A BRINCADEIRA DE
CONSTRUIR CASINHA
As experiências de ser-no-mundo constituem o cerne da
casa como símbolo, quer nas brincadeiras de construir casa quer nos desenhos de
casa. Trata-se de uma experiência de espacialização, primeira
e fundamental, geradora das demais. Trata-se da experiência de habitar o
próprio corpo.
São as vicissitudes desta “habitação” (“indwelling”
ou personalização para (WINNICOTT, 1971) que são “jogadas” nas brincadeiras de
casinha. O corpo - o lugar onde se habita - é não apenas o locus de expressão,
gestos e sinais, através de uma linguagem corporal a ser lida: ele é o receptáculo das marcas, dores,
cicatrizes e tatuagens - o lugar de sua história. O modo de morar, em sua
concretude conforme expresso na moradia, não é um contexto que está fora
apenas, mas informa, desde fora, a forma do corpo subjetivo. Segundo PEREIRA
& NUNES (1989), a casa, o corpo e o eu formam uma trindade que se manifesta
como um todo nas “brincadeiras de casinha”.
É necessário distinguir o símbolo como processo/produto
cognitivo, e o símbolo como processo afetivo, pré-verbal, resultado de fusão. A
partir das primeiras experiências de não “completação” do bebê, estar-se-ia
formando o processo simbólico, ancorado no diálogo pré-verbal primeiro
mãe-criança em que esta institui o reino do imaginário/ sonho/ delírio/ ilusão
ao satisfazer o bebê no momento em que este “alucina” o “seio”, seio aí
significando tudo o que possa ser desejado pelo bebê.
Este diálogo pré-verbal e sincrônico, por sua vez,
reproduz as experiências de não completação do adulto, não apenas referidas ao
seu passado enquanto bebê, mas ao seu presente nas suas “fissuras” com relação
à sociedade. Estas fissuras correspondem às contradições e insatisfações na
relação indivíduo-meio. Deste modo, a capacidade simbólica é inerente ao
indivíduo, mas seu modo de se concretizar decorre do contexto sócio-cultural.
Como ROSSETTI-FERREIRA, AMORIM & VITÓRIA (1996),
compreendemos que a matriz sócio-cultural que captura mãe e criança, não está
fora delas e do meio que as cerca: está na rede de significações que as
informam. A rede de significações está expressa no código verbal e no código
não-verbal mas, além disto, está expressa em um código
espacial, pré-verbal, imagético.
Segundo GUCHT (1990, p. 388), do mesmo modo como a
infância é um estado transitório na vida do indivíduo, ela só toma sentido em
relação à história, à morfologia e à ideologia da sociedade global e dos grupos
sociais no seio das quais ela se integra. Os jogos são reveladores da estrutura
do grupo infantil, como de seus ritos, de suas regras e dos seus dramas mas
também do imaginário da sociedade global. As sociedades, por sua vez, têm se
ocupado em “jogar” sua própria cultura através de grandes sistemas simbólicos
que marcam a arte, a organização social e a religião. Para COELHO & PEDROSA
(1995), apoiando-se em WALLON, o tipo de intercâmbio que a criança
estabelece com o meio social implica a consideração dos processos históricos da
humanidade e é constituído num espaço psíquico que inclui necessidades e
desejos.
Estudos sobre o neonato têm demonstrado sua prontidão
para sobreviver, extensamente dirigida para o contato social. Diferentemente do
que se pensava a partir dos estudos psicanalíticos, há uma separação
mãe-criança desde o início de vida desta, tendo a criança um objeto não
fantasmático desde este inicio. O que o bebê teria é uma fusão emocional no
sentido de não discriminar a origem das motivações, ou seja, não ser capaz de
distinguir entre ele e o outro como iniciadores de ações, como agentes
motivacionais.
O corpo seria o lugar de união mãe-criança, e as
vicissitudes desta separação, que se dá através das práticas sócio-simbólicas
das rotinas de cuidados, passam a estar inscritas no corpo enquanto moradia do
ser.
