REPENSANDO A CRIANÇA E O ADOLESCENTE COMO VALOR DE TROCA: A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

 

 

Maria do Carmo Brand Carvalho[1]

Professora doutora da Pontifícia Universidade Católica.

 

 

Introdução

 

Esse trabalho propõe-se a refletir sobre a política de assistência social e suas interfaces com a política mais ampla de proteção à criança e ao adolescente, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA (Lei 8.069/90).

 

O ECA é uma proposta consagrada em lei, que altera radicalmente o modo do Estado, da sociedade e da família relacionarem-se com a criança e com o adolescente.

 

Em verdade, representa uma utopia posta em movimento, em direção a um forte compromisso de toda a sociedade brasileira com a produção de homens plenos da humanidade.

 

Com o ECA, a criança e o adolescente são percebidos como valor na caminhada de uma humanidade que se quer humanizada. Nessa direção, a criança e o adolescente não são mais peso, sobrecarga, dever do Estado ou da família. Recupera-se a criança como fonte de prazer e da continuidade do humano para toda a sociedade.

 

A criança ou o adolescente não são mais “valor de uso”, ou “valor de troca” ou braço para o futuro, mas valor-hoje. Para o ECA. as crianças e adolescentes são indivíduos plenos de direito de desenvolver todas as suas potencialidades, plenos de cidadania, de respeito, objetos do compromisso da sociedade, do Estado, da família.

É preciso apostar nesta utopia: criança prioridade absoluta de todos nós, brasileiros.

A assistência social enquanto proposta do ECA

 

Para compreender o papel da política de assistência social no ECA é preciso inicialmente compreender o significado e a abrangência da política pública de assistência social no Brasil.

 

A assistência social ganha status  de política pública explícita com a Carta Magna de 1988, na qual é inserida como uma das ações da Seguridade Social.

 

Um período efervescente de reflexões e lutas ocorreu nas décadas de 80 e 90 quando da elaboração e propositura da lei orgânica  da assistência social, que regulamenta o capítulo a esse respeito na Constituição Federal.

 

O veto presidencial à lei votada pelo Congresso Nacional, bem como as antigas e recentes denúncias de corrupção e o uso clientelístico desta área, mantêm, em 1991, a assistência social na pauta de debates das organizações da sociedade civil, dos políticos, dos trabalhadores e dos cientistas sociais.

 

Assim a assistência social ganha novos interlocutores políticos, que exigem não apenas reflexão sobre o tema, mas também um status político desta área de ação governamental que a eleve a um patamar de qualidade mais alto.

 

O que não é assistência social

 

Infelizmente, muitos trabalhadores sociais, parlamentares, agentes governamentais e agentes da sociedade civil percebem a assistência social como uma prática caritativa, assistencialista, como uma benesse ou favor aos fracos, pobres e destituídos. Neste sentido não a percebem nem como política, nem como dever do Estado.

 

A assistência social ficou caracterizada, assim, como uma ação voluntarista, casuística, espontaneísta, dependente dos esforços de solidariedade da sociedade civil. Como conseqüência, uma imensa rede de obras sociais e de entidades não governamentais foi gestada para responder, desta forma, aos apelos dos necessitados.

 

Outro erro de entendimento leva à percepção da assistência social como "coisa das mulheres que têm coração e não do governo que tem razão" [2].

 

Outro erro consiste em entender a assistência social como assistencialismo. O assistencialismo é um modo de tratar os mais fracos, os mais necessitados, os pobres, os despossuídos, que implica uma postura paternalista, tutelar, enfim, no autoritarismo disfarçado que dispensa favores e não reconhece direitos. O assistencialismo não está impregnado apenas na política de assistência social, mas também em todas as políticas públicas.

 

O termo utilizado pelo governo Collor - "os descamisados" - é um "mote" que bem expressa a postura assistencialista impregnada na ação governamental, quando dirigida aos segmentos populacionais em situação de pobreza.

 

Para estes segmentos - parcela majoritária da população brasileira - a palavra Direito é ainda uma ficção: para os destituídos não há direitos, há apenas um acesso regulado a algumas ações compensatórias.

 

O destituído ou desassistido não tem direito à saúde, mas acesso ao pronto-socorro hospitalar enquanto indigente, tratado emergencialmente e depois deixado à sua própria sorte.

 

O destituído não tem direito à educação, mas acesso a uma escola, que trata de expulsá-lo na medida em que o submete a um programa curricular que o leva à reprovação e à evasão.

