INFÂNCIA, ESCOLA E DIREITO

 

 

Estela Scheinvar

Socióloga, doutora em Educação.

 

 

A estrutura pedagógica e a garantia de direitos

 

A política de direitos para a infância e a juventude, através do Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA, acabou trazendo para dentro da escola o debate sobre os fundamentos das relações pedagógicas. “Legal” e “ilegal”, referências éticas que instrumentalizam a prática do educador, de aliadas, tornaram-se ameaças. O Estatuto expressa um complexo movimento; movimento contínuo e atravessado, às vezes descompassado, carregado de tensões, rupturas, movimentos afirmativos e instituintes presentes tanto na área do direito como na da educação.

 

Na sociedade moderna a escola ocupa um lugar privilegiado no processo de socialização. O recurso técnico e, posteriormente, o tecnológico - condições básicas para participar do processo produtivo - deixam de lado o viés diletante do “saber escolar” da sociedade pré-industrial, para situá-lo como o lugar oficial do acesso à “integração”, à “socialização”, ao “saber”... O saber, na modernidade, passa a ser um valor que confere poder. O saber escolar emerge como uma chave de acesso por ser uma concepção que se cristaliza particularmente em dois âmbitos: na referência à sobrevivência material (possibilidade de emprego) e à socialização (ter “educação”). Ambas confluem na medida em que a concepção de socialização passa a ser discutida enquanto garantia para a qualificação necessária à futura integração ao processo produtivo que, por sua vez, é colocado enquanto garantia de acesso às condições de cidadania. Subjetiva-se a educação no modelo escolar e, a partir deste, educação e cidadania estabelecem uma relação íntima onde ambas, convencionalmente, são analisadas como condicionantes.

 

Mas é um condicionamento produzido de forma autoritária desde a estrutura educacional, que opera diretamente através dos responsáveis pelo processo pedagógico formal, através dos agentes da escola, definindo os limites da relação cidadã. A construção da cidadania a partir do movimento social, a partir de uma formação reivindicativa não está inscrita no código ético de nossa cultura. Direito, cidadania, participação são noções vinculadas a estruturas instituídas. As rupturas, os processos de singularização, as buscas de novos sentidos são instalados, hegemonicamente, no campo da transgressão. Mas não por acaso. Instrução e ordem - entendida esta última como obediência à norma - fazem parte de uma mesma concepção que constitui a cidadania.

 

A norma não é discutida, pensada, nem criada, mas entendida como natural, imutável e inquestionável. Condição que não condiz com os tempos acelerados, descartáveis, que vivemos. Escola e cidadania é um binômio do qual não se pode escapar, na medida em que - independentemente dos hábitos e formas em que se expressem estes conceitos - cidadania é uma relação social que não é natural, mas um produto histórico. A escola, de sua parte, é chamada à responsabilidade - na sociedade moderna - pela “socialização”. Segundo Maria Vitória Benevides, a análise da noção de cidadania tem se pautado em dois temas correlatos:

 

“1. o aperfeiçoamento dos direitos políticos do cidadão pela implementação de mecanismos de democracia direta... e 2. a educação política do povo, como elemento indispensável - tornando-se causa e conseqüência - da democracia e da cidadania”. (Benevides, 1994, p. 5)

 

Abordando o segundo elemento - a educação política - e seguindo a  concepção  da  autora, cabe analisar sua intervenção na produção de condições para o exercício da democracia direta e, nesta medida, para a condição de cidadania. Uma referência para realizar esta análise é o processo educativo oficial, que se propõe como “chave de acesso” ao “saber” e ao “poder”, por deter verdades “científicas” sustentadas na “neutralidade” e em sua “apoliticidade”. Tal perspectiva sempre foi recrudescida antes dos menores de 18 anos terem direitos cidadãos, vivendo sob tutelas totalitárias, sem o direito oficial a qualquer tipo de contestação. O Estatuto da Criança e do Adolescente abre este debate quando “cidadania” deixa de ser atributo dos “maiores”, para se tornar um bem social generalizado. Se cidadania é um “contrato”, uma relação jurídica, desde a gênese das práticas que estabelecem esta relação até as formas para seu cumprimento tornam-se matérias pedagógicas. Cidadania não é um atributo natural, é uma relação histórica, é um dispositivo de governo que se desenvolve sob bases construídas socialmente [1].

