SIGNIFICAÇÕES ATRIBUÍDAS
AO COTIDIANO PELO ADOLESCENTE POBRE
Evenice S. Chaves[1]
Mestre em Psicologia.
Introdução
Coexistem, na Psicologia do
Desenvolvimento, um ponto de vista a-histórico e
outro culturalmente situado.
BURMAN (1997) afirma que a perspectiva a-histórica assenta-se na concepção do corpo natural,
oriunda do iluminismo ocidental do século XIX. De acordo com esta autora, a
vertente foi historicamente construída a partir dos primeiros psicólogos, os
quais tomaram a criança como objeto de estudo, concebendo, de modo
naturalizado, que cada uma repetia, em seu ciclo de desenvolvimento, o processo
de desenvolvimento da espécie. BURMAN (1997) também acrescenta que, neste
olhar, a concepção de desenvolvimento é significada como se este fosse
produzido dentro do corpo da criança, sem a influência do contexto social,
decorrendo a concepção da criança abstrata.
Corroborando tal perspectiva, CASTRO
(1996) assegura que a mesma pressupõe ordem, racionalidade, regularidade,
cronologia, seqüência e complexidade crescente.
Tais fundamentos expandiram-se dos
estudos sobre o desenvolvimento da criança para a compreensão do
desenvolvimento humano em geral.
No plano epistemológico, as teorias de
desenvolvimento universalizantes assentam-se no
estruturalismo clássico, cujo fundamento, conforme DEMO (2000), é a suposição
de um núcleo invariante. Remetendo-se à psicologia do desenvolvimento, tal
invariante impinge a direção do desenvolvimento e possibilita a sua
previsibilidade, o que é articulado, de forma descritiva, em muitas teorias,
através da noção de fases ou etapas. Ressalta-se que as mesmas, ao buscarem
explicar, de modo invariante, mecanismos e processos do desenvolvimento humano,
desconsideram a diversidade.
MISRA & GERGEN (1993) elucidam que, historicamente, a especificidade advinda de variações culturais têm
desempenhado um papel periférico na construção científica da Psicologia.
Salientam, inclusive, que quando há um interesse focal sobre questões
culturais, a variabilidade é tomada de modo superficial.
ANDRADE & NOVO (2000) compactuam com
tal observação, ao afirmarem que "não se trata de uma negação dos fatores
culturais, pois a importância destes é considerada pelos teóricos do
desenvolvimento, mas estes fatores são avaliados como algo que incide sobre
determinada estrutura, facilitando ou dificultando a aprendizagem" (p.95).
BURMAN (1997) adverte para a
homogeneização e colonização sustentadas por tal modelo de desenvolvimento
unitário, porque o mesmo nega, como constitutivo do processo de
desenvolvimento, a ocorrência de interesses que competem, de conflitos e de
contradições: embora ocorram, são tomados como desvio, inferioridade ou
patologia.
Nesta conformação, compete à psicologia
do desenvolvimento intervir para colaborar na construção e manutenção de cursos
saudáveis de desenvolvimento humano. Contudo, se o saudável é o semelhante,
desconstrói-se, na verdade, a construção histórico-cultural concreta dos
humanos, ao serem impostas concepções, teorias e modos de ser normatizadores, enquanto sinônimo dos estilos de vida
saudáveis.
Isto, certamente, tem colaborado para a
perpetuação da colonização intelectual de diferentes povos, a partir da
inculcação de padrões euro-americanos do perceber, do
pensar, do representar, do sentir, do atuar, do relacionar-se, do elaborar
projetos de vida. Então, nada mais plausível que a compreensão de que toda
construção científica tem uma dimensão política e ideológica, conforme assinala
DEMO (1985).
A adolescência, no ponto de vista a-histórico, é concebida a partir da noção de fases do
desenvolvimento: as transformações sócio-psicológicas emergentes são explanadas
como decorrentes de mudanças fisiológicas e hormonais (NASCIMENTO, 1999a.).
Particularidades atribuídas à
adolescência são abordadas como processo universal, linear, que se complexifica no tempo. Estudiosos (PFROMM NETO, 1971;
MUSSEN, CONGER & KAGAN, 1977; NASCIMENTO, 1999a) citam que nesta fase
emergem, dentre outros, as crises, os conflitos e a exacerbação da sexualidade.
NASCIMENTO (1999a) discorre que a
"crise da adolescência" é normalmente significada pelos autores como
referente a conflitos individuais. Cita que apesar do seu loco ser o indivíduo, as crises são universais e engendradas pelas
modificações no corpo do adolescente, produzidas pela puberdade. NASCIMENTO
(1999a) ainda afirma que as crises nem sempre explicitam-se
através de atitudes dramáticas, podendo ser silenciosas. Justifica, então, a
existência da crise como especificidade da adolescência.
Além de corroborar a concepção natural do
desenvolvimento humano na adolescência, a autora acima
referida apenas enuncia os indicadores das crises: as atitudes dramáticas e o
silêncio. Desse modo, não aborda as suas materializações, as quais se expressam
nas ações humanas.
As crises, os conflitos e as contradições
não existem em outros momentos do ciclo de vida humano? Como constitutivo da processualidade do desenvolvimento, que transcorre no
tecido social e nas relações interpessoais, eles emergem em qualquer momento da
existência humana, condicionados por diferentes circunstâncias. Além do mais,
constituem-se enquanto possibilidades de mudanças sociais, grupais e pessoais.
NASCIMENTO (1999a) admite-as como produtoras de rupturas da construção do novo
ser, sem, neste ponto, enfocar o papel dos contextos e das situações na
configuração das crises, dos conflitos, das rupturas e das re-construções
pessoais.
Compatível com a concepção de patologia,
delineada no enfoque a-histórico, como abordar as
ações humanas que se diferenciam daquelas rotuladas como normais? como situar
as crises, os conflitos e as contradições, especificidades consideradas como
pertinentes à adolescência? Estão na ordem da patologia e do desequilíbrio
emocional? Como não considerá-las enquanto desvio, quando busca se
explaná-las?
