O ADULTO NA BRINCADEIRA DA CRIANÇA
Vamos
imaginar que façamos a um adolescente a seguinte pergunta: por que os adultos
trabalham? Suponhamos que ele nos apresente a seguinte resposta: os adultos
trabalham por prazer. Com certeza, muitas pessoas irão discordar dessa
resposta. Umas irão afirmar que isso não é verdade para todos os adultos, pois
alguns podem não gostar de trabalhar e outros não gostarem do trabalho que
fazem. Imaginemos, ainda, que indaguemos àquele adolescente o porquê de sua
afirmação e que ele nos diga que, se os adultos não trabalhassem por prazer,
não haveria como explicar porque dedicam tanto tempo de suas vidas ao trabalho
e, até mesmo, em seu nome, abdicarem, muitas vezes, de atividades de lazer.
É esse, de
fato, o quadro que temos à nossa frente. Nós, adultos, dedicamos um tempo
incomensurável de nossas vidas dedicado ao trabalho. Quantas vezes não deixamos
de estar com nossos filhos e familiares, renunciamos a atividades de lazer e,
inclusive, ao descanso, em nome do trabalho? Diante desse cenário da vida e por
não nos entendermos masoquistas, salta aos nossos olhos, de imediato, a idéia
de que somente o prazer pode explicar tamanha dedicação e envolvimento. Mas, ao
mesmo tempo, nós, que trabalhamos, sentimos um certo incômodo com essa
resposta. Afinal, sabemos que o trabalho, é verdade, traz-nos muitas alegrias,
permite-nos realizar muitas aspirações e dá-nos muito sentido para a nossa
vida. Todavia, temos também plena consciência de que acarreta muitos dissabores
e frustrações. No cotidiano do nosso trabalho, lidamos com muitas tensões,
sofremos reveses, enfrentamos muitas situações que nos deixam profundamente
aborrecidos. O estresse, tão comum nos dias de hoje, afinal, não ocorre porque
as pessoas estão de papo pro ar, não é mesmo? Apesar de tudo isso,
continuamos a trabalhar. Ora, se é assim, o que nos move em direção ao
trabalho?
É muito
comum ouvirmos as pessoas dizerem que trabalhamos por necessidade. E é essa, em
geral, a resposta que damos aos nossos filhos pequenos quando nos imploram para
não os deixarmos, para não irmos trabalhar. Você, leitor(a),
já pensou quantas vezes já se pronunciou a frase: A mamãe (o papai) vai
trabalhar porque precisa. Para ganhar dinheiro e comprar comida pra você, pra
comprar suas roupinhas, seus brinquedos. Não é porque a mamãe(o
papai) quer deixar você. É porque a mamãe(o papai)
precisa! Trabalhamos por necessidade. É o que a mãe (o pai) acabou de nos
dizer. O que nos move em direção ao trabalho é alguma necessidade. Essa é, certamente,
uma resposta em torno da qual talvez haja maior convergência de opiniões.
Então, se quisermos compreender a nossa relação com o
trabalho, precisamos, entre outras coisas, identificar a necessidade (ou
necessidades) que nos move (movem) em direção a ele.
Assim
também devemos proceder se desejarmos entender a relação da criança com a
atividade de brincar. Muitas pessoas costumam afirmar que as crianças brincam
por prazer, exatamente porque observam que elas dedicam muito tempo de suas
vidas às brincadeiras. Muitas vezes, elas resistem ao sono, ao cansaço,
renunciam ao alimento, recusam o banho, porque querem brincar ou continuar
brincando. Por observarmos isso com muita freqüência, somos levados a pensar
que a brincadeira é para a criança o universo do prazer. Entretanto, um exame
mais aprofundado da questão mostra que, do mesmo modo que o trabalho para o
adulto, a intensidade da dedicação e do envolvimento das crianças nas
atividades de brincar não significa que elas brinquem apenas por prazer. Assim
como a mãe (o pai) do nosso exemplo, elas precisam brincar. Brincam por
necessidade: o que as move em direção à brincadeira é alguma necessidade.
Então, se quisermos compreender a relação das crianças com o
brincar, devemos, entre outras coisas, identificar a necessidade (ou
necessidades) que as move (movem) em direção a essa atividade.
“Mamãe, mim
leva com ocê po seu tabaio?”
Todos nós
sabemos que o homem é um mamífero e que mamíferos são animais que mamam. E daí?
O que tem isso a ver com o nosso assunto?
Bem, a
questão é que, por sermos mamíferos, temos um contato extremamente íntimo e
prolongado com nossa mãe, desde a concepção e por muito tempo depois de
nascermos. Essa contingência é da maior importância para o nosso
desenvolvimento e liga-se com a grande necessidade que temos de toque, de
carícias e de contato físico com outras pessoas. São muitas e demasiado
importantes as conseqüências da amamentação e do convívio íntimo que temos com
nossa mãe nos primeiros meses de nossa vida.
