EXMO.
SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA ª VARA DA
FAZENDA PÚBLICA DA CAPITAL
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, através das Promotorias de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e Juventude da Capital e da Cidadania, pelos Signatários, vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, para, nos termos dos arts. 129, inc. III da Constituição Federal, 25, inc. IV, a da Lei 8.625/93, 103, inc. VIII da Lei Complementar Estadual 734/93 e 5º da Lei 7.347/85, ajuizar AÇÃO CIVIL PÚBLICA com pedido de tutela antecipada em face da FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, pelos motivos de fato e de direito a seguir aduzidos.
I – DOS
FATOS
1. O Governo do Estado de São Paulo, por meio do Decreto
nº 27.270, de 10 de agosto de 1987, instituiu, no âmbito da rede Estadual de
Ensino, os Centros de Estudos de Línguas - CELs, com o intuito de proporcionar
aos alunos o desenvolvimento de novas formas de expressão, enriquecer o
currículo das escolas públicas estaduais, superando a situação de monolingüismo
vigente, possibilitar o acesso ao saber e ampliar o campo profissional, tendo
em vista as necessidades atuais do mercado de trabalho.
2. O art. 2º do referido Decreto estabeleceu competir à
Secretaria de Educação a implantação e instalação gradual dos Centros de
Estudos de Línguas.
3. Tendo a incumbência de formular normas complementares
para a devida execução do Decreto em análise, a Secretaria de Educação expediu,
sucessivamente, as Resoluções SE – 271, de 20-11-1987, SE – 193, de 18-8-1988 e
SE – 210, de 31-8-1988, SE – 24, de 26-1-1989 e SE – 30, de 30-1-1989.
4. Regulamentando especificamente a Resolução SE – 271, a
Portaria da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas, datada de 18 de
março de 1988, estabeleceu, entre outras disposições, que os cursos
constituem-se de seis estágios, divididos em dois níveis (art. 10). Ao aluno que tenha obtido aprovação no curso
será conferido um certificado de aprovação, ao término de cada estágio, e um
certificado de conclusão do curso, ao término do Nível II (art. 21).
5. Todavia, através da Resolução 85, de 13-8-2001, a
Secretaria de Educação, considerando a necessidade de promover a reorganização
dos Centros de Estudos de Línguas, resolveu, entre outras medidas, vincular a
matrícula inicial e a continuidade dos estudos à comprovação de matrícula e
freqüência nos cursos regulares da rede pública de ensino fundamental, médio ou
profissional de nível técnico.
6. Tal decisão gerou inúmeras manifestações de
insatisfação de alunos que, tendo concluído o ensino médio, viram-se, a partir
do segundo semestre deste ano, impossibilitados de continuar freqüentando o
curso de línguas.
7. Tentando obter o ajustamento da conduta pública aos
imperativos legais, o Ministério Público formulou proposta específica à
Secretaria de Educação, encaminhando, inclusive, minuta de Compromisso de
Ajustamento (fls. 42/5), prevendo, de maneira flexível, a adaptação da nova
postura da Secretaria ao respeito aos direitos dos alunos.
8. A Secretaria Estadual de Educação recusou a celebração
do referido compromisso (fls. 64/6).
II – DO
DIREITO
9. A educação, direito de todos e dever do Estado, deve
visar "ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho" (art. 205 da CF).
10. Atento a essa orientação constitucional, o art. 36,
inc. III da Lei de Diretrizes e Bases da Educação dispõe que o currículo do
ensino médio contará com uma língua estrangeira obrigatória e uma segunda, em
caráter optativo, dentro das disponibilidades da instituição.
11. Como se vê, em obediência ao dispositivo transcrito,
há mais de uma década, o governo estadual organizou o CEL - Centro de Estudos
de Línguas, disponibilizando, em cerca de cinqüenta unidades no Estado, o
acesso optativo ao aprendizado de uma segunda língua por parte dos alunos do
ensino médio de Escolas Públicas.
12. Realiza, deste modo, serviço público regular, que, sob
todos os vértices e diante de todas as hipóteses tratadas nestes autos,
ajusta-se ao rol de atividades que devem ser desempenhadas pelo Estado.
13. Esclarecendo dúvidas, a noção de serviço público
fornecida pelo Professor CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO (CURSO DE DIREITO
ADMINISTRATIVO, ed. Saraiva, 11ª edição, pág. 477):
"Serviço público é toda atividade de oferecimento de
utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados,
prestado pelo Estado ou por quem lhe faça às vezes, sob um regime de Direito
Público - portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e restrições
especiais -, instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido
como próprios no sistema normativo".
14. Dentro desse parâmetro, a disponibilização de curso
suplementar de línguas, quer àqueles que estejam matriculados em escolas
públicas, quer àqueles que não estejam, sobretudo por terem concluído o ensino
médio, insere-se perfeitamente no conceito de serviço público, pois que a
própria Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação enunciaram o
ensino de línguas, para aperfeiçoamento do aprendizado e preparação para o
mercado de trabalho, como um dos interesses recobertos pelo sistema normativo
em vigor.