 

O destituído não tem direito à habitação, mas acesso ao barraco da favela, ao cômodo de cortiço, à palafita; desejando serviços urbanos, como luz, água, abertura de ruas, saneamento, terá que fazê-lo através de "românticos" mutirões apoiados pelo Estado enquanto administrador de favores.

 

Enfim, os destituídos e descamisados não têm direitos, pois direito só existe efetivamente quando o Estado e a sociedade assumem o dever de equalizar e universalizar o acesso a bens, serviços e riquezas da nação.

O que é assistência social

 

A assistência social é uma política pública, um direito dos cidadãos e dever do Estado. Conforme definição proposta em projeto da lei orgânica da assistência social: "É a política que provê a quem necessitar benefícios e serviços para acesso à renda mínima e ao atendimento das necessidades humanas básicas historicamente determinadas''.

 

Esta política social pública tem um recorte especifico: destina-se aos segmentos da população que se encontram em situação de pobreza, exclusão, destituição.

 

Como a maioria da população brasileira se encontra nesta situação, no que toca ao acesso a bens, serviços e riquezas gerados pela nação, esta política, ou assistencialismo, limita-se a minorar a pobreza, ou pode ser altamente estratégica e fundamental num projeto político de erradicação da pobreza.

 

É nesta última direção que nossa reflexão se propõe explicitá-la.

 

a) Assistência Social "Stricto Sensu

Em sentido restrito, a assistência social constituiria um substitutivo do salário e não um salário indireto, como os serviços sociais ofertados pelas demais políticas sociais.

 

É nesta perspectiva que muitos vêem na assistência social uma política voltada aos "sem renda", destinando a eles cestas alimentares, auxílios os más diversos, em espécie ou financeiros.

 

Ocorre porém que ante o grau de pobreza da população brasileira ampliam-se os demandatários por auxílios e usufruto de serviços sociais, acrescendo ao campo da assistência social, além da função de distribuidora de auxílios financeiros substitutivos do salário, a função de distribuidora de serviços sociais (segundo Sposati, 1991).

 

b) Assistência Social "Lato Sensu''

Assim, essa política vem construindo, historicamente, urna extensa rede de serviços aos excluídos ou pobres: creches, asilos, albergues, centros de atenção ao deficiente, ao garoto de rua, etc. Retomando a história da LBA, vamos verificar que os programas assistenciais mais enfatizados na época de sua criação, em 1942, eram os de assistência materno-infantil. Foram então construídos por ela, para a população chamada carente, maternidades e serviços de atenção à saúde da criança, hoje incorporados pelo Sistema Único de Saúde. Também foi a FLBA que introduziu a chamada merenda escolar, hoje presente em todas as escolas públicas, sendo tal beneficio gerido pelos próprios órgãos responsáveis pela Educação.

 

Desejaria agora fazer alguns destaques.

Quando determinados serviços geridos pela política de assistência social ganham visibilidade como necessidade e direito de todos, a tendência é que passem a ser geridos pelas políticas públicas setoriais competentes

.

O exemplo mais atual é o do chamado serviço-creche. Na medida em que a creche é vista como necessidade e direito, a recomendação constitucional é de que este serviço seja transferido para a área de Educação.

 

A política de assistência social tem, assim, no Brasil, um papel processante dos serviços das demais políticas sociais (saúde, educação, habitação) e igualmente processante no reconhecimento dos direitos junto a nossa população destituída.

 

Outro destaque importante é que a assistência social, sendo uma política pública voltada aos excluídos, assume um caráter conjuntural, ou seja, ela é urna política com flexibilidade para assumir as novas demandas conjunturais que se colocam a ela na atenção à pobreza.

 

Nesse sentido, vale destacar que é através dessa política que chegam hoje às populações - sob o signo da pobreza e exclusão - água potável, energia elétrica, urbanização de favelas, melhoria de cortiços, etc. É também através dessa área de ação que se financiam programas de geração de renda, socializam-se tratores para pequenos agricultores, formam-se cooperativas de pescadores, etc.

 

Strictu sensu, a política de assistência social guarda, de certa forma, um vínculo com a previdência social já que, neste caso, funciona como um substitutivo do seguro social[3].

Também strictu sensu aparece como o pronto-socorro social nas emergências individuais ou coletivas, como é o caso de calamidades públicas que deixam a descoberto comunidades inteiras.

 

Latu sensu, a política de assistência social, considerando o contexto do Terceiro Mundo, deve ir além e estar presente em todas as políticas públicas, constituindo, de certa forma, um vínculo com a previdência social, já que, neste caso, funciona como um substitutivo do seguro social[4].