O referido enfoque justifica as mudanças
na pessoalidade do adolescente como engendradas por transformações biológicas,
portanto, naturais. Isto as particulariza enquanto especificidade desse momento
existencial, o que justifica socialmente maior tolerabilidade às diferenças,
consideradas como normais. ABRAMO (in ANDRADE & NOVO, 2000) relata que, a
despeito das diversidades teóricas, há uma noção uniformizadora, a
transitoriedade, que situa a juventude [2] como período dispensado à preparação
para a inserção na vida adulta. A concepção implícita e ideológica de que os
conflitos e as crises serão superados na idade adulta, coaduna a perspectiva do natural e orgânico, conduzindo à visão de ser humano passivo e
domesticável pela própria natureza.
O exercício do aprendizado requer o
desempenho de novos papéis sociais, a reconstrução de processos de subjetivação
e novas modalidades de participação social. Contudo, a própria cotidianidade
mostra que, dependendo do lugar social ocupado pelo adolescente, das suas
inserções e participações sociais, a processualidade
da qual decorrem as mudanças nas ações, compreensões, afetividade e atividades,
não ocorrem de forma similar a todos, o que contradiz a noção dos universais.
Tais questões remetem à consideração da
adolescência como socialmente construída, eivada pela formação econômico-social
e pelos condicionantes culturais.
Depreende-se, então, que as
características difundidas como inerentes à adolescência: i) não se sustentam
quando o olhar é dirigido ao cotidiano, permeado pela diversidade; 2) não podem
ser tomadas como universais, pois as diferenças falsificam a perspectiva
teórica universalizante; 3) emergem em outros
momentos do ciclo de vida, a depender das circunstâncias sociais e da própria processualidade inerente à existência dos seres humanos; 4)
diferentes inserções sociais produzem diversas adolescências.
Das reflexões epistemológicas engendradas
por diferentes autores emerge outra perspectiva teórica: o ponto de vista
culturalmente situado. Concebendo a noção de diversidade como constituinte e
constitutiva do processo de desenvolvimento humano, assinala-se que a processualidade produz diferenças, dada a participação dos
diversos condicionantes culturais na construção social das pessoas, dos seus
modos de vida, das subjetividades sociais e individuais.
A noção de processo é significada como a
produção de descontinuidades, caos, desordem, rupturas e re-ordenamentos
transitórios. ANDRADE (1998) afirma que tal concepção de processualidade
prioriza a diversidade, produzida pelo caos, como o fundamento dos fenômenos
psicológicos, não capturáveis à noção de universais e
de homogeneidade. Ao contrário, salienta a estudiosa, da desordem emerge a
diferença, produtora de modificações em qualquer que seja a configuração.
Tal noção, dentre outras coisas,
re-significa a compreensão da diferença, não mais entendida como patologia;
reconfigura-se a dualidade saúde-enfermidade, não apenas como um estado do organismo,
porém como um processo ligado aos modos de vida. COSTA & LÓPEZ (1986)
afirmam que a saúde é um processo que tem como constitutivo a dimensão pública,
na medida em que a história pessoal é construída no meio social.
Em suma, a saúde "seu cultivo, sua deterioração ou perda
irreparável, estão inexoravelmente ligados aos modos de vida social, aos riscos
e desafios ambientais, aos alimentos que consumimos, à vida produtiva, à
desigual distribuição de recursos sócio-econômicos e, definitivamente, ao espaço
público em que vivem os indivíduos, as organizações e as comunidades" (COSTA
& LÓPEZ, 1986, p,17).
Depreende-se, pois, que compreender o
sujeito social implica na captação dos lugares e das situações sociais onde o
mesmo está inserido; dos relacionamentos interpessoais configuradores do
processo de construção/reconstrução da pessoalidade; dos mecanismos de
subjetivação; dos projetos de vida.
Isto requer a identificação e o
entendimento de redes de ações, significados e sentidos atribuídos aos eventos pelos
adolescentes, das suas diferentes concepções e engajamentos, ancorados em
cenários econômicos, culturais, sociais e institucionais.
SALLES (1998), estudando a representação
social de adolescentes paulistas que freqüentavam a escola pública de primeiro
e segundo graus, relatou, a partir dos dados obtidos: apesar daqueles jovens
explicitarem especificidades inerentes aos adolescentes, como
irresponsabilidade, ausência de preocupações para com o futuro, necessidade de
ter liberdade e presentificar a vida, vivendo cada
momento atual, não incluíam tais características como próprias do seu jeito de
ser e atuar no mundo.
Os achados produzidos por tal estudo
demonstram que as representações sociais, culturalmente construídas, são
internalizadas, porém não assimiladas pelos adolescentes enquanto referencial
pessoal, na medida em que os atores sociais investigados não se identificavam
com aquelas condutas. Assim, estes dados falsificam a noção de homogeneidade e
regularidade enquanto especificidade sócio psicológica
inerente à adolescência.
Relativo à sexualidade, TRIPOLI (1998)
realizou, em São Paulo, uma pesquisa sobre o "ficar", com
adolescentes que freqüentavam uma escola particular e cursavam a terceira série
do ensino de segundo grau. Suas conclusões evidenciam o papel das
transformações culturais e suas inter-relações com o modo de ser dos
adolescentes: i) os discursos obtidos foram atravessados por valores mais
conservadores, quando comparados àqueles expressos pelos adolescentes dos anos
70; 2) o "ficar" foi significado pelos adolescentes como estratégia
de escolha de parceiros, por permitir conhecer vários
e selecionar aqueles que supunham serem os mais interessantes; 3) a
identificação de diferenças qualitativas entre o ponto de vista masculino e
feminino, sobre o “ficar”.