Sabemos que
o homem, quando nasce, ainda não completou toda a formação e o desenvolvimento
funcional de seus órgãos. O cérebro encontra-se ainda em formação; a visão
ainda está desenvolvendo-se, só para dar alguns exemplos. Assim, os bebês
mamíferos acham-se numa situação de dependência dos adultos que tem uma duração
relativamente extensa e vai muito além do período de amamentação. A maternidade
é universal entre os mamíferos. Com raras exceções, todos os mamíferos são
sociais, ou seja, vivem e executam as atividades em grupos. Há neles uma
predisposição inata para o contato social, pois, de outro modo, não
sobreviveriam.
É somente
entre os mamíferos que ocorrem o que nós denominamos, propriamente, de
brincadeiras infantis. Isso acontece,
“primeiro, porque entre os grupos animais somente
eles apresentam infância propriamente dita: aves, répteis, invertebrados e
outros não dependem de indivíduos adultos quando nascem e, quando dependem, é
por um curto período de tempo. Segundo, porque os mamíferos não nascem com o
sistema sensório-motor plenamente desenvolvido, e terceiro, porque são,
essencialmente, animais sociais. Estas três características, juntas, podem
explicar a razão da existência da brincadeira entre mamíferos.” (TUNES & TUNES, 2001)
As
brincadeiras realizadas pelos jovens mamíferos propiciam o desenvolvimento de
competências que se ligam, de algum modo, a outras que tornarão o adulto capaz
de sobreviver. Quando brincam, exercitam sua visão
tridimensional, seu olfato, audição e sua coordenação motora e todo esse
exercício é importante para o próprio desenvolvimento do cérebro que, nessa
fase, cresce mais do que outras partes e órgãos do corpo. Quando brincam entre
si e com outros membros do grupo, além de exercitarem o sistema sensório-motor,
começam a compreender o seu lugar e papel no grupo, na medida em que tomam
contato com a força e a competência dos outros e de si mesmos. Conforme apontam
VYGOTSKY e LURIA (1996), é em relação aos mamíferos que podemos falar em
infância, no sentido próprio da palavra e, em relação com a infância, podemos
falar em brincadeiras infantis.
Todos os
mamíferos brincam. Sabemos disso. Mas, reconhecemos também que as brincadeiras
dos bebês humanos muito cedo começam a diferenciar-se daquelas de outros jovens
mamíferos, ainda que possam, bem no início, guardar semelhanças entre si. Uma
criança de dois ou três anos de idade, por exemplo, brinca de faz-de-conta. Até
onde sabemos, os demais mamíferos não apresentam essa modalidade de
brincadeira. Por que e como isso acontece? A que isso se deve? E, retomando
nossa pergunta, que necessidade move o bebê humano em direção a essa modalidade
de brincadeira? Trataremos, a seguir, do exame dessas questões.
Conforme já
dissemos, após o nascimento, o bebê humano vive um período relativamente longo
de dependência e intimidade plenas em relação ao adulto que dele cuida. Assim,
ele tem, ao nascer, uma predisposição para o contato com o outro que é,
inclusive, o que lhe garante a sobrevivência. É como se a gestação continuasse.
A mãe, ao parir, apenas mostra ao filho o outro lado de seu ventre, ventre do
qual ele ainda continua profundamente dependente. Mas, agora, quando a mãe “ dá a luz”, a criança pode ver. E ela olha tudo que pode e
não apenas o ventre que a continha. Ela vê, agora, quem a embala, na sua
inteireza, como uma totalidade. Sim, porque a percepção do bebê não é analítica
como a do adulto, que, diante de um objeto, pode nele distinguir e destacar as
partes. O bebê humano vê o objeto como um todo impartível. Além disso, por um
valor de sobrevivência, interessa-lhe sobretudo a mãe ou quem dele cuida, quem
oferece o próprio corpo para o contato, acalento, aplaca-lhe a dor, o frio e a
fome. Ele dirige sua atenção a essa pessoa e sente-a como uma espécie de
extensão do seu próprio corpo.
