ENTRE
A INIBIÇÃO E O ATO: FRONTEIRAS DO TRABALHO ANALÍTICO COM CRIANÇAS[1]
Jussara
Falek Brauer[2]
Instituto
de Psicologia, USP.
O
propósito, no presente texto, é de teorizar sobre o brincar utilizado como meio
no trabalho analítico no caso de crianças graves. O brincar será aqui enfocado
na perspectiva da passagem ao ato, fenômeno presente em casos de psicose, a
partir de onde se proporá uma articulação. A inibição, conceito proposto por Freud, será trazida enquanto antípoda do
ato, fenômeno observado igualmente em casos de psicose, principalmente aqueles
que ocorrem na infância.
Descritores: Comportamento de brincar. Atuação. Processos psicoterapêuticos. Psicose infantil. Crianças autistas. Inibição. Psicanálise.
BETWEEN
INHIBITION AND ACTION: BORDERS OF ANALYTIC WORK WITER CHILDREN
Abstract: The purpose of this text is to theorise about the playing method used as manner of analysing serious kids. This
playing method will be understood here, from the point of view of the acting out, a phenomenon present on the
psychosis cases, from where it shall be made an enunciation. Freud’s inhibition concept is also observed in
childhood psychosis cases, which can hamper the analyst’s work.
Index
terms: Childhood play behaviour. Acting
out. Psychotherapeutic processes. Childhood psychosis.
Autistic children. Inhibition.
Psychoanalysis.
Não foi
casualmente que se escolheu o brincar como meio propiciador quando o trabalho
analítico a conduzir tem como alvo uma criança. É das crianças a facilidade em
lidar com o universo do faz-de-conta. Pode-se dizer que quando propomos a uma
criança que se expresse através da brincadeira para que possamos ler aí algo de
sua subjetividade e a criança responde a isso, o que se criou entre nós e a
criança foi um espaço de metaforização no qual o
discurso de uma análise pode se tecer. O brincar é um ato mediado pelo
simbólico.
Sob
esta perspectiva, tentarei trabalhar com coisas que se incluiriam melhor sob a
categoria de um "não brincar". Coloco em foco situações em que a
criança se envolve naquilo que nós psicanalistas costumamos chamar de
"atuações" – uma situação em que uma criança dá um murro no analista,
por exemplo, situação desconcertante pela qual quem se propõe a trabalhar com
crianças graves certamente já passou.
Cito um
exemplo:
Paulinho é autista. Já passou por vários psiquiatras, duas
internações no H.C. e psicoterapia dos 6 aos 9 anos. Paulinho não fala, é muito
agitado, não lê, dependendo dos pais para tudo. Urina na cama à noite, dormindo
de fraldas por essa razão. É explorador, mexe em todos objetos da sala de
atendimento de forma repetitiva em uma seqüência cíclica, circular,
estereotipada, na qual um objeto parece deter a maior parte de seu interesse
desde o início: Reinaldo, o terapeuta. Observar é tudo o que se pode fazer por
meses a fio. Observar e ouvir o menino e também a mãe que permanece impermeável
às pontuações e cortes que parecem não surtir qualquer efeito. A inibição toma
conta do trabalho na forma de uma certa paralisia.
Em uma dada sessão, Paulinho brinca com carrinhos e diz bate. Vai à janela e olha o movimento lá
fora. A um dado momento, contrai-se e diz bateu.
Pega a bola e bate com ela no chão.
Vira-se para o terapeuta e com a mão fechada dá-lhe um murro no rosto.
Que
fazer? Como ler o acontecido? Como direcionar a intervenção?
No
trabalho com crianças graves, tenho tido como "regra fundamental" que
na sala de atendimento é dado fazer tudo aquilo que vem à cabeça, salvo
destruir o mobiliário, machucar-se, machucar o terapeuta. Esta é a regra, tendo
em vista o perverso polimorfo que é supostamente a criança em questão.
Sob
esta perspectiva, a direção aqui seria tentar um corte de sessão, o que sob o
ângulo que eu enfoco hoje não seria errado, já que o corte da sessão iria no
mesmo sentido do corte significante, do corte que a palavra instaura.
Paulinho,
no entanto, nos levou a descobrir algo mais. Sua "atuação" haveria
quebrado a paralisia do trabalho? Como insistia no bate, optamos por pensá-lo como significante, que pontuamos no
discurso da mãe, quando surgiu. Isso produziu finalmente deslocamento,
rememoração. São lembradas cenas em que Paulinho apanha por não dormir e por
associação começou a ser trazido o relato dos impasses pelos quais passava a
vida sexual do casal, que sofria prejuízo com a insônia de Paulinho, uma queixa
inicial para este caso.
