O CONSELHO TUTELAR INDÍGENA
Murillo José Digiácomo
Promotor de Justiça com atribuições junto ao Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Estado do Paraná.
I – Introdução
No dia 25 de abril de 2003, foi realizado na cidade de Dourados/MS um evento histórico: representantes de diversos povos e comunidades indígenas se reuniram com representantes da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, membros do Ministério Público, Poder Judiciário e Conselho Tutelar, bem como de entidades governamentais e não-governamentais diversas, para lançar as bases de discussão sobre uma antiga reivindicação: o “Conselho Tutelar Indígena”.
Na ocasião, foi relatada a situação problemática – e em alguns casos calamitosa – em que se encontram crianças e adolescentes que vivem nas comunidades indígenas, que, pelas mais diversas razões, se vêem privados de uma série de direitos fundamentais assegurados às crianças e adolescentes em geral, tanto pela Lei nº 8.069/90 quanto pela própria Constituição Federal.
E o que é pior, em alguns casos seus direitos acabam sendo violados pelos próprios órgãos públicos que, em tese e por lei, são encarregados de sua proteção, notadamente em razão da diversidade cultural existente e da falta de uma estrutura de atendimento adequada às necessidades específicas das populações indígenas.
A iniciativa da proposta de criação de um “Conselho Tutelar Indígena” partiu dos próprios representantes dos povos indígenas, que acreditam ser possível, através da atuação, no âmbito de suas respectivas comunidades, de um órgão como o Conselho Tutelar, garantir a melhoria das condições de vida de suas crianças e adolescentes, proporcionando-lhes, em caráter efetivo, os mesmos direitos e mecanismos de proteção conferidos a toda a população infanto-juvenil do País.
Nada mais correto, na medida em que o Conselho Tutelar, dada a forma como foi concebido e graças ao papel que desempenha dentro do chamado “Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente”, de enorme relevância e alcance, tem plenas condições de se tornar esse necessário instrumento de transformação da realidade social e da garantia de direitos de crianças e adolescentes, seja qual for sua origem, raça, credo etc., o que, se não vem acontecendo no momento, inclusive por razões de ordem técnica que serão adiante abordadas, pode vir a ocorrer através da inovação legislativa proposta.
II – Pressupostos
Para que possamos analisar a matéria, devemos nos cercar de alguns conceitos e pressupostos elementares, sem os quais poderemos chegar a conclusões equivocadas e a uma solução que não atenda aos objetivos almejados pelos povos indígenas.
II.1 – Dos princípios constitucionais:
O primeiro deles, que foi acima ventilado, decorre da análise dos princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal de 1988, que já em seu art. 1º, caput, ao lançar as bases do que vem a ser o chamado “Estado democrático de direito” no qual vivemos[1], estabelece como fundamentos para sua efetiva implementação, dentre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana[2], às quais se somam as disposições do que vêm a ser os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, quais sejam: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização, assim como a redução das desigualdades sociais e regionais e, finalmente, mas não menos importante, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação[3].
Os referidos objetivos também se constituem em princípios que devem nortear toda e qualquer manifestação do Poder Público, seja no que diz respeito à elaboração e interpretação de leis pelos órgãos do Poder Legislativo e Judiciário (respectivamente), seja para o fim de condução da coisa pública por parte dos órgãos do Poder Executivo[4], demandando, por sua vez, uma análise e interpretação conjunta com toda uma série de regras e princípios também de ordem constitucional voltados à defesa dos direitos coletivos e individuais do cidadão contra o arbítrio do Estado (lato sensu), tanto por ação quanto por omissão.
Embora tais regras e princípios tidos como “garantistas” estejam “pulverizados” por todo o Texto Constitucional, sua maior concentração pode ser encontrada no art. 5º de nossa Carta Magna, que já em seu caput afirma e reafirma o conceito de isonomia em direitos e obrigações a todos os brasileiros:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...” (verbis/omissis).
Como podemos observar, apenas no enunciado do art. 5º da Constituição Federal, que abre o Capítulo dos “Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, dentro do Título dos “Direitos e Garantias Fundamentais”, nada menos que em três oportunidades se fala de igualdade, conceito que, se já não bastasse, é reafirmado já pelo inciso I do mesmo dispositivo legal[5] e em diversas passagens subseqüentes de nosso Diploma Constitucional.
A insistência do constituinte para com a matéria dá a exata dimensão de sua importância no contexto dos direitos e garantias constitucionais, cabendo, portanto, ao Poder Público assegurar a todos os brasileiros a efetiva igualdade de acesso aos mais diversos e elementares bens da vida, em condições dignas de existência, transpondo assim o enorme “fosso” da desigualdade social que, contrariando ao previsto em nossa Carta Magna desde sua promulgação, vem se alargando a cada ano e atingindo, com especial intensidade e crueza, nossas crianças e adolescentes e as chamadas “minorias”, como é o caso dos povos indígenas.
É óbvio, no entanto, que o conceito de isonomia deve ser interpretado com cautela, pois se a desigualdade social é um fenômeno conhecido e reconhecido pela própria Constituição Federal, a única forma de superá-lo é através de políticas compensatórias a cargo do Estado (lato sensu) e de uma postura correspondente por parte dos agentes públicos encarregados de sua efetivação, seja a que Poder pertençam.
Em outras palavras, para que o Poder Público possa proporcionar a todos os brasileiros, de maneira efetiva, os mesmos direitos e garantias assegurados pela Constituição Federal, deve editar normas e desencadear ações que atinjam de forma diferenciada (porém jamais discriminatória) os mais diversos grupos étnicos e classes sociais, de modo que as diferenças naturais existentes entre eles sejam reconhecidas e progressivamente superadas, de acordo com os anseios de toda a coletividade.
Importante jamais perder de vista que tais manifestações de poder emanam do povo e devem ser conduzidas no sentido do bem-estar comum, com respeito às mais variadas formas de cultura, com especial destaque, para fins da presente exposição, à cultura indígena, que, embora deva ser sem dúvida alguma preservada, não pode servir de pretexto à negação, aos povos indígenas, dos mesmos direitos e garantias a que todos os demais brasileiros têm acesso.
Assim sendo, cabe à União, no exercício de sua competência legislativa sobre assuntos que afetam as populações indígenas[6], bem como, quando da elaboração e implementação das políticas públicas que lhes digam respeito, zelar para que o princípio da isonomia acima mencionado seja observado, de modo que, respeitada a diversidade cultural existente, todos os indígenas brasileiros possam gozar, em igualdade de condições, dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados aos demais cidadãos do País.
A propósito, embora nosso Diploma Constitucional tenha feito expressa referência aos povos indígenas precisamente apenas quando tratou da educação[7] e da cultura[8], reputa-se deveras evidente, em razão da incidência do multicitado princípio da isonomia, que estendem-se também às políticas voltadas ao atendimento dos povos e comunidades indígenas os mesmos preceitos de ordem constitucional insculpidos no art. 204 de nossa Carta Magna[9], que dizem respeito tanto às políticas de assistência social quanto, mutatis mutandis, àquelas voltadas a crianças e adolescentes (conforme art. 227, § 7º, também da Constituição Federal).[10]
Tais disposições constitucionais enfatizam a necessidade da descentralização político-administrativa, com a articulação entre os diversos entes federados (União, Estados, municípios e Distrito Federal), que por sua vez devem contar com a participação da população local, diretamente ou por meio de organizações representativas, quando de sua elaboração e implementação, inclusive para fins de fiscalização das ações do Poder Público nesse sentido.
Note-se que estamos diante de verdadeiros princípios de ordem constitucional, aos quais se deve subordinar toda legislação ordinária (e/ou complementar) correlata, inclusive aquela voltada especificamente aos povos indígenas, que assim devem ter reconhecido e assegurado o direito de participação nas decisões políticas que venham a afetá-los direta ou indiretamente, bem como de terem, no âmbito de suas mais diversas comunidades, organizações representativas e de defesa de direitos de crianças e adolescentes (como é o caso do Conselho Tutelar), que tenham uma atuação política (na mais pura acepção da palavra) junto a todas as esferas de Poder e exercitem a parcela da soberania estatal que, na forma da lei e da Constituição Federal, elas próprias detêm.
II.2 – Dos princípios de Direito Internacional:
As regras e princípios constitucionais acima mencionados não surgiram ao acaso, sendo, na verdade, decorrentes de preceitos de Direito Internacional universalmente consagrados, fruto de uma contínua evolução legislativa ao longo de várias décadas.
Uma das mais importantes e interessantes expressões dessas normas de Direito Internacional pode ser encontrada na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, datada de 07 de junho de 1989[11].
A referida Convenção Internacional, que na forma do disposto no art. 5º, § 2º, da Constituição Federal[12], integra o direito positivo brasileiro, estabelece toda uma gama de princípios a serem observados pelo Poder Público quando de sua atuação na busca da garantia dos direitos fundamentais dos povos e populações indígenas, que, conforme consignado já no enunciado do mencionado Diploma legal, devem ter reconhecida a aspiração (e o direito) em “...assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões...” (verbis), ou seja, devem ter respeitado seu direito à chamada “autodeterminação”.
Ocorre que tal direito deve ser exercitado de forma consciente, tendo como pressuposto elementar a educação dos povos interessados, na exata dimensão do preconizado pelo art. 205, de nossa Constituição Federal[13], sem perder de vista as particularidades consignadas na própria Convenção nº 169 da OIT, que dão ênfase à necessidade da participação de membros da própria comunidade no processo educativo e do respeito às tradições e cultura dos povos indígenas[14].