Deste modo, o jogo de construir casinha seria um modo
lúdico de ocupar e operar o espaço: ele buscaria expressar uma identidade que o
corpo já registra como perda.
As partes que se separam são perdas vividas conforme a
rede de significações, não sendo iguais nem entre sociedades nem entre irmãos.
A primeira parte a se destacar é o sono/vigília. Esta
primeira grande separação seria entre consciência/inconsciência, a forma mais
rudimentar e total de ser e de ocupar um espaço. Não há divisórias, é
tudo/nada, mas há o dia e a noite, a luz e o escuro.
Depois, há a separação dentro/fora: a porta.
Posteriormente, em torno deste tema, estabelecer-se-ão diversificações sutis
através de janelas, pontes, jardins, quintais, caminhos de chegada-saída,
escadas. Já se disse que a casa existe quando há a porta; mas a casa existe
antes disto: na caverna, na gruta, no oco, no côncavo.
A segunda separação é a falta, a fome. A fome introduz a
cozinha e seus apêndices: poços, fogo, carregar -
básicos à vida. Só muito depois, caçar e plantar, ir à feira e comprar.
Como a sensação de fome é destrutiva, ela é cercada de
protetores e de rituais de proteção. Inicia-se uma espécie de
ordenação bom/mau, correspondendo ao desejo de controlar.
Posteriormente, surge a casa como espaço social,
passando a ocupar o maior espaço de todos: o jogo de papéis.
Para PEREIRA & NUNES (1989), na relação com o espaço
físico - casa/corpo - a criança toma consciência de si, em uma organização
harmoniosa com o ambiente e construindo-se simultaneamente.
GUCHT (op.cit., p. 391) aponta que o sujeito joga para
crer, para se fazer crer ou para fazer crer ao outro que ele é outro que não
ele, o que envia a constituição do si mesmo pela interiorização do outro. Este
autor defende a sociologia da infância contrapondo-a à
psicologia, apontando que o si mesmo (soi même) não é apenas o eu
mesmo (moi même) dos psicólogos, dado os jogos terem um papel preponderante
na formação do si (soi) social e não apenas da personalidade.
No jogo de construção da casa, aparecem as separações através dos corredores, das intermediações,
dos quintais, muros, interfaces: as divisões sócio-familiares.
Na brincadeira, há o colocar as coisas no lugar: onde a
criança prevê e estabelece a ordem segundo os seus
desejos.
O sentido da ordem parece contemplar dois aspectos: de
um lado, a espacialização propriamente. NISE DA SILVEIRA (1982) aponta a
estruturação do espaço como o que garante o homem sadio contra o delírio, como
um modo de desenraizar as coisas do corpo e colocá-las no mundo. Não se trata
de apenas expressar, mas de existir - ex-stare
- estar fora. Este conteúdo existencial do construir casinha estaria ligado
ao próprio movimento do ser-humano, do ao construir(-se)
fazer-se humano (HEIDEGGER, segundo LEFÉBVRE, 1966).
De outro lado, a vivência do tempo cíclico da arrumação
em uma repetição dos gestos e do lugar das coisas, organiza o mundo como se ele
tivesse ordem. Os eventos se tomam previsíveis, e, portanto, contrapõem-se à imprevisibilidade da morte.
Ao “desenraizar as coisas do corpo”, contudo, a pessoa, adulto ou criança, encontra o outro, segundo as
características do tempo vivido. Neste tempo, aparece uma tendência à ordem,
oposta ao caos, como intrínseca ao funcionamento psíquico.
Haveria uma “vontade de ordem”, a nosso ver isomórfica
ao funcionamento cerebral, refletindo-o. Estudos com bebês (BORNSTEN,
FERDINANDSEN & GROSS, 1981) mostram que estes preferem certas disposições
espaciais a outras, preferindo as mais harmônicas às mais desequilibradas.
