é aqui tratado como “modo de
vida”, especialmente em seus aspectos imediatos (microsociais): o modo de morar
e de dormir e a relação mãe-criança. O modo de vida é um
constructo sócio-histórico, utilizado pela etnologia (KON, 1987).
Significa que se considera a totalidade das formas historicamente desenvolvidas
e inter-relacionadas, assim como os modos das atividades sociais - trabalho,
lazer, padrões de relacionamentos interpessoais, etc., - típicos de uma dada
sociedade, em sua unidade com a estrutura social e o estilo predominante de
pensamento. “As idéias, ações, valores, hábitos e crenças de outras pessoas
são parte do rico complexo de influências desenvolvimentais
a partir das quais as vidas são construídas” (OYAMA, 1989, p.24).
A exploração, um conceito complementar ao de apego,
corresponde a um “sistema comportamental que capacita o indivíduo a
interagir com o ambiente, a adquirir informação, e a construir sistemas de
conhecimento” (KELLER, 1998, p.455). Após dominar a primeira tarefa desenvolvimental de estabelecer o apego emocional com os cuidadores primários, a criança tem o desafio de adquirir
competência no meio físico. O comportamento exploratório pode ser visto como um
sistema geneticamente baseado, tendo a curiosidade como fundamento, que se
manifesta, primeiramente, através da exploração proximal, como atenção visual, auditiva, posteriormente complementada pela
exploração distal e verbal.
Ao invés de uma seqüência filogeneticamente determinada, o desenvolvimento pode ser melhor conceitualizado como uma paisagem mutante de padrões, cuja estabilidade depende não apenas do status orgânico da criança, mas também de sua história experiencial, e como estas interagem com a tarefa particular em questão (THELEN, 2000, p.393).
O conceito de exploração ativa é fundamental para a
compreensão da regulação pelo outro e para a auto-regulação. Ele se refere à
atividade motora de um indivíduo e à extensão na qual decisões sobre onde
explorar são feitas pelo indivíduo ou guiadas por outras pessoas.
As crianças usam as ações para informar a percepção,
primariamente através do uso de movimentos exploratórios (GIBSON, 1988, apud Thelen, 2000).
Para THELEN (2000), o curso desenvolvimental
do sistema nervoso pode ser moldado pela natureza do corpo e como ele se move
(p.3 88), devido ao próprio movimento “instruir” o sistema
nervoso, que não pode ser ensinado, mas apenas “reunido” pela
experiência (p.389).
A partir desta concepção, a unidade de estudo do
desenvolvimento deve ser o sistema formado pelo contexto do desenvolvimento e o
próprio desenvolvimento, que é denominado aqui “sistema de desenvolvimento”.
1. Sistema de
desenvolvimento e contexto de desenvolvimento
A noção de sistema de desenvolvimento é uma
contribuição da Teoria Geral dos Sistemas aplicada ao estudo do desenvolvimento
da criança. Sistema de desenvolvimento “é um conjunto móvel de influências e
entidades interatuantes. Inclui todas as influências sobre o desenvolvimento,
em todos os níveis de análise” (OYAMA, 1989, p.26).
Segundo a Teoria Geral dos Sistemas (VON BERTALANFFY,
1968/1977), todo ser vivo é um sistema - um conjunto de elementos em interação;
um sistema aberto, capaz de automanutenção,
auto-regulação, auto-reprodução e auto-organização. Sistemas biológicos têm as
propriedades do todo e da ordem e assim, embora divisíveis em sub-sistemas, não podem ser compreendidos por uma redução de
componentes complexos a componentes simples. O desenvolvimento de sistemas
vivos envolve diferenciação progressiva, propriedades emergentes, organização,
retroalimentação, transações hierárquicas e eqüifinalidade. Eqüifinalidade é a propriedade
dos sistemas abertos pela qual seu estado está determinado pela natureza de
suas relações, e não por suas condições iniciais, de tal forma que diferentes
condições iniciais podem levar a um mesmo estado do sistema (BERENSTEIN,
1978/1988). Conceitos como ordem, desordem, auto-organização, autonomia e
complexidade visam fornecer um “novo paradigma” (DUPUY, 1990) que supere a visão positivista, mecanicista, reducionista e linear
(KAPLAN & KAPLAN, 1991), e as dicotomias corpo-mente, inato-aprendido, “nature-nurture”, preformismo-construtivismo,
evolução-desenvolvimento.
QYAMA (1989) propõe que genes e ambiente sejam
considerados parte de um sistema de desenvolvimento que resulta em uma natureza
fenotípica. Para ela, a natureza não é
transmitida, e sim construída; é um produto do desenvolvimento, o ambiente
sendo tão constitutivo quanto os genes. Genes e
ambiente social são interagentes herdados, e sistema nervoso e capacidades
sociais são produtos do desenvolvimento.
