BREVE REVISÃO DA ADOÇÃO SOB A PERSPECTIVA DA
DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E DO NOVO CÓDIGO CIVIL
Maria
Regina Fay de Azambuja
Procuradora de Justiça, RS.
“O sonho pelo qual eu luto exige
que eu invente em mim a coragem de lutar, ao lado da coragem de amar”. (Paulo
Freire)
Introdução
Deparar-se
com a adoção de uma criança ou adolescente, ao mesmo tempo em que nos põe em
sintonia com um instituto extremamente atual, delineado pelo princípio da
Doutrina da Proteção Integral, nos remete a uma prática que já se fazia
presente no início da história das civilizações.
Por
razões diversas, próprias de cada momento histórico, a humanidade, desde os
seus primórdios, recorreu à adoção, como demonstram as diversas legislações.
A
partir da Constituição Federal de 1988, avanços significativos são observados
no trato do instituto da adoção no nosso país. Sob a influência dos princípios
que vieram a integrar a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, o art.
227 da Carta de 1988 introduziu, no ordenamento jurídico brasileiro, o
princípio da Doutrina da Proteção Integral, assegurando às crianças e aos
adolescentes a condição de sujeitos de direitos, de pessoas em desenvolvimento
e de prioridade absoluta. Inverteu-se, desde então, o foco da prioridade. No
sistema jurídico anterior, privilegiava-se o interesse do adulto. Com a Nova
Carta, o interesse a ser preservado, em primeiro plano, passa
a ser o da criança.
A
mudança de paradigma tem exigido a substituição de práticas que caracterizaram
a Doutrina da Situação Irregular, representada pelo segundo Código de Menores,
por ações que garantam o melhor interesse da criança, segundo as disposições
trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
1. Aspectos históricos da adoção
A
adoção surge na mais remota Antigüidade, tendo como berço a Índia, passando,
juntamente com as crenças religiosas, aos egípcios, persas, hebreus e,
posteriormente, aos gregos e romanos[1]. As crenças
primitivas impunham a necessidade da existência de um filho, a fim de impedir a
extinção do culto doméstico, considerado a base da família.
A
Bíblia relata a adoção de Moisés, pela filha do Faraó, no Egito[2]. Por sua vez, o Código de Hamurábi
(1728/1686 ac.), na Babilônia, disciplinava minuciosamente a adoção em oito
artigos. Ao filho adotivo que ousasse dizer aos pais adotivos que eles não eram
seus pais, cortava-se a língua; ao filho adotivo que aspirasse voltar à casa
paterna, afastando-se dos pais adotivos, extraíam-se os olhos (artigos 192 e
193).
Em
Roma, era exigida a idade mínima de 60 anos para o adotante, vedada a adoção
àqueles com descendência legítima[3]. Na Idade Média,
a adoção não rompia os vínculos de parentesco do adotivo com a família natural,
caindo o instituto em desuso, por influência dos princípios religiosos vigentes
à época.
Somente
após a Revolução Francesa, a adoção ressurgiu, através do Código Napoleônico de
1804, como ato jurídico capaz de estabelecer o parentesco civil entre duas
pessoas, passando a ser admitida em quase todas as legislações.
No
Brasil, o Código Civil de 1916 deu ao instituto uma restrita possibilidade de
utilização, refletindo a cultura dominante no início do século passado. Para
exemplificar, somente poderia adotar o maior de 50 anos, sem descendentes
legítimos ou legitimados, e desde que fosse, pelo menos, 18 anos mais velho que
o adotado (arts. 368 e seguintes).
A
adoção internacional, por sua vez, aparece, como prática regular, após a
Segunda Guerra Mundial, em face da existência de multidões de crianças órfãs,
sem qualquer possibilidade de acolhimento em suas próprias famílias. Crianças
da Alemanha, Itália, Grécia, do Japão, da China e de outros países foram
adotadas por casais norte-americanos e europeus. Segundo o Serviço
Internacional de Adoção, milhares de crianças foram
encaminhadas para o exterior sem que tivessem os documentos
indispensáveis à regularização de sua situação. Paolo Vercellone
informa que, das crianças adotadas na Itália, entre 1985 e 1990, quase 80% eram
provenientes da América Latina. Já na França, das 5.348 crianças adotadas entre
1990 e 1992, 21,16% eram brasileiras[4].
