O PROCESSO DE APRENDIZAGEM E ENSINO NA ESCOLA: SEUS ENCANTOS E SUAS ARMADILHAS

 

 

Célia Linhares

Professora Titular de Política Educacional da UFF-RJ.

 

“Não desvalorizemos nossas crianças em função daquilo que não sabem; valorizemos seu saber”.

(Humberto Maturana)

 

 

1 – Vamos conversar sobre as aprendizagens na escola?

 

Em boa hora o Ministério Público do Maranhão reconheceu as interfaces necessárias e urgentes entre Direito e Educação, propondo um diálogo para repensarmos o processo de ensino-aprendizagem como um caminho para contribuirmos para reconstrução do Brasil, de modo que possamos nos orgulhar de pertencermos a ele, mas também, de senti-lo como pertencendo a nós.

Afinal é disto que se trata: buscarmos juntos inventar esse nosso país para que nele caibamos todas e todos, com nossos passados e memórias éticas e nossos sonhos de futuro e de felicidade, coletiva e individual.

É por isso que nos importa tanto aprendermos a pronunciar nossos direitos: os já reconhecidos e os muito a serem conquistados, como práticas ativas desta sociedade brasileira em que precisamos intensamente participar

Porque os projetos sociais não se concretizam por passes de mágica, faz-se urgente aprender a valorizar os legados daqueles que lutaram por uma includência social e se empenharam na ampliação da escola pública, procurando impregnar os processos de aprendizagem escolar da compreensão das práticas históricas com que fomos formados para possibilitar exercícios em que imaginemos juntos outras formas de conviver, mais compatíveis com a dignidade, nos empenhando para concretizá-las.

Isto equivale a declarar que estamos firmemente convencidos de que um outro mundo e uma outra escola são possíveis. Importa compreender que para construí-los precisamos assumir um preço. Preço traduzido em atenção, cuidado, esforço, diálogo, negociação, rupturas com os individualismos e as inércias. Um preço muito alto? Talvez, mas que corresponde a intensos benefícios que teremos como nação e como cidadãos.

Este horizonte é incrivelmente desafiador e fascinante, pois enquanto cuidamos de superar as desigualdades que nos fraturam, desde longas datas, também vamos nos conjugando com movimentos atuais que se espalham pelo mundo, na busca de forjar outro tipo de civilização mais aberto às diferenças e que se oriente mais pela solidariedade e colaboração do que pela guerra e competição crescente.

Sabemos estar num período de transição, em que todas as instituições vêm se deslocando, velozmente. Um período em que nada fica no mesmo lugar. Basta pensar nas mudanças que ocorreram no mundo do trabalho, da família, da comunicação, por exemplo.

Mas, importa também atentar para o caráter contraditório e ambivalente destes deslocamentos que embora se apresentando hegemonicamente sob um ímpeto homogeneizador, em suas formas opressoras e excludentes de dominação, não se mostram invulneráveis, nem absolutas e, portanto, não estão isentas de frestas. Por estas circulam as possibilidades de pluralização, potencializando lutas emancipatórias, com que combatemos tanto as desigualdades como as práticas massificadoras. De todas as espécies.

Tudo isso nos mostra que estamos numa fase em que, se quisermos reinventar os rumos da história, teremos que investir em um tipo de aprendizagem questionador, inquieto, ativo e criador, muito distante daquele modelo reprodutor, aplicacionista e obediente que procurava seguir um padrão, proclamado como “o válido”.

É impossível não lembrar de Bolívar, quando analisou as saídas para a construção de um futuro para América Latina, concluindo que só temos duas alternativas: ou inventamos ou erramos. Isto porque repetir o passado, sem digeri-lo diante dos desafios atuais é, inapelavelmente, cair em “soluções” contrárias aos nossos interesses e, portanto, significando entregar-nos aos extravios e até a traição do potencial de nossa história.

Bolívar acreditou que a grandeza de um povo tinha relações de interdependência com sua capacidade de, aproveitando os problemas e desafios de cada presente, inventar respostas, saídas e encaminhamentos, para as encruzilhadas que os atormentam. Para isso, urge que aprendamos, não só, como vem sendo formado e conformado o Brasil, mas sobretudo que reconheçamos como nosso patrimônio, a que devemos fortalecer, esta capacidade incomensurável de resistência, de sonho e de inventividade como sociedade continuamos a ter.

É tempo de conhecermos o Brasil; é tempo de aprendermos a dar nome aos processos que nos fazem permanecer fraturados pelas desigualdades, produzindo riqueza para alguns poucos e miséria para tantos de nós.

A busca de tomar os problemas educacionais para debatê-los em uma conversa pública, envolvendo todos os interessados – pais, mães, professores, trabalhadores e profissionais, sindicatos, partidos políticos, diferentes órgãos do Estado e forças vivas da sociedade – é um convite muito importante do Ministério Público. Um convite que precisa ser aceito e exercido, o mais amplamente possível.