 

Enquanto as demais políticas têm um corte setorial (saúde para todos, educação para todos), a assistência social tem um corte horizontal, atravessando todas as políticas para um usuário especifico: o excluído do acesso normal a bens, serviços e riquezas geradas na sociedade.

 

Nessa condição, a assistência social no Brasil toma a forma de espaço de produção paralela de atenção aos destituídos, cabe a ela a função de administração terminal das políticas públicas. junto às faixas populacionais excluídas de seu acesso "normal". Em outras palavras, todas as políticas públicas devem ter uma fatia assistencial.

 

Esta constatação relativa ao ambiente de ação da política de assistência social nos indica dois modelos diferentes quanto à sua forma de inserção:

1) Inserção em cada uma das políticas públicas, cada política setorial, desde que pretenda incluir os segmentos mais pauperizados, comporta uma fatia assistencial como mecanismo de distribuição de seus serviços às camadas excluídas;

 

2) Inserção paralela às demais políticas públicas em geral. Esta última tem sido a forma preferencial da política de assistência social no Brasil; e provavelmente permanecerá assim ainda por muito tempo, dado o grau de exclusão a que está submetida uma parcela preponderante da população. Temos (e continuaremos a ter) secretarias de assistência social ou promoção social, órgãos federais, estaduais e municipais específicos para realizar a assistência social. Uma conseqüência desse modo de inserção da assistência social é que acabamos por realizar um governo paralelo da pobreza.

 

Esse governo paralelo assume no Brasil as características perversas que já conhecemos: um governo marginal ou secundário para os despossuídos ou "descamisados".

 

Essas características são perversas porque a assistência social acaba se constituindo no grande freio à inclusão social mais ampla na medida em que a inclusão, num órgão paralelo, assume um caráter clandestino, pontual e pouco visível na ação global do governo.

 

Também, enquanto governo secundário, cristaliza-se uma distributividade de serviços e benefícios com padrões de qualidade, cobertura e controle da mesma maneira desiguais, se comparados aos padrões utilizados para os demais segmentos da população.

 

Especificando esta questão dos padrões desiguais diríamos que:

- Não há padrões de qualidade garantidos quando se referem a serviços para os excluídos. Fala-se mesmo em ilhas de qualidade ou em experiências-piloto jamais universalizadas;

- A ausência de controle social dos usuários é, em si, substantiva para se compreender a opacidade da política de assistência social quanto ao seu significado e a sua abrangência. Em resumo, os programas e serviços destinados às populações de menor renda fogem às avaliações das ações do Estado e ao controle social da sociedade civil. Dar o seu grau de marginalidade e seu teor discriminatório.

 

Esta falta de controle conduz a resultados aleatórios: pode ser excelente quando os agentes e usuários se valem da sua ausência para inovar e adequar competentemente programas e serviços às demandas e necessidades concretas; pode ser catastrófica quando a ação é levada amadoristicamente ou de forma castradora e tutelar.

 

Não havendo controle social não há garantia, nem de qualidade, nem de continuidade, nem tampouco de sua apropriação pelas camadas populares. O serviço prestado é público (mesmo quando realizado por uma entidade não governamental via convênio), no entanto, dada a ausência de controle social, sua apropriação é privada, capitalizada pela própria entidade convenente, pelo missionarismo religioso, pelos partidos políticos, pelo populismo governamental e pelo fisiologismo político.

 

Outra questão importante é a direção ou o significado que a política de assistência social pode tomar. Esta é uma política compensatória no trato da exclusão e, numa sociedade capitalista, jamais a exclusão ou a pobreza são suprimidas totalmente.

 

Assim, a assistência social toma duas orientações: compensatória e de ajuda assistencialista.

 

É preciso compreender este "compensatório". Como o próprio termo sugere, ele pode significar compensação das perdas que o trabalhador brasileiro acumula devido aos baixos salários e à exclusão ao usufruto de bens e serviços.

 

A assistência social pode, assim, ser entendida como um campo de reposição de perdas e de redistributividade de renda, bens e serviços quando opera na direção da restituição da cidadania e na eqüidade de resultados e quando impõe mecanismos de deslocamento de renda dos ricos para os pobres.

 

Ao entendermos a assistência social no mínimo como compensatória e como repositora de perdas, fica claro que essa compensação é de responsabilidade do capital e do Estado.

 

Ao entendermos distributividade de serviços e benefícios como assistencialista, a responsabilidade é do assistido e não resultado de estruturas espoliativas e excludentes; além disso, sua irresponsabilidade deve ser tutelada.

