O ADOLESCENTE E O DIREITO À SAÚDE APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988

 

 

Wilson Ricardo Buquetti Pirotta[1]

Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo.

 

Katia Cibelle Machado Pirotta[2]

Cientista Social.

 

 

I. Introdução

 

Os estudos sobre a caracterização da morbi-mortalidade entre os adolescentes revelam um quadro marcado pelo alto índice de mortes violentas - em especial homicídios, acidentes de trânsito e suicídios (Vermelho, 1994; Muskat, 1998). Em relação à saúde reprodutiva, as complicações da gravidez, parto e puerpério representam um conjunto de causas que põe em risco a saúde das adolescentes e chama a atenção à elevada incidência de concepções em idades precoces (Schor, 1995; Vieira et al., 1998). A contaminação pelo HIV/Aids preocupa, diante da precariedade com que é vivenciada a anticoncepção (Castilho & Szwacwald, 1998). Todos esses agravos à saúde são preveníveis e dependem da implementação de políticas públicas na área da saúde. O panorama descrito acima demonstra a estreita relação entre saúde, sociedade e cidadania e ressalta a importância da pesquisa e do exercício dos direitos dos adolescentes pelos quais se devem pautar as políticas públicas.

 

O presente artigo tem por objetivo realizar um levantamento dos principais direitos, ligados à saúde, reconhecidos aos adolescentes a partir da Constituição Federal de 1988. Serão examinados os direitos constantes do próprio texto constitucional, bem como das leis ordinárias aprovadas após a Constituição, com destaque para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Serão, ainda, abordados os tratados e outros instrumentos internacionais subscritos pelo Brasil, em especial a "Convenção sobre os Direitos da Criança" e as Plataformas de Ação do Cairo e de Beijing.

 

 

II. O Adolescente na Constituição Federal de 1988

 

Resultado de um amplo movimento pela democratização do Brasil, após o longo período do regime militar, a Constituição Federal de 1988 representa o mais avançado documento da história constitucional brasileira, trazendo em seu bojo o reconhecimento de um amplo rol de direitos humanos, tanto no âmbito dos direitos e garantias individuais, quanto dos direitos políticos e sociais.

 

Dentre os direitos sociais enumerados pelo artigo 6º da Constituição Federal, encontra-se o direito à saúde, desdobrado nos artigos 196 a 200, dos quais consta o reconhecimento da saúde como direito de todos e dever do Estado, o acesso universal e igualitário à saúde, a criação do sistema único de saúde, etc.

 

O texto constitucional não traz a definição de saúde. Tendo em vista que o Brasil é membro da Organização Mundial da Saúde, deve ser adotada a definição dada por essa instituição, segundo a qual:

 

 "Saúde é o completo bem estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doença ou enfermidade" (OMS, 1946).

 

As relações entre saúde e cidadania ficam realçadas na conceituação proposta pela OMS. Entre outros aspectos, tal definição estende o campo da saúde para outras esferas, além da exclusivamente biológica; e indica um alargamento da noção do processo saúde-doença, levando em consideração os determinantes sociais do adoecimento. A abrangência dessa definição abarca, no âmbito do direito à saúde, praticamente todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos - tanto os direitos e garantias individuais, quanto os direitos políticos e sociais, e ainda outros direitos, como o direito ao meio-ambiente equilibrado, à paz, etc. - apontando, assim, para a complexidade de situações que envolvem a problemática da saúde. Embora o presente artigo busque limitar-se aos direitos ligados à adolescência e à saúde, não se pode perder de vista a complexidade que perpassa as questões de saúde. A partir de tais considerações, passa-se a abordar o texto constitucional.

 

Parte dos dispositivos constitucionais dedica-se à infância e à adolescência. Notadamente, o artigo 227 é taxativo ao tornar um dever do Estado e da sociedade civil garantir a prioridade de atendimento às necessidades das crianças e adolescentes. Destacam-se de seu texto alguns pontos relevantes para a saúde:

 

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

 

  § 1º. O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não-governamentais e obedecendo aos seguintes preceitos:

 

I - Aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil;

 

(...)

