CRIANÇA MALTRATADA: RETORNO À FAMÍLIA? UM ESTUDO EXPLORATÓRIO EM SANTA
MARIA/RS
A partir da constatação de uma situação de maus-tratos sofrida pela criança dentro do lar, surge a “angústia” em resolver, decidir ou optar pela sua manutenção (retorno) na família ou o seu encaminhamento, mesmo que transitório, à instituição (abrigos).
A resposta, que, em tese, seria óbvia, na prática não é, quando se observa o elevado e crescente número de crianças abrigadas, o número de processos de destituição de pátrio poder nos últimos treze anos e o apoio de entidades públicas e privadas às instituições que abrigam crianças, em comparação com o apoio prestado às famílias em dificuldades.
O presente trabalho pretendeu responder a esta indagação, através de uma pesquisa bibliográfica, associada a um estudo qualitativo de 6 (seis) processos judiciais que tramitaram na Vara da Infância e Juventude de Santa Maria, tendo por objeto os maus-tratos na infância. Nesta amostra é tratada a situação de 14 crianças, de ambos os sexos, com idade inferior a 12 anos, residentes na cidade de Santa Maria.
Além deste objetivo, eleito como básico da investigação, procurou-se verificar se o Poder Judiciário garante a convivência familiar; se o estado, através de sua política de atendimento, é eficaz em estabelecer bases de apoio para manutenção da criança na família; e, por fim, se a intervenção do estado, afastando a criança do lar, foi positiva para o seu desenvolvimento.
A justificativa reside no art. 4º do ECA que garante à criança o direito de ser criada no seio de sua família natural, elegendo como prioritário e fundamental o direito à convivência familiar. Em contrapartida, o art. 5º do ECA estabelece que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão.
O retorno
da criança maltratada à sua família de origem é abordado, apresentando-se
inicialmente três capítulos que apontam conceitos considerados importantes na
investigação do problema em questão: Infância, maus-tratos na infância e
família. Após, discute-se os dados coletados na pesquisa de campo, com vistas a
responder os objetivos da investigação.
O universo
pesquisado aponta os tipos e as causas dos maus-tratos intrafamiliar, razão da
retirada das crianças de sua família de origem. Além de expor a forma como a
questão foi tratada pelos órgãos públicos, seja na tramitação do processo, seja
através da visão que os vários órgãos expuseram, quando emitiram pareceres
sobre a situação. Os dados coletados foram capazes de demonstrar a situação
sócio-econômica da família e algumas vezes até a condição psicológica dos
genitores, mas sempre se extraiu o seu sentimento em relação à problemática. Por
fim, evidenciou-se que as políticas públicas empregadas no município de Santa
Maria são insuficientes no trato da questão, mormente devido a pauperização
crescente da população brasileira.
1. Infância: história e
instituições
Segundo
ARIÈS (1981, p. 50 e seguintes), a criança, no decorrer da nossa história, não
foi percebida sempre da mesma forma. Na idade média, por exemplo, a criança
“não existia”, ou seja, não era concebida como emocionalmente frágil.
Achados históricos indicam que até por
volta do século XII e fins do século XIII a arte medieval desconhecia a
infância ou não a representava; não existiam crianças caracterizadas por uma
expressão particular e sim homens de tamanho reduzido. Entre as obras
analisadas, uma miniatura otoniana do século XI, representativa da cena do
evangelho onde Jesus dizia “deixe vir a
mim as criancinhas”, o artista agrupou junto a Jesus oito verdadeiros
homens, em escala menor, sem nenhuma característica da infância. Neste período,
as obras de arte desenhavam a criança como um adulto em miniatura.
Assim, a
duração da infância era reduzida ao seu período mais frágil, quando o homem não
tinha condições de se manter ou sobreviver por si próprio. Tão logo adquiria
alguma habilidade, era misturada aos adultos, partilhando dos seus trabalhos e
jogos. Nesta família medieval, a educação e a socialização não eram controladas
pela família, era garantida pela convivência com os adultos.
Quando, no
entanto, a infância é descoberta, passa a ser vista como um sujeito
naturalmente incapaz. Conforme MENDEZ (1993, p. 236), a construção da categoria
criança ocorreu por volta do séc. XVIII, quando passou da indiferença a
centralidade. No entanto, estabeleceu-se um conceito diferenciado para os
“excluídos” e “incluídos”.
A partir
daí, instituições foram criadas com vários objetivos, entre eles, prestar-lhes
assistência e encaminhá-los à laboriosidade (aos “menores”). Como elemento
desta política estava a idéia de incorporação através
da formação pelo e para o trabalho.
No Brasil,
a história do assistencialismo teve várias fases até a promulgação do Estatuto
da Criança e do Adolescente, em 1990, quando o atendimento à criança deixou de
ser uma questão de caridade, para ser de política pública. Antes do ECA, preconizava-se a doutrina da situação irregular,
ocasião em que o paradigma era outro: caráter filantrópico com fundamento
assistencialista. Hoje, com a visão de política pública, o fundamento está num
direito subjetivo da criança, onde ela participa deste processo de
desenvolvimento do aprendizado. No entanto, discute-se se a mudança de
paradigma, em termos legais, implicou, também, a mudança de atendimento da
criança, em termos práticos.
FONSECA (2001, p.2) revela, com base em pesquisas que
realizou, que a FEBEM ou Abrigos ainda são usados pelos pais “pobres” como um
“internato”, quando os filhos representam um empecilho em suas vidas. A
pesquisadora diz que no imaginário popular, persiste a idéia de que a FEBEM ou
outra instituição continuava a ser um local “bom” para o filho.
Em que pese, portanto, a promulgação do
ECA a idéia de afastamento da criança da sua família ainda é vista como
solução para muitos casos, desconsiderando ou pelo menos não avaliando, o que
representa uma institucionalização para o indivíduo.
A história demonstra que o atendimento prestado dentro das instituições estava (talvez ainda esteja) longe de garantir que a criança e o adolescente sejam vistos como sujeito de direitos e não como objeto. Vários autores nos relatam situações e fatos que demonstram que o atendimento dispensado às crianças abandonadas continuou a reafirmar a exclusão social. Nesse sentido, SILVA (1998, p.18 e seguintes.) quando relata a sua própria história de vida como forma de comprovar que a política de atendimento estava voltada à institucionalização (antes do ECA).
No entanto, é importante salientar que as atuais
Instituições que abrigam crianças e adolescentes, de forma geral, não tem as
características de “instituições totais”, no conceito elaborado por GOFFMANN
(1981), até porque devem obrigatoriamente se adequar à lei 8069/90 (ECA). Pelo
menos em Santa Maria, os abrigos visitados não seguem esta dinâmica, embora são
igualmente nocivos à formação da criança, pois lhe retira o que é mais sagrado:
a convivência familiar com suas múltiplas facetas e experiências.
2. Maus-tratos na
infância
2.1 história
Devido à ausência de “sentimento
de infância” (peculiar até a idade média), os maus-tratos não eram vistos
como tais, sendo tão comuns que sequer são mencionados na história daquela
época.
O infanticídio, apesar de proibido socialmente, ocorria com
freqüência, sob a forma de “acidentes domésticos”, mas não era punido, sequer
investigado. Muitas crianças “indesejadas” morriam
misteriosamente durante o sono, quando colocadas para dormir junto com os pais.
O pátrio poder era visto com poder absoluto e incontestável,
admitindo diversas crueldades, porque se via a criança como propriedade
privada. BANDITER (1980) apud SANTOS (1987, p. 24) afirma que a criança, na
época, era vista como símbolo do pecado, da maldade. Refere que Santo Agostinho
dizia que a criança era símbolo da força do mal, um ser imperfeito, fruto do
pecado original, por isso “era má em
potencial e deve ser submetida a castigos corporais moderados ou severos, para
que possa ter um crescimento adequado e uma personalidade boa, do mesmo modo
como uma árvore para crescer frondosa e retilínea deve estar amarrada ao
poste.”
O pensamento de Santo Agostinho passou a refletir na
pedagogia, transformando o castigo físico em método educativo e permitindo que
escolas e pais usassem castigos físicos para “educar”.
No entanto, em 1846, pela primeira vez na história, houve a
retirada do pátrio poder pelo Juizados de Nova York,
em favor da menina Mary Ellen (severamente espancada), em razão da intervenção
da sociedade protetora dos animais. A alegação era de que a criança fazia parte
do reino animal e, portanto estaria sujeito às leis que protegem os animais da
crueldade.
Em 1881, é criada a primeira sociedade provedora de proteção
à infância.
Esses dois fatos representam, sem dúvida, um dos maiores
avanços até a nossa época contra os maus-tratos infantis.
A violência física contra a criança também foi reconhecida
na teoria psicanalítica de Freud, já em 1885, quando cita crianças vítimas de
violência física e sexual.
No século passado, a preocupação com os maus-tratos infantis
teve como referência histórica CAFFEY (1946), médico radiologista que descreveu
em várias crianças a presença de fraturas múltiplas e apontou as causas não
acidentais dos traumas. Após, SILVERMANN (1951) disse que essas lesões eram
voluntariamente causadas. Por sua vez, Dr. KEMPE
(1962), na Filadélfia, estudou diversas forma de maus tratos físicos e criou a
denominação “síndrome da criança
espancada” (SIBE).
No Brasil, um marco histórico foi a
fundação do CRAMI (Centro Regional de Registros e Atenção aos Maus-tratos na
Infância), em 1985, por um grupo de estudos formado por diferentes
profissionais pertencentes a PUC de Campinas. O intuito foi propor uma
estratégia que atenda a busca de reconhecimento dos casos de maus-tratos na
relação menor-família, atenção integral a criança-vítima, a promoção da família
e a prevenção da violência direta contra criança.
