ABUSO SEXUAL NA ADOLESCÊNCIA
Ana Helena Seixas[1]
Psicóloga
e psicoterapeuta.
A violência na adolescência e juventude, mais especificamente a violência sexual, é um tema de grande relevância na atualidade. Não somente no Brasil, mas mundialmente tem-se presenciado o aumento da violência nos centros urbanos. Após a Aids, a violência vem-se tornando a epidemia do momento; ganhando cada vez mais destaque na mídia mundial; transformando-se na ocorrência mórbida de maior prevalência na adolescência.
Para as organizações internacionais de saúde, na última década, a violência deixou de ser tão somente um fenômeno social, para ser vista como um problema de saúde pública. Essa posição fica clara no livro La Violencia Juvenil en las Américas: Estudios innovadores de investigación, diagnóstico y prevención, produzido pela OPAS (Organização Pan-americana de Saúde), que afirma que a violência é uma das maiores ameaças à saúde e à segurança pública nas Américas - na adolescência e juventude (McAlister, 1998). Assim, a violência passa a ser vista como um problema social da ordem do patológico; que necessita de intervenções curativa e profilática.
Embora não se tenha estimativas precisas sobre a incidência dessa ocorrência mórbida no Brasil, pois é um assunto ainda tabu em nossa sociedade e os levantamentos estatísticos são poucos e limitados, a partir de dados coletados em outros países, pode-se inferir que a incidência de casos de violência sexual está longe de ser insignificante aqui também. Cohen (1993) citou uma “... pesquisa realizada nos Estados Unidos, em 1965, com mil estudantes. Verificou-se que 25% deles tinham tido relações sexuais com um adulto antes dos 13 anos, mas somente 6% deles as haviam denunciado”. (Ferracuti, F., vol.8, p. 52). Esses dados alertam para um sério problema: o baixo número de denúncias, que determinam rebaixamento da estatística relativa ao assunto.
Ainda segundo Cohen (1993), “Robert Barry, em seu artigo “Incesto, o último tabu”, estima que uma menina em quatro teria sido vítima de incesto antes dos 18 anos, ou seja, 25% das mulheres...”. Esse mesmo autor, também fazendo referência a estudos europeus, relatou que “... o Comitê Europeu sobre Problemas Criminais, em uma pesquisa realizada em 1981, conclui que pelo menos 2% das crianças européias sofrem de maus-tratos, das quais 60% são vítimas de violências sexuais intrafamiliares (European Commitee On Crime Probems, 1981)”.
No Brasil, segundo a Abrapia (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência), “dados do Crami - Centro Regional de Atenção aos Maus-Tratos na Infância de Campinas, SP - estimam que, em 1251 crianças atendidas no Instituto Médico Legal de Campinas, foram vítimas de abuso sexual 67,3% entre 7 e 14 anos; 31,7% entre 2 e 7 anos e 1% abaixo de 2 anos de idade (1982-1985); 14,4% dos adolescentes atendidos no Serviço de Assistência Integral à Adolescência (SAIA) de São Paulo demonstram ter sido alvo de vitimização sexual. Estudo, no ABC paulista, registrou que 90% das gestações em jovens com até 14 anos foram fruto de incesto, sendo o autor, na sua maioria, pai, tio ou padrasto. Em cada 100 denúncias de maus-tratos feitas à ABRAPIA, nove são de abuso sexual”.
Segundo Diêgoli e col. (1996), em 1995, o setor de sexologia do Instituto Médico-Legal de São Paulo registrou 2.403 queixas de abuso sexual; entre as quais 69,77% (1.665) foram contra meninas com idade inferior a 18 anos; 7,94% (191) contra meninos e 22,77% (547) contra mulheres maiores de 18 anos.
Embora a definição do que é abuso sexual possa parecer óbvia, trata-se de um tema bastante controverso; pois envolve questões relativas à normatização da sexualidade humana.
No Código Penal Brasileiro, estupro é “... constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”(art. 213); sendo conjunção carnal a introdução do pênis na vagina. Porém, há outras formas de abuso sexual que não se enquadram nessa definição, como nos casos de violência sexual contra meninos. Esses, perante a lei, são tidos como atentado violento ao pudor: “... constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal” (Art. 214). Além disso, será considerada violência presumida (Art. 224), nos casos em que a vítima for menor de 14 anos, alienado ou débil mental (com o conhecimento do agente) ou não puder, por qualquer outra causa, oferecer resistência. Porém, do ponto de vista clínico, esse conceito torna-se insuficiente; pois não define o que é ato libidinoso e o que é considerado violência.
Quando se trata de sexualidade humana, é muito difícil chegar a uma definição única para toda a sociedade, principalmente porque se acredita estar relacionado apenas ao mundo privado. Mas a sexualidade, tanto como qualquer outro tipo de interação entre duas ou mais pessoas, é regida por leis e costumes culturais da sociedade, que garantem o convívio social. Segundo Cohen (1993), não se pode falar em sexualidade sem se falar em cultura, pois se trata de uma produção social e cultural. A sexualidade humana, para ele, é compreendida como uma somatória entre instinto sexual e pulsão sexual; sendo o instinto sexual definido como “... um comportamento hereditário próprio de todos os seres vivos”, enquanto a pulsão sexual é “caracterizada como uma carga energética que faz com que o indivíduo tenda a um determinado fim sexual, que pode ser variável e cujo objeto sexual não está determinado biologicamente...”.
O autor defende que a transformação dos instintos animais aconteceu com o desenvolvimento sexual do ser humano, por meio das mudanças sociais que foram ocorrendo durante a história da humanidade. Essas transformações teriam ocorrido no final do período neolítico, com a descoberta da paternidade e da agricultura, período este em que provavelmente se instaura o que Freud chamou de tabu do incesto.
