A CRIANÇA E O ADOLESCENTE NA MÍDIA/MG
A pesquisa A CRIANÇA E O ADOLESCENTE NA MÍDIA EM MINAS GERAIS chega à sua terceira edição. Esta pub1icação se propõe a investigar as relações sociais que provocam a cobertura sobre crianças e adolescentes, a partir das interações entre o movimento social pelos direitos da infância e adolescência e a mídia. É um perfil de como meninos e meninas apareceram nas páginas de sete jornais impressos diários, da capital e do interior do Estado, entre janeiro e dezembro de 2002. Esse perfil orienta as ações desenvolvidas pela Oficina de Imagens/Rede ANDI em 2003, na mobilização da mídia e dos atores sociais, pela promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes.
As ações da
Rede ANDI visam qualificar e tornar sistemático o diálogo entre jornalistas e o
movimento social empenhado na implementação do Estatuto da Criança e do
Adolescente - ECA. Se a sociedade compreende lentamente o ECA,
os meios de comunicação e jornalistas, atores que adquirem grande importância
na chamada “sociedade da informação”, refletem esse processo. Na produção de
informações, os veículos expressam as relações sociais e, ao difundirem
notícias, provocam a mobilização da população. Daí a responsabilidade que a
mídia e seus profissionais têm diante do movimento de transformação da
sociedade.
Em relação a 2001, a pesquisa registrou um crescimento de cerca de 41% no número de matérias que abordaram, de maneira direta ou indireta, crianças e adolescentes. Parte significativa desse crescimento, no entanto, ocorreu em assuntos, ligados à violência e não representou um aumento da cobertura provocada pela mobilização social em torno da promoção e defesa dos direitos. Ainda é tímido o diálogo entre imprensa e instituições governamentais e não governamentais que atuam na promoção dos direitos de crianças e adolescentes.
Ao
mesmo tempo, a pesquisa mostra que as informações veiculadas pelos jornais são
produto, também, da maior a capacidade que a sociedade civil tem de se
relacionar com a mídia e provocar a cobertura de certos temas. Considerar a
comunicação como política de ação estratégica para efetiva implementação do ECA é condição necessária ao movimento social que atua em
favor dos direitos da infância.
Em 2003, a
Rede ANDI passou a enfatizar em suas ações o fortalecimento do Sistema de
Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, em especial o relacionamento
dos Conselhos de Direitos e Conselhos Tutelares com profissionais e veículos de
comunicação, objeto da análise especial desta edição. Nossa intenção é oferecer
subsídios para que jornalistas reconheçam os conselhos como fontes de
informação fundamentais e, ao mesmo tempo, apoiar os conselheiros para que
compreendam a importância da criação de políticas de comunicação para a
mobilização da sociedade.
A publicação
da pesquisa A CIRIANÇA E O ADOLESCENTE NA MÍDIA EM MINAS GERAIS/2002 pela
Oficina de Imagens foi possível a partir da colaboração de parceiros e
apoiadores da Rede ANDI - Fundação Avina, Fundação W. K. Kellogg, União
Européia/Novib/Missão Criança, Unicef, Save the Children/Suécia, - e de
parceiros locais - Visão Mundial, Fundo Cristão para Crianças e Conselho
Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente - CEDCA. Juntos, reafirmamos
nosso compromisso de promover os direitos da criança e do Adolescente em Minas
Gerais e no Brasil.
A informação como direito humano:
Qualidade das reportagens não acompanha crescimento na quantidade
Informar-se é um direito do cidadão. Nos dias atuais, considerados como a “era da informação”, o acesso à produção e circulação de informações passa a ser um direito fundamental do ser humano. Os indivíduos não podem ser meramente narrados. Precisam ser sujeitos participativos na informação que se produz sobre eles. Informar com dignidade a sociedade é uma tarefa que coloca um importante desafio para os meios de comunicação de massa, assim como buscar caminhos para uma aproximação com a mídia é um desafio colocado para as organizações que atuam pelos direitos da infância e da juventude.
Esta edição da pesquisa A CRIANÇA E O ADOLESCENTE NA MÍDIA - MG mostra que crianças, adolescentes e o movimento articulado em defesa dos
direitos da infância têm sido narrados pelo noticiário, muitas vezes, na
condição de coadjuvantes de uma cobertura viciada na notícia factual. Isso pode
ser observado no que é publicado sobre adolescentes que cometem ato
infracional. A grande maioria das reportagens ignora a trajetória desses jovens
ao relatar um crime praticado por eles. A representação que o jornal apresenta
sobre a realidade do adolescente que comete uma infração é um recorte mínimo do
momento em que o ato é praticado. Os direitos anteriormente violados desse
jovem não cabem na notícia.
Em 2002, o
crescimento considerável (41%) no número de inserções publicadas por sete jornais
diários de MG (11.108) representa, sem dúvida, um aumento do espaço dedicado à
criança e ao adolescente nesses veículos, comparado ao ano 2001 (7.877).
Entre os
diferentes temas, Educação e Violência aparecem
praticamente empatados no número de inserções (diferença de aproximadamente
0,5%). Juntos, os dois temas reúnem quase metade (45,56%) do material analisado
na pesquisa. Enquanto Educação registrou
um crescimento de 16,36% em relação a 2001, um dos menores índices de
crescimento entre os temas, Violência cresceu 40,37% no
número de inserções e está entre os temas que mais subiram em 2002.
Se explodem as greves, com paralisação na
escola, manifestações na rua e negociações com o governo, fatos aliados a uma
intenção do veículo em vender exemplares para o público envolvido, a cobertura
sobre esse evento dispara. Neste ano, a pesquisa mostra que em torno de 30% das
reportagens classificadas no tema Educação
são notícias factuais sobre diversas greves no ensino público mineiro.
Reportagens que falam da assembléia que foi marcada, da manifestação que reuniu
tantas pessoas, do número de escolas sem aula. As questões
curriculares, ligadas à prática educacional propriamente dita, aparecem
em 9% das reportagens.
A qualidade
da cobertura não avançou nas mesmas proporções. Os temas responsáveis pelo
avanço quantitativo são exatamente aqueles em que a cobertura é menos
qualificada. Os assuntos que mais influenciaram o aumento qualitativo da
cobertura são Abuso e Exploração Sexual,
Drogas, Cultura/Esportes e Violência.
Entre os
primeiros temas, Terceiro Setor é o único
que apresenta índices qualitativos mais elevados. Possui o mais alto percentual
de reportagens com ótica de Busca de Solução (39,23%), critério de
classificação que identifica nas reportagens as iniciativas positivas
apresentadas pela sociedade civil. O tema cresceu 51,24% no número de inserções. Cultura/ Esportes, tema que cresceu
13 7%, traz reportagens sobre o mercado de entretenimento, filmes infantis,
moda e notícias de torneios esportivos com categorias infanto-juvenis. As
reportagens sobre Comportamento também
tiveram um crescimento expressivo (73,95%).
Os dois temas que apresentaram os maiores
índices de crescimento foram Exploração
e Abuso Sexual, cujo número de inserções aumentou 191,23%, e Drogas, que também cresceu muito, 176%.
Se considerarmos que a violência sexual, a violência relacionada ao consumo ou
tráfico de drogas e a violência presente nos crimes e delitos comuns são
diferentes aspectos de um amplo fenômeno social, concluímos que a violência foi
o principal tema abordado nas reportagens publicadas pelos sete jornais
mineiros analisados em 2002 e representa praticamente um terço de todo material
publicado.
Não se trata,
entretanto, de uma cobertura sobre como o fenômeno da violência atinge a
população jovem do país, mas um noticiário produzido, grande parte dele, a
partir dos boletins de ocorrência das delegacias, em que, assim como nas
reportagens publicadas, crianças e adolescentes aparecem mais como vítimas do
que como agentes da violência. A crítica não está na falta de uma cobertura
específica sobre infância, o que é natural, mas na forma como o material
jornalístico sobre a violência é produzido. A abordagem recorrente dos fatos
sob a ótica única da polícia distancia da realidade os fenômenos que afetam as
novas gerações. Violência nas escolas, por
exemplo, é tratada como caso de polícia, sem qualquer associação à degeneração
do ensino público no pais ou ao contexto social em que
essas escolas estão inseridas, de falta de políticas públicas e da garantia de
uma tratamento prioritário para a educação.
Jornalismo positivo
A alternativa
proposta para a cobertura é que sejam levados em conta, na
apuração e redação de uma reportagem, o que chamamos de contextualização e
transversalidade na abordagem dos fatos. O contexto é entendido como
alargamento do olhar na apuração das informações e a abordagem de fatos
distintos ligados à pauta em questão. Na prática, significa revelar ao leitor
mais elementos que compõem a realidade tratada na matéria, como a situação da
região onde moram os envolvidos em um delito, a falta de alternativas, a
ausência do poder público. O que não significa, necessariamente, aumento de
espaço para a reportagem, mas uma redefinição de prioridades nas informações e no conceito de notícia.
Ao invés de detalhar o crime, dar espaço a outros dados que compõem o cenário.
O outro
conceito, de transversalidade na abordagem jornalística, é compreendido como a
capacidade do jornalista em conectar assuntos correlacionados, oferecendo uma
perspectiva mais ampla sobre o fato. E quando, ao falar de um grupo de
adolescentes que moram na rua, tratar também da falta de opções de lazer nos
bairros da periferia, nos altos índices de violência intrafamiliar, no uso de
mão de obra infanto-juvenil no tráfico de drogas. Situações de violação de
direitos, que de alguma forma são responsáveis pela migração de meninos e
meninas para as ruas da cidade. Assim como também passam por esse viés
transversal os programas, governamentais e não governamentais, que visam
provocar o retorno desses jovens às suas famílias. Não se trata de retirá-los
da rua, mas de restabelecer na comunidade as condições necessárias para que
eles retornem.
Os bons exemplos
Ao longo do
ano, reportagens de boa qualidade chamaram a atenção no conjunto da cobertura.
Grande parte, fruto do trabalho insistente de investigação dos repórteres e de
decisões editoriais esporádicas para a produção de séries ou cadernos
especiais. Esses produtos, no entanto, não foram capazes de interferir
positivamente nos dados da pesquisa, pois compõem um grupo pequeno de
reportagens. São matérias que ocupam maior espaço, com ensaios fotográficos bem produzidos, diagramação mais trabalhada e com destaque dentro
do jornal.
Essas são
condições necessárias para um jornalismo mais qualificado? Os jornais deveriam
se transformar em cadernos de reportagens especiais? Não parece ser uma solução
razoável. Primeiro, porque não é esse o papel dos jornais. Segundo, porque
seria inviável com a estrutura e equipe disponíveis.