O sistema de desenvolvimento inclui todas as influências
sobre o desenvolvimento, em todos os níveis de análise. Os níveis podem ser:
célula, órgão, organismo, grupo, organização, sociedade, sistemas
supranacionais (MILLER & MILLER, 1982). Sistemas de desenvolvimento são
hierarquicamente organizados e podem ser estudados em cada um desses níveis,
sendo que as interações entre os níveis são cruciais (OYAMA, 1989). Segundo
esta autora, o que passa de uma geração para outra é um sistema total de
desenvolvimento, no qual a natureza (nature) é
um produto do processo de interações que chamamos criação (nurture). O conceito de sistemas de desenvolvimento
evolutivos fornece uma visão unificada do desenvolvimento, integrando-o à
evolução. A hereditariedade não estaria limitada aos genes, mas incluiria
aspectos do entorno relevantes para o desenvolvimento. A hereditariedade, pois,
não seria atomística, mas sistemática e interativa. A própria evolução seria
uma questão de contextos de desenvolvimento que mudam, de tal modo que não se
pode compreender a evolução sem o contexto e, ao mesmo tempo, a história
evolutiva ajuda a compreender o contexto.
Para LEVINE (1977), os ambientes das crianças são
modelados por valores culturais, não apenas específicos a situações de cuidados
infantis, mas também derivados de amplas onentações (referentes a relações
interpessoais, aquisição pessoal, solidariedade social) associadas aos sistemas
sociais e às metas individuais. A função atribuída a tais valores na educação
infantil seria a de preparar o indivíduo para participar do sistema em que irá
viver.
O contexto (ZASLOW & ROGOFF, 1981) deve ser visto
como uma variável que merece estudo por si só, quer como um determinante de
comportamento quer como um aspecto da atividade observada. Por exemplo,
CHISHOLM (1981), estudando crianças Navajo e
anglo-americanas, concluiu que o principal determinante de diferenças
interculturais ou intraculturais de padrões de interação mãe-criança eram
diferenças na oportunidade de cada criança de interagir com outros além da mãe.
Tais diferenças estavam baseadas nos contextos sociais dos grupos residenciais
das crianças, onde havia diferenças significativas quanto ao número, idade,
sexo e parentesco/familiaridade de co-residentes. Conclui, além disso, que focalizando-se o contexto microsocial é possível relacionar
as diferenças e semelhanças observadas inter e intragrupos aos fatores mais
amplos - históricos, econômicos e ecológicos - que determinam em grande parte a
natureza e a composição desses contextos sociais através de seus efeitos sobre
as atividades de subsistência, a carga de trabalho, a divisão sexual do
trabalho, as rotinas cotidianas, etc. Este estudo ilustra o que aqui estamos
entendendo por contexto e sua implicação no sistema de desenvolvimento.
O sistema de cuidados é o conjunto total das ações de
quem cuida sistematicamente de quem é cuidado. Ele faz parte do sistema geral
de crenças. O sistema de crenças está enraizado tanto no sistema cognitivo
quanto no afetivo (LEWIS & BAN, 1977) e é parte das características do modo
de vida, segundo KON (1987). O sistema de cuidados pode ser um modo mais
adequado de agrupar os comportamentos maternos do que o estudo de
comportamentos específicos.
Duas vertentes comportamentais impuseram-se ao serem
comparadas às populações de Vila Madalena e os Kung:
o sistema de aleitamento e o sistema de locomoção.
A locomoção estaria ligada ao modo de lidar com a
autonomia, independência ou exploração, sendo um conceito em certa medida
complementar ao de aleitamento. Enquanto no aleitamento estão supridas
necessidades ligadas ao apego (ou dependência), na autonomia estão sendo
supridas necessidades ligadas à exploração (ou independência).
Esses dois sistemas podem ser pensados como o núcleo
central da relação mãe-criança, em torno do qual se estrutura o desenvolvimento
da criança.
Enquanto o sistema de aleitamento é o modo como a mãe se
põe à disposição do filho, o sistema de locomoção é o modo como ela põe o
mundo à disposição da criança. A autonomia resulta tanto da mãe permitir o
movimento da criança em direção ao mundo quanto ao modo como a mãe se retira e
deixa a iniciativa das ações à criança. A locomoção,
portanto, neste sentido mais amplo, implica o acesso ao mundo.
O sistema de locomoção pode ser observado diretamente ou
inferido da fala materna, significando a possibilidade de liberdade da criança.
Conforme BRAZELTON (s.d./ 1987), a mãe que permite à criança olhar em torno
enquanto é amamentada ao seio já indicaria como lida com a necessidade de
autonomia de seu filho.
Há culturas, como a Zinacanteca
(BRAZELTON, s.d./1987) que não valorizam a autonomia, que não é permitida nem
esperada. Nessa cultura, os bebês são mantidos amarrados, em quartos
obscurecidos e sem estímulos, sendo tocados apenas quando alimentados ou
banhados. Trata-se de uma sociedade estável, em que as distâncias sociais são
mantidas idênticas através das gerações, e nas quais se espera submissão às
normas vigentes.
No conceito de sistema de locomoção está implícito um
valor. Através da locomoção, a mãe permite o acesso à exploração do mundo, dos
objetos e de si próprio, e fornece as condições para que isso ocorra. Trata-se
de uma dimensão potencial, além da realidade imediata, do que poderia ser
denominado “espaço potencial de desenvolvimento”.
TUAN (1977/1983) propõe os conceitos de Espaço e Lugar.
O “lugar”, para esse autor, é segurança, enquanto espaço é liberdade. “Os
lugares são centros aos quais atribuímos valor e onde são satisfeitas as
necessidades biológicas de comida, água, descanso e procriação” (p.4). O espaço
é experienciado quando há lugar para se mover (p.l3).