O ECA estabelece uma contradição nas condições de socialização tradicionais da sociedade brasileira: por um lado, historicamente a família emerge como responsável por oferecer condições de cidadania para seus filhos, em nome do livre acesso à propriedade privada e pelo outro, reconhecendo as condições de pobreza do Brasil, o Estatuto chama à mobilização da sociedade civil através dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e do conselho tutelar, no sentido de que sejam garantidos os direitos que conferem a condição de cidadania (dentre os que se encontra a possibilidade de acesso às condições privadas de vida, que são um dos pressupostos da cidadania). A luta pelos direitos, então, revela-se como o reconhecimento que a família não tem como prover tais condições, por serem politicamente vedadas para a maioria da população. A relação de cidadania é um analisador [2] das relações sociais, na medida em que a condição “cidadão” é uma produção histórica que implica em situações concretas através das quais esta seja engendrada. A falta de acesso a elas é o mecanismo através do qual o espaço privado da família passa a se reconhecer no espaço público, pois à medida que as relações familiares não têm condições para se circunscrever a quatro paredes, abrem-se para uma comunidade ou para o Estado que, segundo a nova lei, em vez de cassar os direitos familiares e confinar seus membros, tem que construir novas formas de intervenção preservando o espaço familiar, o espaço privado, levando a que os limites do privado sejam percebidos através de seu âmbito público. O público e o privado dialogam de forma transversalizada transparecendo, então, o paradoxo colocado pela premissa da “liberdade” ser a garantia de cidadania, na medida em que é inconteste a relação direta entre propriedade privada e exclusão social.

 

A construção desta nova relação entre o privado e o público trazida pelo ECA - que até 1990 é centrada na família enquanto dispositivo de individualização das relações - é proposta através dos conselhos, com base na figura política da sociedade civil. Profundas implicações emergem com esta nova concepção. A relação sociedade civil – Estado implicada nos conselhos não é natural nem espontânea, mas exposta a intervenções que podem produzir rupturas nos modelos hegemônicos totalizadores que se pautam no mando vertical, na obediência mecânica e não no diálogo, na produção crítica e participativa. Neste contexto, retorna-se à discussão sobre a cidadania, se entendida como uma relação histórica produzida a partir de determinada educação política, por supor uma materialidade a ser construída com base em certos conhecimentos em que a sociedade moderna se fundamenta.  É neste momento que a escola emerge potencializada enquanto a “detentora” do saber, da socialização, da formação cidadã. Relações, todas elas, que cabem problematizar não a partir de critérios de verdade, mas colocando em discussão as concepções expressas nas práticas.

 

Um dos parâmetros mais recorrentes na construção de modelos de cidadania e de democracia no capitalismo é o acesso à escola. De fato, no mundo industrializado este equipamento social tem se convertido no maior ponto de concentração comunitária, o que é visível tanto nas relações cotidianas como através de dados oficiais de ampliação de vagas escolares. Contudo, o que cabe problematizar é o sentido da cidadania, quando circunscrita basicamente ao acesso à sala de aula, sem se aprofundar nos efeitos de tal penetração, já que de um lado, se fala em acesso ao saber e de outro, se apela ao igualitarismo democrático, que não tem se revelado outro que aquele que oferece acesso formal a certas estruturas, sem incidir significativamente nas condições materiais da vida cotidiana. No primeiro caso, Wright Mills [3], na década de 50, quando o processo de massificação da educação era uma investida internacional, já falava da construção de uma sociedade de massas caracterizada por um crescente analfabetismo político que desvalorizava a informação e o debate, em favor do “espetáculo”.

