ESTUDO DE CASO INTERINSTITUCIONAL – UM OLHAR ÀS FRONTEIRAS DA INTERVENÇÃO

 

 

Magda B. Martins Costa

Psicóloga.

 

Sinara Rodrigues Pureza

Educadora do SESRUA/Núcleo Central.

 

 

O presente trabalho tem por objetivo discutir uma prática que vem acontecendo de forma cada vez mais organizada entre os serviços que se propõe a atender crianças e adolescentes com direitos violados: a discussão de caso interinstitucional. Vivemos em uma cidade na qual a discussão e implantação de políticas públicas que se destinam a atenção integral a criança e ao adolescente é colocada como prioridade. Percebe-se, nos últimos anos e a partir do surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, a criação de vários programas e serviços que procuram dar suporte às crianças, adolescentes e suas famílias nos momentos de maior dificuldade. Integram esses serviços profissionais comprometidos, sinceramente preocupados e com a real intenção de contribuir para a resolução do problema do solicitante. Muitas vezes a inclusão em bolsa, encaminhamentos para tratamento, atividades em grupo são intervenções suficientes para que a família, a criança, o adolescente, consigam se reorganizar. Entretanto, há casos mais complexos, nos quais intervenções isoladas não surtem efeito. Esses casos denunciam a dificuldade dos serviços e, principalmente, dos profissionais, de realizarem um trabalho em rede, em parceria. Essa dificuldade gera um atendimento fragmentado, que considera apenas um aspecto - o que lhe diz respeito - no sofrimento do sujeito que vem em busca de auxílio. É comum ouvir-se as falas: O Serviço Social já esgotou sua intervenção. A partir de agora é um caso de saúde mental.”, ou então, “ isso é ato infracional, é com a DECA”.

 

Em paralelo a essa discussão de responsabilidades e papéis, o tempo está passando, a situação ficando cada vez mais grave. Os profissionais não ficam alheios a esse fato, percebem a continuidade e agravamento da situação mas, ao mesmo tempo, sentem-se impotentes dentro de seu campo de intervenção para agir no sentido de modificar o caso. Muitas vezes, é nesse momento que a rede é acessada, e, na maioria das vezes, de forma equivocada. Começam as acusações: o outro serviço está sendo incompetente ou negligente. Quando isso acontece, os serviços distanciam-se cada vez mais do objeto de sua intervenção: a criança, o adolescente e a família. Direcionam a sua preocupação em mostrar para seus pares os encaminhamentos realizados e o esgotamento de suas ações. As acusações se fazem cada vez mais presentes, gerando um sofrimento maior entre as equipes de atendimento: além de continuar presenciando a situação de violação de direitos, sua capacidade profissional é colocada em cheque.

 

Entende-se que a discussão de caso interinstitucional é uma prática que pode auxiliar as equipes dos diferentes serviços a pensar suas intervenções. Possibilita, a partir de um olhar que contemple o fato desde a sua integralidade, a divisão de responsabilidades e que se veja, nos outros componentes da discussão, parceiros comprometidos com a garantia dos direitos daquele que vem solicitar auxílio.

 

Para melhor compreensão dessa proposta, a seguir, será descrito o funcionamento do Serviço de Educação Social de Rua e a forma como procura-se realizar a articulação com os outros serviços que compõe a rede de atendimento à criança e ao adolescente. Será utilizado, como ilustração, um caso que aborda diversos aspectos desta prática que nos propomos a discutir.

 

Educação Social de Rua – Um serviço de fronteiras

 

O SESRUA, atualmente, é composto por duas instâncias: o Núcleo Central e o Núcleo Intersecretarias. O Núcleo Central é formado por equipe (assistente administrativo, monitores e técnicos da Psicologia e Serviço Social) vinculada à Fundação de Assistência Social e Cidadania-PMPA. O Núcleo Intersecretarias, por sua vez, é composto por membros de diversas secretarias municipais ligadas às políticas de assistência, saúde, educação, esporte e cultura. Entre suas atividades o Núcleo Central realiza abordagens solicitadas pela população além de abordagens sistemáticas (em locais conhecidos com grande concentração de crianças e adolescentes com histórico de vida na rua). Na abordagem, o educador aproxima-se da criança e do adolescente com o intuito de fazer um reconhecimento da situação encontrada e na tentativa de estabelecimento do vínculo, condição essencial para a construção dos posteriores encaminhamentos. A partir das informações recebidas durante a abordagem, os educadores iniciam a composição da história de vida do sujeito que será examinada a partir de três olhares, levando em conta a história oral, familiar e institucional. A história de vida oral, consiste na fala da criança e do adolescente, durante a abordagem, sobre a família e sobre os motivos que o levam a estar na rua. A história familiar é obtida por meio de relato dos familiares, principalmente através das visitas domiciliares realizadas pela equipe. A história institucional consiste na verificação das intervenções realizadas pelas instituições (Conselho Tutelar, escola, abrigos, Juizado da Infância e da Juventude) envolvidas com a criança ou adolescente em questão. Entende-se que a articulação desses três eixos é fundamental para que as intervenções sejam realizadas a partir do reconhecimento da criança e do adolescente como um sujeito integral.