 

§ 2º. A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.[4]

 

§ 3º. O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

 

I - Idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7º, XXXIII[5];

 

II - Garantia de direitos previdenciários e trabalhistas;

 

(...)

 

VII - Programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins.

 

§ 4º _ A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.

 

(...)

 

O artigo transcrito acima mostra a opção do legislador constituinte em inserir, na agenda política nacional, como prioridade absoluta, o atendimento às necessidades básicas da criança e do adolescente, reconhecendo-lhes direitos especiais que devem ser levados em consideração quando da alocação das verbas orçamentárias, sob pena de incorrer-se em inconstitucionalidade, seja por ação ou por omissão. A não observância dos critérios estabelecidos pelo artigo 227, na condução das políticas públicas, desafia a provocação do Poder Judiciário, que sempre pode analisar os atos administrativos sob o crivo da legalidade.

 

Os dispositivos constantes do artigo 227 foram regulamentados pela legislação infraconstitucional superveniente, com destaque para o Estatuto da Criança e do Adolescente, que será abordado adiante.

 

Em outros momentos, a Constituição também trata do adolescente.

 

O artigo 7º, XXXIII, cuida especificamente da proteção à saúde do adolescente trabalhador; determinando a "proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos e de qualquer trabalho aos menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos". A redação atual desse artigo foi dada pela Emenda Constitucional nº 20/98. Pelo texto anterior, o limite mínimo de idade para contratação do adolescente como trabalhador era de quatorze anos, salvo na condição de aprendiz, não determinando a partir de que idade era admissível o trabalho na condição de aprendiz. Ficava a cargo da legislação ordinária determinar este limite, que era fixado em doze anos.

 

A modificação, introduzida pela Emenda Constitucional nº 20/98, buscou contemplar as recomendações internacionais a respeito do trabalho de crianças e adolescentes. Recebeu, porém, inúmeras críticas; posto que, na realidade brasileira, o adolescente ingressa precocemente no mercado de trabalho por imposição das necessidades materiais vivenciadas por ele e por sua família. Assim, a elevação da idade mínima de admissão ao mercado de trabalho poderia incrementar o já bastante acentuado problema do trabalho informal de adolescentes, sem o devido registro e demais garantias trabalhistas e previdenciárias.

 

Observa Rua (1998, p. 737) que a situação do jovem no mercado de trabalho é bastante precária, sendo que apenas 26,2% dos jovens de 15 a 24 anos são contribuintes da previdência, em que pese a significação deste segmento etário no mercado de trabalho.

 

A proibição ao trabalho noturno, perigoso ou insalubre também se relaciona com a proteção da saúde do adolescente. Trata-se de garantir um especial cuidado quanto à exploração da mão-de-obra do adolescente; protegendo-o da exposição a condições de trabalho insalubres, perigosas ou penosas; que prejudiquem seu desenvolvimento e o acesso à educação e ao lazer. As dificuldades que o adolescente encontra para inserir-se no mercado profissional colocam-no em posição menos privilegiada para a negociação de melhores condições de trabalho, cabendo ao Estado zelar por tais condições. Há que se considerar, no entanto, que o desemprego faz com que essas garantias produzam o efeito perverso de diminuir a oferta de vagas para essa faixa etária; cabendo a implementação de políticas públicas que compensem tal desvantagem.

 

Vale assinalar que os adolescentes:

 

 " ... se mobilizam com mais facilidade pela defesa da paz mundial, da liberdade, da justiça, dos direitos humanos e da ecologia do que dos problemas que o afetam mais especificamente (...), como o desemprego e o subemprego." (Bercovich, Madeira & Torres, 1998, p. 7)

 

Assim, a criação de oportunidades de trabalho para os adolescentes, voltadas para as intervenções sociais nos problemas que marcam a sociedade brasileira, devem ser levadas em consideração na elaboração de políticas públicas e de ações educativas, dada sua importância para a construção de uma sociedade mais solidária, a consolidação da democracia e o fortalecimento da cidadania.