Tais resultados indicam que
transformações sociais e mudanças nos códigos de conduta, engendram
modificações nos estilos de vida e nos valores. Diferentes momentos da história
social estruturam quadros referenciais valorativos diversos. Mais uma vez, a
noção do natural como produtor de transformações parece inconsistente.
Outra questão evidenciada é a de que o
"ficar" não pode ser interpretado a partir da ótica da impulsividade
e da exacerbação da sexualidade, devido às transformações corporais de natureza
biológica, porém como escolhas de estratégias que permitem a seleção de
parceiros compatíveis com os critérios estruturados pelos adolescentes.
O estudo ainda possibilita questionar a
noção de homogeneização dos resultados: diferenças de gênero evidenciam o papel
da cultura na constituição do ser homem e do ser mulher.
NASCIMENTO (1999b), em Salvador, analisou
trajetórias humanas e resgatou, através de reconstrução de aspectos da história
de vida dos participantes da pesquisa realizada, vivências da adolescência,
ocorridas entre os anos cinqüenta e os anos noventa.
Os resultados são indicativos de
diferenciações nos modos de vida durante a adolescência, quando considera-se: 1) a idade do informante e conseqüente momento
social era que viveram a adolescência; 2) os lugares sociais ocupados pelos
informantes, quando se leva em conta as suas diferentes condições de
existência, demarcadoras de inserções e participações sociais diversas, dado os
lugares econômico-social ocupados; 3) a diversidade nos estilos de vida, quando
consideram-se as diferentes décadas.
Compreender o processo de desenvolvimento
humano, em qualquer momento do ciclo de vida, implica considerar circunstâncias
sócio-históricas diversas, como, também, o papel da cultura na construção do
sujeito social e da pessoalidade.
A cultura é constituinte e constitutiva
do ser humano, dos grupos sociais e da sociedade. ARAÚJO (1996) a conceitua
como o arsenal de significados referentes às visões de mundo, aos valores, às
crenças, aos sentimentos e às idéias representativas da vida de seres humanos
em sua historicidade, considerando-se os conflitos e as contradições.
As especificidades humanas desenvolvem-se
e atualizam-se na cultura. BRUNER (1997) aborda o cotidiano como o campo
comprometido com as transações que ocorrem entre os seres humanos, na vida
diária. O referido autor expõe que tais transações estão atreladas à linguagem
e a uma estrutura conceitual compartilhada, portanto, cultural, que tem como
constituintes os comprometimentos e os desejos.
Para BRUNER (1997), os sistemas
simbólicos culturais são empregados pelas pessoas na construção de
significados. Compete à Psicologia elucidar os processos produtores e
utilizadores de significados, que agregam o ser humano à cultura.
LAX (1998) situa o intrincamento
entre a cultura e o significado na conversação, descrevendo o seu
desenvolvimento como resultante do que se constrói em conjunto com outros
atores sociais. Relata que a história pessoal é processual, definidora da pessoalidade,
a partir das interações de cada ser humano com as maneiras de entendimentos
percebidos por outros, sobre cada pessoa em particular.
Enquanto referencial, o enfoque cultural
contribui na articulação de formas de investigação sobre a adolescência,
requerendo a identificação das expressões dos processos sócio
psicológicos a partir da ótica do ator social, o próprio adolescente.
Neste contexto teórico, a presente
pesquisa objetivou:
*
Descrever modos de vida de adolescentes pobres.
*
Identificar processos de subjetivação decorrentes de suas inserções e
relações sociais.
*
Identificar projetos de vida dos adolescentes.
*
Empregar as caracterizações obtidas como guias orientadores na posterior
e imediata implementação de um grupo em educação para a saúde, com os próprios
adolescentes participantes desta pesquisa.
A
abordagem metodológica
A abordagem metodológica qualitativa
conduziu o estudo. GONZÁLEZ REY (1999) afirma que a investigação qualitativa
dirige-se ao conhecimento da subjetividade, cujas dimensões constituintes
intrincam-se com diversos processos. Tal enfoque, afirma o autor supra citado,
orienta-se nas rotas individuais específicas inerentes à expressão dos
participantes da investigação, caminho que produz construções teóricas.
O
contexto operacional da pesquisa
Foi realizada em Salvador, no 15° Centro de Saúde, localizado em um bairro de periferia,
denominado Vale das Pedrinhas. O serviço de saúde, vinculado ao distrito
sanitário Barra/Rio Vermelho, oferecia aos
adolescentes, na época de realização da pesquisa, atendimento individual, de
natureza curativa, e atendimento grupal, orientado pela prevenção primária e
promoção de saúde.
Este estudo englobava-se num maior
projeto: a subseqüente e imediata participação dos mesmos adolescentes em um
grupo de educação para a saúde, com duração de dois semestres letivos. Além do
objetivo acadêmico de construção de conhecimentos sobre o adolescente pobre, empregou-se os achados da pesquisa, como referencial, na
atividade de promoção de saúde.
A primeira tarefa da pesquisa foi a seleção dos adolescentes que comporiam o quadro dos atores
sociais participantes da investigação. Referenciando-se no modelo de busca do
usuário (COSTA & LÓPEZ, 1986) contatou-se, primeiramente, com adolescentes
que procuraram atendimento individual no 15° Centro.
Também contatou-se com adolescentes da comunidade, que
estudavam em escola municipal localizada próxima ao serviço de saúde, coma qual
já se mantinha um relacionamento centrado no trabalho com adolescentes. A todos
que foram contatados, anunciou-se a oferta do grupo em
educação para a saúde, a ser implementado no 15° Centro de Saúde.