A espaciosidade está ligada à sensação de ter espaço,
de estar livre (p.5). “Liberdade implica espaço: significa ter poder e espaço suficientes em que atuar. O oposto da espaciosidade é o sentimento de apinhamento”
(p.60).
Os conceitos de lugar e espaço parecem equivalentes às
necessidades supridas pelo apego e às necessidades supridas pela locomoção. O
“lugar” original da criança pode ser pensado como o útero materno,
posteriormente o corpo materno e, finalmente, a representação simbólica e
vivenciada de um lugar protegido no mundo; em certo sentido, do “si próprio”,
do corpo como a casa de si próprio. A locomoção pode ser pensada como a
geratriz de sensações de poder de ação, de potência.
2. Aspectos evolutivos
e históricos da relação mãe-criança
O ambiente (contexto) atual da vida humana é muito
diferente daquele em que se processou a maior parte da história evolucionária e
a constituição das características básicas da espécie, e que se caracterizava por
um modo de vida de caça e coleta (LEAKEY & LEWIS, 1981/1988). Mesmo no caso
dos Kung, não se pode afirmar que vivam exatamente no
mesmo “ambiente evolucionário” de seus antepassados, porque foram sendo
forçados a se retirar para áreas mais desérticas pelos invasores holandeses,
além de que há, atualmente, um movimento em direção à sedentarização (LEAKEY & LEWIS, 198 1/1988). Mas,
segundo CARVALHO (1989), é útil considerar as exigências adaptativas daquele
modo de vida para se compreender o comportamento humano, já que o Homo
sapiens de hoje é, biologicamente, a mesma espécie que já existia há pelo
menos 50 mil anos, e que veio se constituindo ao longo de pelo menos dois
milhões de anos, ainda que nos últimos dez mil anos, desde o surgimento da
agricultura, o modo de vida da espécie tenha se alterado de forma acelerada.
Teria havido dois momentos decisivos na evolução do ser
humano: a postura ereta e a comunicação verbal.
Com a postura ereta, três ou quatro
milhões de anos atrás, ocorreram modificações essenciais no que se
refere quer ao próprio curso da hominização, quer da relação mãe-criança: a
liberação das mãos, e o estreitamento da cintura pélvica.
A liberação das mãos permitiu o fazer, o tocar, o
agarrar, o atirar, e principalmente, no que se refere à relação mãe-criança, o
carregar. Os primatas têm mãos que, sob o controle do feed-back
do olhar, realizam uma grande quantidade de manipulações que outros animais
realizam com a boca (HOCKETT, 1960). Diferentemente dos demais primatas, nos
quais o filho se agarra à mãe, a perda dos pelos do corpo obrigou a mãe humana
a carregar ativamente o seu filho (MELLEN, 1981).
Concomitantemente à posição ereta, ocorreu um
desenvolvimento cerebral retroalimentado pelo
exercício manipulatório e retroalimentador
deste. Para LEAKEY & LEWIS (1981/1988), o tripé sobre o qual se deu a evolução humana foi o uso cada vez mais complexo de
instrumentos, a rede social também cada vez mais complexa, e a comunicação
verbal possibilitando essa complexificação. Esse é o
sentido da afirmação de que o homem é um “animal cultural”, pois a interação
social e a inovação tecnológica acabaram por constituir pressões seletivas para
a evolução dos hominídeos.
Em termos biológicos, ocorreu o aumento do volume
cerebral, com diferenciação de funções. Ao lado desse aumento, em conseqüência
da postura ereta, houve um estreitamento da cintura pélvica, necessário para a
movimentação das fêmeas. Em função dessas modificações, o crescimento cerebral
teve que se dar fora do útero, o que acabou por determinar o nascimento de
bebês humanos vulneráveis, em estado embrionário, comparativamente aos outros
primatas (GOULD, 1977/1987). Estas circunstâncias favoreceram, e foram retroalimentadas pelo desenvolvimento da sociabilidade e
por um longo período de aprendizado (LEAKEY & LEWJS, 198 1/1988).
A família humana surgiu provavelmente com o Homo erectus, entre um milhão e seiscentos a quatrocentos
mil anos atrás. Este Homo domesticou o fogo. WASHBURN & LANCASTER
(1975) supõem que a família monogâmica já existia no tempo do Homo erectus, e que o desaparecimento do estro da fêmea foi
essencial para essa forma de organização. MELLEN (1981) supõe que um macho
adulto era necessário para cuidar das crianças, além da mãe, no ambiente de
savana onde ficavam expostos a perigosos predadores durante o Plio-pleistoceno. Para este autor, a divisão do alimento
nos acampamentos (“home bases”) através da
diferenciação de papéis a partir da divisão de trabalho - caça e coleta
-forneceu a base do amor e das relações sociais em geral.
WASHBURN & LANCASTER (1975), pensando no Homo erectus como caçador-coletor, também supõem que a
reciprocidade econômica (troca de alimentos entre indivíduos), que não existe
entre primatas, criou um novo conjunto de vínculos interpessoais. Se os machos
caçam e as fêmeas coletam, e os produtos são trocados e dados aos filhotes,
isto pode ter se tomado a base da família humana.
