A RUPTURA DOS VÍNCULOS:
QUANDO A TRAGÉDIA ACONTECE
Maria
Josefina Becker
Assistente
Social, Assessora Técnica do Juizado da Infância e da Juventude de Porto
Alegre-RS.
"O
problema fundamental em relação aos direitos humanos, hoje, não é tanto o de
justificá-los, mas de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas
político." Norberto Bobbio.
Introdução
É abundante a literatura contemporânea a respeito da importância da família para o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Estuda-se, do ponto de vista biológico, a fragilidade do bebê humano em relação às demais espécies, o que justifica a necessidade de protegê-lo para que sobreviva. A psicologia demonstra a importância das relações afetivas para a obtenção da saúde mental e as ciências sociais indicam que a presença de adultos confiáveis e o exercício da autoridade são indispensáveis para assegurar o convívio democrático entre os homens e mulheres na sociedade.
O consenso a respeito da família como locus
privilegiado para o adequado desenvolvimento humano está consagrado em
documentos internacionais e, no caso do Brasil, em sua Constituição e no
Estatuto da Criança e do Adolescente.
Já no preâmbulo da Convenção das Nações
Unidas sobre os Direitos da Criança (20/11/89), os Estados-Partes declaram-se "convencidos de que
a família, como elemento básico da sociedade e meio natural para o crescimento
e o bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças, deve
receber a proteção e assistência necessárias para poder assumir plenamente suas
responsabilidades na comunidade" e reconhecem que "a criança, para o
pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio
da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão."
Salienta-se que a família, como um grupo
social, não é percebida como um fim em si mesma, mas pelas suas funções de
oferecer condições de desenvolvimento a seus membros, e em especial, às crianças.
O art. 5º
da Convenção, por exemplo, ao se referir às responsabilidades, direitos
e deveres dos pais, família e comunidade, fá-lo no sentido de assegurar à
criança o exercício dos direitos reconhecidos na Convenção.
No art. 7º , a criança tem o direito,
entre outros, de, na medida do possível, conhecer seus pais e ser cuidada por eles. No art. 8º, os Estados-Partes se comprometem a
respeitar o direito da criança à sua identidade, incluídos a nacionalidade,
nome e relações familiares.
No Brasil, a Constituição Federal, no
art. 227, elenca entre os direitos da criança e do adolescente o da
convivência familiar e comunitária.
O Estatuto da Criança e do Adolescente,
no art. 19, afirma que toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e
educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta.
É importante considerar que as normas
legais mencionadas centralizam a questão no direito que a criança tem a ser
criada e educada pela sua família e, ao mesmo tempo, referem-se à necessidade
de proteger e assistir essa mesma família no adequado exercício de suas
funções. A Constituição Brasileira, no art. 226, afirma que "a família,
base da sociedade, tem especial proteção do Estado." Essa proteção é
estendida a formas não tradicionais de família, na medida em que, no § 4° do
mesmo artigo, "entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes."
A norma internacional, a Constituição e a
Lei Brasileira, no entanto, não absolutizam a família
natural como o único modo de assegurar à criança o direito a que se está
referindo.
De acordo com a Convenção, "os Estados-Partes velarão para que
a criança não seja separada de seus pais contra a vontade desses, exceto
quando, de acordo com decisão judicial, as autoridades competentes determinem,
de acordo com a Lei e os procedimentos aplicáveis, que tal separação é necessária ao interesse superior da
criança."
O Estatuto da Criança e do Adolescente
prevê a suspensão ou perda do pátrio poder nos casos em que os pais, injustificadamente, deixarem de cumprir seus deveres de
sustentar, ter sob sua guarda e educar os filhos, submeterem-nos a abusos e
maus-tratos ou, ainda, deixarem de cumprir determinações judiciais no seu
interesse, como se depreende dos artigos 22 e 24.
Para que se apliquem as medidas visando a separação das crianças de seus pais biológicos, no
entanto, de acordo com a Convenção e com o Estatuto, é necessário um processo
legal, com direito a ampla defesa.
É importante salientar,
e o Estatuto explicita, no art. 23, que a "falta ou carência de
recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão
do pátrio poder" e que "não existindo outro motivo que por si só
autorize a decretação da medida, a criança ou adolescente será mantido em sua
família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas
oficiais de auxílio".
