A CRIANÇA
COMO PRIORIDADE
Serviços e rede de serviços
de proteção especial às crianças e aos adolescentes
Este
singelo e despretensioso escrito, alinhavado por um aprendiz que há anos vem se
preocupando com a lamentável situação em que nos encontramos neste país, neste
Brasil campeão de desrespeito aos mais elementares direitos humanos, onde se
cultiva com rara competência a malandragem, a violação do direito alheio como
um triunfo do opressor, visa apenas mais uma reflexão sobre aquilo que podemos
fazer em benefício da melhoria de nossa sociedade, da qualidade de vida,
tomando como assunto principal as providências que A
TODOS NÓS INCUMBE POR FORÇA DE LEI E DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL e pelo estudo
histórico do movimento revolucionário que se convencionou chamar de ILUMINISMO,
das doutrinas religiosas e pacifistas e do culto à defesa e proteção dos
direitos humanos.
Temos de
pensar maior, na atuação coletiva, fazendo, construindo, provocando ações e
projetos de atendimento mais amplos, pois a meu ver é muito pouco o que se faz
no âmbito do Poder Público, das Varas da Infância e da Juventude atualmente,
não obstante o denodado esforço dos juízes e juízas, dos profissionais que
nelas atuam, Promotores de Justiça, psicólogos, assistentes sociais, etc.
Muito se
fala e é teorizado em relação ao tema da criança como especial objeto da
atenção do legislador, do educador, da medicina e de outras disciplinas.
Todavia, em termos práticos, de efetiva implementação de políticas de atendimento
aos jovens, muito pouco se faz em nossa sociedade.
Esta é a
situação, de quase completo descaso para com a complexa problemática da
denominada proteção integral, em que vivemos e que vem gerando insuportáveis
taxas de violência infanto-juvenil, tendo como causas, dentre outras, a falta
de estrutura familiar, a desinformação e o despreparo dos pais, a má qualidade
do ensino público obrigatório, a inadequação dos educadores no trato com o
jovem, a ausência de vontade e de empenho das autoridades públicas para um
completo e duradouro projeto de atendimentos dos direitos da criança e do
adolescente, dentre outras causas não menos importantes.
Não custa
lembrar, ao menos em linhas gerais, o conteúdo dos artigos 3º, 4º e 5º do
Estatuto da Criança e do Adolescente, escritos como corolários do art. 227 da
Constituição Federal, que estabelece como absolutamente prioritários os
direitos da criança e como absoluta prioridade da família, da sociedade e do
Estado o dever de assegurar tais direitos. E dentre os órgãos do Estado está a obrigação da Justiça da Infância e da Juventude de, por
seus integrantes, pelo juiz, pelo promotor de justiça, pelos profissionais que
a integram, dar atenção prioritária à proteção integral da criança e do
adolescente.
Sempre cabe
destacar a atuação que nós, juízas e juízes, temos de enfrentar nesta área, da
qual depende a formação de uma nação desenvolvida. Como nós podemos atuar,
enquanto autoridades públicas, como membros do Poder Judiciário, no
desenvolvimento tanto de ações isoladas quanto de políticas articuladas de
proteção à criança e ao adolescente?
A defesa de
todos os direitos das crianças e dos adolescentes, tais como direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, é
também de nossa responsabilidade, é dever prioritário da população e do
magistrado, a quem cabe colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227,
Constituição Federal).
Para quem
ainda não está vivenciando em sua plenitude a conscientização de seus deveres
para com a defesa dos direitos da criança e do adolescente, basta ser lembrada
a redação do artigo 4º do ECA, que explicita, em seu caput e no § único, as garantias para
que essa prioridade seja assegurada.
É do senso
comum o mandamento que resulta da combinação de vários destes dispositivos, de
que cabe a todos nós, sociedade, família, comunidade e Poder Público priorizar
a defesa e a proteção dos direitos da criança e do adolescente,
assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, toda as oportunidades e
facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico,
mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade
(ECA, arts. 3 e 4).
Estamos,
nós todos, lutado com todas as forças para que a criança e o adolescente tenham
seus direitos atendidos? Quais as ações e políticas que temos desenvolvido em
benefício da criança e de sua família? O que temos feito em relação a temas,
como por exemplo, o da paternidade responsável?