As regras e princípios relativos à educação dos integrantes das comunidades indígenas, por sua vez, além de serem complementadas pelas normas correlatas contidas na Lei nº 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, seguem as normas gerais estabelecidas para implementação de todas as disposições da aludida Convenção nº 169 da OIT, que já em seu art. 1º consigna de maneira expressa que “a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições da presente Convenção” (verbis).
Assim sendo, fundamental que a realidade de cada povo ou comunidade indígena seja conhecida e considerada, de modo a garantir que estes recebam, por parte do Poder Público e seus agentes, um tratamento individualizado, de acordo com as diferenças culturais que apresentem, capaz de proporcionar a todos, em caráter efetivo (e não apenas retórico e/ou “virtual”), a igualdade de acesso à integralidade dos direitos universalmente assegurados aos cidadãos brasileiros.
Para tanto, a Convenção nº 169 da OIT, a exemplo (e de forma até mais explícita) do que preconiza nossa Constituição Federal, em diversas passagens prevê a participação direta dos povos e comunidades indígenas na condução de seu destino, valendo transcrever os seguintes dispositivos:
“Art. 2º.
1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a
participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com
vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua
integridade.
2. Essa ação deverá incluir medidas:
a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de
igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos
demais membros da população;
b) que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e
culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultura, os seus
costumes e tradições, e suas instituições;
c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as
diferenças sócio-econômicas que possam existir entre os membros indígenas e os
demais membros da comunidade nacional, de maneira compatível com suas
aspirações e formas de vida.
Art. 3º.
1. Os povos indígenas e tribais deverão gozar plenamente dos direitos
humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculos nem discriminação. As disposições
desta Convenção serão aplicadas sem discriminação aos homens e mulheres desses
povos;
2. (...).
Art. 4º.
1. Deverão ser adotadas as medidas especiais que sejam necessárias para
salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o meio
ambiente dos povos interessados;
2. Tais medidas especiais não deverão ser contrárias aos desejos
expressos livremente pelos povos interessados;
3. (...).
Art. 5º.
Ao se aplicar as disposições da presente
Convenção:
a) deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais,
culturais, religiosas e espirituais próprios dos povos mencionados e dever-se-á
levar na devida consideração a natureza dos problemas
que lhes sejam apresentados, tanto coletiva quanto individualmente;
b) deverá ser respeitada a integridade dos valores,
práticas e instituições desses povos;
c) deverão ser adotadas, com a participação e cooperação dos povos
interessados, medidas voltadas a aliviar as dificuldades que esses povos
experimentam ao enfrentarem novas condições de vida e de trabalho.
Art. 6º.
Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados
e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou
administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam
participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população
e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições
efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis
pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;
c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e
iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos
necessários para esse fim;
d) (...).
Art. 7º.
1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas
próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na
medida em que ele afete suas vidas, crenças, instituições e bem-estar
espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de
alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio
desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão
participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de
desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente;
2. A melhoria das condições de vida e de trabalho e
do nível de saúde e educação dos povos interessados, com sua participação e
cooperação, deverá ser prioritária nos planos de desenvolvimento econômico
global das regiões onde eles moram. Os projetos especiais, de
desenvolvimento para essas regiões também deverão ser elaborados de forma a
promoverem essa melhoria;
3. (...);
4. (...).
Art. 8º.
1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados, deverão ser
levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário;
2. Esses povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e
instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos
fundamentais internacionalmente reconhecidos. Sempre que for necessário,
deverão ser estabelecidos procedimentos para se solucionar os conflitos que
possam surgir na aplicação deste princípio;
3. A aplicação dos parágrafos 1º e 2º deste artigo não deverá impedir
que os membros desses povos exerçam os direitos reconhecidos para todos os
cidadãos do País e assumam as obrigações correspondentes.”
Os dispositivos acima transcritos são apenas uma amostra das regras e princípios aplicáveis às relações do Poder Público com os povos e comunidades indígenas previstos na mencionada Convenção nº 169 da OIT que, como dito acima, integram o direito positivo brasileiro e se encontram em pleno vigor, por força do contido no art. 5 º, § 2º, da Constituição Federal.
Seus preceitos devem ser observados inclusive para fins de elaboração da nova legislação que venha a substituir a Lei nº 6.001/73, o chamado “Estatuto do Índio”, que se encontra há muito defasado, tanto no que diz respeito à Constituição Federal de 1988, quanto à normativa internacional correspondente.[15] Independentemente dessa necessária alteração legislativa, no entanto, as disposições da citada Convenção Internacional estão em pleno vigor e devem ser aplicadas de imediato, inclusive (e em especial) na busca de alternativas para solução dos mais diversos problemas que afligem os povos indígenas, em especial no que diz respeito à sua parcela infanto-juvenil.
II.3 – Do cotejo entre as disposições precedentes e a Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente e o Princípio da Prioridade Absoluta:
Na esteira do que foi acima exposto, não poderíamos deixar de efetuar um cotejo entre as regras e princípios acima mencionados e aqueles decorrentes da chamada “Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente”, também fruto de uma evolução normativa em nível internacional, cujo enunciado foi incorporado ao art. 227 de nossa Constituição Federal:
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (verbis).
O dispositivo acima transcrito se constitui numa verdadeira síntese dos ditames da “Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente”, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas no ano de 1989 e também subscrita e ratificada pela República Federativa do Brasil,[16] que por sua vez foi melhor “regulamentada” e explicitada, de modo a permitir a efetiva aplicação de seus preceitos, pela Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, que já em seu art. 1º diz claramente a que veio:
“Art. 1º. Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente” (verbis - grifei).
Como é fácil perceber do enunciado do art. 227 da Constituição Federal acima transcrito, a “Doutrina da Proteção Integral” tem como verdadeiro pressuposto o princípio da prioridade absoluta à criança e ao adolescente, que foi “traduzido” pelo art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 8.069/90, nos seguintes termos:
“Art. 4º. (...).
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância
pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais
públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude ” (verbis).
Pela primeira vez houve não apenas a clara e expressa imputação ao Poder Público, em todos os níveis de governo[17], da responsabilidade pela implementação de políticas públicas e programas de atendimento voltados especificamente à população infanto-juvenil[18], como também a determinação, por norma constitucional expressa, que semelhante incumbência deve ser exercitada com a mais absoluta prioridade, havendo ainda o reconhecimento formal de que a omissão estatal em assim proceder é causa de ameaça ou efetiva violação de direitos de crianças e adolescentes,[19] autorizando uma intervenção preventiva e protetiva, se necessário, por parte da Justiça da Infância e Juventude, no plano coletivo, inclusive com a possibilidade de responsabilização civil, administrativa e criminal da autoridade pública competente.[20]
E aqui vale abrir um parêntese.
Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, houve uma verdadeira “qualificação” da atuação da Justiça da Infância e Juventude, que, pela nova sistemática, deve ser fundamentalmente voltada à defesa dos chamados interesses “transindividuais”, ou seja, que afetam um grupo determinável ou não de crianças e adolescentes e/ou, em última análise, à própria comunidade,[21] não mais se justificando a tradicional intervenção apenas em caráter repressivo e no plano individual, como era a tônica no revogado “Código de Menores”.
E essa esperada “qualificação” do papel reservado à Justiça da Infância e Juventude dentro do mencionado “Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente”, na condição de verdadeira guardiã da implementação, integridade e adequação da chamada “Rede de Proteção aos Direitos Infanto-Juvenis”[22], abriu espaço para criação de um órgão com o “perfil” e atribuições do Conselho Tutelar, através do qual representantes da própria comunidade são encarregados de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente definidos pela Lei nº 8.069/90[23], com o encaminhamento dos casos atendidos para os programas e estruturas de atendimento existentes no município.
Com a criação do Conselho Tutelar, portanto, se procurou agilizar e desburocratizar a solução de casos de ameaça ou violação de direitos de crianças e adolescentes, reservando ao Poder Judiciário a solução de conflitos de maior complexidade, seja pela natureza do direito em discussão,[24], seja pela sua abrangência.[25]
Com o Conselho Tutelar, a própria comunidade local, por intermédio de representantes escolhidos num processo democrático, pelo voto direto, secreto e facultativo de seus eleitores,[26] fica responsável pela solução dos problemas que afligem suas crianças e adolescentes, cabendo ao referido órgão encaminhá-las de forma célere, para os serviços públicos e programas de atendimento existentes,[27] zelando para que estes atendam àqueles com a prioridade absoluta preconizada pelo art. 227, caput, da Constituição Federal e art. 4º, caput e parágrafo único, alienas “b” e “c”, da Lei nº 8.069/90.
Ocorre que, por questões de ordem técnica e mesmo cultural, o atendimento prestado pelo Conselho Tutelar a crianças e adolescentes que vivem nas comunidades indígenas tem sido prejudicado, o que vem negando a esse contingente de pequenos brasileiros uma solução rápida e adequada quando da ameaça ou efetiva violação de seus direitos fundamentais, o que sem dúvida algum afronta aos princípios constitucionais da proteção integral/prioridade absoluta à criança e ao adolescente, bem como da isonomia, preconizados pelos citados arts. 227 e 5º de nossa Carta Magna.