 

Os artigos 205 a 214 tratam da educação, sendo importante a análise desses artigos ao referir-se ao direito do adolescente à saúde, tendo em vista a prevenção das principais causas de morbi-mortalidade entre os adolescentes.

 

Os direitos sociais se caracterizam por ser direitos de implementação gradativa, dependentes de políticas públicas para sua efetivação, não trazendo, em geral, as garantias que caracterizam os direitos individuais. A exceção a essa regra fica por conta da educação, no âmbito do ensino fundamental. O artigo 208º da Constituição Federal estabelece que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de ensino fundamental obrigatório e gratuito, definindo o ensino obrigatório e gratuito como direito público subjetivo. Isso significa que o indivíduo pode acionar diretamente o Estado para que ele lhe forneça gratuitamente o acesso ao ensino fundamental, não podendo o Estado recusar-se a tal prestação, independentemente da disponibilidade de recursos previstos em orçamento. O mesmo artigo, em seu parágrafo 2º, prevê que o não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.

 

Outra garantia constitucional do direito à educação está prevista no artigo 212, que prevê percentuais mínimos de aplicação das verbas orçamentárias na manutenção e desenvolvimento do ensino.

 

Saad, Mameri & Maia (1998), analisando a influência de fatores demográficos e sócioeconômicos sobre a mortalidade por causas externas na população jovem paulista, observam risco muito maior de morte por homicídio entre aqueles com escolaridade até o primeiro grau, em relação àqueles que alcançaram ou ultrapassaram o segundo grau.

 

O acesso à educação de boa qualidade é de fundamental importância para prevenção da morbi-mortalidade por causas externas e para a promoção da saúde reprodutiva e sexual. Isso se dá não somente por conta da formação a que o adolescente pode ter acesso por meio da escola, mas também pela melhoria das expectativas quanto ao futuro, trazida ao jovem pela escolarização.

 

 

III. O Adolescente e a legislação Infraconstitucional

 

O ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, veio regular, no âmbito infraconstitucional, a situação jurídica dos indivíduos até a idade de dezoito anos. A lei define como criança o indivíduo de até doze anos e como adolescente aquele que tem entre doze e dezoito anos. O ECA traduz a adequação da legislação infraconstitucional ao texto da Constituição Federal de 1988, representando um importante documento no tratamento da criança e do adolescente, de acordo com as diretrizes internacionais de direitos humanos e de modo democrático, revogando o antigo Código de Menores. Uma de suas inovações é aplicar-se a todos os indivíduos de tal faixa etária, ao contrário do Código de Menores, que se aplicava somente aos menores em situação irregular.

 

Explicita o Estatuto que, a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, aí incluídos, aqueles reconhecidos pelo direito interno brasileiro, bem como pelos tratados internacionais de que o Brasil faz parte, além da proteção integral de que trata o próprio ECA. Reconhece aos adolescentes diversos direitos ligados à saúde, abrangendo uma gama de situações, desde o atendimento médico-hospitalar, até a responsabilidade penal pelo desatendimento às disposições do Estatuto.

 

O artigo 7º do ECA especifica que a criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde; cabendo ao Estado a efetivação de políticas públicas voltadas para seu desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. O artigo 11º assegura atendimento médico à criança e ao adolescente através do SUS, garantindo o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde. O mesmo artigo, no § 2º, torna incumbência do Poder Público o fornecimento gratuito, àqueles que necessitarem de medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação.

 

Prevê, ainda, o Estatuto, em seu artigo 12º, que os estabelecimentos de atendimento à saúde deverão proporcionar condições para a permanência em tempo integral de um dos pais ou responsável, nos casos de internação de criança ou adolescente. A medida tem dupla função: por um lado, permite o necessário apoio emocional para a recuperação da saúde da criança ou do adolescente; por outro, permite aos pais ou responsável o controle da qualidade do atendimento dado ao paciente.

