MUDANÇAS
NA COMPOSIÇÃO E ADEQUAÇÃO NUTRICIONAL DA DIETA FAMILIAR NAS ÁREAS
METROPOLITANAS DO BRASIL (1988-1996)
Carlos Augusto Monteiro [A] [C]
Lenise Mondini [B]
Renata BL Costa [C]
Objetivo
Atualizar a tendência secular (1962-1988) da
composição e da adequação nutricional da dieta familiar praticada nas áreas
metropolitanas do Brasil, com base em nova pesquisa sobre orçamentos familiares
realizada em meados da década de 90.
Métodos
Utilizaram-se como fontes de dados as pesquisas sobre
orçamentos familiares (POF) da Fundação IBGE, realizadas entre março de 1987 e
fevereiro de 1988 (13.611 domicílios) e entre outubro de 1995 e setembro de
1996 (16.014 domicílios), tendo ambas como universo de estudo
as áreas metropolitanas do Brasil. Nas duas pesquisas chegou-se à
disponibilidade domiciliar diária per capita
de alimentos, dividindo-se o total de alimentos adquiridos no mês pelo número
de pessoas residentes no domicílio e pelo número de dias do mês. O padrão
alimentar foi caracterizado com base na participação relativa de grupos
selecionados de alimentos e de nutrientes na disponibilidade calórica total. A
comparação entre as duas pesquisas levou em conta o conjunto das áreas
metropolitanas do País e estratos dessas áreas correspondentes às regiões menos
desenvolvidas (Norte e Nordeste) e mais desenvolvidas (Centro-Oeste, Sudeste e
Sul).
Resultados
Observou-se intensificação do consumo relativo de carnes,
de leites e de seus derivados (exceto manteiga) em todas as áreas metropolitanas,
enquanto o consumo de ovos passou a declinar, sobretudo no Centro-Sul do País.
Leguminosas, raízes e tubérculos prosseguiram sua trajetória descendente, mas
cereais e derivados tenderam a se estabilizar no Centro-Sul ou mesmo a se
elevar ligeiramente no Norte-Nordeste. A participação relativa de açúcar refinado e refrigerantes cresceu em todas as áreas, sendo
que a participação de óleos e gorduras vegetais manteve-se constante no
Norte-Nordeste e declinou intensamente no Centro-Sul.
Conclusões
A tendência ascendente da participação relativa de lipídios
na dieta do Norte e do Nordeste, o aumento no consumo de ácidos graxos
saturados em todas as áreas metropolitanas do País, ao lado da redução do
consumo de carboidratos completos, da estagnação ou da redução do consumo de
leguminosas, verduras, legumes e frutas e do aumento no consumo já excessivo de
açúcar são os traços marcantes e negativos da evolução do padrão alimentar
entre 1988 e 1996. Mudanças que podem indicar a adesão da população a dietas mais
saudáveis - declínio no consumo de ovos e recuo discreto da elevada proporção
de calorias lipídicas - foram registradas apenas no
Centro-Sul do País.
Descritores
Inquéritos sobre dietas. Hábitos alimentares. Consumo de
alimentos. Necessidades nutricionais. Dieta, economia. Zonas metropolitanas.
Tendência secular.