O
descontrole, os abusos verificados, especialmente a venda e o tráfico
internacional de crianças, no país de origem e no de acolhida, fez nascer a necessidade de serem estabelecidas normas eficazes de
garantia das adoções e de proteção aos infantes.
Na
América Latina, as mudanças legislativas tiveram início no final da década de
1980, buscando atender aos princípios introduzidos pela Convenção Internacional
dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em
20.11.89. Passou-se a considerar a criança como sujeito de direitos, afirmando
o seu direito a ter um nome, a partir do nascimento, assim como o direito a ter
uma nacionalidade; o direito de conhecer e conviver com seus pais, a não ser
quando incompatível com seu melhor interesse; afirmando o caráter excepcional
da adoção internacional, entre tantas outras disposições que vêm elencadas em seus 56 artigos.
2. Doutrina da proteção integral:
adoção como medida de proteção
Não
há como deixar de mencionar, dentro do contexto histórico, a postura de
vanguarda assumida pelo Brasil, em 1988, ao introduzir a Doutrina da Proteção
Integral em seu sistema jurídico, através do art. 227 da Constituição Federal.
Portanto, mesmo antes da aprovação do texto que deu origem à Convenção, nosso
país já assumira um compromisso com a infância. Doravante, entre os direitos
fundamentais assegurados à criança brasileira, encontramos, ao lado do direito
à vida, à saúde, à educação, à liberdade, ao respeito, à dignidade, o direito à
convivência familiar.
O
novo paradigma, marcado pelo direito fundamental à convivência familiar, o
direito de a criança ser criada e educada no seio da família natural, conforme
estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente, está a exigir uma nova
postura das Instituições que compõem o sistema de proteção, quando se vêem
diante de uma criança em situação de risco, em decorrência da omissão dos pais,
do abuso ou da violência familiar, impondo o seu afastamento da família.
Inúmeros
são os casos de violência doméstica, conhecidos como
violência física, violência sexual, violência psicológica, negligência e
violência fatal, que povoam os Conselhos Tutelares, as Delegacias de Polícia,
os leitos hospitalares, os gabinetes da Defensoria e do Ministério Público, as
laudas de processos judiciais e os espaços das entidades de atendimento.
Lamentavelmente, um número maior ainda permanece encoberto pelo segredo, sem ultrapassar os limites do
círculo familiar, impedindo que a proteção possa ser exercida. Apontam os
estudos que as agressões ambientais, “entendidas
como desde as provocadas por um vírus sobre o embrião até a violência de um pai
sobre o bebê, a morte prematura de um dos pais ou o abuso sexual – podem
danificar, em variados graus de intensidade, tanto o aparelho psicológico como,
conseqüentemente, o genético, dada a plasticidade do sistema nervoso central”[5]. Seguindo a linha do conhecimento científico que
dispomos, a atual legislação prevê que os casos de maus-tratos praticados
contra a criança devem ser notificados ao Conselho Tutelar, para que as medidas
legais possam ser adotadas em sua proteção. Fundamental que os profissionais da
saúde e da educação, em especial, estejam capacitados para identificar os casos
de suspeita e confirmação de maus-tratos praticados contra seus pacientes e
alunos, possibilitando a intervenção precoce, na tentativa de romper com o
círculo da violência. A nova obrigatoriedade de comunicação ao Conselho
Tutelar, pelos profissionais da saúde e educação, reafirma a vigência da
Doutrina da Proteção Integral, porquanto são, o médico e o professor, depois da
família, os mais próximos da vida e do cotidiano da criança.
