Gustavo
Pereira Farah
Advogado, PR.
Existe
uma relação antagônica na sociedade brasileira, que se situa no campo de oferta
e procura de mão-de-obra. Ao mesmo tempo que se constata que o desemprego de
adolescentes e adultos alcança proporções avassaladoras, há no Brasil um
elevado índice de crianças trabalhando. Com efeito, questiona-se se a
eliminação do trabalho infantil do quadro nacional é não só necessária como possível,
sopesando-se a atual condição sócio-econômica do país.
Estas
observações nos fazem indagar primazmente se a totalidade do trabalho infantil
existente no Brasil poderia ser realizada por um adulto. A resposta a este
tópico desponta um resultado complexo.
Interessante
recordarmos de que toda e qualquer atividade laboral prestada por uma criança a
qualquer pessoa é considerada ilegal, pelo ordenamento jurídico brasileiro, e
realizada integralmente no setor informal do trabalho.
A
classe patronal brasileira é habituada em fraudar os direitos trabalhistas e
que não se tome esta afirmativa unicamente no sentido pejorativo, pois a crise
econômica que há muito castiga o país e a relevante onerosidade dos encargos
sociais contribuem para que esta situação se agrave. Em assim sendo e segundo
nosso raciocínio, as empresas de pequeno e médio porte vêm sido encaminhadas a
seguirem um destino com dois caminhos possíveis: ou são engolidas e somadas às
companhias multinacionais, ou se rendem à informalidade do mercado de trabalho,
à margem da lei e da tutela Estatal, para sobreviverem.
É
o crescente mercado informal brasileiro que serve de alicerce para afirmarmos
que, para a grande maioria dos brasileiros jovens e adultos, esta realidade de
trabalho se revela como única opção de renda.
À
“prima face”, por mais bizarro que possa parecer, o brasileiro está
“acostumado” e disposto a vender por uma quantia pecuniária irrisória sua força
de trabalho ao setor informal, pelo que se conclui que a informalidade laboral
costuma ser ponto comum do trabalho de crianças, jovens e adultos, sendo que
neste aspecto pode haver teoricamente a substituição irrestrita da mão-de-obra
infantil pelos trabalhadores legalizados.
Não
nos parece crível que haja atividades laborais praticadas por crianças no
Brasil que não possam ser realizadas por um adolescente ou adulto. A
preferência dada em alguns países subdesenvolvidos ao trabalho infantil, sob o
argumento de que a criança teria “nimble fingers”, ou seja, mãos próprias para
a prática de determinadas tarefas, tem provado não se justificar, segundo
apontam os recentes relatórios da OIT e IPEC[1]
.
A
dificuldade da substituição da mão-de-obra do infante pela do adolescente ou
adulto é encontrada na característica que denominamos de imediatismo do
trabalho infantil. Por esta definição entende-se a aplicação do trabalho
infantil para satisfazer uma necessidade imediata. É a preferência do uso e
exploração da criança com relação ao trabalho que poderia vir a ser desenvolvido
por um jovem ou adulto, pelo barato custo e maleabilidade da execução das
atividades que ela oferece a um estabelecimento de comércio informal ou
agrícola, e pela subordinação e afinidade para com os pais ou responsáveis.
O
imediatismo se faz presente, por geralmente residirem as crianças próximas ao
local de trabalho, serem de fácil acesso e necessitarem da contraprestação
pecuniária que, quando muito, lhe pagam, e esta característica costuma impedir
a troca do labor infantil pela do adolescente ou adulto, pela escassa oferta de
emprego. Não há o hábito de, antes que se contrate ou simplesmente tome uma
criança para executar uma atividade laboral, divulgar a oferta do trabalho a
quem legalmente possa executá-la, pois lhe é dada a preferência, pelas razões
supracitadas, e com ainda mais ênfase se é o trabalho realizado no âmbito
doméstico.
Ainda, pelo interesse que há das próprias
crianças que pertencem às categorias mais pobres da sociedade em adentrarem e
se manterem no mercado laboral, gera-se uma procura destas pelo trabalho, que
se auto-substitui, dizimando-se o espaço às pessoas autorizadas por lei para
trabalhar.
Ao
contrário do que pudemos observar da atividade infantil de cunho laboral
praticada de forma sistemática, gradual e planejada, em alguns países
desenvolvidos, excluindo-se da proteção estatal o apontado trabalho praticado
por crianças imigrante ilegais, nestas nações, é fato que no Brasil se faz
naturalmente presente a não-escolarização e mesmo a desescolarização do infante para ingressar ao
mundo do trabalho.