2.2 Conceito
Os estudiosos definem os maus-tratos como uma forma de
colocar a criança ou adolescente em situação de risco, comprometendo o seu
desenvolvimento. Diante disso, a “síndrome
dos maus-tratos” agrupa todas as formas de abuso e negligência na infância,
havendo um nexo causal em todas elas – pois significam a ausência de cuidados e
de proteção adequados proporcionados por seus pais, com um fator comum: o abuso
de poder do mais forte (adulto) sobre o mais fraco (criança).
A realidade não é inédita nos seus contornos atuais, o que é
inédito são os olhares que hoje a revelam e lhe dão visibilidade.
Assim, o conceito de maus-tratos nunca representa um juízo
neutro ou uma avaliação meramente profissional sobre uma certa situação da
infância. Implica, sempre, um juízo de valor, uma conclusão socialmente
mediada. Quer isso dizer, que não basta que os padrões de comportamento de um
certo adulto relativamente a uma criança sejam considerados prejudiciais, de um
ponto de vista técnico. É preciso também que esse comportamento seja
considerado desajustado porque viola normas sociais prevalecentes na
comunidade.
Os maus-tratos apresentam-se sob várias formas: violência
física, abuso sexual, negligência ou incúria, esta última se dá quando os pais
não fornecem cuidados de que a criança necessita: nutrição adequada, vestuário,
cuidado médico profilático, proteção dos perigos, etc. Os sinais físicos são má
nutrição, distrofia, higiene precária, vestuário inadequada às circunstâncias.
A negligência física inclui a permanência da criança sem
vigilância por longos períodos de tempo.
A negligência emocional refere-se a todas as situações em
que as necessidades emocionais das crianças não ignoradas, em que ela é privada
de afeto e suporte emocional necessário ao seu desenvolvimento normal. A
privação de afeto, assim, também é uma forma de negligência e está presente em
todas as classes sociais.
Outra forma de maus-tratos é o Abuso mental, que compreende toda a
forma de rejeição, depreciação, discriminação desrespeito, cobrança ou
punição exageradas da criança para atender necessidades psíquicas dos adultos.
É também quando a mãe, por um distúrbio de empatia (patologia do vínculo) ou
problemas mentais (esquizofrênicas) priva o bebê de coisas essenciais: contato
físico, privação afetiva, falar amoroso, etc. que são fundamentai no primeiro
ano de vida. Contudo, este tipo de maltrato, apesar de freqüente, é difícil de
ser constatado na prática porque não é identificado através de sinais físicos
aparentes, sendo que as conseqüências vêm a se manifestar somente quando a
criança já é grande.
2.3 Causas dos
maus-tratos
As causas são complexas e variáveis, mas indicam com
segurança uma disfunção na família, principalmente como instituição apta para
oferecer proteção, segurança, amor, alimento, etc. Para autores como KEMPE, a
origem são problemas psicológicos dos genitores; para NEWGERGER (1971), a
origem está nos fatores sociais e para BITTNER (1981), o diagnóstico propõe
modelo multifatorial.
ALMEIDA (2002, p. 5), num estudo em Portugal de 4
freguesias, produziu o trabalho sobre “maus
tratos infantis num centro urbano degradado”, concluindo que a negligência
e a falta de cuidados das crianças estão diretamente relacionadas com a
situação da estrutura econômica de um certo país ou local, que gera situações
de pobreza, baixo rendimento (com isso imensa frustração dos pais), baixos
níveis de instrução e condições habitacionais precárias. Aponta também como
causas paternidade precoce, padrões educativos rígidos ou ausência de regras,
família isolada no contexto social em que vivem.
Outro estudo mencionado pelo autor sobre os maus-tratos
infantis, realizado no centro histórico do Porto (Portugal), em 1995,
demonstrou que falta de afeto com a criança é proporcional ao desequilíbrio
emocional do casal e como a falta de afeto tem expressão evidente na falta de
higiene e de boa alimentação.
BOWLBY (1995, p. 84-85) cita pesquisas onde se constata que
a pobreza, excesso de filhos, más condições habitacionais são fatores de risco,
mas “a maior causa desta
‘família-problema’ (negligência persistente das crianças e que não reagem
às medidas usuais da assistência social) são
problemas emocionais dos pais,” não significando, aqui, deficiência mental
propriamente dita. O autor também relata uma discussão com assistentes sociais
especializados, nos EUA, em assistência à infância, ocasião em que se concluiu
que a privação e a infelicidade sofrida pelos pais, em sua própria infância,
seriam as causas dos seus problemas atuais.
Assim, tem-se como certo que os pais agressores são
geralmente pessoas vulneráveis, expressando nos maus-tratos as suas
dificuldades psicológicas e educativas.
A recuperação da criança, portanto, é da família, sendo
necessária a sua manutenção no seio familiar, ativando uma rede de laços
importantes para a criança e a família – os amigos, vizinhos, escola, agentes
de saúde, etc. Abrir a família ao diálogo, à comunicação entre si e para os
outros, de modo a gerir equilibradamente as suas próprias tensões.
2.4 Conseqüências dos
maus-tratos
FARINATTI (2001) aponta que, via de regra, a criança que foi
abusada sexualmente ou maltratada na família natural pode reproduzir este
comportamento na família substituta. Ela pode vir a “induzir” esse
comportamento nos pais adotantes, porque é só esse tipo de relacionamento
afetivo que a criança conheceu e apreendeu. Por esta razão, a família
substituta, nestes casos, deve ter apoio social, com visitas domiciliares
regulares, realizadas pela própria comunidade (professora do colégio,
integrante da igreja, assistente social, etc.), além de grupos de apoio às famílias.
Em casos de abuso sexual, a seqüela mais evidente é a
prostituição. Além das menos visíveis, como síndromes das
múltiplas personalidade, baixa auto-estima, supressão das relações
sociais, depressão, bulimia, hiperatividade ou timidez que dificultam a
aquisição de comportamentos inter-relacionais, dificuldades de aprendizagem,
fraco aproveitamento escolar, etc.
Em nível fisiológico, a falta de cuidados
podem provocar desnutrição, hipotrofia estaturo-ponderal, abcessos,
infeções cutâneas, lesões físicas, etc. e a carência, em termos afetivos (falta
de amor, de proteção, de estabilidade de relações de estimulações), podem
causar perturbações do comportamento e distúrbios emocionais.
Os maus-tratos psicológicos pertencem normalmente aos grupos
sociais privilegiados e são materializados pela criança em depressões graves,
em tentativas de suicídio, abusos de álcool, fugas da escola e de casa.
Também, se é certo que não se pode afirmar que as crianças
maltratadas irão reproduzir os maus-tratos infantis quando assumirem o papel de
pai, é certo que seu crescimento, marcado pela incúria, vão estruturar muito a
sua apreensão do mundo, do modo como se relacionam com os outros.
3. Família
3.1 Importância e
finalidade, sob os aspectos psicológicos/psiquiátricos e históricos:
Quanto ao aspecto psiquiátrico, no entender de BOWLBY (1995,
p.13), é essencial à saúde mental que o bebê e a criança pequena tenham a
vivência de uma relação calorosa e contínua com a mãe (ou mãe substituta
permanente que desempenha regularmente o papel de mãe), na qual ambos encontram
satisfação e prazer. Os cuidados maternos não se prestam a um rodízio. Os
cuidados não podem ser considerados em termos do número de horas por dia, mas
sim em termos de prazer que a mãe e a criança obtêm da companhia um do outro. E
essa identificação só é possível para cada um dos dois se o relacionamento for
contínuo. Assim, como o bebê precisa sentir que pertence à mãe, esta também tem
necessidade de sentir que pertence ao seu filho. Uma mulher só será capaz de
despender horas e dias a fio a uma criança se sentir satisfação por ver seu
filho crescer e tornar-se um homem, sabendo que tal só ocorreu porque foram os
seus cuidados que permitiram.
BOWLBY (1995) acrescenta que este fato também é verdadeiro
no caso de maus pais:
“Não se deve esquecer que mesmo os maus pais, que negligenciam seus
filhos estarão, não obstante, proporcionando-lhes muita coisa (...) Mesmo que a
criança seja pessimamente alimentada e abrigada, mesmo que viva suja e doente,
mesmo que seja maltratada, ela se sentirá segura (a não ser que os pais a
rejeitem totalmente) por saber que tem algum valor para alguém que se empenhará
em cuidar dela, mesmo que inadequadamente, até que ela consiga se arranjar por
si mesma.”(p.
73-4)
O autor (IBIDEM) conclui dizendo que é por esta razão que
crianças se desenvolvem melhor em maus lares do que em boas instituições e estabelecem de forma aparentemente inexplicável uma forte
relação com maus pais.
Nos Hospitais ou instituições freqüentemente uma criança não
dispõe de uma determinada pessoa que cuide dela de forma pessoal e com ela
possa sentir-se segura, daí a importância da família.
Assim, pior do que um lar insatisfatório, seria a
inexistência dele, pois, conforme Sir JAMES SPENCER apud BOWLY (1995, p.75),
uma das principais finalidades da família é preservar a arte da parentalidade,
pois é função tão importante para a sociedade quanto a produção de alimentos.
No aspecto psicológico, TRINDADE (2002, p. 138) alerta que
os pais são dois parceiros importantes no desenvolvimento da criança, cada um
com um papel a desempenhar no processo de triangularização, sendo que ao pai
compete o papel separador na estrutura psíquica. É na família
que se estabelecem as primeiras relações de objeto, sobre os quais se apóia
todo o desenvolvimento posterior do indivíduo.