Dessas considerações iniciais pode-se
concluir que muito há que fazer, no sentido de garantir o direito à convivência
familiar e comunitária no seio da família natural, antes de considerar a
hipótese da família substituta.
Abandono
ou pobreza?
Costuma-se dizer que existem milhões de
crianças abandonadas no Brasil e que, por tal razão, deveriam ser incentivados programas
e campanhas para promover a adoção e outras formas de colocação em família
substituta.
O que ocorre, na verdade, é uma confusão
conceitual entre abandono e pobreza, uma vez que a imensa maioria das crianças
pobres, mesmo as que estão nas ruas ou recolhidas a abrigos, possuem vínculos
familiares. Os motivos que as levam a essa situação de risco
não é, na maioria das vezes, a rejeição ou a negligência por parte de
seus pais, e sim as alternativas, às vezes desesperadas, de sobrevivência.
É evidente que a questão da pobreza deve
ser examinada do ponto de vista estrutural, relacionada ao modelo de
desenvolvimento que privilegia a concentração de riqueza e é determinada, em
grande parte, por políticas de ajuste internacionalmente impostas e que acarretam
significativos cortes orçamentários na área social.
Por outro lado, as ações de enfrentamento
à pobreza são ainda marcadas pelo assistencialismo e clientelismo, quando não
inexistentes. Como conseqüência, tem-se o enfraquecimento dos vínculos familiares, o aumento de crianças e
adolescentes ingressando precocemente no mercado de trabalho e abandonando a
escola, passando muitos deles a viver na rua. Se abandono existe, não se trata de crianças e adolescentes abandonados por seus pais, mas de
famílias e populações abandonadas pelas políticas públicas e pela sociedade.
Ver na colocação em família substituta e,
sobretudo, na adoção nacional ou internacional uma solução para o problema da
pobreza, é grave equívoco em que incidem inúmeras pessoas que operam na área de
atenção à infância, inclusive assistentes sociais, juízes, promotores,
advogados, na grande imprensa nacional e internacional e em entidades
assistenciais. Nessa linha, encontram-se os propagandistas do envio massivo de
crianças pobres para o exterior, como forma de livrá-las da miséria e
assegurar-lhes um futuro feliz em algum país distante e idealizado.
Não é intenção deste artigo tratar das
políticas, programas e medidas, necessárias e urgentes, a serem tomadas pelo
Poder Público e pela sociedade para alterar a estrutura sócio-econômica vigente e implementar ações de assistência
social destinadas aos excluídos, como é determinação constitucional e da Lei
Orgânica da Assistência Social, promulgada em dezembro de 1993.
São essas, entretanto, premissas
indispensáveis para que se possa examinar o tema da colocação em família
substituta na sua devida dimensão: como forma alternativa de assegurar o
direito à convivência familiar a crianças que tiveram esse direito violado,
isto é, foram separadas de seus pais por motivos judicialmente reconhecidos e
cujo interesse superior deve ser considerado.
Tragédia
e reparação
A realidade demonstra e as normativas
nacional e internacional reconhecem que há casos em que crianças ou
adolescentes são privados da convivência com seus pais biológicos, por razões
que, embora possam acompanhar situações de pobreza, não estão com essa diretamente relacionadas, ou mesmo independem da falta
ou carência de recursos materiais.
1) Em primeiro lugar, a mais radical de todas as formas de separação é a morte dos progenitores. Paradoxalmente, é,ao mesmo tempo, a mais dramática das perdas e aquela em que as soluções são, em geral, encontradas de forma mais imediata e natural: os membros da família ampliada, sobretudo avós, irmãos e tios, são os sucessores naturais dos pais falecidos em assumir a responsabilidade pelas crianças.
Apenas na ausência ou impossibilidade de
tais parentes assumirem a tutela das crianças
torna-se necessária a escolha de família substituta
alheia ao círculo da consangüínea.
2) Há ocasiões em que mães, predominantemente solteiras ou sozinhas, não desejam ou reconhecem não possuir condições para assumir a criação do filho. Isso pode ocorrer quando a gestação foi indesejada, fato de alguma relação eventual ou mesmo de estupro. Existem mulheres que não se consideram motivadas ou preparadas para assumir a maternidade. Muitas delas decidem entregar a criança e autorizar sua adoção.
Apesar de não subsistir na legislação
brasileira nenhuma forma de
discriminação a crianças geradas fora do casamento ou a seus genitores, encontram-se ainda grupos sociais que não aceitam bem a
denominada "mãe solteira", criando para ela uma série de embaraços,
como ocorre em determinadas comunidades e grupos culturais e religiosos.