Como
conceituar então o murro que Paulinho dá em seu terapeuta? Qual sua função
nesta sessão? Como lê-lo? Em uma palavra, ele pode ser lido pelo analista?
A
pergunta tem um objetivo claro, se levarmos em conta que aquilo que é da ordem
do inconsciente é antes de mais nada algo que se lê.
Então, que estatuto dar a esse ato?
Retomemos
os conceitos fundamentais da psicanálise - inconsciente, repetição,
transferência, pulsão - e dentre eles o de repetição.
Freud
(1914/1972), no texto Recordar, repetir,
elaborar faz a seguinte afirmação: "...
o analisado não recorda nada do que foi esquecido ou reprimido, vive-o de novo.
Não o reproduz como recordação, mas como ato; repete-o sem saber, naturalmente
o repete".
Este
texto nos é precioso para as articulações que pretendemos fazer aqui por trazer
a repetição em ato, por incluir o
ato.
Nossa
experiência clínica com crianças graves nos ensinou a considerar o ato como
eixo importante de articulação.
Se, em
alguns casos, nos vemos em apuros com nossos pequenos clientes em função de sua
atuação exacerbada, em outros, é o silêncio e a imobilidade que nos deixam o
que pensar.
Já no
início de suas articulações, neste texto, Freud (1914/s.d.) relaciona a
repetição com o reprimido, não tardando por notar que a transferência não é por
si mesma mais que uma repetição e a repetição, a transferência do passado esquecido.
Pode-se antever as dificuldades teóricas que se
apresentam para a articulação que propomos fazer. Como falar em reprimido no
caso da psicose e do autismo? Como falar em rememoração em casos que parecem
não dispor do registro temporal passado - presente - futuro, permanecendo em um
universo sem tempo, sempre igual?
A
experiência com essas crianças nos tem indicado que, embora estejamos diante de
um impasse em que somos obrigados a inventar estratégias de tratamento que
contornem o fato de que a associação livre não desliza, de que não se consegue
sequer brincar, seria um erro presumir que se trate nestes casos de qualquer
coisa que não seja de discurso. Pois se a pontuação do bate de Paulinho produziu um efeito de rememoração e de associação
livre na mãe, a razão é justamente o fato de ter sido tomado enquanto
significante.
Assim,
temos uma repetição da criança que,
se não pode ser lida na linha de um recalcamento e se não reenvia a própria
criança a um fragmento de memória, tem um impacto sobre o discurso materno que
faz com que ela rememore e passe a associar.
Relatamos
então um evento em que um ato do menino quebra a paralisia do tratamento e traz
o discurso. Mas seria suficiente pensar só nestes termos? Penso que podemos
caminhar ainda mais um pouco.
Não
seria demasiado lembrar Freud, que alguns anos depois do texto citado acima, em
Além do princípio do prazer, escreve
observando seu neto, que a partir do jogo de carretel começa a utilizar-se de
dois vocábulos: fort e da:
A interpretação do jogo
tornou-se então óbvia. Ele se relacionava à grande realização cultural da
criança, a renúncia instintual (isto é, a renúncia à
satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe
ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele
próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu
alcance ...
(Freud, 1920/1998a, p. 19)
Freud
que observara o surgimento de duas novas palavras a partir da brincadeira
repetitiva com o carretel, jogado longe para ser encontrado em seguida, e
enfoca no texto a repetição de uma situação de desprazer. Vamos aqui colocar o
acento na repetição.
Gostaria
então de pontuar as relações que o autor vai fazendo entre recalcamento,
repetição e desprazer, logo denominado de instinto de morte, no mesmo texto.
Freud aprende da observação de seu neto que a repetição da situação
desagradável, atuada na brincadeira com o carretel, devia ser lida como um ato
que põe um limite ao gozo, na medida em que dá ensejo, na medida em que forja
essas duas palavras novas que o menino passa a pronunciar. Assim, o jogo do
carretel não estaria ainda na categoria de um espaço de metaforização
já estabelecido, mas de uma metaforização em curso,
que ainda irá se estabelecer.
Tentemos
precisar mais a idéia.
Retornemos
aos nossos pequenos pacientes psicóticos. Se o comportamento deles não pode ser
considerado na categoria de um brincar estruturado enquanto tal, vou propor sua
leitura no sentido da passagem ao ato.