A
colocação em família substituta, em qualquer de suas formas (guarda, tutela e
adoção), corresponde, na atualidade, a uma medida de proteção (art. 101, inciso
VIII, do Estatuto da Criança e do Adolescente), aplicada quando se mostrar
inviável a manutenção da criança junto à família natural. No caso específico da
adoção, tratando-se de adotando adolescente, o seu consentimento será
indispensável (art. 45, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente).
Como
saber se a família não tem condições de cuidar o filho? Somente através de uma
criteriosa avaliação, com o auxílio de uma equipe interdisciplinar, que
permita, num primeiro momento, a elaboração de um plano de trabalho
terapêutico, com o auxílio de técnicos e do Conselho Tutelar, possibilitando o
encaminhamento do grupo familiar para programas existentes na comunidade.
Vale
lembrar que nos feitos de suspensão ou destituição do pátrio poder, não raras
vezes verificamos que a mãe, o pai, ou ambos os genitores são portadores de
retardo mental leve ou moderado, agravado com o uso indevido de álcool e o
desemprego. O que fazer nesses casos? É recomendável investir no grupo
familiar, apesar do comprometimento dos genitores? Quais seriam os prazos
recomendáveis para o investimento?
Infelizmente,
o que muito se vê nos processos judiciais dessa natureza são constatações, como
por exemplo, “os pais não apresentam as
mínimas condições para proporcionar os cuidados básicos que a prole necessita
para seu desenvolvimento biopsicossocial”[6]. De outro lado, o que pouco se observa são relatos
de planos de trabalho terapêutico, buscando a reinserção
social desses grupos, com efetivo acompanhamento técnico e regular avaliação.
Constatada
a impossibilidade de a criança permanecer junto à sua família de origem, a
adoção, como forma de colocação em família substituta, surge como uma
possibilidade de reconstrução do direito à convivência familiar. Ligar o
abandono à adoção é uma possibilidade de vida para o adotante e para o adotado.
Como refere JOÃO BATISTA VILLELA[7], “a consciência de que a paternidade é opção
e exercício, e não mercê ou fatalidade, pode levar a uma feliz aproximação
entre os que têm e precisam dar e os que não têm e carecem receber”.
A
verdadeira filiação não é determinada pela “descendência
genética, e sim os laços de afeto que são construídos, em especial na adoção”[8]. A razão maior da paternidade se funda “no desejo humano, essencial, de amar e ser
amado”[9]. Segundo MARIA CLAUDIA CRESPO BRAUNER, “esboça-se, a partir das disposições do
Estatuto da Criança e do Adolescente, uma perspectiva maior que pode valorizar
o elemento afetivo da filiação como um elo garantidor do interesse superior da
criança, contrapondo-se ao critério da determinação biológica”[10].
Com freqüência, perguntam-nos se os filhos adotivos não estariam mais
vulneráveis a se tornarem “filhos problemas”. A resposta vem em trabalho
desenvolvido por MARIA LUCRÉCIA SCHERER ZAVASCHI:
“...não há elementos que autorizem
a conclusão de que os problemas eventuais dos adotados sejam decorrentes da
adoção em si. Por outro lado, as evidências colhidas no estudo do relacionamento
pais-filhos na adoção levam à conclusão geral de que
os comportamentos peculiares dos pais adotivos mantêm uma estreita relação com
a situação atual das crianças adotadas”[11].
A
adoção de uma criança ou adolescente, mais do que uma questão jurídica,
constitui-se em uma postura diante da vida, em uma opção, uma escolha, um ato de amor, que tem sua raiz no desejo,
na vontade, envolvendo não só uma pessoa, mas, no mínimo, um grupo de pessoas
ou grupos familiares. Sentimentos variados afloram em seus protagonistas.
Sentimentos de rejeição, de perda, de dor, de alegria, de expectativa, de vida
e de esperança. Por esta razão, pensamos que nós, profissionais do direito,
necessitamos compreender as circunstâncias que acompanham a opção de quem
decide adotar uma criança e de quem espera, ansiosamente, a possibilidade de
uma família substituta.