Trata-se de fenômeno sócio-cultural que só o tempo e a educação irão eliminar.
Muitas vezes, ao decidir pela entrega do
filho para que seja adotado, essas mulheres o fazem
com genuína intenção de protegê-lo e assegurar-lhe o afeto que não se
consideram capazes de proporcionar-lhe.
Nesses casos, sempre a serem decididos,
em última instância, pela autoridade judiciária, uma vez que, com o advento do
Estatuto, deixou de existir a adoção por escritura pública, é necessário ouvir
atentamente a mãe e examinar com ela seus reais motivos, bem como informá-la
devidamente sobre as conseqüências definitivas de sua decisão. Técnicos e
juízes experientes têm, freqüentemente, descoberto por trás da aparente
decisão, a pressão de terceiros interessados em intermediar a adoção da
criança. Em outras ocasiões, no caso de mulheres muito jovens, vem-se a saber
que sua decisão foi fruto do medo de defrontar-se com seus próprios pais que, segundo
supõem, não aceitariam a criança. Trata-se sempre de uma situação muito
delicada e da perícia dos atores institucionais envolvidos dependerá a solução
mais adequada. Aceitar de imediato e sem questionamentos tais opções pode levar
a decisões precipitadas de separação, com resultados igualmente danosos para a
criança e para a mãe.
É freqüente ser a situação de pobreza o
real motivo para a entrega, e a oferta,
o encaminhamento a serviços assistenciais ou a localização de parentes
dispostos a ajudar podem ser a solução.
Não se pode, entretanto, assumir a
posição de "manter o vínculo a qualquer preço", pois a rejeição real
e manifesta, quando de fato existe, coloca em risco o desenvolvimento afetivo
do bebê. Não cabe aqui julgamento moral e sim reconhecer que há mulheres que
não se dispõem a ser mães, circunstancialmente, daquela criança ou mesmo como
opção definitiva. É importante respeitar tais decisões e, nesses casos, tomar
todas as providências necessárias para assegurar o direito da criança a ser
acolhida por pessoas capazes de amá-la e protegê-la.
3) A perda do pátrio poder será
decretada sempre que a manutenção da criança ou do adolescente junto aos país
representar sério risco ao seu desenvolvimento, à sua saúde ou até mesmo à sua
vida.
Importa salientar que muitas situações de
violência doméstica podem e devem ser detectadas precocemente, prevenidas e
tratadas. Há que reconhecer que poucos recursos estão disponíveis para oferecer
às famílias, principalmente as de baixa renda, para ajudá-las a enfrentar os
problemas do dia-a-dia.
Estudos e pesquisas realizados sobre
violência e abuso sexual praticados contra crianças evidenciam que o fenômeno
ocorre majoritariamente na própria família e perpassa todas as classes sociais.
Além do mais, é um problema complexo, tanto no que diz respeito à sua etiologia
quanto nas formas de abordagem. Há, por um lado, uma tendência a tratá-lo com
pudor, considerando o recinto do lar como "intocável", e fazendo-se
uma espécie de redoma de silêncio em torno dos agressores, principalmente
quando se trata de famílias abastadas ou de classe média.
Outra tendência é a de estigmatizar, à
primeira denúncia, a família agressora, promovendo-se a imediata retirada da
criança de sua companhia, sem tentar, ao menos, entender o que se passa. É
evidente que, pela vulnerabilidade das famílias de classes populares, são essas
as mais freqüentes vítimas dessa segunda tendência.
O que se pode propor como desejável e
compatível com os direitos da criança é que todos os casos de vitimização sejam detectados e estudados em profundidade,
para que as medidas pertinentes (orientação, tratamento com vistas à manutenção
do vínculo ou, quando necessária, a perda ou a suspensão do pátrio poder) sejam
aplicadas a tempo e com equanimidade.
Cabe ressaltar a importância de
instituições como a escola e os serviços de saúde na detecção dos casos, dos
Conselhos Tutelares, a quem cabe seu exame e encaminhamento ao Ministério
Público e das Varas da Infância e da Juventude, com suas equipes técnicas.
Quando o interesse superior da criança e
a necessidade de proteger seus direitos determinar o afastamento da família
biológica, temporária ou definitivamente, será o caso de colocá-la em família
substituta.