Introdução
Os danos para a saúde que podem decorrer do consumo
insuficiente de alimentos ( desnutrição) ou do consumo
excessivo (obesidade) são há muito conhecidos pelos seres humanos. Apenas mais
recentemente, entretanto, acumulam-se evidências de que características
qualitativas da dieta são igualmente importantes na definição do estado de
saúde, em particular no que se refere a doenças crônicas da idade adulta. A
relação entre consumo de gorduras saturadas, níveis plasmáticos de colesterol e
risco de doença coronariana foi das primeiras a ser comprovada empiricamente.13,14
Assim como ocorre com as gorduras saturadas, o consumo elevado de colesterol
também pode aumentar o risco de doença coronariana.20 O risco do
câncer de mama, próstata e cólon-reto parece aumentar
com o consumo total de gordura e com o consumo de gordura de origem animal,
enquanto dietas com legumes, verduras e frutas cítricas, ou seja, ricas em
fibras, vitaminas e minerais, certamente protegem os indivíduos de cânceres de
pulmão, boca, faringe, esôfago, estômago e cólon-reto.23 Inúmeras
evidências bioquímicas, microbiológicas, clínicas e epidemiológicas apontam uma
relação causal indiscutível entre consumo freqüente de açúcar e cárie dental.21
Em nível populacional, demonstra-se uma forte associação entre o nível do
consumo habitual de sal e a pressão arterial dos indivíduos.11
Embora o consumo leve para moderado de certos tipos de bebidas alcoólicas pareça conferir alguma proteção contra a doença coronariana,
o consumo moderado ou intenso está associado a aumento no risco de grande
número de enfermidades, incluindo a hipertensão arterial e a doença
cérebro-vascular, doenças do fígado, certos tipos de câncer, osteoporose,
defeitos congênitos (no caso de consumo intenso durante a gravidez) e de mortes
por acidentes e violências.21,23 Dietas ricas em carboidratos
complexos são consideradas úteis na prevenção da obesidade e de vários tipos de
câncer e no controle da hiperlipidemia e do diabetes mellitus.21 A maior parte dos estudos sobre a
relação entre características da dieta e obesidade evidencia uma associação
positiva entre proporção da energia procedente de gorduras e risco de
obesidade, ainda que as associações obtidas em estudos populacionais tendam a
alcançar magnitude inferior à evidenciada por estudos experimentais.2
A obesidade, por sua vez, aumenta o risco de diversas doenças crônicas da idade
adulta, destacando-se as doenças cardiovasculares, o diabetes
mellitus tipo II, as disfunções biliares, os
problemas do aparelho locomotor e certos tipos de câncer.22 O
acúmulo de evidências que associam características da dieta ao estado de saúde
dos indivíduos determinou que a Organização Mundial de Saúde estabelecesse
limites populacionais máximos para o consumo de gorduras (30% do consumo
calórico total), ácidos graxos saturados (10% do consumo calórico total),
açúcar (10% do consumo calórico total), colesterol (300 mg por dia ou 100
mg/1.000 kcal) e sal (6 g por dia), e que estimulasse o consumo de carboidratos
complexos (mínimo de 50% do consumo calórico total) e de legumes, verduras e
frutas (400 g por dia ou cerca de 7% do consumo calórico total).12,21
A investigação direta do consumo
alimentar, a partir da aplicação de inquéritos dietéticos, constitui a
forma ideal para se caracterizar os padrões dietéticos vigentes em uma dada
população e sua evolução ao longo do tempo. Entretanto, a grande variabilidade
que usualmente caracteriza o consumo alimentar dos indivíduos exige o estudo de
grandes amostras por períodos relativamente longos de tempo, condição
que encarece os inquéritos dietéticos e os torna pouco factíveis. Uma
das alternativas utilizadas com freqüência para se estimar a situação e a
evolução de padrões dietéticos são os dados nacionais sobre disponibilidade de
alimentos. Esses dados, compilados anualmente pela Organização das Nações
Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), indicam a quantidade potencial
média de alimentos disponíveis para consumo humano em cada país e são
calculados com base em estimativas da produção, da importação e da exportação
de produtos alimentares e em um percentual arbitrado para o desperdício. Séries
históricas da disponibilidade de alimentos não permitem qualquer desagregação
das estimativas nacionais, além de dependerem grandemente da qualidade das
estatísticas nacionais referentes à produção e à comercialização dos alimentos.