Tanto no serviço de saúde quanto nas
salas de aula, explicitou-se: o objetivo do trabalho; o modo de desenvolvimento
das atividades; a oportunidade para reflexões pessoais e coletivas sobre temas
de seus interesses, emergentes no cotidiano de cada um; as possíveis
implicações decorrentes em seus modos de vida pessoal e coletivo; que apenas os
adolescentes, dois profissionais da área de saúde e estagiários do Curso de
Graduação em Psicologia seriam os participantes; que seria respeitado o sigilo,
durante todo o processo de trabalho; que as suas participações deveriam ser
voluntárias, caso consentissem em integrar-se ao programa. Após tais
esclarecimentos, solicitou-se que os adolescentes refletissem e decidissem se
gostariam de participar da atividade. Em caso positivo, deveriam
procurar, no 15° Centro, o profissional determinado para formalizarem
suas adesões. A data para anunciarem o consentimento e a adesão foi agendada.
Compareceram ao serviço de saúde 14
adolescentes. Destes, nove foram selecionados, a partir dos seguintes
critérios: ter interesse definido sobre temas presentes em suas vidas que
gostariam de discutir no grupo de educação para a saúde; ter interesse peculiar
àquele momento de vida, ainda que em termos da idade cronológica pudessem ser
categorizados como crianças; ter tempo disponível para a participação em toda a
atividade; ter o consentimento dos pais ou responsável para engajarem-se
naquele trabalho.
Subseqüentemente foram marcadas
a data, a hora e o local para a realização das entrevistas individuais.
Aconteceram numa sala de atendimento aos usuários, localizada no serviço de
saúde. A dinâmica da coleta de informações processou-se numa situação
interativa entre um entrevistador e um adolescente. O primeiro introduzia a
temática e o adolescente provinha informações, de
acordo com sua própria seleção de conteúdos, os quais relatava. A duração média
de cada uma foi de cinqüenta minutos.
A técnica de entrevista selecionada e
empregada foi a denominada por GIL (1987) de entrevista por pautas. A mesma foi
escolhida porque permitia flexibilidade na condução, respostas abertas, além da
obtenção do ponto de vista dos adolescentes sobre aspectos de suas vidas.
Privilegiou-se cada ator participante, os significados e sentidos que conferiam
às suas experiências, o modo como avaliavam aspectos das suas vivências e seus
projetos de vida. As pautas investigados foram:
relações interpessoais; vida escolar; vida familiar; trabalho, alegrias,
desencantos e projetos de vida.
Os conteúdos expressos em cada entrevista
foram registrados. A organização, o tratamento e a análise das informações
orientou-se pela especificação dos indicadores, construção de categorias,
análise de inter-relações inter-categorias
(GONZÁLEZ REY, 1999) e inter-sujeitos,
além do destaque aos conteúdos singulares relatados e aos não relatados,
considerados como relevantes na compreensão configuracional
das interpretações.
Caracterização
dos adolescentes
Nove adolescentes, com idade entre nove e
treze anos, compuseram o universo da amostra intencional. Três eram do gênero
feminino e seis do gênero masculino. Residiam em dois bairros vizinhos,
entrelaçados e localizados na periferia de Salvador (Bahia), com precárias
condições de saneamento; tipo de moradias incompatíveis com as necessidades das
famílias; transporte urbano insuficiente para a locomoção dos moradores. O
desemprego estava presente na vida de muitas famílias.
Naqueles bairros, destacavam-se
a violência, tanto estrutural, quanto doméstica. Era palco de furtos,
roubo, tiroteios, assassinatos, estupros, uso e tráfico de drogas.
Cinco adolescentes residiam com mais
quatro pessoas, com o seguinte grau de parentesco: em quatro casos, pai, mãe e
irmãos; no quinto caso, com mãe, avó, tia e prima. Dois adolescentes moravam
com mais seis pessoas : pai, mãe e quatro tios; mãe, padrasto, dois irmãos, uma
tia e uma prima. Outro compartilhava a habitação com três pessoas: padrasto,
mãe e irmã. Finalmente, um convivia com duas pessoas: pai e mãe. Esta
diversidade contrapõe-se à noção homogênea da família brasileira como nuclear
burguesa.
Apesar de pobres, os adolescentes viviam
em residências, convivendo com os adultos que lhes forneciam proteção,
alimentação e inserção na escola.
O tempo de residência de cinco dos
adolescentes no mesmo bairro, entre oito e treze anos de permanência, leva à
inferência sobre a perpetuação do ciclo de pobreza em suas famílias, pois,
apesar das adversidades, não trocaram suas residências para outros locais que
oferecessem melhores condições de habitação, segurança e possibilidades de
outros estilos de vida. Dois adolescentes informaram não saber por quanto tempo
residiam no bairro. Seriam moradores antigos sem conseguir reconstruir em anos
o tempo de moradia naquele local?
O atraso escolar evidenciou-se através da
razão idade-série que freqüentavam. Sete anos é a idade formal para o ingresso
no ensino fundamental de primeiro grau. Sete adolescentes estavam atrasados em
relação à série que cursavam. Isto pode indicar a própria condição de pobreza e
a qualidade das escolas públicas. Tais fatores exercem impacto sobre o ingresso
tardio na escola ou na ocorrência de reprovações.
Dos que compuseram o universo da
pesquisa, apenas três eram do gênero feminino. Tal minoria pode estar ligada às
dificuldades em dispor de tempo livre para engajarem-se na atividade oferecida
pelo serviço de saúde, haja vista a necessidade de tempo disponível para
cuidarem de irmãos e realizarem outras tarefas domésticas, situação corriqueira
nas famílias pobres, dada a própria condição social.
Quadro
1. Características dos adolescentes e local de residência.
Fonte: entrevistas realizadas com os
próprios adolescentes; Legenda: M = masculino; F = feminino.
Quanto a construções de atividades
coletivas, oito adolescentes falaram da realização de tarefas escolares. Outro
relatou nunca ter tido qualquer experiência grupal.
