O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA

 

 

Vera Leonelli[*]

 

 

Em princípio, entende-se como fundamental a inserção de todos os direitos atribuídos à criança e ao adolescente, como a qualquer outra condição do sujeito, no quadro geral dos direitos humanos. Esta preocupação, que é de natureza política, deve estar presente, sobretudo, nas organizações voltadas para segmentos determinados: por gênero, fases da vida, por estado ou situação excepcional da condição humana. Estrategicamente corresponde à idéia de trabalho com o específico sem perder de vista o universo, o geral, o macro.

 

A tendência à especificação dos direitos significa, sem dúvida, um avanço, uma conquista importante na evolução histórica dos direitos humanos, mas não nos desobriga da atenção para com a universalidade e indivisibilidade. Assim, se trabalhamos com direitos da criança e do adolescente, e buscamos sua eficácia, devemos atuar no sentido da afirmação, pelo menos, dos direitos relativos ao conjunto da sociedade, e de outros sujeitos específicos, evitando posturas e ações “corporativas” que a pretexto de proteger determinados indivíduos, segmentos ou grupos sociais, contribuem com a substituição de injustiça por outra injustiça.

 

O direito à convivência familiar e comunitária, posto na Constituição Brasileira de 1988, e no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS, na legislação referente ao idoso, como normas programáticas, reflete a preocupação do legislador, em assegurar condições protegidas e saudáveis para o desenvolvimento e estabilidade nas dimensões do indivíduo e da sociedade: físico, psíquico e social.

 

Este direito no entanto, pressupõe a existência da família e da comunidade, como espaços capazes de propiciar no caso da criança e do adolescente a proteção e a efetivação dos outros direitos, próprios à condição da pessoa em desenvolvimento e tendo como matriz o art. 227 da Constituição que impõe à família, à sociedade e ao Estado, o dever de assegurar o direito à vida, à saúde, etc., inclusive à convivência familiar e comunitária.

 

Raymundo Faoro, em artigo publicado na Revista Isto É (04.08.93) indaga e responde:

 

“Onde está a realidade das realidades, diante da qual a ficção se cala? Está, se o nome vale alguma coisa, na Constituição. Que é que lá, nesse oráculo de sentenças infalíveis, se diz a respeito da criança e do adolescente? Lá se diz que a família, a sociedade e o Estado lhes asseguram, ‘com absoluta prioridade’, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade e ao respeito - além de outras e mais amplas promessas. E como cumprem o seu dever, a família, a sociedade e o Estado? O Estado, por seus agentes armados pune, onde a lei declara não haver punição à conduta que se desvia das normas adultas. A família, rompida e dilacerada pela miséria, não pode, sem teto e sem pão, manter e educar a criança. A sociedade faz de conta que nada do que se refere à criança e ao adolescente é com ela...”

 

 

A pertinência deste questionamento nos coloca uma espécie de dilema. A Constituição e o Estatuto, acertadamente, invertem a lógica da legislação anterior (o Código de Menores que se dirigia apenas aos menores em situação irregular) e avançam para uma posição de reconhecimento da universalidade dos direitos da infância e da juventude, assegurando a todos, igualmente, as condições ideais de desenvolvimento. Mas é impossível pensar e atuar em relação a família como um direito em tese, - que é o tema que nos cabe - sem considerar a distância entre o modelo ideal, da família nuclear burguesa, que inspira nosso legislador, e a realidade de mais de dois terços da população brasileira, vivendo abaixo da linha da pobreza.

 

Sendo o direito à convivência exigível das famílias, a norma tende a cair no vazio se não houver, pelo menos, um esforço de compreensão e de ação para a necessidade de garantia de outros direitos relativos aos demais componentes da entidade familiar: direitos ao trabalho, ao salário ou renda, à saúde, à terra, à habitação etc. São pressupostos irrenunciáveis para a efetivação da Convivência familiar como aspiração social e norma jurídica.

 

No que diz respeito à convivência comunitária, o mesmo questionamento emerge: como assegurar o direito, sem que as condições mínimas para a existência da comunidade - enquanto instância positiva de Convivência social - estejam asseguradas? Aqui, são pressupostos os direitos ao bem estar, a segurança e justiça, saneamento, às condições dignas de habitação, transporte, cultura, lazer etc... direitos que em sua maioria correspondem a serviços públicos que na realidade Inexistem ou são absolutamente deficitários para a maioria do povo brasileiro, nas áreas urbanas e rural e, com muito maior gravidade, nas regiões norte e nordeste do País, onde a concentração de renda é mais excludente que nas regiões sul e sudeste.

 

Nesse quadro, é impensável a existência da família e da comunidade e do direito à convivência familiar e comunitária sem a presença do ESTADO - preferencialmente associado às organizações da sociedade civil - na formulação e implantação de POLÍTICAS PÚBLICAS cuja eficácia requer a superação do modelo dicotômico - econômico X social - e adoção da perspectiva integrada com vista ao desenvolvimento humano.

 

A Prof.a Maria do Carmo Brant de Carvalho, a propósito das nossas políticas sociais chama atenção:

 

para o seu “caráter marcadamente elitista privilegiando, preferencialmente, os segmentos minoritários da população já bem aquinhoados...”