4) É necessário considerar, também, a
existência de crianças cujos pais são desconhecidos ou se encontram em lugar
ignorado. São aquelas encontradas sozinhas em logradouros públicos, abandonadas
em hospitais ou em abrigos, deixadas em companhia de vizinhos ou parentes, por
pais que desaparecem não deixando pistas.
Empreendidos todos os esforços para
localizar os pais, sem êxito, ou, uma vez localizados os mesmos, comprovado que
tinham real e definitiva intenção de abandonar os filhos, estaríamos
também diante de casos de perda do pátrio poder e, conseqüentemente, da
busca de uma família substituta.
Fica evidenciado que todas as situações
descritas exigem grande cuidado na sua solução, uma vez que se está sempre diante de perdas, todas elas imensamente graves.
Para supri-las, cada uma com características próprias, existem diversas formas
de colocação em família substituta, que passarão a ser examinadas a seguir.
As
modalidades de colocação em família substituta
Guarda
De acordo com o art. 33 do Estatuto da
Criança e do Adolescente, "a guarda obriga à prestação de assistência
material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu
detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais".
De um modo geral, a guarda é concedida em
situações em que os requerentes aguardam a decisão judicial sobre concessão de
tutela ou adoção, bem como em casos de suspensão do pátrio poder, enquanto se
procede ao atendimento aos pais biológicos, com vistas a restaurar os vínculos
ou, quando isso for impossível, chegar à decisão definitiva sobre a perda do
pátrio poder.
O Estatuto refere-se também a
"situações peculiares", entre as quais podem ser entendidas aquelas
em que a criança ou o adolescente já tem sua situação de separação dos pais
definida, mas em que não se aplica ou é praticamente inviável a adoção. É o
caso de crianças mais velhas ou adolescentes, de grupos de irmãos que se
encontram já na companhia de parentes, vizinhos ou conhecidos, não havendo
razões nem motivação para a adoção.
Consta ainda do Estatuto a guarda incentivada e subsidiada, que seria aplicável no caso de
crianças órfãs ou abandonadas, consideradas "de difícil
colocação", como é o caso, por exemplo, das portadoras de deficiência
física ou mental. Esse tipo de colocação em família substituta deve ser
praticado com extremo cuidado, para que a possibilidade de receber ajuda
financeira não se transforme no objetivo principal, em detrimento do desejo de
proteger e criar uma criança. O ideal é preservar vínculos já existentes na
família ampliada ou na comunidade, oferecendo auxílio nos casos em que a falta
de recursos materiais venha a dificultar a manutenção da criança ou
adolescente. Aliás, dar preferência, para fins de conferir a guarda, a pessoas
que já mantenham laços de afeto com a criança atende ao disposto no § 2º do art.
28 do Estatuto: "Na apreciação do pedido levar-se-á em conta a relação de
afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as conseqüências da
medida."
Tendo em vista a situação de miséria extrema em que vivem muitas famílias, e a falta quase absoluta, em muitas comunidades, de equipamentos sociais, como creches, para cuidar das crianças enquanto os pais se afastam para o trabalho, é comum a colocação familiar espontânea, promovida por eles mesmos, valendo-se da disponibilidade de vizinhos e amigos. Essas práticas alternativas têm evitado, muitas vezes, o abandono de crianças e, embora não devam ser consagradas de modo a justificar a omissão do poder público, merecem acompanhamento, enquanto subsistem, com a finalidade de orientar o atendimento das crianças.
Sempre que a guarda for simultânea a
procedimentos junto à família de origem, com vistas à restauração dos vínculos,
essa situação deve ficar muito clara para a família substituta temporária, para
que não se criem expectativas de transformar aquela guarda em adoção, podendo a
frustração causar, posteriormente, dolorosos conflitos.
Finalmente, vale a pena investir em
programas de colocação em família substituta na forma de guarda, tanto
permanente como transitória, sempre que ela for a
medida indicada pois, certamente, uma família substituta afetuosa e capaz de
oferecer a adequada convivência familiar e comunitária será, na imensa maioria
dos casos, melhor do que as entidades de abrigo.