“A história da família é longa, não
linear, feita de rupturas sucessivas”[12], estabelecendo entre adotante e adotado uma
relação de paternidade e filiação, onde “os
laços de afeto se visibilizam desde logo,
sensorialmente, superlativando a base do amor verdadeiro que nutrem entre si
pais e filhos”[13]. Ilustrativa se mostra a
declaração de TIZUKA YAMAZAKI, publicada no Jornal O Globo (01/11/92),
referindo-se a sua experiência de mãe adotiva:
“Cresci muito com essa experiência.
Sou muito mais humilde. Vejo o mundo de outra forma, com mais atenção e
delicadeza; e descobri que foi Fábio, muito mais do que eu, que fez um esforço
descomunal para que tudo desse certo”[14].
Entre
as inúmeras mudanças introduzidas pela Carta de 1988, podemos afirmar que “a adoção passou por uma
séria revisão em relação ao sistema jurídico anterior, exigindo uma
rigorosa fiscalização pelo Poder Judiciário, mas, ao mesmo tempo, abrindo
inúmeras possibilidades e novas oportunidades para os interessados”[15].
Cabe
referir que, ao lado das mudanças legislativas, os avanços na área da genética
e da inseminação artificial também vieram abrir novas alternativas à realização
da paternidade, deixando de figurar a adoção como único meio capaz de
possibilitar às famílias inférteis a construção do vínculo parental. MARIA
CLÁUDIA CRESPO BRAUNER aponta:
“O recurso à adoção se apresenta
como uma das maneiras de realização do desejo de ter um filho, sem que exista a
gravidez da mãe, pelo menos do ponto de vista biológico, pois do ponto de vista
psicológico este filho já existe, é primeiramente imaginário, no espírito dos
pais e o processo adotivo implica em fazer a passagem entre o filho imaginário
e o filho real, que assumirá este papel, de forma definitiva na vida do
adotante”[16].
É
possível sentir os efeitos da mudança legislativa?
Ainda
vislumbramos um abismo entre o mundo que queremos, expresso através do Estatuto
da Criança e do Adolescente, e o mundo que temos. Quanto maior a distância entre os dois mundos, o mundo idealizado pelo
legislador infanto-juvenil de 1990 e o mundo real, maiores serão as situações
de risco enfrentadas pela população infantil. Conseqüentemente, maiores
recursos e investimentos serão exigidos do poder público e dos profissionais
que atuam na área. Se tivéssemos que responder à pergunta, diríamos que já é
possível sentir os efeitos da mudança. Estamos, de um modo geral, enquanto
sociedade, mais atentos, mais alertas para os abusos e a violência que
praticamos contra a criança.
Nas
últimas décadas, conhecimentos referentes ao desenvolvimento do bebê e da
criança, antes restritos, por exemplo, à área da saúde e educação, encontram
espaço nos meios de comunicação, assim como discussões e debates sobre a
adoção, contribuindo para a mudança de cultura e melhora da qualidade de vida.
GUILHERME
OLIVEIRA já afirmara que, “infelizmente,
as boas leis não chegam para garantir boas estatísticas e muito menos para
garantir felicidade”[17]. O alerta vem confirmado,
no Brasil, com a chegada do Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem
permitido, na última década, o levantamento de dados, em sua maioria,
desfavoráveis à criança.
É
possível que, após a vigência da nova lei, tenhamos conseguido conhecer um
pouco mais da realidade que nos circunda, permitindo uma tomada de consciência,
por parte da sociedade, das diferentes formas de violência que, historicamente,
praticamos contra as nossas crianças. Mesmo sabendo do poder limitante da lei,
temos como inegável que o Estatuto da Criança e do Adolescente, nos dias
atuais, é um instrumento de transformação social e de garantia do princípio da
dignidade humana.