São
indagações que nos levam a uma reflexão autocrítica e crítica de nossa
sociedade, que muito alardeia mas pouco faz em benefício do desenvolvimento
sadio da criança e do adolescente e sofre na carne as
conseqüência desse descaso de décadas, especialmente com o
recrudescimento da miséria e da violência.
Se um dos
principais direitos da criança, senão o mais importante deles, é o direito à
convivência familiar a que se refere o art. 19 do ECA,
quais as políticas públicas e os serviços, públicos ou particulares, de
atendimento à família existentes em nossa comunidade?
Não cabe
aqui, dada a complexidade e amplitude do tema, abordar questões relativas a política e a projetos de atendimento, mas apenas
referentes ao assunto específico desta palestra, pertinentes aos serviços
especiais de proteção a que alude o art. 87, III, do Estatuto.
Esta é a
limitação que existe, por óbvias razões de tempo, ao assunto de que trataremos
nesta oportunidade, pelo simples fato de que é inesgotável o tema que tem como
objetivo principal os direitos da criança elencados na Constituição, na
legislação infraconstitucional e em nossos espíritos de cidadãos mais ou menos
impregnados de doutrina humanista.
Toda
criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua
família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência
familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de
substâncias entorpecentes. (ECA, art. 19)
Na
interpretação e na execução dos mandamentos deste sensato dispositivo legal é
que reside um dos maiores tormentos que aflige a atuação daqueles que militam
na área do atendimento à criança e ao adolescentes,
principalmente aqueles que trabalham com o instituto do abrigamento e no
atendimento a famílias.
Certos
exageros, ou melhor dizendo, alguns enfoques não muito sensatos, muitas vezes
recheados de preconceitos morais e religiosos, acabam por fazer letra morta
dessa regra que constitui um dos alicerces do Estatuto da Criança e do
Adolescente, nosso lindo diploma legislativo que veio, em verdade,
consubstanciar a melhor e atualíssima doutrina da proteção integral.
Alguns
entendidos dizem que o direito da criança e do adolescente à convivência
familiar é exigível apenas de seus pais, naturais ou adotivos. Isto é
verdadeiro, mas apenas em parte. Evidentemente que o direito da criança à
convivência familiar depende da vontade, da disposição, do desejo dos pais em
terem consigo seus filhos. Nesse sentido temos a conclusão que basta a recusa
dos pais, ou pela má vontade de um ou de ambos, que estará prejudicada a
convivência familiar no seio da família biológica, devendo ser buscada a convivência
em família substituta. Não. No meu entender esse entendimento é equivocado.
É sabido que o direito à convivência familiar não se restringe ao direito de estar e de ser criado e educado pelos pais. Quantos de nós fomos criados e educados por um avô, por uma avó, por tias ou tios ou por outros parentes mais distantes? Faço aqui o elogio àqueles, profissionais do Poder Judiciário ou não, que efetivamente têm praticado, exercitado a defesa desse direito da criança e do adolescente, buscando a solução além dos pais biológicos e depois de esgotadas as tentativas de estruturação familiar para o acolhimento do jovem no seio da própria família natural.
Não cabe
aqui desenvolver discurso e estabelecer conceitos sobre a importância da
família para o desenvolvimento do ser humano, para a formação
física, psicológica, espiritual e moral da criança e do adolescente, e
também do adulto, matéria tão debatida e do conhecimento de quem tenha um
mínimo de formação nas áreas de psicologia, de serviço social, de pedagogia, no
campo jurídico e em outras disciplinas afins.
O certo é
que a legislação veio tornar jurídico o que antes era somente científico,
impondo assim essa responsabilidade não somente aos cientistas, psicólogos,
assistentes sociais, pedagogos, mas também a juízes, a promotores de justiça e
a todos os agentes públicos, à sociedade, à família, a todos enfim.
Entrando
agora na matéria específica de nossa discussão, passemos então à área dos
serviços especiais de proteção.
A política
de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um
conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da União, dos
Estados, do distrito Federal e dos Municípios (art. 86).
Prevê o
art. 87 que são linhas da ação política de atendimento:
I -
políticas sociais básicas;
II -
políticas e programas de assistência social, em caráter supletivo, para aqueles
que dela necessitem;
III-
serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas
de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão;
IV -
serviço de identificação e localização de pais, responsável, crianças e
adolescentes desaparecidos;
V -
proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos da criança e do
adolescente.
É tema de
estudo, nesta oportunidade que me é dada, as disposições do inciso III deste
art. 87, que têm como destinatários as pessoas menores de 18 anos de idade
vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão e
seus agressores, dentro e fora da família.
