Direito à liberdade, dignidade e respeito
Os direitos à liberdade,
dignidade e respeito, embora consagrados como fundamentais, quando não elevados
a fundamento do Estado Democrático (art. 1º, inc. III, da Constituição Federal),
recebem, paradoxalmente, pouca análise dos teóricos do direito, menos ainda
daqueles que se voltam à área da infância e juventude.
Pode-se, é certo,
compreender este relativo silêncio. Liberdade, dignidade e respeito são valores ético-políticos, que, para
sua consideração, reclamam uma análise que transcenda os limites estreitos da
teoria jurídica.
Sob a perspectiva dos
direitos das crianças e adolescentes, o campo de análise mostra-se ainda mais
vasto e tormentoso.
De fato, se o próprio
art. 15 do Estatuto dita que eles devem ser considerados como sujeitos de
direitos civis, humanos e sociais, evidenciando sua fundamentação filosófica de
busca por autonomia e emancipação humanas, deixa igualmente claro que estamos à
frente de pessoas em processo de desenvolvimento, que demandam, ainda, proteção
para que possam plenamente alcançar sua maturidade cívica e social.
Ora, ao considerarmos
este processo de desenvolvimento, temos a inserção no mundo jurídico de um
elemento dinâmico e, portanto, instável, que abala a pretensão ordenadora e de
segurança sobre a qual se estrutura o Direito. Se estas crianças e adolescentes
estão em contínua fase de mudança, o direito deve mudar com elas, a cada passo,
para que possa dialogar com este novo momento de expansão de capacidades e
potencialidades destes sujeitos.
Sob este enfoque, a limitação de
textos jurídicos, mais do que sinal de pobreza da produção científica nacional,
descortina os ricos horizontes que se abrem nesta área temática para a qual
este Acervo procura trazer uma contribuição sempre crescente. Com efeito, o que
está em jogo é a natureza específica e singular deste ramo do direito, cuja
autonomia, mais do que fechada em si mesma, abre-se inexoravelmente à
interdisciplinaridade e ao contínuo questionamento de seus pressupostos e
fundamentos.
Por tal razão, talvez de
todas, esta é a área menos ‘operacional’ dentre aquelas contempladas por este
ACERVO. Não porque ela não traga elementos para reflexão e sobretudo para a
ação garantidora dos direitos da criança e adolescente, mas sim porque é neste
campo em que a historicidade e a contextualização cultural, social e econômica
destes direitos mais se faz presente.
Trata-se, de fato, de uma
opção deliberada de minha seleção. Se o projeto iluminista cria possível a
afirmação de direitos universais, cuja validade reclamava uma formalidade que
se apresentava como expressão da estabilidade, segurança e ordem jurídicas, as
grandes correntes críticas do pensamento nos séculos XIX e XX nos mostraram o
quanto este esvaziamento da materialidade da vida precisava apagar as
diferenças e singularidades da existência humana e do tecido social, coartando
a manifestação de possibilidades de vida, quando não a vida em si. Por isso,
entendi fundamental deixar emergir neste ACERVO o incomensurável que acompanha
todo conflito de valores e de modos de vida, justamente porque, na concretude
em que se apresenta, poderia nos tentar a romper com a instrumentalização que
um determinado modo de pensar acabou por sujeitar, durante séculos, enormes
parcelas da humanidade, dentre as quais as próprias crianças e adolescentes.
Neste quadro, procurei,
de um lado, atentar às referências legais inscritas nos arts. 16 a 18 do
Estatuto, como marcos das expressões de vida em que estes direitos à liberdade,
respeito e dignidade deveriam se fazer presentes, mas, de outro, incluir também
uma série de textos em que questões de gênero, de classe, de raça, de cultura,
de sexualidade em todas as suas possibilidades, além da própria vida na rua, puderam
ganhar corpo, marcando a pluralidade de modos de vida de nossas crianças e
adolescentes. Com isto, visei mostrar a necessidade de que consideremos
seriamente crianças e adolescentes como protagonistas na condução de suas
vidas, como sujeitos de direitos, num jogo sempre tenso entre a proteção que
haveremos de lhes prover com a singular experiência de vida de cada um destes
atores.
Esta tensão de uma
experiência de busca de justiça, tendo à frente crianças e adolescentes, talvez
seja a razão pela qual muitos dos temas abordados não
cheguem, com a densidade esperada, aos nossos tribunais, sinal da pouca
expressividade dos julgados encontrados na área. Mais uma vez, este relativo
silêncio pareceu-me, de tudo, um dos aspectos mais relevantes deste ACERVO. Ele
nos permite, de fato, indagar até que ponto crianças e adolescentes, com o grau
de diversidade que procurei apresentá-las, têm garantida
voz perante o direito, perante nossos operadores do direito, pelos instrumentos
que lhes pomos à disposição.
Sob esta gama de
perspectivas, esta área temática procura, além de ser sedimentadora desta
tradição de garantia de direitos, constituir-se em espaço de reflexão e crítica
dos direitos das crianças e adolescentes e da operacionalidade dos instrumentos
de garantia do direito, fazendo jus à complexidade que os valores da liberdade,
dignidade e respeito reclamam de cada um de nós.
Eduardo Rezende Melo
Juiz de Direito