Tutela
A tutela é medida aplicada, geralmente, no
sentido de encarregar aqueles que sucedem os pais no exercício do pátrio poder,
principalmente nos casos de orfandade, quando cabe, prioritariamente, aos avós,
irmãos maiores ou aos tios, e implica a administração dos bens e o dever de
guarda. Pode também ser conferida a estranhos ao grupo familiar, na ausência ou
impossibilidade dos parentes. Aplica-se também a tutela em casos de perda do
pátrio poder determinada pela autoridade judiciária. Diferentemente da guarda,
a tutela tem um caráter definitivo, podendo ser destituída apenas nos casos em
que se prevê a destituição do pátrio poder.
Ao designar o tutor, é fundamental levar
em conta, como foi dito em relação à guarda, os vínculos afetivos da criança ou
adolescente com aquele a quem será confiado.
Adoção
A adoção é a forma mais definitiva e
radical de colocação em família substituta. Através dela se forma uma nova
família, uma vez que, quem adota, confere à criança ou adolescente o status de
filho, com todas as conseqüências jurídicas e psicossociais que tal situação
acarreta.
A adoção é indicada nos casos em que a
criança é separada definitivamente de seus pais biológicos e quando não existam
parentes com direito e condições pessoais de assumir sua tutela. Quando
adequadamente aplicada, esta é a medida que melhor
enfrenta a tragédia do abandono. Para que surta seus efeitos benéficos, no
entanto, existe uma série de pressupostos que devem ser considerados.
A Convenção das Nações Unidas sobre os
Direitos da Criança trata dessas questões nos seus artigos 20 e 21, dos quais
foram destacadas as seguintes afirmações:
As crianças, temporária ou
permanentemente privadas do seu meio familiar, cujo interesse superior exija
que não permaneçam nesse meio, terão direito à proteção e assistência especiais
do Estado.
Entre os cuidados figurarão,
entre outros, a colocação em outra família, a Kaffala
do direito islâmico, a adoção. [...]
Os Estados-Partes
que reconhecem e/ou permitem o sistema de adoção velarão para que o interesse
superior da criança seja a consideração primordial [...]" e "velarão
para que a adoção da criança só seja autorizada pelas autoridades competentes,
que determinarão, de acordo com as leis e os procedimentos aplicáveis [...],
que a adoção é admissível, em vista da situação jurídica da criança em relação
a seus pais, parentes e tutores e que, quando assim se requeira, as pessoas
interessadas tenham dado seu consentimento com conhecimento de causa, e com
base no assessoramento necessário.
O primeiro pressuposto é, portanto, o de
que a adoção atenda à necessidade da criança e de que não reste nenhuma dúvida
a respeito do caráter permanente de sua situação e da necessidade de ser
colocada em família substituta. Isso é assegurado com a perda do pátrio poder
dos pais transitada em julgado, em um processo legal onde tenha havido ampla
defesa.
Tem-se aí o ponto de partida para que
ocorra uma adoção: a existência de uma criança que necessita ser adotada.
Do outro lado, é preciso que existam pessoas
desejosas e capazes de tomar como filho ou filha uma criança alheia ao seu
círculo familiar. Entra-se aqui no campo extremamente complexo, que é o da
motivação para adotar.
Junto com o mito referido acima de que
existem "milhões de crianças abandonadas", é corrente a afirmação de
que existe uma necessidade, ou um "direito" das pessoas ou casais sem
filhos biológicos de adotar uma criança. Coloca-se, assim, na mesma ordem de
valor o direito da criança a ser criada e educada em uma família e o "direito"
dos adultos de "possuírem" os filhos que lhes teriam sido negados
pela natureza.
Essa percepção do desejo ou aspiração,
aliás legítima, de exercer a paternidade ou a maternidade como se fosse uma
necessidade básica ou um direito, tem sido responsável por uma inversão nos
procedimentos de adoção. Deixou-se, muitas vezes, de considerar a adoção como
uma forma de solucionar problemas de crianças real e
definitivamente abandonadas e passou-se a procurar crianças para
satisfazer necessidades de adultos. Na medida em que esses e os intermediários
a quem recorrem para obter uma criança
se mobilizam com tal objetivo, cresce a pressão no sentido de facilitar a
ruptura dos vínculos familiares das crianças pobres, em detrimento da promoção
de medidas mais eficazes para preservá-los e fortalecê-los.
Cabe aqui mencionar a verdadeira explosão
da adoção internacional que vem se verificando nas últimas duas décadas. A
conjugação da idéia de que as crianças abandonadas podem ser contadas aos
"milhões" com a de considerar o desejo de adotar como uma
"necessidade básica", a ser satisfeita a qualquer preço, propicia uma
verdadeira contaminação da adoção que,
lamentavelmente, em muitas ocasiões, deixa de ser uma medida de proteção
a crianças sem lar para transformar-se em comércio de seres humanos.