Terceiro, porque, como colocado anteriormente, não se trata de mais espaço, mas
da concepção de outro olhar para a pauta. Um olhar que considera o contexto da
notícia, capaz de aproximar assuntos aparentemente distantes. Pode acontecer na
escolha do título na opção pelas fontes de informação
ouvidas, no personagem escolhido, em conseqüência de um
exercício constante de busca por um olhar diferenciado e responsável
sobre os fatos.
A análise das
reportagens de 2002 mostra que, após três anos de acompanhamento diário de sete
veículos impressos de Minas, crianças e adolescentes ainda aparecem nas páginas
da imprensa mineira a reboque de uma cobertura quase “automática”, salvo as
exceções comentadas anteriormente. No geral, a cobertura se divide entre a
abordagem policial da violência e as greves de professores.
Não há
reflexão sobre o sistema educacional ou o processo de formação dos alunos
porque isso não é notícia, diz a regra corrente nos jornais diários. O público
quer a notícia quente do dia-a-dia, não quer e não tem tempo para textos
analíticos, diz outra regra. Mas de onde vêm essas regras? Até que ponto a
escassez de equipe e recursos não acaba impondo limites à cobertura sob o
pretexto da preferência do público? O que é ou não notícia é definido de forma
unilateral pelos veículos. Como colocado no início deste texto, a participação
social na construção da informação disseminada sobre crianças e adolescentes
ainda é restrita.
As
informações publicadas nas páginas de um jornal têm um efeito de contaminação
social comprovado, o que aumenta a responsabilidade de quem tem nas mãos o
controle sobre a difusão de informações. A percepção sobre a importância em se
relacionar com os veículos de comunicação e as experiências bem sucedidas de algumas
organizações tem despertado o movimento social para a necessidade de avançar em
suas estratégias de comunicação. No Brasil e em Minas Gerais, já aparecem
iniciativas no movimento social de perceber que comunicação
vai muito além do relacionamento com a imprensa. Passa pela incorporação
de um pensamento estratégico em todas os níveis de relacionamento de uma
instituição, interna e externamente.
Uma dessas
experiências é o projeto Mídia e Conselhos, realizado pela ANDI - Agência de Notícias dos Direitos da
Infância e CONANDA - Conselho Nacional do Direitos da
Criança e do Adolescente, com recursos doados pela Petrobrás ao Fundo Nacional
dos Direitos Da Criança e do Adolescente. O projeto busca qualificar
conselheiros tutelares e dos direitos de todo o Brasil para uma percepção ampla
da comunicação em suas atividades. A análise especial
“Comunicação e Conselhos” aborda com mais profundidade a relação entre
esses dois atores, trazendo dados da cobertura sobre a presença dos conselhos
nas reportagens e recomendação para o relacionamento entre comunicadores e
conselheiros.
O
fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente é
ação prioritária para a Rede ANDI de Comunicadores pelos Direitos da Infância,
hoje presente em sete Estados do país e no Distrito
Federal. As agências da Rede ANDI atuam como referência para jornalistas e
entidades na produção de informações sobre crianças e adolescentes e no apoio à
elaboração de estratégias de comunicação para organizações que trabalham pelos
direitos infanto-juvenis.
Fontes
Quem fala
quando a pauta dos jornais envolve crianças e adolescentes? É o que se pretende
conhecer através da análise das fontes ouvidas por jornalistas em matérias que
falam desse público.
A análise
sobre as fontes de informação em 2002 mostra certo equilíbrio entre os
diferentes segmentos da sociedade na posição de ‘fonte’ para os jornais
impressos de Minas Gerais. Poderes públicos (sem a polícia), sociedade civil
organizada e pessoas físicas ocupam fatias similares na cobertura sobre
infância.
O que salta
aos olhos no gráfico de fontes é, por um lado, a presença tímida dos Conselhos
de Direitos da Criança e do Adolescente, Conselhos Tutelares e comunidade
escolar e, por outro, a presença maciça da polícia, até mesmo em temas que não
tratam de violência.
Diariamente,
reportagens denunciam casos em que crianças e adolescentes têm seus direitos
violados. Mas são outras fontes, que não os conselhos, as mais procuradas pelos
jornalistas. Mas se os jornalistas não procuram os conselhos, estes também não
são pró-ativos em pautar os jornais.
Em Educação a
situação é semelhante. Alunos são fonte em apenas 6,8% das
reportagens. Um número muito pequeno, considerando que são eles os
(verdadeiros) protagonistas do sistema educacional. Representantes da escola,
principalmente o diretor ou diretora, são ouvidos em um número maior de
reportagens que correspondem a 12,6%. São as fontes oficiais para falar em nome
da escola.
Contraditoriamente
enquanto na educação as vozes oficiais estão muito presentes, quando o assunto
é a violência o poder público não aparece. Para a imprensa, a polícia parece
ser a única fonte responsável por enfrentar a violência na sociedade. Em uma
cobertura que não discute causas, a solução apresentada fica restrita à
repressão policial.
A voz da criança e do adolescente
Ser
reconhecido e se reconhecer como sujeito é um dos principais desafios para a
criança e o adolescente em suas vidas e, também, nos meios de comunicação.
Ter sua voz
ouvida e respeitada é uma forma de se estabelecer como sujeito. Mas, como diz a
repórter Tacyana Arce na reportagem sobre Educação, “os jornais não ouvem as
crianças porque a própria sociedade não as considera qualificadas para falar”.
Ou seja, os veículos de comunicação, como parte dessa sociedade, reproduzem
esse conceito, de que fonte legítima é fonte oficial.
A partir
disso, o dilema colocado é: a sociedade deve evoluir e cobrar da mídia uma
postura diferente ou são os meios de comunicação, a partir de uma compreensão
mais profunda do Estatuto e de uma postura mais responsável diante da
informação, que deveriam valorizar a ótica dos direitos, entendendo a condição
de sujeitos desses jovens e, assim, valorizar seus olhares sobre a realidade?
Busca de solução e denúncia
As inserções
classificadas como busca de solução são aquelas em que o repórter apresenta em
seu texto soluções para os problemas pautados pelo veículo. A Rede ANDI atua no
sentido de estimular esse tipo de cobertura, acreditando que a divulgação de
soluções contribui para a difusão de boas idéias. Do outro lado, as denúncias
também têm seu mérito. São matérias investigativas, fruto de
trabalho intenso de repórteres. Porém, quando as reportagens vão além da
denúncia e também apresentam soluções, são classificadas como Busca de Solução.
Neste ano,
10,25% das reportagens analisadas trazem a ótica da Busca de Solução, enquanto 16,07% trazem a de Denúncia. Não há surpresa entre os temas que se destacam por um
lado e por outro. Terceiro Setor é o
que mais apresenta reportagens com a ótica de Busca de Solução. É também onde a
sociedade civil mais tem espaço e, conseqüentemente, apresenta projetos e
iniciativas bem sucedidas na promoção e defesa dos direitos da criança e
adolescente. Busca de Solução aparece em 39,23% das reportagens que falam do Terceiro Setor.
Na Denúncia,
o destaque é para assuntos que envolvem a violência praticada contra e por
crianças e adolescentes. Atos de
Violência, Abuso e Exploração Sexual e Drogas
apresentam os números mais altos de Denúncia, 22,56%, 27,07% e 21%,
respectivamente.
Temas esquecidos
Alguns temas
fundamentais para a realidade de crianças e adolescentes receberam pouca
atenção da imprensa. De fato, mais de 50% das reportagens falam de Educação ou assuntos ligados àViolência. A outra metade é dividida entre outros 17 temas, sendo que Cultura/Esporte,
Saúde e Direitos e Justiça representam mais da metade das matérias restantes.
Na prática, a cobertura sobre infância é restrita a poucos assuntos.
Situação de Rua, tema menos abordado no ano (7
inserções), não é uma questão resolvida, mas não mereceu espaço nos jornais
devido à falta de novidades sobre o assunto, como aponta Mário Volpi, oficial
de projetos do UNICEF, com mais detalhes, na matéria especial sobre o tema.
Falta mobilização social, faltam políticas públicas de enfrentamento à questão
dos meninos e meninas em situação de rua. Em uma cobertura baseada em fatos,
não tem fato, não tem cobertura.
Exploração do Trabalho Infantil, assunto de grande repercussão que mobilizou uma série de instituições
para o enfrentamento do problema em 2001, teve queda de 44% em 2002. Uma diminuição radical, considerando que na média a cobertura
cresceu 41%. Em certa medida, percebe-se que a pauta dos veículos
reflete a mobilização social do momento. Quando eclodiram os projetos,
governamentais e não governamentais, de combate à exploração do trabalho
infantil, cresceu também a cobertura sobre o tema, como conseqüência natural.
Idéia que reforça a importância da mobilização contínua em torno de temas
relevantes, entendendo inclusive que a visibilidade na mídia fortalece o debate
e as ações realizadas em torno do assunto.
A falta de
continuidade na cobertura é um aspecto recorrente no conteúdo produzido sobre
infância e adolescência. Os mesmos projetos noticiados em 2001 como solução
para o enfrentamento à exploração do trabalho não foram pauta em 2002 para que
fossem checados seus resultados. No lugar deles, outras iniciativas - agora de enfrentamento à violência
sexual - foram apresentadas, levando
o tema a um crescimento de 191%, enquanto caiu a exploração do trabalho. Na
primeira edição desta pesquisa, lançada em 2001, a mesma análise foi feita com
relação à cobertura de Educação. Muitas
reportagens trazem novos programas e projetos, mas poucas vezes o repórter
retorna ao local um tempo depois para averiguar o funcionamento do programa.
A inclusão
social de crianças e adolescentes com deficiência é outro exemplo de tema com
pouca repercussão em 2002. A cobertura cresceu (36,62%), mas ainda tem um
número pequeno de inserções (97) considerando os sete jornais analisados e as
11.108 reportagens sobre crianças e adolescentes. Fato é que as próprias
entidades que atuam na questão têm trabalhado pouca visibilidade para suas
atuações. Como no caso dos Conselhos de Direitos e Tutelares, se os jornalistas
não buscam essas instituições, elas também têm falhado em pautar os veículos e
em mobilizar a opinião pública em torno dessa temática.