Assim, o fator econômico, por si só, não é causa da
delinqüência em uma sociedade (embora possa contribuir, porque associa uma
série de dificuldades familiares e sociais), mas, conforme o autor (p. 167) a
ausência da figura paterna (que representa no simbólico da criança a LEI) é
fator importante a considerar. Um estudo exploratório de natureza quantitativa
citado pelo autor, referente à delinqüência juvenil, indicou que os principais
fatores de risco para esse desfecho era a ausência da figura paterna e a falta
de freqüência escolar. Assim, a presença do pai (ou da função paterna), com a
conseqüente vinculação afetiva, é fator de proteção contra a delinqüência
juvenil.
Desta forma, a pluralidade de figuras que pretensamente
exercem esta função (numa instituição, por exemplo) cria uma confusão no
imaginário da criança e gera perda de referenciais, pois a criança fica sem
saber quem ela é de fato, e a que lei ela deve se submeter (TRINDADE, 2002, p.
175 e 176).
WINNICOTT (1999, p. 30), pediatra e psicanalista, nomeado
consultor do plano de evacuação governamental numa área de recepção na
Inglaterra, por ocasião da 2ª guerra mundial, relata que, para muitos homens e
mulheres, o que faz a vida valer a pena é a experiência da primeira década de
vida conjugal, quando a família está sendo constituída e as crianças ainda
necessitam das contribuições dos pais para formação do caráter e da
personalidade. Quando se fala em separação dos pais e filhos é importante ter
em mente que uma mãe não só quer os
filhos, mas também necessita deles.
Em outra obra WINNICOTT (2001, p. 129 e 137) questiona se é
possível ao indivíduo atingir a maturidade emocional fora do contexto familiar?
Conclui dizendo que a família seria a entidade mais apta a proporcionar-lhe tal
crescimento, porque contribui de dois modos:
“...de um lado dá-lhe a oportunidade de voltar a ser dependente a qualquer
momento; de outro, permite-lhe trocar os pais pela família mais ampla, sair
desta em direção ao círculo social mais imediato e abandonar esta unidade por
outras maiores. Esses círculos cada vez mais amplos, que a certa altura
tornam-se agrupamentos políticos, religiosos e sociais da sociedade, e talvez o
próprio nacionalismo, são o produto final de um processo que se inicia com o
cuidado materno e se prolonga na família. A família parece ser a estrutura
especialmente programada para dar continuidade à dependência inconsciente da
criança em relação ao pai e a mãe de fato.”(p. 137)
Assim, quanto mais se examina a questão do desenvolvimento
individual, mais se percebe o quão difícil seria para qualquer grupo que não a
família tomar todas as providências para que o processo se desenrole sem
problemas.
No entanto, desnecessário mencionar que isso não significa
que a existência de uma família, por si só, mesmo que sadia, dará a garantia de
que a criança vá desenvolver-se plenamente até atingir a maturidade desejada. O
que ocorre é que a existência dela, comprovadamente, facilita o crescimento
emocional, até porque o lar e a família, via de regra, são modelos que inspiram
instituições de assistência social que querem ter a chance de funcionar bem.
3.2 Danos produzidos
pela privação da família
Vários autores, através da observação direta, estudos
retrospectivos, isto é, da vida pregressa e vários estudos de acompanhamento
dão prova de que a privação do amor materno, na primeira infância, gera efeitos
tanto na saúde mental como na personalidade da criança. O desenvolvimento quase
sempre é retardado, seja físico, intelectual ou social, variando conforme a
idade da criança, o tempo em que ficou privada e o grau em que lhe faltaram.
BOWLBY (1995, p. 23 e seguintes) aponta estudos de
pesquisadores renomados que não deixam margem a dúvidas quanto ao fato de que o
desenvolvimento da criança que vive em instituições está abaixo da média desde
a mais tenra idade. Entre eles cita-se uma pesquisa realizada com 113 crianças
com idade entre 1 e 4 anos, sendo que elas viveram toda a sua vida em
instituições comparou outro grupo de 113 crianças da mesma idade que residia
com a mãe, mas ficava o dia inteiro na creche. Mesmo sendo os lares em
condições insatisfatórias, o desenvolvimento médio das crianças que estavam com
a família mostrou-se normal, enquanto as outras se mostravam em atraso no
desenvolvimento. O autor observa que o
estudo comparativo foi realizado com crianças de classe social semelhante e
tanto quanto possível de herança genética semelhante.
Outro estudo apontando é de um grupo de meninas que foram
privadas de uma relação amorosa na primeira infância, ocasião em que se
constatou que a característica comum a todas elas era a incapacidade de
estabelecer uma relação real com qualquer membro da equipe. Todas
as crianças (28 ao todo) apresentava certos sintomas comuns de
desenvolvimento inadequados da personalidade, relacionados principalmente com a
incapacidade para dar ou receber afeto, em outras palavras, incapacidade para
se ligarem aos outros, parecendo-se “inevitável
que a criança pequena que é criada em instituição passam por uma experiência de
isolamento que resulta num tipo de personalidade fechada”. Também “a inacessibilidade e uma limitada capacidade
para relações afetivas caracterizam as crianças que passaram seus primeiros
anos de vida numa instituição.” (IBIDEM, p. 37)
Poder-se-ia dizer que todos os pesquisadores concluem que
100% das crianças que viveram em instituição nos seus primeiros anos de vida
desenvolveram-se de forma muito insatisfatória, porque sofrem da privação de
uma família, em especial dos cuidados de uma mãe (que deve ser única ).
Isso tudo se deve principalmente porque no contexto
institucional há menos oportunidade para que uma criança exercite as suas
capacidades.
No ambiente familiar, por mais pobre que seja, a criança
pequena, dentro de certos limites é encorajada a se expressar socialmente.
Desde pequena, ela apreende o que fazer para levar seus pais e irmãos a
satisfazer seus desejos. Já é uma personalidade dentro de casa. Suas
brincadeiras, de forma simbólica, criam e recriam mundos para si. Os jogos
íntimos com a mãe, nas atividades diárias (enquanto se lava, veste, alimenta,
etc.) são práticas básicas para formação da personalidade. Em qualquer contexto
institucional muito disso é perdido. A criança não é encorajada à atividade
individual. O atendimento é sempre coletivo e praticamente padronizado.
Também é importante considerar que quando a criança sofre
privação da família e já possuiu mais de 3 ou 4 anos, tendem muitas vezes a
interpretar mal a situação, sentindo-se culpadas pelo acontecido. Em obras de
psiquiatras infantis, há referências expressas de crianças que acreditaram
seriamente que estavam sendo mandadas para longe de casa como castigo por serem
más. Em outras ocasiões, há casos em que a criança imagina que foi por culpa
sua que o lar se desfez. Isso resulta num apego ao passado insatisfatório,
tentando recusar a todo momento a nova situação,
resultando numa personalidade inquieta, insatisfeita, infeliz.
WINNICOTT (1999, p. 78) nos coloca que o sentimento de segurança
de uma criança está intimamente ligado às suas relações com os pais. Assim,
torna-se óbvio, nas palavras do autor “que
ninguém mais lhe pode dar tanto.”
4. Discussão dos dados
coletados
Os dados coletados nos 6 (seis) processos judiciais ilustram
as várias formas consideradas pelos operadores jurídicos como maus-tratos
infantis, razões pelas quais as crianças são imediatamente
retirada de suas famílias.
Observou-se que os tipos de maus-tratos apontados como
motivo da retirada da criança do seu lar são, na maioria dos casos,
semelhantes: negligência. Com exceção do processo “C”, que é de abuso sexual, a
forma usualmente relatada é a “falta de
higiene nas crianças ou no lar”, acompanhadas de “abandono dos pais, falta de atenção, desinteresse materno”. De
forma muito discreta, e apenas em dois casos, foi apontado que “as crianças passavam fome.”
No processo “F”, os vários estudos sociais e visitas do CT
sempre apontaram a falta de higiene como, praticamente, o fator determinante
dos maus-tratos ou da falta de condições de os pais acolher os filhos, conforme
abaixo se transcreve:
Estudo social: “Parecer: a situação sócio-econômica da
família é de camada popular, agravada pela falta de higiene. É impressionante
que uma pessoa jovem, sem os filhos na sua companhia, possa viver num estado de
sujeira conforme vive esta família. Nosso parecer é de que a família não
apresenta o mínimo necessário para bem cuidar dos filhos.”
CT: “ A Sra. X e o Sr Y até o presente momento não
tem a casa em prefeitas condições de receber os seus filhos, precisam
comprometer-se o mais rápido possível em arrumá-la, fazendo limpeza no pátio e
principalmente no interior.”
Nas visitas subseqüentes do CT e assistência social, a
situação é descrita como “a casa continua
do mesmo jeito, suja, roupas espalhadas pelo chão, panelas sujas, sem nenhuma
higiene.”
Observa-se que os órgãos encarregados por zelar pelos
interesses das crianças entendem que a falta de higiene também é uma forma de
maus-tratos, evidenciando-se que a higiene é um valor eleito para ser
preservado, em que pese a literatura muito pouco
referir a respeito desta forma de negligência.
Tal entendimento – necessidade de um ambiente salubre –
provavelmente decorre da cultura higienista que marcou um período da nossa
história. Conforme SILVA (1998, p.20), no Brasil, a assistência à infância teve
várias fases, sendo a fase higienista (1874 a 1922) marcada pela supremacia dos
aspectos médicos sobre o jurídico.
No entanto, a coleta dos dados nos demonstra que este
aspecto ainda é culturalmente supervalorizado, pois o Poder Judiciário, em
todos os casos citados, acolheu os pareceres da assistência social e relatos do
CT, como embasamento para retirada das crianças dos seus lares.
Também foi apontado a “despreocupação,
o desinteresse e o abandono” como forma de maus-tratos. Esta situação é
citada em todos os 6 processos, inclusive no caso de abuso sexual, quando
refere que a mãe permite que tal fato ocorra com sua filha.