MELLEN (1981), contudo, acredita que há outras causas, além das econômicas;
supõe que as mesmas pressões que favoreceram trazer o alimento para ser
dividido no grupo favoreceriam o aparecimento do amor no sentido de
potencialidade afetiva. Conclui este autor que na ligação emocional
macho-fêmea, tanto quanto no desenvolvimento posterior do afeto paterno, o
ponto biológico vital foi a sobrevivência da criança
proto-humana, sendo esta a razão primária pela qual homens e mulheres têm a
tendência de se amarem.
A sobrevivência da criança depende da proteção dos pais.
BOWLBY (1969/1981) sustenta que a função biológica básica do apego mãe-criança
foi a proteção contra predadores. A relação mãe-filho
seria o fruto de pressões seletivas presentes no ambiente evolucionário da
espécie que geraram a necessidade de mecanismos que garantissem a proximidade adulto-criança como
forma de proteção do bebê.
O modelo de criação que decorre desta concepção a partir
das condições de evolução humana implica em contato constante entre a mãe e a
criança, alimentação contínua e proximidade a fim de garantir uma base segura
para a exploração.
Esta concepção contrasta com a que é sustentada por
historiadores e outros cientistas humanos. Historicamente, do modo de vida de
caça-coleta até hoje, profundas alterações ocorreram, e seriam os determinantes
dos sistemas de criação. Segundo BADINTER (1985), por exemplo, no século
XVIII a amamentação era considerada ridícula e repugnante nas classes mais
altas, não havendo apego materno, que seria fruto de um mito destinado a
conservar a mulher em uma posição de inferioridade ante o homem.
Para ARLÊS (1973/1978), é a partir do século XVII que
começa uma preocupação com a infância, surgindo concomitantemente o sentimento
de família. POSTER (1978/1979) comenta que o que caracteriza a família moderna,
em contraposição a épocas anteriores, é a sua centração
nas crianças.
Segundo a visão histórica, a relação
mãe-criança é permeada por questões econômicas, políticas e culturais.
Os cuidados com a criança não se dariam de modo constante através da história,
dependendo da ideologia sobre a relação mãe-criança, da concepção sobre o que é
a criança, do(s) papel(eis) que a mulher desempenha na
sociedade e das condições gerais do modo de vida.
O modelo de criação depreendido da visão histórica é que
a relação mãe-criança é substituível por qualquer outra, que a amamentação é um costume errático, que a “ideologia” determina modos de vida e
modos de criar, que o vínculo mãe-criança e o afeto são mitos modernos.
Contudo, recentemente, um outro personagem entrou em
cena, trazendo novas informações sobre a questão da relação mãe-criança.
3. O “elo perdido”
O “elo perdido” é o próprio bebê, que apenas
recentemente aparece como personagem de estudos e pesquisas, e passa a ser
considerado e a atuar como ator principal, não mais como mero apêndice a
reboque de outros personagens.
Novos métodos de investigação, de cerca de quinze anos
para cá, têm revelado o bebê como um ser competente para sobreviver. O bebê,
considerado frágil e desamparado, tem-se revelado ativo em sua capacidade de
perceber, comunicar, interpretar e expressar emoções, e de as regular durante
interações sociais. Sua fragilidade orgânica teria sido complementada por
atributos comportamentais e interacionais, de modo que o bebê nasce equipado
pela pressão evolutiva de forma a garantir que o adulto se apegue a ele. A neotenia, tendência evolutiva da qual resultou a forma
infantil do bebê humano, assim como de outros mamíferos e aves, possibilitou
estímulos que são propostos como mecanismos liberadores
para o comportamento parental (KONNER, 1977b). Sua universalidade ajudaria a
explicar o potencial para a adoção de espécimes jovens, inclusive o afeto
humano por bebês de outras espécies (cãozinho, gatinho
etc.).
Do ponto de vista motor, reflexos como os de agarrar
(BLURTON JONES, 1972/ 1981), sucção, busca e preensão do seio, estão
intimamente associados ao contato do bebê com a mãe, constituindo parte do
sistema de nutrição via aleitamento e da própria comunicação do bebê (WIDMER,
1987).
O neonato reconhece e prefere a face materna (FIELD,
CQHEN, GARCIA & GREENBERG, 1984; BUSHNELL, FAI & MULLIN, 1989),
distingue e prefere a voz materna (De CASPER & FIFER, 1980), prefere o tom
de voz “infantilizado” com que geralmente o adulto, preferencialmente a mulher,
e preferencialmente a mãe, se dirige a ele, conhecido como “baby-talk”
(FERNALD, 1985); discrimina e prefere o odor axilar da mãe quando
alimentado ao seio, e, com seis dias apenas, apresenta uma resposta diferencial
para o cheiro do leite da própria mãe (CERNOCH & POSTER, 1985). Além disso,
discrimina e prefere certas cores a outras (BORNSTEIN & MARKS, 1982),
discrimina e prefere certos sons a outros (GOTTLIEB, 1985; KLAUS & KLAUS,
1986/1989), assim como odores (RIESER, YONAS & WIKNER, 1976) e sabores
(BERGAMASCO & I3ERALDO, 1990).
Todo este equipamento perceptivo do bebê tem o sentido
de facilitar a sua interação e adaptação ao meio humano onde vive. E através
desse meio que ele poderá exercitar e desenvolver suas habilidades.