Subtema
Entre os 20
subtemas mais publicados, sete trazem situações em que
a criança e o adolescente são vítima de algum tipo de violência, desde o
trânsito até o abuso e exploração sexual. O dado reforça a tese de que crianças
e adolescentes são mais vítimas que agentes de violência, embora seja comum
encontrar na sociedade a percepção de que meninos e meninas sob risco social
são responsáveis pelo crescimento da violência. Em nenhum dos 20 principais
subtemas meninos e meninas aparecem como agentes da violência.
Outro assunto
com presença marcante dentre os subtemas de maior destaque é Terceiro Setor. Dos cinco recortes
possíveis para o tema, três aparecem entre os 20 mais abordados, trazendo a público experiências de ONG’s, iniciativas empresariais de
responsabilidade social e dando visibilidade ao trabalho de agentes sociais e
voluntários que atuam na área da infância e adolescência.
Subtemas
ligados à temática da Saúde também
têm espaço nobre no universo de reportagens produzidas sobre crianças e
adolescentes. São matérias que tratam das principais doenças que atingem os
mais jovens, problemas na infra-estrutura dos hospitais que prejudicam o
atendimento e campanhas preventivas, como as de vacinação.
Amadurecimento
No ano de
2002, a percepção geral é de que os jornais mineiros têm ampliado o espaço
dedicado à infância e adolescência.
A cobertura
sobre infância do jornal Diário do Rio Doce, por exemplo, apresenta vários
avanços em relação ao seu desempenho na primeira análise feita pela Oficina de
Imagens, em 2000. Nesta edição, o Diário do Rio Doce foi o jornal que mais
ouviu os Conselhos Tutelares na cobertura do tema Exploração e Abuso Sexual e,
ao lado do jornal Hoje em Dia, foi também o que mais ouviu os Conselhos na
cobertura como um todo, mesmo tendo um número menor de páginas diárias e de
reportagens publicadas. Isso significa que percentualmente foi de longe o
veículo que mais ouviu os Conselhos. Méritos do jornal e dos Conselhos, que
souberam construir uma relação permanente com o DRD, como conta a conselheira
de direitos Abigail Gonçalves Silva.
O Diário do Rio Doce passa a ser também o jornal do interior de Minas que
mais publica notícias sobre crianças e adolescentes, tendo crescido 57% em
relação a 2001, média superior ao cresci mento da cobertura geral.
Os
dados mostram um amadurecimento do jornal na compreensão dos direitos da
criança e do adolescente. Revelam também uma aproximação da redação com o
conselho, o que qualifica as informações publicadas sobre infância e contribui
para a divulgação dos Conselhos junto à sociedade.
Internacional
Comparado aos
demais temas da pesquisa, Internacional é o quinto com maior número de
inserções (988). Dois assuntos principais disputaram o noticiário internacional
sobre crianças e adolescentes; as guerras e casos de violência sexual.
Os conflitos
entre israelenses e palestinos e no Afeganistão tiveram grande destaque. A
cobertura mostra as dificuldades e privações de meninos e meninas nessas
regiões. São eles as maiores vítimas da guerra,
indicam estudos divulgados recentemente na imprensa nacional.
As denúncias de
abuso sexual praticado por autoridades religiosas, principalmente nos Estados
Unidos e Europa, foram o outro destaque. As notícias internacionais sobre
violência sexual vão ao encontro do “momento” do tema na realidade nacional.
Entre os temas analisados, Exploração e Abuso Sexual foi o que mais cresceu de
2001 para 2002 (191%). O aumento das denúncias e da cobertura no Brasil pode
ter justificado o espaço dedicado ao noticiário internacional nos jornais
locais.
Violência o tema mais presente: cobertura prioriza ótica policial ao
tratar de crianças e adolescentes
“A Polícia Militar apreendeu ontem, depois de receber uma denúncia anônima, dois menores com armas
e munições na Vila Leonina, no Morro das Pedras, região Oeste de Belo
Horizonte. Segundo Vanisse de Nogueira Machado, chefe de cartório e escrivã da
Delegacia de Orientação e Proteção da Criança e do Adolescente (Dopcad), ao
serem abordados os menores D.R.C., 16, e E.C.PC., 13, confessaram que minutos
atrás haviam escondido, em um lote vago, três revólveres calibre 38, duas
espingardas de fabricação caseira, urna faca e 38 munições”.
O texto acima
aparece em reportagem de um dos principais jornais de Minas, publicada em 2 de
outubro de 2002, e poderia ter sido veiculado num dos seis principais impressos
do Estado, a julgar pelo padrão de matéria que todos adotam no geral. É o que
comprova a pesquisa de análise de mídia realizada pela Oficina de Imagens em
2002.
De forma
geral, as matérias policiais seguem uma “receita de bolo”: na abertura do texto
(lead), sempre consta a corporação que fez a prisão ou
apreensão. Em alguns casos, há um 1 detalhamento até do nome dos policiais
envolvidos na apuração. Algum policial conta o que
ocorreu, dando informação do local, hora e número de envolvidos no’ fato. No
final das matérias, quase sempre aparece a pena para o crime. O termo “menor”
continua a ser utilizado para identificar as crianças e adolescentes envolvidos
em ato infracional ou ‘que pertencem às camadas empobrecidas da população.
Ditadura militar
A estrutura
das matérias que ocupam as editorias de polícia começou a tomar essa forma no
período da ditadura militar, quando a policia passou a ser a fonte principal,
quando não exclusiva, para as notícias. Qualquer tentativa de crítica à
corporação era vista como subversão. “No regime militar, fontes autênticas
foram destruídas em função de um jornalismo declaratório, em que prevalece uma
visão única. Toda uma geração de jornalistas cresceu nessa escola”, diz João
Carlos Firpe Penna, professor de jornalismo da PUC-Minas. Na avaliação dele, o
jornalista aprendeu a ouvir somente a polícia e gostou.
A tendência
de as coberturas de violência terem a polícia como fonte principal é confirmada
na pesquisa. Em 55,36% das 2.500 matérias do tema a polícia aparece como fonte.
O restante é subdividido entre outros setores do poder público e sociedade
civil organizada. O Conselho Tutelar, órgão responsável pela fiscalização da
aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), foi ouvido em apenas
1,52% das matérias, um percentual mínimo. Indo contrário ao senso comum de que
os adolescentes são cada vez mais agentes de violência, a pesquisa mostra que
nas matérias eles aparecem muito mais como vítimas. Porém, se diariamente
crianças e adolescentes vítimas da violência ocupam espaços pequenos e menos
nobres nos jornais, quando são agentes, costumam ganhar maior destaque, na capa
de um caderno, em uma fotografia de seu rosto com os olhos cobertos por uma
tarja.
Na redação,
as razões para que a polícia seja a fonte oficial nesse tipo de noticiário são
inúmeras. No outro lado da cobertura, a Polícia Militar critica a prática de
ouvir exclusivamente a versão oficial da corporação. “Já virou práxis dos jornalistas procurarem a
polícia, pois acreditam que ela é a responsável por responder a tudo sobre a
violência, mas na verdade não é”, afirma o assessor de comunicação da Polícia
Militar de Minas Gerais (PM-MG), o capitão Gedir Rocha.
Segundo ele,
o jornalista deve buscar contextualizar o fato, ir além do boletim de ocorrência.
“Nós temos uma certa dificuldade para passar notícias sobre adolescentes porque
a imprensa não tem limite, ela não vê as conseqüências do que publica. O
jornalista não sobe o morro e não conhece a realidade da favela, mas fala sobre
o morro”, diz. Para o assessor, embora ajuda a polícia, “a imprensa não tem
critérios para passar as informações, devido à pressa e à concorrência”.
Fique por dentro
Percebendo a
importância do boletim de ocorrência na produção de matérias, ele foi
reformulado pela polícia e segue a estrutura de um release, contendo lead e
sublead (parágrafo com informações que complementam o lead). A Polícia Militar
conta atualmente com uma assessoria de imprensa estruturada com um capitão
assessor, cinco plantonistas militares, dois jornalistas civis e um estagiário
civil, Essa estrutura é responsável em atender os jornalistas, encaminhar
entrevistas e difundir o “B.O.” pelas redações.
A polícia
recebe a denúncia por conta própria ou pelo 190. A denúncia recebida por um
telefonista é repassada ao despachante da unidade. A partir daí, a informação
passa para a companhia mais próxima (atualmente são 25) e esta envia uma
viatura para fazer a apuração. As primeiras informações que a viatura apura são
passadas para a assessoria, que transmite para a imprensa.
Para o
repórter policial da Rádio Itatiaia,
Laudívio Carvalho, ainda não uma fonte que possa substituir a Polícia Militar.
Há 23 anos cobrindo assuntos de polícia, Laudívio participou em 2001 do
seminário “Balas Perdidas”, realizado pela Agência de Notícias dos Direitos da
Infância (ANDI), no Rio de Janeiro.
Segundo ele,
o rádio exige agilidade e buscar informações sobre adolescentes não é uma
tarefa fácil. “Enquanto você está terminando uma reportagem, outra já está
acontecendo e você é chamado. Então, nem sempre dá para você desenvolver a
matéria como ela deveria ser desenvolvida, olhando a questão social do
problema, porque o ‘menor’, ao mesmo tempo que ele é
causador, ele é vítima também”, argumenta. Apesar de reconhecer a limitação da
cobertura, o jornalista aponta que a investigação é a melhor forma para apurar
a veracidade de um fato.
Nos últimos
cinco anos, entraram para o mercado profissionais recém-formados ou com no
máximo cinco anos de profissão. As mudanças mostram uma oxigenação na
cobertura? Para o repórter Felipe Zilli, que faz parte da nova safra de
jornalistas e, há três anos, está na editoria de Polícia do Diário da Tarde, as
renovações contribuíram em um primeiro momento para uma cobertura mais
reflexiva. Zilli, no entanto, considera que a estrutura das redações - que têm número cada vez menor de
repórteres e não costumam investir na formação de seus funcionários - acaba impedindo que o repórter
consiga apurar além do factual. “Quem está entrando chega cheio de idéias. No
começo, ouve várias fontes, faz reportagens mais completas. Mas, com um ano ou
dois, a pessoa é engolida pela engrenagem”, avalia. Para ele, a melhoria na
cobertura da criança e do adolescente na mídia deve-se a ações isoladas. Ele
avalia que o jornalismo policial ainda sofre em função de uma relação, muitas
vezes, promíscua entre o repórter e o policial. Para conseguir informações, o repórter precisa se tornar amigo, por exemplo, do
delegado. “Alguns colegas chegam a confundir, não sabem se são jornalistas ou
policiais e acabam sendo pautados pela polícia”, diz. Na tentativa de entender
melhor a realidade que diariamente ele tenta retratar no jornal, Zilli está
fazendo mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na qual
pesquisa a “existência da sub-cultura de violência
entre grupos de jovens de favelas.” “Desde sempre me chocou muito ver a criança
com arma na mão, trabalhando para o tráfico. O adolescente é um ser em formação
e, nesse aspecto, uma boa matéria pode fazer diferença.” Para ele, uma melhor
cobertura sobre criança e adolescente só é possível quando há um
comprometimento editorial da empresa. “O repórter é pressionado a cumprir
prazos. A empresa jornalística quer o máximo de matérias de impacto e, ao mesmo
tempo, não cobra uma abordagem mais completa do profissional.”