No entanto, é de se observar que o alegado “abandono ou desinteresse”,
de certa forma, não restou suficientemente comprovado, no decorrer do processo,
em pelo menos três casos analisados (“B”, “E” e “F”).
As avaliações psicológicas, os estudos sociais e as
manifestações dos genitores em juízo, bem como o relato de que os pais
visitavam os filhos nos abrigos, demonstraram que aqueles buscavam de alguma
forma contato com a prole. Por fim, a manifestação, perante o juiz, de que
pretendiam o retorno dos filhos ao seu convívio, evidencia que têm interesse
por estes. Diante destes fatos, acredita-se que não há como falar em
desinteresse pelos filhos. Abaixo algumas transcrições:
Processo “B” – tão logo os filhos foram abrigados, “a mãe foi ao Fórum ‘reclamar’ os filhos de
volta e dizer que foi proibida pelo abrigo de ver os seus filhos”, conforme
certidão inclusa nos autos. À psicóloga e psiquiatra “demonstrou amor pelos filhos e vontade de tê-los consigo. Disse que
deseja ampliar a casa para não repetir os fatos.” Em todas as oportunidades que foi ouvida em juízo manifestou vontade de
ter os filhos com ela.
Processo “E” – em juízo a mãe disse ao Magistrado que “gosta muito de X e no final do ano acha que
terá condições de levar o filho para casa.”
Processo “F” – ambos os genitores, quando citados para
contestar a ação de destituição de pátrio poder, compareceram no Fórum e
disseram em cartório que “não concordam
em perder os filhos.” Em audiência, disseram ao juiz que não pretendem dar nenhum dos filhos.
Durante o período em que as crianças estavam abrigadas, os pais visitavam os
filhos (nunca deixando passar mais de 1 mês sem vê-los), embora de forma
irregular. À psicóloga, a mãe referiu que “se mataria”, caso perdesse a guarda
das suas crianças.
A situação retratada no processo vem a corroborar os estudos
realizados por FONSECA (2000), quando afirma ser comum nas camadas populares,
no Brasil, o fenômeno, por ela batizado, de “circulação de crianças”: quando
as crianças passam a ser criadas por tios, avós, vizinhos, padrinhos,
coletivizando-se as decisões sobre as elas, sem que os pais biológicos percam o
seu “status” de pais. A criança não é
vista como emocionalmente frágil. Assim, apesar de deixar os filhos nas mãos de
outros, por anos, estas pessoas não consideram ter abandonado os filhos.
A partir disso, observa-se que a divergência de padrões
culturais ou padrões de vida gera também divergência de interpretação da
realidade.
Outro dado revelado, é a existência, em todos os processos
analisados, de irmãos, sempre mais velhos, que naquele momento estão na
companhia de outra pessoa, não havendo necessariamente notícia no processo
respectivo, de maus-tratos em relação a estes mais velhos, exceto no caso “B”
onde os demais irmãos passaram por instituições. Interessante é que justamente
no processo “B” é que a mãe demonstrou maior interesse e vontade em ficar com
os filhos, submetendo-se a todas as “ordens”, conforme se observa do relato da
conselheira tutelar: “ a ré tem ido todos os finais de semana ver os filhos (...) Ela
demonstrou mudança enorme, não sabe se por medo, mas ela tem atendido todas as
orientações e determinações do CT.”
O fato de não haver notícia de maus-tratos, no respectivo
processo, em relação aos filhos maiores, mesmo que em datas anteriores, pode
significar que aquelas famílias poderiam estar enfrentando um momento de crise
ou uma dificuldade momentânea, podendo, talvez,
se restabelecer com ajuda de terceiros, sem a necessidade da retirada dos seus
filhos.
Quanto às razões ou causas contributivas, é apontado em
todos os processos, inicialmente, o “desinteresse
da mãe”. Em segundo lugar, aparece (processos “A”, “D” e “F”) a “vida promíscua e/ou desregrada da mãe”.
Nos processos “B” e “D” também apontam a
miséria como fator que contribuiu para os maus-tratos, embora não fosse o fator
determinante. Aliás, em todos os processos, as famílias são de camada popular,
ou seja, condição econômica pobre, praticamente miserável, mas não há
referência de que a falta de condições econômicas seja o fator determinante dos
maus-tratos. O que se observou é que a situação de pobreza aparece até como uma
decorrência da atitude “desinteressada”, “desmotivada” dos pais, que demonstram
auto-estima muito baixa (como que se merecessem a situação).
Esse dado confirma uma pesquisa citada por BOWLBY (1995, p.
84-85), realizada na Inglaterra em 1948, por um grupo de mulheres, tendo
constado que: “em geral a renda
insuficiente não foi considerada como responsável direta pela negligência, na
maior parte dos casos, apesar de que a tal incapacidade de manejar o orçamento
doméstico pode ser, claramente, uma das causas, tendo havido muitos casos de
despesas desnecessárias.”
Anota-se que somente no caso “B”, a mãe exercia atividade
remunerada (trabalhava como empregada doméstica, percebendo meio salário
mínimo), sendo que em razão do pouco que ganhavam, associado ao fato de não
poder estar com os filhos durante o dia, é que os maus-tratos teriam se
perfectibilizados em relação às duas crianças que ainda estavam com ela.
No entanto, neste caso foi referido que as crianças não
apresentavam nenhum sinal de desnutrição, conforme se transcreve a seguir: “As crianças estavam alimentadas, não
apresentavam quadro de desnutrição”, conforme a conselheira tutelar em
audiência perante o Juiz. Repito, neste caso, a forma considerada como
maus-tratos também foi a falta de higiene associada a
existência de bichos-de-pé e piolhos nas crianças.
No caso “D”, a razão invocada pelos filhos maiores quando
ouvidos pelo Magistrado, foi a morte do pai: “depois que o pai morreu, há dois anos atrás,
a mãe se perdeu total. Não deu mais bola para os filhos.”
Embora evidenciado que o motivo determinante dos maus-tratos
foi desencadeado pela perda do pai que era o “esteio
material, moral e emocional da família” (ressalte-se que o pai possuía
bem mais idade que a mãe e esta assumiu a maternidade muito jovem), não há no
processo nenhuma referência de que o Estado tenha oferecido àquela mãe algum
tipo de auxílio para permanecer com os seus filhos. Sequer há nos autos
avaliação psicológica ou médico-psiquiátrica da mãe, a fim de verificar as suas
possibilidades emocionais de acolhê-los. A providência imediatamente adotada
foi recolher os filhos menores em instituições (separados) e o juiz determinar
que a mãe “tomasse jeito”, qual seja, “no
prazo de 60 dias a ré deverá buscar emprego para poder melhorar sua situação
pessoal.”
Não é demais referir que, por óbvio, a genitora não
providenciou emprego no prazo determinado e nem tomou outra atitude para
melhorar a sua “situação pessoal”.
Em razão disso, e também porque foi visitar apenas dois
filhos, em uma das instituições, e nunca compareceu para ver os dois menores,
foi considerado que a genitora mostrava-se desinteressada (ou pouco
interessada) pelas crianças. Diante desta atitude, o Magistrado a questionou se
desejava entregar os filhos em adoção, sendo que a mãe teria respondido que
concordava.
No entanto, compete questionar se a atitude da mãe, naquele
momento, poderia ser outra diante da situação de impotência em que se
encontrava: viúva aos 36 anos, com 11 filhos, sendo que nove deles menores de
18 anos, nunca exercera atividade remunerada, pois teve o primeiro filho por
volta dos 15 anos.
Isso vem a confirmar a assertiva de que não se tem dado
atenção às necessidades de uma lar que tenha perdido
pai ou mãe por morte ou doença, sendo que esta também é um dos motivos da
entrada das crianças em instituições. É que infelizmente ainda se tem a disposição de gastar altas somas de dinheiro com
instituições e muito pouco se destina a ajudar diretamente uma família em
dificuldades.
No processo “F”, quando realizada
avaliação psicológica e psiquiátrica dos genitores, foi constatado que os pais
sofreram sérias privações afetivas em sua infância, o que pode ser
indicativo da situação que hoje submetem os seus filhos: total falta de higiene
e desorganização no lar, vida promíscua da mãe e alcoolismo do pai. Tal fato
confirma o que referiu BOWLBY, quando refere sobre as causas dos maus-tratos.
No Processo “E”, foi realizado avaliação psicológica somente
da criança, por iniciativa da instituição, tendo concluído que “a criança apresenta grande imaturidade
intelectual, dificuldades cognitivas, criança bastante carente de afeto e
atenção, muitas vezes não conseguindo expressar o que sente. Com freqüência
torna-se agressivo, sem limites, desrespeitando os monitores. Porém, quando
chamada a sua atenção, de forma atenciosa e carinhosa, ele atende e mostra
afeto também.”
Não foi avaliada a condição da genitora neste processo, mas
a avaliação da criança demonstra que a situação de maus-tratos já deixou
conseqüências no indivíduo.
No processo “A”, inexistem avaliações, há apenas estudo
social (mãe não demonstrou interesse em permanecer com o filho).
No processo “B”, a avaliação ocorreu apenas na mãe das
crianças (acreditando-se que isso ocorreu porque desde o primeiro momento a
genitora demonstrou firmeza em seu propósito de não perder os filhos). Nesta
avaliação, afirmou a psicóloga: “Pessoa
simples, culturalmente limitada, apresentando uma deficiência do meio
(problemas na linguagem), com dificuldades de administrar a vida pessoal e a
dos filhos de forma adequada (...) a mãe colocou que deseja o retorno das crianças ao lar, disposta para
tanto a sair do emprego para cuidá-los em tempo integral.”