 

De grande importância para a saúde da criança e do adolescente é a determinação do artigo 13º, no sentido de que os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade. A determinação vem reforçada pelo artigo 245º, que comina pena de multa de três a vinte salários de referência ao médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche que deixar de comunicar à autoridade competente os casos de que tenham conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente.

 

A adolescência é um período da vida em que as questões ligadas à vida reprodutiva e sexual ganham relevância. A moderna doutrina internacional tem desenvolvido a noção de direitos reprodutivos e sexuais para referir-se aos direitos coligados à promoção da saúde reprodutiva e sexual (Bilac & Rocha, 1998). O conceito de direitos reprodutivos e sexuais, consolidado na Conferência Internacional para População e Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, compreende o livre exercício da sexualidade e da reprodução humanas, o acesso a serviços de saúde que assegurem informação, educação e meios, tanto para a regulação da fecundidade, quanto para a manutenção da saúde no processo da gravidez, parto e puerpério (Piovesan & Pirotta, 1998, p. 168).

 

A criança e o adolescente, enquanto cidadãos, são sujeitos dos direitos reprodutivos e sexuais existentes na ordem constitucional e infraconstitucional. Porém, o processo de transição biopsicossocial que marca esse período do desenvolvimento faz com que as crianças e os adolescentes possuam necessidades específicas, merecedoras da atenção do legislador e do jurista.

 

No ECA, diversos dispositivos referem-se aos direitos reprodutivos e sexuais. Os artigos 3º, 5º, 15º, 17º e 18º, de forma genérica, contêm preceitos relativos ao respeito à integridade física e moral da criança e do adolescente. Ressalta-se que o artigo 18º torna dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de tratamentos desumanos, violência, constrangimentos, etc.

 

Os artigos 74º a 79º tratam dos espetáculos e publicações, contendo vários preceitos cujo intuito é preservar a criança e o adolescente da exposição à programação de natureza pornográfica ou obscena.

 

A proibição contida no artigo 82º, qual seja, hospedar criança ou adolescente em hotel, motel, pensão ou estabelecimento congênere, salvo se autorizado ou acompanhado pelos pais ou responsável, ataca diretamente o problema da prostituição de crianças e adolescentes. A desobediência a tal preceito encontra-se definida como infração administrativa pelo artigo 250º, que comina pena de multa de dez a cinqüenta salários de referência para os estabelecimentos, podendo levar até seu fechamento, em caso de reincidência.

 

O artigo 130º do Estatuto prevê a possibilidade da autoridade judiciária determinar cautelarmente o afastamento do agressor da moradia comum, em caso de abuso sexual, entre outras hipóteses de agressão impostas pelos pais ou responsável.

 

Os artigos 240º e 241º atacam diretamente o problema da pornografia infantil. O artigo 240º criminaliza a produção ou direção de representação teatral, televisiva ou película cinematográfica, que se utiliza de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica, prevendo a pena de reclusão de um a quatro anos e multa para o autor de tal crime. Em seu parágrafo único, estabelece que incorre na mesma pena quem contracenar com criança ou adolescente nas condições previstas no caput do artigo. Observa-se, ademais, que o disposto em tal parágrafo não elimina possível ocorrência de crime mais grave, como estupro ou atentado violento ao pudor, que deverá ser devidamente apurado em cada caso. O artigo 241º torna crime fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente.

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente contém avanços importantes em relação à legislação anterior, em especial ao revogado Código de Menores. No entanto, é tímido com relação aos direitos reprodutivos e sexuais, sobretudo se considerada a importância que a vida sexual adquire com o advento da adolescência e as implicações que este período da vida tem sobre a idade adulta (Piovesan & Pirotta, 1998, p. 194-6).

 

IV. Os Instrumentos Internacionais

 

A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, o direito internacional tem se preocupado com a proteção dessa classe de direitos, fazendo surgir um novo ramo do direito internacional público que, ao contrário do direito internacional público tradicional - voltado à disciplina das relações de reciprocidade e equilíbrio entre os Estados - , visa a garantia do exercício dos direitos da pessoa humana (Piovesan, 1997).