A realidade brasileira mostra que o trabalho
infantil não é educativo e tampouco tem esta pretensão, mas sim uma crua
exploração. A obscuridade do trabalho informal dá amplas chances de se utilizar
indiscriminadamente a mão-de-obra infantil. Chances estas que, pelo noticiário
da mídia e entrevistas concedidas por menores, são efetivamente aproveitadas.
A
eliminação do trabalho infantil se confunde muitas vezes com a eliminação da
pobreza, desafio no mínimo ousado para a atual capacidade da economia e
política nacional em resolver o problema.
Questiona-se
se a política e cultura brasileira zelam pela dignidade e estudo da criança.
Não obstante exista uma manifestação abundante e ativa que se insurge pela
erradicação do trabalho infantil em prol da escolarização da criança, há por
parte do governo brasileiro uma falta de incentivo concreto a este movimento,
que culmina com a diminuição e cortes de verbas destinadas à educação pública,
como tem ocorrido recentemente, sob a alegação de falta de recursos.
Quanto à cultura da sociedade brasileira,
ainda há o forte encorajamento do trabalho infantil por parte de grandes grupos
sociais e da mídia. O declarado apoio ao labor da criança se faz à mostra
inclusive por parte de uma das importantes emissoras de televisão do país, que
instiga diariamente a sua prática, contra a tendência e pressão abolicionista
internacional.
Com
relação a este tópico, há ainda o problema em valorar a educação, por parte da
cultura da própria criança pobre brasileira que, quando porventura consegue
trocar sua força de trabalho por um montante pecuniário qualquer, prefere receber esta soma em dinheiro à
exclusiva atividade escolar ou a assistência de uma das inúmeras casas de
caridade existes no país.
A
estrutura do mercado de trabalho brasileira é propícia à utilização do trabalho
da criança, pois grande parte da economia brasileira é oriunda da atividade
comercial informal. O mercado informal, por não cadastrado e comumente não
fiscalizado, por difuso e flexível quanto à possibilidade de esconder ou
afastar dos olhos da lei suas mazelas, tem na barata e muitas vezes gratuita
mão-de-obra infantil uma solução imediata para sua sobrevivência.
É verídico que a forte heterogeneidade das classes sociais na realidade brasileira e a pobreza que a origina são fatores fundamentais ao surgimento e proliferação do trabalho infantil no país, paralelamente à informalidade estrutural do mercado de trabalho brasileiro já mencionada, que serve como incentivo e campo fértil para que esta atividade se desenvolva. Cuidemos agora desta forma da análise das duas primeiras hipóteses aqui referidas, que têm nas raízes brasileiras trajetórias marcantes.
Não
obstante situar-se entre as dez maiores economias do mundo e ser considerado o
país mais rico da América Latina, o Brasil é reconhecido internacionalmente
como um dos países de pior distribuição de renda do planeta.
A
nação brasileira tem a impressionante e triste característica de acomodar em
seu território cidadãos divididos em dois grupos: os dos pobres e miseráveis e
o dos ricos e emergentes, sendo o primeiro imenso, e o segundo, minoria.
No
Brasil as virtudes e intempéries do regime capitalista são bem visíveis pois,
distante da homogeneidade de uma nação que imponha uma política de esquerda,
ainda que não se discuta aqui qualquer padrão de vida da sociedade de quaisquer
destas nações, vê-se surgir um quadro social absolutamente díspar, donde os
dois lados de uma mesma moeda convivem em uma mesma comunidade, sendo esta uma
das principais justificativas ao altíssimo nível de criminalidade que atemoriza
o país.
Antônio
Gomes da Costa[2] denomina o fenômeno
da divergência econômica de classes sociais brasileiras de “apartheid social”, justificando para
tanto que
“o povo
brasileiro está hoje dramaticamente dividido entre cidadãos e subcidadãos.
Desemprego, subemprego, subnutrição, submoradia, analfabetismo e
semi-analfabetismo são manifestações de uma única e mesma realidade
político-social: a subcidadania. No interior desse quadro, a não-escolarização
e a desescolarização precoce das crianças e o seu ingresso no mundo do trabalho
abusivo e explorador é um fenômeno revestido de uma trágica naturalidade”.
Não
há a expectativa e tampouco possibilidade de mudança ascendente de classe
social, salvo esporádicos casos, que muitas vezes são noticiados pela mídia.
Desta forma, o estado de pobreza absoluta ao qual se sujeita quase 45% da
população brasileira, concentrada no Norte do país, não só é tendente a
estratificar-se, como a piorar, considerando-se o incessante crescimento
demográfico do país, bem como o círculo vicioso formado nesta situação.