Há, por outro
lado, entre alguns profissionais da mídia, a avaliação de que “editoria de
polícia é escola de jornalista”. Professores de cursos de jornalismo até
concordam que cobrir polícia treina o repórter no acompanhamento de casos
factuais. Entretanto, lembram que a investigação ainda é o melhor caminho para
uma cobertura séria que tem compromisso com mudanças sociais. “O fato de o
jornalista se prender a uma fonte quase que exclusiva me incomoda muito”, diz o
professor Mozahir Salomão, da PUC-Minas e diretor da PUC-TV.
Para ele,
muitas vezes o jornalista opta por essa prática pela comodidade de ter sempre
uma fonte garantida e poder colocar na sua boca fatos que não foram comprovados
pela investigação. “A ausência do contraditório reforça a lógica do jornalismo
declaratório”. Em sua avaliação, o maior problema das matérias sobre
adolescentes que cometem atos infracionais -
em conflito com a lei - é o fato
de eles não serem tratados de forma ética e moral, como seres em
desenvolvimento. Para ele, o jornalismo está cada vez mais próximo do
entretenimento, da espetacularização do fato noticioso - procedimento que distancia cada vez mais o profissional de
práticas como apuração, checagem dos dados, contraposição de versões. Para João
Carlos, professor de, jornalismo da PUC-Minas, aprimorar a’ cobertura de
violência é uma tarefa difícil. Segundo ele, a universidade, que deveria ser o
principal local para formação do jornalista para a cidadania nem sempre tem
feito esse papel. Na sua opinião, o jornalismo está passando por uma crise e
somente o olhar atento da sociedade organizada pode levar a uma cobertura mais
crítica. “A cobertura de polícia tende a melhorar porque a sociedade tende a
avançar”, diz.
O professor
de teorias e métodos jornalísticos da UFMG, Valdir de Castro Oliveira, tem uma
avaliação parecida. Para ele, embora a mídia esteja cada vez mais influenciada
por questões econômicas, há três caminhos para melhorar a cobertura. A atuação
de entidades como a ANDI, que tentam sensibilizar os jornalistas para uma
cobertura mais engajada e cidadã; o aumento de discussões críticas sobre o
papel e responsabilidade da mídia e, por fim, a melhoria na formação dos
profissionais de comunicação. “Temos que dar uma maior importância à questão
ética. E uma grande responsabilidade construir a imagem do cidadão”, diz.
Violência sexual: tem crescimento de 191%: aumento das denúncias estimula
cobertura mais ampla
A violência
sexual entrou para a agenda pública, deixando de ser um problema intrafamiliar
e passando ao patamar de preocupação dos governos e da sociedade organizada.
Isso significa que a responsabilidade pelo abuso sexual de uma criança não é
apenas da família, mas também do Estado e da sociedade. E um reflexo de uma mudança
cultural que vem ocorrendo no Brasil, atribuída em grande parte ao fato de o
assunto ter sido pauta recorrente nas redações dos veículos de comunicação em
2002. O crescimento na cobertura do tema Exploração e Abuso
Sexual pode ser confirmado na pesquisa A CRIANÇA E ADOLESCENTE NA MÍDIA - MG, que registrou um aumento de 191%
em relação a 2001. O número de matérias passou de 228 para 664. O avanço não
foi apenas quantitativo, também houve uma melhora na qualidade das matérias,
embora os especialistas ainda apontem alguns problemas no tratamento do tema.
Na avaliação
da coordenadora da. Campanha Estadual de Combate à Violência, Abuso e
Exploração Sexual da Criança e Adolescente, Tatiana Vieira, foi um grande
avanço o problema ter deixado de ser um assunto doméstico e passado a ter um
viés público. O que se verificou no ano passado foi um processo dinâmico e
dialético: a mobilização da sociedade organizada levou a uma maior cobertura da
questão, que por sua vez resultou em um maior envolvimento das pessoas. “As
campanhas sobre o tema ganharam visibilidade. A mídia vem trabalhando muito”,
afirma a assistente social e coordenadora do Centro Estadual de Referência no
Enfrentamento da Violência Doméstica e Exploração Sexual da Criança e do
Adolescente, Bernadete Dutra Santos. Ela, no entanto, avalia que a cobertura
pode melhorar se houver um investimento no jornalismo investigativo. Um maior com prometimento da mídia no tratamento do assunto é
visível, segundo ela, mas ainda podem ocorrer avanços.
A edição anterior da pesquisa, que analisou matérias de janeiro a
dezembro’ de 2001, detectou alguns equívocos na
cobertura que contribuíram para a disseminação de mitos e tabus sobre o
problema. Abusadores tratados como tarados, psicopatas ou pessoas que têm
distúrbio mental; a idéia de que o abuso sexual acontece normalmente na rua,
bailes e lugares perigosos; o entendimento de que a criança provoca o adulto,
que acaba não resistindo; a crença de que, se elas consentem, é porque estão
gostando - eram algumas incompreensões
presentes no tratamento do assunto. Consciente do papel fundamental da mídia na
mudança cultural, a Rede ANDI realizou o projeto Abuso e Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes na Mídia, com
o apoio do Instituto WCF Brasil. Em todos os Estados onde há agências da Rede foram realizadas oficinas de interação entre os jornalistas e
especialistas no terna.
Em Belo Horizontes o encontro foi promovido pela Oficina de Imagens em dezembro de 2001,
quando jornalistas e fontes de informação
se reuniram para analisar as possibilidades de melhoria na cobertura. O
encontro teve como produto uma análise especial sobre a cobertura da violência
sexual nos jornais mineiros e um guia de recomendações para a qualificação da
informação produzida sobre o assunto.
As sugestões
propostas foram incorporadas por diversos profissionais “Tinha medo de ser mal
interpretada, a má compreensão de uma palavra pode trazer problemas sérios
quando o assunto é violência sexual. No encontro, tivemos contato com os
Jornalistas Amigos da Criança, o que nos deu maior tranqüilidade para passar as
informações”, afirma a técnica do Juizado da Infância e da Juventude e
integrante do Grupo de Combate à Violência Doméstica e Exploração
Sexual de Crianças e Adolescentes, Rosilene Miranda Barroso da Cruz.
A maior parte
do conteúdo ainda fica restrito ao simples relato dos fatos, sem
contextualização e discussão de soluções. De acordo com a pesquisa, grande
volume das matérias é factual (67%). As denúncias representam 27,7% e apenas
5,27% delas buscam soluções para o problema. Muitas matérias ainda apresentavam
a descrição minuciosa’ do ato de violência sexual, recurso que não contribui
para a solução do problema. “A descrição dos casos tende a favorecer a
associação e vinculação dos crimes com as classes mais pobres. Isso favorece
uma postura estigmatizante por parte da mídia e, conseqüentemente, por parte de
toda a sociedade”, avaliaram os participantes do encontro.
Uma das
principais fontes para as matérias no ano passado foi a
comissão especial da Assembléia Legislativa (11,74%), constituída para analisar
os casos de abuso e exploração sexual. Os Conselhos Tutelares e de Direito
foram pouco procurados. Os primeiros falaram em 6,77% das matérias e os de
Direito em apenas 1,35% delas. O assunto mais presente foi o caso de abuso
sexual envolvendo os promotores de Justiça da comarca de Araxá. Esse fato pode
explicar porque o Ministério Público aparece como fonte em 15,36% das matérias.
O caso foi acompanhado do início - a
partir da denúncia de uma conselheira tutelar a deputados estaduais - até o indiciamento dos envolvidos. Em
algumas das matérias, o abusador aparece nas fotos quase como um “monstro”. Em
geral, são fotos estereotipadas, seja do abusador ou da vítima.
É notório o
maior interesse da imprensa em relatar casos que tiveram o envolvimento de
autoridades no caso de abuso sexual. O que não é em si um problema, mas a
cobertura não pode se limitar a esses casos, afinal o abusador é uma pessoa
comum. Muitas vezes, são pais, parentes ou padrastos, pessoas próximas da
vítima.
Quanto à
linguagem, uma parcela das matérias traz conceitos inadequados, mas é
perceptível uma inquietação dos jornalistas no sentido de adequar a
terminologia. O termo pedofilia foi utilizado, freqüentemente, como sinônimo de
abuso sexual, o quê não é correto. Ocorreu também uma confusão entre os termos
prostituição infantil e exploração sexual. Um glossário na página anterior
explica a diferenças entre as duas expressões.
Redação atenta
A reflexão
sobre abuso e exploração sexual já faz parte da rotina do trabalho de muitos
jornalistas que cobrem o tema. A exemplo de outros setores do jornalismo
especializado, os profissionais que lidam com temas relativos à criança e
adolescente também estão despertos para a necessidade de uma formação
constante. E o caso, por exemplo, da editora de Cidades do jornal Diário do Rio
Doce, de Governador Valadares, Rose Santana. O veículo foi o que mais ouviu os
Conselhos Tutelares (14%) nas matérias sobre o assunto, prática despertada a
partir de sua participação na oficina de interação com especialistas em 2001.
A preocupação
da editora em dar um tratamento às matérias que priorize a reflexão dos casos
de violência sexual em detrimento ao sensacionalismo começou quando ela participou
do evento. “Começamos a ter noção do que estávamos fazendo. Em alguns casos, as
pessoas estavam sendo colocadas em risco”, diz. Na época, Rose era repórter e
apresentou a discussão para os seus colegas e o editor. Rose ressalva que, às
vezes, em função do corre-corre das redações, não é possível elaborar uma
matéria sem erros, mas toda equipe está alerta para evitar posturas que
coloquem a criança e o adolescente em situações constrangedoras. “É um assunto
melindroso. Às vezes, até mesmo os conselheiros têm dúvidas’, avalia”.