As crianças, ao brincar de construir casinha, dispõem em
ordem, muitas vezes o jogo sendo apenas isto, acompanhado do imaginário. Pode
ser um modo de lidar com as emoções ao expressá-las e controlá-las desta forma,
mas ao fazê-lo, expressam a natureza matemática do que as leva a fazê-lo. Esta
ordenação das coisas no espaço colocaria a criança em harmonia.
O sentido da ordem teria, assim, um caráter afetivo e
cognitivo, dentro de uma emergência empática do desenvolvimento cognitivo,
sendo a espacialização uma experiência a ser compartilhada. O próprio brincar
pode ser visto como um construir e compartilhar significados (COELHO &
PEDROSA, op.cit., p. 52), e a brincadeira de construir casinha como um
construir em que o imaginário e o significado tomam forma espacialmente.
Este movimento para a espacialização ocorre no meio,
através do meio, como um meio: várias temporalidades, vindas do tempo longo da
criação do mundo, do tempo mais breve dos momentos sociais e do tempo instável
e curto da história singular, estruturam a forma da espacialização, conforme se
pode acompanhar pelo relato da experiência em Arlington.
DOVEY (op.cit.) faz um detalhado relato sobre a evolução
da construção de cabanas em uma escola primária australiana. Esta atividade foi
iniciada em 1938, tendo cessado em 1981 devido a pressões da vizinhança e da
sua interdição pelo Corpo de Bombeiros. O lugar era chamado Arlington, sendo
uma parte de uma escola particular. As cabanas foram apoiadas pela direção da
escola, de cunho progressista, que privilegiava a iniciativa dos alunos e a
integração do aprendizado com a vida cotidiana, de modo que se tornaram uma tradição na escola.
Em termos de ambiente físico, a filosofia educacional da
escola resultava em uma falta de distinção entre “classe” e “pátio” e uma forte
integração entre atividades internas e externas. A necessidade de expandir a
sua área física, face ao crescimento populacional infantil e conseqüente
necessidade de fornecer mais áreas para cabanas, contudo, acabou colidindo com
a sua própria proposta.
As crianças em Arlington basicamente reconstruíam
casinhas palimpsestas, dadas as histórias que elas iam sobrepondo pelas
reinserções dos mesmos materiais nos mesmos lugares por crianças diferentes.
Relata DOVEY que, em contraste com as cabanas mais abertas,
de ocupação feminina, construídas no nível do chão onde
se realizavam principalmente jogos de papéis, as cabanas mais construídas eram
pouco usadas após a sua construção. Segundo um dos ex-estudantes: “não me
lembro de brincar muito nelas. Elas eram usualmente construídas, deixadas de
lado por um tanto, colocadas abaixo, e então uma outra era construída. Era o
construir - o chegar lá - era toda a brincadeira”.
A construção do si-próprio envolvido neste jogo
corresponde, pois, mais ao ocupar-se apropriar - o espaço do que marcá-lo -
possuir. Esta distinção entre marcar e ocupar, que emprestamos de DUNCAN (1985),
evidencia o aspecto altamente acomodatório, criador, construtor e dinâmico,
do construir a casinha, onde a construção é o objetivo principal.
A brincadeira de construir casinha não eqüivale,
contudo, à de casinha. Nesta, há principalmente o jogo de papéis, enquanto
naquela, existiria, em essência, a construção do si próprio.
Em ludoterapia, igualmente, pode-se observar a
intensidade do projeto da criança, muitas vezes frustrado na sua conclusão
operacional, mas válido por si só, por ocupar uma área intermediária entre o
real e o imaginário, como se o encaminhamento do desejo representasse a sua
saciação.
Podemos pensar que a brincadeira de “esconde-esconde”,
iniciada pelo adulto com bebês em torno dos 9 meses, em que elementos móveis
como panos ou almofadas são utilizadas para esconder e fazer reaparecer o rosto
adulto ou infantil, seria um precursor da futura brincadeira de construir casinha.
