AS AUTORIZAÇÕES JUDICIAIS PARA O
TRABALHO DE ADOLESCENTES E A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL
Viviane
Collucci
"Sabemos que as portas da Candelária estavam fechadas na hora do massacre... O país dormia... A cidade dormia... Necessitamos manter despertados as Candelárias, os gabinetes, os centros
públicos de saúde, educação, desenvolvimento, lazer, cultura... Que este sonho
não prolongue o sono. Que o real atravessado aí, faça o despertar... abrindo as
portas" (Ferreira, Tânia. "Os Meninos e a Rua; uma Interpretação à Psicanálise". Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 2001,
p. 18).
1. Autorizações judiciais para o trabalho antes da idade mínima legal .
1.2.
O direito de não trabalhar antes da idade mínima legal
O artigo 227 da Constituição Federal, em
seu caput, ao enumerar os direitos assegurados à criança e ao adolescente, com
absoluta prioridade (direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade,
à convivência familiar e comunitária), dispôs, em seu § 3o, que a
proteção especial abrangerá, conforme inciso I, a observância à idade mínima
para o trabalho, remetendo, portanto, a questão do trabalho infantil aos
princípios da teoria da proteção integral.
Impõe-se considerar-se,
para o fim de garantia deste direito, que a Emenda Constitucional n. 20/98
encontra-se plenamente em vigor, não obstante a controvérsia surgida após
concessão de liminar, em sede de ação civil pública ajuizada pelo Ministério
Público Federal, em Uberlândia/MG, autorizando a expedição de Carteira de
Trabalho a crianças e adolescentes menores de 14 anos, para fins de
aprendizado, e para maiores de 14 anos, para quaisquer finalidades. Tal
decisão, com efeito, foi suspensa pelo Tribunal Regional Federal da I Região,
com fundamento, inclusive, em que "a decisão recorrida, nos moldes em que
foi concedida, desafia a norma constitucional expressa no inciso XXXIII do art.
7o da Constituição Federal, alterada pela Emenda nº 20, de 16 de
dezembro de 1988" (AG n.1999.01.00.023709-7/MG, Relator Juiz Luciano
Tolentino Amaral).
A indigitada norma constitucional, ao
proibir o trabalho comum antes dos 16 anos, também instituiu a aprendizagem
empresarial após os 14 anos de idade, a qual se efetua através dos Serviços
Nacionais de Aprendizagem (SENAI, SENAR, SENAC, SESCOOP, SENAT). Na
impossibilidade de esses entes atenderem a demanda existente, a Lei n.
10.097/2000 identifica as entidades que, em caráter suplementar, poderão incumbir-se
dessa atribuição. A aprendizagem empresarial viabiliza-se por meio de contrato
especial de trabalho, minuciosamente regulamentado pela indigitada lei, de
forma que o aspecto pedagógico seja preponderante na execução do trabalho.
De qualquer forma, há que ser enaltecido
que a nova diretriz adorada pelo País com relação à idade mínima para o
trabalho encontra-se em consonância com as atuais normas internacionais que
versam sobre a questão. A convenção nº 138 da Organização lnternacional do
Trabalho preconiza a idade mínima de 15 anos para o trabalho, com o objetivo de
garantir a escolaridade sem o exercício do trabalho durante o ensino
fundamental, instando os Estados signatários a promoverem a elevação
progressiva da faixa etária para o trabalho.
O Procurador Regional do Trabalho,
Ricardo Marques da Fonseca, bem aponta a adequação do ordenamento legal pátrio
em face da proteção especial e prioritária garantida a crianças e adolescentes,
conforme preconizado pelo art. 227 da Constituição Federal:
"A limitação da idade mínima
preserva a higidez física e psicológica dos adolescentes e, ainda, a sua
escolaridade. Desta maneira, clama a Nação Brasileira por medidas que possam
salvaguardar esses valores.
Será
premente a busca de soluções para que a norma constitucional não se esvazie em
face das carências sociais. Ressalte-se, por importante, que o retardamento do
ingresso dos jovens no mercado de trabalho pode ser inclusive, um fator de
incremento do emprego dos adultos. Ocorre, porém, que a necessidade de
suplementação de renda familiar é notória, não só para a sobrevivência de
grande parte da população, como para que o jovem possa atender seus anseios tão
calorosos e típicos da adolescência.