 

Em relação ao igualitarismo democrático, Célia Linhares, contra um discurso equalizador, denuncia com veemência a escola que se amplia em termos de possibilidades de acesso, ao mesmo tempo que se afirma enquanto mecanismo de exclusão social:

 

“agora que os pobres, sempre considerados a ralé que nada merece, entraram na escola, ela torna-se diluída em ensinamento e perdida em termos de significação, sentido de vida, incapaz, portanto, de vertebrar um projeto pedagógico potente”. (Linhares,1997, pp. 67-68)

 

Por oposição às políticas oficiais, segundo a autora, interessa à população que freqüenta a escola:

 

 “...fazer do saber escolar algo vivo, para ser refeito, que lhes ajude a entender mais de si mesmos, entendendo mais os movimentos que o Brasil vem produzindo; um saber escolar que contribua na ampliação de escolhas, um saber aberto a virar ferramenta em suas mãos... Uma escola que construa a cidadania e não aquela que através da ...força da hegemonia vai confirmando medrosos, fracassados e revoltados: uns e outros marcados por um espelho que os reflete no que eles têm de possibilidades, as mais negativas, devolvendo-lhes assim uma imagem autodesprezível”. (Linhares,1997, pp. 67-68)

 

O conceito liberal de cidadania redimensiona o indivíduo. A consolidação dos estados democráticos implica em formas participativas como a democracia semidireta onde, como aponta Benevides (1994), “... o cidadão passa a ser titular de uma função ou poder público, com o que a distinção entre Estado e sociedade civil esbate-se (p. 9). “Política é uma prática para políticos”: afirmação permanente numa sociedade que se gaba de estruturar-se politicamente a partir da participação cidadã. Contraditória construção histórica. A concepção do indivíduo constituinte de uma sociedade civil diretamente articulada com o Estado estabelece o espaço para a discussão desta contradição. O Estatuto da Criança e do Adolescente traz elementos ricos na medida em que os Conselhos dos Direitos se dão em todos os níveis administrativos e dependem da articulação governamental (sociedade política) com as organizações não governamentais (sociedade civil). Neste contexto, o espaço comunitário mais orgânico que a sociedade moderna produziu é a escola: recinto do “saber”, do “acesso”, da “possibilidade de poder” que atravessa toda a população, onde todas as crianças em tese teriam que freqüentar e que, com todas as suas deficiências, recebe enorme contingente da população brasileira pelo menos em um ou dois anos de suas vidas.

 

Ocupar o tempo e cumprir com requisitos burocráticos formais é pouco e indigno para ser chamado de projeto pedagógico. Assim como é pouco e indigno fazer das escolas depósitos que se preocupam mais com a “assistência” que com os projetos educacionais. Não cabe à escola alimentar os alunos ou banhá-los - pode até fazer isto - mas este não é o limite do pedagógico. Não se pode inverter as atribuições. Esta inversão não é um ato de benevolência, mas produto de um processo que, como assinala Gaudêncio Frigotto, Marx percebe no sentido da desvalorização da força de trabalho:

 

“Uma forte manifestação destavocação” filantrópica e moralizante das elites empresariais, políticas, eclesiásticas e mesmo da “intelectualidade”, no Brasil, dá-se mediante a visão de que a escola é o locus por excelência destinado a solucionar o problema da violência, dos meninos e jovens infratores, da pobreza, do subemprego, do mercado informal, do desemprego e hoje, especialmente, dos desenraizados meninos e meninas de rua.” (Frigotto, 1996, p. 140)

 

A escola não é alheia à miséria, como não é alheia à falta de participação política direta em uma sociedade que se estrutura formalmente sob princípios democráticos. Porém, a preocupação com as problemáticas sociais é atribuição de uma escola afinada com a perspectiva de construir sociedades críticas e participativas, onde a assistência seja um recurso e não um fim que sequer vem sendo efetivamente realizado. Apesar da escola pública e da educação de maneira geral expressar concepções estáticas, apáticas, mecânicas, onde, no melhor dos casos, os alunos podem perguntar sobre o programa predeterminado e os professores têm que se contentar em influir nas formas de ensinar certos conteúdos já estabelecidos, a escola é um espaço privilegiado de intervenção no modelo de cidadania instituído. Enquanto espaço construído nas comunidades é potencializado em todos os meios sociais e, longe de abandoná-la, propõe-se intervir nela para transformá-la, para problematizar os modelos instituídos e, a partir deles, construir outras relações de cidadania.