Lacan,
em uma conferência debate em novembro de 1975, na Yale
University, estabeleceu uma diferenciação entre
"acting
out" e passagem ao ato.
O acting out é um ato necessariamente inibido. A
passagem ao ato efetua aquilo que o acting out inibe.
A passagem ao ato é da ordem da escritura.
Assim,
se podemos traduzir o brincar de uma criança como um acting out, sugiro que pensemos o comportamento de Paulinho no registro de
uma passagem ao ato, ali onde o simbólico, pode-se dizer que falha e o que
acontece é que o bater, que deveria ser um brincar de bater, vira ato
propriamente dito.
Vamos
problematizar, então, isso que eu acabei de colocar agora, de que o simbólico falha.
Seguindo
aquilo que é colocado por Lacan, vamos tentar articular a passagem ao ato,
colocando-a em relação à escritura, como sendo da ordem dela.
Há que
esclarecer, inicialmente, de que se trata em uma passagem ao ato psicótica, em
que algo se escreve em segunda potência.
Quer dizer, que é só depois de submetida à inibição, e não ao recalcamento
característico da estrutura neurótica, é que a letra se efetua, mas na forma de
um ato concreto.
Temos
então aqui como articulador entre esses dois conceitos de acting out e passagem ao ato, o conceito de inibição. E o que é uma
inibição no olhar freudiano? Em seu texto Inibições,
Sintomas e Ansiedade, Freud (1925/1998c) afirma o seguinte a respeito da
inibição:
No tocante às inibições,
podemos então dizer, em conclusão, que são restrições das funções do ego que
foram, ou impostas como medida de precaução, ou acarretadas como resultado de
um empobrecimento de energia; e podemos ver sem dificuldade em que sentido uma
inibição difere de um sintoma, portanto um sintoma não pode mais ser descrito
como um processo que ocorre dentro do ego ou que atua sobre ele. (p. 13)
Assim,
o sintoma fica definido como formação do inconsciente e a inibição, como
distúrbio egóico.
O
significante, quando forcluído,
e não recalcado, faz solicitação ao ego que supre a falha, produzindo inibição.
Para
construirmos rapidamente nosso tecido conceptual, vamos apelar mais uma vez
para Freud (1940/1998b), que no texto Esboço
de Psicanálise compara o sonho a uma psicose de curta duração. Ele diz:
Um sonho, no entanto, é uma
psicose, com todos os absurdos, delírios e ilusões de
uma psicose. Uma psicose de curta duração, sem dúvida, inofensiva, até mesmo
dotada de uma função útil, introduzida com o consentimento do
indivíduo e concluída por um ato de sua vontade. Ainda assim, é uma
psicose e com ela aprendemos que mesmo uma alteração da vida mental tão
profunda como essa pode ser desfeita e dar lugar à função normal. (p. 45)
Acrescentando
mais abaixo:
Já conhecemos certo número
de coisas preliminares a esse empreendimento. De acordo com nossa hipótese, é
função do ego enfrentar as exigências levantadas por suas três relações de
dependência – da realidade, do id e do superego – e não obstante, ao mesmo
tempo, preservar a sua própria organização e manter a sua própria autonomia. A
pré-condição necessária aos estados patológicos em debate só pode ser um enfraquecimento relativo ou absoluto do ego, que torna
impossível a realização de suas tarefas. A exigência mais severa feita
ao ego é provavelmente a sujeição das reivindicações instintivas do id, para o
que ele é obrigado a fazer grandes dispêndios de energia em anticatexias.
Mas as exigências feitas pelo superego também podem tornar-se tão poderosas e
inexoráveis que o ego pode ficar paralisado, por assim dizer, frente às suas
outras tarefas. Podemos desconfiar de que, nos conflitos econômicos que surgem
neste ponto, o id e o superego freqüentemente fazem causa comum contra o ego arduamente pressionado, que tenta apegar-se à realidade
a fim de conservar o seu estado normal. Se os outros dois tornam-se fortes
demais, conseguem afrouxar e alterar a organização do ego, de maneira que sua
relação correta com a realidade é perturbada ou até mesmo encerrada. Vimos isto
acontecer no sonhar: quando o ego se desliga da realidade do mundo externo,
desliza, sob a influência do mundo interno, para a psicose. (Freud, 1940/1998b, pp.