Essa busca intensa e quase desesperada de
crianças "adotáveis" por parte de quem deseja adotá-las e sobretudo
por intermediários, como as inúmeras agências de adoção que operam a partir da
Europa e dos Estados Unidos, representam um gravíssimo problema a ser
enfrentado pelos países do Terceiro Mundo, entre os quais o Brasil.
Convém reafirmar o caráter de excepcionalidade que deve revestir a adoção internacional,
de acordo com a normativa internacional e com a legislação brasileira. A
Convenção considera a adoção internacional como "outro meio de cuidar da
criança, no caso em que ela não possa ser colocada, mediante guarda ou adoção,
ou não possa ser atendida de maneira
adequada em seu país de origem." (art. 21)
O Estatuto, que já considera a colocação
em família substituta uma exceção (art. 19), determina que se considere a
adoção internacional como a "excepcionalidade
sobre a excepcionalidade." (art. 31)
O preâmbulo da recentemente aprovada
Convenção sobre a Proteção das Crianças e Cooperação em Matéria de Adoção
Internacional (Convenção de Haia, de maio de 1993) recorda que "cada
Estado deveria tomar, com caráter prioritário, medidas adequadas que permitam
manter a criança em sua família de origem" e reconhece que a "adoção
internacional pode apresentar a vantagem de dar uma família permanente a uma
criança para quem não encontre uma família adequada em seu Estado de
origem".
Como se vê, a legislação é precisa e
existe perfeita coerência entre as normas internacionais e as nacionais.
Superada a visão da adoção como solução
generalizada para os problemas da infância e colocada em sua real dimensão, é
necessário envidar todos os esforços para que, onde ela couber, seja procedida
com zelo e competência. Muito importante, nesse sentido, são os critérios e os
procedimentos para a seleção das famílias que desejam adotar.
Uma das situações mais freqüentes que
levam principalmente casais a procurar a adoção é a esterilidade ou a
infertilidade. É importante examinar com esses candidatos como ocorreu a
elaboração da perda de expectativa do filho biológico, o que, geralmente, é
vivenciado com frustração e sofrimento. O reconhecimento e a elaboração dessa
perda é fundamental para a aceitação do filho adotivo.
É comum que os candidatos manifestem
preferência por um bebê recém-nascido, e que alimentem a idéia de ocultar da
criança sua condição de filho adotivo. Essas questões devem ser cuidadosamente
tratadas no período de seleção, pois o sucesso da adoção depende, em grande
parte, de que o relacionamento entre pais e filhos se constitua em bases
verdadeiras. A presença do segredo em tais relações é extremamente danosa, uma
vez que gera permanente ansiedade e medo de que a verdade seja revelada.
Os futuros pais adotivos devem ter acesso
à história da criança e aos dados referentes à sua identidade para, no momento
oportuno, transmitirem aos filhos. Embora o Estatuto permita a alteração do
prenome da criança adotada, não se considera recomendável fazê-lo, a partir do
momento em que a criança se identifica com o próprio nome, o que ocorre já
antes do primeiro ano de vida. Manter o nome original é uma das formas de
respeitar sua identidade e de manifestar a aceitação, sem reservas, de sua
pessoa.
Um trabalho bem feito de preparação pode
levar candidatos a aceitar a adoção de crianças mais velhas ou de grupo de
irmãos, pois estarão abandonando a idéia de "fazer de conta" que o
filho adotivo é biológico. A concepção generalizada de que "brasileiros só
adotam crianças recém-nascidas e de sua própria etnia" se deve, em grande
parte, à ausência de trabalho preparatório à adoção.
Após a seleção e o parecer favorável da
equipe técnica, ouvido o Ministério Público, a pessoa ou o casal candidato será
considerado habilitado a adotar pelo Juiz da Infância e da Juventude.
A etapa seguinte é a de compatibilizar as
características e as necessidades das crianças que precisam ser adotadas com as
características e capacidades dos candidatos. Crianças mais velhas, que tenham
tido vivências traumáticas de abandono e maltrato, por exemplo, necessitam de
pais com grau mais elevado de maturidade e tolerância a frustrações. Pessoas
que já tenham tido filhos em geral se sentem mais disponíveis para adotar
crianças maiores do que casais jovens e inférteis, que têm um grande desejo de
criar um bebê.