 

O Núcleo Intersecretarias é composto por educadores que, além de acolher as crianças e adolescentes nos espaços de atendimento, compõem, sistematicamente, com a equipe de educadores do núcleo central as abordagens na rua. Esse núcleo reúne-se, semanalmente, para trocas de informações, discussão e proposição de encaminhamentos das diversas situações acompanhadas. No entanto, percebeu-se que além destes serviços, existiam mais instituições envolvidas nos atendimentos, como Conselho Tutelar, Ministério Público, Juizado da Infância e Juventude, abrigos da rede estadual, entre outras.

 

Na medida em que se estabelecia algum contato com essas instituições, via-se que muitos dos encaminhamentos e proposições ocorriam de forma paralela e sem conhecimento dos demais serviços. Sentiu-se, então, a importância da composição de um outro momento que reunisse os serviços envolvidos no atendimento daquele sujeito. Constituiu-se, assim, o espaço de discussão do estudo de caso interinstitucional. Buscou-se, por meio desse, uma maior consistência e aprofundamento na apropriação e encaminhamento de cada situação.

Diante da emergência de inúmeras situações, tornou-se necessário fazer uma seleção dos casos a serem discutidos. Passou-se, periodicamente, a elaborar um cronograma, com a indicação dos nomes das crianças e adolescentes a serem acompanhadas. A seleção das indicações é feita pela equipe do núcleo intersecretarias, sendo um dos critérios de prioridade o acompanhamento em um maior número de serviços e, dentro destes serviços, a criança/adolescente que possui maior frequência. As crianças e adolescentes que costumam ser atendidas nesta rede de serviços, são, principalmente, aquelas que utilizam a rua como moradia e sobrevivência.

 

Os outros casos, que envolvem as situações de mendicância e exploração do trabalho infantil, por possuírem características diferenciadas, com um maior vínculo familiar e comunitário acabam por constituir um espaço de discussão de caso interinstitucional que podemos considerar como assistemático, não possuindo um calendário específico de discussão.

 

Uma ilustração das fronteiras do acompanhamento

 

Dentro do que foi colocado, entendemos que seria importante ilustrar nossa prática com um caso acompanhado pelo SESRUA e levado para discussão interinstitucional. Por questões éticas, usaremos nomes fictícios e trocaremos o nomes de algumas localidades, sem prejuízo do entendimento do caso.

Há algum tempo, os educadores do SESRUA vinham encontrando em abordagens, solicitadas pela população, cerca de quinze crianças e adolescentes que mendigavam em sinaleiras nas imediações de um bairro na zona norte de Porto Alegre. A partir dessas abordagens, foi sendo construída a história oral, familiar e institucional de cada um dos sujeitos encontrados. Foi verificado que pertenciam, principalmente, a dois grupos familiares. Identificou-se que uma das famílias, aqui denominada família Silva, estava sendo acompanhada em Programa de Apoio e Proteção à Família. Foram realizados encaminhamentos diante de cada situação encontrada, feitos contatos com a comunidade onde a família era atendida, com a escola e com o Conselho Tutelar da região. A outra família, aqui chamada de Cruz, após sistemáticas abordagens e posterior avaliação da situação familiar, foi incluída, por indicação do SESRUA, em Programa de Apoio e Proteção à Família junto a um núcleo conveniado.

 

Apesar de todos esses encaminhamentos e do acompanhamento realizado às famílias em programas da assistência, as crianças e adolescentes continuavam sendo abordadas na rua. Em uma abordagem noturna, um grupo composto por seis crianças, pertencentes a essas duas famílias, foi encontrado dormindo sob uma marquise, todos muito molhados.