Cohen e Fígaro (1996) definiram relação sexual como:
“... um tipo particular de relação social, possuindo limites individuais e sociais. Os parâmetros sociais, dependendo da época e da cultura, sofrem variações, podendo ser aceitos ou não pelos indivíduos. Muitos conflitos sexuais surgem da não aceitação dos tabus que a sociedade criou sobre a sexualidade humana, gerando uma certa dificuldade para pensarmos sobre o que poderia ser considerado como normal ou como patológico, em uma relação sexual”.
Assim, as relações humanas são determinadas pela cultura, mas, ao mesmo tempo, o ser humano também interfere e a modifica. Portanto, a sexualidade é um conceito cultural dinâmico que está em constante mutação.
Heilborn (1998), ao analisar as dimensões sociais da gravidez na adolescência, apontou para a necessidade de se diferenciar os contextos sociais a serem estudados, quando se pretende compreender fenômenos referentes à sexualidade, à reprodução e às relações de gênero. Ela defende que existe uma racionalidade própria, às classes trabalhadoras urbanas, que se distingue das camadas médias brasileiras. Ao citar Duarte, essa autora afirmou que a construção da subjetividade nas classes trabalhadoras está ancorada em três pilares fundamentais: família, trabalho e localidade. Marcado por essa ordenação simbólica, esse segmento da sociedade dá maior ênfase à família, ao grupo do que à individualidade, que está estruturada respeitando uma relação hierárquica entre os sexos e as categorias de idade. Em contrapartida, nas camadas médias da sociedade, o modelo de estruturação dos sujeitos está pautado na individualidade, na sociabilidade e na ocupação.
Não é incomum mães e adolescentes, que foram abusadas sexualmente, pertencentes a classes baixas da sociedade, atribuírem maior valor à perda da virgindade do que à experiência violenta. Assim, a análise antropológica realizada por Heilborn (1999) permite ampliar a compreensão social do abuso sexual, por parte dos profissionais de saúde que irão se deparar com esses casos. Vale ressaltar que essa leitura não deve substituir ou eclipsar a necessidade de se buscar compreender o significado singular atribuído, pelas famílias, a essa violência sofrida.
Como já foi mencionado, as questões referentes à sexualidade são bastante complexas e devem ser abordadas com cautela. Azevedo e Guerra (1989), citando Myre, conceituaram abuso-vitimização sexual como:
“... todo ato ou jogo sexual, relação
heterossexual ou homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança menor de
18 anos, tendo por finalidade estimular sexualmente a criança ou utilizá-la
para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa”.
Esse conceito, apesar de impreciso, é propositalmente genérico, pois busca abranger todos os tipos de abuso sexual contra crianças: intra, extrafamiliar e a exploração sexual. Os mesmos autores definiram incesto como:
“... toda atividade de caráter sexual, implicando uma criança de 0 a 18 anos e um adulto que tenha para com ela, seja uma relação de consangüinidade, afinidade ou de mera responsabilidade”.
Esses conceitos de abuso sexual, ainda que bastante abrangentes, não abordam abusos mais específicos envolvendo adolescentes. Azevedo e Guerra (1989), fazendo referência a Finkelhor, discriminaram duas maneiras de envolvimento de adolescentes em violências sexuais: uma “categoria inclui crianças imaturas que têm experiências sexuais com adolescentes ou crianças muito mais velhas. Essa categoria inclui todas as experiências entre uma criança de doze anos ou menos e uma outra pessoa com menos de dezoito anos; mas que seja, no mínimo, cinco anos mais velha que a criança”. A outra categoria, inclui “... jovens adolescentes que têm experiências sexuais com adultos muito mais velhos; inclui todas as experiências entre adolescentes de treze a dezesseis anos, com adultos legalmente definidos, com pelo menos dez anos ou mais que os adolescentes”.
Segundo Cohen e Fígaro (1996), “... o abuso sexual deve ser entendido como qualquer relacionamento interpessoal, no qual o ato sexual é veiculado sem o consentimento do outro, podendo ocorrer pelo uso da violência física e/ou psicológica”. Essa definição volta a deixar em aberto a questão do que é violência, além de não fazer referência às situações de abuso sexual que ocorrem através de sedução.
Já a Abrapia (1997), definiu abuso sexual como: “... uma situação em que uma criança ou adolescente é usado para gratificação sexual de um adulto ou mesmo de um adolescente mais velho, baseado em uma relação de poder que pode incluir desde carícias, manipulação da genitália, mama ou ânus, exploração sexual, “voyerismo”, pornografia e exibicionismo, até o ato sexual com ou sem penetração, com ou sem violência”.
Como se pode notar, é um tema bastante amplo e complexo; difícil, portanto, de ser definido. Cohen (1993), ao se referir às dificuldades de conceituar incesto, alertou para o fato de que ele pode ser abordado de diferentes ângulos, como um problema genético, mental, sexual, social, ético ou legal.
Segundo o Plano de Desenvolvimento e Saúde na Adolescência e Juventude da OPAS (Organização Pan-americana de Saúde), assegurar o desenvolvimento e a saúde do adolescente e do jovem é a garantia do progresso social, econômico e político das Américas (Maddaleno, 1998). Para se compreender melhor o quanto essa fase é importante para o futuro do indivíduo, de seu meio ambiente e das novas gerações, torna-se necessário conhecer as particularidades dessa fase do desenvolvimento humano. Só assim será possível abordar as singularidades do abuso sexual nessa faixa etária.
É uma fase bastante delicada para a saúde e para o desenvolvimento da personalidade do indivíduo, pois se trata de um período relativamente curto, no qual ocorre um acúmulo de novas aquisições, além de muitas mudanças em todas as áreas de sua vida: social, emocional, física, cognitiva e sexual. Por isso, alguns autores defendem a idéia de que a adolescência é um dos períodos de crise, próprio do ciclo vital (Osório,1989; Aberastury e Knobel 1992; Kalina 1979).