Para ela, a
formação dos profissionais que lidam com o tema deve ser constante já que os
assuntos não são estáticos. O repórter da sucursal do Estado de Minas em Montes
Claros, Luiz Ribeiro, cobre há oito anos a violência sexual contra meninos e
meninas. Mesmo com toda experiência, Ribeiro avalia que os encontros de
formação são extremamente importantes para que o repórter possa ter um novo
olhar sobre problemas antigos. Ribeiro é autor do livro “Corpos à Venda - Um relato sobre a prostituição
infanto-juvenil e suas causas”.
A partir das
matérias feitas sobre o assunto, Ribeiro resolveu contextualizar o fenômeno
buscando as causas que fazem com que haja uma incidência tão alta de violência
sexual nas regiões Norte e Vale do Jequitinhonha. “O livro chama a atenção para
a prevenção, tenta apontar soluções”, informa. A publicação pode ser obtida
junto à editora da Universidade Estadual de Montes Claros.
Especialistas propõem
O coordenador
do programa Sentinela em Belo Horizonte, Célio Raidan, avalia que o crescimento
quantitativo das matérias poderia ter sido acompanhado de uma maior qualidade
das reportagens. Ainda há, em sua avaliação, muito sensacionalismo na
divulgação de casos de violência sexual. Segundo ele, o maior problema é o.
jornalista assumir o papel de policial e psicólogo, situação que ele pôde
constatar ao atender alguns repórteres que trabalhavam com o tema.
Raidan cita,
para exemplificar, uma matéria de um telejornal na qual uma adolescente que foi
abusada sexualmente contava tudo o que lhe havia acontecido. “Muitas vezes, na
busca pelo furo de reportagem, o jornalista ‘revitimiza’ a criança e expõe a
família. O dever do jornalista é, ao saber de casos como este, notificar as
autoridades e acompanhar a investigação”, acredita. Ele lembra que, muitas
vezes, são necessárias horas e horas para convencer alguns
jornalistas a não entrevistarem as vítimas no auge do problema.
Nessa
situação, a sugestão oferecida é buscar as informações sobre o caso junto às
entidades de atendimento da criança e do adolescente. “Muitas vezes, o jornalista pensa que está prestando um serviço e
desconhece as seqüelas que aquela entrevista pode deixar na criança’, diz.
Segundo ele, acaba acontecendo uma situação contraditória já que a criança vê
um fato trágico de sua vida ser consumido “quase como um espetáculo” por meio
da mídia. Ele exemplifica com o que aconteceu’ com um menino do Morro das
Pedras, onde ocorreu um grave desabamento que provocou a morte de várias
crianças. O menino saiu estampado em fotos dos principais jornais e revistas
regionais e nacionais e passou a receber presentes e doações. “A morte dos
irmãos acabou trazendo um ‘ganho’ para ele. Isso é muito difícil para um
menino’, avalia.
Desafio dos números
Um grande
problema é a cobertura ser centrada apenas nos números e nas denúncias. Na
avaliação de Tatiana Vieira, muitos jornalistas ainda têm apenas um “interesse
estatístico” pelo assunto, o que nem sempre reflete a gravidade dos casos. Não
há um número exato sobre os casos de violência sexual no Estado por ser um tema
que se consolidou na agenda pública a partir de 2000 e por ainda envolver uma
série de mitos e tabus. O aumento no número de denúncias não significa que os
casos também aumentaram. Um número pequeno pode ser apenas a ponta de um
iceberg. Alguns especialistas trabalham com uma projeção de que, para cada caso
denunciado, podem existir outros 20 que ficam sem notificação.
Um passo que
pode ser dado para a melhoria da cobertura é apresentar nas matérias uma reflexão
sobre o abusador. “As matérias ainda têm um enfoque criminal. Não enfatizam a
importância do tratamento”, diz.
O psiquiatra
e especialista em abuso sexual de crianças e adolescentes
José Raimundo Lippi lembra que a busca pelo tratamento, em vez de uma simples
punição, é uma tendência mundial. “O abusador se compromete a não repetir. Vai
à igreja, promete e não consegue”, argumenta. Olhar a prática de abuso sexual
como um ato que necessita também de um atendimento terapêutico ainda é muito
difícil na cultura brasileira. São comuns casos de abusadores de crianças e
adolescentes serem torturados e até mortos em cadeias quando são presos pelo
crime. Nesse sentido, a imprensa tem papel crucial na reflexão sobre o assunto.
União de qualidade
Uma melhor cobertura
sobre violência sexual depende de um maior envolvimento da sociedade
organizada. A avaliação é do editor de Cidades do jornal O Tempo, Aurélio José,
que acredita que a cobertura reflete o nível de pró-atividade da sociedade em
pautar os veículos. Para ele, o jornalista deve ter cuidado não só ao
entrevistar crianças e adolescentes, mas em selecionar o que deve ou não ser
divulgado. Em sua avaliação, o depoimento da criança ou do adolescente pode
desvendar ou apontar para caminhos para os quais o especialista não havia
atentado. Ele, nó entanto, admite que no auge do caso a vítima deve ser
poupada. “Nós jornalistas somos formados para reconstruir a notícia. Não
podemos fugir disso”, diz. Ele lembra que, em algumas situações, o repórter não
encontra um psicólogo ou conselheiro tutelar que possa falar sobre o assunto, o
que dificulta o trabalho do repórter. “Em todas as nossas matérias sobre abuso
e exploração sexual procuramos o conselheiro tutelar, mas na maioria das vezes
não os encontramos”, diz. Aurélio cobra dos conselheiros tutelares o envio de
sugestões de pauta para as redações. “É sempre a imprensa que corre atrás do
conselheiro tutelar. As sugestões de matéria quase nunca vêm do Conselho.”
Tema esquecido, problema atual: situação de rua desaparece da pauta dos
jornais mineiros
Olha aqui. A
companhia já te conhece. Eu aviso, sou gente boa, mas se eu te pegar aprontando
aqui, te encho de porrada. Te levo pro delegado, que é
primo da minha mulher, e se eu chegar com um caquinho numa maca ele não vai nem
ligar. Mas é isso aí. Eu sou gente boa. Eu aviso. Qualquer coisa, eu tô alí”.
E o soldado
Wesley, 25 anos, natural de Nova Lima, a serviço do 1º Batalhão da Polícia
Militar de Belo Horizonte, continua a descida pela rua Espírito Santo, dá mais
uma olhada para o grupo encostado no muro da Igreja de São José e segue. Ele
representa o serviço público mais próximo de quem, de al4guma
maneira, habita as ruas da cidade.
“Já tô
sabendo, já tô sabendo”, começa a falar sem parar Roney, 20 anos, alvo principal
do olhar fixo do policial durante o sermão recém-ouvido. O “já tô sabendo” do
jovem vira bordão, sucessivamente repetido pelos garotos que estavam à sua
volta, entre eles Gleidson, 14 anos, filho de um puxador de ferro velho morador
do Conjunto Paulo VI e de uma mãe desempregada, moradora de
Nova Contagem, ambos na periferia da Grande Belo Horizonte. Gleidson não
estava entre amigos, afinal, “na rua, amigo a gente não tem, eles só querem
levar a gente pra roubar, é tudo interesseiro.”
Gleidson trabalha desde os 9 anos
vendendo balas e aos 11 decidiu diversificar o seu ramo de atuação: passou a
limpar pára-brisas na esquina da rua Espírito Santo com Augusto de Lima, no
centro de BH. Seu expediente é das 15h às 22h, ganhando em média R$15 “quando o
dia tá bom” e R$5 “quando tá mau”. Preocupar-se com o dever de casa é bobagem,
pois Gleidson abandonou a Escola Municipal Ana Guedes Vieira há 3 anos e, desde
então, “busca um lugar bem escondidinho para dormir” na rua, ocasionalmente,
quando não dá para voltar pra casa. Usando a camisa do pai, com um moletom
verde preso à cintura e dedos e unhas muito sujas, Gleidson é um adolescente em
situação de rua. Vítima da exclusão social, nele temos
um exemplo das falhas na rede de proteção estabelecida pelo Estatuto da Criança
e do Adolescente. Ele é mais um personagem, assim como tantos outros, de perfis
variados, que habitam esse espaço.
Ricardo, 16
anos, diz que “fuma, cheira e rouba mesmo”. Já foi para a “cadeia” três vezes,
segundo sua própria definição, ao se referir aos centros de internação. Está
nas ruas porque foi mandado e, para sair dela, precisa de um “trampo”. Em que
atividade? Não sabe, “qualquer coisa”, diz. Ele dorme na rua e às vezes
freqüenta o espaço Miguilim Cultural da Prefeitura, que dá apoio a crianças e
adolescentes em situação de rua. Dinheiro para sobreviver consegue através de
pequenos furtos, no mercado de bolsas e mochilas.
Na esquina da
av. Afonso Pena com a rua da Bahia, também no centro,
está Karine, 14 anos, fã de Sandy e Júnior e do cantor Vavá, que a acompanha em
uma foto dentro de um pequeno pingente preso ao colar. Dia sim, dia não, ela
vende pacotes com 5 balas a R$1, voltando para casa no final da tarde. Sua
renda é parecida com a de Gleidson - R$15
quando está bom e R$5 quando o movimento está ruim.
São histórias
impactantes, mas que não chocam mais. Afinal, todos já viram isso na TV, nos
jornais. Desde os anos 80, personagens como esses são conhecidos. Já estiveram
em evidência quando roubaram alguém ou quando foram mortos em uma chacina.
Mas o que diz
a imprensa, hoje, sobre esses jovens que têm na rua um espaço de sociabilidade
e realização de atividades tão diversas?
Quase nada, é
a resposta; Em 2002, os sete jornais acompanhados pela Oficina de Imagens
publicaram apenas sete matérias sobre meninos e meninas em situação de rua.
Delas, quatro falam de tentativas governamentais de retirar das ruas esses
jovens, repetindo a ótica ultrapassada de “limpar as ruas”. Duas inserções são
artigos, de um’ mesmo autor, que conta sua experiência pessoal com esses
meninos, tratados por ele como “profissionais” na arte de conseguir dinheiro.
Uma única reportagem aborda programas de atendimento a jovens em situação de
rua, mostrando soluções apresentadas por uma organização não governamental - um projeto capaz de oferecer uma
alternativa às vidas dos jovens. Além dessas, um número pequeno de matérias
narra o assassinato de um adolescente de rua em urna praça de Belo Horizonte,
sempre sob a ótica policial. Essas reportagens, segundo metodologia adotada
nesse estudo, foram classificadas como Violência
— Homicídio Vítima.