Percebia-se, nessas abordagens que o quadro estava se agravando, pois, já estava acontecendo de, eventualmente, pernoitarem na rua, o que levou a que fosse realizada uma discussão interna, no SESRUA, demandada pelo educador que vinha fazendo contato com os mesmos. Paralelamente, o SESRUA foi procurado pela família Cruz, preocupada com o desaparecimento de casa, há cerca de duas semanas, de um de seus filhos, de oito anos. Passou-se, então, a um outro momento da discussão, buscando maior apropriação da equipe, a partir das histórias individuais, da rede familiar, institucional e social, por onde circulavam estas crianças e adolescentes.

 

Verificou-se que a primogênita da família Silva, hoje uma jovem adulta, levada pelas dificuldades familiares e sociais, iniciou com a mendicância desde muito cedo. Com o passar do tempo, passou a envolver-se com grupos que usavam a rua como moradia, a usar substâncias psicoativas, o que levou a que saísse de casa e passasse a convidar seus irmãos e amigos também a saírem. Dessa forma, um de seus irmãos e o primogênito da família Cruz, em sua companhia, também passaram a usar o espaço da rua como moradia e sobrevivência. Acessavam, separadamente, diversos serviços do Programa Municipal de Atenção Integral a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua (PAICA), como a Escola Porto Alegre (EPA) e o Acolhimento Noturno (A.N.). Passavam alguns períodos em casa, e cada vez mais longos, períodos na rua.

 

Em relação às outras crianças, percebia-se uma importante familiaridade com a rua, espaço onde à noite estavam permanecendo por mais tempo. Os adolescentes e crianças maiores levavam os menores para a rua. Um dos filhos da família Cruz, com cerca de oito anos, já havia sofrido mais de um acidente na sinaleira e encontrava-se, na época, em situação de rua. Por esta razão, foram realizados novos contatos com os núcleos de atendimento comunitário, foram obtidas informações junto ao Fórum Central, sendo que, em relação a algumas das crianças, encontrou-se indicação de abrigagem, provavelmente ocasionada a partir de medidas indicadas pelo Conselho Tutelar.

 

Com uma maior apropriação desses dados, não apenas individualmente, mas fazendo parte de uma rede interligada, percebeu-se a necessidade de uma intervenção conjunta, de uma concentração dos esforços dos vários agentes envolvidos. Viu-se que haviam ocorrido movimentos neste sentido, mas na sua maioria parciais, abarcando alguns dos serviços. Essas ações paralelas acabavam por não dar conta do conjunto de situações, levando a críticas e mal entendidos desnecessários entre todos os envolvidos. A partir desta constatação foi marcada uma discussão de caso interinstitucional. Por uma questão prática, não seria possível reunir todas as instituições envolvidas no atendimento das duas famílias. Optou-se pela discussão de cada um dos núcleos familiares, sem perder de vistas as ligações existentes entre eles.

 

Nestas discussões em que participaram representantes dos diversos serviços envolvidos no acompanhamento da família Silva, foram vistas, pensadas e avaliadas, o conjunto de intervenções até então realizadas. Foi visto que a família encontrava-se já há algum tempo em atendimento pelo Centro Regional, participando em Programa de Apoio e Proteção à Família. As crianças em idade de serem atendidas no serviço de atendimento sócio-educativo (SASE), foram incluídas. Os adolescentes foram vinculados a programas próprios para esta faixa etária, como Agente Jovem, ou grupo de trabalho educativo. As crianças de menor idade foram inscritos em creche junto à comunidade, no entanto, a família considerou melhor mantê-los em casa. Foram, também, incluídos em Programa de Leite, junto à Unidade de Saúde. No entanto, a família não os levava para o acompanhamento em saúde, o que levou a que fossem desligados do Programa.

 

Apareceram, assim, no decurso das discussões, as dificuldades dessa família em usar em benefício próprio o que lhe era oferecido pelos diversos programas em que foram incluídos. Entendeu-se que, neste momento, as metas da assistência social e da educação estavam sendo de certa forma cumpridas. As crianças e adolescentes estavam mais freqüentes à escola e aos programas da assistência. No entanto, a situação da jovem adulta, foragida da justiça depois de ter assassinado um rapaz, o vínculo com a rua estabelecido, principalmente, pelas crianças e adolescentes denotavam uma importante negligência, uma grande permissividade destes pais nos cuidados prestados aos filhos. Os pais verbalizavam, em algumas entrevistas, uma concepção de que as crianças se criam sozinhas. Consideravam a rua como um espaço de aprendizagem, parecendo não terem consciência do risco existente nesta autonomia precoce e inversamente estabelecida. Pode-se pensar que há uma inversão da função parental, materna e paterna, na medida em que os pais ficam em casa, e os filhos são chamados a proverem e cuidarem da família.