Os
programas de renda mínima vêm significando alternativas relevantes para a
preservação da escolaridade de crianças e adolescentes trabalhadores e deverão
ser certamente, incrementados" ("Menor: A
Idade Mínima para o Trabalho: Proteção ou Desamparo", in Síntese
Trabalhista, n. 118, abr./99, pág. 48).
Cabe, ainda visando a destacar a compatibilidade existente entre os
ditames da norma nacional e os ideais de igualdade social, transcrever trecho
da Carta Aberta intitulada "Idade Mínima de Emprego no Brasil: Um Olhar
pela Ótica da Educação", de autoria de Reiko Niimi, Representante no
Brasil do Fundo das Nações Unidas pela Infância - Unicef:
"No Brasil, a Constituição garante
que a idade mínima para o trabalho é de 16 anos (exceto na condição de
aprendiz). A Lei de Diretrizes Básicas da Educação estabelece a obrigatoriedade
da conclusão do ensino fundamental sem estipular a idade. Com a forte tendência
à repetência e ao abandono escolar, a porcentagem de adolescentes que completam
a educação fundamental com 14 anos é muito baixa. Em 1999, praticamente a
metade (49,5%) dos alunos que cursava a oitava série estava fora da faixa
etária correta; e apenas 32, 6% dos adolescentes entre 15 e 17 anos estavam
cursando o ensino médio. A nova legislação sobre aprendizagem ainda está em
fase de análise e início de implementação, e o chamado sistema S (Sesc, Senar,
Senai) não atende a demanda existente de jovens com ensino fundamental
incompleto. Como as bolsas do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
(PETI) acabam aos 14 anos ou até antes, os egressos do programa acabam voltando
para o mesmo trabalho do qual saíram sem perspectivas.
O
que fazer para esta população adolescente que está em situação de exclusão? O
País poderia capitalizar sobre a idade mínima estabelecida na Constituição,
impulsando seu cumprimento e oferecendo educação para que a
maioria dos adolescentes brasileiros completem o ensino fundamental e
médio. Assim, se teria uma perspectiva futura de superar a taxa anual de 29% de
analfabetismo funcional na população acima de 15 anos”.
A grave conjuntura econômica que assola
famílias desamparadas não pode, de fato, justificar o
apartheid social que condena o filho dos menos favorecidos a uma
situação de permanente exclusão. O trabalho, antes da idade mínima legal,
constitui um fator de agravamento da pobreza e inviabiliza a adequada inserção
social do cidadão portador de aptidões próprias, adiando a criação de uma
sociedade livre, justa e solidária.
1.2 O respeito
à idade mínima legal para o trabalho em face das novas das novas atribuições do juiz sob a ótica do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Verifica-se ter o legislador elaborado um
complexo arcabouço de normas para o especial fim de garantir a cidadania de
crianças e adolescentes, enfatizando as ações articuladas, de modo a comprometer
os diversos atores sociais que se relacionam com a problemática da infância e
da juventude. Em seu artigo 86, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
impõe que a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente
seja realizada "através de um conjunto articulado de ações governamentais
e não governamentais, da União, dos Estados e dos Municípios".
A nova diretriz adotada pelo ECA contrapõe-se diametralmente à concepção sobre as
quais erigiram as normas do antigo Código de Menores conforme bem ilustra o
Juiz Paolo Vercelone:
"Crianças
e Adolescentes não são mais pessoas capitis diminutio, mas sujeitos de direitos
plenos" (Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, São Paulo, Ed.
Malheiros, 1992, 24 ed., pág. 18)
Especialmente no que diz respeito ao
Magistrado, o ECA também inovou sua concepção, de
acordo com o escólio do ilustre Desembargador Antônio Fernando do Amaral e
Silva:
"O
Novo Juiz não é aquele que, para assegurar o pretenso "melhor
interesse da criança" - o que é por demais subjetivo -, podia decidir
livremente, sem limites, mas, o magistrado, jungido às regras da Epistemologia
e da Hermenêutica Jurídica, ao princípio da legalidade.