 

A questão anterior nos remete a outra questão fundamental na cultura brasileira: a cultura do apadrinhamento/subalternidade. Temos arraigada, no povo brasileiro, a consciência do favor e não a consciência do direito. Daí o espaço para o assistencialismo.

 

Enquanto área estratégica no combate à exclusão, a política de assistência social não pode trabalhar apenas a distributividade de serviços, mas também a questão de subalternidade. Isto é, a assistência social deve processar o reconhecimento do direito.

 

Para finalizar, gostaria de apontar para outras duas questões também centrais em nosso debate.

 

A primeira se refere ao estado de bem-estar social ou estado assistencial, tão comentado entre nós.

 

Estamos vivendo um novo momento do processo de acumulação capitalista.

 

O estado de bem-estar social teve vigência no período pós-guerra quando os pensamentos fordista e keynesiano sustentavam um pacto social entre a classe trabalhadora, o Estado e a burguesia.

 

O cenário da pós-modernidade capitalista é bastante diferente.

 

Desde o final da década de 70 este pacto vem se quebrando, reduzindo em muito as garantias do estado do bem-estar social.

 

A crise fiscal do Estado, as crises próprias ao processo de acumulação capitalista, as novas tecnologias poupadoras de mão-de-obra, a distância mais acentuada entre o norte e o sul e outros tantos fatores estão a produzir um novo perfil e um novo papel do Estado, assim como a revitalização da rede de solidariedade da sociedade civil para fazer frente às demandas de seguridade social.

Outro dado fundamental é que a reforma do Estado tem se encaminhado para uma descentralização dos encargos e serviços sociais necessários à reprodução social dos cidadãos. O princípio da municipalização é "chave" neste novo projeto do Estado. Por isso mesmo é irreversível. Este princípio, tão decantado como avanço democrático (e o é, sem dúvida!), introduz um módulo de negociação flexibilizadora por parte do Estado, permitindo, ao mesmo tempo, o descarte de responsabilidades da instância governamental central no que range às políticas públicas, repassando-as para os municípios e para as coletividades locais. Tanto é assim que já se fala em "municípios-providência" e "coletividades-providência".

 

O Estado, dessa forma, cria novos mecanismos de custeio das políticas públicas, ao mesmo tempo em que, chegando mais próximo das coletividades locais, se confunde com a própria sociedade civil.

 

É assim que hoje se busca claramente uma parceria entre estado-providência e sociedade-providência.

 

Outro tema anual diz respeito às organizações não governamentais, as chamadas Ongs.

 

No Terceiro Mundo, em particular no Brasil, sem dúvida as Ongs são básicas na sustentação das políticas públicas quando dirigidas às camadas populares. No Brasil, as Ongs têm, hoje, um recorte bastante diversificado. Não é possível mais falar tão simplesmente em entidades benemerentes como a carta constitucional expressa. As entidades benemerentes são no Brasil uma fatia bastante limitada das Ongs.

 

As Ongs guardam hoje extremas diferenças. Elas também se modernizaram e se democratizaram. Temos Ongs de base transclassista, mas também entidades não governamentais de base popular.

 

Temos entidades progressistas e conservadoras. Temos também entidades benemerentes, mas grande parte das chamadas entidades filantrópicas apresentam hoje menos um perfil filantrópico e mais um perfil de empreendimento social, cuja racionalidade e custeio advém do Estado concedente de base capitalista (por exemplo, as APAES).

 

Conclusões

 

A) O Campo da Assistência Social

O campo da assistência social no Brasil de hoje tem recorte bastante claro. Por isso mesmo propõe-se um agrupamento dos serviços nesta área em: benefícios continuados, benefícios eventuais, serviços assistenciais e programas e projetos.

 

- Os benefícios e a prestação continuados visam assegurar o acesso à renda mínima em caráter subsidiado (auxílio-idoso, auxílio-deficiente).

- Os benefícios eventuais e temporários são aqueles destinados a suprir necessidades circunstanciais de assistência e sobrevivência de cidadãos e famílias em situação de alta vulnerabilidade (auxílio-doença, auxílio-funeral, auxílio para reposição de perdas fundamentais...).

 

- Os serviços assistenciais incluem a produção, a gestão e a manutenção de rede de serviços e equipamentos sociais destinados à proteção e à capacitação de grupos populacionais em situação de pobreza ou risco social.

 

- Os programas e projetos assistenciais envolvem a transferência de meios e capacitação a grupos populacionais em situação de pobreza para melhoria das condições gerais de sobrevivência e elevação da qualidade de vida (programas de geração de renda, acesso a infra-estrutura urbana...).