Para que se possa entender a crise na adolescência, é importante desvincular esse termo de qualquer sentido pejorativo dado a priori. Assim, a etimologia da palavra crise, segundo Osório (1989), advêm do grego krisis, significando “... ato ou faculdade de distinguir, escolher, decidir e/ou resolver”. Complementando essa idéia, Jeammet, Reynaud e Consoli (1982) definem crise como “... sinônimo de um momento certamente dramático, mas potencialmente fecundo, já que anunciador de modificações - e, mesmo, de mutações que se tornaram necessárias, mas que ainda se encontram indeterminadas em suas formas”. Caplan (1980) atribuiu a isso, a oportunidade de crescimento psicológico ou o perigo da instalação de um distúrbio psíquico permanente. Seu desfecho estará relacionado a um complexo interjogo entre forças endógenas e exógenas: estrutura de personalidade, experiência biopsicossocial passada e influências atuais dos meios familiar e social. Admitindo que, na crise, a pessoa é mais suscetível; ele dá ênfase à forte influência que o meio exerce em sua resolução.
Portanto, crise é um período de tensão que deve ser transitório, no qual ocorre um desequilíbrio e requer uma resolução. Os resultados das crises podem ser positivos ou não, dependendo das condições ambientais e dos recursos de cada indivíduo. Nessa fase, há mudanças pessoais, que afetam o indivíduo, seus familiares e sua rede social.
Seguindo as idéias de Aberastury e Knobel (1992), a adolescência é uma etapa de crise que é essencial para a formação da identidade adulta, marcada por sofrimento, contradição e confusão. A adolescência é um período de desequilíbrio e instabilidade, que configura uma “entidade semipatológica”, que denominaram de “síndrome normal da adolescência”. Osório (1989) definiu essa etapa como uma crise vital, na qual “... culmina todo o processo maturativo biopsicossocial do indivíduo”.
Complementando, Kalina (1979) defendeu que é “... um processo complexo, desenvolvendo-se por prolongado período, que se caracteriza por fenômenos progressivos e regressivos, produzidos de forma simultânea ou alternada e abarcando todas as áreas da personalidade - corpo, mente e mundo externo”. Ainda segundo esse autor, adolescência deve ser compreendida como um fenômeno psicológico e social, no qual se observa uma dinâmica psíquica característica do adolescente, que assume formas de expressão diferenciada conforme o ambiente geosocioeconômico. Sua elaboração dependerá das aquisições da personalidade durante essa fase, das características histórico-genéticas e dos meios social e familiar.
Como já foi mencionado, a adolescência é marcada por acontecimentos psicossociais que acompanham as transformações biológicas ocasionadas pelo advento da puberdade, que terá início com o aparecimento dos pêlos pubianos. Entre o período pré-púbere e o início da puberdade, a maturação neurológica do indivíduo completa-se. Assim sendo, certos centros do sistema nervoso passam a estimular o aumento da produção hormonal, que exercerá sua ação sobre as gônadas, determinando o desenvolvimento dos caracteres sexuais primários e secundários no jovem. Dessa forma, observa-se que a adolescência é uma etapa evolutiva, marcada por transformações corporais e também pela maturação neurológica; que possibilita o desenvolvimento do pensamento abstrato, maior controle motor e aquisição da genitalidade; que, por sua vez, fazem com que o indivíduo perceba e se relacione com seus pais, com o mundo e consigo mesmo de maneira diferente.
Como vimos até aqui, o adolescente, nessa etapa evolutiva de transição entre a infância e a vida adulta, passa por inúmeras mudanças. Assim, é chamado a experimentar o mundo dos adultos, mas ainda está preso à sua condição infantil. Seguindo os preceitos do que foi chamado de “escola de Arminda Aberastury”, torna-se necessário que ele vá se desligando de suas experiências da infância, por meio da elaboração dos três lutos fundamentais da adolescência: o luto pelo corpo infantil, o luto pelo papel e pela identidade infantil e o luto pelos pais da infância. A esses lutos é associado o luto pela bissexualidade. Contudo, esses acontecimentos são realizados, sob forte conflito, entre suas necessidades de independência e a sua nostalgia de dependência.
Para Aberastury (1992), é só a partir do processo de elaboração desses lutos que o adolescente passará à experimentação de novas identificações. “É nessa busca de identidade que aparecem patologias que podem confundir habitualmente uma crise com um quadro psicopático (ou neurótico de diferente tipo, ou ainda psicótico), especialmente quando surgem determinadas defesas utilizadas para iludir a depressão, assim como as identificações projetivas em massa, a dupla personalidade e as crises de despersonificação; as quais, quando se consegue elaborar os lutos assinalados, resultam passageiras”. A autora lembra que esse processo de luto é lento e nada pode acelerá-lo, nem as modificações da puberdade, nem o seu meio social. Ela afirmou que, caso o indivíduo seja chamado a assumir uma identidade adulta de maneira precoce, ele sentirá esse processo ainda mais ameaçador e conflitivo do que já é. Isso pode fazer com que assuma uma personalidade que não foi autenticamente internalizada a seu ego, pois não teve oportunidade de experimentar outras identificações. Essa situação possivelmente vai causar prejuízo a seu desenvolvimento psíquico, já que não teve tempo para internalizar as mudanças ocorridas e resolver essa crise satisfatoriamente.