Logo ao
nascer, os objetos que se encontram ao seu redor interessam-lhe muito pouco, se
é que, de fato, exerçam sobre ele alguma atração. É ao outro que dele cuida que
ele dirige grande parte de seus esforços de atenção. É, pois, esse adulto que
irá propiciar a transição da atenção do bebê para os objetos. Você, leitor (a),
com certeza, já reparou que, quando vamos brincar com um bebê bem pequeno,
mostrando-lhe um objeto, costumamos balançá-lo junto ao nosso próprio rosto (os
bebês parecem ter em nosso rosto o foco preferencial de atenção) ou, então,
provocar com ele algum barulho para chamar a atenção do bebê. Quando fazemos
isso, estamos desencadeando um processo de desvio da atenção do bebê de nosso
corpo em direção aos objetos. Fazemos isso tão automaticamente e com tanta
freqüência que nem nos damos conta de nossas ações. Por sua vez, o bebê aprende
com tamanha rapidez e facilidade que damos por certo que o fez naturalmente e
não tomamos consciência de nossa participação no processo. Costumamos, por
isso, acreditar que o interesse dos bebês pelos objetos é algo naturalmente
dado, que ele já nasceu com esse interesse e que nosso papel é apenas de
colocar ao seu alcance os objetos. Mas, como estamos podendo perceber, não é
bem assim que as coisas acontecem. Sem a nossa atuação, o interesse dos bebês
pelos objetos que estão ao seu redor será bastante precário. O que ele quer
mesmo somos nós que cuidamos dele. O objeto somente virá a interessá-lo se
colaborarmos no processo de transição de sua atenção. E por que tal transição é
possível?
Como
dissemos anteriormente, a percepção do bebê é global. Ele nos vê em nossa
inteireza, incluindo nesta os objetos que temos junto
ao nosso corpo. Quem já não viveu a delícia e o perigo, respectivamente, de ter
em nossos braços um bebê de colo que, apalpando nosso rosto, arranca-nos os
óculos ou os brincos, atira-os longe, completamente
desinteressado dos mesmos e continua a brincar com nosso rosto, tentando
apertar com os dedos os nossos olhos e a nossa boca? Os óculos e os brincos são
vistos por ele como participantes de nossa inteireza, mas, tão logo extirpados
de nosso corpo, deixam de constituí-la e, por isso, não mais lhe são atrativos.
A criança não quer os óculos como objeto em si mas, de fato, o adulto que os
tem e em cuja totalidade eles se acham inseridos.
Quando o
bebê atira longe nossos óculos ou brincos, comumente,
mencionamos com ênfase e automaticamente essas palavras (Meus óculos! Meus
brincos!) e, num piscar de olhos, estamos pegando-os ou pedindo para que alguém
o faça, recolocando-os em seu lugar ou, por precaução, em outro, distante da
criança. Assim, por meio da fala e de nossas ações, estamos propiciando ao bebê
a inauguração de seus processos analíticos. Estamos apresentando-lhe as nossas
formas de recortar, de fatiar o mundo ao nosso redor. Nossas ações são apenas
inaugurais. O processo será relativamente longo; está apenas começando. Nossa
participação continuará. Procuraremos, de muitas formas, chamar a atenção do
bebê para os objetos: balançando-os à sua frente, produzindo barulhos com eles,
tocando-os em sua pele, em nosso próprio corpo, agitando-os, destacando, de
alguma forma, suas propriedades e sempre falando deles. E, assim, para o bebê,
o mundo começa a se partir e sua atenção passa a se focalizar, também, nos
objetos.
O que
falamos até aqui pode ser resumido da seguinte forma: o interesse do bebê pelo
adulto é naturalmente dado mas o seu interesse pelos objetos à sua volta é
socialmente constituído, sendo, portanto, a participação das pessoas que cuidam
dele primordial para desencadear o processo de transição de sua atenção ao
outro em direção aos objetos. Feita a transição, e esta é
rápida, a criança passa a distrair-se com os objetos com tal
envolvimento que nos parece que seu interesse sempre existiu. Mas isso é
somente na aparência. Como dissemos, sem a atuação do outro, o interesse da
criança pelos objetos seria bastante precário. Vemos, assim, que o que move a
criança em direção aos objetos, como brinquedos, é, originalmente, a
necessidade de contato próximo com outras pessoas, especialmente aquelas que
estão profundamente ligadas com os seus cuidados.
A criança
passa, então, a envolver-se intensamente com os objetos que estão à sua volta e
tenta com eles fazer o que os outros fazem. Eles adquirem uma força motivadora
tal que chegam a ditar-lhe as ações a serem realizadas: uma porta induz o abrir
e o fechar; uma escada, o subir e uma campainha, o apertar. Todavia, ainda é o
adulto ali representado em suas propriedades ou nas ações que permite o que
move a criança para os objetos, ainda que a transição da atenção já esteja
plenamente em curso. Não é de se estranhar que, no início, as crianças não
demonstrem interesse pelos objetos miniaturas que imitam aqueles de uso adulto.