 

b) O ECA e a Política de Assistência Social

O ECA permite, pela sua forma de explicitar e garantir os direitos da criança e do adolescente, inserir a política de assistência social em cada uma das políticas e no conjunto delas, enquanto proposta política de desenvolvimento integral e articulado da criança e do adolescente, situados e datados numa família, numa comunidade, num território social especifico: o município.

 

Falando de forma mais clara: no ECA, a fatia assistencial está incorporada a cada uma das políticas públicas com um objetivo claro: garantir a todas as crianças e a todos os adolescentes uma inclusão igualitária nos serviços derivados das várias políticas locais.

 

Assim, se a criança e o adolescente apresentam dificuldades na obtenção do sucesso escolar ou encontram dificuldades para a sua permanência na escola, aí está a assistência social para produzir programas, serviços, benefícios que, articulados à escola, garantam a eliminação destas dificuldades.

 

A merenda escolar é, por exemplo, uma fatia assistencial já incorporada na política de Educação.

Os programas sócio-educativos voltados às crianças de 7 a 4 anos, geridos pela área de assistência social, em geral isolados e pouco articulados com as dentais políticas, não erradicam a pobreza - apenas minoram.

 

Esses programas, se se deseja erradicar a pobreza, devem estar aliançados com serviços básicos, por exemplo, a Escola. A demanda de crianças e adolescentes por estes programas não devem partir simplesmente da comunidade ou da mãe que trabalha fora, mas deve vir da Escola: não criar um programa apenas para tentar impedir que a criança fique na rua. Os programas assistenciais devem estar articulados a uma ou mais políticas públicas locais que dêem consistência e produzam resultados estratégicos na alteração das condições gerais de vida e na alteração do destino singular e coletivo dessas crianças, de tal forma a não reproduzirem as condições de exclusão a que seus pais e comunidade estão submetidos.

 

A partir desse exemplo, desejaria reforçar que:

- A política de assistência social deve se compor com as demais políticas públicas, garantindo a universalização da atenção e a equalização de resultados;

- A saúde comporta uma fatia assistencial se quiser romper a desnutrição, por exemplo;

- A política de saneamento básico não chega às favelas, cortiços. A assistência social deve caminhar junto, fazendo chegar luz, água potável, escoamento das águas servidas, etc. Isso garante a universalização do acesso a serviços indispensáveis às condições de vida em patamares de humanidade;

- Da mesma forma, no campo, uma política de produção de alimentos e reforço a pequenos agricultores comporta uma fatia assistencial, de tal modo que se possa subsidiar condições mínimas de produção e sobrevivência: socializa-se tratores, orienta-se a produção, garante-se sua distribuição e comercialização.

 

Nessa altura é preciso ressaltar que o que foi dito neste artigo não implica na desativação das Secretarias Municipais de Assistência Social, mas exige, sem dúvida, que os serviços de assistência social sejam gestados como interfaces das demais políticas e assumidos / desenvolvidos conjugadamente com elas.

 

Sobram finalmente duas questões:

1) Qual o papel do poder público local e das entidades não governamentais que atuam tradicionalmente neste campo?

2) Qual a relação público/privado?

No que diz respeito a essa última questão há, sem dúvida, que se alterar radicalmente os hábitos e costumes vigentes entre nós no que se refere à relação do público com o privado.

 

Notas

[1] Prof. Doutora da Pontifícia Universidade Católica – SP

[2] E, em conseqüência, que "pobre é coisa de mulheres que têm coração", que criança pobre é coisa de mulheres que têm coração ou do poder judiciário que tem a Lei. E insistindo neste erro se erra mais: a criança pobre não é responsabilidade do governo municipal e sim da esposa do prefeito, da primeira dama, e das obras sociais...

[3] De certa forma, a primeira lei orgânica de assistência social, aprovada pelo Congresso e vetada pelo presidente Collor, mostra claramente esse vínculo com a Previdência: um substitutivo de renda para os sem-renda.

[4] Ver nota 3.

 

Nota do Conselho Editorial

Este texto foi selecionado pelo corpo editorial do Acervo Operacional dos Direitos da Criança e do Adolescente pela importância de  sua reflexão sobre os princípios estruturadores da política de assistência social no Brasil, embora seja anterior à Lei Orgânica da Assistência Social, de nº 8742, de 1993.

 

Fonte

CARVALHO, M. C. B. Repensando a Criança e o Adolescente como Valor de Troca: A Política de Assistência Social e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. II (1 ): São Paulo, 1992.