CONSELHO TUTELAR, ENTRE O TÉCNICO E O POLÍTICO[1]
José Carlos Sturza de Moraes
“...o poder funciona e se exerce em rede.
Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de
exercer este poder e de sofrer sua ação.” Michel
Foucault[2]
A Constituição Federal, de 1988, abriu possibilidades para a consolidação do exercício da cidadania no Brasil. A mobilização social garantiu a regulamentação de alguns de seus dispositivos através de leis como a LOAS, o SUS e o ECA. Essas leis têm em comum a previsão da participação popular na co-gestão do Estado através de estruturas, do nível local ao nacional, viabilizando um novo modelo de Estado não apenas controlado pelo governo (que é transitório), mas gerido por este em parceria com a sociedade, que se faz representar diretamente.
A proposição de uma co-gestão do Estado entre sociedade civil e governo traz consigo um novo desafio para a cidadania organizada em seus vários agrupamentos: o da co-responsabilidade. Embora, no senso comum ainda impere a noção de que quem é eleito tem toda a legitimidade, delegada pelo voto, de dispor do Estado quando do exercício do mandato, desde que haja o aval dos legislativos.
Antes dessa possibilidade constitucional, que não foi consentida pelos executivos ou legislativos mas conquistada pela cidadania, a sociedade civil só podia se manifestar pelo voto nos pleitos eleitorais, via mobilizações de massa... e, a nível local, ficava “refém” de clientelismos eleitoreiros de toda ordem. Ficávamos no limite da queixa e da denúncia, à mercê de, no máximo, uma decisão do Judiciário, ao qual se atribui erroneamente o lugar da imparcialidade.
Com o advento da possibilidade de co-gestão do Estado, a sociedade civil começa a passar da queixa e do denuncismo para a formulação de proposições e efetiva responsabilização por estas. Se, por exemplo, uma decisão do Conselho Municipal de Saúde não é correta, acarretando mal-atendimento ou injustiça no repasse de verbas para dada instituição, isso passa a não ser uma responsabilidade única do governo, mas sim desse Conselho Municipal, onde estão representados servidores, governo, representantes da população e prestadores de serviços etc.
Segundo Genro[3] o problema é “Como fazer isso?... A única saída parece
ser a criação de condições para uma modificação existencial (política e
material) da soma de individualidades que compõe a cena pública, crítica, não
estatal, de controle e indução sobre o Estado, com base na própria substatividade do direito e da constituição. Essa nova
esfera pública deverá ter como motivação de fundo as pressões setoriais,
operando para submeter o Estado e trazê-lo, da sua posição de estrutura “acima
da sociedade”, para uma inversão que não seja estatizadora
da sociedade, mas civilizadora do Estado, submetendo o seu movimento ao crivo
permanente da sociedade civil.”
Genro[4] afirma ainda que: “Trata-se, portanto, da criação de uma nova
esfera pública, cujas possibilidades já estão contidas no Estado atual, como
resultado de milhares de enfrentamentos individuais e coletivos, originários
das lutas sindicais, das associações de defesa dos direitos civis, das mulheres
e das raças oprimidas, dos coletivos comunitários, que se batem
fragmentariamente contra o Estado.” Diz ainda que “O objetivo seria, ainda, a criação de um novo sistema de “direito
desigual” – para compensar as desigualdades cada vez mais violentas – para que
tenha, ao mesmo tempo, “previsibilidade” para ser democrático...”.
Nesse contexto, baseado em algumas discussões e leituras, desde 1995, creio que o ECA, constitui-se em afirmação desse projeto de novas relações entre sociedade e Estado. Nessa Lei há previsão jurídico-social de abertura de possibilidades para tratar desigualmente as situações, considerando crianças e adolescentes cidadãos (e não incapazes), tendo em vista o social, o econômico e o fato de as crianças e os adolescentes serem considerados pessoas em situação peculiar de desenvolvimento (psíquico, físico...).
Para assegurar que esse novo direito fosse realmente acessado pela cidadania, foi prevista no ECA a criação de estruturas de participação popular: os Conselhos de Direito e os Conselhos Tutelares (CTs).