Neste jogo, fundamental por demarcar o período do objeto permanente e/ou
relação objetal, estaria já presente uma das características da casinha que é o
segredo, o esconder-se, o ter vida própria no sentido de intocada. Eqüivaleria
ao holding (continência), uma sustentação que possibilita adiar a
satisfação das necessidades e tolerar frustração através de uma proteção
ambiento-relacional.
A brincadeira de construir casinha pode ser pensada
iniciar-se no interior da moradia através do uso não convencional de espaços
existentes, como sob a mesa, armário sob a escada, posteriormente construída
por elementos móveis como almofadas, etc. Assim, no interior da moradia,
teríamos duas categorias: a casinha adaptada ao meio e a casinha “acomodada”,
construída a partir dos elementos do meio.
Segundo PEREIRA & NUNES (1989), “inicialmente surge a construção de casas individuais. Uma criança organiza o
seu espaço, nele entra e permanece algum tempo, deitada, isolando-se do que
está à sua volta. O processo ordena-se pela colocação inicial da estrutura do
‘entorno’ - as paredes, logo segue a ‘cobertura’, o teto. No chão, há sempre
panos, esteiras, almofadas que, ao serem colocadas, traduzem no gesto da
criança uma arrumação de uma cama, um berço, um ninho - um lugar de recolhimento,
de proteção. Nesse espaço criado há sempre uma caixa ou caixote identificado
como ‘porta’ através da qual a criança sai ou entra engatinhando” (p. 65).
Posteriormente, com a movimentação no espaço, quando a
casa e seus recônditos são utilizados para esconder-se em brincadeiras com
outras crianças, amplia-se o uso dos espaços e dos objetos para este
ocultamento.
As crianças podem começar a construir casinha a partir
dos 5 anos. Podem brincar anteriormente a esta idade, mas de modo
imaginário, ou seja, a casinha é construída quase que apenas na imaginação.
Conforme DOVEY (op.cit., p. 21), “em um sentido, o processo começava dentro da
sala de aula onde pequenos lugares sob as mesas eram apropriados ou criados com
panos e caixas de papelão. A criação espontânea de lugares externos emergia
entre crianças de 5 anos. Aqui a “cabana” podia
ser qualquer coisa, desde um buraco existente, apropriado sem nenhuma
transformação, a formas mais construídas tais como tábuas apoiadas contra uma
grade ou árvore. A imaginação representava um papel chave nesta idade. Por
exemplo, numa “cabana” o único sinal de habitação era um bloco de madeira para
sentar. Aos olhos dos ocupantes, contudo, havia paredes, janelas e portas”.
É necessário desenvolvimento e coordenação motora para a
construção da casinha, assim como equilíbrio, força física, certa liberdade de
ir e vir: ou seja, a criança deve ter alcançado um certo domínio sobre si
própria, sobre seu corpo e sobre o ambiente circundante. Um aluno daquela
escola recordava-se de sua vivência aos 5 anos, quando “...olhando os
grandes que tinham martelos reais, e pregos, e enormes caixas de papelão e
árvores e cordas e escadas com as quais criar construções de esplendor quase
incrível!” (p. 22).
A casinha no exterior pode estar localizada sob árvores,
buracos, ou seja, pela apropriação de espaços já existentes sem qualquer
transformação, e pela construção através de materiais coletados e dispostos
contra muros, por exemplo.
No caso de Arlington, havia três tipos principais de
cabanas, construídos principalmente por crianças entre 8 e 11 anos: - no nível
do chão, com tijolos, troncos de madeira, ou linhas riscadas na sujeira
demarcando paredes e quartos; eram mais abertos que os outros tipos e existiram
enquanto havia espaço e a população de alunos era menor; estavam mais ligados à
reprodução de papéis de gênero, podiam se modificar rapidamente, e desapareceram nos anos 60 com a mudança dos papéis de gênero e a
maior densidade populacional que tornou as simples marcas territoriais
vulneráveis; - no nível do chão, mais construídos e fechados com tábuas;
tornaram-se, com o tempo, a ala das cabanas, alinhados contra as cercas
laterais; - na árvore, consistindo desde uma plataforma até uma cabana
totalmente fechada capaz de acomodar até 5 pessoas.