Na
vigência do Código de Menores, as disposições legais que regiam a adoção de criança
eram outras. Tinham o ranço da Doutrina da Situação Irregular. Protegiam mais
os interesses dos adultos. Buscavam-se crianças para atender às exigências dos
adultos. A extinção e proibição de qualquer discriminação sobre a filiação,
consagrada no art. 227, parágrafo 6º, da Constituição Federal, assim como os
novos princípios trazidos com o Estatuto da Criança e do Adolescente,
provocaram mudanças profundas no instituto da adoção.
Hoje,
o panorama legal é outro. As regras estão a serviço da proteção da criança. As
autoridades têm a responsabilidade de buscar sempre o melhor interesse da
criança e os reflexos da norma atingem a todos, inclusive o poder público, como
se vê da regra do art. 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que
estabelece:
“A falta ou
a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda
ou a suspensão do pátrio poder.
Parágrafo único. Não existindo
outro motivo, que por si só autorize a decretação da medida, a criança ou o
adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá
obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio.”
A disposição legal, introduzida pelo art. 23 do Estatuto da
Criança e do Adolescente, é de fundamental importância, uma vez que já se
relatou “que os pais, representantes
maiores do meio ambiente no início da vida, submetidos à violência crônica, à
pobreza e à falta de emprego, sentem-se frustrados e desesperançados, podendo
tornar-se incapazes de cuidar bem de seus filhos”[18], observando-se que os
pais adotivos, quer venham do estrangeiro ou não, são, em geral, “menos miseráveis do que os genitores da
criança”[19].
Em
nossa trajetória profissional, não recordamos a existência de processo de
destituição ou suspensão do pátrio poder envolvendo família de classe média.
Todos os feitos, sem exceção, abrangem famílias pobres, por vezes, paupérrimas.
A
colocação de uma criança em família substituta não pode preceder de trabalhar
com os vínculos afetivos, num primeiro momento com a família natural, porquanto
“o desenvolvimento pleno de um bebê só
poderá ocorrer se contar com o amor de seus pais, que vai-se
expressar como uma íntima relação que os estudiosos chamam de apego”[20].
Esgotadas as possibilidades de manter a criança junto aos pais biológicos, há
que se trabalhar as relações de confiança e de afeto da criança com os novos
pais, guardiães ou tutores, recomendando-se a intervenção interdisciplinar, uma
vez que a decisão judicial não tem, por si só, o condão de sanar os conflitos
afetivos dos envolvidos.
Colhemos,
da experiência, com muito pesar, a constatação de que a fragilidade dos
vínculos afetivos entre os pais e os filhos passa a ser fator desencadeante e
facilitador do abandono e da negligência. O enfrentamento do problema, por
certo, não está unicamente na alçada do Judiciário. O desafio é bem mais amplo,
passando inclusive pelo adequado planejamento e execução das políticas
públicas, que privilegiem o fortalecimento dos vínculos entre a mãe e o bebê,
mesmo antes do nascimento, pois “é
condição vital que o bebê tenha um pai e uma mãe ou outra pessoa que os
substitua, caso contrário, não sobreviverá”[21].
Pesquisa
de que participamos, realizada em Porto Alegre e 14 municípios da região
metropolitana, envolvendo os registros de violência contra crianças e
adolescentes até 14 anos de idade, registrados junto aos Hospitais, Conselhos
Tutelares, Delegacias de Polícia e Ministério Público, no período de maio/97 a
maio/98, apontou que, em 80% dos casos, a violência ocorreu na residência da
vítima, sendo que, em todos os tipos de abuso constatados (físico, psicológico,
sexual e negligência), os pais biológicos superaram, quanto à autoria, em
muito, os adotivos (74,5% para 25,5%)[22].
No
Rio Grande do Sul, aproximadamente 900 crianças e adolescentes se encontram
abrigados, segundo dados da Secretaria Estadual do Trabalho, Cidadania e
Assistência Social, divulgados em 19/10/01, sendo que 50% da
população permanece cinco ou mais anos institucionalizada.