 

O direito internacional assume grande importância quando se trata da proteção aos direitos humanos. De fato, dentro de cada Estado soberano, o monopólio do uso legal da força encontra-se nas mãos do governo, cabendo a ele reprimir o desrespeito às regras de direito vigentes em seu território. No entanto, ao se tratar de direitos humanos, o que se vê mais freqüentemente é a violação de tais direitos ser perpetrada pelo próprio Estado ou ser ele conivente com tal violação, não fazendo sentido esperar que toda a proteção aos direitos humanos emane do próprio Estado. Assim, a instância internacional ganha relevância na garantia dos direitos humanos, sobretudo contra o próprio Estado de que fazem parte os indivíduos ou grupos, cujos direitos foram violados. Com a criação dos tribunais internacionais de direitos humanos, o direito internacional ganhou maior poder coercitivo nessa área.

 

O direito à saúde e os direitos da criança e do adolescente são internacionalmente reconhecidos como direitos humanos, sendo que o Brasil é parte em diversos tratados envolvendo os temas, notadamente o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos.

 

A Constituição Federal de 1988 incorporou grande parte dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente, inclusive o direito à saúde e os direitos da criança e do adolescente; sendo que o Estatuto da Criança e do Adolescente é um instrumento normativo moderno e democrático, apresentando grande abrangência no reconhecimento dos direitos humanos das crianças e adolescentes.

 

Apesar da sociedade brasileira contar com instrumentos normativos avançados, que reconhecem no âmbito do direito interno o que é propugnado no âmbito do direito internacional, a participação do Brasil na "Convenção sobre os Direitos da Criança"[6] é de grande importância, tendo em vista o compromisso internacional que ela representa para o Estado brasileiro, ampliando a proteção a esses direitos para fora dos limites da jurisdição nacional.

 

A questão da saúde reprodutiva e sexual e dos direitos reprodutivos e sexuais é de fundamental importância na adolescência e os principais documentos internacionais que tratam do tema são os textos resultantes da Conferência Internacional para População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994, e a Conferência Internacional sobre a Mulher, realizada em Beijing, em 1995. Esses textos, embora não apresentem caráter obrigatório e vinculante para o Estado, reconhecem os direitos reprodutivos como direitos humanos e como fator fundamental para o desfrute da saúde reprodutiva, constituindo-se em importantes fontes de recomendações para os Estados, na condução das políticas públicas na área.

 

Os direitos reprodutivos e sexuais comportam uma gama de direitos humanos, incluindo direitos e garantias individuais, direitos sociais, direitos difusos, etc. Muitos desses direitos são reconhecidos em tratados internacionais e nas leis internas dos países, restando, porém, muitos deles a serem positivados, ou seja, previstos explicitamente em normas legais, tanto no âmbito interno de cada país quanto no âmbito internacional. O desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial do conceito de direitos reprodutivos e sexuais é igualmente importante, na medida em que condiciona a interpretação dada pelos operadores do direito, sobretudo no âmbito do Poder Judiciário, às leis que se relacionam com o assunto.

 

V. Considerações finais

 

O direito do adolescente à saúde é consagrado como um dos direitos humanos básicos, tanto no âmbito dos instrumentos internacionais quanto no âmbito da legislação brasileira. Trata-se, no entanto, de direito que demanda, para sua efetiva fruição, da implementação de programas e políticas públicas; o que implica um complexo conjunto de considerações sobre o papel do Executivo, do Legislativo e do Judiciário na garantia de tal direito.

 

A implementação de políticas públicas e programas de atendimento às demandas básicas da população, através dos serviços públicos, é, sem dúvida, atribuição precípua do Poder Executivo. Há que se recordar, porém, que todo ato administrativo está sujeito ao controle pelo Poder Judiciário, no que tange à sua legalidade.

 

Da mesma forma, incumbe ao Poder Legislativo regulamentar, através da legislação ordinária, o direito à saúde previsto na Constituição, cabendo sempre o controle da constitucionalidade das leis pelo Poder Judiciário.