III – Dos obstáculos ao atendimento de crianças e adolescentes oriundos de comunidades indígenas pelo Conselho Tutelar atual:
Como dito acima, por mais incrível que possa parecer, o atendimento de crianças e adolescentes oriundos de comunidades indígenas pelo Conselho Tutelar, da forma como o órgão atualmente se apresenta, vem encontrando inúmeros obstáculos, tanto de ordem legal quanto cultural, em evidente prejuízo àqueles.
Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que, na forma da Lei e da Constituição Federal, a responsabilidade pela proteção integral de crianças e adolescentes, através da implementação dos serviços, programas e estruturas de atendimento destinados a estes e suas respectivas famílias recai, de forma solidária, sobre todos os entes federados, ou seja, deve ser compartilhada entre União, estados, municípios e Distrito Federal.[28]
Se é verdade que a municipalização do atendimento é a diretriz primeira da nova política traçada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente,[29] esta deve ser compreendida como a materialização da descentralização preconizada pelo art. 227, § 7º, c/c art. 204 (em especial seu iniciso I, primeira parte), de nossa Carta Magna, não podendo ser tal regra invocada como pretexto para isentar a União, os estados e o Distrito Federal de sua responsabilidade para com a área infanto-juvenil.
O objetivo de tais dispositivos é fazer com que os municípios, que na sistemática anterior não tinham qualquer compromisso com a implementação de programas e estruturas de atendimento voltados especificamente à população infanto-juvenil, passem a desenvolver, por iniciativa própria e por intermédio de seus Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente[30], uma verdadeira política de atendimento a crianças, adolescentes e suas respectivas famílias, de modo que todos possam ser atendidos no âmbito da própria comunidade, tal qual preconizado, por questão de verdadeiro princípio, pelo art. 100, primeira parte, da Lei nº 8.069/90, e não mais fiquem aguardando ad perpetuam soluções “mirabolantes” oriundas de outras esferas de governo, que, muitas vezes, sequer conhecem a realidade local.
Assim sendo, não resta a menor dúvida de que o atendimento de crianças e adolescentes, seja qual for sua origem, raça, credo etc., é de responsabilidade de todos os entes federados, que, para tanto, deverão se articular e unir esforços, sem perder de vista a necessidade da criação de parcerias também com entidades não governamentais e com os mais diversos segmentos da população, tal qual preconizado pelos art. 86 e 88, inciso VI, ambos da Lei nº 8.069/90.[31]
Estabelecida esta premissa básica, se por um lado todos os entes federados são igualmente responsáveis pela proteção integral de crianças e adolescentes, por outro é preciso reconhecer que, para defesa e mesmo exigibilidade dos direitos a estes conferidos, o supramencionado “Sistema de Garantias dos Direitos de Crianças e Adolescentes” prevê a intervenção de diversos atores, de forma diferenciada e em momentos distintos.
Em outras palavras, o próprio “Sistema de Garantias” estabelece critérios para definição de competência/atribuições entre seus vários integrantes, visando, assim, evitar uma atuação dúplice (que pode mesmo levar a decisões conflitantes) ou mesmo a ausência de intervenção de um órgão por entender que tal incumbência ficaria a cargo de outro.
E, dentro dessa nova perspectiva de rápida e descomplicada solução dos casos de ameaça ou violação de direitos infanto-juvenis, o legislador estatutário deu especial ênfase à atuação do Conselho Tutelar que, para tanto, foi dotado de poderes equiparados aos da autoridade judiciária,[32] à qual, é preciso que se diga, não está de modo algum subordinado.[33]
Ocorre que, na forma da Lei nº 8.069/90, o Conselho Tutelar é um órgão municipal,[34] cuja atuação, ao menos em princípio, está obviamente circunscrita aos limites territoriais do município.
Ao Conselho Tutelar, por sinal, aplicam-se os mesmos critérios de definição de competência territorial destinados à atuação da autoridade judiciária, ex vi do disposto no art. 138, c/c art. 147, ambos da Lei nº 8.069/90:
“Art. 138. Aplica-se ao Conselho Tutelar a
regra de competência constante do art. 147.
(...)
Art. 147. A competência será determinada:
I – pelo domicílio dos pais ou responsável;
II – pelo lugar onde se encontre a criança ou adolescente, à falta dos
pais ou responsável.
§ 1º. Nos casos de ato infracional, será competente a autoridade do
lugar da ação ou omissão, observadas as regras de conexão, continência e
prevenção”
(verbis).
Como podemos observar, o primeiro critério utilizado para definição da competência/atribuição do Conselho Tutelar é precisamente o local do domicílio dos pais ou responsável[35] pela criança ou adolescente.
Tal disposição legal se mostra problemática para fins de atendimento de crianças e adolescentes indígenas na medida em que boa parte destes residem em comunidades situadas em terras ocupadas pelos povos indígenas ou em áreas de reserva indígena já demarcada, onde também estão domiciliados seus pais ou responsável.
Com efeito, por força do disposto no art. 20, inciso XI, da Constituição Federal, são considerados “bens da União”, dentre outros, “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”[36] (verbis), o que a nosso ver exclui estas, notadamente, quando se constituírem numa reserva indígena já demarcada, tal qual prevê o art. 231, caput de nossa Constituição Federal e o art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, também de nossa Carta Magna, dos limites territoriais dos municípios em que se encontrem inseridas.
Vale mencionar que embora as “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, enquanto ainda não se constituírem em reservas demarcadas, pertençam à União, ainda devem ser consideradas como parte integrante dos municípios em que se encontrem inseridas, não havendo, portanto, qualquer óbice legal à atuação dos Conselhos Tutelares e outros órgãos de defesa dos direitos de crianças e adolescentes (como é o caso do Ministério Público estadual e Justiça da Infância e Juventude) nestes sediados.
Ocorre que as reservas indígenas já demarcadas, por outro lado, não podem ser consideradas “municípios” e nem integrantes dos municípios com os quais fazem divisa, o que acaba gerando uma situação por certo não prevista ou desejada pelo legislador estatutário, que deixou tecnicamente “a descoberto” a atuação do Conselho Tutelar junto às comunidades indígenas lá sediadas e mesmo em relação a crianças e adolescentes cujos pais ou responsável nelas tenham domicílio, em razão da incidência da regra de competência prevista nos arts.138, c/c 147, inciso I, ambos da Lei nº 8.069/90.
Evidente que tal situação representa um enorme disparate, atentatório aos já mencionados princípios de Direito e, em especial, àqueles decorrentes da “Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente”.
Também não resta a menor dúvida de que, independentemente de qualquer inovação legislativa, a constatação supra não pode servir de empecilho ou pretexto para que os Conselhos Tutelares que atuam em municípios circunvizinhos às mencionadas reservas indígenas já demarcadas[37] deixem de amparar crianças e adolescentes oriundos de tais comunidades que se encontrem com seus direitos fundamentais ameaçados ou violados (em especial quando já vitimizados pela ação ou omissão de seus pais, responsável ou terceiros), porém, logo após efetuado o trabalho de “resgate” e prestado o atendimento em caráter emergencial que se fizer necessário, será de rigor, em razão do disposto no art. 136, inciso V, da Lei nº 8.069/90 e, por analogia ao previsto no art. 262 do mesmo Diploma Legal, o acionamento da autoridade judiciária competente, que em princípio, por força do disposto no art. 109, incisos I e XI, da Constituição Federal e art. 209 da Lei nº 8.069/90[38], será o Juiz Federal que eventualmente tenha competência específica na área da infância e juventude[39] e/ou para tratar de assuntos indígenas ou, em última análise, aquele que tenha jurisdição sobre o território respectivo, de acordo com a lei de organização judiciária aplicável.[40]
Como visto acima, a aludida constatação também não impede que, se necessário, tanto o Conselho Tutelar quanto a autoridade judiciária competente se utilizem, para fins de encaminhamento e atendimento de crianças e adolescentes[41] oriundos das comunidades indígenas, de programas, serviços públicos e estruturas de atendimento já existentes nos municípios circunvizinhos às terras e reservas por aqueles ocupadas, sempre que disponível e necessário assim proceder, porém isto deve ocorrer de maneira criteriosa e cautelosa, de modo a evitar prejuízos maiores aos destinatários da medida, provocada pela diversidade cultural existente e eventual despreparo dos servidores municipais para o atendimento de tal clientela de forma diferenciada, porém jamais discriminatória.
O mais adequado, dentro do espírito de descentralização do atendimento de crianças e adolescentes preconizado pelo art. 227, § 7º, c/c art. 204, inciso I, da Constituição Federal, que dá absoluta preferência para que este ocorra na própria comunidade onde os mesmos vivem (como se extrai da inteligência do art. 4º, caput, c/c arts.88, inciso I e 100, primeira parte, da Lei nº 8.069/90[42]), é, sem dúvida, a implementação de estruturas, serviços e programas específicos de atendimento dentro das diversas comunidades indígenas, sem prejuízo de sua articulação e integração com similares existentes nos municípios circunvizinhos, inclusive de modo a capacitar os técnicos por estes responsáveis para o atendimento da população indígena, nos moldes do previsto pela Convenção nº 169 da OIT, acima mencionada.[43]
A diversidade cultural e, não raro, o despreparo dos integrantes do mencionado “Sistema de Garantias dos Direitos de Crianças e Adolescentes” para lidar com as populações indígenas têm acarretado graves problemas no atendimento a estas prestado.