Em
2001, em Porto Alegre, segundo dados do Juizado Regional da Infância e
Juventude, realizaram-se 52 adoções (45 adoções nacionais e 7 internacionais),
número inferior ao período de 2000, quando a Equipe de Adoção colocou 64
crianças em família substituta, através da adoção (51 nacionais e 13
internacionais).
Se, de um lado, se mostra
essencial garantir a regularidade e a segurança dos procedimentos jurídicos
envolvendo a criança, de outro, parece indiscutível que a morosidade é fator
que desprestigia a atuação das instituições, comprometendo a sua eficácia e
efetividade, levando-nos, a uma constante e necessária avaliação do nosso agir.
Conciliar rapidez e competência no exame de casos que envolvam, especialmente,
destituição do pátrio poder e colocação em família substituta é um desafio que
nos é imposto neste nascer de século.
É possível, segundo a sistemática
vigente, a adoção de nascituro?
Respeitando posições divergentes,
sustentamos a sua inviabilidade. A Convenção de Haia, de 29 de maio de 1993
(Decreto Legislativo n. 63, de 19.4.95), relativa à adoção internacional,
impede, implicitamente, a sua realização, ao referir, em seu artigo 4º, letra
c, n. 4, a necessidade de as autoridades competentes do Estado de origem assegurarem-se de “que o consentimento da mãe, quando
exigido, tenha sido manifestado após o nascimento da criança”.
Outro aspecto relevante
envolvendo a adoção de crianças de tenra idade reside na decisão de revelar ao
filho a sua origem.
Mesmo antes da vigência da Lei n.
8.069/90, já recomendavam os especialistas a adoção
pelos pais de uma postura de franqueza com o filho, não mantendo em sigilo
fatos importantes de sua vida. A revelação da verdade, se bem conduzida,
contribuirá para o fortalecimento dos vínculos do novo grupo familiar,
favorecendo a confiança e o respeito entre pais e filhos, valendo lembrar que “as
crianças que conhecem seu status adotivo estão em melhores condições que as
demais”[23].
E a licença-maternidade?
Em 15/4/2002, a Lei n. 10.421,
que acrescentou novo dispositivo à CLT, estendeu o
benefício às mães que adotarem crianças até os oito anos de idade, deixando em
condições de desigualdade exatamente as situações mais difíceis, envolvendo
crianças adotadas com idade superior aos 8 anos. A nova lei, ao que se
depreende, nasce eivada de inconstitucionalidade, pela evidente discriminação
no tratamento dispensado às mães e aos filhos.
Outro aspecto envolvendo a
adoção, refere-se à possibilidade, reconhecida pelo STJ[24],
de os adotados ingressarem com ação de investigação de paternidade para fins de
conhecer os verdadeiros pais biológicos, sem desconstituir a adoção. No mesmo
sentido decidiu, recentemente, em 15/5/02, a Sétima Câmara Cível do Egrégio
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento da Apelação Cível n.
70004148490, em que foi Relatora a Desª. Maria
Berenice Dias.
Como se constata, a Doutrina da
Proteção Integral vem, paulatinamente, operando significativas mudanças na
forma de pensar e agir do operador do direito, do profissional que se dedica à
criança e da sociedade como um todo.
Cada vez mais tem
sido abertas as portas para a adoção de crianças com idade superior a
dois anos, fruto de uma conscientização que vem ganhando lugar na atualidade, a
exemplo do trabalho realizado pela organização não-governamental Instituto
Amigos de Lucas.
3. O novo código civil frente à adoção
O novo Código Civil (arts. 1.618 – 1.629), em vigor desde
janeiro de 2003, em linhas gerais, não inova em matéria de adoção de
criança, reafirmando as disposições contidas na Lei n. 8.069/90. Acrescenta, às
duas hipóteses em que o consentimento dos pais é dispensado com relação à
adoção do filho, elencadas no art. 45 do ECA (pais desconhecidos e/ou destituídos do pátrio
poder), os casos de infante exposto; de pais desaparecidos; de pais destituídos
do poder familiar, sem nomeação de tutor, além das hipóteses de órfão não
reclamado por qualquer parente, por mais de um ano (arts.