 

Num projeto onde o aluno é um cidadão, tem direitos, tem espaços a ocupar em sua comunidade para materializar seus direitos, suas preocupações são as preocupações de sua comunidade. A cidadania é uma construção que não se concebe de forma fragmentada. Não se pode construir espaços de cidadania apenas fora da escola. O processo pedagógico implica a produção de espaços onde se aprenda a pensar sobre as práticas, sobre outras práticas, sobre a construção histórica das relações a partir das quais se pensa o cidadão e, nesta dinâmica, se pensa o quotidiano, se pensa a escola. Tampouco ela pode ser naturalizada.

 

Os “especialistas” em escola também são membros da escola. Ela é um bem público e não uma propriedade particular perante a que seus agentes têm que se submeter silenciosamente. Buscar novas práticas, novas formas de intervenção, implica incluir novos sujeitos sociais. A discussão que o conceito de cidadania estabelece sobre inclusão – exclusão se inicia com a inclusão dos excluídos do debate. O mundo moderno está farto de pacotes iluminados miraculosos, em todas as áreas. O mundo moderno se estrutura a partir da concepção de democracia, de participação, de cidadania, mas as “lições básicas” muito se distanciam das formas de participação direta. O desafio é grande, pois a própria escola só pode pensar a cidadania, se pensar em si própria. Participação, democracia, são concepções que desfocam o eixo tradicional das relações; colocam em debate o lugar dos que dirigem e dos dirigidos, dos governantes e dos governados.

 

Problematizar a escola, as relações sociais é um exercício concreto que produz efeitos concretos nas diversas escalas. Interessante, pois, pensar a intervenção nas práticas tradicionais a partir dos micro-espaços, sempre desprezados nas formulações políticas, embora, sem eles, seja impossível concretizar transformações. A história da política social e da política da educação, de maneira geral, é rica em exemplos onde grandes projetos se perdem em percursos que os deixam longe das salas de aula. Talvez o mais claro deles seja o Estatuto da Criança e do Adolescente. Orientado à população que freqüenta a escola (alunos, professores, pais e grupos comunitários vinculados à infância e à juventude) esta não só o desconhece, mas de maneira geral, o rechaça. O desconhecimento do ECA induz a pensar que os agentes da sociedade civil que compõem os Foros dos Direitos da Criança e do Adolescente e os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente não circulam no espaço da escola. Raciocínio que sugere que, aqueles que formal e privilegiadamente lidam no cotidiano com esses segmentos, nada têm a ver com a formulação política orientada para a criança e o adolescente que se propõe democrática. Tal rechaço fala do uso político do ECA. De maneira geral, esta lei é vista nas escolas como responsável pela situação social do país e, particularmente, pelas condições em que hoje se encontra a escola. Ao invés de garantir os direitos, as áreas executivas (Secretarias, Ministério, etc.) decretam, alegando estar agindo “em nome da lei”, normas inviáveis nas condições atuais da escola. Um exemplo clássico é a obrigatoriedade de aceitar em sala de aula toda criança da redondeza da escola, sem discutir as condições pedagógicas. Na forma como ocorre a gestão política, o direito à escola passa a ser um castigo para os funcionários, pois as escolas são entupidas de crianças e jovens, sem contarem com recursos para qualquer trabalho pedagógico. Sem fazer uma análise mais aprofundada, o “bode expiatório” se reduz a uma sentença: “o Estatuto manda...” Portanto, mais que se opor consistentemente ao que o ECA estabelece, a escola opõe-se a uma determinada administração que, no entanto, justifica sua arbitrariedade e falta de empenho na área com um discurso legalista descontextualizado. Há um uso político do ECA que vem colocando a política de direitos como um aniquilador do espaço pedagógico. Uso que se torna possível pelo seu desconhecimento; pelo desconhecimento de um instrumento de cidadania.