Não podemos nos esquecer que a educação e, particularmente a escola interessa a todos – embora a cada um de uma maneira – e que um país melhor, com mais emprego, mais casas, melhor distribuição de terra e de renda não se faz só com boas escolas, mas não se pode fazer bem sem elas. Sem instituições escolares que revigorem a autonomia, através de aprendizagens e ensino que dialoguem com os saberes populares, científicos – como produtos que são – não chegaremos a decidir que lugar desejamos ocupar num mundo, que vai sendo globalizado.

Por isso mesmo, vale a pena conversarmos sobre os processos de aprendizagem e ensino que se processam na escola. Neste campo existem ambigüidades das quais precisamos falar. Se todas e todos queremos aprender sempre e garantir as melhores condições para que nossos filhos e filhas também aprendam, paradoxalmente, poucas vezes nos ocupamos em discutir o que seja aprender. Tomamos, assim, a aprendizagem como um processo conhecido. Afirmamos que é preciso aprender, ir a escola e pouco questionando em que consiste a aprendizagem e o que é importante aprender.

Este silêncio sobre o aprender acoberta muitos preconceitos que funcionam como armadilhas, detonando munição mortal nos nossos desejos de compreender a vida, como uma forma de aprendizagem que nos transforme, transformando o mundo. Por isso, decidimos começar nossa conversa perguntando o que é aprender, para depois refletirmos em alguns caminhos que podem nos ajudar a aprender mais e melhor.

 

2 – O que é aprender?

 

Ainda que seja uma palavra muito usada e até abusada, aprender é sempre um processo complexo porque inerente a vida. Os biólogos – particularmente, os que vêm estudando a auto-organização vital -, são enfáticos em afirmar que a vida não se separa de movimentos de aprendizagens, desde nas bactérias até nos seres humanos.

Mesmo assim é difícil dar regras para a aprendizagem, face a sua extrema complexidade e variedade. Quantas vezes nós mesmos nos surpreendemos com nossa resistência em aprender. Passamos recorrentes vezes por situações semelhantes e repetimos velhos comportamentos, sem apropriar-nos das experiências anteriores. “Meu Deus não aprendo isso?!”, costumamos clamar aos céus.

Apesar de termos experiências que nos evidenciam as dificuldades de aprender, tomamos a aprendizagem como um ato consciente da vontade e, com freqüência, ameaçamos os pequeninos. “Se você não aprender na escola, o seu futuro será triste. Se não tirar boas notas, você vai ficar de castigo. Presta atenção, aprenda enquanto é tempo”. Será que já nos perguntamos como repercutem nos aprendizes estes conselhos e repreensões? Será que já atentamos para o funcionamento da atenção e para os efeitos das tensões que estas advertências geram?

Se temos tanto a pensar e a conversar sobre as aprendizagens - que continuamente se processam em nossas vidas –, importa sublinhar que mesmo quando não aprendemos o que pretendíamos, ou a escola programou, não deixamos de aprender. As vezes, aprendemos na escola que somos incapazes de aprender ... Velho e perverso engodo que vem prejudicando o desenvolvimento de muitos estudantes.

Não podemos esquecer que ninguém que esteja vivo seja incapaz de aprender. Entretanto, é valido procurar saber o que gostamos de aprender, compreendendo as diversas razões de ordem biológica, social, cultural, econômica e política que nos perturbam em nossas aprendizagens. Este é um outro caminho mais promissor e cheio de histórias e enredos que precisamos conhecer.

Por tudo isso, uma criança na escola aprende muito mais do que está contido no seu caderno e o que as provas dizem constatarem. Elas convivem com profissionais e auxiliares da instituição escolar, com outras crianças, adolescentes e jovens, aprendendo sem parar expressões, valores, comportamentos e uma infinidade de relações e experiências que, dependendo de sua elaboração, irão localizando-as como uns seres mais ou menos ativos, mais ou menos solidários, ajudando a configurá-la na escola e no mundo.

Elas como nós, podem aprender rapidamente algumas noções e atitudes ou demorar na apreensão de outras. Quantas vezes, depois de uma série de tentativas malogradas, aprendemos a relacionar acontecimentos, conceitualizando-os em processos que irromperam por caminhos tão inesperados que chega a representar saltos de compreensão e aprendizagem em nossas vidas? Só aprendemos naquele momento final ou em cada tentativa – que nos pareceu frustrada – captávamos dimensões e movimentos do que nos propúnhamos aprender, aprendendo também de nós em cada uma delas?

É por isso que é tão difícil avaliar as aprendizagens, respeitando as diferenças culturais, políticas e econômicas e as singularidades pessoais. Como pensar em massificar aprendizagens, ensinos e suas avaliações, sem cometermos injustiças que acabam ceifando esperanças e ajudando a destruir vidas humanas?

Agora que já conversamos um pouco sobre aprendizagens, pensamos que podemos dar mais um passo, para juntos refletirmos como podemos ajudar a nós e a nossos estudantes a aprendermos melhor, contribuindo para construir uma escola e um país com mais ética e mais felicidade.

 

3 – Abrindo caminhos para a aprendizagem e o ensino

 

3.1 – A abertura para aprender pode ajudar, e muito, a ENSINAR.