45-46)
A
hipótese freudiana sobre a psicose é, portanto, que nesta estrutura o ego entra
em falência. Já podemos então fazer um elo entre as hipóteses freudianas sobre
a psicose – devida a uma falência do ego – e a inibição, igualmente um
distúrbio de funcionamento desta instância.
De
fato, a clínica com crianças graves tem nos mostrado que suas
"deficiências" podem ser situadas com maior exatidão como decorrentes
de inibições. Sigamos.
Zimra (1986), no texto Reverso
do sonho: Um acting out escreve[3]:
Dar um sentido
à passagem ao ato, disto a própria passagem ao ato se
encarrega. Supostamente não se endereçando a ninguém, ela encontra sempre algo
a dizer: porque. Ela encontra sempre um sentimento de dívida e pode-se dar a
ela imediatamente um sentido. Esta necessidade de sentido, que parece ser
inerente à passagem ao ato, traduz um tempo da falência imaginária do sujeito,
que se encontra imediatamente fechada por um terceiro.
Autor
lacaniano, Zimra fala em sujeito e não em ego e
acrescenta à compreensão deste evento psicótico que na passagem ao ato, há este
elemento de sentido sempre presente e também um sentimento de dívida.
A
passagem ao ato é a realização em ato daquilo que no sonho é fantasia. É,
portanto, um enigma a ser cifrado, um enigma em ato, da ordem da escritura, feita para ser lida antes que
decifrada.
E como
escreve Allouch (1998) em La psychanalyse: Une erotologie de passage,
contornando a definição deste tipo de evento: "A letra não é, aqui como na análise, essencialmente consagrada à
circulação da informação, ela própria é ato, portanto, regramento do gozo,
confissão de gozo, manobra, ocasião de gozo" (p. 81).
Assim,
fato de estrutura simbólica, da ordem da escritura, a letra que aí se escreve
não se endereça a ninguém, como diz Zimra (1986), não
está consagrada à circulação de nenhuma informação. Allouch
(1998) esclarecera antes no mesmo texto:
Resta um resto desta
produção formal de um resto. A passagem ao ato é o índice imediatamente
presente de que um outro modo de transmissão está em jogo diferente daquele,
puramente formal, das ciências exatas. Ainda que nas ciências exatas também,
Lacan o notou, não saberíamos passar absolutamente da palavra para apresentar
os jogos puramente formais das pequenas letras. (p. 45)
É
justamente isto que o psicanalista aprende no atendimento de casos de crianças
com graves distúrbios. Que no seu "brincar", concebido como sendo ele
também da ordem do significante, se trata de um outro modo de transmissão,
diferente daquele puramente formal. Trata-se aí de uma transmissão que usa o
ato como meio. Há que completar o processo instaurado pela passagem ao ato,
possibilitar sua transliteração, termo introduzido pelo mesmo Jean Allouch em seu livro Letra
por letra.
Mais
ainda, retornamos ao proposto por Freud (1920/1998a) em Além do princípio do prazer, de que esse atuar da criança vem
relacionado ao gozo, termo lacaniano para designar aquilo que no texto de Freud
comparece sob o nome de instinto de morte.
É para
estabelecer um limite ao gozo que a criança atua seu brincar, falar será sua
grande realização cultural, diria Freud, a renúncia instintual,
para o que ela terá se apoiado na leitura de seu parceiro, o analista.
Referências bibliográficas
Allouch, J. (1998). La psychanalyse: Une
érotologie de passage.
Paris: Cahiers de L’Unebévue
/ E. P. E. L.
Freud, S. (1998a). Além do
princípio do prazer. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1920)
Freud,
S. (1998b). Esboço
de psicanálise. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1940)
Freud,
S. (1998c). Inibições,
sintomas e ansiedade. In Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1925)
Freud,
S. (1914/1972). Recuerdo, repetition, elaboration. In Obras Completas. Madrid, España: Alianza Editorial. (Originalmente publicado em 1914)
Zimra,
G. (1986, octobre). Revers du rève: Un acting out. Littoral. Identité Psychotique, 21.
Notas
[1] Artigo
publicado em Psicol. USP, 2000, vol.11, no.1, p.243-252.
ISSN 0103-6564. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642000000100013&lng=en&nrm=iso
[2] Endereço
para correspondência: Instituto de Psicologia. Av. Prof. Mello Moraes, 1721,
São Paulo, SP - CEP 05508-900. E-mail: jfalek@usp.br
[3] A tradução de textos em francês ou
espanhol apresentada adiante é feita por mim, livremente.