 

Assim vão sendo produzidas formas de fazer política que usam “mecanismos participativos” para isolar, ideais igualitários para excluir e a “garantia de direitos” para criminalizar.

 

Autoritarismo e participação da sociedade civil no exercício do direito

 

Condizente com a chamada por Deleuze “sociedade de controle”, os professores formam parte do exército de especialistas produzidos como os detentores da verdade e da justiça. Paradoxal produção, que coloca aqueles que devem oferecer elementos para explicar uma vida cheia de movimentos, em uma posição estática e inapelável. Certamente, não é só o professor que tem sido colocado nesse lugar, mas muito acima dele, o próprio saber, o conhecimento vem sendo entendido hegemonicamente como um arquivo morto. São inúmeros os trabalhos que apresentam a genealogia e a prática do magistério enquanto um corpo hermético, plenipotente, extremamente competente na “arte” do controle [4]. Illich denuncia as profissões quando definem as necessidades sociais imputando-as como carências, ou seja, quando se tornam, não “fonte de iluminação”, mas  incapacitadoras por entenderem as relações sociais como uma falta e não uma produção. Exemplificando a sua análise, o autor descreve o que se definia, em épocas de Hitler, como “problemas sociais”:

 

“Crianças ‘problema’ de matizes sempre novos eram descobertos entre os pobres, conforme os assistentes sociais iam aprendendo a marcar suas presas e a tipificar as ‘necessidades’ delas... A pobreza foi modernizada: o pobre passou a ser o necessitado”.  (Illich, 1977, p. 19)

 

E é a partir desse pensamento que, certamente, se elaboravam as “soluções”.

 

Na boca de um reconhecido exterminador tornam-se mais visíveis os fundamentos do trabalho social. Preocupa, contudo, que este pensamento não seja atributo apenas de propostas ditatoriais, mas que faça parte da produção da área de assistência social e, nela, da produção de seus agentes. No campo pedagógico este tipo de pensamento se fundamenta em práticas que se orientam a “formar cidadãos” tendo como referência uma concepção consumista de cidadania (Canivez) ou de “cidadania passiva” (Maria Vitória Benevides). São concepções de “mínimos de direitos” ou de tutela, de “favor”, caracterizadas por seus efeitos conformistas, desmobilizadores, empenhadas em perspectivas estanques, prontas para serem decoradas, sem espaço para qualquer construção. Cidadania e democracia, passam, sob tal perspectiva, a ser definições acabadas para serem ensinadas e aprendidas em sua forma “correta”. Qualquer valor, idéia, iniciativa, passa pelo crivo do saber institucionalizado na escola. Este é o grande limite do debate de conceitos históricos - tais como as noções de direito - impostos de forma universal.

 

A instituição escolar, assim concebida, é a referência ao espaço monolítico, onde não cabem anseios, dúvidas, localizações. A verdade é única e absoluta. Resta aos alunos se enquadrarem nela, para serem “bons alunos”.  A escola hegemoniza, enquadra, disciplinariza, através de dispositivos de controle fundados “na verdade”. Floresce uma concepção binária entre o certo e o errado ao definir o que é adequado, ao classificá-lo, formulá-lo nos currículos, ao dividir as turmas; enfim, ao operar todas as definições conceituais como se fossem únicas e inevitáveis. Assim são transmitidos textos e assim são abortadas tantas possibilidades de polêmica e criação.

 

Os limites da submissão dos alunos ao conceito instituído de cidadania, são de sua responsabilidade: uma questão de ordem-desacato institucional. A produção de subjetividades é abstraída de seu contexto histórico. Prática mais marcante no caso dos jovens, dos adolescentes, que constituem um setor cristalizado no estereótipo de “transgressor” e, portanto, alvo predileto das normas de disciplinarização. “Transgressor” é um conceito aplicado numa leitura imediatista e funcionalista das relações caracterizadas como protótipo de juventude. As contradições contundentes da sociedade de classes, das crises alardeadas nos meios de comunicação, são ignoradas ao se tratar das reações e dos espaços criados pelos que não se enquadram passivamente nas práticas instituídas como “normais”. A expressão de conflitos ou a própria busca de caminhos, de formas de expressão, formas de inserção social, é um desacato. Discute-se a ordem, a forma em que se expressam os grupos sociais e não os móbiles das relações.

