EXPERIÊNCIA DA FUNDAÇÃO PROJETO TRAVESSIA NA DEFESA DE
DIREITOS E ACESSO À JUSTIÇA
O público alvo da Fundação Travessia é composto por crianças
e adolescentes em situação de rua e seus familiares. Esse público vem de um
histórico de exclusão social que promove sua apartação da sociedade
confinando-o na circunstância da ilicitude num ciclo de alijamento
de direitos e privação de liberdade. Neste processo, desenvolvem estratégias de
sobrevivência muitas vezes ligadas ao tráfico e uso de entorpecentes e outros
ilícitos além da "mendicância". É possível observar que muitos, têm
várias passagens pela FEBEM por cometerem pequenas infrações como quebra de vidros em abrigos, ofensas verbais a educadores e
outros eventos que culminaram na entrada do circuito da FEBEM, além dos
arrastões constantes. Outros foram institucionalizados desde cedo face a postura autoritária do Judiciário que destituía
famílias menos favorecidas do pátrio-poder e internava as crianças em
instituições totais.
Neste universo a Fundação Projeto Travessia elegeu a ação
educativa como cerne, trabalhando numa perspectiva constitucional de defesa de
direitos, rompendo com a criminalização da pobreza em
várias instâncias e demonstrando que é possível atuar numa linha de proteção
integral a partir da garantia de direitos fundamentais e práticas de cidadania
que mudam essa realidade à medida em que os educandos
podem exercer liberdades e limites num processo educativo de experimentação,
observando que o desenvolvimento deve ser garantido a todos e não se dá de
forma uniforme. Face a isto, são acionados os
Conselhos Tutelares visando a regionalização do atendimento, apesar da
fragilidade desses, implicando a comunidade afim de transformar o processo de
exclusão e violação de direitos que muitas experimentam no seu cotidiano ao
invés da apartação que o poder Estatal herdou do Código de Menor.
Por esse processo o educando pode compreender seu papel na
sociedade e as possibilidades de transformação social seja
pela vida comunitária ou pelo acesso as vias judiciais. Mesmo que não
adquiram esta consciência na adolescência, essas questões farão parte de seu
amadurecimento e de suas relações, construindo-se na prática educativa.
A estratégia de trabalho engloba ações no sentido de
transformar as representações e significados que essas pessoas vivem em seus
cotidianos sobre seus direitos e acesso à Justiça, afim de que possam acionar
as instâncias competentes e compreenderem os conteúdos das leis . Um elemento
determinante é a integração da defesa técnica à ação educativa garantindo a
participação do educador em juízo, bem como do educando e de seus familiares.
É fundamental a certeza que cada educando tem de seus
direitos serem preservados mesmo na internação que cada um pode buscar sua
garantia junto aos órgãos competentes. A Fundação realiza a educação e acesso à
justiça, a partir das seguintes formas de atendimento:
a). Defesa Técnica: A defesa deve trazer o universo dos
direitos para o cotidiano de seu público alvo, buscando as vias de acesso a
Justiça e possibilidades de exercício desses direitos como, por exemplo, ir ao Forum e ter acesso aos processos. Assim, a defesa técnica
deve primar pela questão jurídica, ampla defesa e devido processo legal e
trabalhar com as representações dos conteúdos jurídicos que os educandos
possuem.
b). Categorias de Atendimento: O atendimento foi dividido em
categorias de acordo com vínculo entre educador, educando e advogado,
contemplando os variados níveis de atuação.
b.1). Consulta: Refletir – Meditar: Atendimento ao educador para
reflexão conjunta sobre aspectos legais que perpassam as questões cotidianas e
as relações com os educandos e atores, fornecendo elementos para o trabalho
educativo e intervenções de emergência.
b.2). Orientação: Direção - ajuda para escolher: A orientação
dá-se junto ao educando ( ou grupo ) a partir da
demanda trazida pelo educador, discutindo-se a partir daí o caso concreto.
Trabalham-se possibilidades com o educando afim de
auxiliar sua escolha, a partir de informações sobre sua situação processual, providências
necessárias e quais os procedimentos adotados pela Fundação Projeto Travessia
para solucionar determinadas situações. Vale ressaltar que a orientação é dada
também a jovens que estiverem ligados ao grupo de educandos.
b.3). Acompanhamento: Ir junto a –
entender – unir: Trata-se da ação do advogado em ver e dar andamento ao
processo de cada educando, sistematicamente, bem como, proceder vistas
necessárias à família, nas unidades educacionais e até cadeias.
b.3.1). Acompanhamento a adolescentes em conflito com a Lei:
O acompanhamento inicia-se a partir do contato do educador com o educando, nas
ruas ou pelos outros Programas da Área de Defesa e o posterior encaminhamento
para o advogado, quando se inicia a fase de levantamento de informações processuais
para compor com os dados coletados pelo educador.