Em termos
estatísticos, a cobertura sobre Situação
de Rua foi insignificante. O número de inserções é tão pequeno que torna
impossível qualquer análise sobre tendências da cobertura ou questões
específicas de cada jornal. Por isso, este texto se propõe a informar e
problematizar aspectos sobre a situação de meninos e meninas nas ruas e, ainda,
mostrar que há muito o que dizer sobre essa realidade.
Contexto
A rua é a
última fronteira quando falham todas as instâncias de proteção à criança e ao
adolescente. A presença de meninos e meninas como Gleidson, Ricardo e Karine
nas ruas revela um cenário de violação de direitos em cascata. Não resta outra
escolha quando os vínculos familiares encontram-se fragilizados, a comunidade
tem infra-estrutura precária, os conselhos são ineficientes na proposição de
políticas de atendimento e o poder público ineficaz na sua efetivação. A rua é
uma opção real, ou até natural, se entendido que outras opções não existem.
Descobrir
notícias numa realidade como a da rua não é uma tarefa complicada. São inúmeras
as peculiaridades em uma vida de estrutura habilidosa, em que a todo momento é preciso criar estratégias e arranjos de
sobrevivência. E não se trata apenas de sobrevivência material, pois a rua tem,
além de uma função utilitária, uma função psíquica, pela qual
meninos buscam o que lhes faltou, num espaço de novas experimentações e
busca de paraísos artificiais. Vive-se em um mundo de prazeres e transgressões
contínuas.
A relação da
população de rua com o tempo é muito própria, sem projeção de passado - época traumática apagada da memória - e de futuro,
que representa um vazio existencial, pois não se sabe o que vai acontecer.
Sendo assim, “o tempo imediato é o que importa, o tempo presente, aqui e
agora”, explica a psicanalista Tânia Ferreira, autora do livro “Os Meninos e a
Rua - uma Interpelação à
Psicanálise”. ‘A relação dá criança e do adolescente com o tempo, de um modo
geral, já é diferente do adulto, mas no caso desses meninos a
dispersão é tão grande que eles não têm uma rotina”, esclarece.
Para escrever
seu livro, que em 2002 venceu o Prêmio Jabuti na categoria Educação e
Psicologia, Tânia lançou um olhar diferenciado sobre a realidade dos meninos.
“Um olhar não, ‘uma escuta”, corrige a psicanalista que, dando voz a essa
população, conseguiu oferecer pistas para uma compreensão mais profunda do
fenômeno situação de rua.
De modo
geral, essa perspectiva da escuta não se mostra muito presente na cobertura das
TVs, rádios e jornais em relação aos assuntos da infância e adolescência.
Sentidos
inusitados para a vivência de crianças e adolescentes nas ruas são foco do estudo da psicanalista. Entre eles, está a
peculiar relação dos meninos com o corpo, que vira um escudo diante das
situações de perigo que eles vivem. “O corpo é fechado pelo emblema das
religiões diferentes que eles arrumam, como o candomblé e vários outros
aspectos religiosos que vão de alguma maneira ter uma incidência sobre o corpo
deles. Todos os eventos que eles vivem na rua estão marcados no corpo.”
São marcas da
existência de crianças que têm a autonomia de uni adulto e histórias de vida
inacreditáveis, conta a psicóloga Cláudia de Paula, do
programa Miguilim, que atende crianças e adolescentes em situação de rua em
Belo Horizonte. Segundo ela, estar na rua pode ser fruto de uma situação
herdada dos pais, fruto de uma situação de miséria e pobreza, resultado do
rompimento dos vínculos familiares ou fuga do morro devido a
ameaça de morte feita por traficantes.
No entanto, a
psicóloga é incisiva ao citar a exclusão como ‘palavra-chave para a compreensão
do fenômeno situação de rua. “Pessoas desalojadas de suas próprias vidas como
sujeitos, os meninos evidenciam o processo de uma sociedade inteira”, diz
Cláudia, cuja opinião é endossada pela psicanalista Tânia Ferreira. “Exclusão
dos serviços, dos bens sociais, da cultura, eles vivem numa bolha fechada, que
é o bando, o universo da rua”, diz Tânia.
Crianças e adolescentes
em situação de rua não são uma realidade nova. Não são
também um conjunto homogêneo de pessoas, maltrapilhos
ou necessariamente dispostos a cometer um ato infracional. Situação de rua não
é uma questão isolada, pelo contrário, é fruto de uma série de violações dos
direitos. Porém, mitos e preconceitos sobre esse espaço perpetuam no imaginário
da sociedade e, consequentemente, na mídia. A dificuldade em compreender o que
significa, hoje, o fenômeno “meninos e meninas em situação de rua” e a própria
reconfiguração do ambiente rua e das discussões em torno dele podem ser um
caminho para se entender a queda do tema na cobertura dos jornais de Minas
Gerais e do Brasil ao longo dos últimos anos.
Mário Volpi,
Oficial de Projetos do UNICEF, identifica algumas questões que podem ajudar a
esclarecer a diminuição e mudança da cobertura de crianças e adolescentes em
situação de rua. Um primeiro argumento é o que Volpi chama de fragmentação do
tema Situação de Rua. A cobertura agora estaria subdividida em outros temas,
fruto de um amadurecimento na compreensão da questão da infância, como o
trabalho infantil e a exploração sexual de crianças e
adolescentes.
Um outro
aspecto é que, para Volpi, ao contrário do que ocorreu na década de 80, quando
o assunto ganhou grande destaque na mídia nacional e internacional, houve
também um enfraquecimento da temática na agenda das organizações. Para ele,
“faltam novidades sobre o assunto que justifiquem uma cobertura”, como
mobi1ização da sociedade e pesquisas.
Para a psicanalista
Tânia Ferreira, meninos em situação de rua apareciam na mídia sempre em relação
às questões policiais. “De um tempo para cá, eles viraram foco do
assistencialismo. Então, a verdadeira realidade dos meninos, como eles se
organizam a - batalha deles para
sair disso, a mídia ainda não mostrou para a sociedade. Por isso a sociedade
teme, e teme muito”.
A secretária
nacional do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), Maria
Eneide Teixeira, acredita que é preciso olhar de novo para a situação de
crianças e adolescentes nas ruas. Entretanto, esse olhar deve ser diferente.
Deve perceber a questão enquanto fenômeno, dentro do contexto social, político
e econômico do país.
Esse novo
olhar teria como referência básica o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA). O próprio MNMMR, a partir de 1995, passa a ter foco em crianças e
adolescentes em situação de vulnerabilidade social e pessoal e não somente na
situação de rua. Segundo Eneide, essa mudança se deve à ótica proposta pelo ECA, que prioriza políticas da garantia e promoção dos
direitos básicos em detrimento ao atendimento emergencial. Isso significa focar
nas ações de promoção. “O movimento seguiu essa linha”, diz.
Para ela, “a
mídia também mudou o foco da discussão, acompanhou a discussão da sociedade, de
certa forma. A mídia acompanha a agenda da sociedade”, observa.
Noticiário reproduz vícios do sistema educacional - Especialistas e
profissionais da mídia falam sobre a cobertura dos jornais mineiros na área da
educação
Por mais um ano, a pesquisa anual da Oficina de Imagens/Rede ANDI concluiu que a educação é assunto recorrente nos jornais mineiros (mais de 20% do total das matérias analisadas). O foco principal da cobertura, segundo a análise dos textos, não foi a criança e o adolescente em processos de formação, mas as categorias profissionais (greves, reivindicações). Conseqüentemente, as associações de classe e o poder público foram as fontes mais ouvidas no ano de 2002 (veja gráfico na página ao lado).
De acordo com
Tacyana Arce, repórter do caderno Gerais do jornal Estado de
Minas, especialista em Educação e Jornalista Amiga da Criança, isso não
é necessariamente um ponto negativo. “É ilusório pensar que vai haver uma
cobertura permanente para a Educação, para qualquer tema. O jornalismo reflete
o momento que a sociedade está vivendo. Se 2002 foi um ano de intensos
movimentos de classe, é normal a cobertura também intensa”, afirma.
Segundo
Adalete Paxeco, diretora do Departamento de Formação do Sindicato Único dos
Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (SIND-UTE), “o que a gente avalia
primeiro é a importância social da Educação, daí a justificativa de ter uma
cobertura tão ampla, e temos a preocupação de fazer esse diálogo com a
sociedade por meio da mídia.” A capacidade do Sindicato em gerar notícia e em
se relacionar com os jornais faz com que seja uma das maiores fontes em
educação, superado apenas pela soma dos poderes executivo, legislativo e
judiciário.
Na relação
entre fontes e redação, o release aparece como ator importante. Muito utilizado
por assessorias e assessores de imprensa, o release tem grande penetração nas
redações, sobretudo os que vêm do Poder Executivo. Esse argumento, conforme
Tacyana Arce, justifica o grande número de matérias envolvendo o poder público e
as associações. “O Paulo Renato [de
Souza, ex-Ministro do Educação], por exemplo,
soube usar muito bem a assessoria de imprensa. As entidades de classe
aprenderam. Como no jornal diário, muitas vezes, falta tempo para repercutir a
matéria, torna-se comum a prática da cópia”, diz.
Para Jeanette
Santos, repórter do jornal Hoje em Dia, poder público e associações são grandes
geradores de fatos e, por isso, estão mais presentes nas matérias. “Eles acabam
pautando mais o jornal. À medida’ que um fato chega à redação, procuramos
cobri-lo. Daí o maior número de inserções dessas fontes”,
completa. Segundo a jornalista, o rádio e a TV são os veículos mais
dinâmicos e realizam a cobertura imediata. A revista é uma publicação mais
elaborada e o jornal diário, por sua vez, deve detalhar os fatos e apresentar
desdobramentos sem o aprofundamento de uma edição semanal, quinzenal ou mensal.
“Cada mídia tem a sua função específica, até por uma questão de sobrevivência.
O jornal diário sobrevive do factual”, destaca.
Cláudia
Caldeira Soares, coordenadora da equipe de educação da empresa Consultoria em
Políticas Públicas (CPP) e mestre em Educação pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), acredita que a mídia legitima e reforça o senso comum.
‘São poucas as reportagens que trazem um olhar diferenciado,
que propõem um debate. O espaço para outras vozes que não o poder
público e as associações não existe. O grande problema é que a questão de
fundo, isto é, a própria Educação, não aparece”,
ressalta.
Os dados da
pesquisa comprovam que a criança e o adolescente, bem como suas famílias e a
comunidade, são fontes de poucas matérias (pouco mais de 7% do total - veja
gráfico na página anterior). Segundo Tacyana Arce, a questão, nesse caso, é
cultural. “Não se reconhece numa pessoa sem título alguém autorizado a falar.