Supõe-se que tanto o cotidiano familiar
quanto o escolar não favoreciam a realização de atividades coletivas, pois não
mencionaram atividades realizadas em grupo, naqueles espaços sociais. Isto
conduz à hipótese do modo de construção pessoal engendrado pela formação
econômico-social e ideológica brasileira: valorização e incentivo ao
individualismo e à competição, já implícitos na própria vida escolar, que,
geralmente, desconsidera a realização de atividades coletivas, calcadas na vida
da comunidade onde a escola se insere. Tal prática desfavorece a construção da
solidariedade e sua expressão na vida comunal.
No âmbito doméstico, infere-se que,
provavelmente, as atividades realizadas pelos adolescentes, no cotidiano,
concentravam-se na realização de tarefas delegadas por outros. Assim, eles não
se situavam como co-construtores, porém como cumpridores de ordens. Os seus
relatos sobre a realização de trabalhos domésticos corroboram tal hipótese.
Como atividade desenvolvida
coletivamente, observou-se que um adolescente referiu-se a jogar bola, ao
relatar conteúdos sobre a realização de ações coletivamente construídas. Outra
fez referência à sua participação em um grupo de capoeira. Assim, a representação e conceituação de atividade em grupo apenas situou-se,
na significação dos dois adolescentes, no âmbito da brincadeira, o que denota a
ausência de participação em construções coletivas familiares, escolares ou
comunitárias.
Os relatos sobre as relações familiares
expressaram: interações pais-filhos; realização de
trabalhos domésticos; prazeres; preocupações; desencantos e medos.
Relativo às interações na família, uma
adolescente citou ser vítima de violência física perpetrada por um dos
genitores: a ocorrência de fratura em um braço, resultante de uma repreensão,
porque a mesma discutira com uma vizinha. Pode-se inferir que, além da pressão
exercida pelo adulto supostamente provedor de cuidados e proteção à
adolescente, o mesmo operacionalizava práticas educativas e afirmava a sua
autoridade através da violência. Após referir-se ao episódio, acrescentou que
não gostava de ficar sozinha no lar.
Cinco descreveram situações de brigas com
familiares: pai, mãe, irmãos e irmãs. Desse modo, na maioria dos casos, os
conflitos familiares eram enfrentados com ações violentas entre pais e filhos(as) e entre irmãos. O ciclo de violência no bairro e nos
estilos de vida comunitário também evidenciou-se nos
lares dos adolescentes, embora ressalte-se aqui, que não circunscreve-se, nesta
interpretação, uma perspectiva de relação linear entre violência no
bairro/violência no lar. Todavia, destaca-se o relato da adolescente vítima de
violência física no lar, de que um dos seus genitores envolveu-se em um
assassinato. Esta ocorrência indicaria a existência de adultos que cometem
violência em outros contextos sociais e, porque não, também na residência?
Por outro lado, a ausência de relatos
acerca da convivência familiar, por três adolescentes, gera a hipótese de que
interações no lar são escassas.
A respeito de características da
individualidade, apenas um adolescente relatou aborrecer-se quando modificações
eram promovidas no ordenamento de seus objetos pessoais. O fato é indicativo da
ausência de sua participação na escolha dos lugares onde seus objetos são
guardados e da sua sujeição à autoridade de outros
membros da família. Considerando-se que sete pessoas moravam na sua residência,
infere-se que, provavelmente, a ocupação do espaço dentro de sua casa
efetivava-se através de competições para a ocupação de locais e ambientes.
Todos os adolescentes afirmaram que
desenvolviam trabalhos domésticos de apoio à limpeza, à organização da casa, e
cuidar de irmãos. Apenas uma adolescente verbalizou que trabalhava fora do lar,
ajudando a tia na faxina de um prédio.
Oito deles revelam-se como diferenciados,
por não necessitarem trabalhar fora, quando comparados à que trabalhava em
faxina, como muitos outros adolescentes pobres. Confrontando-os com aqueles outros
oriundos de classes sociais mais privilegiadas, observa-se que estes últimos
geralmente não participam da realização de tarefas domésticas. Contudo, o
adolescente pobre, desde cedo trabalha, embora as atividades que realizam no
lar sequer sejam socialmente reconhecidas como trabalho.
Considerando-se a adolescência como
período preparatório para o ingresso no mundo do trabalho, ao adolescente
social e economicamente privilegiado, a escolarização formal e as atividades
educativas complementares cumprem esta função. No caso do adolescente pobre,
além das escolas que freqüentavam serem de pior qualidade, o que compromete a
sua formação para a inserção no mundo do trabalho, pois o aprendizado para a
vida adulta concentra-se na realização de tarefas domésticas. Em segundo lugar,
sua atividade de trabalho no lar para garantir a manutenção do mesmo, contradiz
o ponto de vista popular da classe média de que quem estuda não pode trabalhar,
para não prejudicar o desempenho acadêmico. Desse modo, na vida concreta,
defrontam-se as adolescências: dependendo do lugar social ocupado, as tarefas
de desenvolvimento, as oportunidades e os estilos de vida são diversos e não
constituem regularidade, quando se efetuam comparações.
Os adolescentes do gênero masculino informaram
que realizavam tarefas domésticas, mas não verbalizaram, nem demonstraram de
forma gestual, qualquer sinal de preconceito ou vergonha por engajarem-se em
tais afazeres. Suas condutas contrastam com a ideologia de que "trabalho
de casa é coisa de mulher", um dos padrões característicos da sociedade
machista e difundido no próprio processo de socialização. As diversas inserções
e necessidades sociais possibilitam a construção de diferentes valores, a
realização de diferentes atividades, independentemente do gênero, o que, mais
uma vez, demarca a existência de adolescências.
Nenhum dos adolescentes relatou situações
de conversas, lazer, amizades com os familiares, brincadeiras ou trocas
afetivas entre os membros de suas famílias. Tais vazios são denotadores
de estilos de vida produtores de isolamento entre os familiares, ausência de
intimidade e conseqüente enfraquecimento dos vínculos afetivos.