Consoante se extrai das disposições da Convenção nº 169 da OIT, “ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados, deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário” (verbis – art. 8º, § 1º), o que, como dito, se constitui num princípio nem sempre observado (lamentavelmente) pelos diversos órgãos e autoridades encarregadas do atendimento das crianças e adolescentes indígenas. Mais do que nunca, é necessária a capacitação, a formação humanística, a tolerância[44] e a “flexibilização” dos programas e da própria forma de atendimento dos membros das comunidades indígenas, o que, do contrário, pode gerar mais malefícios do que benefícios aos destinatários das medidas aplicadas.
E aqui vale abrir um outro parêntese.
Como pressuposto para implementação de tais programas e estruturas de atendimento aos direitos de crianças e adolescentes no âmbito das comunidades indígenas, é necessário que seja elaborada uma verdadeira política de atendimento especificamente voltada para esse segmento da população, que na forma do disposto nos mencionados art. 227, § 7º c/c art. 204, inciso II, da Constituição Federal e art. 88, inciso II, da Lei nº 8.069/90, é tarefa que incumbe ao Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente.
Mas que Conselho de Direitos, e em qual nível?
Bem, como dito alhures, nada impede (e é mesmo salutar) que os Conselhos Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente dos municípios circunvizinhos às terras e reservas indígenas desenvolvam estratégias de atuação na defesa de direitos de crianças e adolescentes oriundos de tais comunidades, até porque, caso não seja possível definir o local do domicílio de seus pais ou responsável, ou em se tratando de ato infracional praticado por criança, será o Conselho Tutelar local, ao menos em princípio, o órgão legalmente competente para intervir no caso.[45]
Porém, isto obviamente não basta, na medida em que se faz necessária a atuação de um órgão diverso, que também detenha competência deliberativa quanto à política de atendimento, mas com possibilidade de atuação específica junto aos povos e populações indígenas, que, como vimos, são de responsabilidade da União. E este órgão, no entender do autor, não é outro senão o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA.
Embora a atuação do CONANDA esteja mais voltada à definição de uma política nacional dos direitos da criança e do adolescente, traçando normas gerais para atuação dos seus pares estaduais e municipais, tal qual previsto no art. 227, § 7º, c/c art. 204, inciso I, segunda parte, da Constituição Federal, nada impede que, sem maior esforço, aquele Conselho Nacional passe a também desempenhar o papel de órgão deliberativo quanto à política de atendimento a ser adotada pelo Governo Federal em relação aos povos e comunidades indígenas.
Lógico que, para tanto, não poderá o CONANDA prescindir da colaboração de entidades e órgãos que tradicionalmente atuam junto às populações indígenas, como é o caso da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, sendo que, por força do contido em diversos dos dispositivos da Convenção nº 169 da OIT acima transcritos, obrigatoriamente terá de também ouvir as próprias populações e comunidades indígenas, respeitando os princípios específicos de Direito Internacional anteriormente mencionados.
Essa “mudança de foco” na atuação do CONANDA, também é preciso que se diga, poderá servir inclusive para dar uma “injeção de ânimo” e mesmo um novo sentido à existência do órgão que, para o desempenho de tão grandiosa atribuição, deverá ser dotado de uma estrutura administrativa de apoio correspondente e poderá atuar de maneira concreta no sentido da solução[46] dos problemas enfrentados pelas crianças e adolescentes indígenas, deixando de agir apenas no plano teórico e abstrato, como tem feito até hoje.
Será talvez necessário também modificar a própria composição do CONANDA, abrindo novos espaços para participação, em sua ala não-governamental, de representantes das comunidades indígenas e, em sua ala governamental, de representantes de órgãos oficiais com atuação na área indígena. Isto sem dúvida aumentará o pluralismo e a representatividade do órgão, com a qualificação das discussões a serem travadas, em benefício de toda a nação brasileira.
Uma vez estabelecida uma verdadeira política nacional de atendimento às crianças e adolescentes indígenas, deverá ser a mesma adaptada aos diversos povos e comunidades indígenas, com respeito a sua diversidade cultural e com a colaboração dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente dos municípios limítrofes às terras e reservas, na forma do disposto no art. 86 da Lei nº 8.069/90.
E a implementação de uma política nacional de atenção a crianças e adolescentes indígenas não pode prescindir da atuação, diretamente junto às comunidades onde estas vivem, de um órgão com as características do Conselho Tutelar, sendo então necessário, de lege ferenda, a criação de um “Conselho Tutelar Indígena”, nos moldes do que anseiam os povos interessados.
IV – Do Conselho Tutelar Indígena propriamente dito:
Uma vez demonstrada a importância da atuação de um órgão com o perfil do Conselho Tutelar no âmbito das comunidades indígenas, como importante instrumento de defesa dos direitos de suas crianças e adolescentes, é preciso estabelecer os parâmetros para sua criação e funcionamento.
Para tanto, será necessária a elaboração de uma lei federal específica, pois, como vimos, na forma do disposto no art. 22, inciso XIV, da Constituição Federal, compete privativamente à União legislar sobre assuntos relacionados diretamente às populações indígenas.
Evidente, no entanto, que as disposições relativas ao Conselho Tutelar Indígena poderão ser incorporadas a outro Diploma Legal de nível Federal já existente ou em processo de elaboração legislativa, como é o caso do novo “Estatuto do Índio” que se encontra em discussão no Congresso Nacional.
Embora a lei federal que venha a criar o Conselho Tutelar Indígena deva seguir os moldes do disposto no Título V do Estatuto da Criança do Adolescente (arts. 131 a 140), em especial no que diz respeito às atribuições do órgão (relacionadas nos arts. 95, 136, 191 e 194, todos da Lei nº 8.069/90), deverá possuir alguns diferenciais, de modo a atender as especificidades da matéria e particularidades locais.
Todo o processo legislativo, aliás, deverá ser diferenciado, na medida em que, como visto quando da análise da Convenção nº 169 da OIT, o Poder Público tem o dever de “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente” e, em qualquer situação, “ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados, deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário” (art. 6º, alínea “a” e art. 8º, § 1º, do citado Diploma Legal, respectivamente).
Assim sendo, é fundamental que, do processo legislativo a ser instaurado para criação de um Conselho Tutelar Indígena, sejam ouvidos representantes dos mais diversos povos interessados, bem como órgãos e autoridades encarregados de atuar em sua defesa, às quais o referido Conselho irá se somar.
Mesmo com tal cautela, ainda com base nos princípios de Direito Internacional anteriormente mencionados, quer nos parecer que a efetiva implantação do Conselho Tutelar Indígena no âmbito das mais diversas comunidades indígenas deverá ser facultativa[47] ou, na pior das hipóteses, não poderá ser jamais imposta pelo Poder Público, mas sim resultar de um processo de esclarecimento e convencimento acerca da importância do órgão para as crianças e adolescentes lá residentes.
Como para a criação de um Conselho Tutelar Indígena será necessária a edição de uma lei federal específica, de igual status que o Estatuto da Criança e do Adolescente, abre-se a possibilidade de inúmeras inovações legislativas, que venham a melhor adaptar o órgão às características, necessidades e anseios das comunidades que irá atender.
Passaremos, a seguir, a efetuar algumas propostas que entendemos devam ser discutidas e eventualmente incorporadas ao texto legal a ser criado.
IV.1 – Da vinculação administrativa:
Uma das principais características do Conselho Tutelar previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que deve ser mantida em relação ao Conselho Tutelar Indígena por ser condição necessária à sua atuação, diz respeito à autonomia funcional do órgão[48], que deve tomar suas decisões de forma soberana e independente, sem que para tanto dependa da “chancela” ou homologação de qualquer outro órgão ou autoridade.
Como dito acima, a idéia básica da criação do Conselho Tutelar foi a de agilizar o atendimento e a solução de casos de ameaça ou violação dos direitos infanto-juvenis, através do rápido encaminhamento dos casos para as estruturas e programas de atendimento disponíveis.
Para tanto, o Conselho Tutelar foi dotado de poderes equiparados aos da autoridade judiciária, inclusive com a possibilidade de requisição[49] de serviços públicos junto aos órgãos competentes (sem que para tanto tenha de recorrer ao Poder Judiciário)[50], e seus membros são considerados, segundo a classificação do sempre lembrado mestre Hely Lopes Meirelles, verdadeiros “agentes políticos”, ou seja, autoridades públicas que exercem poder de decisão com autonomia, sendo que, embora considerados servidores públicos e enquadrando-se no conceito de “funcionário público” para fins penais, não estão de qualquer modo subordinados a outras autoridades.
É bem verdade que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, de maneira expressa, a possibilidade de revisão das decisões do Conselho Tutelar pela autoridade judiciária[51], porém tal disposição legal decorre naturalmente do verdadeiro princípio constitucional insculpido no art. 5º, inciso XXXV, de nossa Carta Magna, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito” (verbis) e, por estabelecer que a autoridade judiciária não poderá agir de ofício, tendo de ser antes provocada por quem demonstre legítimo interesse, acaba mesmo por reafirmar a independência e autonomia do Órgão Tutelar em relação ao Poder Judiciário.
Assim sendo, deve ser reconhecida e reafirmada a condição de autoridade pública do Conselho Tutelar (inclusive daquele a ser criado para atuar diretamente junto às comunidades indígenas), que toma decisões de forma soberana, gozando de plena autonomia funcional.