 

Desta perspectiva, “juventude” é um conceito inserido pelos demógrafos, antropólogos, historiadores, educadores e pelas diversas disciplinas, de maneira geral, como conflito de geração e localizado como etapa de transição. Paradoxalmente, essa noção de transição é abordada a partir de uma posição de paralisia. No domínio da verdade, as buscas são transgressoras; são sintomas de instabilidade, subversão, violência, destruição. O poder criativo, inovador é despotencializado. No momento em que o ser humano detém elementos básicos para conquistar a sua autonomia, no momento em que pode começar a fazer as suas opções, a buscar sentidos diferentes dos ensinados em todos os contextos dos quais participa, ele é coagido em nome de sua inexperiência, da falta de controle dos afetos, de querer se pautar por seus sonhos. A sociedade de controle não abre espaços para dúvidas e questionamentos, ao mesmo tempo que consigna ao indivíduo, à pessoa, a responsabilidade pela inclusão, tornando-se esta a forma através da qual a sociedade de classes sedimenta relações de exclusão social.

 

Os laços com o ensino são cada vez mais arraigados, na medida em que a proximidade da “maioridade” acirra a busca de recursos para a “inserção social”. A independência concebida através de modelos hegemônicos recai na responsabilização do jovem, desconsiderando-se as condições objetivas para que estes os adotem. Entretanto, como anota  Marília Spósito, “nesta fase os laços familiares são mais difusos, pelo que a escola é privilegiada enquanto agência transmissora de valores que preparam a divisão social do trabalho” (Spósito, 1983, p. 164). Prevalece o pensamento que entende que cabe à escola ensinar o necessário para que o cidadão se consagre como tal, abstraindo-se do processo ascendente de exclusão social, onde o próprio acesso ou a permanência na escola é uma questão. Há descrença, mas também há muita expectativa na escola, no sentido de alcançar o reconhecimento formal da “casa do saber”. Finalmente, em termos concretos, que outra instituição estabelece essas relações, se não a escola? Se a família não mais tem recursos para oferecer bases para a “inserção social” (quando referenciada ao mundo do trabalho) do ponto de vista dos equipamentos institucionalizados apenas resta a escola. De forma sublimada ou na forma de reduto, a escola é uma fonte de expectativa de acesso aos modelos de “normalidade”.

 

Toda forma de inserção fora dos modelos hegemônicos é condenada, declarada “inexistente” e, quando ocorre, apela-se ao exército de “trabalhadores sociais” para “ressocializar”, para que se “retorne” o sujeito à sociedade. Nesse movimento liderado por décadas pelos assistentes sociais, pedagogos e psicólogos o direito emergiu de forma totalitária. Os padrões morais de normalidade deixam de ser uma polêmica perante a inflexibilidade com que é assumida a lei. O enquadramento não se limita mais ao aconselhamento e à punição moral, mas ao aprisionamento físico. As buscas de outras formas de vida, de outras expectativas que não as instituídas, não são tratadas como sociais, mas como uma ilegalidade individual perante a qual se recorre às técnicas de “correção”. A proposta de debater, questionar, refletir, historicizar, ameaça estruturas consolidadas expressas em práticas mecânicas e autoritárias. Porém, nada assusta tanto as práticas institucionais como o diálogo. Recursos burocráticos, em nome de normas “especializadas”, são o antídoto perfeito para o sucesso de um projeto de debates onde as posições têm que ser fundamentadas e defendidas. Os procedimentos burocráticos e administrativos dão um viés impessoal, técnico, neutro, inquestionável ao que as pessoas definem e ordenam.