Esta especificidade concatena-se com os
conteúdos de relatos sobre o que produz os prazeres na vida dos adolescentes:
nenhum fez referência a situações prazerosas concretamente vivenciadas. Todos
os relatos sobre prazeres centraram-se no desejo de serem objeto de afetos
positivos, notadamente da mãe: atenção, amor, cuidado, carinho, proteção. As
situações de vida que possam envolver a companhia de outras
pessoas, parentes ou amigos, foram citadas como produtoras da alegria no
viver.
Os desejos expressos, conjugados à
ausência de relatos sobre a convivência familiar, anteriormente descrita,
permitem construir a hipótese de uma certa solidão na vida desses adolescentes,
tanto em termos de relacionamentos interpessoais, quanto em termos da ausência
de expressão de afetos positivos de outros para com eles.
As ausências afetivas podem estar
delimitadas tanto pela vida exaustiva de trabalho dos seus cuidadores e
situação de estresse a que estão sujeitos no cotidiano,
quanto pela dificuldade na expressão de afetos positivos, dada a
convivência com violências.
Um olhar configuracional
sobre a vida familiar permite supor que a despeito dos relatos situarem-se na
realização, pelos adolescentes, de atividades domésticas que garantiam a
reposição da força de trabalho, em situação de violência e exercício de
autoridade, na ausência de fornecimento de informações sobre tipos de
interações afetivas, de brincadeiras e lazeres realizados conjuntamente, suas
famílias garantiam a sua sobrevivência e inserção na escola. Estes aspectos
indicam uma possível expectativa familiar de que melhores condições de vida,
para os seus filhos, possam vir a ocorrer no futuro.
Sete adolescentes, todos freqüentando a
mesma sala de aula, eram alunos de uma escola municipal localizada no Vale das
Pedrinhas, uma estudava em outra escola estadual situada no Nordeste de Amaralina e outro não especificou o nome da instituição,
apenas informando que ficava na Chapada do Rio Vermelho.
Seis declararam, com ênfase, que gostavam
da escola, ao mesmo tempo em que verbalizaram sentimentos positivos para com os
colegas, a professora e amizades que lá construíam. Dois adolescentes afirmaram
que estudar dava prazer.
Nenhum fez referência negativa às
atividades acadêmicas. Todavia, também não relataram positivamente sobre as
mesmas, sobre as práticas disciplinares empregadas na escola, sobre suas participações
no processo educacional, sobre atividades extra-curriculares,
sobre os conteúdos constitutivos do currículo escolar, sobre temas pertinentes
à comunidade enfocados na escola. Hipotetiza-se que a
ausência de relatos sobre tais temas podem ser oriundas do ensino orientado
pelo enfoque reprodutivista, que transforma o
processo de aquisição de conhecimentos em mera transmissão de conteúdos,
normalmente desvinculados dos aspectos da realidade de vida dos estudantes, o
que elimina a participação do aluno da construção das atividades escolares e
situa-os como submissos ao que é imposto. Tudo isto reduz a escola a um mero
espaço de cumprimento de tarefas acadêmicas, sem a perspectiva de aquisição da
reflexão crítica, da descoberta e da construção coletiva. As falas dos
adolescentes sobre a escola, ignorando tais fatores, podem ser tomadas como
indício da irrelevante significação que a instituição tem em suas
representações, enquanto espaço de ampliação do conhecimento e de participação
social.
Sobre as transações com colegas,
relataram a ocorrência de brigas e indicativos dos seus envolvimentos :
"brigo mais ou menos"; "dificilmente brigo''.
Um aspecto verbalizado como desagradável,
foi referido como ser molestado por "perturbações de colegas",
materializadas através de condutas de outros que provocavam o desvio da
atenção, quando se estava realizando tarefas; de alunos que respondiam à
professora de forma grosseira; de alunos que contavam mentiras sobre a
professora; de alunos que xingavam a diretora da escola.
Tais expressões permitem supor que os
adolescentes se referenciavam naquelas situações, por valores como respeito e
justiça social, apesar de inseridos numa contexto
capitalista permeado pelo desrespeito e pela injustiça social. Este fato é
indicativo de que as pessoas, e, no caso específico, esses adolescentes, não
incorporavam indiscriminadamente determinados valores que observavam perpassar
as internações sociais. Ao contrário, refletiam sobre o que experienciavam
e produziam re-construções, a partir da refutação de determinadas condutas e
valores. As significações que construíram foram empregadas na avaliação das
experiências sociais e na tomada de diferentes posicionamentos pessoais.
Apenas três adolescentes não fizeram
referências a amigos e às amizades.
O brincar, que requer interação com
outros, notadamente o jogo de gude e de bola, esteve presente no conteúdos verbais expressos por seis adolescentes. Eles
significaram a brincadeira como uma atividade agradável, por proporcionar
alegrias. Apesar da expressão de conteúdos relativos aos momentos de amistosidade que perpassavam as brincadeiras, também
relataram da existência de brigas. Aventa-se que, nos momentos das brigas, o
conflito, a competição e a disputa pelo poder eram acirrados, dada a imposição
e opressão de uns sobre os mais submissos, devido aos interesses diversos, que polarizavam-se entre aqueles individuais e o mais coletivo.
Os adolescentes também informaram que, na
vizinhança, estabeleciam facilmente contatos e interações com seus amigos
durante o dia. Entretanto, à noite, não lhes era permitido, pelos seus
cuidadores, saírem de suas residências.
Interessante destacar que na abordagem às
brincadeiras apenas os seis adolescentes do gênero masculino forneceram relatos
sobre o brincar, os tipos de brincadeira e a facilidade em fazê-lo durante o
dia. As adolescentes não falaram sobre amizades ou brincadeiras, o que pode ser
tomado como indicativo de práticas educativas diferenciadas, quando considera-se o gênero do adolescente: maior permissividade
aos homens e menor às mulheres. Será que a situação de
violência do bairro e os freqüentes casos de estupro tem impacto sobre
essa diferenciação? Que outros condicionantes se inter-relacionam com a maior
restrição às adolescentes?