Uma melhor alternativa, na ausência de inquéritos dietéticos, é representada
pelas pesquisas de orçamentos familiares (POF). As POF são inquéritos
domiciliares que, a partir do levantamento sistemático dos gastos com alimentos
e dos preços praticados nos locais de compra desses alimentos, permitem estimar
a disponibilidade individual de alimentos de cada família. São limitações das
POF, entretanto, a não-consideração da fração desperdiçada dos alimentos, o
não-registro dos alimentos doados ou consumidos fora do domicílio e a
inexistência de informações sobre a distribuição intrafamiliar dos alimentos.10
Em trabalho prévio, baseado em pesquisas metropolitanas de
orçamento familiar realizadas nas décadas de 609
e 805 e em um inquérito nacional sobre consumo alimentar realizado
na década de 70,4 foram reunidos elementos que permitiram
caracterizar a evolução de padrões de alimentação da população urbana do Brasil
em um período de quase trinta anos.16 Importantes mudanças com
reflexos evidentes para o perfil nutricional da população puderam ser
detectadas, incluindo-se o aumento no consumo de produtos de origem animal
(principalmente leite e derivados, mas também carnes e ovos) em detrimento de
cereais, feijão, raízes e tubérculos, e a intensa substituição de gorduras
animais (banha, toucinho e manteiga) por óleos vegetais e margarinas. Uma nova
pesquisa metropolitana de orçamentos familiares, realizada pela Fundação IBGE
em 1995-1996, possibilita a atualização das tendências temporais do consumo
alimentar nas áreas metropolitanas do País, sendo este o objetivo principal do
presente trabalho.
Métodos
As fontes de dados utilizadas no presente estudo são as
pesquisas metropolitanas nacionais sobre orçamentos familiares da Fundação
IBGE, realizadas entre março de 1987 a fevereiro de 1988 (POF-1988) e entre
outubro de 1995 e setembro de 1996 (POF-1996).8 O universo de estudo
das duas pesquisas foi o mesmo, compreendendo as áreas metropolitanas de Belém,
Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo,
Curitiba, Porto Alegre, Brasília e o Município de Goiânia. Na POF-1988 foram
estudados 13.611 domicílios e na POF-1996, 16.014 domicílios.5,7
Na POF-1988, a quantidade de alimentos disponível para
consumo no domicílio foi estimada com base na divisão do gasto mensal declarado
pelas famílias com cada tipo de alimento pelo preço médio de varejo do alimento
no momento do estudo. Na POF-1996, a quantidade de alimento disponível para
consumo foi estimada diretamente a partir das quantidades declaradas de
alimentos compradas pelas famílias. Nas duas pesquisas chegou-se à
disponibilidade domiciliar diária per capita
de alimentos dividindo-se o total de alimentos adquiridos no mês pelo número de
pessoas residentes no domicílio e pelo número de dias do mês.5,7
O padrão alimentar da população, nos períodos de realização
das duas pesquisas, foi caracterizado com base na participação relativa de
grupos de alimentos e de nutrientes selecionados na disponibilidade diária per
capita de energia. Quinze grupos de alimentos
foram considerados: cereais e derivados; leguminosas e derivados; verduras e
legumes; raízes, tubérculos e derivados; carnes e embutidos; leite e derivados;
açúcar e refrigerantes; óleos e gorduras vegetais; frutas e sucos naturais;
oleaginosas; ovos; banha, toucinho e manteiga; bebidas alcoólicas; condimentos;
outros alimentos e preparações. A participação relativa de nutrientes na dieta
levou em conta a proporção de energia decorrente de açúcar refinado (sacarose)
e de outros carboidratos, de proteínas de origem animal e vegetal, de lipídios
de origem animal e vegetal, de ácidos graxos saturados, monoinsaturados e
poliinsaturados, e de colesterol.