No processo “C”, avaliou-se somente a criança, tendo
concluído que é “carente de afeto”.
Não há avaliação da genitora (talvez porque esta não demonstrou interesse em
permanecer com a filha).
No caso “D”, não há avaliações psicológicas ou psiquiátricas
nem das crianças e nem da genitora, existe apenas avaliação neurológica de uma
das crianças em razão de que aparentemente apresentava deficiência mental. No
entanto, o médico atestou que “a criança
não apresentava sinais lesionais cerebrais, mas evidentes sinais de atraso
global do desenvolvimento.”
Nas avaliações existentes nos processos, seja dos pais ou
dos filhos, constata-se de certa forma, um fator comum: pais com déficit
cultural e histórico de rejeição na infância. E as crianças avaliadas
apresentam grande carência afetiva.
Tais fatos confirmam o que diz WINNICOTT (2001, p. 24):
“Só na presença de uma mãe suficientemente boa pode a criança iniciar um
processo de desenvolvimento pessoal e real.” Isto porque “O desenvolvimento, em poucas palavras, é uma
função da herança de um processo de maturação, e da acumulação de experiências
da vida; mas esse desenvolvimento só pode ocorrer num ambiente propiciador. A
importância deste ambiente propiciador é absoluta no início, e a seguir
relativa; o processo de desenvolvimento pode ser descrito em termos de
dependência absoluta, de dependência relativa e um caminhar rumo à
independência.”(p.27)
Como autor causador do fato, sempre aparece a mãe, seja em atitude ativa ou omissiva e eventualmente o
pai (quando este é conhecido no processo, a sua conduta não resta bem
caracterizada).
Observou-se que nos casos “B”, “D” e “F” a mãe teve os filhos bem jovem e teve prole muito numerosa:
Processo “B” a genitora teve seu primeiro filho aos 15 anos
e hoje possui 9 (nove) filhos.
Processo “D” a genitora teve seu primeiro filho aos 15 anos
e teve 14 (catorze) filhos (dois falecidos).
Processo “F” a genitora teve seu primeiro filho aos 14 anos
e atualmente, com 22 anos, possui 7 (sete) filhos e uma gestação interrompida.
Em suma, as causas ou fatores de risco
apontadas como determinantes ou contributivas para os maus-tratos, nos
referidos processos, foram:
1º) mãe que iniciou a maternagem muito jovem e hoje está com
prole numerosa;
2º) morte de um dos genitores;
3º) privações afetivas ou sofrimento dos pais durante a sua
infância.
O desinteresse dos pais, apontados pelo CT, MP, AS e PJ como
uma das causa dos maus-tratos, não é confirmada pelas atitudes demonstradas
pelos pais durante a tramitação do processo, seguramente pelos menos em três
processos (B, E, F).
No caso “A” , embora a mãe tenha procurado o CT para
entregar o seu filho, mostrando-se com isso “desinteressada”
por ele, observa-se que procurou um lugar considerado seguro para deixar
o menino.
A vida promíscua da mãe, apontada em três processos inicialmente
como causa dos maus-tratos, também não se revelou fator
determinante, tendo em vista que não há notícias nos autos de que a mãe
tenha efetuado “programas” na presença dos filhos. Todavia, tal comportamento
materno pode ter contribuído, não isoladamente, mas junto com outros fatores
para o descuido diário com as crianças.
Em todos os processos, com exceção do abuso sexual (processo
“C”), a providência imediatamente adotada foi o abrigamento das crianças em
instituições desta cidade. Através deste dado pode-se observar que o suporte
familiar (família ampliada) ou é deficitário ou é inexistente.
Realmente, nos casos A, B, D, E e
F, não havia suporte familiar adequado, o que ensejou inicialmente o
abrigamento das crianças e no caso “D” a definitiva institucionalização.
No processo “C” (onde havia suporte familiar adequado), a
criança permaneceu abrigada apenas por alguns dias, sendo logo acolhida pelas
tias maternas.
No caso “A”, a criança permaneceu abrigada
8 meses, mas finalmente acolhida pela avó; nos casos “D” e “E”
permanecem institucionalizadas (só existia uma avó que disse não ter condições
de acolher as crianças) e no caso “F” permaneceram 2 anos e 8 meses até
voltarem para os pais (a avó também não acolheu os netos, alegando
impossibilidade material).
O dado supramencionado também nos faz acreditar que a falta
de apoio familiar também pode contribuir para os maus-tratos infantis, já que a
mãe ou o pai não tem apoio no cuidado com os filhos.
No que se refere aos estudos sociais (quando existentes),
realizados na residência dos pais, observou-se que a assistência social
apontava, em todos os casos, que não havia condições materiais de acolher as
crianças. Além disso, os dados colhidos nos revelam que, embora os diversos
estudos sociais tenham sido realizados meses depois da retirada das crianças
dos lares, a situação dos pais permaneceu inalterada, isto é, a situação
apontada como “maus-tratos” (falta de higiene,
desorganização, precárias condições de habitação) continuou a mesma, em
que pese a intervenção do CT e PJ, retirando as crianças de casa e exigindo dos
pais mudanças para retomarem os filhos.
Somente no caso “B”,
a mãe procurou melhorar a sua situação, talvez porque recebeu um certo apoio
para isso (observa-se que este é o único processo em que o CT
refere ter encaminhado a mãe para tratamento, conforme relata a conselheira: “Ela (a mãe) está fazendo terapia familiar
junto ao H. da UFSM e tem ido fazer as avaliações com a psicóloga da CAMSM.”
Não há referência expressa nos demais processos analisados
de que os genitores tenham sido encaminhados para fazer algum tratamento, não
se sabendo assim se fizeram ou não.
Nos demais processos, “A”, “C”, “D”, “E” e “F” os pais
continuaram a levar a vida do mesmo modo, conforme relatos da Assistência
social e Conselho tutelar:
“X e Y não estão cumprindo conforme audiência anterior. Tanto um como o outro não assumem responsabilidades... A casa estava do
mesmo jeito, suja, roupas espalhadas pelo chão...”
“Ontem dia X fui até o endereço citado e verifiquei que absolutamente
nada havia sido feito pelo Sr. Y (pai). Falou-me este
senhor que as coisas andam muito difíceis...” “Infelizmente, sra. Promotora,
como já afirmei em relatórios que entreguei na última audiência realizada, o
Sr. Y e a Sra. X não tem condições econômicas e nem psicológicas de ficarem com
as crianças, pois ambos são completamente desestruturados.”
Ora, em que pese os
pais terem assumido em audiência, perante juiz, promotor e CT que pretendiam
melhorar as suas vidas para terem os filhos de volta, foi relatado que
aparentemente nada foi feito.
Esse dado nos revela que a intervenção das autoridades nas
vidas destas pessoas pode ter sido benéfica para as crianças no sentido de
oferecer novos padrões de vida, como ambiente limpo, organizado,
etc. (já que nas instituições em que foram abrigadas a limpeza do local e das
crianças chama a atenção). Também, naqueles casos, foi oferecido suprimento das
necessidades materiais básicas como alimentação, habitação digna, vestuário
adequado e atendimento médico (a criança institucionalizada consegue com mais
facilidade atendimento na rede pública e até privada. ALDEIAS SOS, por exemplo,
possui convênio com um hospital particular e com a UNIMED para atendimento das
suas crianças, sem qualquer custo), afastando a alegada “situação de risco”.
No entanto, sob o aspecto psicológico, não há referências ou
dados da evolução ou desenvolvimento da criança, limitando-se a instituição a
informar, quando o faz, que a “criança está adaptada
ao sistema do abrigo”.
Outro aspecto a considerar, é que as crianças quando
abrigadas em instituições como as que temos em Santa Maria
(ALDEIAS SOS, por exemplo) passa a usufruir de um padrão de vida irreal,
ou seja, a sua família de origem nunca ou dificilmente poderá oferecer as
condições que a instituição oferece: comida farta e variada, ambiente bem
organizado, roupas variadas e adequadas a estação, atividades de lazer, casa
ampla com ótimas instalações, contendo TV, vídeo cassete, geladeira, freezer,
microondas, etc. Embora toda a criança tenha direito a usufruir deste conforto
material, a saída posterior da instituição e o retorno para casa (para voltar a
viver em uma situação de miséria) pode gerar um novo conflito familiar entre
pais e filhos e, sem dúvida, gera nos pais a sensação definitiva de sua
impotência, inferioridade e reforça a sua baixo auto-estima.
Aliás, no que se refere à situação dos pais após à intervenção das autoridades, já foi referido que, com
exceção do caso “B”, a situação de vida não melhorou e em alguns casos até
piorou.
No processo “F”, após a retirada das crianças de casa, o
casal alguns meses depois acabou se separando e o pai passou a se alcoolizar
ainda mais, conforme relato da conselheira:
“Informa que quem visitava os filhos era o pai, com freqüência. A mãe
passou a visitar ultimamente. Ele se apresentava limpo, sem cheiro de bebida alcoólica, muito carinhoso e depois mudou. Outro dia ele
chegou alcoolizado, sujo e disse que ficava assim porque ela tinha voltado a se
prostituir.”
Outro dado a ser considerado é que para mãe e/ou pai “desinteressado”, parece que a intervenção estatal foi oportuna
no sentido de “aliviar”, desencumbi-los, da responsabilidade:
No processo “D”, a mãe continuou ainda mais livre para
freqüentar os bailões.
No processo “F”, além da separação do casal, a mãe arrumou
novo namorado e uma nova gravidez, sendo que logo após o nascimento deste novo
bebê (com 10 dias de vida) a mãe foi ao CT e disse a conselheira: “pega esta cria e dá para quem quiser antes
que eu a mate”. Conforme CT, a mãe estava visivelmente transtornada, razão
pela qual a criança foi abrigada junto com outros irmãos que já estava lá há
dois anos e permaneceu por 9 meses, até retornar ao convívio materno.
