MORTE
POR AIDS OU MORTE MATERNA: A CLASSIFICAÇÃO DA MORTALIDADE COMO PRÁTICA SOCIAL[1]
Rosa Dalva F. Bonciani[2]
Coletivo Feminista
Sexualidade Saúde.
Mary Jane P. Spink
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Resumo
O
artigo trata da decisão de inclusão ou exclusão de óbitos de mulheres em idade
fértil, com HIV/AIDS, nas estatísticas de mortalidade
materna. Foram analisados os casos referentes ao ano de 1998, investigados pelo
Comitê Central de Mortalidade Materna do Município de São Paulo (CCMM-MSP).
Tendo como enquadre a abordagem construcionista, a
pesquisa utilizou como fonte de dados, relatórios e entrevistas com o
presidente do CCMM-MSP e membros de um comitê municipal regional. Buscou-se apontar
aspectos presentes na seleção, investigação e classificação final das mortes
maternas investigadas, focalizando os espaços de negociação entre os vários
atores envolvidos no processo. A análise sugere que, quando se trata de óbitos
de mulheres com HIV/AIDS, interferem ainda outros
fatores como a precedência do status soropositivo para o HIV e os aspectos
morais e simbólicos da AIDS. Concluiu-se que o aperfeiçoamento das estatísticas
por meio da melhor compreensão da decisão de inclusão ou exclusão de casos é
apenas um lado da questão; faz-se necessário também melhorar a qualidade da
assistência ao ciclo gravídico-puerperal para evitar
a ocorrência dessas mortes.
Palavras-chave: Mortalidade Materna; Síndrome de Imunodeficiência
Adquirida; HIV.
DEATH BY AIDS OR MATERNAL DEATH: CLASSIFICATION OF
MORTALITY AS A SOCIAL PRACTICE
Abstract
This
paper analyzes the decision on whether to include deaths of HIV+ pregnant women
in the classification of maternal mortality. The study focuses on deaths of
childbearing-age women in
Key words: Maternal Mortality; Acquired Immunodeficiency
Syndrome; HIV.
Introdução
O
estudo da inclusão ou exclusão da classificação da morte de mulheres em idade
fértil, com HIV/AIDS nas estatísticas de mortalidade
materna é uma demanda atual em nosso meio, por três fatores relacionados entre
si. O primeiro é o número elevado de mulheres com HIV/AIDS
(Programa Estadual de DST/AIDS-SP,
2002). Em segundo lugar, está o fato de que a maioria das mulheres
infectadas encontra-se em idade reprodutiva. E, finalmente, há escassez de
estudos com esse enfoque na literatura científica, uma vez que a maioria dos estudos relativos à gravidez e AIDS prioriza a
problemática da transmissão materno-infantil do HIV.
O
aprimoramento das estatísticas de morte por causa materna (causas relacionadas
à gravidez, parto e puerpério) se dá por meio da
investigação dos óbitos de mulheres em idade fértil por comitês de mortalidade
materna. Segundo o Ministério da Saúde (MS, 1994), esses comitês têm, como
objetivo, a intervenção nas decisões sobre ações médico-administrativas nos
diferentes níveis de serviços que possam levar à redução das mortes maternas.
Acompanhando
o processo de classificação de morte por causa materna pelo comitê,
consideramos que, nos casos de mulheres com HIV/AIDS,
há duas dificuldades. De um lado, temos as regras de seleção de causa de morte
da Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID-10 (OMS,
1994), que dão prioridade para classificar a AIDS como causa de morte. De
outro, há a força de caráter moral e simbólico em torno da AIDS, observada
entre profissionais da saúde que usam o termo "aidética" para se
referir a mulheres com HIV/AIDS, ou expressões como,
se tem AIDS, não deveria engravidar (Bonciani, 2001).
Observamos
que a orientação seguida pelos membros do comitê no processo da investigação,
levava-os a classificar as mortes de mulheres com HIV/AIDS
como decorrentes da AIDS, em detrimento da causa materna. Esse fato chamou
nossa atenção para o risco de cristalizar-se o entendimento que, tratando-se de
AIDS, não se trataria de morte por causa materna, com possíveis conseqüências
para as ações de intervenção e prevenção dessas mortes. Assim, aprofundar a
compreensão sobre a inclusão ou exclusão da classificação da morte de mulheres
com HIV/AIDS nas estatísticas de mortalidade materna
foi a questão motivadora desta pesquisa.
O
presente estudo foi desenhado no enquadre da abordagem construcionista,
em que o processo de classificação é entendido como uma prática social que é
histórica e socialmente contextualizada. Isso implica entender as classificações
como espaços de produção de sentido, assim como tomar o processo de
classificação como uma complexa negociação que envolve uma variedade de atores
sociais: paciente, familiares, profissionais de saúde, membros da sociedade
civil organizada que atuam na área da saúde e membros dos comitês de
mortalidade materna.