Ocorre, no entanto, que o Conselho Tutelar Indígena terá de ser administrativamente vinculado a determinado órgão ou departamento público[52], que deverá pertencer à estrutura organizacional da administração Federal, ficando este encarregado de fornecer àquele todo suporte administrativo necessário à sua atuação (sede própria, material de expediente, pessoal de apoio[53] etc.).
A referida vinculação administrativa a ser prevista em lei, por óbvio, não importará em relação de subordinação entre o Conselho Tutelar Indígena e o órgão ao qual estará vinculado.
A exemplo do contido no art. 134, parágrafo único, da Lei nº 8.069/90, deverá haver a previsão expressa de que a Lei Orçamentária da União deverá contemplar os recursos necessários ao funcionamento adequado e ininterrupto do Conselho Tutelar Indígena, havendo, para tanto, uma “rubrica” específica na dotação do órgão ao qual este estará vinculado.
IV.2 – Da composição do Conselho Tutelar Indígena; do processo de escolha e requisitos para candidatura, mandato e remuneração de seus membros:
a) Da composição:
O Conselho Tutelar é, por sua própria essência, um órgão colegiado, sendo que a legitimidade de sua atuação e validade de suas decisões têm como pressuposto elementar seu funcionamento como tal.
As decisões do Conselho Tutelar, seja no que diz respeito à aplicação de medidas e encaminhamento dos casos de ameaça/violação de direitos de que o órgão tem conhecimento, seja quando da requisição de serviços públicos ou do desempenho de quaisquer outras atribuições que lhes são conferidas, somente poderão ser tomadas pelo colegiado, e jamais por um de seus membros agindo isoladamente[54].
A atuação enquanto colegiado assume especial importância em razão de serem seus membros pessoas em regra leigas, oriundas dos mais diversos segmentos da sociedade, que deverão discutir entre si os problemas e, desse debate plural[55], tomar a decisão acerca do que fazer, colhendo-se para tanto os “votos” dos presentes, de acordo com o que dispuser o regimento interno do órgão.
Tal orientação também é válida para os membros do Conselho Tutelar Indígena, que deverão ser escolhidos entre os integrantes (em regra leigos) de cada comunidade interessada e deverão tomar suas decisões de forma conjunta, após discussão do problema e formas de solução.
Assim sendo, é fundamental que se mantenha o formato de colegiado do Conselho Tutelar Indígena, embora seja possível alterar o disposto no art. 132, segunda parte, da Lei nº 8.069/90 quanto ao número de seus integrantes, de modo a atender às características e necessidades específicas das diversas comunidades indígenas.
A respeito do tema, uma situação curiosa surgiu quando dos debates levados a efeito no evento de Dourados/MS em que a matéria foi discutida: as mulheres representantes de diversos povos e comunidades indígenas presentes ao evento reivindicaram que fosse destinada uma “cota” para sua participação no Conselho Tutelar Indígena, de modo que também pudessem integrá-lo, o que, de outro modo, poderia ser inviabilizado na prática.
Induvidoso que o assunto merece um amplo debate, em razão das implicações e o impacto que a proposta, se aceita, teria em relação à cultura de muitos povos interessados, porém a idéia básica não deixa de ter seus méritos, pois se na forma da Constituição Federal “homens e mulheres são iguais, em direitos e obrigações...” (verbis – art. 5º, inciso I, de nossa Carta Magna), e for uma aspiração das mulheres indígenas participar ativamente da defesa dos direitos de suas crianças e adolescentes, por intermédio de uma atuação efetiva junto ao Conselho Tutelar, nada mais justo que lhes garantir tal espaço por lei.
Tal disposição legal, no entanto, a nosso ver, teria como conseqüência necessária a cogitada modificação na composição do Conselho Tutelar prevista no art. 132, segunda figura, da Lei nº 8.069/90, pois mais uma vez, em razão do princípio constitucional da isonomia, não seria possível estabelecer às mulheres indígenas uma simples “cota”, que talvez as colocasse em posição de inferioridade aos homens.[56]
O mais adequado, em sendo reconhecida a necessidade de garantir, por lei, a participação das mulheres no Conselho Tutelar Indígena, seria estabelecer uma composição obrigatoriamente paritária entre homens e mulheres, seja reduzindo o número total de membros do órgão para 04 (quatro), sendo 02 (dois) homens e 02 (duas) mulheres, seja ampliando para 06 (seis), com 03 (três) homens e 03 (três) mulheres.[57]
Os problemas decorrentes de uma composição paritária do Conselho Tutelar, como o “empate” na tomada de votos acerca de quais medidas aplicar, por exemplo, deve ser também resolvido por lei ou por intermédio do regimento interno do órgão.[58]
b) Do processo de escolha:
Definida a composição, precisam ser também estabelecidas as regras para o processo de escolha, que deverá ser o mais democrático possível, com a participação, na condição de eleitores, de expressiva parcela de integrantes da comunidade indígena.
Antes de qualquer outra consideração, é preciso deixar claro que o processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar não se confunde com o processo eleitoral normal, tanto que, no formato atual, aquele é regulado por lei municipal, não havendo previsão (ou mesmo possibilidade, diria) de vinculação com a política partidária, ao passo que este é disciplinado por lei complementar (cujas disposições não são àquele aplicáveis, ao menos não de maneira automática)[59], sendo obrigatória a filiação dos candidatos a algum partido político.
Assim sendo, é perfeitamente possível que a lei federal que venha a definir como se dará o processo de escolha dos membros de um Conselho Tutelar Indígena estabeleça critérios diferenciados para o “alistamento” de eleitores e registro das candidaturas, sendo, no primeiro caso, até mesmo dispensável o uso do título de eleitor expedido pela Justiça Eleitoral,[60] que pode ser substituído por um cadastro prévio realizado no âmbito de cada comunidade.
O processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar, se conduzido de forma adequada, é, sem dúvida, um momento ímpar para discutir os problemas que afetam as crianças e adolescentes da comunidade, com os candidatos colhendo dados, mobilizando e conscientizando a opinião pública no sentido de sua indispensável participação em sua solução, tal qual preconizado pelo art. 88, inciso VI, da Lei nº 8.069/90, sendo ademais mais uma ótima oportunidade para o sempre salutar exercício da democracia e da soberania popular.
Quanto maior for a mobilização e participação da comunidade no processo de escolha, maior será a representatividade e conseqüente legitimidade do Conselho Tutelar eleito, tendo o órgão, assim, maior autoridade para exercer o papel político que lhe é reservado[61].
É também fundamental que o processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar seja conduzido por um órgão neutro e isento, que zele pela sua regularidade e lisura, sem estar sujeito a qualquer vinculação político-partidária e/ou a qualquer grupo ou facção porventura existente na comunidade indígena.
Para condução do processo de escolha do Conselho Tutelar no âmbito do município, o art. 139 da Lei nº 8.069/90 indicou o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente[62], pelo que, numa “adaptação lógica” de tal sistemática ao Conselho Tutelar indígena, poder-se-ia colocar tal incumbência a cargo do CONANDA.
Ocorre que, embora a mencionada solução fosse a ideal, a enorme diversidade de povos e populações indígenas espalhadas por todo o território nacional, na prática, dificultaria sobremaneira a atuação do CONANDA nesse sentido, sendo necessária a adoção de uma sistemática diferenciada.
Nesse sentido, embora nos pareça razoável que o CONANDA fique por lei encarregado de estabelecer, via resolução própria, normas gerais para o desenrolar do processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar Indígena,[63] reputa-se fundamental que sua condução e controle efetivo sejam realizados diretamente por um órgão que tenha experiência no trato com as questões indígenas, para o que atualmente se afigura mais indicada a FUNAI.
Assim sendo, recomendável a previsão de uma sistemática mista para deflagração e condução do processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar Indígena, com a atuação conjunta entre o CONANDA e a FUNAI.
Ainda sobre o processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar Indígena, é também fundamental a reprodução do disposto na parte final do art. 139 da Lei nº 8.069/90, de modo a assegurar sua fiscalização pelo Ministério Público, mais especificamente o Ministério Público Federal, ex vi do disposto no art. 129, inciso V, da Constituição Federal e art. 5º, inciso III, alínea “e” e art. 6º, inciso VII, alínea “c” e inciso XI, todos da Lei Complementar nº 75/93.
c) Dos requisitos para candidatura:
O art. 133, da Lei nº 8.069/90, estabelece 03 (três) requisitos básicos à candidatura a membro do Conselho Tutelar: a reconhecida idoneidade moral; a idade superior a 21 (vinte e um) anos[64] e a residência no município.
Tem-se admitido, no entanto, a ampliação de tais requisitos por lei municipal específica, a regular a atuação do Conselho Tutelar local[65].
No caso do Conselho Tutelar Indígena, quer nos parecer adequada a manutenção dos mencionados requisitos estatutários, com a necessária adaptação, logicamente, apenas no que diz respeito à necessidade de residência na aldeia ou comunidade indígena (e não no “município”, como consta na Lei nº 8.069/90).
Uma questão interessante a ser levantada diz respeito à necessidade de o candidato ao Conselho Tutelar Indígena ser ou não alfabetizado.
Para que a matéria possa ser analisada de maneira adequada, devemos considerar que o analfabetismo é uma causa de inelegibilidade para o exercício dos mandatos públicos em geral, prevista expressamente no art. 14, § 4º, da Constituição Federal.