O círculo
vicioso se faz presente, pois os trabalhadores pobres recebem um salário muito
baixo devido ao fato de possuírem insuficiente ou nenhuma instrução e, como os
mesmos não têm tempo ou oportunidade para o estudo, permanecem ganhando pouco,
e cada vez menos, com o crescimento da oferta de mão-de-obra mais e mais
barata. A desqualificação do profissional o encaminha a empregos periféricos e
indignos.
Feita
esta exposição, afirma-se que o labor infantil está concentrado nas categorias
sociais mais pobres do país e, devido a esta situação, pode-se dizer que as crianças
que trabalham vivem em grupos marginalizados pela sociedade brasileira, já que
a situação financeira destas as deixam à margem da cidadania.
Um
fator importante que se soma ao proletariado infantil e o prolifera é a cada
vez mais abundante presença de imigrantes ilegais dentro do território
nacional, principalmente advindos de países mais pobres da América Latina e em
virtude da ainda longínqua promessa de um mercado de trabalho mais acessível,
face ao desenvolvimento do Mercosul.
A
imigração ilegal está direcionada a desafortunadamente agravar a disparidade
econômica social brasileira, por ser destinada a adicionar-se às camadas mais
baixas da sociedade e, por conseqüência da condição de vida humilde que são
obrigados a suportar, direciona as crianças que provêm deste movimento ao
desprotegido setor informal do trabalho.
Embora
a existência do trabalho infantil tenha suas raízes na má distribuição mundial
de riquezas, na fome, no tratamento das minorias sociais, em relação a
imigrantes, mulheres e crianças, na educação e na estrutura econômica dos
países, é verídico afirmar que estes fatores têm intima ligação com a pobreza,
sendo aquelas causas geralmente desta oriundas, quanto mais ao observarmos que,
no Brasil, as crianças de classe média e alta não trabalham.
A
falta de recursos econômicos mínimos para a subsistência familiar faz de
diversos Estados brasileiros, especialmente os localizados no Norte e Nordeste
do país, berço para que a atividade laboral da criança se prolifere.
A
ligação entre a pobreza e o trabalho infantil é evidente no quadro
sócio-econômico brasileiro. Esta atividade exploratória está integralmente
concentrada nas classes sociais mais baixas da sociedade.
Deste
panorama podemos extrair que a pobreza se relaciona ao trabalho infantil de
forma inversamente proporcional à relação da escolaridade e a renda.
Considerando-se que a pessoa pobre se vê
obrigada a utilizar e oferecer a mão-de-obra dos filhos menores de idade para
sobreviver, que inevitavelmente permanecerão sob esta condição precária de
vida, é de grande valia a observação de Ricardo Paes de Barros e Eleonora Cruz
Santos[3], no sentido de que
“o trabalho precoce tem sido apontado, e
portanto combatido, como sendo um dos mecanismos de transmissão intergeracional
da pobreza. Argumentos nesse sentido baseiam-se, necessariamente, em duas
relações causais: primeiro, é necessário que a pobreza familiar seja uma das
causas da entrada precoce de menores no mercado de trabalho; segundo, é
necessário que a entrada precoce no mercado de trabalho seja uma das causas da
pobreza futura desses menores”.
3.
Perspectiva de futuro
Através
dos mais variados veículos da mídia, é visível que a comunidade internacional
está tomando conhecimento das campanhas em prol da prevenção e reprovação ao
trabalho infantil, que estão sendo hoje tomadas no Brasil.
Ainda que não se discuta a origem das procedências que estão sendo tomadas – se a busca pelo extermínio do trabalho infantil é fruto da legítima defesa dos direitos humanos ou de tensões políticas internacionais oriundas de cláusula e “dumping” social - é seguro afirmar que setores políticos do país assumiram a responsabilidade de erradicar por completo o uso da mão-de-obra de suas crianças do território nacional, ainda que a preocupação iminente seja eliminá-lo nas suas piores formas.
Deste
modo, põe-se em discussão se a eliminação do trabalho infantil é possível, e
ajustável à era do terceiro milênio que se aproxima, considerando-se a hodierna
situação sócio-econômica brasileira.
Salientamos
que a erradicação desta problemática é possível, porém a realidade do país adia
a concretização desta idéia a um futuro incerto, pois não há todavia uma
estrutura que possa sustentá-la, já que os abismos sócio-econômicos impedem uma
ação interinstitucional coordenada do Poder Executivo.
Ocorre
que a atual condição cultural e econômica da sociedade brasileira mostra que
esta ainda não assimilou a preocupação da comunidade global, e pelo estado de
miserabilidade no qual vive o trabalhador mirim e seus familiares, não possui
sequer condição para relevar sua atitude, face à necessidade de sobrevivência
que normalmente circunda esta prática.
Assim,
concentremo-nos na proposta oferecida pelo governo brasileiro para se adequar a
qualidade de vida das suas crianças aos padrões mínimos que a sociedade e
organizações internacionais possam conceber.