Os Serviços Especiais de Proteção e as Medidas Específicas de Proteção à Criança e ao Adolescente no ECA
Art. 87, III, c.c. arts. 101 e 129.
Ao lado e
em complemento às políticas sociais básicas e das políticas e programas
supletivos a que se referem os incisos. I e II do art. 87, a lei prevê os
serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial aos menores
vitimizados por negligência, maus-tratos, exploração,
abuso, crueldade e opressão (inciso. III).
Verificada a situação do art. 98 (ECA), de violação de direitos por a) ação ou
omissão da sociedade ou do Estado, b) por falta, omissão ou abuso dos pais ou
responsável, c) em razão da própria conduta da criança ou do adolescente, está
caracterizada a necessidade de tomada de medidas específicas de proteção em
relação ao jovem vitimizado, que pode referir-se tanto ao atendimento ao menor
como a seus familiares e ao agressor.
Considerando
a condição do menor de 18 anos de idade, temos como exemplos de destinatários
da norma legal a criança e o adolescente, como exposto na edição do ECA patrocinada pelo antigo CBIA:
- vítima de
abandono e tráfico;
- vítima de
abuso, opressão, negligência e maus tratos na família;
- que fazem
da rua o seu espaço de luta pela sobrevivência ou de moradia;
- vítimas
do trabalho abusivo, explorador e ilegal;
-
envolvidos no uso e tráfico de substância ilícita;
-
envolvidos em prostituição;
- em
conflito com a lei em razão de cometimento de ato infracional (criança);
- em outras
circunstâncias que impliquem riscos à sua integridade física, psicológica ou
moral.
Embora a
legislação dê a denominação de medida de proteção somente àquelas que têm como
objeto os cuidados destinados à criança e ao adolescente (art. 101), têm
igualmente caráter protetivo, também com nítido conteúdo preventivo e/ou
terapêutico, aquelas preconizadas no art. 129, destinadas aos adultos que, por,
por ação ou omissão, criaram ou permitiram que se criasse a situação de
violação dos direitos reconhecidos e assegurados na lei e na doutrina da
proteção integral.
Quais, em
linhas gerais, as medidas específicas de proteção destinadas ao menor vítima de
negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão? São aquelas
do art. 101.
E quais são
as medidas aplicáveis aos pais ou ao responsável pelo menor? Aquelas do art.
129 e mais as normas de repressão previstas no próprio ECA
e na legislação penal.
Tomada a
medida protetiva considerada melhor, é de rigor o prosseguimento do estudo do
caso, do acompanhamento e aprofundamento do diagnóstico social da família,
daquela mãe ou das pessoas que podem ser consideradas membros da entidade
familiar, e do diagnóstico psicológico dessas pessoas, também com o
acompanhamento do desenvolvimento da criança e do adolescente, através de
entrevistas e de relatórios da entidade de atendimento, tudo para em
determinado momento, num futuro imediato ou próximo, seja cumprido estritamente
o que está determinado no art. 19 do ECA, a fim de que
seja assegurada a sadia convivência familiar e comunitária, com a
reestruturação da família.
Existem
alguns trabalhos, dentre os quais um levantamento realizado pela entidade Pró
Mulher, Família e Cidadania, mediante convênio com a Secretaria de Estado da
Assistência e Desenvolvimento Social, a respeito da demanda e dos recursos da
Zona Oeste do Município da Capital, no qual consta a relação das entidades de
atendimento às vítimas da violência.
Existe
também uma relação elaborada pela Pastoral do Menor, da Arquidiocese, das
entidades vinculadas a ela. Sei que outros trabalhos foram feitos com a mesma
finalidade, de divulgar os dados das entidades de atendimento ao menor na
Capital.
Todavia,
não obstante a iniciativa profícua de organizações governamentais e
não-governamentais, não se concretizou ainda um conjunto sistematizado de
informações relativas ao trabalho e ao procedimento dessas entidades de
atendimento, especialmente em relação aos chamados serviços especiais, de
atendimento à criança e ao adolescente vitimizado, destinado, esse trabalho de
informação, a subsidiar a formação de uma rede coesa que possa ser assim
considerada.
Tenho
participado de alguns encontros de especialistas cujo propósito é a discussão
de como formar uma eficiente rede envolvendo as entidades de atendimento à
criança e ao adolescente. Sou quase leigo no assunto, mas ouso trazer a este
seleto auditório uma reflexão minha para a análise crítica de vocês.