Isso é um problema de cultura jornalística, não da cobertura em Educação. Além
disso, se o jornal não reconhece essas pessoas como fonte, é porque a sociedade
também não acredita nelas. Unia coisa reflete a outra”, expõe. Conforme Cláudia
Caldeira, aluno e família acabam não sendo fonte por causa do tecnicismo da
escola. “A instituição acha que deve apenas transmitir conhecimentos para um
sujeito que não é visto como sujeito, mas como aluno. Na cultura escolar, a
instituição de ensino é a detentora do saber e exige que o aluno o reproduza.
Nesse sentido, a mídia, ao não abordar certos aspectos, está refletindo a
realidade”, afirma.
Muitas vezes
o que torna questionável a fala do aluno enquanto fonte jornalística é o fato
de ele repetir o discurso da escola: “Estando inserido na mesma cultura, ele
também reproduz o senso comum”, salienta Claúdia Caldeira. “Esse ‘ouvir o
aluno’ também pode criar uma visão um tanto deturpada.
Afinal, como ouvi-lo se a própria escola e a sociedade não lhe dão voz? Além
disso, há uma tendência em selecionar quem fala ‘bonito’. Isso pode não ser - e muitas vezes não é - a representação da maioria”, reitera
Tacyana Arce.
Vanguarda
Para Claúdia,
é necessário explorar novos temas na cobertura em Educação: “O que é o
conhecimento, como ele é construído, a formação humana, enfim, são questões
fundamentais a serem abordadas pela mídia. Estabelecer outras bases para a
transmissão de conhecimentos é difícil. Tempo, espaço e inter-relações são
fundamentais nesse processo. Deve-se vincular o processo de aprendizado ao
conhecimento prévio. A mídia é responsável por trazer à tona essa discussão”,
diz. De acordo com ela, isso se torna possível à medida que o jornalista busca
maior diversidade de fontes, principalmente as que vivem ou viveram
experiências inovadoras. “Lideranças comunitárias, professores, alunos e
especialistas têm de estar mais presentes nas matérias. Seria bom se houvesse
mais jornalistas especializados em Educação”, afirma.
Na opinião de
Jeanette Santos, o sistema é um grande responsável pela falta de soluções. “E
importante lembrar que o jornalista não pode propor urna solução diretamente.
Isso é dever das fontes, do poder público. Será que ouvimos as fontes erradas?
A mídia pode agregar, mas o poder público tem de dar respostas. Ela pode ser um
elemento transformador à medida que fiscaliza as políticas, públicas e cobra o
seu cumprimento, principalmente sendo a referência social que é”, ressalta.
Comunicação e conselhos
Fontes
qualificadas. É tudo o que quer um
jornalista. Afinal, ele depende delas para produzir informação. A fonte é quem
oferece subsídio para a produção do texto, quem questiona as opiniões vigentes,
quem dá credibilidade à informação que vai ser transmitida. Uma boa reportagem
depende de boas fontes.
Para
qualificar a cobertura sobre infância e adolescência é preciso, então,
qualificar as fontes que falam sobre os assuntos relacionados a esse segmento.
Surge daí a necessidade de dar atenção especial aos Conselhos de Direitos da
Criança e do Adolescente e Conselhos Tutelares, atores centrais no sistema de
promoção aos direitos de meninos e meninas.
A capacidade
de certos grupos sociais em pautar a mídia parece ser decisiva para a conquista
de maior visibilidade. O fortalecimento de outros grupos sociais passa a ser
estratégia fundamental para reverter a pequena
presença dos Conselhos como fonte.
Dentro de uma
estratégia mais ampla de qualificar a cobertura sobre crianças e adolescentes,
os Conselhos representam papel fundamental. São fontes de informação
privilegiadas que precisam ser capacitadas para o desenvolvimento de ações de
comunicação, como previsto no ECA (art. 88, inciso
VI), que prevê a mobilização do opinião
público no sentido do indispensável participação dos diversos segmentos da
sociedade como diretriz da política de atendimento aos direitos. Em 2002, a
Rede ANDI definiu como prioridade em sua atuação o estímulo ao fortalecimento
do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, em que os
Conselhos representam papel central na definição de políticas e na
fiscalização de seu cumprimento.
A análise
Os dados
levantados pela Oficina de Imagens em 2002 mostram que os Conselhos, de
Direitos ou Tutelares, são fonte em apenas 1,67% das reportagens veiculadas
pelos jornais mineiros sobre temas relativos à infância e adolescência - um
número ainda irrisório. Os quadros ao lado mostram como, sob diversos pontos de
vista, os Conselhos aparecem como fonte na cobertura.
Por terem
papel central na promoção e defesa dos’ direitos, os Conselhos, de Direitos ou
Tutelares, têm algo relevante a dizer em praticamente todos os assuntos ligados
à população jovem. Seja na garantia de vagas em escolas, no encaminhamento de
vítimas da violência sexual, na oferta de serviços de saúde.
Os textos a
seguir têm o objetivo de problematizar a relação entre esses atores e a mídia,
além de propor caminhos para a construção de outras formas de interação entre
ambos.
A presente
análise traz a história dos direitos da infância no Brasil, um resumo dos
principais conceitos ligados ao papel dos Conselhos e ao sistema em que estão
inseridos, uma lista com os telefones de todos os Conselhos de Minas Gerais e
outras informações que visam subsidiar o trabalho de jornalistas na cobertura
de temas sobre a infância e juventude.
De “menor” a
cidadão: essa é a trajetória histórica que o movimento social pelos direitos da
criança e do adolescente tenta fazer acontecer no Brasil desde o século
passado, mais precisamente a partir da década de 80.
Mesmo
contando com a energia e a capacidade técnica de milhares de militantes
espalhados pelo país, essa não tem sido uma tarefa fácil. Mudar uma cultura
significa alterar mentalidades e atitudes pessoais e, conseqüentemente,
institucionais.
Nunca, na
história da humanidade, as mudanças ocorreram de forma tão veloz, quanto nos
últimos cem anos. E as crianças e adolescentes sabem disso e nos desafiam a
pensar e agir com e para eles.
Para
entendermos a dimensão da tarefa que temos pela frente corno
formadores de opinião, selecionamos alguns momentos históricos
relacionados à infância e à adolescência no Brasil, desde a chegada dos
portugueses.
Antes de 1500 - os habitantes deste país viviam coletiva e
solidariamente. Uma criança não era responsabilidade apenas dos pais
biológicos, mas de toda a tribo. Naquela época, a infância não existia como uma
categoria específica, ou seja, a sociedade tratava a criança como um ser
indiferenciado.
De 1500 a 1700 - já há registros de crianças e adolescentes abandonados e
infratores. Aqueles que “não davam certo” em
Portugal eram trazidos pelos colonizadores ao Brasil para colaborar nas
atividades de aproximação com os índios e na catequese. Começa a ser formada a
categoria criança, porém, sempre em condição de inferioridade em relação aos
adultos. A criança é considerada como pequeno adulto ou adulto em miniatura.
De 1701 a 1800 - a escola é criada como lugar de ordem, socialização e
padronização do comportamento das crianças. Apenas as
crianças oriundas da elite podiam frequentá-la. As demais eram consideradas
como “menores”: sem possibilidades, sem poder, sem dinheiro. A Roda dos
Expostos é um exemplo de “política pública” daquela época - nesse mecanismo de
madeira, inserido nos muros das Santas Casas de Misericórdia, os bebês
rejeitados pelas mães eram depositados numa roda, que, uma vez acionada por uma
manivela, levava para dentro do prédio a criança abandonada,
que passava a ser criada pelos padres e freiras.
De 1801 a 1900 - os “menores” são inseridos no
trabalho escravo. Os adolescentes eram preferidos por seu porte físico. As
adolescentes negras eram usadas sexualmente para a satisfação de seus senhores
e para gerar filhos mais claros, que podiam ser vendidos no mercado por preços
mais altos. Em meados daquele século, é criada em Salvador/BA, a primeira
iniciativa de atendimento a meninos e meninas abandonados, através da Ação Social Arquidiocesana, cujo padre responsável foi autorizado
pelos governantes a pedir esmolas em praça pública para manter o
atendimento. Em 1886, com a Lei do’ Ventre Livre, aumenta o número de crianças
e adolescentes abandonados vivendo nas ruas.
Até 1900 - não existia nenhuma iniciativa estatal de atendimento a crianças e adolescentes. O atendimento aos “desamparados” é executado exclusivamente pela Igreja Católica, baseado na lógica higienista predominante na época, que tinha como princípio segregar e confinar os indivíduos que representassem algum tipo de risco à sociedade. Sob essa lógica foi inaugurado, em 1922, o primeiro estabelecimento público para “menores” no Rio de Janeiro.
Cultura correcional
Em 1927 - criada a primeira legislação para a infância e adolescência: o
Código de Menores, que tem como principal propósito
determinar medidas a serem adotadas em relação a crianças e adolescentes
abandonados e infratores. O termo “menor” é legitimado pela legislação
brasileira.
Em 1941 - criado, no âmbito do governo federal,
o SAM (Serviço de Assistência ao Menor),
retaguarda para o Código de Menores. Crianças e adolescentes abandonados ou
infratores eram considerados caso de polícia e reclusão. No âmbito das
organizações da sociedade civil, surgiram os patronatos (instituições de
assistência) internatos e programas de profissionalização para “menores
carentes”. Algumas conquistas desse período: a CLT Consolidação das Leis
Trabalhistas e obrigatoriedade do ensino fundamental.
Anos 60 - Novas organizações da sociedade civil, especialmente no âmbito
sindical, passam a reivindicar políticas
sociais redistributivas. Com o golpe militar em 64, as políticas sociais passam
a ser consideradas como meio e não como fim. O gasto
social público prioriza o desenvolvimento econômico. Nesse contexto político e
social é promulgada a Lei 45 13/64 - Política
Nacional do Bem Estar do Menor (que estabelece a criação da Funabem e Febem),
transição da concepção correcional-repressiva para a assistencialista (de
“perigoso” a “carente”).