O
juiz da infância e da juventude, como os demais, é juiz de direito. Suas decisões
não são simplistas, e muito menos arbitrárias, mas
respaldadas em princípios científicos e normativos”. (op. cit., pág. 445).
Não obstante as alterações promovidas pelo ECA sobre as atribuições da autoridade judiciária em
face da doutrina da proteção integral, verifica-se em diversos Estados da
Federação a expedição de alvarás judiciais que autorizam o trabalho de
adolescentes antes da idade mínima, em afronta à Emenda Constitucional n.
20/1998, que revogou as disposições legais que permitiam o trabalho comum antes
dos 16 anos.
As decisões que autorizam o trabalho em
regime de aprendizagem, no âmbito das empresas, sem a observância aos ditames
da Lei n. 10.097/2000, transgridem o art. 227 da Constituição, uma vez que o
direito à profissionalização não pode ser confundido com o mero trabalho
produtivo.
Tais decisões, a exemplo daquelas que
permitem o trabalho comum antes dos 16 anos, fixam-se no argumento de que a
sociedade brasileira não se encontra preparada para a mudança da legislação.
Frise-se, contudo, que as atribuições outorgadas ao magistrado encontram-se
devidamente enumeradas nos arts. 148 e 149 do ECA, não
se incluindo entre estas atribuições o ato de autorizar o trabalho de crianças
e adolescentes, como era possível extrair-se do já revogado Código de Menores.
Ademais, no Estado de Direito, apenas
através de processo legislativo é possível alterar-se a norma legal. Ao
Magistrado, neste sentido, não é permitido inová-la, ainda que sob o
fundamento, deveras contestável, de que esta mesma lei não se sintoniza com as
necessidades sociais e econômicas da criança ou do adolescente.
Conforme Pontes de Miranda:
"A
missão do intérprete das leis deve ir até a crítica de lege ferenda, posto que só
o intuito de contribuição à técnica legislativa e à posição científica dos
problemas de edição de regras jurídicas”. (Comentários à Constituição de 1967
com a Emenda n. l de 1969, t. VI, Rio de Janeiro, Forense, 1987, pág. 104).
O insigne jurista Oris de
Oliveira com precisão manifestou-se sobre as decisões judiciais que visam a
autorizar o trabalho antes da idade mínima legal:
"O
Juízo da Infância e da Adolescência não tem competência para autorizar o
trabalho infantil. Orientação correta foi dada em um acórdão da Egrégia Câmara
Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo ao dar provimento ao recurso da
Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude que pediu revogação de
autorização dada por juiz de primeira instância: "Previne-se
a criminalidade juvenil e melhora-se a qualidade de vida das pessoas através do
implemento das políticas sociais básicas de responsabilidade do Poder Público,
como saúde, educação, assistência social, etc., e não através de autorizações
para que adolescentes exercitem trabalhos mal remunerados e, além disso,
perigosos, insalubres, penosos e incompatíveis com a condição peculiar de seres
humanos em processo de desenvolvimento" (Processo n. 29. 017-0). Com
efeito, estas autorizações, infelizmente muito comuns, perpetuam a ofensa aos
direitos da criança e eximem o poder público de assumir sua
responsabilidade" (Trabalho Infantil, texto
mimeografado).
A reclamação perpetrada
pelo Ministério Público do Estado do Mato Grosso, em face das decisões emanadas
do Juízo da 2a Vara Especializada da Infância e Juventude da Comarca
de Cuiabá, que autorizavam o trabalho antes da idade mínima legal, bem aponta a
inadequação destas medidas dado
o distanciamento que estas guardam em relação ao direito à profissionalização:
"...
é preciso ter presente que se beneficiam do trabalho infantil não apenas
aqueles que imediatamente o exploram, mas toda cadeia produtiva, porque se em
uma das pontas do sistema há crianças trabalhando, na outra há grandes empresas
que, se interessadas realmente estivessem em empregar adolescentes para
profissionalizá-los e proporcionar-lhes um direcionamento e uma carreira,
participariam dos programas estatais e se colocariam à disposição de
instituições como Senai e Senac para que, então, pudessem ensinar noções práticas
aos adolescentes em suas instalações”.