O indivíduo, nessa fase, está construindo uma identidade própria; e nessa busca, é importante ressaltar que ele pode experimentar uma enorme multiplicidade de identificações, as quais podem ser bastante contraditórias entre si. Essa instabilidade é esperada e até mesmo desejada, porém cabe a seu meio ambiente, em especial a seus pais, estabelecer limites e orientar esse processo investigativo; para que ele seja feito com segurança, sem que leve a uma situação que possa causar prejuízos permanentes a sua saúde, como por exemplo: uma gravidez indesejada, a exposição a uma situação violenta (estupro, homicídio,etc.), uso excessivo de drogas, entre outros. Como o tema aqui abordado é relativo à violência, vale ressaltar que durante essa fase um comportamento delinqüente não faz desse indivíduo um delinqüente. Por outro lado, vivenciar, nesse período de grande fragilidade, uma situação traumática, como o abuso sexual, pode causar uma paralisação no desenvolvimento psíquico, o que, como foi dito, poderá levar a um enorme prejuízo para toda sua vida.
Segundo Knobel (1992), o adolescente provoca uma verdadeira revolução nos meios familiar e social. O pai deixa de ser um herói para seus filhos e a relação entre eles torna-se ambivalente, pautada por questionamentos e críticas. Assim, a ambivalência em aceitar o processo de crescimento não é só do adolescente, mas também de seus pais. Estes também têm de se desligar do filho criança e evoluir para uma relação entre adultos. Para o autor, os pais vão percebendo que não existe mais a relação de dependência que seus filhos tinham com eles, e que a imagem idealizada que seu filho tinha deles foi-se desfazendo. A perda do corpo infantil, as novas identificações experimentadas por seu filho e seus constantes questionamentos fazem com que os pais se defrontem com seu próprio envelhecimento, com a morte futura, com sua sexualidade e questionem seus valores.
Muitas vezes, é difícil para os pais aceitarem que os adolescentes precisam separar-se deles e se verem substituídos por figuras idealizadas. Alguns pais se sentem muito rejeitados. A poderosa hegemonia dos pais da infância é rapidamente trocada pela força do grupo de iguais, cujas normas passam a ser inquestionáveis e substitutas dos valores familiares seguidos até então. Segundo Aberastury (1992) “...freqüentemente o adolescente se submete a um líder que o guie, no fundo, substitui as figuras paternas das quais está procurando separar-se”. O processo de elaboração de uma ideologia própria é que permite ao jovem, gradativamente, ir assumindo novos papéis (inclusive sexuais), que lhe possibilitarão a elaboração do luto pela identidade infantil e a entrada no mundo dos adultos.
Segundo Osório (1989), há alguns indícios que assinalam o término da adolescência: “(1) Estabelecimento de uma identidade sexual e possibilidade de estabelecer relações afetivas estáveis; (2) capacidade de assumir compromissos profissionais e se manter (“independência econômica”); (3) aquisição de um sistema de valores pessoais (“moral própria”) e (4) relação de reciprocidade com a geração precedente (sobre tudo com os pais)”.
A adolescência não é e nem pode ser compreendida apenas como uma etapa de transição entre a infância e a idade adulta. É uma fase evolutiva com características próprias e uma problemática específica. Essa é uma compreensão emprestada da psicologia evolutiva, para observar-se que, embora a adolescência possa ser acometida por menos moléstias físicas se comparada com a infância e a velhice, o adolescente passa por uma etapa de muita fragilidade psíquica que pode comprometer toda sua saúde e o seu desenvolvimento, se não tiver um bom suporte ambiental.
Nos casos em que o abuso sexual ou a denúncia de um abuso intrafamiliar (que aconteceu ou vem acontecendo desde a infância) ocorrer nessa faixa etária, esse fato se somará às dificuldades e aos conflitos da adolescência.
Essa situação se agrava ainda mais se for considerado que, na maioria dos casos, o abuso sexual não pode ser visto como um episódio isolado na vida de uma adolescente. Pude observar que as relações familiares das garotas violentadas são permeadas por relacionamentos violentos, mesmo nos casos em que o abuso sexual ocorreu fora do âmbito familiar. É dentro da família que o bebê estabelece as primeiras relações afetivas que irão constituir sua subjetividade e influenciar suas relações futuras por toda a sua vida.
Portanto, famílias em que as relações são constantemente permeadas por disputas de poder, agressões físicas e/ou psicológicas constantes e onde há forte desigualdade hierárquica entre pai e mãe, entre homens e mulheres ou entre filhos e pais geram subjetividades marcadas pela violência. É provável que indivíduos, criados em um meio como esse, desenvolvam relacionamentos em que sempre haverá pelo menos um sujeito que é submetido e outro que submete. Então, possivelmente, terão dificuldades de lidar com seu impulso agressivo, tanto em situações de perigo em que precisem se defender, como em situações em que seria importante utilizar seus impulsos agressivos para a criação e a produtividade (no trabalho, nos estudos ou no esporte). Além disso, sabe-se que os agressores de hoje, foram vítimas no passado.
Como foi dito, um ambiente violento produz subjetividades singulares. Como afirmou Teixeira (1996), é um fenômeno humano, que nasce nos meandros da rede social, no campo relacional entre os sujeitos. Segundo Endo (1997), em situações de violência continuada, estabelece-se um tipo de relação assimétrica entre forte e fraco; que muitas vezes instaura-se pela usurpação de uma autoridade previamente estabelecida (dentro da hierarquia familiar, escolar, militar ou do Estado) e de uma apropriação ambígua de um discurso lícito, necessário, inevitável e natural. Por exemplo, pais justificam uma atitude violenta com os filhos dizendo que, como pais, devem educar seus filhos, e não há outro jeito senão através de punições físicas.