A
análise aqui realizada buscou desfamiliarizar as
práticas classificatórias, situando-as como práticas sociais produtoras de
sentidos e de conhecimentos que têm conseqüências para a ação. A pesquisa sobre
produção de sentidos, segundo Spink & Medrado
(1999), é um empreendimento sociohistórico e exige o
esforço transdisciplinar de aproximação ao contexto
cultural e social em que se inscreve um determinado fenômeno social.
O
contexto da problemática da mortalidade materna, bem como da morte materna no
contexto da AIDS, foram discutidos na Dissertação de Mestrado de Bonciani (2001). O objetivo deste artigo é apresentar os
principais resultados da pesquisa realizada para compreender a decisão de inclusão
ou exclusão de óbitos de mulheres com HIV/AIDS nas
estatísticas de morte materna, por meio da análise dos casos investigados no
Município de São Paulo para o ano de 1998.
Metodologia
Para
compreender a decisão de inclusão ou exclusão de óbitos de mulheres com HIV/AIDS nas estatísticas de morte materna, utilizamos os
dados provenientes de quatro fontes: (1) o relatório do Comitê Central de
Mortalidade Materna do Município de São Paulo (CCMM-SP), para o ano de 1998, da
Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo (SMS-SP, 1999); (2) duas entrevistas
com o profissional responsável pela seleção das Declarações de Óbito (DO) de
1998 que, à época da pesquisa, ocupava o cargo de Presidente do CCMM-SP; (3) os
resumos da investigação e classificação de dois dos cinco óbitos de mulheres
com HIV/AIDS que foram pesquisados no ano de 1998 e
(4) a discussão desses dois casos com os integrantes do Comitê Regional de
Mortalidade Materna.
Como
primeira fonte, foi utilizado o relatório do CCMM-SP referente ao ano de 1998,
porque continha os dados mais recentes à época da pesquisa e apresentava o
maior número de casos com HIV/AIDS identificados como
morte materna até então. Além disso, tendo participado do comitê regional há
seis anos, foi neste ano que observamos uma ênfase maior no debate em torno da
inclusão ou exclusão de óbitos de mulheres com HIV/AIDS
nas estatísticas de morte materna. As informações contidas no relatório sobre a
quantidade de DO de mulheres de 10 a 49 anos, selecionadas para investigação e,
segundo o resultado encontrado pelo CCMM-SP, foram utilizadas para construir a
Tabela 1.
Como
segunda fonte, foram realizadas duas entrevistas com o profissional que, além
de ser responsável, na época em que foi realizada a pesquisa, pela seleção das
DO de mulheres em idade fértil para investigação de morte materna, participava
da decisão do CCMM-SP sobre a classificação final das mortes maternas. A
primeira entrevista visou entender se havia diferença de critérios na seleção
das DO de mulheres em idade fértil sem diagnóstico de HIV/AIDS
em relação às mulheres com HIV/AIDS.
A
segunda entrevista buscou aprofundar a compreensão da decisão do CCMM-SP, após
análise de dois óbitos de mulheres com HIV/AIDS, de
excluir um e incluir o outro na estatística de morte materna, conforme os
resumos dos casos apresentados na Tabela 2. Essa tabela foi construída com base
nos dados do relatório da reanálise dos casos
selecionados e que constituiu nossa terceira fonte de informação.
Finalmente,
de modo a entender os espaços de negociação existentes no que diz respeito à
classificação de óbitos de mulheres com HIV/AIDS
quanto à morte materna, realizamos uma discussão com os integrantes do Comitê
Regional de Mortalidade Materna (CRMM) a respeito da reclassificação desses
dois casos pelo CCMM-SP. Essa discussão constituiu nossa quarta fonte de
informação.
A
decisão de inclusão ou exclusão de óbitos das estatísticas de mortalidade
materna, objetivo principal desta pesquisa, foi abordada a partir de três
eixos: (1) a seleção dos casos para investigação, (2) os critérios para seleção
e (3) a investigação da morte de mulheres com HIV/AIDS
quanto à causa materna.
Aspectos éticos
O
protocolo da pesquisa foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, de acordo com os
requisitos da Resolução CNS/196/96.
Apoiando-se
fundamentalmente em documentos de domínio público e entrevistas com pessoas que
ocupavam cargos públicos, as estratégias de coleta e análise de dados buscaram
assegurar a condução ética do estudo, preservando a confidencialidade
e a privacidade de modo a garantir a proteção à imagem e auto-estima.