Logo, seria lógico concluir que os candidatos a membros do Conselho Tutelar Indígena deveriam ser também alfabetizados, pois do contrário seriam “inelegíveis”.
Ocorre que, como dito acima, o processo de escolha para membro do Conselho Tutelar é algo sui generis, e um órgão com as características e composição do Conselho Tutelar Indígena (que será formado entre membros da própria comunidade indígena que irá atender), será de uma especificidade ainda maior, sendo certo nem todos aqueles mais preparados para o exercício da função serão alfabetizados, até porque consciência política e disposição para o trabalho em prol de crianças e adolescentes não prescinde de tal requisito.
Poder-se-ia argumentar, como se tem argumentado em relação ao Conselho Tutelar atual, da necessidade da alfabetização ou mesmo de algum nível mínimo de ensino, como o ensino fundamental, sob pena de prejuízo ao adequado funcionamento do órgão.
Devemos lembrar, no entanto, que o Conselho Tutelar é um órgão colegiado, que deve ter à sua disposição uma estrutura administrativa de apoio, composta por servidores e técnicos que irão prestar aos conselheiros propriamente ditos todo suporte de que necessitem, inclusive para redação de expedientes, leitura de textos etc.
Assim sendo, o fato de um ou mais membros do Conselho Tutelar Indígena não serem alfabetizados, de per se, não impede que estes, e muito menos o colegiado que integram, exerçam suas atribuições em toda a sua plenitude.
Razoável, portanto, que, em razão das particularidades que cercam a matéria, se considere que a citada regra contida no art. 14, § 4º, da Constituição Federal não se aplica ao Conselho Tutelar Indígena ou, em último caso, que se promova uma emenda constitucional para assim excepcionar, sob pena de serem criadas sérias dificuldades para instalação do Conselho Tutelar Indígena em muitas das comunidades ou, talvez com mais propriedade, sob pena de se verem impedidos de participar de tão importante órgão, as maiores, mais atuantes e mais preparadas de suas lideranças, o que por certo não é desejado.
Mais importante do que a alfabetização, o diploma de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior,[66] é que o membro do Conselho Tutelar tenha a disposição, a vontade política e o conhecimento técnico para o exercício de uma função tão importante e desafiadora como a de membro do Conselho Tutelar, para o que deverá ser devidamente capacitado pelo Poder Público, como veremos adiante.
d) Do mandato:
O mandato dos membros do Conselho Tutelar indígena poderá seguir o mesmo parâmetro utilizado pelo art. 132, parte final, da Lei nº 8.069/90, ou seja, de 03 (três) anos com possibilidade de 01 (uma) recondução, devendo esta ser entendida como a possibilidade de nova candidatura a um segundo mandato consecutivo, estando, no entanto, sujeita ao “crivo” da comunidade indígena, não podendo ocorrer de forma “automática”.
A renovação periódica do Conselho Tutelar é de suma importância, pois permitirá um engajamento cada vez maior de pessoas interessadas na causa da infância e juventude.
e) Da “remuneração”:
O art. 134, caput, parte final, da Lei nº 8.069/90 dispõe que a “remuneração” dos membros do Conselho Tutelar é meramente facultativa, cabendo a cada município, mediante lei municipal específica, estabelecer se e em que patamar será dada ao membro do Conselho Tutelar uma “contrapartida financeira” por sua atuação.
O referido dispositivo estatutário sempre foi alvo de enorme polêmica, na medida em que, como a prática tem demonstrado, nos municípios em que os membros do Conselho Tutelar não recebem qualquer espécie de subsídio[67] para o exercício da função, o órgão acaba não sendo instalado, por falta de interessados à candidatura, ou funciona de forma completamente irregular,[68] comprometendo sobremaneira sua eficácia e o alcance de sua finalidade precípua, que não é outra senão a proteção integral de crianças e adolescentes.
A previsão de subsídios (e num patamar condigno) aos membros do Conselho Tutelar é medida necessária e justa, na medida em que a própria lei reconhece a extrema relevância de suas funções,[69] que deverão ser exercidas de forma contínua, de preferência em regime de “dedicação exclusiva” por seus membros.
Assim sendo, é necessário que a lei federal relativa ao Conselho Tutelar Indígena venha a reparar a injustiça que o contido no citado art. 134, caput e in fine, da Lei nº 8.069/90 tem proporcionado a muitos dos conselheiros tutelares em exercício (e, em última análise, às crianças e adolescentes por eles atendidos) e estabeleça a obrigatoriedade do subsídio de seus membros, devendo os recursos necessários para tanto, como dito alhures, constarem na Lei Orçamentária Federal.
IV.3 – Das atribuições:
As atribuições do Conselho Tutelar Indígena poderão ser as mesmas hoje conferidas ao Conselho Tutelar previsto na Lei nº 8.069/90, sendo mesmo recomendável singela remissão ao disposto nos já citados arts. 95, 136, 191 e 194 estatutários, com as adaptações necessárias.
Deve ser dada especial ênfase ao exercício da atribuição similar à prevista no art. 136, inciso IX, da Lei nº 8.069/90, devendo ser talvez melhor explicitada a forma como se dará, com a previsão dos órgãos encarregados de colher dados junto aos diversos Conselhos Tutelares Indígenas, tanto para permitir um maior crescimento/adequação do serviço prestado pela instituição às comunidades em que atuam, quanto para descobrir quais as maiores demandas de atendimento que estas possuem, em razão do que deverá ser adequada a “rede de proteção” aos direitos das crianças e adolescente que lá habitam.
A articulação e a interação entre os Conselhos Tutelares Indígenas e tais órgãos, dentre os quais, diga-se desde logo, deverão estar incluídos o Ministério, Secretaria e/ou Departamento ao qual o Conselho Tutelar será administrativamente vinculado; o CONANDA e a FUNAI, reputa-se imprescindível para que uma verdadeira política de atendimento aos direitos das crianças e adolescentes indígenas seja planejada e implementada, o que deverá ocorrer de forma progressiva e tendo sempre em vista as necessidades específicas dos diversos povos interessados.
Evidente, no entanto, que do debate a ser travado, em especial junto aos povos e comunidades indígenas interessadas, poderão surgir atribuições outras, que venham a atender as necessidades específicas das crianças e adolescentes indígenas.
IV.4 – Da capacitação:
A função exercida pelos membros do Conselho Tutelar é verdadeiramente sui generis, tendo como melhor parâmetro o papel outrora reservado ao “Juiz de Menores”, à época da vigência do revogado Código de Menores de 1979.
Em razão da enorme complexidade e relevância de suas atribuições, é fundamental que os membros do Conselho Tutelar sejam devidamente capacitados a aproveitar ao máximo seus poderes e prerrogativas, em especial, como dito acima, na condição de agentes políticos com potencial para auxiliar na transformação, para melhor, da realidade social das comunidades onde vivem, em especial no que diz respeito ao atendimento de suas crianças e adolescentes.
Assim sendo, uma vez criados e implementados os Conselhos Tutelares Indígenas, será fundamental que o Governo Federal, mais uma vez via CONANDA, desenvolva um programa específico com vista à capacitação e ao suporte funcional em caráter continuado aos integrantes do órgão, que, de outra maneira, poderão deixar de cumprir sua missão institucional e até mesmo acabar por contribuir para a violação de direitos das crianças e adolescentes que deveriam proteger.
V – Conclusão:
O presente estudo teve por objetivo traçar as linhas gerais e estabelecer o ponto de partida para o debate acerca da criação de um órgão como o Conselho Tutelar Indígena, idéia que, como dissemos anteriormente, nos parece mereça ser levada adiante.
Não se esgotou, evidentemente, a matéria que, por certo, terá enorme repercussão e desdobramentos até agora insuspeitos, porém esperamos ter contribuído para as discussões que estão por vir.
Não percamos, porém, a oportunidade para fazer com que as crianças e adolescentes indígenas, que hoje se encontram à margem do exercício de toda uma gama de direitos fundamentais que lhes são legal e constitucionalmente assegurados – inclusive o direito de ter, em sua defesa, no âmbito de suas comunidade, um órgão com o perfil de atuação do Conselho Tutelar -, recebam o tratamento igualitário e a proteção integral destinados a toda a população infanto-juvenil, e com a mais absoluta prioridade que merecem.
Notas:
[1] Onde, segundo o enunciado do art. 1º, parágrafo único, de nossa
Carta Magna “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (verbis), enunciado que, sem dúvida
alguma, serviu de inspiração à criação, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente,
de um órgão com o “perfil” do Conselho Tutelar.
[2] Art. 1º, incisos II e III, da Constituição Federal, respectivamente.
[3] Art. 3º, incisos I a IV, da Constituição Federal, respectivamente.
[4] Que também tem princípios próprios a seguir, tal qual o previsto no
art. 37 da Constituição Federal e disposições correlatas contidas na Lei nº
8429/92.
[5]
Art. 5º . (...):
I – homens e mulheres são iguais
em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição (verbis).
[6] Matéria que, por sinal, na forma do disposto no art. 22, inciso XIV,
da Constituição Federal é de sua competência
privativa.
[7]
Art. 210. (...)
§
2º. O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa,
assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas
maternas e processos próprios de aprendizagem.
[8]
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e
acesso às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a
difusão das manifestações culturais.
§
1º. O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, e de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional.