NO processo “C”, a primeira intervenção (afastamento do
padrasto do lar conjugal) foi ineficaz e a segunda afastou, sem dúvida, a
situação de risco, mas mãe e filha ficaram afastadas, sendo que a mãe pode
continuar livremente com o seu relacionamento.
No processo “E”, a criança permaneceu institucionalizada
(pelo menos até o momento), conforme determinação judicial, porque: “E. necessita de essenciais cuidados quanto a
sua saúde, o que não terá se for para casa.”
No caso, a mãe pôde continuar a morar em outra cidade, com o
seu companheiro e não ter compromisso sequer de levá-lo ao tratamento médico.
No caso “A”, a mãe passou a responsabilidade para a avó.
Também em relação à situação dos pais, os relatos efetuados
pelos conselhos tutelares são significativos no intuito de demonstrar que os
pais acabam achando que os filhos estão melhores em uma instituição do que com
eles. Abaixo transcrição:
Processo “F”: “A mãe
quer que os filhos fiquem no abrigo até a maioridade, porque lá estão bem.”
O dado acima coletado comprova o revelado por FONSECA
(2001), quando diz que o Estado, através de sua política de organizar a
sociedade, adotando um modelo tradicional de organização familiar, acaba por
desqualificar as famílias pobres (ou famílias com modos de vida diferentes)
para o trato com os filhos, passando a mensagem de que são incapazes de cuidar
bem dos seus filhos. Muitos deles, então, procuram as instituições para
“entregar” a prole, o que muitas vezes acaba por expor estigmas: a criança é
taxada de desobediente, vadia, levada (tal como se espera de uma criança que
vive na rua), por isso a mãe não pôde com a vida dela e a “abandonou”. A autora
mencionada refere que muitas vezes os pais alegam mau
relacionamento familiar com a criança, a fim de forçar uma internação, quando
na verdade os pais querem se livrar da responsabilidade, em face do problema
econômico.
FONSECA (2000) cita uma pesquisa realizada em 1980, nas
favelas de Porto Alegre, ocasião em que observou que a FEBEM era usada pelos
pais pobres como um internato de pobres. A institucionalização era uma opção
quase que corriqueira para pais miseráveis ou para mulheres cujos filhos
representavam empecilho ao recasamento. Passado 15 anos da primeira pesquisa, a
autora voltou ao local e se surpreendeu ao encontrar, no imaginário popular, a
mesma idéia de que a Febem ou outra instituição era um local bom para o filho
permanecer. A autora alerta: “ Hoje a mãe pobre – pleiteando uma vaga no “internato” para seus filhos
– alegará, antes, perigo de abuso sexual. A mesma criança que dez anos atrás
dava entrada por fome ou motivos sócio-econômico, hoje entra por motivo de
“negligência ou maus tratos.”
Quanto ao abrigamento e o período em que estiveram
recolhidas em instituições, coletou-se dados
significativos. No processo “F”, por exemplo, os vínculos
afetivos entre a mãe e os filhos foram se diluindo com o passar dos
meses, ou seja, quanto mais tempo institucionalizados, mais as crianças se
afastaram afetivamente da mãe
biológica, em que pese receberem visitas da genitora, conforme nos demonstra os
vários relatórios da instituição e CT.
O primeiro relatório, realizado 45 dias depois do
abrigamento: “as visitas são feitas
apenas pelo pai que é muito carinhoso com as crianças e a recíproca é
verdadeira. A mãe visita as crianças a pedido do conselho e as
vezes que esteve aqui para levar as crianças para pesar foi grosseira e
até mesmo por telefone muito nervosa, agressiva com os funcionários da casa.”
No 2º relatório
(1ano e 5meses depois do abrigamento) do CT: refere que as crianças foram
reunidas em uma única instituição após 1ano e 6meses de separação dos irmãos, o
que foi muito positivo: “NO dia 01.06.00
removi as crianças das instituições em que se encontravam – x (lar de Mirian) e
y (recanto da esperança); conduzi os mesmos para a casa
transitória aldeias SOS, onde se encontrava seus dois irmãos – a e b. As
crianças ficaram extremamente felizes ao se reencontrarem.”
No 3º relatório (1ano e 6 meses depois do abrigamento): “A mãe biológica das referidas crianças, Sra. X, tem visitado os filhos semanalmente. Observamos que
“a” não chama X de mãe e sim de ‘tia’. “x e y” possuem um vínculo mais forte
com a mãe. “b” com 1 ano e 7meses não demonstra nenhuma reação aos estímulos de
carinho feitos pela mãe biológica.”
O estudo social e avaliação psicológica realizada 1ano e 7
meses depois do abrigamento afirmaram que as crianças foram se distanciando da
mãe.
Todos os demais relatórios subseqüentes, juntados ao
processo, a partir de então, referem que as duas crianças maiores demonstram
afeto com a mãe, mas as duas menores não demonstram qualquer vínculo afetivo.
Em relação ao pai, a instituição informa que todas as crianças demonstram
vínculo com este.
O penúltimo relatório contido nos autos (dois anos e 4 meses
de abrigamento), refere o abrigamento da recém-nascida, estando, naquele
momento, cinco filhos abrigados. No que se refere aos vínculos, informa a
instituição que “Ao realizar as visitas X
se mostra um pouco mais afetuosa apenas com a filha “c”
(recém-nascida), não despendendo afeto especial par as demais crianças. Por
parte das crianças também não há uma demonstração espontânea de afeto.”
No último relatório (2 anos e 8 meses de abrigamento) refere
que “o pai demonstra grande afetividade
pelos filhos e as crianças também demonstram ser muito ligadas ao pai.” Em
relação à mãe, diz a instituição, “já com
respeito a Sra. X, destacamos que não tem havido por
parte da mesma grande esforço para realizar visitas aos filhos. Poucas foram as
vezes que X cumpriu os agendamentos e nas visitas que compareceu mostrou-se
pouca afetiva com as crianças, sendo a recíproca verdadeira..”
Interessante observar que os vínculos afetivos foram
gradativamente se deteriorando entre a mãe e os filhos, no período de 2anos e
8meses de institucionalização. No entanto, no que se refere ao pai, observa-se
que eles foram mantidos. Importante mencionar que as visitas da mãe não foram
sempre regulares, tendo vezes em que a mãe deixava de ver as crianças por mais
de 60 dias, enquanto o pai apresentava mais regularidade nas visitas. Este dado
pode ter contribuído para a manutenção dos vínculos com o pai, tendo em vista
que a criança necessita, conforme WINNICOTT (2001), de estabilidade e segurança
nas relações parentais.
Entretanto, mesmo considerando estas variáveis e o fato de
que as informações foram prestadas por pessoas leigas (diretor da instituição e
assistente social desta), pode-se afirmar, a partir dos dados coletados, que no
processo “F”, a institucionalização afetou os vínculos afetivos entre a mãe e
os filhos.
Importante referir que após o período de 2 anos e 8 meses de
abrigamento, por decisão judicial, as crianças voltaram a morar com os
genitores: os dois meninos com o pai e as três meninas com a mãe.
O comportamento da mãe biológica após ter os filhos
novamente sob sua guarda, vem a corroborar a conclusão acima, pois a mãe, cerca
de 1 mês depois, entregou uma das filhas (a que entrou para a instituição com 3
meses e saiu com 2 anos e 11meses) para um casal, coincidentemente, a mulher
trabalhou na instituição cuidando da menina. Tempos depois, voltou várias vezes
ao CT para “se queixar” do comportamento da filha mais velha (entrou para a
instituição com 3 anos e quatro meses), acabando por entregá-la ao pai. A mãe
permaneceu de fato apenas com o bebê (entrou recém-nascido e saiu com 8 meses),
embora a conselheira relate que “a mãe
está com a guarda de “c” e “b” e as trata com muito
carinho.”
O último relatório do CT diz que a mãe rejeita a filha mais
velha e por isso sugere que esta permaneça com o pai.
O fato de a mãe permanecer de fato apenas como bebê sugere
que os vínculos realmente se dissolveram, em que pese a
demonstração pública de afeto da mãe.
No processo “D”, onde a mãe foi destituída do pátrio poder
(perdeu assim qualquer direito e dever sobre os filhos), a instituição informa
que uma das crianças (a que foi encontrada com atraso significativo no
desenvolvimento) possui “vínculo forte
com a mãe social”, sendo que a mãe biológica nunca visitou os filhos (sobre
‘vínculo afetivo’ há apenas esta informação em todo processo, em que pese ser a
mesma instituição do caso “F” e o processo tramitar por 6 anos). Este dado
revela que não houve por parte das autoridades ou da instituição atitudes no
sentido de buscar o retorno das crianças ao convívio materno.
No processo “C”, não há informações sobre a existência de
vínculos.
No processo “E”, informação de que a criança possuía vínculo
com uma “madrinha”, que acabou desistindo de ficar com a criança.
No processo “A”, não há informação explícita sobre vínculos,
apenas que o menino, quando entrevistado, refere a
existência da mãe e da avó.
No processo “B”, todas as avaliações insertas no processo
foram efetuadas na mãe biológica, tendo esta demonstrado “muito afeto pelos filhos” e “muito
vontade de ter os filhos de volta”, refere sentir “saudades das crianças”. Não há nenhuma referência do sentimento das
crianças em relação à mãe, até porque elas não foram avaliadas.
Os dados coletados nos processos supra-referidos sugerem que a questão do vínculo não é algo
discutido dentro do processo (talvez por ser de difícil avaliação), e quando
discutido, como no caso “F” (de forma explícita), e no caso “B” (de forma
implícita), é apenas quando os pais demonstram interesse em ficar com os
filhos.