A casinha pode ser também bidimensional, construída com
cartas de baralho, por exemplo, ou tridimensional, quando se pode entrar dentro
dela. Embora de caráter totalmente diverso, as duas formas contêm o conteúdo casa.
O conteúdo casa existe desde que haja um dentro e um fora, mesmo que apenas
representado por uma membrana, como cobrir-se com um
cobertor.
A construção da casinha sempre é heterodoxa: há um uso
não convencional do espaço e materiais são empregados de modo não ortodoxo, assemelhando-se
ao procedimento de bricolage. Neste
procedimento, é a dinâmica interna que está conduzindo o processo, sendo o
objetivo o resultado a ser conseguido, sem considerações formais. Devido a
isto, as cabanas de Arlington tiveram de ser destruídas: pois sua aparência
ofendia a vizinhança, assim como a aparência das casinhas construídas pelos sem
casa nas ruas paulistanas nos ofendem. Houve um movimento da vizinhança
contra as casinhas, condenadas pelos bombeiros devido à ameaça de incêndio,
embora nos 40 anos nenhum episódio de risco à segurança tivesse ocorrido.
Após a interdição pelos bombeiros, houve uma tentativa
de construção “ortodoxa”, em Arlington: através da mudança de local - de um
local central à escola, onde as crianças podiam inclusive espionar o que
acontecia ao redor, para uma área frontal, longe dos olhos da vizinhança, e não
integrada ao movimento natural na escola; através da mudança de material
empregado - de lixo coletado através dos anos, considerado material altamente
volátil pelos bombeiros, para material orgânico, folhas, troncos, que não
poderiam ser usados de tantos modos quanto a sucata;
através da mudança de motivação - da construção espontânea, por vários grupos
etários, durante 40 anos de turmas, para uma decorrente de um projeto da classe
dos 11 anos, para simular uma comunidade pré-industrial, com regras dadas
pelos professores.
Estas regras - todas as casas no nível do chão e longe
da visão da vizinhança, fez com que o projeto existisse com entusiasmo devido à
camuflagem. Ou seja, não mais motivados internamente, mas externamente.
Passado este entusiasmo, abandonou-se as casinhas
existentes e não se construiu novas.
Estes exemplos enfatizam o projeto social contido nesta
brincadeira, mas pode-se construir casinha solitariamente. O jogo solitário é
mais provável ocorrer pela apropriação de espaços preexistentes, enquanto, a
nosso ver, a construção estaria mais ligada a uma atividade grupal.
Tanto um quanto outro tipo devem ser compreendidos
dentro do contexto mais amplo onde ocorrem. DOVEY analisou como, na escola, o
construir cabanas era um processo de negociação informal da realidade social: a
ordem espacial e social das relações das pessoas e cabanas, e dessas com a
própria escola. “Era uma ordem sócio-espacial experienciada antes do que uma
imagem visual ordenada, uma ordem que vinha da integração do processo social
com o ambiente físico. Em uma idade onde as crianças estavam explorando papéis
e identidades e abandonando-os rapidamente, este processo tomava uma forma
visível na paisagem das cabanas. E a paisagem era tão dinâmica quanto as
transformações pessoais e sociais das próprias crianças, enquanto elas
aprendiam e cresciam” (op.cit., p. 24).
DQVEY está, deste modo, apontando a função de integração
presente no jogo de construir casa: uma integração tanto de aspectos
desconectados subjetivos, como no jogo na clínica psicológica, quanto
diretamente ligados ao relacionamento pessoal e social, como
descrito acima.