[9] Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão
realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art.
195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:
I –
descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas
gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas
às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de
assistência social;
II
– participação da população, por meio de organizações representativas, na
formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.
[10]
Art. 227. (...).
§
7º. No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se-á em
consideração o disposto no art. 204.
[11] “Convenção relativa aos povos indígenas e tribais em países
independentes”, conforme enunciado.
[12]
“§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (verbis).
[13]
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho (verbis).
[14] Sobre educação, importante destacar os seguintes dispositivos da
Convenção nº 169 da OIT:
Art.
26.
Deverão
ser adotadas medidas para garantir aos membros dos povos interessados a
possibilidade de adquirirem educação em todos os níveis, pelo menos em
condições de igualdade com o restante da comunidade nacional.
Art.
27.
1.
Os programas e os serviços de educação destinados aos povos interessados
deverão ser desenvolvidos e aplicados em cooperação com eles a fim de responder
às suas necessidades particulares, e deverão abranger a sua história, seus
conhecimentos e técnicas, seus sistemas de valores e todas suas demais
aspirações sociais, econômicas e culturais.
2.
A autoridade competente deverá assegurar a formação de membros destes povos e
sua participação na formulação e execução de programas de educação, com vistas
a transferir progressivamente para esses povos a responsabilidade desses
programas, quando for adequado.
3.
Além disso, os governos deverão reconhecer o direito desses povos de criarem
suas próprias instituições e meios de educação, desde que tais instituições
satisfaçam as normas mínimas estabelecidas pela autoridade competente em
consulta com esses povos. Deverão ser facilitados para eles recursos
apropriados para essa finalidade.
Art.
29.
Um
objetivo da educação das crianças dos povos interessados deverá ser o de lhes
ministrar conhecimentos gerais e aptidões que lhes permitam participar
plenamente e em condições de igualdade na vida de sua própria comunidade e na
comunidade nacional.
Art. 30.
1. Os governos deverão adotar medidas de acordo com as tradições e
culturas dos povos interessados, a fim de lhes dar a conhecer seus direitos e
obrigações especialmente no referente ao trabalho e às possibilidades
econômicas, às questões de educação e saúde, aos serviços sociais e aos
direitos derivados da presente Convenção.
[15] Infelizmente, os Projetos de Lei que se encontram em tramitação
nesse sentido junto ao Congresso Nacional (PLs
2057/91, 2160/91 e 2619/92), aparentemente ignoraram as disposições da citada
Convenção nº 169 da OIT, não tendo sua elaboração contado com a participação
dos povos interessados (ou ao menos de uma parcela significativa e efetivamente
representativa), sendo omissos em diversos aspectos que se mostram fundamentais
na busca do necessário desenvolvimento e autodeterminação dos povos indígenas.
[16] Valendo aqui mais uma vez fazer referência ao disposto no art. 5º,
§ 2º, de nossa Carta Magna.
[17] Para o que União, estados, municípios e Distrito Federal deverão
agir de forma integrada e articulada,
tal qual previsto no art. 86 da Lei nº 8.069/90 e art. 227, § 7º, c/c art. 204,
de nossa Constituição Federal. A atuação integrada e articulada entre os
diversos entes federados, é preciso que se diga, já era prevista pelo “Estatuto
do Índio”, ainda em vigor, desde sua promulgação (inteligência do art.
2º da Lei nº 6001/73).
[18] Conforme previsto no art. 90, c/c arts.
101, 112 e 129, todos da Lei nº 8.069/90.
[19] Conforme art. 98, inciso I, da Lei nº
8.069/90.
[20] Conforme disposto no art. 148, inciso IV, c/c art. 209; art. 208 e
parágrafo único; arts. 212 e 213, c/c 216, todos da
Lei nº 8.069/90.
[21] Interessante mencionar que, na forma do disposto no art. 232 da
Constituição Federal, “os índios, suas comunidades e organizações
são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e
interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”
(verbis). Tal disposição
constitucional permite, portanto, que as próprias comunidades indígenas se
organizem e promovam demandas judiciais contra o Poder Público (em todas as
esferas, face ao disposto no art. 2º da Lei nº 6.001/73), no sentido da criação
e/ou adequação de estruturas que lhes permitam o exercício de seus direitos de
cidadão, beneficiando também suas crianças e adolescentes.
[22] Composta pelas mais diversas ações e programas de
atendimento, tanto governamentais quanto não governamentais, ex vi do disposto nos arts.90, 101, 112
e 129, da Lei nº 8.069/90, além de outros similares contemplados pela Lei nº
8.742/93 – Lei Orgânica da Assistência Social.
[23] Conforme enunciado do art. 131 da Lei nº 8.069/90.
[24]
Como no caso do atendimento de adolescentes em conflito com a lei, que pode
resultar na imposição de sanções que importem na restrição de direitos ou mesmo
na privação da liberdade, ou dos casos em que se entende necessária a
suspensão/destituição do poder familiar (antes denominado pátrio poder), com posterior
colocação da criança ou adolescente em família substituta, situações em que é
obrigatória a intervenção da autoridade judiciária.
[25] Como no caso das mencionadas ações coletivas.
[26] Inteligência do art. 132, da Lei nº 8.069/90, face à necessidade de
dotar o Conselho Tutelar da mais alta representatividade popular, inclusive
para o fim de legitimar sua atuação enquanto agente político, a ser melhor analisada
adiante.
[27] Conforme art. 90, incisos I, II e IV; art. 136, incisos I e II, c/c
art. 101, incisos I a VII, art. 129, incisos I a IV e art. 136,
inciso III, alínea “a”, todos da Lei nº 8.069/90.
[28] Notadamente em razão do contido no art. 86 da Lei nº 8.069/90
[29] Conforme art. 88, inciso I, da Lei nº
8.069/90.
[30] Conforme art. 88, inciso II, da Lei nº
8.069/90 e art. 227, § 7º, c/c art. 204, inciso II, da Constituição Federal.
[31] Como dito acima, a atuação integrada e articulada entre os diversos
entes federados na defesa dos direitos das populações indígenas é também prevista
pelo art. 2º da Lei nº 6001/73, o “Estatuto do Índio”, ainda em vigor.
[32] Valendo nesse sentido observar que o órgão foi dotado de poder de requisição quanto a serviços públicos
nas áreas da saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança
(conforme art. 136, inciso III, aliena “a”, da Lei nº
8.069/90, alhures mencionado), constituindo-se o mesmo crime “impedir ou embaraçar a ação de autoridade judiciária, membro do
Conselho Tutelar ou representante do Ministério Público no exercício de
atribuição prevista nesta lei” (verbis
– art. 236, da Lei nº 8.069/90) e a mesma infração
administrativa “descumprir, dolosa ou culposamente ... determinação da autoridade
judiciária ou Conselho Tutelar” (verbis
– art. 249, da Lei nº 8.069/90), sendo também certo que “enquanto não instalados os
Conselhos Tutelares, as atribuições a eles conferidas serão exercidas pela
autoridade judiciária” (verbis
– art. 262 da Lei nº 8.069/90).
[33] O Conselho Tutelar, por definição, é “órgão permanente e autônomo, não
jurisdicional” (verbis/ omissis – art. 131 da Lei nº 8.069/90), tendo,
portanto, autonomia funcional plena e
não estando, assim, de qualquer modo subordinado quer à autoridade judiciária,
quer a qualquer outra autoridade pública – inclusive o
Prefeito Municipal, cuja atuação deve inclusive fiscalizar -,
zelando para que seja respeitado o princípio
(constitucional) da prioridade absoluta à criança e ao adolescente, em
especial quando da elaboração das diversas leis
orçamentárias (inteligência do art. 136, inciso IX, da Lei nº 8.069/90). Uma das principais
características do “Sistema de Garantias dos Direitos de Crianças e Adolescentes”
idealizado pelo legislador estatutário, aliás, é precisamente a não
hierarquização, estando todos os seus integrantes num mesmo patamar, embora com
atribuições/ competências distintas.
[34] Nesse sentido, vale observar mais especificamente o contido nos arts. 132, 134 e parágrafo único e 139, todos da Lei nº
8.069/90.
[35] Considera-se “responsável”, para fins de incidência desta e de
outras disposições estatutárias, apenas o guardião
ou o tutor, um ou
outro como tal nomeados pela autoridade judiciária, em procedimento próprio
instaurado para colocação da criança ou adolescente em família substituta
(arts. 165 a 170 da Lei nº 8.069/90).
[36] Definidas pelo art. 231, § 1º, de nossa Constituição Federal como
sendo “as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas
atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos
recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”
(verbis).
[37] A exemplo do que ocorre com seus pares sediados em municípios que
possuem terras habitadas por povos indígenas que ainda não se constituem em
reservas indígenas demarcadas.
[38]
Na medida em que a causa será em regra manejada contra a União, de forma
exclusiva ou em regime de litisconsórcio passivo com o município.
[39] Por analogia ao disposto no art. 145 da Lei nº 8.069/90.