Elas não deixam qualquer dúvida de que o que procuram é o objeto real de uso
adulto. Quantas vezes não ouvimos ou pronunciamos nós
mesmos as frases: “Não consigo entender o que acontece! Comprei um monte de
óculos de brinquedo e meu filho não se interessou por eles. Ele insiste em
brincar com os meus!” ou “Não é possível, meu filho! Você insiste em apertar os
botões da minha televisão. Olha aqui a que a mamãe comprou para você! Não é
bonitinha? Tem um monte de botões, igual à da mamãe e do papai. Por que você
não brinca com essa aqui? Deixa a mamãe ver a novela?” Novamente, o adulto tem
um papel inaugural. É preciso que ele participe ativamente do processo de
transição da atenção da criança, propiciando-lhe o movimento de um interesse a
outro. Não basta oferecer-lhe inúmeros, variados e coloridos brinquedos que
imitam os objetos reais de uso adulto. Faz-se necessário de mostrar-lhe que com
as miniaturas podemos, nós adultos, fazer as mesmas coisas, praticar as mesmas
ações que praticamos com os objetos reais. E, assim, mais uma vez, a atenção da
criança irá deslocando-se, e novas motivações ou movimentos inaugurados.
A mesma
história vai se repetir na inauguração das brincadeiras de faz-de-conta. É do
outro o papel de promover a transição do uso real do objeto para seu uso
imaginário, fictício. Leia o episódio abaixo transcrito, extraído de nossas
observações:
“Sentados
ao chão estão Lucas (uma criança de dois anos e seis meses), seu pai e sua mãe.
Ele está com vários carrinhos, miniaturas de carros de adultos, brincando.
Acontece, então, o seguinte diálogo:
Lucas: Papai,
vamos brincar de carrinho?
Pai: Vamos, sim. Me
dá um de seus carrinhos para eu poder brincar?
Lucas: Não, não dou.
Pai: Então, tá bom. O meu carrinho
vai ser esse envelope que está aqui (põe a mão sobre o envelope e apenas imita
o som de um carro).
Lucas: Não, isso não é carrinho.
Isso é papel.
Pai: É o meu carrinho. Olha como
ele faz: bruum, bruum, bruum (apenas imitando o som de um carro).
Lucas: Não, não é não. É papel. Ele
não tem roda.
Mãe: Eu também vou brincar. Esse é o meu carrinho (pega uma caixa de fósforo bem grande e, segurando-a, movimenta-a, imitando o movimento de um carro). Por ser uma caixa de fósforo grande, a mãe diz: Não, não é um carro. É um ônibus. Olha como ele faz a curva (fazendo a curva com a caixa de fósforo). E segue fazendo vários movimentos com a caixa de fósforo.
Lucas: Não, mamãe. Não é ônibus.
Ele não tem roda.
Mãe: Mas olha como ele anda bacana.
Faz a curva. Bruum, bruum, bruum. Nossa, que ônibus grandão!!!
Lucas, em silêncio, observa a mãe conduzir a caixa de fósforo e, em seguida, diz: Mamãe, mim dá o seu ônibus?
Pegando-a, faz com ela os movimentos que imitam o
movimento de um carro e aceita brincar com a caixa de fósforo
como se fosse um carro.”(extraído
de TUNES & TUNES, 2001)
Novamente,
vemos no episódio transcrito, o importante papel do adulto como promotor da
aquisição de novas formas culturais de uso dos objetos. Ao inaugurar novas
possibilidades de atenção da parte da criança, o adulto acaba por desencadear
novos processos motivacionais na criança, outros movimentos dela em direção ao
mundo ao seu redor. Todos eles ancoram-se na necessidade primordial que a
criança tem do adulto, mas no processo mesmo de sua emergência, transformam-se
e constituem-se em novas modalidades de interesse da criança, modalidades essas
de natureza genuinamente culturais.
Concluímos,
assim, que a análise psicológica da atividade de brincar mostra-se bastante
esclarecedora da transição dos processos biológicos para os culturais e, mais
do que isso, do exame do papel do outro na constituição das nossas formas
culturais de comportamento. Conforme aponta VYGOTSKY (1984), no bebê humano, a
brincadeira logo assume a sua forma cultural e permite-nos, pela análise dos
momentos de transição, compreender não apenas as origens mas o modo como se
desenvolve a brincadeira de faz-de-conta.
NOTAS SOBRE O AUTOR:
[*]
Universidade Católica de Brasília/Universidade de Brasília.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
TUNES, E.
& TUNES, G. A brincadeira, o adulto e a criança. Revista Em Aberto, Brasília, MEC/INEP (no prelo).
VYGOTSKY,
L. S. A formação social da mente.
Trad. de J.Cipolla Neto; L. S. Menna Barreto & S.C. Afeche. São Paulo, Martins
Fontes, 1984.
VYGOTSKY,
L. S e LURIA, A. R. Estudos sobre a
história do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Trad. de Lólio Lourenço de Oliveira. Porto Alegre, Artes Médicas,
1996.