PAPOUSEK & PAPOUSEK (1984) verificaram a sincronia
na comunicação materno-infantil, no que denominaram “espelho biológico” ou “eco
biológico”. Esta sincronia se caracteriza pela fala tipo “baby-talk”,
expressões faciais e movimentos corporais de mãe e criança, como se estivessem
envolvidos numa dança. Estes autores observaram igualmente que os padrões de
fala, orientação e movimentos corporais são altamente adaptados para a
competência cognitiva, de aprendizagem, e de processamento de informação da
criança, constituindo-se num forte apoio para seu desenvolvimento cognitivo, ou
seja, o modo como a mãe se comunica fornece o meio através do qual a mensagem
pode ser apreendida, constituindo-se, por si só, na própria mensagem.
Segundo TREVARTHEN (1979), esta comunicação é o
principal fator na criação do e da mãe-filho.
Deste modo, haveria facilitadores para a vinculação do
bebê ao que se convencionou chamar figura de apego. A necessidade de apego
seria uma necessidade primária, como fome, sede ou sexo (BOWLBY, 1969/1981).
Seria responsável pela segurança básica, ou, como diz ERIKSON (1963/1976), pela
capacidade de confiar em si e no outro, além de proporcionar à criança uma base
segura a partir da qual poderia explorar o seu meio -exercer sua capacidade de
locomoção e conseqüente autonomia - e retomar a ela em caso de perigo.
Podemos concluir que o aparelho psíquico e perceptivo do
neonato demonstra uma prontidão para relacionar-se com outras pessoas,
especialmente com sua mãe, assim como há uma complementaridade materna à
estimulação fornecida pela criança. A pressão evolutiva favoreceu o vínculo
mãe-criança, colocando à disposição de ambas os equipamentos e habilidades necessários para isto. A cultura, no entanto,
opera segundo forças ditadas por conjunturas diversas, e estas oscilam em
grandes arcos pendulares, num tipo de equilíbrio dialético, ora favorecendo o
vínculo mãe-criança, ora não o favorecendo, ou modificando-o, ora fazendo ambos
concomitantemente: a situação da mulher moderna cosmopolita da sociedade atual.
A flexibilidade adaptativa do homem permite-lhe
sobreviver em condições bem diversas. Conforme BLURTON JONES (1972/1981), a
existência de adaptações a um tipo de prática de criação não implica
necessariamente consequências prejudiciais em decorrência do desenvolvimento
sob condições diferentes; implica, sim, que uma criança criada de forma
“errada” estará mal adaptada ao ambiente em que o sistema em questão evoluiu.
“A presença de adaptações a um certo tipo de criação implica que este é o
contexto de desenvolvimento ao qual todo o sistema de desenvolvimento está
adaptado” (BLURTON JONES, 1972/1981, 19).
Este estudo visa explorar relações entre modo de vida e
desenvolvimento motor. Para isso, estudou o modo de vida de um grupo de
crianças de Vila Madalena, São Paulo, usando o modo de vida das crianças Kung como parâmetro de referência. Estes dois grupos de
crianças vivem em condições sócio-econômicas, geográficas, históricas e
evolutivas completamente diversas, sendo esta diversidade uma das razões desta
proposta. A comparação, evidentemente, deve ser feita com cautela, considerando-se
que os dados foram obtidos a partir de métodos e objetivos distintos. Nessas
condições, a análise de dados constitui antes um exercício de argumentação e
conceituação do que evidência conclusiva a favor destas.
A hipótese que permeia este exercício é a de que,
comparando-se dois grupos de crianças, um sem casa, outro do qual se conhecem
as casas e famílias, seja possível sugerir como os contextos determinam
diferenças no desenvolvimento.
No estudo original, os contextos foram comparados em
termos das seguintes variáveis: motivo e idade do desmame; esquema de
aleitamento (a pedido ou com horário); presença ou ausência de rotinas; início
do sentar sem apoio e da marcha independente, correlacionados com o conceito de
autonomia; relações entre o sistema de amamentação e o início da marcha; o
quarto de dormir, o berço e suas circunstâncias; o “modo de vida”, entendido a
partir do “modo de morar”; paralelos entre o modo de morar, o sistema de
cuidados e o desenvolvimento infantil (RABINO VICH, 1992). No presente trabalho
focalizaremos dois marcos comportamentais do sistema de locomoção: o sentar sem
apoio e a marcha independente.
Método
Este estudo está baseado em dois conjuntos de dados: os
dados principais que se originaram da pesquisa supra citada e os dados a
respeito das crianças Kung, recolhidos com base em
KONNER (1977a, 1972/1981), DEVORE & KONNER (1974) e LEAKEY & LEWIS
(1981/1988).
A pesquisa de Vila
Madalena foi realizada no período de julho/1988 a agosto/1989, com um número
inicial de 60 crianças de 0-1 ano (35 meninos e 25 meninas), inscritos no
Programa de Saúde da Criança do Centro de Saúde Escola Geraldo de Paula Souza
da Faculdade de Saúde Pública, São Paulo. Trinta e uma tinham menos de 6 meses
(15 dias a 5 meses e 29 dias) e vinte e nove tinham entre seis e 12 meses (de
seis meses a doze meses e vinte e nove dias).