- Quando possível, inicia-se o trabalho na Unidade de
Acolhimento Inicial – UAI, que é uma unidade de internação provisória, até o
trâmite processual ser concluído. Sempre que possível, busca-se a comunicação
da família e / ou a participação do educador nas audiências.
- A visita do advogado é realizada em dupla com o educador e
depois podem-se alternar quizenalmente,
garantindo o fluxo de informação sobre a vida do educando na unidade e o
processo judicial.
- Todo o encaminhamento é discutido com a equipe da unidade,
bem como, a construção de um novo projeto de vida, que deve ser compartilhado
com o educando, assim, quando é pedida a progressão de medida em juízo, a
equipe responsável já está ciente e encaminha o relatório técnico integrado com
as ações do Travessia, que por sua vez, envia desde o
início relatórios de atendimento à equipe técnica. Além disso são realizados
contatos permanentes com as equipes dos Foruns.
- Mantém-se o acompanhamento familiar,
integrando esforços com a unidade para que este se mantenha e seja
incentivado, convocando-se a família para visitar e ser entrevistada. Nos casos
em que o contato é muito precário, busca-se fortalecê-lo para que a saída seja
mais efetiva. Contudo, há casos em que o retorno familiar é inviável a priori,
assim, busca-se parcerias com abrigos da rede para que
seja requerida a medida protetiva de abrigamento.
Também, busca-se retaguardas de saúde e outros
atendimentos necessários para o acompanhamento.
c). Documentação: São abordados direitos da personalidade,
deveres de cidadão, atributos legais para pleitear uma vaga em emprego,
necessidade de solucionar pendências processuais e as várias possibilidades
educativas decorrentes da escrita, da fala, leitura e cognição de regras
sociais elementares, a partir da busca de registros e ida a repartições
públicas pelo educando para providenciar sua documentação.
A PRÁTICA DA FUNDAÇÃO
Foi decidido pela Fundação que não seria possível atender
aqueles que não estivessem dispostos a arcar com sua situação processual e
saná-la para prosseguir as atividades, pois seriam eternos clandestinos
aguardando pela sorte de não serem apreendidos quando fossem retirar seus
documentos ou em arrastões ou mesmo a impossibilidade de freqüentarem os Foruns para terem acesso aos seus processos, pois a
política que ainda predomina é da repressão e recolhimento à FEBEM.
Caso fosse aplicada uma internação - sanção mantinha-se o
compromisso de acompanhá-los na FEBEM. Quando foi atendido o primeiro caso de
um adolescente que estava em busca e apreensão pela quebra de uma semi-liberdade, houve a necessidade apresentá-lo a Unidade
de Recepção da FEBEM, para depois ser marcada a audiência, apesar do Estatuto
dispor em seu artigo 111, sobre o direito a audiência com juiz, não se
utilizava este procedimento a priori.
Quanto a representação por advogados
da Fundação houve dificuldades, pois o Código de Menores dispunha que esta
seria por procurador nomeado pela família, esse entendimento ainda é muito
presente nas Varas Especiais, contudo, esbarra-se em dois problemas, o fato
desses meninos e meninas estarem muitas vezes com seus vínculos familiares fragilizados, sendo difícil encontrar a família no ato da
apreensão e outro de ordem legal pois o artigo 206 do Estatuto dispõe sobre a
legitimidade daqueles que tiverem legítimo interesse na lide, podendo ser
constituído em audiência ou por ato judicial. Alguns juizes aceitaram a
procuração outorgada pelo Diretor - Presidente da Fundação, outros constituíram
em audiência, outros nomearam os advogados como curadores e requereram a
outorga por familiares. Contra estas decisões foram interpostos agravos,
contudo, alguns ainda estão em andamento ou foram indeferidos após um ano da
audiência.
Outro ponto que dificultou o atendimento foi a proibição da entrada dos educadores da Fundação na FEBEM
sem autorização dos diretores. Por muitas vezes houve dificuldade em garantir
as visitas, contudo, aos poucos construiu-se uma
relação com o corpo técnico que auxiliava o trabalho facilitando o tratamento
ao educando, também abria-se um espaço para que fossem realizados trabalhos de
apoio. Sempre buscou-se garantir a reserva das
conversas e o trabalho educativo iniciado nas ruas, evoluindo para o apoio
sócio - familiar respaldado pela equipe técnica da Unidade da FEBEM.
Foi feito um investimento para que os educandos freqüentassem
a escola da Unidade e outras atividades que pudessem auxiliar em seu
desenvolvimento, mas ainda há dificuldade pois nem todas tem
Escolas e regularidade nas aulas. No curso da internação os educadores da
Fundação investem no aprendizado dos adolescentes, levando livros e revistas
para que possam aprimorar a leitura e escrita e reforçar a importância da
escola, principalmente, quando terminar a internação.