Além da verbalização de sentimentos
positivos com relação à escola e aos amigos, dois adolescentes relataram medo e
insegurança como fazendo parte de suas vidas: uma afirmou ter medo de ficar sozinha
em casa e outro ter medo de que algo acontecesse à sua mãe, quando ela retomava
do trabalho, cuja jornada era noturna. Isto, segundo sua verbalização, o
deixava preocupado. Um adolescente expressou vivenciar situações desagradáveis:
as brigas cotidianas entre seus pais, afirmando que, como desencanto, estava a
lembrança do genitor ter chegado em casa, num certo dia, bêbado.
O fato de apenas três dos adolescentes
terem verbalizado sobre sentimentos negativos, todos decorrentes da violência,
quer no lar, quer na comunidade onde residiam, não pode ser tomado como não experienciação de tais sentimentos pelos outros seis. Falar
sobre violência é algo ameaçador, o que pode ter inibido os demais a relatarem
sentimentos negativos, decorrentes de situações violentas.
Corrobora tal interpretação, a situação de
residência de todos os adolescentes, em uma comunidade com um dos mais altos
índices de violência e de tráfico de drogas na cidade de Salvador. Tal
realidade coloca-os, desde muito cedo, em contato com situações e pessoas
violentas e ameaçadoras, tanto no lar quanto na vizinhança.
Nos relatos sobre perspectivas para o
futuro, destacou-se, no discurso de três adolescentes, sendo dois do gênero
feminino e um do masculino, a aspiração a casar e ter filhos. As adolescentes
também expressaram que almejavam se formar e trabalhar como professoras,
enquanto que o adolescente falou que desejava ser médico. Um outro relatou que
gostaria de ser advogado.
Singularmente, um adolescente não relatou
um desejo para si mesmo, porém dirigido à sua mãe: que a mesma conseguisse um
melhor emprego e não mais necessitasse trabalhar à noite. Outro, exprimiu a
vontade de morar no interior do estado, com seu avô. Os demais, em número de
três, nada relataram. Será que esta omissão sobre os próprios desejos, tendo em
vista o futuro, significa desesperança?
Dentre as verbalizações indicativas do
que não gostariam que ocorresse nas suas trajetórias de vida, esteve presente a
morte, nos relatos de três adolescentes, os quais destacaram temer o
falecimento de parentes próximos. O temor, em suas representações, é indicativo
do medo de ficarem desprotegidos? Um outro adolescente revelou que receava a
sua própria morte e o envelhecimento.
Outros conteúdos citados como coisas não
desejadas reportavam-se a profissões: não querer ser
polícia, gari ou pedreiro.
Não surpreende a rejeição das três
profissões citadas como indesejadas: são socialmente desqualificadas, possibilitadoras de baixa remuneração e de condições de
vida precárias. Supõe-se que os três adolescentes mantinham contatos com
pessoas que exerciam tais atividades de trabalho, conviviam com as suas
dificuldades e presenciavam desqualificações expressas em relacionamentos inter-pessoais. Um destes adolescentes demonstrou uma certa
consciência do mecanismo de inclusão/exclusão social, ao afirmar da incerteza
com relação ao futuro: "mais Deus é quem sabe".
Um outro relatou temer o desemprego, o
que significa a consciência do momento brasileiro e possíveis desdobramentos,
ainda que encontre-se nos anos iniciais de sua vida.
Relatou desejar trabalhar como pedreiro, situando suas expectativas com relação
ao futuro em consonância com a sua condição econômico-social anual.
Relatos indicativos da possibilidade
futura de mudanças nas suas condições sociais referiram-se à grande remuneração
e fama: sonhos de ser médica; ser atriz; médico e jogador de futebol; cantor e
ator; ator, cantor e jogador.
Talvez a condição de pobreza e obscurantismo
social gere aspirações que envolvem o dinheiro e a evidência social. Nota-se
que há relatos onde mais de uma profissão, até incompatíveis, são desejadas,
porém todas elas podendo garantir melhores inserções e participações sociais,
assim como maior renda mensal. Almejar mais de uma profissão pode ser motivado
pela insegurança com relação à ascensão social.
Apenas um adolescente descentrou os seus
projetos para o futuro da profissionalização: relatou o sonho viajar para São
Paulo, talvez pela vontade de conhecer aquela cidade "grande''
ou influenciado pelo ideário de que a mesma é fonte de trabalho.
Em suma, os projetos de vida do
adolescente pobre centraram-se, em menor número, no desejo de constituição de
família, talvez para abrandar a solidão, e, em maior número, na melhoria das
condições de vida, através de profissões que possibilitem mobilidade social.
Estas perspectivas não são consonantes com a concepção de que o adolescente é
sonhador e vive no mundo da fantasia, construção presente em algumas teorias
sobre a adolescência.
Considerações
finais
Dentre as adolescências possíveis, os
participantes da pesquisa representam uma parcela daqueles que vivem em
condição de pobreza, o que os diferencia de outras adolescências. A
diferenciação legitima a relevância da construção de conhecimento sobre suas
peculiaridades.
Tomando-se os seus discursos como
mediadores que permitem a captação dos significados sociais e sentidos que
conferiram aos temas investigados, buscou-se identificar aspectos dos seus cotidianos,
das suas histórias pessoais, de suas concepções, das suas afetividades e dos
seus projetos existenciais, construídos a partir de suas inserções na cultura,
nas instituições e nos relacionamentos inter-pessoais.
A partir das construções criativas de
cada adolescente em particular, explicitadas durante as entrevistas, foram
obtidas informações que permitiram a compreensão e interpretações sobre aspectos
de suas vidas.