Para GUCHT (op.cit., p. 393), do ponto de vista da
sociologia da infância, todo jogo é um fato social,
fundamental para a constituição do si pela interiorização do outro. O
jogo é uma instituição, ligado a situações socialmente determinadas, cujas
estruturas objetivas se exprimem por sistemas de regras, e que se apresenta
como uma forma privilegiada de socialização. O próprio imaginar é construir, e
não se constrói sem regras, o sentido da regra sendo também o sentido da ordem
e, através dela, o domínio de si. É a ordem que a criança integra a seu jogo que
permite ou dá a impressão de submeter as coisas a uma
ordem imaginária -onde intervêm a geometria e a aritmética.
Segundo este autor, Maria MONTESSORI já havia notado o
amor à ordem nas crianças de 2 anos, indicando uma afirmação de si própria, mas
também a compreensão de uma regra simples. A ordem seria não apenas um
comportamento condicionado pelo adulto, mas um sentimento pessoal através do
qual a criança pode prever, em seu mundo mental, uma nova ordem dos objetos,
que será a expressão de seus desejos próprios.
DOVEY aponta para urna ordem de um outro tipo: a ordem
do fechamento, privacidade e controle, “a cabana era a concretização de
identidade, e de poder no espaço, do grupo de coetâneos, assim como um refugio
da população escolar mais ampla. (...) O significado de refúgio tornou-se mais
importante quando o espaço se tornou escasso. (...) Representava o
domínio da vida escolar onde as crianças estavam completamente no controle. A
forma exterior da cabana pouco preocupava, mas sim o lugar, tamanho, grau de
fechamento, propriedade e privacidade eram as preocupações” (op.cit., p. 24).
Conclui seu estudo dizendo que o desenvolvimento da
escola se tornou incompatível com o seu próprio projeto de desenvolvimento
infantil, conforme manifestado nas cabanas. “O processo de construir cabanas se
provou vulnerável, não somente devido a preconceitos estéticos de uma
comunidade adulta, mas também pelas atividades de crescimento da própria
instituição, que possibilitara o processo de surgimento e sua continuação por
40 anos. A expressão da identidade socialmente negociada em um meio construído,
em um nível (o das crianças e de seu desenvolvimento), entraram
em conflito com exatamente o mesmo processo em uma escala mais larga (o da
escola e de seu desenvolvimento)” (op.cit., p. 26), quando a escola, devido ao
seu próprio crescimento, adquiriu novos terrenos, com o desfecho descrito.
PEREIRA & NUNES analisam o recurso lúdico de
construir casinha como um processo contínuo de in-corporação, de tomada de
consciência e de construção concomitante do si próprio. “Como a cidade, o
templo, a casa é o lugar no mundo. Uma mediação entre o Céu e a Terra. Um ponto
no Universo” (p. 56).
Porém, segundo BIASOLI ALVES (1995), o papel da
industrialização ao oferecer brinquedos “educativos” tem uma relação dialética
com o comportamento dos pais/educadores, que tentam oferecer às crianças o que
é considerado melhor, muitas vezes subestimando o que viveram
durante a sua infância. Esta autora aponta também para a crescente urbanização
das cidades, onde os espaços de brincar vão sendo reduzidos e ocorrendo em
espaços domésticos também diminuídos, donde a ida precoce à escola como solução
coloca a criança em atividades programadas.
Face a isto,
pergunta-se: como estão as crianças habitando os seus corpos? que “casas” estão
construindo para si próprias? como estão negociando as suas identidades através
de meios construídos, além dos recursos verbais e/ou de força física? como o
sentido de ordem está ocorrendo através da apropriação do espaço? onde as
crianças podem ter os próprios espaços, de modo ao construir(-se),
fazer-se humano?
Do ponto de vista educacional, frente à crescente
urbanização e informatização, muitos dos problemas associados a distúrbios
psicomotores e psicopedagógicos, assim como a distúrbios comportamentais,
apresentados pelas crianças podem ser facilmente traçados a partir das
respostas às perguntas acima colocadas.
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