Conforme determinação da NOB-SUS 1/96 (Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde), a atenção à saúde compreende três grandes campos: da assistência (“em que as atividades são dirigidas às pessoas, individual ou coletivamente, e que é prestada no âmbito ambulatorial e hospitalar, bem como em outros espaços, especialmente no domicílio”), das intervenções ambientais (“incluindo as relações humanas e as condições sanitárias nos ambientes de vida e de trabalho, o controle de vetores e hospedeiros e a operação de sistemas de saneamento ambiental”) e o das políticas externas ao setor saúde (“interferem nos determinantes sociais do processo saúde-doença das coletividades, de que são partes importantes questões relativas às políticas macroeconômicas, ao emprego, à habitação, à educação, ao lazer e à disponibilidade e qualidade dos alimentos”).
Embora usualmente a atenção à saúde não se realize nesses três campos, no caso do abuso sexual na adolescência, a atenção integral deveria ocorrer em toda a sua amplitude, dada a complexidade e a gravidade da patologia. Porém, é importante que o profissional de saúde, que se envolva com essa ocorrência mórbida, tenha clareza sobre as diferenças entre os campos de atenção à saúde, pois cada um deles requer um tipo de atuação e determina uma área de competência.
O campo da assistência exige uma visão singularizada de cada caso, para que se possa compreender e dar melhor encaminhamento para aquele caso específico. O profissional que atua nesse campo vai influenciar diretamente no destino daquela pessoa ou daquela família particular. Por sua vez, quando o profissional da área da saúde está realizando uma intervenção ambiental, ainda que essa intervenção vá influir na vida das pessoas, o seu foco e sua compreensão estão relacionados às condições de saúde e doença daquela comunidade, às relações interpessoais, às leis e normas que regulam aquele grupo social. Já no outro âmbito de atenção, a preocupação está na criação de políticas e estratégias que norteiem e possibilitem a atenção, nos outros dois níveis, buscando abranger a sociedade como um todo e mobilizando recursos de todos os setores sociais.
Com freqüência, nos casos de abuso sexual, ocorre uma confusão entre a primeira área de atenção à saúde e as outras duas; pois, freqüentemente, envolvem situações-limite; que implicam em risco elevado às integridades física e psíquica do paciente. O abuso sexual exige obrigatoriamente uma intervenção em dois diferentes âmbitos sociais: o legal e o da saúde, que devem acontecer concomitantemente e em constante interação. Assim, a equipe multidisciplinar que estiver envolvida com a assistência à saúde deve criar instrumentos de comunicação interinstitucional que garantam a segurança do adolescente e de sua família, sem se envolver nos trâmites periciais. Se o médico ou qualquer outro profissional da saúde assumir uma postura de julgamento frente ao paciente, pode estar impedindo que se instaure um vínculo de confiança necessário para o tratamento. Ele estará correndo o risco de reproduzir um tipo de relação muito presente e patológico na vida desses pacientes, que é uma relação assimétrica em que um manda e o outro obedece. Além do que, se não puder abster-se de seus valores e preconceitos, estará impedido de perceber as particularidades de cada caso. Se essas interferências ocorrerem, em se tratando de um atendimento a adolescentes, a dificuldade na aderência ao tratamento será ainda maior, pois os adultos já são vistos com desconfiança.
Não se pretende com isso defender uma conduta omissa frente a situações de risco, mas salientar os cuidados na relação do profissional com o paciente, nesses casos. Como já foi dito, o campo da assistência é o campo da singularidade, devendo, pois, ser avaliado caso a caso e determinada uma linha de conduta. Nos casos em que algum membro da família se encontrar em situação de risco, a equipe deve criar estratégias para incentivar a busca de uma ajuda legal. Todavia, nem sempre esse trabalho vai resultar em uma ação e quando o risco for eminente, será necessário pedir uma intervenção legal. Mas essa é uma atitude extrema, que dificultará a continuidade do tratamento e poderá ser ineficiente legalmente, pois a família poderá negar as acusações. Contudo, continuar o tratamento sem um acompanhamento jurídico, em situações de alto risco, seria ineficiente, pois permitiria que a situação de violência se repetisse. Mas, sempre que possível, será mais eficaz sensibilizar algum membro da família para a necessidade de buscar ajuda legal.
Furniss (1993) afirmou que: “Para os profissionais, que precisam lidar com as conseqüências, o abuso sexual da criança é um pesadelo, um campo minado de complexidade e confusão, pessoalmente e profissionalmente, uma ameaça aos papéis tradicionais, um desafio às tradicionais estruturas de cooperação e uma zona de perigo de fracasso profissional ... Como um problema multidisciplinar genuíno e genérico, requer a estreita cooperação de uma ampla gama de diferentes profissionais com diferentes tarefas. Como um problema legal e terapêutico, requer, por parte de todos os profissionais envolvidos, o conhecimento dos aspectos criminais e de proteção da criança, assim como dos aspectos psicológicos”.
A distinção entre os campos de atenção e a postura do profissional frente a eles é bastante polêmica. Como corroborou Furniss, o abuso sexual ameaça os papéis tradicionais e é um desafio para os profissionais de saúde, pois exige deles forte comprometimento, disposição para estar sempre reavaliando sua postura caso a caso, junto com toda a equipe e totalmente despojados de seus valores e preconceitos. Eles são implicados em questões éticas e chamados a tomar decisões sem ferir os direitos e desejos de seus pacientes, mantendo o sigilo, sem omitir-se em situações de risco, além de ter de interferir em situações que socialmente são vistas como pertencentes ao âmbito privado. Essas questões são aqui apontadas sem que se tenha a pretensão de respondê-las, apenas para alertar sobre sua eminência. Devem estar sempre em evidência e em discussão, a fim de que se possa dar uma atenção realmente eficaz nesses casos.