Referida peça processual ainda ressalta a importância do Provimento n,
19/1997, do Corregedor-Geral do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o qual,
como medida pioneira no País, recomendou aos magistrados que se abstivessem de
autorizar o trabalho para menores de 14 anos, conforme a legislação em vigor à
época, sugerindo que os adolescentes fossem conduzidos ao Conselho Tutelar para
avaliação da possibilidade de os mesmos serem incluídos em programas socio-educativos
apropriados.
Verifica-se que o provimento mencionado encontra-se em perfeita sintonia
com as diretrizes do Estatuto, porque invoca os institutos e mecanismos criados
por este diploma legal para o fim de garantir ao adolescente o direito de não trabalhar
antes da idade mínima, na forma prevista no art. 227 da Constituição,
determinando o encaminhamento do adolescente ao Conselho Tutelar a fim de que
seja respeitada a sua condição de ser em desenvolvimento, quando sugere que
este seja incluído em programas adequados.
A alteração do Provimento, contudo,
impôs-se em face da elevação da idade mínima para o trabalho, que passou de 14
para 16 anos, com o advento da Emenda n. 20/1998. Mas o espírito que o norteou
foi mantido no Provimento n. 13/2001 que, enfatizando ser vedada pelo
ordenamento legal pátrio a concessão de autorização para o trabalho de menores
de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, explicitamente recomendou que,
havendo pleito de trabalho para adolescente entre 14 e 16 anos, a pretensão
deverá ser encaminhada ao Conselho Tutelar, o qual avaliará a oportunidade de
inclusão em programa de trabalho educativo, na condição de aprendiz, ou outro
programa comunitário ou oficial que, em consonância com as diretrizes do
Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei n. 10.097/2000, possa satisfazer
os direitos assegurados no art. 3o daquela legislação. Desta forma,
foram considerados os mecanismos e institutos previstos pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente, que visam a dar efetividade ao princípio da proteção
integral à criança, em conformidade com a lição do mestre Oris de Oliveira, que transcrevemos:
"Uma leitura das normas sobre idade
mínima só é completamente jurídica examinando nelas os valores que garantem: -
o direito de ser criança, direito ao lazer, à convivência familiar e social em
todas as suas manifestações, o direito ao acesso, freqüência e sucesso na
escola, direito a uma renda mínima familiar.
O
direito é um TODO, portanto não só proíbe mas, também enuncia (via ECA, por
exemplo), como preencher o 'vácuo 'do 'não proibitivo' com políticas públicas e
ações da sociedade civil organizada para que preservem os mencionados valores.
O direito cria, também os mecanismos institucionais para que estes
valores sejam preservados: - para isso existem, entre outros, a fiscalização
(múltipla, conforme a modalidade de trabalho), o Ministério Público com poder
para as medidas de preservação dos direitos difusos e indisponíveis. A
sociedade participa para efetivação destes direitos por meio de conselhos de
direitos federal, estaduais e municipais e dos conselhos tutelares, criados
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA." (op.
cit., pág. 08).
Ocupar o tempo do adolescente de idade inferior a 16 anos por meio de
trabalho dissociado da profissionalização significa furtar-se ao compromisso de
promover sua cidadania. É dar uma resposta imediata,
destituída da seriedade que a complexidade da questão requer e, ademais,
afrontar o Estado de Direito.
2.
As Autorizações judiciais para o trabalho de adolescentes em vias públicas
Com o intuito de minimizar a situação de
adolescentes pauperizados, expropriados de seus mínimos direitos, muitos
programas sociais criados por Municípios, no Pais,
instituíram as denominadas "guardas-mirins", que, no mais das vezes,
prestam-se a colocar à disposição dos munícipes o trabalho de jovens em vias
públicas, para auxiliarem-nos no estacionamento e guarda de veículos.