A comparação do padrão alimentar
identificado nas duas pesquisas (participação relativa de alimentos e
nutrientes no total calórico disponível) levou em conta o conjunto das áreas
metropolitanas do País e dois subconjuntos que correspondem às áreas
metropolitanas das regiões menos desenvolvidas (Norte e Nordeste) e mais
desenvolvidas (Sudeste, Sul e Centro-Oeste) do País. No primeiro grupo
(Norte-Nordeste) encontram-se Belém, Fortaleza, Recife e Salvador; no segundo
estão Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre,
Brasília e o Município de Goiânia (Centro-Sul). De acordo com a POF-1996,
famílias com renda inferior a dois salários-mínimos representavam 18,6% do
total de famílias existentes nas áreas metropolitanas do Norte-Nordeste e
apenas 5,8% do total de famílias metropolitanas do Centro-Sul. Por outro lado,
rendas familiares acima de trinta salários-mínimos eram encontradas em 6,6% das
famílias metropolitanas do Norte-Nordeste e em 12,8% das famílias
metropolitanas do Centro-Sul.7
A disponibilidade diária per capita
de energia apurada pelas pesquisas de orçamento familiar realizadas em 1988 e
1996 foi de, respectivamente, 1.919,0 kcal e 1.711,2 kcal. Os mesmos valores foram
de 1.704,4 kcal e 1.706,1 kcal para as áreas metropolitanas das Regiões Norte e
Nordeste e de 1.965,1 kcal e 1.712,4 kcal para as áreas metropolitanas das
regiões do Centro-Sul.
A transformação de quantidades de alimentos em nutrientes
foi feita por um aplicativo desenvolvido no Departamento de Nutrição da
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, que utiliza a tabela
de composição ENDEF6 suplementada, no caso específico da análise de
frações lipídicas, por tabelas americanas de composição
alimentar.1,15,19
Resultados
A Tabela 1 compara a importância relativa de quinze grupos
de alimentos nas pesquisas de 1988 e 1996. Cada grupo de alimentos aparece em
cada pesquisa com a proporção que lhe corresponde na
disponibilidade total de energia conferida pelo conjunto dos alimentos.
Nas áreas metropolitanas das Regiões Norte e Nordeste, o
que mais chama a atenção é o aumento na importância relativa das carnes (de
12,5% para 14,1% do total calórico) e a expansão do grupo de cereais e
derivados (de 30,6% para 32,9%) em detrimento do grupo de raízes e tubérculos
(de 12,1% para 8,9%). Embora de menores dimensões, merecem registro o declínio
no consumo relativo de frutas e de sucos naturais (de 3,3% para 2,4%) e o
aumento na contribuição calórica proveniente do açúcar refinado e dos
refrigerantes (de 13,5% para 13,9%). Nas duas pesquisas, a contribuição
calórica do açúcar refinado excede o limite máximo recomendado de 10%, enquanto
o consumo relativo de legumes, verduras e frutas fica
bem abaixo do limite mínimo de 7%.
Nas áreas metropolitanas das regiões do Centro-Sul, as
alterações que mais se destacam são o aumento na importância relativa das
carnes (de 10,5% para 13% do total calórico) e a redução da participação de
óleos e de gorduras vegetais (de 15,2% para 12,9%) e, em menor grau, de raízes
e tubérculos (de 3,2% para 2,7%). Digno de nota, sobretudo por apontar direção
oposta à observada com relação às carnes (e também a leite e derivados), é a
queda pronunciada no consumo de ovos (1,5% do total calórico em 1988 e 1% em
1996). Nota-se, ainda, pequeno declínio na disponibilidade relativa de feijão e
das demais leguminosas, virtual estagnação quanto a cereais, verduras, legumes,
frutas e sucos naturais, e ligeira ascensão na proporção de calorias
provenientes do açúcar e dos refrigerantes. Também no Centro-Sul, nas duas
pesquisas, é excessivo o consumo de açúcar e insuficiente o
consumo de legumes, verduras e frutas.