 

A sociedade brasileira conta com um aperfeiçoado sistema normativo de proteção à saúde do adolescente, que deve ser mobilizado na luta por políticas públicas voltadas para a melhoria das condições de atendimento à saúde dos adolescentes.

 

Referências Bibliográficas

 

ALBERNAZ JUNIOR, VH & FERREIRA, PRV. "Convenção sobre os direitos da criança". In:

 

PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. GRUPO DE TRABALHO DE DIREITOS HUMANOS. Direitos humanos: construção da liberdade e da igualdade. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1998. (Série Estudos, nº 11) p. 445-63

 

BERCOVICH, AM; MADEIRA, FR & TORRES, HG. "Descontinuidades demográficas". in:

 

FUNDAÇÃO SEADE. 20 anos no ano 2000: estudos sociodemográficos sobre a juventude paulista. São Paulo: SEADE, 1998. p. 2-12

 

BILAC, ED; ROCHA, MIB. (orgs.) Saúde reprodutiva na América Latina e no Caribe: temas e problemas. Campinas: PROLAP, ABEP, NEPO/UNICAMP/ São Paulo: Ed. 34, 1998.

 

CASTILHO, EA & SZWARCWALD, CL. "Mais uma pedra no meio do caminho dos jovens brasileiros: a AIDS". in: CNPD. Jovens acontecendo na trilha das políticas públicas. Brasília: CNPD, 1998. p. 731-49.

 

MUSZKAT, M. "O mal-estar na juventude". in: FUNDAÇÃO SEADE. 20 anos no ano 2000: estudos sociodemográficos sobre a juventude paulista. São Paulo: SEADE, 1998. p. 102-4

 

PIOVESAN, F & PIROTTA, WRB. "A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no direito interno." In: PIOVESAN, F. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 167-202

 

PIOVESAN, F. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1997.

 

RUA, MG. "As políticas públicas e a juventude dos anos 90". in: CNPD. Jovens acontecendo na trilha das políticas públicas. Brasília: CNPD, 1998. p. 731-49.

 

SAAD, PM; MAMERI, CP & MAIA, PB. "Vítimas potenciais da violência". in: FUNDAÇÃO SEADE.

 

20 anos no ano 2000: estudos sociodemográficos sobre a juventude paulista. São Paulo: SEADE, 1998. p. 58-73

 

SCHOR, N. Adolescência e anticoncepção: conhecimento e uso. São Paulo, 1995. [Tese de Livre-docência - Faculdade de Saúde Pública da USP]

 

VERMELHO, LL. Mortalidade de jovens: análise do período de 1930 a 1991 (a transição epidemiológica para a violência). São Paulo, 1994. [Tese de doutorado - Faculdade de Saúde Pública da USP]

 

VIEIRA ET AL. (Orgs.) Seminário Gravidez na Adolescência. Rio de Janeiro: Associação Saúde da Família, 1998.

 

WHO. Constitution of the World Health Organization. New York, 1946.

 

Notas:

[1] Wilson Ricardo Buquetti Pirotta - Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo; membro do Centro de Direitos Difusos "XI de Agosto".

 

[2] Katia Cibelle Machado Pirotta - Cientista Social, Mestre em Saúde Pública e doutoranda em Saúde Materno-Infantil, na Faculdade de Saúde Pública da USP. Bolsista FAPESP.

 

[3] Texto extraído em: http://www.adolec.br/bvs/adolec/P/cadernos/capitulo/cap02/cap02.htm

 

[4] Ver Lei nº 7.853/89, que dispõe sobre apoio às pessoas portadoras de deficiência.

 

[5] Com a atual redação do artigo 7º, XXXIII, a idade mínima passou a ser de 16 anos, conforme mencionado mais abaixo.

 

[6] A Convenção abrange os indivíduos com menos de dezoito anos, não fazendo distinção entre crianças e adolescentes. Para uma análise mais detalhada sobre a Convenção, vide ALBERNAZ JUNIOR & FERREIRA (1998).