1621 e 1624 do NCCB). Embora a imprecisão das novas disposições, especialmente
no que se refere à definição jurídica, o que, ao certo, trará dificuldades de
interpretação, a Doutrina da Proteção Integral, introduzida
no nosso ordenamento jurídico, a partir do art. 227 da Constituição
Federal de 1988, como não poderia deixar de ser, permanece assegurada.
Inova, ainda, o novo Código
Civil, ao afirmar que o consentimento dos pais para com a adoção, previsto no
“caput” do art. 1621 do NCC, é revogável até a publicação da sentença
constitutiva da adoção. O dispositivo poderá gerar insegurança aos pretendentes
à adoção, bem como à criança, em razão da possibilidade conferida aos pais
biológicos de voltarem atrás em sua decisão, em momento em que o adotando já se
encontra, muitas vezes, na guarda dos requerentes à adoção.
Matéria que suscitará
questionamentos, ao certo, será o limite mínimo de idade para o adotante.
Enquanto o Estatuto da Criança e do Adolescente fixa em 21 anos a idade mínima
para o pretendente à adoção, o novo Código Civil refere que “só a pessoa maior
de 18 (dezoito) anos pode adotar” (art. 1618). Com a mudança do marco da
maioridade civil, caberá à jurisprudência um posicionamento capaz de dirimir os
eventuais conflitos que surgirem a partir de 2003.
Pensamos que melhor seria o novo
Código Civil ter silenciado quanto à adoção de criança e adolescente, deixando
ao Estatuto da Criança e do Adolescente o regramento da matéria, como vinha
ocorrendo desde 1990.
Conclusão
O instituto da adoção, ao longo
do tempo, sofreu profundas modificações. A partir de 1988, com a introdução da
Doutrina da Proteção Integral no nosso sistema jurídico, as disposições legais
passam a valorizar o melhor interesse da criança, em atenção à Convenção
Internacional dos Direitos da Criança. Em 1990, com o advento da Lei n. 8.069,
de 13 de julho, a adoção de uma criança ou adolescente, ao lado da guarda e da tutela, passa a ser uma medida de
proteção (art. 101, inciso VIII, do ECA), exigindo sempre a intervenção do
Poder Judiciário.
A criança apta à adoção, não
raras vezes, tem uma trajetória de vida marcada por inúmeras omissões, passadas
de geração em geração, transcendendo o espaço familiar para abarcar também as
políticas públicas e todo o funcionamento do sistema que se vê muito
atrapalhado para lidar com o abandono, a negligência e a violência familiar,
que acabam por comprometer o direito à convivência familiar.
A experiência profissional
tem-nos permitido identificar, quando tratamos da adoção de uma criança,
fatores que caminham na contramão do princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana, valendo citar, a título exemplificativo: a) a fragmentação que
se estabelece na comunicação entre os profissionais que atuam nas diversas
instâncias do sistema protetivo, como por exemplo,
Conselho Tutelar, Abrigos, Ministério Público e Poder Judiciário; b) a
dificuldade de acompanhar o andamento
dos casos, no momento em que são transferidos para outras esferas de atuação,
como por exemplo, quando o expediente passa do Conselho Tutelar para o
Ministério Público; c) a lentidão na tramitação dos feitos judiciais que visam
assegurar a proteção integral àqueles que ainda não atingiram 18 anos; d) a
carência de laudos interdisciplinares, nos processos de destituição do pátrio
poder e de adoção; e) a inexistência de plano terapêutico de trabalho, visando
ao restabelecimento dos vínculos da criança com os pais biológicos, nos
processos de suspensão ou destituição do pátrio poder; f) a escassez de
programas de atendimento à família em situação de vulnerabilidade; g) a
morosidade na comunicação ao Judiciário,
pelo dirigente de abrigo, de fatos importantes da vida da criança abrigada; h)
a falta de advogados, Defensores Públicos ou mesmo estagiários, supervisionados
por Universidades, encarregados de peticionar em defesa dos direitos da criança
colocada em abrigo e, por via de conseqüência, afastada do convívio familiar.