Como foi visto, a adolescência é uma fase de crise tanto para o jovem como para a família. Essa crise se agrava ainda mais quando o abuso sexual ocorre. Com a vitimização, pode ser observada a intensificação das preocupações dos pais em relação à sexualidade da filha. Após 30 anos de revolução sexual, nota-se ainda em muitas famílias uma forte preocupação com a preservação da virgindade da garota até que se case. Assim, nas famílias em que ocorreu abuso sexual, existe uma fantasia de que a adolescente, por ter perdido a virgindade, passará a ter uma vida sexual ativa e não vai conseguir realizar um “bom casamento”. Com isso, os desentendimentos familiares, que normalmente não são explícitos, sobre valores morais e sexuais, normalmente presentes durante esse período da vida, intensificam-se ainda mais. A adolescente passa a se sentir acusada, aprisionada, vigiada e os pais ficam cada vez mais confusos: sem saber o que fazer, tornam-se extremamente rígidos. Com a entrada das filhas na adolescência, as mães que freqüentemente se percebem envelhecendo, sem o viço da juventude, passam a rever seus relacionamentos afetivos e sexuais. Nos casos de abuso sexual, estabelecem um relacionamento bastante ambivalente com as filhas, no qual existe muita competição e culpa, principalmente se o agressor for o companheiro da mãe.
Com essa breve ilustração, de uma pequena parcela da intrincada rede de relações familiares que estão envolvidas nesses casos, é possível demonstrar a necessidade do envolvimento de toda a família nos atendimentos. Do ponto de vista da saúde, nos casos de incesto, não há vítima e agressor, mas um padrão de relacionamento incestuoso que perpassa toda a família. Assim, se for possível, e não representar risco a nenhum membro da família, o perpetrador da violência também deverá ser implicado no tratamento.
Azevedo (1989), referindo-se ao trabalho de Mrazek e Kempe, descreveu as conseqüências do abuso sexual a curto e longo prazos, subdividindo-os em: problemas de ajustamento sexual, interpessoais e outros sintomas psicológicos. Apenas em curto prazo foram indicados problemas educacionais. É importante alertar para a diversidade desses sintomas. Além disso, comparando os efeitos a curto e a longo prazos, a autora afirmou: “Embora as conseqüências identificadas não sejam apenas psicológicas, estas predominam em esmagadora maioria”. Prosseguiu, defendendo que, “... de uma maneira geral, todas as áreas de problemas registram conseqüências muito graves”, tais como: identidade feminina deteriorada, prostituição, choque decorrente de reação dos pais à descoberta do abuso sexual, perda de auto-estima e depressão, entre outras. Referiu ainda que, em estudos acerca das conseqüências do abuso sexual na infância e na adolescência, as vítimas experimentam diversos problemas de adaptação psicossocial.
Jehu e Gazan, in Azevedo (1989), categorizaram esses problemas em dificuldades de adaptações afetiva, interpessoal e sexual. Quanto às dificuldades afetivas, essa autora afirma que as vítimas que procuram ajuda apresentam três problemas intimamente relacionados: experimentam sentimentos de culpa, que, por sua vez, as levam a se sentirem inferiores, provocando um forte sentimento de autodesvalorização, e, freqüentemente, desenvolvem depressão.
No que se refere às relações interpessoais, as mulheres parecem sofrer interferências desadaptativas ligadas ao abuso. Afinal, ressaltou a autora, a violência sexual ocorre na trama de um relacionamento interpessoal. Essas interferências podem ocorrer em três níveis: recusa no estabelecimento de relações com homens (“medo de intimidade”), estabelecimento de relações apenas transitórias com eles e tendência a supersexualizar relações com homens.
Azevedo (1989) assegurou que a área mais seriamente afetada em casos de violência sexual na infância e na adolescência é a da sexualidade, e que, freqüentemente, os problemas nessa área costumam se manifestar algum tempo depois do início de um relacionamento com um novo parceiro, sugerindo o “medo de intimidade” (“que significa medo de estabelecer uma ligação afetiva caracterizada por abertura, confiança e atenção recíprocas, responsabilidade e respeito”).
Apesar das conseqüências mais graves e demoradas a se tratar sejam as seqüelas psicológicas, muitas vezes é importante uma intervenção médica de urgência para tratar possíveis traumatismos genitais e órgãos vizinhos (bexiga, reto). É possível ainda realizar a profilaxia de gestação até 72 horas, após o abuso ter ocorrido. Outra função importante do acompanhamento médico é avaliar a evolução sorológica de doenças sexualmente transmissíveis, como Aids e hepatite, e tratá-las, quando for necessário. Nos casos em que o abuso resultar em gravidez, será necessário o acompanhamento médico para realização do pré-natal ou o encaminhamento para os serviços que realizem aborto legal, se assim o desejar a adolescente.
Há ainda um outro papel relevante do médico nesses casos, que se trata de seu valor estratégico para a adesão às outras áreas de tratamento. Ainda que as conseqüências psíquicas e sociais sejam bastante significativas, muitas vezes os pacientes têm dificuldades de aderir aos tratamentos psicológico e social, pois ainda existe um enorme desconhecimento e preconceito sobre o trabalho desses profissionais. Por sua vez, o médico exerce uma profissão reconhecida socialmente e que tem resultados relativamente rápidos e observáveis. Assim, nota-se que é mais fácil as adolescentes e seus familiares se vincularem primeiro com esses profissionais. Dessa forma, depende, em grande parte, da maneira como ele conduz o encaminhamento para os outros setores, da adesão ou não da adolescente e de sua família ao atendimento psicológico e do serviço social. A este caberia avaliar as alterações comportamentais, sociais e econômicas familiares, decorrentes do abuso sexual ou de sua denúncia (por exemplo, desemprego, necessidade de um abrigo para a família, abandono escolar, etc.).