Levando-se em conta o conjunto das áreas metropolitanas do
País, as mudanças de maior magnitude são o aumento relativo na oferta de carnes
(de 10,8% para 13,2%) e a redução na participação de óleos e gorduras vegetais
(de 14,4% para 12,4%). Na Tabela 2 detalha-se a evolução individual dos
alimentos que integram os quinze grupos de alimentos focalizados no presente
estudo.*
A Tabela 3 descreve modificações na composição da
disponibilidade alimentar com relação a macronutrientes.
Nota-se que a participação de carboidratos nas dietas tende a declinar entre as
pesquisas nas áreas metropolitanas do Norte-Nordeste, sendo esse declínio
compensado, em partes semelhantes, pelo aumento na oferta de proteínas e de
lipídios. No Centro-Sul chamam a atenção a manutenção
da participação de carboidratos na dieta e a substituição de lipídios por
proteínas. Embora ascendente, a participação de lipídios no Norte e Nordeste
(23% do total calórico em 1987 e 23,8% em 1996) ainda é bem inferior à observada
no Centro-Sul (29,5% em 1988 e 28,4% em 1996). A participação dos lipídios na
dieta do Centro-Sul ultrapassaria 30%, limite máximo preconizado para o consumo
de gorduras,21 não fosse o declínio intenso do consumo de óleos e de
gorduras vegetais registrado entre as duas pesquisas.
A Tabela 4 fornece detalhes adicionais sobre mudanças
observadas nas áreas metropolitanas do País quanto à oferta alimentar de carboidratos,
de proteínas e de lipídios. Em todo o País cresce a proporção das proteínas que
procedem de fontes animais (cerca de 60% em 1988 e de 63% em 1996). Os lipídios
de origem animal também aumentam nas duas regiões, embora um aumento expressivo
ocorra apenas nas áreas metropolitanas do Centro-Sul (de 39% para 44,4%), onde,
como se viu, aumentos importantes na oferta de carnes, de leite e seus
derivados ocorreram em paralelo a reduções também importantes no consumo de
óleos e de gorduras vegetais. A fração do açúcar refinado (sacarose) cresce
sobre a fração dos demais carboidratos, tanto no Norte-Nordeste quanto no
Centro-Sul. Nas duas regiões, a proporção das calorias totais provenientes de
carboidratos complexos, os quais representam a imensa maioria dos "demais
carboidratos", fica bastante aquém do limite mínimo recomendado de 50%.
A Tabela 5 focaliza mudanças observadas quanto à
participação de lipídios na oferta alimentar. No Norte-Nordeste nota-se que a
ascensão dos lipídios na dieta decorre do aumento da oferta de ácidos graxos
saturados e dos monoinsaturados e poliinsaturados.
No Centro-Sul, o declínio na proporção de calorias lipídicas
oculta, de fato, aumento na oferta de ácidos graxos saturados e redução dos poliinsaturados. Esse movimento reflete, em essência, as tendências opostas vistas quanto ao consumo de carnes (em
ascensão) e de óleos e gorduras vegetais (em declínio). Embora a participação
dos ácidos graxos saturados na dieta cresça nas duas regiões, é no Centro-Sul
que o limite máximo de ingestão (10% do total calórico) fica próximo de ser
alcançado (9,2% em 1996). Quanto à relação ácidos graxos
insaturados e ácidos graxos saturados, a tendência é
de estabilidade no Norte-Nordeste e de diminuição (portanto desfavorável) no
Centro-Sul. Como resultado essencialmente do declínio no consumo de ovos, a
disponibilidade do colesterol na dieta declina no Centro-Sul e se eleva apenas
ligeiramente no Norte-Nordeste. Nas duas regiões, entretanto, os valores
alcançados excedem o limite máximo de 100 mg/1.000 kcal.