A escolha do grupo de estudo foi efetuada após a
definição de algumas variáveis de inclusão que buscavam garantir alguma
homogeneidade ao grupo. Foram incluídas todas as crianças dentro da faixa
etária programada desde que fossem residentes no sub-distrito
de Vila Madalena, suas mães ou responsáveis aceitassem participar da pesquisa,
e fossem clientes de médico pediatra do Centro que tivesse aceitado participar
da pesquisa. Foram excluídas da amostra as crianças que mudaram da área
geográfica prevista, as crianças cujas mães ou família solicitaram sair da
pesquisa e as crianças que mudaram para um médico não participante da pesquisa.
A maior parte das crianças (50%) recebeu quatro visitas
domiciliares, ao longo de um ano. Trinta e nove crianças (65%) completaram o
período de um ano de observação, com três visitas domiciliares (71.6%), quatro (58.3%)
ou cinco (13.3%).
O acompanhamento longitudinal no domicílio utilizou
alguns roteiros de observação:
Ficha de Acompanhamento de Desenvolvimento do Ministério
da Saúde; Procedimento para observação dos “organizadores da psiquê” segundo Spitz; Roteiro
para observação do ambiente familiar; Anamnese da
criança e da família; Roteiro de entrevista com mães quanto ao sentido
atribuído ao desenvolvimento infantil; Roteiro de observação da relação
mãe-criança; Roteiro para retorno de Visita Domiciliar (V.D.) [2]. Entre esses
dados, foram selecionados para esta análise os relativos à idade do sentar e da
marcha independente (tal como relatados pela mãe em entrevista) e aqueles que
permitissem classificar a díade mãe-criança em termos de autonomia.
As crianças cujas mães impedem ou não facilitam a ação
exploratória, assim como a ausência de espaço real, foram
classificadas como “sem autonomia”. As crianças cujas mães permitem a
exploração e propiciam a base concreta para que tal ocorra foram classificadas
como “com autonomia”.
Os critérios para definir autonomia passam portanto por
dois níveis:
- se a mãe
permite ou não a exploração
-
se a mãe possibilita ou não condições para que a
exploração ocorra.
Por exemplo: a mãe que deixa sua criança permanecer no
berço por longos períodos, sendo este desprovido de móbiles ou brinquedos; a
mãe que obriga seu filho a andar calçado com meias no assoalho liso,
escorregadio; a ausência de espaço material para a criança brincar e se
locomover, etc. indicam ausência de autonomia.
Deste modo, a autonomia é um conceito que é aferido de
várias maneiras:
1°) possibilidade da criança se movimentar,
agir, brincar, se relacionar, se comunicar, com pessoas e objetos;
2°) criação desta possibilidade através de
condições que permitam à criança ter acesso aos objetos/estímulos necessários
para que a autonomia se dê.
A pesquisa sobre o modo de vida Kung
foi realizada a partir de levantamento bibliográfico onde foram descritos os
seguintes aspectos: onde vivem, como vivem, a casa, o
que possuem, a organização social, o trabalho, os instrumentos de trabalho, o
parto, o sistema de cuidados, o desmame, a sedentarização
e suas conseqüências no modo de vida.
Resultados e discussão
1. O sentar e a
oportunidade
A Figura 1 utiliza os resultados referentes ao sentar
independente do grupo de crianças Kung e as normas
etárias da escala Bayley conforme KONNER (1977),
comparando-os com os dados do grupo de crianças de Vila Madalena. O grupo Kung era constituído de 21 crianças; o de V. Madalena por
16 crianças, e a escala Bayley se refere a uma
amostragem de crianças americanas (apud KONNER, 1977a).
Comparando-se os três grupos, observa-se que as crianças
de V. Madalena são um grupo intermediário entre os Kung
e o grupo Bayley. Deve-se ressaltar que o resultado
do grupo de V. Madalena é aproximado por ter sido obtido em termos de meses e
não de dias e por ter sido a informação obtida a partir do relato materno.
As crianças de V. Madalena podem ser subdivididas em
dois grupos quanto ao sentar: 53,3% sentaram entre 5-6 meses
inclusive, e outros 46,7% entre 7-9 meses. Pode-se dizer que as que sentaram
após os 6 meses o fizeram devido à falta de oportunidade de treino, excetuado
um caso de atraso motor por doença grave (leucemia).
A falta de oportunidade se deve ao “modo de vida”. Se às
crianças Kung é permitido viver na posição vertical e
permanecerem sentadas ao lado de suas mães, as crianças de (tais instrumentos e
a forma de analisá-los estão detalhados em Siqueira et
al.; 1992) Vila Madalena permaneciam deitadas a maior parte do tempo, pois suas
mães tinham
Figura 1. O sentar sem apoio nos grupos de crianças Kung, Bayley e Vila Madalena, São Paulo, 1991.
que desempenhar os afazeres domésticos ou não permitiam
o treino por questões emocionais (medo de machucar, por exemplo).
Das oito crianças que sentaram após os sete meses,
quatro eram terceiros filhos e dois eram filhos de empregadas domésticas que
moravam na casa dos patrões. AINSWORTH (1977) crê que a precocidade das
crianças de Uganda por ela observadas resulta do
exercício e da estimulação de liberdade irrestrita de movimentos, e de serem
carregadas todo o tempo, o que não ocorria com essas crianças de Vila Madalena.