 

Esta abordagem parte, metodologicamente, da concepção de que as relações são produzidas pelos objetos. Ao contrário, no processo genealógico (Foucault) ou cartográfico (Guattari), as relações tornam-se constituintes dos objetos, dos conceitos e não produto destes. Assim, a cidadania e a democracia são percebidas como construções históricas, produto de relações concretas. Foucault (1982) analisa as palavras enquanto dispositivos que, ao se objetivarem, animam as coisas; lhes conferem corpo e alma: sua enunciação as torna materialidade. Porém, através da abordagem genealógica as coisas adquirem sua condição temporal, histórica, tornam-se objetivações de práticas concretas. O produto não expressa um ideal mitificado, mas um processo concreto, relações, conjunturas, possibilidades e limites, que se cristalizam em um recorte, em um uso. Em palavras de Paul Veyne, pode-se dizer que “o objeto não é senão o correlato da prática; não existe antes dela...” e nesse sentido, “o governado eterno não vai além do que o que se faz dele, não existe fora da prática que se lhe aplica, sua existência, se há existência, não se traduz por nada de efetivo... Uma noção que não se traduz em nada de efetivo não passa de uma palavra” (Veyne, 1982, p. 159).

 

Esta é uma referência importante em relação à forma que adota a discussão do Estatuto da Criança e do Adolescente nas escolas, chegando inclusive à sua “não discussão”. O ECA é transmitido como um pacote acabado, desvinculado do debate, das práticas que o produzem, das relações que entram em jogo durante sua discussão e que se traduzem sob uma determinada forma que, além de expressar alguns ideais, expressa também suas possibilidades e seus limites. “Segundo Nietzsche - assinala Veyne - a consciência é reativa. A ‘vontade de poder’ atualiza as virtualidades da época histórica que traça uma prática que se impõe, como se fosse natural, sem sonhar que podia ser diferente. Ignorando a própria vontade de poder, esta se percebe reificada em objetos naturais, sem perceber que se reage aos acontecimentos tomando decisões sem saber que estas são funções de uma certa prática real...” (Veyne, 1982, p. 162).

 

O percurso genealógico conduz à busca e à localização de “necessidades/opções” em seu contexto histórico, a partir de processos concretos. A medida em que as necessidades são determinadas na forma de carência social, vão sendo definidas as “questões públicas” e as “soluções” pelo corpo de “especialistas” que a escola produz através da “qualificação” dos próprios e da obediência dos “ignorantes”. A partir desta relação Illich (1977, p. 23) define as profissões como “inabilitantes”, já que “...os serviços sociais criam incapacidade e os organismos legais injustiça. Estes sistemas engendram ilusões”. Ilusões que se manifestam a cada instante e que limitam a escuta de outras propostas. Se há uma proposta de um trabalho pedagógico “diferente”, cabe pensar nessa “diferença” e em sua produção. Toda intervenção implica uma produção de demanda. No sentido da linearidade dos processos, estas produções podem ser entendidas como perdas, seja de sentido, de valores, etc. O debate implica na desconstrução de um objeto, de uma relação, no sentido de construir outros. Essa é uma demanda que toda intervenção pode produzir. Ao se propor o debate dos direitos nas escolas (no que sempre é frisado com destaque os deveres), as expectativas institucionais são no sentido de resolver problemas.

 

O ECA é um analisador na medida em que é adotado como um dispositivo punitivo, mas é interessante retirá-lo desse lugar para localizá-lo como um dispositivo de debate: para circunscrever a noção de Direitos a um processo histórico em sua perspectiva pedagógica.

 

Mostra disto é a presença do ECA quando este diz que toda criança tem que ir à escola. Quando não se encontra vaga, vai-se ao conselho tutelar ou ao Juiz, que encaminha a pessoa à escola mais próxima. Cria-se um problema entre o conselho tutelar, o Juiz, a Diretora da escola e a criança. Não há uma aliança, para pensar a noção de direitos de outra forma que o confronto entre as partes. Além de receber um aluno excedente ao número de vagas não se desencadeia um processo reivindicativo de outras estruturas, outros equipamentos com maior capacidade para a localidade.