15. Cumpre ressaltar, neste ponto, que os documentos e
depoimentos coligidos aos autos revelam que a interpretação normativa da
Secretaria de Educação do Estado de São Paulo apontava, de maneira homogênea, a
possibilidade do aluno, mesmo após o encerramento do ensino médio, permanecer
no curso de línguas até a conclusão do mesmo.
16. Tal interpretação, com efeito, longe de contrariar,
encontrava-se em plena consonância com a Lei de Diretrizes e Bases de Educação,
cujo art. 39, parágrafo único, dispõe que o "aluno matriculado ou egresso
do ensino fundamental, médio e superior, bem como o trabalhador em geral, jovem
ou adulto, contará com a possibilidade acesso à educação profissional".
17. Os depoimentos de Ricardo Felix Martins (fls. 80),
Terla Lira de Sousa (fls. 81) e Kelly Cristina Tartari (fls. 82), dentre
outros, deixam claro que a finalidade do curso de línguas é a colocação no
mercado profissional, como, ademais, sedimentado no próprio Decreto que
instituiu o C.E.L.
18. Deste modo, é imperioso delimitar que o ensino de
línguas, mesmo àqueles que já tenham encerrado o ciclo médio, está acobertado
diretamente pelo Texto Constitucional e pela Lei de Diretrizes e Bases da
Educação. Assim, inequívoco tratar-se de serviço público regular, sobre o qual
não se pode extrair qualquer ilação de ilegitimidade.
19. Ademais, independentemente de qualquer outro aspecto,
o art. 80 da cogitada Lei de Diretrizes e Bases da Educação prescreve o dever
do Poder Público incentivar a "educação continuada". Imperiosa, deste
modo, a conclusão de que a interpretação normativa efetivada pelo Poder Público
estadual até o primeiro semestre deste ano - que permitia a continuidade dos
cursos de línguas àqueles que haviam encerrado o ensino médio - longe de
contraditar, aperfeiçoava os comandos jurídicos indicados.
20. É incogitável, deste modo, qualquer ilação de
ilegalidade da conduta administrativa do Estado, de facultar, àqueles que
tivessem terminado o ensino médio, a permanência no curso de línguas.
21. Segue-se que não se pode prefigurar na espécie
qualquer hipótese de aplicação da chamada autotutela administrativa, pois não
houve ato praticado pelo Estado passível de anulação, mas simplesmente
modificação da interpretação normativa.
22. Nesse sentido, dispõe o art. 5º, caput, da
Constituição da República, dentre outros, o direito fundamental à segurança, de
caráter polifacético, envolvendo, inclusive, a segurança jurídica perante a
Administração Pública.
23. Fiel a esta diretriz, o art. 2º da Lei 9.784/99 dispõe
que:
"A Administração
Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios de legalidade, finalidade,
motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa,
contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”.
24. O inciso XIII, do artigo acima indicado, especifica
tal princípio, prescrevendo:
XIII - interpretação da
norma administrativa de forma que melhor garanta o atendimento do fim público a
que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.
25. Comentando o dispositivo transcrito, MARIA SYLVIA
ZANELLA DI PIETRO (DIREITO ADMINISTATIVO. Ed. Atlas. 11ª edição. Pág. 85)
aponta que:
O princípio se justifica pelo fato de ser comum, na esfera administrativa, haver mudança de interpretação de determinadas normas legais, com a conseqüente mudança de orientação, em caráter normativo, afetando situações já reconhecidas e consolidadas na vigência de orientação anterior. Essa possibilidade de mudança de orientação é inevitável, porém gera insegurança jurídica, pois os interessados nunca sabem quando a sua situação será passível de contestação pela própria Administração Pública. Daí a regra que veda a aplicação retroativa.
26. Irretorquível, deste modo, o dever do Estado de,
diante da mudança na interpretação da norma, garantir estabilidade jurídica aos
que, sob o manto da interpretação anterior, matricularam-se nos citados cursos
de línguas.
27. Arrebatando as dúvidas, prossegue a citada Professora
Titular de Direito Administrativo na Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo:
Se o administrado teve reconhecido determinado direito com
base em interpretação adotada em caráter uniforme por toda a administração, é
evidente que sua boa-fé deve ser respeitada. Se a lei deve respeitar o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, por respeito ao princípio
da segurança jurídica, não é admissível que o administrado tenha seus direitos
flutuando ao sabor de interpretações jurídicas variáveis no tempo. (g.n., op. cit.)
28. Logo, a mudança de conduta da administração estadual deve preservar todos aqueles que já
estejam matriculados nos cursos de línguas do C.E.L., aos quais deve ser assegurado
o direito de permanência nos respectivos cursos até a conclusão dos mesmos,
como conseqüência da aplicação das normas e princípios jurídicos acima
arrolados.