Frente a esse quadro socioeconômico, poderá auxiliar na estruturação familiar; mobilizando recursos jurídicos, assistenciais e na área da saúde, entre outros. Além disso, é de suma importância que o serviço de saúde esteja em constante comunicação com as outras instituições que estiverem envolvidas no atendimento daquele caso; garantindo a segurança, o atendimento a suas necessidades básicas, a continuidade da adolescente em suas atividades cotidianas, assim como de toda a família; e a possibilidade de estar presente no serviço de saúde durante o período de tratamento. O acompanhamento do processo jurídico deve ser feito pela equipe de saúde por meio desse profissional, pois a impunidade pode causar maiores dificuldades ao tratamento e a reestruturação familiar, fortalecendo ainda mais o sentimento de impotência e depressão. No entanto, é importante que os profissionais de saúde não sejam chamados a adotar uma postura pericial, cabendo aos técnicos das instituições judiciais realizar esse trabalho. Deve ser garantido o sigilo, para que o tratamento possa ter continuidade, pois o paciente precisa estabelecer uma relação de confiança com o profissional de saúde para que possa expor suas dificuldades e seus conflitos sem se sentir recriminado ou julgado. Reafirma-se que o sigilo só será rompido em caso de perigo eminente. Esse distanciamento é necessário até para compreender as possíveis dificuldades que o paciente possa estar tendo para se defender e assim poder auxiliá-lo.
Ao serviço de psicologia, cabe proporcionar um espaço, no qual os sentimentos, que são tão intensos no início, que não conseguem nem ser expressos verbalmente, possam ir ganhando significado à medida que a adolescente ou sua família conseguir ir falando deles. Assim sendo, busca-se eliminar a paralisia no aparelho psíquico da adolescente provocada pelo trauma, ajudando-a a superar o trauma do abuso sexual e a crise da adolescência.
O grupo de iguais é muito importante para o adolescente. No tratamento psicológico, o atendimento em grupo também deve ser considerado, mesmo em se tratando de uma situação de muita fragilidade emocional. Para muitas adolescentes violentadas, o atendimento individual parece ser extremamente persecutório, sendo percebido não como uma situação de maior cuidado, mas como uma situação de desigualdade, na qual o terapeuta detém o poder.
Quanto ao atendimento familiar, permite compreender as dificuldades enfrentadas pela família e conhecer a dinâmica relacional que possibilitou a ocorrência da violência sexual. Muitas vezes, trata-se de uma família disfuncional, que não é capaz de exercer suas funções adequadamente, quais sejam: de cuidado, de prover seus membros, de proteção e de socialização. Mesmo nos casos em que o abuso sexual foi perpetrado por um estranho, freqüentemente observa-se que esse foi apenas mais um episódio de violência na vida dessa garota. Provavelmente a experiência violenta mais importante, por isso deflagra uma crise na estrutura familiar, pois denuncia sua fragilidade e seu funcionamento patológico.
Seguindo essa perspectiva, é que se defende que, nos casos de incesto, há um padrão de comportamento incestuoso, no qual todos da família estão envolvidos. Por isso, não há ganhadores nessa situação, pois todos sofrem com ela. Isso não quer dizer que não deva haver um processo jurídico ocorrendo paralelamente ao atendimento, ao contrário, ele é necessário e imprescindível, pois a impunidade perpetua o ciclo da violência.
Nessas famílias, há o que se chama de “pacto do silêncio” que encobre o incesto, visando proteger a estrutura familiar. Por isso, quando ocorre a denúncia de um abuso sexual intrafamiliar, a família experimenta um forte sentimento de ruptura, que inicialmente parece a seus membros mais destrutivo do que o próprio incesto. Comumente, essa situação leva à retratação da vítima, que nega tudo o que foi dito, buscando proteger a instituição familiar. Isso faz com que seja fundamental o acompanhamento desse núcleo de relação primária. Caso contrário, o “pacto do silêncio” pode-se restabelecer, permitindo que o ciclo da violência se mantenha.
Durante os atendimentos familiares, pode-se perceber que outros membros da família estejam precisando de um atendimento individualizado. Quando várias modalidades de atendimento psicológico ocorrerem conjuntamente, devem ser realizadas por profissionais diferentes, porque o psicólogo envolvido em várias modalidades de atendimento da mesma família estará adotando uma postura onipotente que poderá comprometer todo o processo terapêutico, pois ele não terá o distanciamento necessário para ouvir cada indivíduo em sua singularidade. Se o serviço de saúde não puder dispor de profissionais suficientes, deve-se discutir a prioridade para cada caso.
Nesses casos, observa-se que, no decorrer do atendimento psicológico, eles tendem a ir-se complicando, tendo em vista as dificuldades familiares. Com isso, em geral são atendimentos que levam muito tempo.
Como pode ser observado, a assistência nesses casos é bastante complexa: envolve todo o núcleo social primário, deve ser realizada por uma equipe multidisciplinar e suas conseqüências são bastante graves e variadas. Isso implica um custo alto e prolongado nesses tratamentos, em especial na área de saúde mental. No entanto, a assistência a adolescentes violentadas é imprescindível, para que possam tratar as seqüelas e restabelecer o seu processo natural de desenvolvimento biopsicossocial. Por meio de estudos e pesquisas desenvolvidos a partir da assistência, irá conhecendo-se mais sobre a história natural dessa ocorrência mórbida, permitindo que se definam estratégias mais eficientes de profilaxia.