 

O limite da discussão é a capacidade individual, o poder pessoal (a instituição é a pessoa, seja Diretor-escola, Juiz-juizado, etc.) entendida sua capacidade como a habilidade de atender uma demanda pontual que se esgota em si mesma, através da conciliação. Não se resolve o conflito social que faz com que o Juiz intervenha na escola reincidentemente com demandas idênticas, aparentemente irresolúveis, a não ser pela capacidade técnica e humana, claro, do gestor. “- A lei manda!”, repetem as autoridades ameaçando adultos e jovens: professores, pais e alunos. “A lei é imparcial, neutra e cega”. Sob tais bases cabe aplicá-la pontualmente, positivamente, a cada caso. Assim trabalham os equipamentos sociais. Assim trabalha a escola, como assim trabalha o conselho tutelar e o Juizado. Não se pensa em outra forma de se ser escola e é na lei que se encontra suporte para este tipo de práticas irreflexivas.

 

Por oposição, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece a implantação da participação da sociedade civil, abrindo espaços para o debate. Entre as múltiplas alianças que esta lei sugere, a parceria com a escola pode ser entendida como uma ferramenta fundamental. No debate sobre o que é um direito, sobre as práticas para a sua conquista, sobre a abertura de espaços democráticos, os agentes da escola têm muito a contribuir. Afinal, a história da escola, no Brasil, tem sido uma história de luta. Potencializemos-a!

 

Referências Bibliográficas

 

BENEVIDES, Maria Vitória DE MESQUITA. Cidadania e Democracia In: Revista Lua Nova. São Paulo, No. 32, Pp. 5 – 16, 1994.

 

CANIVEZ, Patrice. Educar o Cidadão? Campinas, Papirus, 1991.

 

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal Ed., 1982.

 

FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a Crise do Capitalismo Real. São Paulo, Cortez, 1996.

 

GUATTARI, Felix e ROLNIK, Suely. Micropolítica. Cartografias do Desejo. Petrópolis, Vozes, 1996.

 

ILLICH, Ivan, et alli. Profesiones Inhabilitantes, Madrid, Blume, 1977.

 

LINHARES, Célia FRAZÃO. O Direito ao Saber com Sabor. Supervisão e Formação de Professores na Escola Pública In: ALVES DA SILVA Jr. C. e RANGEL Mary. Nove Olhares sobre a Supervisão, Campinas, SP, Papirus, 1997.Linhares,1997

 

SPOSITO, Marília Pontes. A Sociabilidade Juvenil e a Rua: Novos Conflitos e Ação Coletiva na Cidade. São Paulo, USP. Tempo Social, 1983.

 

VEYNE, Paul Marie. Como se Escreve a História. Foucault revoluciona a história, Brasília, Universidade de Brasília, 1982.

 

Notas

 

1 Para aprofundar o debate sobre a produção da cidadania, ver: Scheinvar, E. A Produção da Cidadania da Criança e do Adolescente: repensando a política pública a partir da escola. Rio de Janeiro, Revista Arquétipo – Universidade Cândido Mendes, No.16, Vol.6, 1998.

 

2  “Analisador” é um conceito empregado pela análise institucional que indica um acontecimento através do qual se decompõe uma totalidade, no sentido de perceber as redes de conexão de sentido constituintes dos modelos sociais.

 

3 Wright Mills é um sociólogo norteamericano marxista, cuja obra contesta os argumentos em  favor do status quo exportado com grande sucesso dos USA para o mundo no processo de consolidação do capital norteamericano nas antigas colônias européias. Entre os textos mais importantes de sua obra podem destacar-se: A Elite no Poder, Rio de Janeiro, Zahar, 1962; A Imaginação Sociológica, Rio de Janeiro, Zahar,

1965; A Nova Classe Média, Rio de Janeiro, Zahar, 1969 e Poder e Política, Rio de Janeiro, Zahar, 1965.

 

4 Para um maior aprofundamento sobre esta temática ver autores como Edgar Morin, Ivan Illich, Cecília Coimbra, Célia Linhaes e Michel Foucault, entre outros.

 

Notas sobre a autora

 

Estela Scheinvar é socióloga, doutora em educação. Professora da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e socióloga do Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Federal Fluminense. scheinvar@ig.com.br