Equivocadamente calcados nas premissas da teoria do "menor em situação
irregular", há muito superada pela legislação pátria, estes programas
visam a conceder-lhes a mera geração de renda, sem qualquer compromisso com a
profissionalização ou a garantia de direitos trabalhistas. Trata-se, a toda evidência, de via excludente, porque meramente compensatória da
pobreza, não contribuindo para a promoção da cidadania.
O descompasso
destes programas com a doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente
torna-se ainda mais evidente diante da circunstância de que a atividade
laboral, dita "pedagógica", ocorre nas ruas da cidade, cenário atual
de toda espécie de violência, inclusive nos pequenos municípios. Com efeito, o
fato de os adolescentes encontrarem-se albergados em programa oficial não os
exime dos riscos existentes na rua, como a violência sexual e a participação na
rede de narcotráfico, além da circunstância de atraírem para si condutas
anti-sociais de adultos (Dez Medidas Básicas para a Infância Brasileira -
Fundação Abriq pelos Direitos da Criança).
Os malefícios
decorrentes das diversas atividades laborais exercidas por crianças e adolescentes em
logradouros públicos já foram constatados em diversos estudos
multidisciplinares. Tânia Ferreira
refere-se a esta problemática sob o enfoque psicológico, nos seguintes termos:
"Tanto quanto os 'meninos de rua, os 'meninos
trabalhadores de rua' estão expostos a todas as situações de violência e
exploração. O retorno cotidiano à família vai sendo dificultado para alguns,
sobretudo quando o ganho nem sempre é suficiente. Ao lado disso, também o tempo
de permanência e o conhecimento da rua, bem como as relações que se
intensificam vão, pouco a pouco, fazendo o desenlace com o grupo de origem. Os
laços familiares vão se enfraquecendo e muitos deles começam a ter no bando
daqueles que vivem na rua o seu destino.
O
trabalho começa a se constituir numa espécie de contravalor, pois o que
conseguem com um furto, às vezes é significativamente mais do que em dias de
trabalho. O bando vai progressivamente substituindo a família. O líder
controla, vigia e pune, mas também protege cada um. A rua passa a ser local de
moradia. Perdem-se o nome, a voz, o desejo.
Assim,
está feita a travessia ... menino na rua-menino de rua. Cabe ressaltar, porém,
que não estou sugerindo que essa seja a trajetória mais comum dos 'meninos de
rua', tampouco as únicas razões determinantes de sua ida para a rua. Se discuto essa questão, é para assinalar que essas crianças
podem encontrar neste percurso as facilidades de sua permanência na rua, uma
vez também excluídas da maioria dos serviços de assistência" ("Os
Meninos e a Rua: uma interpretação à psicanálise", Belo Horizonte, Ed.
Autêntica, 2001, págs. 41/42).
Decisões judiciais que autorizam o
trabalho de adolescentes nas vias públicas, inquestionavelmente transgridem o
disposto no art. 67, inciso III do Estatuto que veda ao
adolescente, menor de 18 anos de idade, empregado, aprendiz, em regime familiar
de trabalho, aluno de escola técnica, assistido em entidade
governamental ou não governamental o trabalho realizado em locais prejudiciais
à sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social.
Diante do previsto no indigitado
dispositivo legal e em face do novo perfil de atuação atribuído pelo Estatuto
da Criança e do Adolescente ao Juiz da Infância e da Juventude, não há como
sustentar a vigência do art. 405, § II da Consolidação das Leis do Trabalho que
incumbia ao referido magistrado autorizar o trabalho exercido nas ruas, praças
e outros logradouros públicos antes dos 18 anos de idade.
Certamente a alteração
de políticas de atendimento fincadas nestes moldes contribuiriam
grandemente para a modificação do quadro atual de marginalidade social. A
institucionalização do'menino de rua',
por meio de programas oficiais são entraves ao cumprimento do Estatuto da
Criança e do Adolescente, após quase doze anos de vigência. A política
assistencialista, preconizada pelo Código de Menores, lamentavelmente ainda
constitui uma diretriz que vem sendo seguida não apenas pelas autoridades
municipais que criam estes programas, mas, ainda, por juizes, assistentes
sociais e membros do Ministério Público, que visualizam nesta modalidade de
política a forma imediata de enfrentar a complexa questão.