Nesse campo de atenção, busca-se, basicamente; interferir sanitariamente, para impedir e prevenir riscos nas inter-relações das pessoas com núcleos sociais secundários de convívio (escola, centro de juventude, clubes, igreja, trabalho, etc.), e nas inter-relações das pessoas com seu meio ambiente, bem como na qualidade sanitária dos produtos decorrentes desse convívio produtivo. Geralmente, atua-se nesse campo a partir de padrões normatizados e fiscalizados. Porém, há pouca prática nesse campo, principalmente no âmbito mais específico e direto da profilaxia do abuso sexual. Assim, a regra básica é impedir que o adolescente assuma responsabilidades precoces próprias do mundo adulto, por exemplo, através de uma gravidez indesejada ou da entrada prematura no mercado de trabalho. Quando esse tipo de situação se impõe, mais do que estabelecer regras que impeçam essa ocorrência mórbida, é necessário que não se deixe de incentivá-los a participar de atividades em grupo: de lazer, esportivas e comunitárias. Essas atividades devem ser propiciadas durante toda a adolescência e juventude, buscando despertar neles o respeito ao próprio corpo e ao corpo do outro e elevar seu comprometimento com as questões sociais, aumentando sua auto-estima; isso poderá ajudá-lo a ter uma percepção maior das situações de risco e, assim, evitá-las. Por meio dessas atividades, os adolescentes e jovens, que vivem em um meio ambiente violento, vão poder descobrir novas formas de relacionamento nos grupo de iguais, o que é bastante produtivo nessa fase de contestação dos modelos familiares.
O debate sobre os temas acima mencionados pode ser realizado paralelamente com os profissionais que trabalham nas instituições citadas, aumentando sua consciência social e seu comprometimento, visando a identificação precoce de abuso, facilitando a realização de denúncias e a busca de ajuda legal.
A intervenção nesse campo deveria, primária e fundamentalmente, garantir uma contínua e efetiva articulação das ações dos diferentes setores da sociedade que atuam no combate e tratamento do abuso sexual na adolescência, por meio da intensa comunicação (formal e informal) entre as equipes multidisciplinares da saúde, do judiciário e da escola, assim como entre todo o núcleo social secundário do adolescente.
McAlister (1998) afirma que ultimamente vários trabalhos e livros sobre prevenção da violência têm sido publicados e todos têm dado um enfoque integral, que inclui uma variada modalidade de ação; ou seja, as mudanças de atitudes e a educação devem estar combinadas às políticas e às execuções de leis. Segundo o autor, a violência pode ser reduzida a partir de quatro enfoques de ação:
•1- Modificar o meio ambiente para reduzir a disponibilidade excessiva de reações violentas e mortais;
•2- Interferir nas condições ambientais para diminuir as situações conflitivas;
•3- Transformar as conseqüências, castigando a violência e premiando a não-violência;
•4- Modificar os modelos sociais que possam influir no processo psicossocial da violência.
O autor lembra que a violência também pode ser prevenida por meio do tratamento de patologias individuais, como o alcoolismo e a paranóia. Esse modelo de prevenção permite pensar em uma estratégia profilática contra a violência realmente integral, envolvendo adolescentes, seus familiares, seu ambiente social e a sociedade como um todo; sendo necessário incluir o exercício da cidadania como meio de restaurar os valores sociais agregadores, dentre os quais pode-se citar: justiça social, dignidade e solidariedade.
Isso seria feito através de uma rede interinstitucional, na qual as instituições de justiça devem ser chamadas a exercer sua atividade de maneira eficaz, pois a impunidade incrementa o sentimento de impotência e de desamparo social que reina em nosso país e que deteriora as ações de cidadania.
Os meios de comunicação também têm fomentado a violência através da sua banalização, sem mostrar alternativas para a população, imprimindo um sentimento cada vez maior de descrédito nas instituições públicas e de desvalorização da vida humana. Atualmente, existe uma aproximação entre estes e os profissionais de saúde, mas isso tem sido feito de maneira desorganizada, esporádica e sem muito comprometimento. Seria interessante que os profissionais de saúde passassem a utilizar esse instrumento social como um meio de prevenção e promoção de saúde; de modo mais responsável, com objetivos claros e previamente delimitados, pois são instrumentos potentes na produção de consciência e de veiculação dos modelos sociais.
Por sua vez, as instituições educacionais e de convívio social que agregam jovens e adolescentes (igrejas, centros esportivos, clubes, escolas, etc.), junto com os profissionais de saúde, desenvolveriam programas, nos quais os jovens seriam convidados a assumir responsabilidades por ações sociais e exercitariam sua participação política, a fim de desenvolver uma consciência social, o sentimento de pertencer à sua comunidade e a possibilidade de descobrirem seu valor enquanto cidadãos. Concomitantemente, precisam acreditar que há perspectivas reais de futuro para eles, o que pode ser criado através de atividades oferecidas dentro das escolas e centros de juventude, como: cursos técnicos e de especialização que elas possibilitem desenvolver habilidades e os prepare para entrar no mercado de trabalho. Sem possibilidade de acreditar em um projeto para o seu futuro, os adolescentes são jogados em uma realidade, na qual vale tudo para obter prazer imediato e o envolvimento em atividades de longo prazo não tem sentido.
Promover o exercício da cidadania entre os jovens é garantir-lhes seus direitos e construir, junto com eles, valores sociais e um sentido para cumprirem seus deveres, oferecendo oportunidades iguais para todos sem distinção de raça/etnia, classe social ou gênero, o que, certamente, diminuiria as situações de conflito.
Referências
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Notas:
[1] Ana Helena Seixas - Psicóloga, psicoterapeuta, com especialização em psicologia hospitalar no Hospital das Clínicas de São Paulo (HFMUSP) e em Psicoterapia e Profilaxia da Violência Doméstica. Trabalhou como coordenadora da área de psicologia do Programa de Atenção a Vítimas de Abuso Sexual (PAVAS) implantado no Centro de Saúde Escola da Faculdade de Saúde Pública de São Paulo (USP), durante três anos.
[2] Texto extraído em: http://www.adolec.br/bvs/adolec/P/cadernos/capitulo/cap13/cap13.htm