Ocorreram similaridades nas
significações, construídas por aqueles atores sociais, as quais podem ser
atribuídas a modos de vida semelhantes e experiências em bairros que apresentam
as mesmas características. Apesar disso, peculiaridades na vida e nos projetos
para o futuro foram evidenciadas.,
Todos os adolescentes convivem com suas
famílias e, apesar do modelo nuclear aparecer em maior número, outras
constituições familiares também foram constatadas.
O lugar social ocupado por todos os
adolescentes os situa residindo em bairros violentos, que espelham também a
situação de desemprego e de marginalidade social. A violência tem presença nos
lares onde residem: brigas permeando as relações interpessoais na família.
Em decorrência de atos violentos, vividos
ou presenciados, peculiaridades decorrentes de processos de subjetivação foram
relatadas por alguns: o medo, a insegurança e a preocupação, estados emocionais
emergentes das situações concretas experienciadas.
Isto corrobora a perspectiva teórica formulada por COSTA e LÓPEZ (1986) de que
a saúde e o adoecimento, apesar de pessoalizadas, são construídos na vida
social. Os fatores de risco presentes no meio social onde
aqueles adolescentes vivem são fontes de ameaça à saúde, à sua
integridade e à de seus familiares.
Retomando à
situação familiar, observa-se a ausência de relatos referentes a interações
prazerosas: conversas, brincadeiras, trocas afetivas positivas e amizades. Ao
falarem sobre coisas prazerosas, os adolescentes expressaram o desejo de serem objeto de afetos positivos, enfocando, neste particular, a
figurada mãe. Parece, então, que a solidão gerada pela ausência de
atenção e acolhimento, permeados por afetos positivos, fazem parte do cotidiano
desses atores sociais.
Também digna de menção é a participação
de todos os adolescentes nos afazeres domésticos, sem que os do gênero
masculino se sentissem diminuídos por realizarem tarefas do lar, em geral,
designadas socialmente como femininas. Tal fato marca diferenciações no
exercício de papéis e na formação social do que constitui feminilidade e
masculinidade, o que denota, no caso do adolescente pobre, mudanças no processo
de socialização, dada as suas próprias condições sociais.
Outro aspecto a ser resgatado é a
significação que a escola tem na subjetividade destes adolescentes.
Evidenciaram-se especificidade, no que concerne ao prazer: apenas dois
relataram que estudar era prazeroso. Há ausência de relatos referentes às
atividades acadêmicas, todavia tal instituição é significada como espaço de
trocas afetivas, de prazeres nas amizades e brincadeiras. Também é espaço propiciador
para as reflexões sobre ações daqueles que, através de comportamentos,
desqualificam e desrespeitam pessoas: alguns adolescentes relataram rejeitar
tais condutas, assim como aquelas, expressas em sala
de aula, que desviam a atenção dos alunos das atividades acadêmicas.
A respeito dos projetos para o futuro,
observou-se que desejavam a profissionalização, ou, no caso de três deles,
constituírem famílias, visando modificarem os seus estilos de vida. Acerca das
escolhas profissionais, apenas um relatou desejar ser pedreiro, enquanto os
demais relataram escolhas por profissões que impliquem em maior remuneração ou
fama. Três adolescentes evidenciaram a rejeição das ocupações de polícia, gari
ou pedreiro, entretanto um deles ao afirmar "mas Deus é quem sabe'',
parece não eliminar tal possibilidade, o que expressa sua incerteza com relação
ao futuro. Assim, o adolescente pobre aspira a ser e não a ter, o que os
diferencia daqueles muitos que, conforme NASCIMENTO (1999a), dada às suas
inquietações e procura de mudanças, tornam-se consumistas, a partir das
solicitações mercadológicas, que, segundo a referida autora,
"ampliaram as motivações da juventude (...) com uma variedade
infinita de objetos e diversões" (p.48). As situações econômica e
sócio-cultural do adolescente pobre os constróem como sujeitos sociais ainda
não cooptados pelo valores consumistas.
Compatível com a orientação teórica
culturalmente situada, o estudo demonstrou da existência de adolescências e
diferentes especificidades, quando consideram-se os
diferentes lugares sociais ocupados. A caracterização do adolescente pobre
realizada neste estudo difere substancialmente daquela realizada por NASCIMENTO
(1999b), que trabalhou, preponderantemente, com relatos sobre aspectos da
adolescência vivenciados por pessoas oriundas de camadas sociais favorecidas.
Agradecimentos
Agradecimentos a Roberto Cabús Oitavén e Celuta Mara Macedo, estagiários do curso de Psicologia da
UFBA, co-autores de painel apresentado no I Congresso Norte-Nordeste de Psicologia
(1999) sobre o tema. Participaram da seleção das pautas condutoras das
entrevistas, da seleção dos adolescentes, da realização e registro de
entrevistas e da discussão sobre a versão apresentada no painel.
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Notas
[1] Mestre em Psicologia, Professora Titular II do curso de
Psicologia - Departamento de Ciências Humanas Universidade Salvador Rua Ponciano de Oliveira, 126, Garibaldi CEP: 40225-300 -
Salvador - BA. Trabalho realizado no Departamento de Psicologia Universidade
Federal da Bahia. Endereço para correspondência: Av.
Otávio Mangabeira, 11.881, M4-06, Piatã CEP:
41650-000 - Salvador - BA e-mail: amchaves@ufba.br - Apresentado no 1 Congresso
Norte-Nordeste de Psicologia, sob a forma de painel Salvador (BA), 1999.
[2] Vários autores, confere NASCIMENTO
(1999a), empregam o termo juventude como aquele referente ao período posterior
à adolescência. Todavia esta pesquisadora afirma que o mesmo também é empregado
ao se fazer referência à adolescência, caracterizada como o período da vida em
que a pessoa não desempenha papéis considerados como inerentes ao adulto.
Fonte
CHAVES, E.S.
Significações atribuídas ao cotidiano pelo adolescente pobre.