Discussão
Destaca-se que os instrumentos de avaliação utilizados no
presente trabalho e as pesquisas de orçamento familiar não permitem aferir a
quantidade absoluta de alimentos consumida pelas famílias, mas tão somente a participação relativa de cada alimento no total de
alimentos disponíveis para consumo no domicílio. As pesquisas de orçamento
familiar não consideram os desperdícios e os alimentos descartados, nem levam
em conta os alimentos consumidos fora de casa. Assim, fornecem indicações da
adequação da composição da dieta familiar, mas não da quantidade total de
alimentos consumida pelas famílias. 8
A adequação do consumo calórico total nas POF de 1988 e de
1996 poderia ser apreciada a partir da avaliação do peso e da altura das
crianças e dos adultos residentes nos domicílios estudados, mas dados
antropométricos não são habitualmente coletados em pesquisas de orçamentos
familiares. Análises de inquéritos antropométricos realizados no Brasil em
períodos próximos às duas POF evidenciam, em todas as
regiões do País, diminuição da desnutrição em crianças e em adultos e aumento
da obesidade em adultos, o que indica expansão da taxa média de adequação do
consumo calórico da população.17,18 A aparente contradição entre a
redução (Centro-Sul) ou estabilização (Norte-Nordeste) da disponibilidade per
capita de energia e a progressão da taxa média de adequação do consumo
calórico poderia ser explicada por uma diminuição das necessidades calóricas da
população (decorrente de mudanças no perfil ocupacional e de lazer dos
indivíduos) ou mesmo por uma maior proporção de refeições feitas fora do
domicílio. A primeira explicação, embora plausível, carece de suporte empírico
adequado, uma vez que não se dispõem de informações confiáveis sobre a evolução
do padrão de atividade física da população brasileira. A segunda explicação tem
algum suporte empírico no Centro-Sul, mas não no Norte-Nordeste. Nas áreas
metropolitanas do Centro-Sul, entre 1988 e 1996, a proporção de gastos com
alimentação fora do domicílio cresceu de 24,4% para 26,1%; nas áreas metropolitanas
do Norte-Nordeste, a mesma proporção declinou de 25,6% para 21,7%.8
Em trabalho anterior16 sobre a evolução do consumo alimentar nas áreas metropolitanas brasileiras
entre as décadas de 60 e 80, foram constatadas duas tendências majoritárias: 1)
a expansão no consumo relativo de produtos de origem animal (sobretudo leite e
derivados, mas também carnes e ovos) em detrimento de cereais, leguminosas e
raízes e tubérculos; e 2) a substituição intensa de gorduras animais (banha,
toucinho e manteiga) por óleos vegetais e margarinas. O resultado dessas
mudanças para a saúde da população foi de modo geral positivo, uma vez que, ao
final, tornou-se possível melhorar simultaneamente o aporte protéico da dieta
(e de outros nutrientes essenciais como minerais e vitaminas, os quais, em
geral, se apresentam em maiores concentrações nos produtos de origem animal) e
a composição lipídica da dieta (aumento na relação
entre ácidos graxos poliinsaturados e saturados e
redução no conteúdo de colesterol). O aspecto negativo das mudanças foi o
aumento exagerado no conteúdo lipídico total da dieta
observado na Região Sudeste, onde, em 1988, a proporção de calorias lipídicas atingiu cerca de 30% ou o limite máximo do
intervalo recomendado para esse indicador.
Entre 1988 e 1996, período recente focalizado no presente
trabalho, observou-se intensificação do consumo relativo de carnes em todas as
áreas metropolitanas do País.
O consumo relativo de leite e de seus derivados prosseguiu
aumentando, mas em velocidade reduzida com relação aos períodos anteriores,
enquanto o consumo de ovos passou a declinar, sobretudo no Centro-Sul do País.
Leguminosas, raízes e tubérculos prosseguiram sua trajetória descendente em
todo País, enquanto cereais e derivados tenderam a se estabilizar no Centro-Sul
ou mesmo a se elevar ligeiramente no Norte-Nordeste. Nos dois inquéritos
manteve-se reduzida a participação de gorduras animais (banha, toucinho e
manteiga) na dieta (menos de 1% do total calórico em todo o País).