Não é uma simples casualidade a inversão dos termos ao invés do ensino-aprendizagem preferimos falar em aprendizagem e ensino. Acredito que os poetas – como artistas que são – conseguem insinuar e dizer o que os pesquisadores têm dificuldade de definir. Guimarães Rosa, por exemplo, afirmou, com extrema sabedoria, que mestre é aquele que de repente aprende.

Concordamos com ele. Uma das mais decisivas conquistas para bem ensinar é aprender com quem nós ensinamos. Isso implica em uma disponibilidade para ver atalhos e caminhos desconhecidos para nós e que vão sendo “inaugurados” pelos nossos aprendizes. Para que isto aconteça, torna-se indispensável que, “não desvalorizemos nossas crianças em função daquilo que não sabem; valorizemos seu saber”. Lembraram de nossa epígrafe?

Em um artigo anterior (1996), discutimos a frustração de uma criança que, ao mostrar seu caderno de exercício em casa, teve que enfrentar o olhar de sua mãe que só via as marcas vermelhas dos erros. Nada do muito que ele havia acertado parecia contar. A percepção da mãe circunscrevia-se ao que estava errado. O menino chorou, reclamando que não se sentia amado. Com razão. A mãe aprendeu o quanto é necessário acolher as conquistas aprendidas. Como conta ver as aprendizagens que parecem não gozar de maiores significações. Elas abrem portas para aprendermos com alegrias compartilhadas.

Nunca é demais repetir que para aprender, de uma forma afirmativa e confiante, é necessário sermos reconhecidos no nosso esforço e no nosso engenho. Esta autoconfiança nos enche de um sentimento de apreço que nos encoraja a tentar outras aprendizagens desejadas. Além da lição de todo dia, precisamos ir confirmando este sentimento de potência que nos abastece com a segurança de que podemos aprender o que quisermos, se contarmos com as condições necessárias e a ajuda dos outros.

 

Com este primeiro caminho para facilitar a aprendizagem já estão entrelaçados os dois que vamos destacar a seguir:

 

3.2 – A aprendizagem é um processo de interação social.

Ninguém aprende sozinho. É no circuito das relações sociais que vamos vivendo e aprendendo como seres humanos, para quem a linguagem é tão importante.

Considerando que somos seres abertos ao diálogo, com os que nos cercam e com as próprias circunstâncias que nos condicionam, há pesquisadores que enfatizam o ambiente comunicativo como um suporte fundamental para aprendizagem escolar. Vygotsky (1978) fala na “zona de desenvolvimento proximal” que envolve o grupo que cerca o aprendiz e que representa uma ampliação de sua capacidade individual de aprender.

Afinal, aprendemos em comunhão com os outros, como gostava de dizer Paulo Freire, e das maneiras mais surpreendentes possíveis. Quanto melhor nos constituímos como uma comunidade em que o sentimento de colaboração prevalece, com a valorização das diferenças e o respeito uns pelos outros, tanto mais sobem as possibilidades de aprendermos o que desejamos.

A literatura pedagógica registra vários relatos sobre como os supostos limites de aprendizagem foram ultrapassados pelo trabalho integrado do grupo de estudantes e professores, mães, pais e avós decididos a se ajudarem nos trabalhos de aprender e ensinar.

Quem de nós não experimentou o apoio decisivo que uma expectativa amorosa a nosso respeito teve para superar dificuldades na aprendizagem escolar e na própria vida?

Outra relação importante já mencionada é a da curiosidade, do desejo que podem se traduzir num projeto coletivo. Lembram que falamos anteriormente (item 1) que se tivermos as condições necessárias “podemos aprender o que quisermos...”? É sobre isso que vamos trabalhar em seguida.

 

3.3 – A curiosidade e o desejo de aprender conferem à aprendizagem um caráter de aventura e de prazer que estimula os aprendizes.

 

Quando estudamos por obrigação, dificilmente, aprendemos de modo que repercuta como um bem em nossa existência individual e, muito menos, na coletividade a que pertencemos.

Por isso é tão importante experimentar o mundo para aquém e para além da sala de aula, Como as brincadeiras, os passeios, as conversas aguçam a curiosidade e ampliam o interesse pelo ensino!!! Como ouvir e contar histórias pode ampliar o universo de experiências e o prazer de ler e narrar!!! Crianças e jovens que pouco conversam em casa, que são pouco escutados na escola representam grupos que tendem a “receber” o ensino como uma carga que muito lhes pesa e, portanto, não lhes permite os benefícios tão anunciados da escola.

É importante que os estudantes sejam educados para perguntar, para participar, para tentarem respostas diferentes. Só assim estaremos alimentando o seu desejo não só de compreender os mecanismos com que nossa sociedade foi formada, mas também, ao compreendê-los como uma produção histórica, saber que podemos buscar – com ações conjuntas – tentar modificá-los.

Estes são alguns caminhos para fazer do processo de aprendizagem e ensino escolar um trabalho mais interessante e vivo. Pense que outros caminhos você teria a sugerir. Sabemos que este inventário, como nossas aprendizagens, não tem limites.