III
– DOS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS PARA A
CONCESSÃO DA TUTELA ANTECIPADA
29. Os cursos de línguas do C.E.L. são ministrados sob a
forma de estágios sucessivos, conducentes da conclusão do ciclo de formação do
aluno naquela língua estrangeira específica ao cabo do último estágio.
30. É evidente que, pelos contornos traçados, a solução de
continuidade do curso interrompe definitiva e irresgatavelmente referido ciclo
de formação, tornando inócua eventual tutela ulteriormente determinada.
31. Incontroverso, portanto, o perigo da demora.
32. No que tange à aparência do bom direito, estamos que a
existência de lei federal proibindo a retroatividade de nova interpretação, o
princípio constitucional da segurança jurídica e a própria noção de
estabilidade inerente a qualquer sistema jurídico são mais do que suficientes
para a caracterização deste requisito.
33. Assim sendo, diante da presença dos requisitos
exigidos em lei, verifica-se cabível a antecipação da tutela pretendida, nos
termos dos arts. 273, I e 461, § 3º do Código de Processo Civil.
34. Isto posto, requer-se:
a) a concessão de tutela antecipada inaudita
altera pars a fim de que seja reconhecido o direito de todos os alunos
matriculados em cursos do C.E.L. - Centro de Estudos de Línguas até o fim do
primeiro semestre deste ano possam prosseguir os sucessivos estágios até o
final dos respectivos cursos, mesmo posteriormente ao encerramento do ensino
médio;
a.1) a notificação da Secretaria
Estadual da Educação para que dê cumprimento imediato à eventual determinação
judicial, fixando edital de convocação dos interessados em cada uma das
unidades do C.E.L. - Centro de Estudos de Línguas;
a.2) seja determinado ao cartório do
juízo a emissão de certidões da eventual decisão concessiva da antecipação de
tutela aos interessados, servindo tal como mandado para o fim específico de
ordenar a imediata integração do aluno ao estágio do curso de línguas em que
estava matriculado;
b) a fixação de multa de R$ 5.000,00
(cinco mil reais) para cada dia de atraso no cumprimento da determinação
judicial pleiteada no item "a.1" da presente, bem como para cada
descumprimento específico da determinação judicial pleiteada no item
"a.2" acima;
c) a citação do requerido para que
tome ciência da presente, contestando-a, se assim por bem houver, sob pena de
revelia, prosseguindo-se no feito até final julgamento, quando a ação será
julgada procedente, determinando que todos aqueles que tenham se matriculado em
um dos cursos do C.E.L., sob a égide da interpretação anterior (até o primeiro
semestre de 2001), tenham garantido o direito de conclusão dos respectivos
cursos.
d) a condenação do réu nos ônus da
sucumbência, como custas e honorários;
e) a produção de todas as provas em
direito permitidas, como depoimento pessoal, testemunhas, perícias,
diligências, etc.
Dá-se à
causa, para efeitos fiscais, o valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais).
São Paulo,
16 de outubro de 2.001.
Promotor de Justiça
Promotor de Justiça
Promotor de Justiça
Estagiária do Ministério Público
I – A relevância do fundamento do pedido reside na
circunstância de que, tendo o Requerente comprovado que a exigência de
comprovação de freqüência às aulas do curso regular de ensino constitui
inovação em relação às disposições normativas anteriores à Resolução 85, de
13/8/01 – que a estabeleceu -, evidente se mostra a inobservância, pela
Administração, do dever de respeito ao princípio da segurança jurídica que há
necessariamente de pautar seus atos. Os atuais alunos dos cursos de línguas,
que ao se matricularem não se subordinavam a tal exigência, não podem ser
surpreendidos pela alteração das regras no decorrer das atividades.
Já o justificado receio de ineficácia do provimento
final emerge da notória circunstância de que a interrupção de um curso traz
prejuízos muitas vezes irrecuperáveis ao aluno – em especial aquele de ensino
de línguas que exige prática constante.
Por tais motivos, considero presentes os requisitos dos
artigos 461, § 3º, do Código de Processo Civil e 11, caput, da Lei
7347/85 e, em conseqüência, DEFIRO a liminar pleiteada, para o fim de
determinar à Requerida que permita aos alunos regularmente matriculados nos
Centros de Estudos de Línguas antes do advento da Resolução acima referida a
continuidade dos cursos independentemente das exigências traçadas no artigo 9º
desse diploma.
Para tanto, deverá comprovar nos autos, em vinte (20) dias
a contar da ciência desta decisão, a adoção de medidas objetivas e eficazes no
sentido de convocar todos os interessados – assim considerados os beneficiários
da ordem.
Oficie-se à Secretaria Estadual de Educação, fazendo
instruir o expediente com cópia desta decisão.
Deixo de fixar multa para a hipótese de descumprimento,
uma vez que sem notícia de eventual resistência – o que inclusive daria ensejo
à persecução do crime de desobediência -, não vislumbro o requisito da
compatibilidade traçado pelo artigo 11, da Lei 7347/85.
II – Cite-se.
Int.
São Paulo, d.s.
ISABEL CRISTINA MODESTO ALMADA, j.d.