De igual maneira, pode-se supor que as crianças que se
sentaram mais tardiamente no grupo estudado em São Paulo tiveram menos
oportunidade de exercício e de estimulação.
Deste modo, comparando-se os três grupos de crianças,
podemos supor que as crianças de Vila Madalena tiveram mais oportunidades para
o desenvolvimento motor do que as americanas (conforme a escala de Bayley), e menos do que as crianças Kung.
Parece, portanto, haver um padrão neurológico de maturação que pode ser
facilitado ou retardado pela ação do meio.
Figura 2. Locomoção ereta (marcha independente) em crianças Kung, Bayley, Vila Madalena, S. Paulo, 1991.
2. O andar e a
autonomia
85,7% (12:14) das crianças a quem a mãe confere
autonomia andaram até 13 meses, enquanto 72,7% (8:11) a quem as mães não deram
autonomia andaram após os 14 meses (Fisher, p 0,004). Pode-se, pois, aventar a
hipótese de uma relação entre autonomia e inicio da marcha.
KONNER (1977) apresentou um gráfico comparando o andar
inicial sem assistência (Fase E da escala de Bayley:
3 passos sem segurar a mão, sem a progressão calcanhar - dedos do pé ou com
movimentos sincrônicos dos braços) do grupo de crianças Kung
com as normas etárias conhecidas pela escala de Bayley.
A partir de informações obtidas do relato materno sobre
o início da marcha independente das crianças de Vila Madalena, acoplando-as ao
gráfico apresentado por Konner, obtivemos os
resultados descritos na figura 2.
Pode-se observar, novamente, com as devidas ressalvas,
que o grupo de Vila Madalena situa-se entre o grupo Kung
e o americano. No grupo de Vila Madalena houve uma subdivisão entre crianças
que andam até 13 meses (15:25) e crianças que andam entre 14-16 meses (10:25),
sendo que 44% das crianças de Vila Madalena andam até 12 meses, contra cerca de
80% das Kung que andam antes dos 12 meses. Portanto,
pode-se sugerir que mais crianças Kung iniciam mais
cedo a marcha independente do que as crianças de Vila Madalena. Em relação à
escala Bayley, parte do grupo de Vila Madalena inicia
a marcha antes do marco dessa escala e parte do grupo (40%) após.
Às crianças Kung é dada grande
autonomia e iniciam a marcha cedo, enquanto as crianças Zinacantecas,
estudadas por BRAZELTON (1977) não são reforçadas para vocalizar, sorrir ou no
desenvolvimento motor. Essas crianças, mantidas embrulhadas, deitadas, sem
oportunidade para exploração visual, tátil, durante os primeiros quatro meses,
andam com um mês de atraso em relação às crianças americanas, mantendo esse
atraso consistentemente nas várias etapas motoras e cognitivas. O curso do
desenvolvimento corre “normalmente atrasado”. Conclui o autor que observar o
bebê Zinacanteca se desenvolver face à supressão do seu
comportamento exploratório acrescenta uma nova dimensão à influência poderosa de maturação do sistema nervoso, confrontado com o estilo
de vida americano em que há uma expectativa ansiosa quanto à realização
individual. No padrão americano, espera-se que a criança seja independente,
automotivada e busque o sucesso, em conformidade com os padrões
norte-americanos para os adultos, enquanto na cultura Zinacanteca se espera
submissão às normas vigentes.
Pode-se pensar, portanto, que a autonomia, como um valor,
influencia o início da marcha, assim como outros comportamentos bem mais
complexos do ponto de vista social. Para BRAZELTON (1977), a educação Zinacanteca cria indivíduos sem aparente auto-questionamento
e com um tipo de aprendizado por imitação que está adaptado à ênfase cultural
na igualdade e na interdependência. SORENSON (1979), estudando a cultura Fore, um pequeno enclave neolítico em Nova Guiné, conclui
que os dois aspectos básicos da aprendizagem e desenvolvimento social das
crianças Fore, isto é, intensa associação tátil e
liberdade para perseguir metas individuais, fornecem a base para o tipo
cooperativo da organização social Fore, qual seja,
grupos informais e voluntários, com ausência de chefes, curandeiros ou
patriarcas, nos quais “a apreciação sócio-sensual da excitação e dos valores
de vida orientam buscas individualistas dentro de um contexto de indivíduos
reciprocamente suportivos” (p.304).
Com base nesses estudos comparativos, pode-se pensar que
ao avaliar a idade do início da marcha não estaríamos apenas avaliando um
aspecto do desenvolvimento motor, mas um dado “cultural”, profundamente
imbricado em outros elementos da cultura.
O modelo de subsistência de caça-coleta origina um
aprendizado desde a infância de comportamentos sociais adequados a ela, tanto
para a reprodução, quanto para a produção (DeVORE & KONNER, 1974). A
locomoção independente precoce estaria a serviço da sobrevivência da criança e
da liberação parcial da mãe da tarefa de carregá-la nas suas atividades de
coleta.