Uma vez feita a
indicação de uma família para determinada criança, iniciam os procedimentos de
colocação que, dependendo da idade da criança, incluem a sua preparação, preferentemente
realizada por psicólogo. De qualquer modo, o acompanhamento técnico é muito
importante nessa etapa, denominada estágio de convivência e cuja duração será
determinada pela autoridade judiciária.
Após consumada a adoção, tem-se formada uma
nova família que como tal deve ser considerada. Isto é, interferências técnicas
prolongadas não são recomendadas, a não ser quando solicitadas.
O sucesso da adoção depende, portanto, da
adequada motivação e preparação da família adotiva e da compatibilização de
suas capacidades e características com as necessidades e peculiaridades da
criança.
Como todas as adoções de crianças e
adolescentes, segundo o Estatuto, são de exclusiva competência dos Juízes da
Infância e da Juventude, é recomendável que os juizados contem com equipes
técnicas especializadas, onde os assistentes sociais e os psicólogos são
indispensáveis. Essas equipes têm como função a assessoria à autoridade
judiciária, tanto nos processos de perda ou suspensão do pátrio poder, como nos
procedimentos de adoção. Com a
finalidade de evitar pressões por parte de candidatos a pais adotivos, é
conveniente que as atividades supracitadas sejam desempenhadas por diferentes
grupos de técnicos.
Considerações
finais
Com o objetivo de garantir o direito das
crianças e dos adolescentes à convivência familiar e comunitária, são
necessárias medidas visando, em primeiro lugar, a manutenção dos vínculos com a
família natural. Na impossibilidade de assim proceder, tomar todos os cuidados
para que a colocação em família substituta seja feita a partir dos interesses e
direitos das crianças e dos adolescentes que dela necessitem.
Assim, recomenda-se:
1) Apoio
aos vínculos familiares:
- promover programas de assistência social especialmente destinados a complementar a renda das famílias empobrecidas, para que possam criar e educar seus filhos;
- disseminar a criação de
equipamentos sociais e educacionais para o cuidado das crianças durante o
período de trabalho de seus pais;
- organizar programas de assistência
e orientação psicossocial a famílias em situação de crise e àquelas mais
vulneráveis, como as uniparentais;
- estabelecer critérios para
casos de suspensão ou perda do pátrio poder, levando sempre em conta o art. 23
do Estatuto da Criança e do Adolescente;
- estimular as entidades e as
agências de cooperação internacional, no campo da proteção à infância, a operar
preferencialmente com programas que preservem os vínculos familiares e
culturais da população atingida.
2) Princípios
básicos para a colocação em família substituto:
- dar preferência, nos casos
de crianças necessariamente afastadas de seus pais biológicos, a soluções
dentro da família extensa (avós, tios etc.) ou da comunidade onde ela vive;
- nos casos em que a adoção
for a medida mais adequada, privilegiar os candidatos
nacionais;
- criar, preferencialmente
junto aos juizados da infância e da juventude, serviços especializados que
procedam à seleção de famílias adotivas, com critérios que contemplem as
condições afetivas e a motivação para o exercício da maternidade e paternidade,
e o acompanhamento e orientação do processo de integração da criança à nova
família;
- evitar todas as formas de
"adoção independente", em que os futuros pais adotivos tomam a si o
encargo de "selecionar" crianças a serem adotadas;
- respeitar o direito da
criança ou adolescente de manifestar sua opinião a respeito da medida e
mantê-lo informado a respeito de sua origem, identidade e história;
- nos casos
excepcionalíssimos em que uma adoção internacional for considerada a única
forma de proteger o direito da criança ou adolescente à convivência familiar:
·
vedar,
de todos os modos, a adoção independente;
·
considerar
que a iniciativa de colocar a criança deve ser da alçada da autoridade
brasileira, vedando-se a operação, no país, de agentes estrangeiros de adoção;
·
exigir
que a habilitação para adoção dos candidatos estrangeiros seja da
responsabilidade de autoridades oficiais de seu país de residência;
·
em suma,
tomar todas as providências necessárias para a ratificação da Convenção de Haia
sobre Adoção Internacional, da qual o Brasil já é signatário.
Bibliografia
- CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DOBRASIL, 1988.
- CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA, 1989.
- ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE, Lei Federal n. 8.069 de 1990.