Anos 70 - o Código de Menores (Lei 6697/79) é reformulado e passa a ser
regido pela doutrina da situação irregular,
incorporando a nova concepção assistencialista do atendimento a crianças e
adolescentes excluídos. Em meados daquela década inicia-se o processo de
abertura democrática e de reorganização dos setores populares. As instituições
de atendimento passam a conviver com três tendências: a repressiva, a
assistencialista e a educativa. Alguns segmentos sociais começam a denunciar o
ciclo “apreensão-triagem-rotulação-deportação-confinamento” executado no
sistema Febem/Funabem. Surge o Plano de Integração Menor-Comunidade, uma
tentativa de desinstitucionalizar crianças e adolescentes das unidades da
Febem, incentivando iniciativas comunitárias de atendimento.
Anos 80 - surge um novo movimento social - esfera de organização
independente do Estado (associações de moradores; novos grupos sindicais;
Comunidades Eclesiais de Base.- CEBs, dentre outros). Um projeto inovador,
‘Alternativas de Atendimento a Meninos de Rua”,
coordenado pelo UNICEF, Funabem e SAS, culminou na realização do 1º Seminário
Latino-Americano de Alternativas Comunitárias de Atendimento a Meninos de Rua - emergência de novas idéias, práticas
e lideranças. Em 85, constitui-se o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de
Rua.
Pela primeira
vez fala-se em. protagonismo infanto-juvenil, reconhecendo-se a criança e o
adolescente como sujeitos participativos. Em 86, várias entidades de expressão
se articulam e formam a Frente Nacional de Defesa dos Direitos das Crianças e
Adolescentes, que mais tarde passa a se chamar Fórum DCA Nacional. Nesse mesmo
ano, é criada a Comissão Nacional Criança e Constituinte, integrada por
representantes dos Ministérios da Educação, Saúde, Previdência e Assistência
Social, Justiça, Trabalho e Planejamento. Começa o maior processo de
sensibilização, conscientização e mobilização da opinião pública e dos constituintes já implementado neste país em defesa de um
determinado segmento social. Em 1988, são apresentadas duas emendas de
iniciativa popular -“Criança e Constituinte” e
“Criança: prioridade nacional” - com mais de 200 mil assinaturas de eleitores
de todo o país. Seus textos foram fundidos e se transformaram nos Artigos 204 e
227 da Constituição Federal.
Uma lei revolucionária
Anos 90 - três forças se articulam e mobilizam para a elaboração da
proposta de regulamentação do Art. 227: o Fórum DCA
Nacional - que reunia entidades não governamentais, o campo jurídico e o
Fonacriad- Fórum de Dirigentes e Técnicos de Órgãos Públicos Estaduais. Desse
esforço de dois anos, que impulsionou discussões em todo o país, resulta a Lei
8069/90 - o Estatuto da Criança e do Adolescente. Logo depois, na mesma linha
de revisão de paradigmas legais, políticos, teóricos e
práticos, foram aprovadas a LOAS - Lei Orgânica de Assistência Social
(1993) e a LDBEN -Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996). Nos
Estados e municípios, instituições e militantes se articulam e criam fóruns com
o objetivo de organizar o sistema de garantia de direitos. Por determinação do ECA, começam a ser criados nos municípios brasileiros os
Conselhos de Direitos e Tutelares.
Conselhos da criança e do adolescente - sistema de garantia de direitos
Os Conselhos
de Direitos e Tutelares fazem parte de uma rede mais ampla, o chamado Sistema de Promoção dos Direitos da Criança
e do Adolescente, um conjunto articulado de pessoas e instituições que
atuam para efetivar os direitos infanto-juvenis.
Não há
nenhuma referência explícita ao Sistema de Garantia nas legislações que se
referem à criança e ao adolescente - a Constituição Federal, o Estatuto, a Lei
Orgânica de Assistência Social e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. No entanto, a idéia de articulação, de trabalho integrado e
complementar em rede, está presente em todas elas.
Fazem parte desse sistema: a família, as organizações da sociedade
(instituições sociais, associações comunitárias,
sindicatos, escolas, empresas), os Conselhos (dos Direitos da Criança e do
Adolescente, Tutelar, da Educação, da Assistência Social, da Saúde etc) e as
diferentes instâncias do Poder Público.
Os Conselhos
são órgãos públicos de controle social fundamentados no princípio de democracia
participativa. Existem para garantir a participação da sociedade na formulação
de várias políticas públicas: saúde, educação, assistência social. Existem
também aqueles Conselhos voltados para a defesa e a promoção de direitos de
segmentos específicos da população, como o da criança e do adolescente, do
idoso, da pessoa com deficiência.
Conselhos de direitos da criança e do adolescente
“Conselhos de
Direitos são órgãos especiais criados e mantidos pelo Poder Público, nas
diferentes esferas de governo, para, atuar de maneira descentralizada na
formulação e controle das ações e programas relacionados à infância e a juventude’, como explica.
Wilson Donizete Liberatti, em citação no manual Operando o Sistema de Garantia dos Direitos do
Criança e do Adolescente. Conselhos de Direitos são órgãos
colegiados, compostos por um número par de conselheiros, sendo que metade é
indicada pelo governo e a outra metade deve ser escolhida entre entidades da
sociedade civil que atuam pelos direitos da infância e adolescência. São também
os responsáveis pela administração do FIA - Fundo da Infância e Adolescência.
Conselhos tutelares
Assim como o
Conselho de Direitos, o Conselho Tutelar também é criado pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente. O artigo 131 diz que “o Conselho Tutelar é órgão
permanente, autônomo e não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar
pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta
lei”. O Estatuto determina a obrigatoriedade da prefeitura em criar um conselho
em cada município. O Conselho Tutelar atua como fiscal dos direitos. Segundo
Wilson Liberatti, “o Conselho Tutelar é uma ferramenta e um instrumento de
trabalho nas mãos da comunidade, que fiscalizará ei tomará providências para
impedir a ocorrência de situações de risco pessoal e social
de crianças e adolescentes”. O Conselho Tutelar deve atender caso a
caso: as situações encaminhadas pela família, comunidade ou pela sociedade e
buscar restauração de cada direito violado o ameaçado.
Cobertura é expressão da análise
Uma análise
do percurso de construção do imaginário brasileiro em relação à infância e à
adolescência mostra que é preciso mudar o rumo da história. Quando o assunto é
a cidadania infanto-juvenil, é preciso criar outras imagens e discursos, outras
formas de pensar que permitam a melhor compreensão de que esses são sujeitos de
direitos. Mídia e Conselhos, atores importantes da sociedade organizada,
representam papel decisivo nessa proposta, de criação de outra história de
desenvolvimento social e humano na perspectiva da promoção, garantia e defesa
dos direitos da infância e adolescência.
Uma das
imagens desse senso comum, distorcida pela relação mídia-polícia, é que “o
Estatuto protege os jovens que agem contra a lei”. A sociedade, insegura,
acreditou nessa imagem e reproduziu essa história. Uma
história mal-contada, que acaba por desacreditar uma lei e as enormes
possibilidades de desenvolvimento social, político, econômico e cultural que
ela inaugura para a sociedade.
O estabelecimento de outros parâmetros
para o relacionamento entre meios de comunicação e a Rede de Promoção dos Direitos
da Criança e do Adolescente, conjunto de organizações responsáveis pelo
cumprimento do Estatuto, é o primeiro passo para a construção de um novo rumo
para a infância brasileira. Alguns argumentos práticos confirmam essa
necessidade. A imprensa precisa de notícias e de expressar seu compromisso
democrático de informar; a lei diz que a opinião pública precisa ser mobilizada
para uma maior promoção social dos direitos da criança e do adolescente (ECA,
art. 88 inciso VI) e os Conselhos - de Direitos e Tutelares - precisam se
tornar mais visíveis para a sociedade, aumentando assim seu nível de
legitimidade e respaldo político.
Essas máximas
deveriam conduzir a uma natural aproximação entre Conselhos, movimentos sociais
e meios de comunicação. No entanto, esses campos têm freqüentemente se
desencontrado na produção e veiculação de informações estratégicas para a
mudança de cultura em relação à infância e à adolescência. É o que revela esta
edição da pesquisa A CRIANÇA E O ADOLESCENTE NA MÍDIA - MG. Apesar de uma
crescente cobertura da imprensa sobre os assuntos relacionados às novas
gerações, os Conselhos ainda são pouco reconhecidos como fontes.
Mídia e conselhos, uma nova relação - projeto busca aproximar
conselheiros e jornalistas visando uma cobertura mais qualificada
Estimular
o relacionamento entre fontes de informação ligadas à. área da infância e meios
de comunicação é ação central para a Rede ANDI. Entre os componentes do Sistema
de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselhos Tutelares e
Conselhos Municipais foram definidos pela Rede como prioridade nas ações de
qualificação para uma relação mais eficaz com a mídia. Em janeiro de 2003,
começou a ser executado o Projeto Mídia e
Conselhos - Aliança Estratégico na
Prioridade Absoluta aos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, realizado pela ANDI e CONANDA, com recursos da
Petrobrás doados ao Fundo Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e
executado pela Oficina de Imagens e Cipó Comunicação Interativa, organizações
que integram a Rede ANDI de Comunicadores pelos Direitos da Infância.
Por um lado,
se os jornalistas não conhecem os Conselhos e não os ouvem, os dados revelam
também a dificuldade dos profissionais dessas entidades em se fazer conhecidos
e em pautar os veículos de comunicação. Em síntese, falta ao conselheiro
incorporar a comunicação como eixo estratégico de sua atuação, responsável pela
garantia dos direitos das novas gerações, como prevê o Estatuto da Criança e do
Adolescente.
O projeto vai
possibilitar que Conselhos e mídia estabeleçam vias de diálogo mais efetivas e
permanentes. Um conjunto de ações visando informar a sociedade’ sobre a
existência dos Conselhos, suas responsabilidades e importância e assegurar a
capacidade dos conselhos de produzir, organizar e difundir informações. Ações
para a consolidação de uma cultura da comunicação nos Conselhos dos Diretos e Tutelares corno atividade-fim, direito do cidadão
e dever de toda entidade pública.
Seis oficinas
de capacitação de conselheiros acontecem nas cinco regiões do país, entre
fevereiro e junho de 2003. Ao longo das oficinas, está sendo produzido um guia
que visa sensibilizar os conselheiros quanto à importância da comunicação e
oferecer orientações para o relacionamento com os meios de comunicação.
Uma ampla campanha publicitária para rádios, TV’s e veículos impressos
está sendo desenvolvida pela ONG Cipó Comunicação
Interativa com foco nos Conselhos Tutelares, órgão mais próximo da comunidade e
que está na linha de frente ao atendimento a crianças e adolescentes cujos
direitos foram negados ou violados. A campanha será lançada juntamente com o
guia, em julho, nas comemorações pelo aniversário do Estatuto.