Paralelamente, buscou-se garantir que os educadores fossem
ouvidos em juízo e seus relatórios apreciados na decisão, contudo, um problema
enfrentado até hoje, principalmente nas Varas Especiais, é que cada juiz
procede discricionariamente, com forte herança da prática menorista.
Com o surgimento do DEIJ - Departamento das Execuções da
Infância e Juventude a situação melhorou sendo possível evoluir para a
apresentação do adolescente procedendo a oitiva,
acompanhado por educadores e a recondução à medida sócio-educativa anterior, em
alguns casos menos graves, sem internação sanção.
Também houve um avanço considerável na progressão de medidas
de privação de liberdade para medidas em meio aberto. A Fundação optou por
realizar um trabalho de acompanhamento sistemático junto aos técnicos da FEBEM,
investindo na progressão, sendo possível terem deferidas
algumas dessas solicitações, sem que fossem submetidas à equipe do Fórum, com
os relatórios da FEBEM e da Fundação, que escolheu requerer a progressão, sem
aguardar o vencimento dos meses para apresentação dos relatórios pela FEBEM,
com fundamento no artigo 121, par.2 e par.4 do Estatuto.
É possível observar que a maioria dos educandos não sofreu
maus-tratos físicos, mas uma realidade que não foi possível transpor foram os
castigos aplicados aos indisciplinados, como a
solitária ou retirada de benefícios como a leitura de livros ou outras
publicações que os educadores levam para os educandos poderem melhorar leitura
e a escrita.
É fundamental compreender que a FEBEM e as estruturas de
atendimento não serão eternas na vida do adolescente e a infração não integra
sua personalidade, assim é preciso problematizar constantemente esta situação e
prepará-lo para a saída e mudança de rumo, já que a ação educativa busca
transformar algo em suas vidas. Nesses casos, sair da situação de rua e romper
com o ciclo institucional pode representar uma nova possibilidade de vida, pois
muitos adolescentes utilizam a FEBEM como uma forma de moradia ou parte natural
de sua vida, desenvolvendo uma relação de dependência que é reforçada pela
instituição e pelo Judiciário que insiste em aplicar internações por tempo
indeterminado e em delitos de pequena gravidade, sob o fundamento da falta de
respaldo familiar ou avaliações nas quais os educandos tinham a vida
estruturada na prática delitiva.
As ações sempre se pautaram na aplicação da doutrina da
proteção integral apesar das condições das unidades da FEBEM, buscando garantir
a aplicação de medidas protetivas junto com as medida
sócio-educativa tanto na internação como na progressão ou extinção, a partir do
trabalho com a família e reinserção comunitária nos termos do artigo 19 e seguintes do Estatuto
e nos casos em que o retorno familiar era inviável no primeiro momento,
buscou-se o abrigamento, alguns foram encaminhados para tratamentos clínicos,
aplicando-se o que dispõem os artigos 112 IV, art.124, art. 98 e 101 da Lei
8.069/90. Em relação aos tratamentos clínicos, o que esteve em mais evidência
foi o tratamento psicológico, conjugado com a desintoxicação em alguns casos,
pois na grande maioria os adolescentes que faziam uso de crack
não manifestaram nenhum sintoma de abstinência e deixaram de usar drogas quando
inseridos numa atividade educativa.
É importante que as entidades envolvidas no atendimento
compartilhem dos mesmos princípios para que a complementariedade
das ações seja eficaz, concorrendo para uma prática de emancipação desses
educandos e suas famílias; também, na busca de soluções compreender que o
acesso à justiça é algo concreto e deve garantir o desenvolvimento de cada
educando considerando e melhorando suas condições de vida.
Neste sentido, os operadores da Justiça devem estar
respaldados por equipes interdisciplinares materializando o exercício da
cidadania, principalmente da população que vive um processo de exclusão social,
assim a nós advogados cabe a função de garantir audiências, a participação dos
familiares, o acompanhamento dos processos e a defesa técnica respaldada pela ações dos outros profissionais que podem implementar a
Proteção Integral, trazendo o universo do direito para a rotina dessas pessoas,
afim de que possam transpor as barreiras da exclusão exigindo um padrão mínimo
de dignidade em suas vidas.
·
Adriana
Palheta Cardoso - Gerente do Programa de Educação e Acesso ao Direito da
Fundação Projeto Travessia
Endereço: Rua Líbero Badaró, 741 - 9º Andar - Fone.: (0xx11)
3105-1059 - São Paulo - SP
Mais informações: http://www.travessia.org.br