Ainda quanto à questão dos vínculos e a institucionalização,
observa-se que, no caso “B”, o abrigamento pôde ou poderia ter abalado os
vínculos entre a mãe e os filhos, diante da atitude relatado no processo, pela
mãe, de que a instituição a proibia de visitar as crianças. Ora, esta atitude,
mesmo que transitória, pode contribuir para o enfraquecimento dos laços
afetivos, diante da ausência continuada da figura materna, conforme BOWLBY
(1995).
No que se refere à situação atual da criança, não há nos
processos dados reveladores; portanto, de fato, não é possível dizer se a
criança está melhor ou pior depois da intervenção estatal.
A análise dos processos permite dizer, no que se refere a situação atual da criança, que o PJ e MP não tem
conhecimento do desenvolvimento da criança após a intervenção nas famílias, ou
seja, não há dados reveladores se a criança está “melhor” ou “pior” após voltar
para os pais ou após ser institucionalizada ou após seguir para família
ampliada.
Assim, pelos dados coletados, é impossível dizer se a
criança-vítima foi beneficiada com a experiência de afastamento dos pais. Nada
há (nenhum “estudo de caso”, nenhuma avaliação psicológica, etc.) a respeito do
comportamento ou desenvolvimento das crianças que possam sugerir evolução
desta. Somente no processo “D”, há referência expressa de que uma das crianças
(a que já apresentava atraso no desenvolvimento) atualmente (há dois anos
atrás) apresentava atraso na linguagem e no aprendizado escolar.
Poder-se-ia concluir que a intervenção estatal, motivada
inicialmente em uma situação de risco em que a criança estaria vivendo, acabou
se esgotando em si mesma, isto é, representou para as pequenas vítimas uma
atitude meramente intervencionista (sair da companhia diária dos pais e ir
morar em outro lugar materialmente muito melhor e longe de “riscos”) e para os
pais representou, pelos menos nos casos B, D, E e F,
uma atitude impositiva (impôs mudança de vida).
No que se refere ao comportamento dos pais, coletou-se um
dado significativo: onde houve a vontade explícita dos genitores de continuarem
com os filhos, estes voltaram a morar com os pais (caso “B” e “F”), depois de
um certo tempo de abrigamento. Nestes dois casos, houve a imposição de que os
pais melhorassem as condições de vida para retomar os filhos.
No caso “B”, conforme relatos do CT e AS, houve melhora
significativa da mãe, tendo então as crianças voltado a viver
em casa após 8 meses de abrigamento. No caso “F”, todos os pareceres
(AS, CT e psicológicos) dizem que a situação dos pais continua a mesma. Mesmo
com a situação semelhante ao tempo em que as crianças estavam com os pais,
exceto o fato de que agora o casal está separado, o Magistrado determinou o
retorno das crianças ao lar, tendo o pai acolhido os dois filhos maiores (7 e 6
anos) e a mãe os menores (9 meses, 3 e 4
anos).
Este caso sugere uma questão, qual seja, se a intervenção
estatal auxiliou de alguma forma aquela família ou pode ter gerado outros
problemas, como separação do casal, agravamento do alcoolismo paterno,
deterioração do vínculo entre mãe e filhos, etc.
O fato é que, pelo relatórios dos
técnicos juntados ao processo, a situação de risco (motivo pelo qual as
crianças foram retiradas da família) em tese, teria persistido, já que os pais
continuaram na mesma situação pessoal.
Então, por que se afastaram as crianças de casa por um
período tão extenso (quase três anos)?
E o afastamento do lar trouxe o quê de positivo para aquelas
crianças, além de apresentar um novo padrão de vida?
5. Algumas considerações
pessoais
Os resultados acima compilados nos sugerem vários
questionamentos e proposições (além dos já mencionados), a começar pelo modo ou
forma como vimos os “maus-tratos” infantis, isto é, quando é que realmente a
criança está sendo maltratada.
Para se chegar a essa conclusão, acredita-se que é preciso,
inicialmente, considerar: que o conceito de maus-tratos não é um juízo neutro;
que a realidade que chega ao PJ é, via de regra, de uma classe social que
possui mais visibilidade (está mais exposta ao público devido a falta de privacidade), possui menos recursos econômicos
para auto-defesa, e principalmente possui um modo de vida e valores diferentes
do nosso.
Levando-se em conta estes fatores,
importante citar FONSECA (2000, p. 50) quando sugere que se “construa modelos alternativos de vida social
que fogem à lógica prevista da modernidade.”
A autora citada entende que os costumes de nossos pobres
apenas são considerados para facilitar intervenções educativas (para “ajudar”
ou “recuperar). Em nossas favelas, raramente
reconhecemos uma cultura digna de interesse. Por mais que se admita que “eles”,
os pobres, nos seus guetos, sejam nitidamente diferentes de nós, “esta diferença é interpretada como forma
degenerada ou patológica de nossa organização social, ou seja, a das classes
dominantes.” Afirma que relativizar as práticas de pessoas que partilham de
nosso universo é questionar nossos próprios valores; é admitir as contradições
do nosso sistema econômico e político que cria subgrupos com interesses
quase oposto. A abordagem da autora não é um relativismo simplista, mas
procura compreender certas dinâmicas, não no sentido de louvá-las, nem advogar
a sua preservação. Olhar de forma realista para as diferenças culturais que
existem no seio da sociedade de classe significa explorar o terreno que separa
um indivíduo do outro na esperança de criar vias mais eficazes de comunicação,
conforme GEERTZ (1999).
Com o intuito acima, FONSECA (2000) lançou-se numa pesquisa
dentro de uma vila porto-alegrense de baixa renda, tendo constatado que as
camadas populares no Brasil conhecem uma tradição familiar bem diferente do
modelo conjugal estável. O casamento legal é extremamente limitado,
prevalecendo as uniões consensuais. Mulheres-chefes-de-família também representam um índice bem
superior ao convencionalmente aceito, e pesquisas em diversos
partes do país levam a crer que, em grupos populares a circulação de
crianças é uma prática comum desde a época colonial.
A autora constatou que cresce a natureza aberta da unidade
conjugal: as crianças passam de uma casa para outra, sendo que as decisões
sobre a criança – como criá-la, escolarizá-la, seu destino –
não são confiadas apenas aos pais. Há uma verdadeira instabilidade
conjugal e há a coletivização da responsabilidade pela
crianças, até como forma de sobrevivência delas. É
comum as crianças serem criadas por avós, tios, vizinhos, padrinhos, sem
que a mãe biológica perca a sua condição de mãe. Esta, apesar de deixar o seu
filho nas mãos de outros por vários anos, quase nunca considera ter abandonado
a criança. Tal atitude é vista por ela como sacrifício da prerrogativa materna
em benefício dos filhos.
Portanto, o valor simbólico da criança muda nos grupos
populares porque a mãe entende que o grupo familiar extensivo pode garantir
bons cuidados à criança e que, sendo, na sua cultura, os laços de sangue os
mais importantes (o sangue puxa,
conforme. provérbio popular) não fará diferença no que diz respeito às
lealdades filiais.
A criança não é concebida como emocionalmente frágil.
Assim, para FONSECA, continuar a pensar essas práticas
puramente em termos de “antinorma”, é virar as costas à tradição histórica de
boa parte da população brasileira.
Diante desta realidade, a autora coloca o termo alteridade, como apropriado para lidar
com essa cultura, pois descreveria bem o objeto da ciência (antropológica),
pois envolve simultaneamente a mim a ao outro. É uma antropologia que tem por
objetivo ampliar o universo do discurso social.
Como exemplo da falta de comunicação, a autora cita estudo
realizado no ano de 1997 (pesquisa etnográfica) em bairros populares de Porto
Alegre, onde ela descreveu a angústia das mães que “perderam seus filhos para os orfanatos”. Após anos de ausência, as
mães iam buscar o filho no orfanato e descobriam que ele fora adotado. Reagiam
com perplexidade e indignação, dizendo que não entendiam como o Estado poderia
destituí-la do amor materno. Os administradores, por sua vez, também, se
indignavam com essas mulheres porque alegavam que essas usavam os orfanatos
como uma pensão depositando e retirando a criança conforme a sua conveniência.
No entanto, o que os administradores ignoram é que deixar as
crianças não é uma estratégia ad hoc de sobrevivência. Pesquisas históricas sugerem que mães brasileira confiam filhos a mães adotivas (tias,
comadres, avós, etc.) por anos a fio, mas não consideram ter renunciado aos
direitos maternos e a criança continua a ser vista como parte integral da
família. Mais, segundo a lógica de circulação de crianças, as crianças não
perdem a identidade genealógica, e a despeito da longa separação, depois de
adultas voltam a integrar as redes de consangüinidade. Observa-se que os
agentes sociais dos orfanatos agem como uma lógica; os seus clientes com
outra. – estamos diante de uma confusão
de línguas.
Assim, entende-se que as autoridades, ao interpretar a
realidade social, classificando-a como situações de risco para a criança, devem
considerar estas variáveis, sob pena de realizar uma intervenção nas vidas
dessas pessoas de forma impositiva, o que, via de regra, torna-se ineficaz como
demonstrou a análise do caso “F”, por exemplo.
Também, conforme nos coloca BOWLBY (1995, p. 84), é
importante observar quando se trata de pais negligenciando os filhos:
“Assistentes sociais experientes são testemunhas das inúmeras vezes em
que crianças ‘negligenciadas’ – no sentido de estarem sujas e mal nutridas –
encontram-se em excelentes condições de saúde mental e, evidentemente, não
sofreram privação afetiva. Infelizmente, os assistentes sociais preocupam-se
tanto, por vezes, com a saúde do corpo e, acrescente-se, com a aparência
física, que nos deparamos com o seguinte paradoxo: utiliza-se um programa
assistencial dispendioso para transformar crianças negligenciadas fisicamente,
mas psicologicamente saudáveis, em crianças saudáveis fisicamente, mas emocionalmente
famintas.”