Do ponto de vista do desenvolvimento psiconeurológico,
o modo de carregar a criança na bolsa “kaross” [3]
colocada lateralmente, possibilita uma ampla visão pela criança, não
apenas do ponto de vista da mãe, quando carregada às costas, e da visão apenas
da mãe, quando carregada à frente do corpo da mãe. A posição vertical em que a
criança é mantida nas longas caminhadas maternas favorece o fortalecimento dos
músculos da nuca e o desenvolvimento céfalo-caudal. A
organização postural é favorecida pelos estímulos sinestésicos e de
equilibração. A liberdade das mãos favorece a coordenação viso-motora.
Todos os poucos objetos são colocados à disposição da criança. Tipóia utilizada
pelas mães Kung para carregar seus filhos, feita de
pele de animal, colocada lateralmente sem restrições, assim que ela possa
manejá-los. Deste modo, um conjunto de fatores diretamente associados ao modo
de vida resulta em uma marcha independente precoce.
No caso das crianças da Vila Madalena, os dois grupos
associados à presença ou ausência de autonomia indicam que dentro de um mesmo
grupo e extrato cultural há diferenças no manejo da autonomia e no início da
marcha resultando, provavelmente, em outras diferenças. A forte associação
entre início da marcha independente e ter espaços/objetos disponíveis que
permitam a exploração, indica um sistema de desenvolvimento ancorado em vários
pontos: a existência de um espaço de locomoção, objetos que suportem esta
locomoção e a orientem, um sistema de crenças parentais que apóie as ações da
criança, e um conjunto de práticas sócio-simbólicas de cuidados que concretize
estas possibilidades.
Deste modo, embora a marcha esteja fortemente associada
ao desenvolvimento motor, o modo como a cultura do grupo sócio-familiar lida
com a autonomia influencia o início da marcha independente.
Um estudo recente realizado na cidade de Veneza
(MALUCELLI & MAASS, 2001), -enfocando a autonomia fora da esfera doméstica
- comparando três condições diversas de acesso à rua pelas crianças devido à
presença/ausência de carros, apontou que o desenvolvimento da capacidade
espacial está associado à possibilidade de locomoção autônoma das crianças
pelas ruas, sendo que este acesso dependeria da quantidade de carros
circulantes. Conclui que as limitações ao uso do espaço ocorrem
concomitantemente a limitações no desenvolvimento infantil. “O confinamento
físico de crianças a áreas limitadas, protegidas e sob a constante supervisão
de adultos pode ter uma série de conseqüências sobre várias áreas de
desenvolvimento, incluindo a própria satisfação infantil com a sua vida, o
bem-estar psicológico, a auto-eficácia, os padrões
de sociabilidade e o desenvolvimento cognitivo” (9).
Neste sentido, acreditamos que os nossos dados apontam
para essa mesma direção: a de que o acesso ao desenvolvimento motor pode estar
associado a áreas múltiplas e crescentemente complexas do desenvolvimento
geral.
Os sistemas de desenvolvimento, o aleitamento/desmame e
a locomoção, e aspectos do contexto, podem ser considerados indicadores da
relação mãe-criança. Neste sentido, confirmam-se as observações de CHISHOLM
(1981), com povos Navajo e Anglo-americano, de que as
diferenças observadas inter e intra-culturais eram
devidas à oportunidade de interação com outras pessoas (família nuclear ou
ampliada) e de que essas oportunidades eram uma função do grupo de residência
de cada criança. O grupo de residência, o modo de morar, por sua vez, depende
de condições eco-sócio-econômicas, do contexto macro-social. Através destes
estudos, pode-se começar a entender a intrincada rede de influências
co-reguladas que produzem o desenvolvimento.
O presente estudo, contudo, mais abre questões do que as
responde. O desenvolvimento é visto como um sistema e como um produto de vários
sistemas que atuam em vários níveis. Além disso, ele aparece mais como um
processo do que como uma aquisição: desenvolver-se é transformar-se no tempo,
desenvolvimento é vida. Como no desenvolvimento a criança se apropria da
cultura e a cultura se apropria da criança, o desenvolvimento é a aculturação
do ser humano na medida em que o contexto humano é cultura. A própria cultura
intermedia relações e transforma estruturas interiores.
Para OYAMA (1989), genes e meio sócio-cultural são
interagentes herdados e o desenvolvimento é seu produto. As interações
emergentes são a própria Vida imersa no “caldo original da cultura” que se dá
com regulações mútuas, gerando, conforme MORIN (1973/ 1979), ordem e desordem,
estreitamente ligadas, fazendo da vida um sistema de reorganização contínua
fundado sobre a lógica da complexidade.
Ao se concluir que a
idade em que a criança anda pode ser um indicador de autonomia e que esta varia
em função da organização sócio-cultural e afetiva da família, cria-se um caos
no que se refere a marcos comportamentais, escalas, etc. Valores parecem
dirigir sistemas de comportamentos e os próprios valores parecem ser adaptações
ao nicho ecológico transmitidas culturalmente.
Este estudo sugere que a ocupação do espaço através da
movimentação estaria associada a um sistema de desenvolvimento em que estariam incluídos a possibilidade de tal movimentação e o
incentivo a ela, aspectos estes que decorreriam de um sistema de crenças
parentais a respeito não só da educação/criação da prole mas também da
concepção de especiosidade do grupo sócio-familiar.
Sugere, igualmente, que tal associação deveria ser melhor
estudada e especificada.
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