 

para o fato dela ter absorvido uma lógica do qual resultou “um desenho de política social extremamente setorizado, centralista e institucionalizado elegendo o indivíduo como portador de direito...” e nessa linha relegando os sujeitos coletivos como a família e a comunidade;

 

para o ranço centralizador ainda presente as políticas sociais do Brasil,o que revela na lentidão com que se operam as vantagens da descentralização e da municipalização. A política social que segundo ela, tem resultados ineficazes, nem sempre reflete a ausência de recursos financeiros mas, principalmente, um gasto público pervertido em prol de interesses oligárquicos, tutelares corporativos e centralistas”

 

• “Não faltam situações atuais para comprovar esta análise: ao flagelo da seca no Nordeste, o tratamento dispensado pelos Governos; à violência crescente nos grandes centros e a insistência em tratá-la, apenas, com questão de segurança. E outras tantas que afetam gravemente as famílias e as comunidades pobres.”

 

As organizações sociais que pretendem se constituir em canais de acesso aos direitos e à incorporação da cidadania, ficam obrigadas a vincular sua ação ao combate à pobreza, à subalternidade e à exclusão. Aquelas que, por exemplo, voltam sua atenção especificamente para à criança e ao adolescente, é o caso do Projeto AXÉ, não podem deixar de considerar a realidade apontada por Francisco de Oliveira:

 

“A questão da criança situa-se precisamente no desemprego e/ou no baixíssimo salário dos pais, na intensa desconstrução/construção das famílias, produto da elevada urbanização, do modelo econômico concentracionista e da péssima distribuição de renda que é seu corolário. Não há um problema da criança em geral, mas da criança pobre. Isto não quer dizer que os mesmos fatores determinantes do problema da criança pobre não tenham repercutido nas crianças das classes médias e ricas: os consultórios de pedagogos, psicólogos, orientadores, psicanalistas estão cheios de pais e de crianças cujas relações foram profundamente afetadas numa sociedade que acelera, como numa corrida de Fórmula Um, os elementos desestruturadores das relações familiares.”

 

 

É igualmente necessário que estado, ONG’s e outras organizações que por dever institucional, inspiração e iniciativa solidária ou humanitária, considerem nas suas ações a importância da família e das comunidades. Neste sentido, não basta que as organizações cuja missão seja o atendimento à criança e ao adolescente, tratem a família “apenas” como direito relativo a essa criança/adolescente; é preciso considerar a família em si mesma, atentar para as questões do conjunto e de cada um de seus membros.

 

A atenção à família e comunidades pobres remete a um acúmulo de carências relativas aos direitos aos quais nos referimos no início: terra, saúde, trabalho, salários, renda, moradia, saneamento, segurança etc. E, obviamente, nenhuma organização dará conta da efetivação desses direitos, restando a alternativa que nos parece mais adequada e conseqüente do investimento na construção/fortalecimento da cidadania, entendido aqui como conhecimento de direitos, dos respectivos mecanismos de efetivação e real possibilidade de cobrança. Naturalmente, não se exclue desse processo o provimento direto de necessidades mais imediatas e a mediação da “cobrança enquanto não se alcança a autonomia necessária.”

 

Na experiência do AXÉ são pontos que merecem destaque:

 

• o fato de não se ter assumido, desde o início do Projeto, a Família em si mesma, como destinatária de atenção específica. As limitações objetivas de uma proposta inicialmente voltada para “crianças de rua foram superadas e, hoje, o trabalho com a família é considerado prioritário;

 

• a constatação dos educadores quanto a existência - sempre - de famílias, com as quais há possibilidade de se formar um vínculo; observando-se que o conceito de família aqui é mais flexível que o modelo normativo;

 

  a rejeição do menino/a à moradia, ao bairro (fisicamente), e a busca de espaços que sejam agradáveis/belos, o que se constitui num indicador de saúde. Por outro lado, infere-se daí a necessidade de políticas de desenvolvimento urbano que contemplem a necessidade da estética e a importância do equipamento social (espaços de educação, cultura, lazer) no bairro, na comunidade, para garantir o retorno cotidiano dos meninos/as que são levados a buscar nas ruas os meios de sobrevivência;

 

• a relação com a família - sobretudo a proximidade com a mãe que é o mais freqüente - garante, sempre uma melhor estrutura psicológica, emocional da criança mesmo em condições adversas - as estratégias de aproximação do educador com a família incluem movimento de “mão dupla” indo ao bairro, à casa e convidando as famílias para a participação no trabalho que se desenvolve com o menino/a;

 

• o trabalho pedagógico com a família com vista à construção da dignidade, é mais difícil do que considerá-la inapta e encaminhar para família substituta ou instituição. No entanto, vale a pena o investimento.

 

 

NOTAS SOBRE O AUTOR:

 

[*] Coordenadora do Centro de Formação do Projeto Axé. Salvador, BA.

 

BIBLIOGRAFIA:

 

BAHIA ANÁLISE E DADOS, V. 6 (1) 1996.

 

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 2l7.

 

CARVALHO, Maria do Carmo Brant. A família contemporânea em debate. São Paulo: Cortez, 1995. l22 p

 

FAORO, Raymundo. As leis são belas. In: Isto É. 1993 (1244)

 

OLIVEIRA, Francisco. Caderno ABONG, 1995 (out); 1998 (24)

 

TOURAINE, Alain. O pacto humanitário. In: Folha de São Paulo, Caderno Mais, 03 de maio de 1998.