Como
a distribuição mais justa de renda e de
bens como solução na incidência do trabalho infantil é uma proposta genérica, pois
não se vislumbra uma alternativa eficiente e imediata para a quebra do círculo
vicioso da pobreza, o Estado nacional optou por concentrar suas forças na
efetiva extinção da força de trabalho do infante como alternativa de elemento
de produção ao mercado informal brasileiro.
Para
tanto, o poder legislativo brasileiro proibiu o trabalho infantil em toda e
qualquer modalidade. Ocorre que a simples proibição desta prática pode vir a
ser inoperante, se este ato não desencadear uma reação que a justifique e
tampouco vir acompanhada da sanção que a faça prevalecer.
A reação que justifica a proibição do labor
infantil é, para o governo brasileiro, a extração de todas suas crianças do
posto de trabalho, para incluí-las nas escolas públicas brasileiras – partindo-se
da premissa de que, por trabalharem, estes menores vêm naturalmente das mais
baixas classes sociais, e por isso seus tutores são impossibilitados de arcarem
com os custos dos estabelecimentos de ensino particulares.
Porém,
não há no Brasil escolas públicas suficientes para acolherem todas as crianças
economicamente menos abastadas. Pelo quadro atual do país, a troca do trabalho
pelo estudo obrigatório gratuito é uma promessa que não se concretiza.
Quanto
à coerção que o Estado exerce sobre quem pratica o trabalho infantil,
observa-se que esta praticamente não se faz presente, visto que, se não recair
o abuso da criança em qualquer conduta penal prevista, o uso do trabalho
infantil não ultrapassará o campo da infração administrativa com alguma repercussão
de ordem civil. A proibição do trabalho infantil é uma lei repressiva que não
se faz cumprir.
O
Estado brasileiro proíbe o trabalho infantil, mas não realiza nenhuma medida
concreta, repressiva e centralizada para coibi-lo, e portanto este se desenvolve
à margem da lei e, pior, apoiado em todo um ambiente complexo que o preserva. O
comprometimento do Governo do Brasil de erradicar o trabalho infantil recai
sobre uma estrutura social, política, econômica e cultural despreparada para
assimilar esta problemática que, por este motivo, só o desmoraliza. Não há um
elemento de ligação entre a proposta governamental e a realidade
brasileira.
Ainda
que tenha o Estado determinado que a fiscalização do uso do trabalho infantil
será efetuada pelos Auditores-Fiscais, nota-se que estes atualmente não
ultrapassam de um número escasso de funcionários que são incapazes de
inspecionar todo o território nacional e, quando são obrigados a agir, não
tomam as medidas repressivas necessárias, porque elas não existem.
Diante da impotência da repressão Governamental contra a atividade que prometeu combater, a mobilização se traduz pela implantação de programas de combate ao trabalho infantil, que se revela privilégio das poucas crianças que conquistam o benefício da bolsa-escola.
Os
programas em prol da erradicação do trabalho infantil, implantados pelo
Governo, grupos empresariais, instituições internacionais e ONGs, são sem
dúvida úteis e nobres, para quem deles se beneficia, mas não suficientes para
se conquistar o objetivo que se almeja, pois não só auxiliam apenas uma pequena
facção das crianças trabalhadoras, como por pouco tempo, já que o fornecimento
das bolsas é provisório, o que prejudica e em muito a readaptação do menor ao
estudo, quando sua família deixa de receber o auxílio monetário.
Portanto,
se faz necessário que se enfatize o combate ao labor do infante, para que a
proibição a esta atividade ultrapasse o patamar meramente teórico. Se o
trabalho infantil é proibido, deve-se reprimir sua prática. Se a educação
básica é compulsória, a reabilitação da criança trabalhadora ao estudo
obrigatório deve ser igualmente compulsória.
Mas
a crua e imediata repressão ao trabalho da criança, que se prolifera no país,
pode se mostrar autoritária, se não existir uma reeducação na estrutura
nacional, que atualmente é propícia e encoraja esta atividade.
Pode-se afirmar que o Estado brasileiro tomou para si
a responsabilidade de exterminar o trabalho infantil e, para tanto, está
gradativamente tomando medidas legais e técnicas, porém lentas e desconectas ao
compromisso que assumiu.
1) Publicados no site da internet:
www.ilo.org.
2) COSTA,
Antônio Gomes da. O Estatuto da Criança e
do Adolescente e o Trabalho Infantil.
São Paulo: LTr, 1994.
3) BARROS, Ricardo
Paes de; SANTOS, Eleonora Cruz. Crianças
e Adolescentes no Brasil Urbano dos Anos
80. São Paulo: Cortez Editora, 1992.