A participação de óleos e de gorduras vegetais manteve-se
constante no Norte-Nordeste (10% do total calórico) e declinou intensamente no
Centro-Sul (de 15,2% para 12,9% do total calórico). Como resultado do novo
padrão de evolução, prosseguiu em todo o País a tendência de melhoria observada
anteriormente quanto ao aporte de proteínas e de outros nutrientes essenciais
presentes nos alimentos de origem animal. Por outro lado, o esgotamento do
processo de substituição de gorduras animais por óleos e gorduras vegetais, ao
lado do aumento no consumo de carnes, contribuiu para reverter a melhoria
anterior observada em relação à relação entre ácidos
graxos poliinsaturados e saturados. O mesmo não se deu com relação ao consumo
de colesterol apenas em face da redução intensa observada no consumo de ovos.
Finalmente, a contribuição dos lipídios para a dieta reduziu-se ligeiramente no
Centro-Sul, mantendo-se, entretanto, ainda muito próxima do limite máximo de
30%, e aumentou ligeiramente (de 23% para 23,8%) nas áreas metropolitanas do
Norte-Nordeste.
A tendência ascendente da proporção de calorias lipídicas na dieta do Norte e Nordeste, a manutenção desse
indicador em torno de valores muito elevados no Centro-Sul, a persistência de valores
elevados para o colesterol dietético, o aumento dos ácidos graxos saturados e a
redução dos carboidratos complexos em todas as áreas metropolitanas do País, ao
lado da estagnação ou da redução do consumo de leguminosas, verduras, legumes,
frutas e sucos naturais e da ascensão do consumo já excessivo de açúcar
refinado e refrigerantes, são, em linhas gerais, os traços marcantes e
negativos da evolução do padrão alimentar observada entre as POF de 1988 e
1996. Padrão semelhante de evolução vem sendo descrito em diversos países
desenvolvidos e anunciado como bastante provável para países em
desenvolvimento.3
O declínio notável no consumo de ovos e a retração
substancial no consumo de óleos e gorduras vegetais e, em menor escala, o recuo
discreto na proporção total de calorias lipídicas,
tendências observadas nas áreas metropolitanas do Centro-Sul do País,
constituem os dados mais importantes revelados pelos inquéritos de 1988 e 1996.
Razões relacionadas a preços relativos dos alimentos dificilmente justificariam
a diminuição substancial no consumo de ovos e de óleos e gorduras vegetais.
Entre os inquéritos, o preço dos ovos pouco variou e o preço do óleo de soja
(principal componente do grupo de óleos e gorduras vegetais) declinou
intensamente.8 Uma hipótese seria atribuir o declínio no consumo
desses alimentos a uma atitude consciente da população das áreas mais
desenvolvidas do País em prol de uma dieta mais saudável. A restrição a
frituras e a redução no consumo de alimentos ricos em colesterol, que têm nos ovos o seu mais conhecido paradigma, são duas das
mais freqüentes mensagens educativas que vêm sendo divulgadas por profissionais
de saúde e por meios de comunicação de massa. O último inquérito antropométrico realizado no País evidenciou na Região Sudeste,
mas não na Região Nordeste, declínio inédito da obesidade na população feminina
adulta pertencente aos estratos sociais de maior renda.18
Espera-se que a análise da evolução dos padrões alimentares da população
metropolitana do País, segundo estratos de renda, a ser efetuada a partir das
POF de 1988 e 1996, propicie elementos adicionais para uma melhor compreensão
das modificações que foram apontadas no presente trabalho.
Agradecimentos
Ao analista de sistemas Fernão Dias de Lima e à assistente de
pesquisa Silvia Cristina Konno da Faculdade de Saúde
Pública da Universidade de São Paulo, pelo apoio prestado na programação e no
processamento de dados.
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Nota sobre os autores
[A] Departamento
de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. São
Paulo, SP, Brasil.
[B] Departamento
de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, SP,
Brasil.
[C] Núcleo de Pesquisas
Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP,
Brasil.