Os Conselhos de Direito têm a tarefa de deliberar a política de atendimento, criação e/ou aprovação de programas e serviços... O CT, “órgão autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente”[5], tem atribuições de atender e aconselhar os pais ou responsável, crianças e adolescentes, aplicando medidas a esses, podendo, para efetivá-las, requisitar quaisquer serviços públicos, sendo que suas decisões só podem ser revistas pelo Judiciário. Além disso, é atribuição do CT o assessoramento ao Poder Público local na elaboração do orçamento.
O CT está colocado, de um lado, como herdeiro institucional de toda tradição histórica de defesa de um Estado subordinado aos reais interesses da sociedade e, de outro lado, pelo desafio de intervir/incidir diretamente em áreas que, antes, eram de competência exclusiva do Poder Judiciário: o destino de muitos jovens cidadãos e suas famílias.
O atendimento aos casos de violência e abusos sexuais... coloca os conselheiros tutelares diante de problemas, situações, limites da vida em sociedade. Muitos deles negados e escondidos pelo Estado, pela grande imprensa e pela própria sociedade.
Na execução dessa tripla missão é que, do meu ponto de vista,
reside o problema principal de identidade e solidificação dos CTs: como agir entre
o técnico e o político? Como zelar pelo cumprimento da Lei e assessorar na
elaboração de orçamentos e, ao mesmo tempo, aconselhar pessoas? Como aliar a necessidade de escutar
situações com a premência de bem encaminhar os casos?
Como responder ao lugar de quem conhece a região, com o perfil de militante comunitário e, ao mesmo tempo, agir como sujeitos que precisam incorporar rudimentos técnicos para, a partir do social, diagnosticar casos de violação de direitos e decidir o encaminhamento, ou não, de crianças e adolescentes, para terapia, abrigamentos etc.? Que ética é necessária para ser um conselheiro tutelar?
Além dessas questões, somam-se outras: como fiscalizar as
instituições de atendimento e realizar trabalhos em parceria, quando a Lei
prevê a possibilidade da requisição de serviços? Quando, e a quem, recorrer
fora dos trâmites administrativos que a Lei coloca? Qual o limite do exercício da função?...
Buscando responder a essas e outras questões, conselheiros tutelares de todo Brasil estão discutindo procedimentos, antevendo a necessidade de um Código de Ética e da formalização de órgãos coordenadores/corregedores, em todos os níveis. Trabalho difícil, pela variedade de formação dos colegiados e pelas disputas de espaços e projetos políticos locais.
Contudo, é evidente que qualquer resposta é transitória. Como um dos mais importantes instrumentos construídos a partir da Constituição de 88, o CT carece de consolidação, enquanto órgão permanente e autônomo. Sua manutenção e qualificação são um desafio de toda a cidadania e não apenas dos conselheiros, que são temporários na função.
Finalmente, quero registrar, enquanto testemunho de uma práxis, que profissionais de várias instituições de atendimento e Conselhos Tutelares, contribuem decisivamente para a superação de situações de violência contra a infância e a juventude, rompendo ciclos de silêncio e medo.
Nessas práticas, todos nós vamos solidificando um novo modelo de Estado e, principalmente, uma nova ética das relações, que pode nos levar a uma sociedade mais cidadã. Pois, tal sociedade não pode ser gestada dissociada das microrrelações que se dão na capilaridade do tecido social, onde a violência é prática inter-relacional constante entre as pessoas, calando vozes e abortando projetos de vida.
Incidindo onde a democracia, enquanto projeto político de sociedade, por si só não responde aos desafios dos conflitos, acabamos por desnudar múltiplas e infindáveis manifestações de abusos de poder. Abusos esses, que não têm sua única razão de ser no Estado ou no modelo econômico, embora esses fatores estejam presentes.
Notas:
[1]
Publicado no Jornal “O Contemporâneo” – Setembro de 1997.
[2] Em Microfísica do Poder, 6.
ed, GRAAL, 1986.
[3]
GENRO, Tarso F. Herz. Utopia Possível. 2. ed.
Artes e Ofícios, 1995.
[4]
Idem item 3.
[5] Estatuto da Criança e do Adolescente, Brasil, 1990 – Art. 131.