Urge que o
avanço constitucional, representado pelo art. 227 da Carta de 1988, seja
cumprido pelos integrantes do sistema, a fim de assegurar, às crianças e aos
adolescentes brasileiros, o princípio da dignidade humana.
NOTAS
[1]MARTINS COSTA, Tarcisio José. Adoção Transnacional, um estudo sociojurídico e comparativo da legislação atual. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 39
[2]JERUSALÉM, BÍBLIA DE cap. II, vers.
10. Porto Alegre: Paulinas, 1991.
[3]ALVES, João Luiz. Código Civil da República dos Estados Unidos do Brasil. 1.ed. Rio
de Janeiro: F. Briguiet e Cia., 1917, p. 288.
[4]MARTINS COSTA, Tarcisio José. Op. cit., p. 64.
[5]ZAVASCHI, Maria Lucrécia; COSTA,
Flávia; BRUNSTEIN, Carla. O bebê e os pais. In: EIZIRIK, Cláudio Laks; KAPCZINSKI, Flávio; BASSOLS, Ana Margareth Siqueira. O ciclo da vida humana: uma perspectiva
psicodinâmica. Porto Alegre: Artmed, 2001, p.
46.
[6]BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Apelação Cível n. 70003044427, Sétima Câmara Cível, Relator Des. Luiz Felipe
Brasil Santos, 22 de maio de 2002, Porto Alegre.
[7]VILLELA, João Batista. Desbiologização da Paternidade. In:
Programa de Atualização em Direito da Criança, texto n. 6, ABMP.
[8]FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família. Rio de Janeiro: Renovar,
1999, p. 219.
[9]FREITAS, Lúcia Maria de Paula. Adoção - Quem em nós quer um
filho? Revista
Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v.
3, n. 10, jul./set. 2001, p. 150.
[10]BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Novos contornos do direito
da filiação: a dimensão afetiva das relações parentais. Ajuris, n. 78, junho 2000, p. 207.
[11]ZAVASCHI, Maria Lucrécia Scherer. Aspectos da relação pais-filhos
na adoção. Revista de
Psiquiatria, v. 1, n. 3 e 4, p. 38.
[12]PERROT, Michelle. O nó e o ninho.
Revista Veja, n. 25,
São Paulo: Abril, 1993, p. 75.
[13]216. FACHIN, Luiz
Edson. Op. cit., p
[14]FREIRE, Fernando (org.). Abandono e adoção: contribuições para uma cultura da adoção. Curitiba:
Terra dos Homens, 2001, p. 89.
[15]PEREIRA, Tânia Maria. Infância e Adolescência: uma visão histórica de sua proteção e jurídica
no Brasil. In Programa de Atualização em Direito da Criança, Texto n.
5, ABMP.
[16]BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Nascer com dignidade frente
à crescente instrumentalização da reprodução humana. Revista do Direito, Santa
Cruz do Sul: EDUNISC, n. 14, jul./dez. 2000, p. 15.
[17]ZAVASCHI, Maria Lucrécia; COSTA,
Flávia; BRUNSTEIN, Carla. Op. cit., p. 45.
[18]FONSECA, Claudia. Caminhos da Adoção. São Paulo: Cortez Editora, 1995, p.140.
[19]Idem, p. 43.
[20]ZAVASCHI, Maria Lucrécia; COSTA,
Flávia; BRUNSTEIN, Carla. Op. cit., p. 41/42.
[21]KRISTENSEN, Christian Haag;
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adolescentes na Grande Porto Alegre. In:
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Doméstica. [s.l.]: AMENCAR, 1999, p. 115.
[22]ZAVASCHI, Maria Lucrécia Scherer. Op. cit., p. 38.
[23]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.
127541, Terceira Turma, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, 10 de abril de 2000, Rio
Grande do Sul, DJU 28/08/00, p. 72, RSTJ 139/241.
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