Por outro lado, as palestras proferidas por WINNICOTT em
1959, reunidas em livro (2001), demonstram que a saúde da
família e da sociedade derivam da saúde emocional do indivíduo. O autor
acredita que a família ou a estrutura familiar derivam, em grande parte, das tendência para organização presentes na personalidade
individual (p.69-70).
Portanto, a criança precisa da família para se desenvolver,
tanto quanto a família necessita dela para se estruturar.
E a sociedade, por sua vez, conforme WINNICOTT (2001, p.69),
precisa de membros “sadios” para que a democracia possa florescer.
Considerando os dados coletados nos processos analisados,
aliado à revisão bibliográfica, pode-se dizer que a separação de uma criança do pais biológicos só poderia ocorrer naqueles casos
lembrados por WINNICOTT (2001, p. 114), quando a “crueldade e a negligência flagrante despertam a consciência da
sociedade.”
Mesmos nos casos que pedem a separação, cada situação exige
um estudo minucioso, um “bom estudo de
caso”. Ainda assim, a separação deve ser transitória e jamais absoluta,
isto é, os genitores devem continuar com contato diário com os filhos, fazendo
com que entendam que são imprescindíveis no cuidado com a sua prole.
Entende-se que não se deve abrigar uma criança em
instituições (ou encaminhá-las à família ampliada) e simplesmente desincumbir
os pais dos cuidados com os filhos, impondo apenas que eles os visitem
semanalmente (como ocorreu nos processos analisados).
É necessário muito mais.
É necessário não desqualificá-los no trato com os seus
filhos. É necessário fazê-los responsáveis e imprescindíveis
no cuidado diário para com as crianças que puseram no mundo. Entende-se
que a intervenção que o PJ pode oferecer nestes casos de negligência, seria determinar
que os órgãos encarregados estabeleçam políticas públicas de assistência às
famílias, dando-lhes, em momento de crise, suporte econômico, social e médico.
A parceria comunitária também é essencial. Como refere BOWLBY (1995, p. 94): “se a comunidade dá valor às suas crianças
ela deve proteger os seus pais.”
A assistência poderia consistir em acolher a mãe e a
criança, introduzindo uma rotina de cuidados, onde a genitora participasse de
várias atividades conjuntas, orientadas com momentos de atenção personalizada
para ela e o seu filho.
É importante que os pais se sintam os responsáveis e não
passem, com a ajuda, as vezes “oportuna”, dos órgãos
estatais, a responsabilidades para os outros.
Isso porque o “ambiente
pode ter impactos marcantes no indivíduo”, conforme pesquisa publicada na
169ª reunião anual da AAAS (Associação Americana para o avanço da Ciência, na
sigla em inglês), comentário publicado no jornal Folha de São Paulo, edição do
dia 16.02.2003, coluna de Salvador Nogueira, que ora se transcreve:
“Bloom também foi crítico com o determinismo genético,
citando experimentos recentes que mostram que o ambiente pode ter
impactos marcantes nos indivíduos, que não só não tem nada a ver com a genética
como também, acredite se quiser, podem ser transmitidos aos descendentes. Ele
cita, por exemplo, uma pesquisa sobre camundongos fêmeas que, quando filhotes,
tiveram uma mãe pouco atenciosa e também se tornaram pouco atenciosos quando
chegou a sua vez de cuidar da própria prole. E o traço comportamental persiste
por, pelo menos, três gerações.”
Assim, serviços ou programas de apoio médico-social,
incluindo orientação quanto a nutrição, emprego,
escola, aconselhamento domiciliar em situação de crise, também são saídas
importantes para apoiar a família no cuidado com os filhos, além de mantê-los
no seio familiar, abrindo a família ao diálogo, à comunicação entre si e com os
outros, de forma a gerir equilibradamente as suas próprias tensões. No entanto,
há necessidade de avaliar, em cada comunidade, que tipos de serviços e formas
de apoio seriam culturalmente aceitas, apropriadas e financeiramente viáveis.
No entanto, vale considerar o fato que a pauperização da
família brasileira é evidente e também pode contribuir significativamente para
a desintegração familiar. No caso de Santa Maria, observa-se que é o município
de pior renda do estado, conforme dados da PNAD do IBGE de 1999, sendo que mais
de 60.000 pessoas vivem em estado de pobreza em uma população de
aproximadamente 250.000 pessoas. Conforme dados da secretaria municipal de
assistência social (órgão governamental responsável pela aplicação das
políticas de assistência pública) há vários programas, projetos e serviços
prestados, divididos em redes de proteção. Todavia, contatou-se que, apesar da
diversidade de programas, o acesso é restrito,
pois são muitos os critérios técnicos estabelecidos para alcançar o benefício,
o que os torna pouco eficazes, efetivos, para os fins que se propõe.
Como exemplo, o PETI (programa de erradicação do trabalho
infantil) beneficia 50 crianças em todo o município, quando há mais de 400
crianças inscritas para receber o benefício (que é de apenas R$ 25,00). No
programa FAMÍLIA CIDADÃ, há apenas 291 famílias beneficiadas, quando o próprio
município reconhece que Santa Maria, conforme Pesquisa Nacional por amostras de
domicílio do IBGE (PNAD) em 1999, possui 19.644 famílias em situação de
indigência. Em artigo encontrado no mural da referida secretaria municipal (sem
autor), mas com timbre oficial do município, afirma-se que segundo dados do
IBGE Santa Maria aparece como o município com pior renda do Estado. Projeta uma
média de 3,1 membros por família e afirma que “são 60.896 pessoas entre crianças, adolescentes, idosos, portadores de
necessidades especiais, adultos em idade economicamente ativa, que vivem ou
sobrevivem, sem os mínimos sociais.”
De fato, em contato com as pessoas envolvidas diretamente
com a questão da criança e sua família (PJ, MP, CT, AS) todos afirmam
categoricamente que os serviços oferecidos estão muito aquém do necessário. São praticamente inexistente, conforme LA-FLOR (2002), se
considerados a demanda.
Outro dado revelador é ótica adotada pelos órgãos
governamentais no trato da questão: quando questionados sobre o critério para
as famílias obterem o benefício, foi afirmado que o critério é o da
vulnerabilidade social, sendo que são consideradas mais vulneráveis e por isso
obtém mais apoio as crianças, adolescente, em fim, as
famílias, que “vivem na rua”, são “exploradas sexualmente” ou há “trabalho infantil”. Somente após
contemplar esse grupo, é que, se houver recursos, se partirá para atendimento
às famílias com outros problemas (crianças negligenciadas pelos pais,
mendicância, vítimas de violência, com medidas de proteção, em estado de
desnutrição, portadores de deficiência, drogadição, etc.)
Esse dado comprova que o enfoque dado para a questão (que é
histórico em nossa sociedade), limitou a ação de entidades governamentais a um
número reduzido de pessoas em vulnerabilidade extrema.
RIZZINI (2000, p. 7-10) alerta que com este enfoque, dá-se
pouca atenção para crianças de baixa renda que continuam vivendo em seus lares
e que ainda assim requerem um apoio especial: apoio este que pode evitar que se
tornem meninas ou meninos de rua. Alerta que essa maneira de ver a criança
apenas quando está em situação de risco extremo, associadas sempre a risco ou
problemas específicos, foi reproduzida ao longo do século XX provocando
respostas apenas focadas nas circunstâncias do momento. RIZZINI e BARKER (2000,
p.10) concluem o pensamento ao afirmar:
“As políticas sociais e os programas destinados à população jovem em
situação de pobreza normalmente priorizam seus problemas, fracassos e
deficiências e, com freqüência, atingem crianças e adolescentes quando já se encontram
em situação de difícil reversão. É necessária uma mudança de mentalidade que
tenha como alvo competências e potenciais – da criança e do adolescente.”
(p.10)
Os autores alertam que as bases de apoio devem beneficiar a
todos, não somente um grupo considerado de “risco”, seria um sistema universal,
atendendo uma linha mais preventiva que curativa e voltada ao bem estar de
todas as crianças e adolescentes. Se ficarmos atrelado a
idéia de que a base de apoio destina-se a população de baixa renda, continuaremos
a pensar em políticas discriminatórias e segregadoras. E assim, é difícil haver
mudança porque as classes média e alta não verão benefícios aos seus filhos.
Sabe-se que a manutenção de instituições é reconhecidamente
mais onerosa para os cofres públicos e mais problemática,
do que programas de apoio à família para o cuidado dos filhos.
Desta forma, sequer devíamos falar em retorno da criança à
família ou a sua institucionalização, porque a criança vítima de maus-tratos
(pelo menos quando os motivos alegados são negligência, conforme processos
analisados) corre o grande risco de sofrer privações afetivas, quando
institucionalizada, o que seria mais prejudicial ao seu desenvolvimento do que
sofrer privações de caráter material (sofrer com a falta de higiene dos pais,
por exemplo).
Portanto, a alternativa de buscar uma instituição para
suprir os cuidados de que os pais não são capazes de oferecer (naquele
momento), entende-se não ser a mais apropriada, diante dos problemas que podem
advir e sobretudo das alternativas existentes, apontadas pela literatura, de
apoio efetivo às famílias, pois a recuperação da criança é, sem dúvida, a da
família.
Por fim, observa-se a importância da assistência adequada às
crianças-vítimas como essencial para o bem estar social da comunidade, e não
apenas um simples ato de caridade, porque quando esta assistência é
negligenciada, a experiência negativa pode vir a se reproduzir quando esses
pequenos indivíduos se tornarem pais.
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