[40] Importante registrar que, numa perspectiva de proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes,
indígenas ou não, e ante a já mencionada co-responsabilidade de todos os entes
federados em desenvolver políticas públicas neste sentido, de maneira
articulada, nada impede que, quando necessário, a Justiça Estadual seja
acionada para obrigar, determinado município a, por exemplo, adequar seus
programas e serviços para o atendimento da população indígena, cabendo ao
município, se necessário, cobrar a contrapartida da União também pela via
judicial (conforme previsão do art. 210, inciso II, da Lei
nº 8.069/90). Também se faz necessário mencionar que nada impede que causas que
envolvem direitos individuais de crianças e adolescentes indígenas sejam
julgadas pela Justiça Estadual, com a singela aplicação da regra de competência
prevista nos arts. 145, 147 e 148 da Lei nº 8.069/90,
sendo certo que um dos Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional que
pretendem alterar o atual “Estatuto do Índio” estabelece o
seguinte: “à Justiça Federal compete processar e julgar a disputa sobre direitos
indígenas, sujeitando as demais ações à competência da Justiça dos Estados,
Distrito Federal e Terriórios” (verbis – art. 21
do PL nº 2.160/91).
[41] Bem como de seus pais ou responsável, na medida em que não se pode
pensar em “resgatar” uma criança ou adolescente sem também trabalhar sua
família.
[42]
E também preferencialmente com a utilização dos recursos lá disponíveis.
[43] A diversidade cultural e não raro o despreparo dos integrantes do
mencionado “Sistema de Garantias dos Direitos de Crianças e Adolescentes”
para lidar com as populações indígenas tem acarretado graves problemas no atendimento
a estas prestado. Consoante se extrai das disposições da Convenção nº 169 da
OIT, “ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados, deverão ser
levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário”
(verbis – art. 8º, § 1º), o que, como
dito, se constitui num princípio nem
sempre observado (lamentavelmente) pelos diversos órgãos e autoridades
encarregadas do atendimento das crianças e adolescentes indígenas. Mais do que
nunca, é necessária a capacitação, a formação humanística, a tolerância e a
“flexibilização” dos programas e da própria forma de atendimento dos membros
das comunidades indígenas, o que, do contrário, pode gerar mais malefícios do
que benefícios aos destinatários das medidas aplicadas.
[44] Mais uma vez a Convenção nº 169 da OIT nos dá os parâmetros para
interpretação do que deve ser ou não “tolerado”, pois como vimos
no seu art. 8º, § 2º, acima transcrito, os povos indígenas “...deverão
ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que
eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais internacionalmente
reconhecidos...” (verbis).
[45] Ex vi do disposto no art.
147, inciso II, da Lei nº 8.069/90.
[46]
Ou ao menos tentativa de solução, através da adequada estruturação das
comunidades indígenas com serviços públicos e programas específicos de
atendimento, nos moldes do previsto pela Lei nº 8.069/90.
[47] Ao contrário do que ocorre com o Conselho Tutelar atual no âmbito
dos municípios, que é obrigatória
por força do disposto no art. 132, primeira parte, da Lei nº 8.069/90.
[48] Prevista no art. 131, segunda figura, da Lei nº 8.069/90.
[49] Que, obviamente, tem o sentido de ordem emanada de autoridade que, uma vez revestida de legalidade,
sujeita o destinatário que a descumprir, em tese, a responder pelo crime de desobediência, previsto no
art. 330 do Código Penal.
[50] Conforme art. 136, inciso III, aliena “a”,
da Lei nº 8.069/90.
[51] Conforme art. 137 da Lei nº 8.069/90.
[52]
Integrante de algum Ministério ou Secretaria de Governo, de preferência
relacionada com a área da criança e do adolescente.
[53] Em especial, técnicos da área social, que serão encarregados de
realizar as avaliações necessárias à apuração das reais necessidades pedagógicas da clientela (ex vi do disposto no já citado art. 100, primeira parte, da Lei nº
8.069/90), em razão das quais serão aplicadas as medidas e efetuados os encaminhamentos,
e ainda acompanhar sua execução, propondo sua substituição ou extinção sempre
que necessário (conforme disposto no art. 99, da Lei nº 8.069/90).
[54] Ressalvada, é claro, a atuação em caráter emergencial, quando
comprovada a necessidade, mas isto deverá ocorrer apenas em casos excepcionais e sempre ad referendum da
plenária do órgão, conforme disposição a ser incluída em seu regimento interno.
[55] Que, no entanto, deverá ser precedido, em especial nos casos mais
complexos, de avaliações profissionais por parte de uma equipe interdisciplinar
a serviço do Conselho Tutelar ou “recrutada”, através das já mencionadas
requisições de serviços públicos, junto aos técnicos a serviço do Poder
Público.
[56] Como o art. 132, segunda figura, da Lei nº 8.069/90, estabelece
como sendo de 05 (cinco) o número de membros do Conselho Tutelar, a mencionada
“cota” fatalmente iria criar um “desequilíbrio” na composição do órgão que
poderia ser fonte de discriminação entre seus integrantes e acabaria por comprometer
o funcionamento do órgão.
[57] Podendo, como dito acima, haver flexibilidade na adoção, para as diversas comunidades indígenas, de
um ou outro número.
[58] Que poderá prever, por exemplo, que o encarregado da condução da
sessão deliberativa (incumbência que poderá ser exercida de forma “rotativa”
entre os diversos integrantes do Conselho Tutelar) não poderá votar ou somente
o fará caso não estejam presentes todos os demais conselheiros, e haja empate
na votação.
[59] Nada impede que a lei municipal que disciplina o processo de
escolha do Conselho Tutelar adote disposições similares às contidas na
mencionada Lei Complementar, porém terá de fazê-lo de maneira expressa e com as
adaptações necessárias. Como, na forma do disposto no art. 22, inciso I, da
Constituição Federal, cabe à União legislar privativamente sobre normas de
Direito Penal, e estas são sempre interpretadas de forma restritiva, não se
aplicam ao processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar as disposições
penais estabelecidas para o processo eleitoral regular. Isto não impede, no
entanto, a previsão em lei municipal da possibilidade de sanções de ordem
administrativa, em especial aos candidatos os Conselho Tutelar que violarem
normas preestabelecidas para candidatura, caso em que poderão ser excluídos do
pleito, mediante decisão fundamentada do órgão responsável por sua condução,
após procedimento próprio no qual seja garantido o contraditório e a ampla
defesa ao acusado.
[60] Embora o alistamento eleitoral dos integrantes das comunidades
indígenas deva ser estimulado, de modo que os mesmos possam exercer, em sua
plenitude, seus direitos políticos.
[61] Em especial, quando do exercício da atribuição prevista no art.
136, inciso IX, da Lei nº 8.069/90, segundo o qual o Conselho Tutelar tem a
prerrogativa (e o dever) funcional de “assessorar o Poder Executivo local na
elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos
direitos da criança e do adolescente” (verbis), o que dará ao Conselho Tutelar Indígena reais condições de
reivindicar junto ao CONANDA, FUNAI e ao próprio Governo Federal a adequada estruturação da comunidade em que
atuam, no sentido da proteção
integral de suas crianças e adolescentes.
[62] O dispositivo em questão tem sua redação atual definida pela Lei nº
8.242/91 (art. 10), pois tal incumbência, na redação original do Estatuto da
Criança e do Adolescente, ficava a cargo do Juiz Eleitoral, disposição que foi
considerada inconstitucional.
[63] Que poderá ser inclusive deflagrado, numa única data, em todo
território nacional, de modo que se garanta uma maior uniformidade nos
procedimentos e início/encerramento dos mandatos.
[64] Importante mencionar que a referida idade mínima ao exercício da
função de membro do Conselho Tutelar não foi de modo algum alterado pela
alteração da idade da plena capacidade civil, promovida pelo art. 5º do Código
Civil de 2002. O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma lei especial, e a
opção pela idade mínima de 21 (vinte e um) anos não tem qualquer correlação com
a plena capacidade civil (tanto que, mesmo sob a égide do Código Civil de 1916,
não era possível a um jovem de 18, 19 ou 20 anos de idade que tivesse sido
emancipado participar do Conselho Tutelar).
[65] Desde que os novos requisitos sejam razoáveis à atuação do membro
do Conselho Tutelar e não venham a restringir por demais a participação da
população no pleito, pois o órgão foi concebido para ser composto por cidadãos
comuns interessados na solução dos problemas que envolvem as crianças e
adolescentes, e não por técnicos, que, como dito alhures, deverão ser colocados
à disposição do órgão.
[66]
Como já foi dito, é perfeitamente possível – e necessário – que os integrantes
dos povos e comunidades indígenas recebam uma educação adequada, em todos os
níveis de ensino, sem que para tanto venham a perder sua identidade e sua
cultura. Isso, no entanto, é um processo lento e gradual, que
não pode impedir que, no presente momento, sejam deixadas de lado
exigências e requisitos que impeçam a candidatura a membro do Conselho Tutelar
de indígenas que, apesar de não-alfabetizados, reúnem plenas condições de serem
excelentes conselheiros tutelares, após a devida capacitação.
[67] Nos parece que o termo “subsídio” é mais adequado que
“remuneração”, dada a natureza jurídica sui generis da relação que o membro do Conselho Tutelar
mantém com o ente estatal encarregado da contraprestação financeira devida em
razão dos serviços prestados e sua condição de agente político.
[68] Não raro, com apenas um ou dois integrantes, desvirtuando assim por
completo seu caráter colegiado
anteriormente mencionado.
[69] Pois, conforme disposto no art. 135 da Lei nº 8.069/90, “o
exercício efetivo da função de conselheiro constituirá serviço público
relevante, estabelecerá presunção de idoneidade moral...” (verbis).