 

Articulação dos serviços – Um compartilhar de fronteiras

 

A partir do que foi anteriormente mencionado, entende-se que a discussão de caso interinstitucional proporciona um olhar, compartilhado por vários parceiros, para a especificidade de cada caso, de cada sujeito envolvido na trama social abordada. Trata-se de uma fronteira em que a linha demarcadora não encontra-se muito bem definida constituindo-se em uma espécie de amálgama. A idéia desta fronteira parece ser apropriada na medida em que o SESRUA é um serviço que, desde sua estrutura, possui esta característica de dentro/fora, núcleo central e núcleo intersecretarias. Também a população que é atendida tem esta especificidade fronteiriça, se podemos dizer assim, muitas vezes é considerada como marginal, à margem da sociedade, da escola, da família, não são os excluídos? Os que estão fora? Mas, também, não estão dentro da trama social?

 

Quando pontua-se a questão do amálgama das intervenções, torna-se necessária uma reflexão acerca dos limites, das atividades de cada serviço, para que o processo de integração não se desvie para a confusão e desresponsabilização. Até onde vai o papel do educador social de rua e onde deve entrar a ação do conselheiro tutelar? Quem toma as medidas de proteção e quem detecta a demanda? Quem procura o menino na rua? E, quem continua o trabalho de acompanhamento do caso após os primeiros encaminhamentos institucionais? Como se articulam as ações sem se sobreporem?

Após a discussão de caso interinstitucional, os participantes levam consigo elementos preciosos que poderão enriquecer a sua intervenção em relação à família ou sujeito discutido. O educador social de rua, em seu trabalho de abordagem, poderá encontrar novamente um indivíduo que teve seu caso discutido coletivamente. A partir do momento que está apropriado dos encaminhamentos propostos na discussão de caso interinstitucional, poderá atuar de uma forma mais integrada com os demais serviços envolvidos no acompanhamento, retomando as combinações com o sujeito encontrado.

 

Morin[1] , pensador contemporâneo que tem se dedicado a refletir sobre a complexidade da nossa sociedade, aponta para a necessidade de prestarmos mais atenção às relações, ou, como fala o autor, interações, entre as partes que compõe o tecido social. Segundo o autor, as interações permitiriam a organização do sistema. Essa organização possibilitaria um funcionamento coerente, permeado por regras e regulações, estruturando as relações.

 

Nesse sentido, cabe lembrar que durante a discussão de caso interinstitucional, ocorre a emergência de idéias que só é possível devido ao relato das práticas individuais e que, ao final da discussão, não se reduz apenas a soma das experiências, e sim, a uma ação constituída a partir da interação dos serviços. Esta interação poderá ser sentida por quem está sendo atendido ao perceber coerência e complementaridade nas ações propostas pois, desta forma, não se perde de vista o todo, o sujeito integralmente atendido. A iniciativa de realizar estudos dos casos em redes de serviços e programas que atuam direta ou indiretamente com esta população parece ser o que mais se aproxima de uma ação efetiva para cercear as carências de atendimento e resolver as demandas.

 

Com a ilustração desta prática não queremos colocar um entendimento completo, fechado, a solução da situação, mas sim possibilitar novos questionamentos, abrir novas fronteiras, descobrir novos caminhos, mesmo que todos se pensem mapeados. Como nos diz Saramago[2], sempre existem novas ilhas a serem descobertas, novas fronteiras a serem conquistadas.

 

 

Resumo

 

Verificamos, nos últimos anos, um aumento substancial da pobreza e o surgimento de uma categoria que nos deixa atônitos: aqueles situados abaixo da linha de pobreza - os miseráveis. O crescimento quantitativo vem acompanhado de uma complexificação dos cenários de exclusão: problemas financeiros somam-se à questão do uso de drogas, da disseminação do vírus HIV e das dificuldades em relação à saúde mental. Essa transformação exige dos serviços que se propõe a trabalhar com essa população uma reflexão sobre o seu fazer e a busca de alternativas que dêem conta dessa problemática. Pensando nessas questões, propomos, neste artigo, a reflexão de uma prática social que passamos a utilizar recentemente no Serviço de Educação Social de Rua que é o estudo de caso interinstitucional. Essa prática visa a participação dos profissionais envolvidos no acompanhamento de determinadas situações abrindo maiores possibilidades de apropriação do histórico individual, familiar e institucional da criança e/ou adolescente.

 

 

NOTAS

[1] MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

[2] SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.