O que é
rede? Um conjunto de pessoas, jurídicas e físicas, que, unidas num mesmo
desiderato, em comunhão de propósitos, esteja em articulação para a otimização
de seus serviços e de finalidade a que se propõem?
Na
definição do mestre Aurélio, rede é, no sentido figurado, o conjunto de
estabelecimentos, agências, ou mesmo de indivíduos, pertencentes a organização que se destina a prestar determinado serviço.
Vejo, em
acréscimo a este conceito, que rede de serviço pressupõe a criação de um
sistema articulado de informações a respeito da dinâmica e do funcionamento de
seus diversos componentes, destinado, esse sistema, a
propiciar o trabalho integrado de atendimento a suas finalidades.
A formação
de uma rede de atendimento à pessoa, seja na área da saúde, da educação, de
defesa de direitos, etc., implica na sistematização dessas informações e no
gerenciamento dos dados coletados, cuidando primordialmente de sua divulgação
eficiente. Um dos meios para que se atinja essa eficiência é a publicação das
informações e a promoção de formas de integração dos serviços e das entidades
através de visitas e encontros de seus dirigentes.
E a “rede”
é a manutenção, no tempo, dessa integração.
Aqui,
então, cabe um apelo a todos nós, interessados na defesa e no aprimoramento do
atendimento ao menor, para a criação da rede na Capital e em todo o Estado de
São Paulo, o que, no meu entendimento, somente poderá ser conseguido com a
efetiva implementação de um projeto governamental, que na realidade já existe e
é denominado SIPIA - Sistema de Informação para a Infância e a Adolescência.
O SIPIA
propõe a criação de uma sistema de registro e
informações sobre a garantia dos direitos fundamentais preconizados no ECA, como
um poderoso instrumento para a ações eficiente dos Conselhos Tutelares, dos
Conselhos de Direitos, das Varas da Infância e da Juventude e das próprias
entidades de atendimento, dentre os diversos usuários.
É um
sistema informatizado desenvolvido pela Secretaria Nacional dos Direitos
Humanos e de seu Departamento da Criança e do Adolescente com a cooperação
técnica do CONDECA - Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do
Adolescente, da Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social - SADS
e da PRODESP, destinado a:
-
padronizar as informações em nível nacional;
- facilitar
o registro dessas informações;
- agilizar
e automatizar o processo decisório;
- registrar o histórico de cada caso;
-
possibilitar o intercâmbio das informações
Tem, o SIPIA, três objetivos primordiais:
-
possibilitar a mais objetiva e completa leitura da queixa ou da situação da
criança ou adolescente;
-
encaminhar a aplicação da medida mais adequada para sanar a situação de
violação de direitos;
- subsidiar
as diversas instâncias - Conselho de Direitos e autoridades - na formulação e
gestão de políticas de atendimento
Conclusão
O que
concluo dessa curta mas rica experiência de dois anos à frente de uma Vara da
Infância e da Juventude da Capital de São Paulo, mas de longa data ocupado com
o tema relativo à educação e à formação da juventude, é que não obstante a
notória falta de recursos humanos e materiais, o Poder Judiciário vem fazendo
um trabalho, de forma isolada, sem adequada articulação com os outros raros
recursos do Estado e da comunidade, sem método, e principalmente sem o
reconhecimento, dentro e fora da instituição judiciária, da importância da
atividade de atendimento jurisdicional à criança e ao adolescente e da riqueza
do cabedal adquirido nestes 9 anos de vigência do Estatuto da Criança e do
Adolescente, e porque não dizer, resultado também da experiência anterior,
adquirido às custas da dedicação de seus profissionais no trato diário com a
crua realidade social em que vivemos.
Temos muito a dar, a construir, mas para tanto precisamos de
recursos humanos e materiais, treinamentos, diálogo com estudiosos e
profissionais das mais diversas áreas e principalmente de liberdade e de
incentivo moral, para participarmos de um movimento de sensibilização da
sociedade e dos governantes mostrando-lhes como pode ser nossa contribuição
para o desenvolvimento das mais diversas ações de atendimento à família, ao
jovem e ao adolescente.
São Paulo,
21 de setembro de 1999.
NOTAS SOBRE O AUTOR:
[*] Juiz de Direito da Vara da Infância e da Juventude do Foro Regional de Pinheiros - São Paulo.