Resultados
Para
analisar o processo de seleção das DO para investigação e classificação de
morte materna, utilizamos as categorias definidas no Manual de Instrução
(volume 2) da CID-10 (OMS, 1994):
• Morte materna: morte de uma mulher
durante a gestação ou dentro de um período de 42 dias após o término da
gestação, independente da duração ou da localização da gravidez, devida a
qualquer causa relacionada a ou agravada pela gravidez ou por medidas em relação
a ela, porém não devido a causas acidentais ou incidentais. As mortes maternas,
por sua vez, podem ser subdivididas em dois grupos:
• Mortes obstétricas diretas: aquelas
resultantes de complicações obstétricas na gravidez, parto
e puerpério, devidas a intervenções, omissões,
tratamento incorreto ou a uma cadeia de eventos resultantes de qualquer das
causas acima mencionadas.
• Mortes obstétricas indiretas: aquelas
resultantes de doenças existentes antes da gravidez ou de doenças que se
desenvolveram durante a gravidez, não devidas a causas obstétricas diretas, mas
que foram agravadas pelos efeitos fisiológicos da gravidez.
Utilizamos
ainda, a categoria Morte Materna não
Obstétrica (também chamada por alguns autores como "morte não
relacionada"), que vem sendo utilizada para classificar as mortes durante a gravidez, parto ou puerpério,
associadas a causas incidentais ou acidentais e que, conforme o Ministério da
Saúde (1994), devem ser relacionadas à parte.
Casos selecionados, investigados e classificados pelo
CCMM-SP em 1998
Em
1998, ocorreu no Município de São Paulo, um total de 4.347 óbitos femininos, de
10 a 49 anos, que inclui todas as causas. Desse total, 403 óbitos tinham causas
relacionadas ao HIV/AIDS, segundo o Programa de
Aprimoramento das Informações de Mortalidade do Município de São Paulo
(PRO-AIM), e os demais 3.944 englobaram todas as demais causas. Das 741
declarações de óbito selecionadas para investigação de morte materna, apenas 5
eram de mulheres com HIV/AIDS.
Dos 741
casos selecionados para investigação (Tabela 1), 127 foram classificados como
morte materna, categoria que inclui todas as mortes obstétricas diretas e
indiretas, ocorridas durante a gestação ou até 42 dias após o seu término. É
com base nessas mortes que se dá o cálculo da taxa de mortalidade materna (TMM)
- ou coeficiente de mortalidade materna (CMM). Quatro dessas mortes maternas
eram de mulheres com HIV/AIDS. Outros 45 casos com gravidez confirmada, apresentados na Tabela 1, não entram no
cálculo da taxa de mortalidade materna. Em 552 casos pesquisados, não havia
gravidez envolvida por ocasião do óbito ou nos últimos doze meses que o
antecederam; eles foram então considerados negativos, ou seja, sem nenhuma
relação com morte materna. Havia 17 investigações ainda não concluídas até o
fechamento do relatório.
Os critérios de seleção das DO de mulheres em idade
fértil para a investigação de morte materna pelo CCMM-SP
A
análise do processo de seleção das DO de mulheres em idade fértil para a
investigação de morte materna teve por base as informações obtidas na
entrevista com o profissional responsável por essa seleção no CCMM-SP.
Buscou-se, nesta etapa da análise, entender se havia diferença de critérios na
seleção das DO de mulheres em idade fértil sem diagnóstico de HIV/AIDS em relação às mulheres com HIV/AIDS.
§
Seleção das DO de mulheres
sem diagnóstico de HIV/AIDS
O
entrevistado referiu que a seleção é feita no PRO-AIM, onde são avaliados todos
os casos de morte de mulheres entre 10 e 49 anos, sendo selecionados todos os
casos de morte materna declarada e todas as causas suspeitas. Como exemplo de
causas suspeitas, são citadas por ele: crise convulsiva, processos infecciosos,
acidente vascular cerebral (AVC), tromboembolismo
pulmonar, infarto, cardiopatias, edema agudo de pulmão e hipertensão arterial.
Refere tratar-se de uma lista bem ampla a ser utilizada para selecionar os
casos, estratégia que, segundo seu depoimento, tem conseqüências para a prática
de seleção de casos para investigação:
Cabe aqui um parênteses, por causa do
seguinte: se a gente for ..., se nós nos atermos a
essa lista, ipsis literis,
a quantidade de casos ... a ser pesquisada é muito grande e nós não temos
capacidade operacional para investigar esses casos. Os Comitês de Morte
Materna, na maioria das regionais, (....) não conseguem dar conta do volume
(....). Então, pela nossa própria vivência, experiência como médico obstetra,
nós procedemos a uma segunda seleção. Por exemplo, um quadro de AVC decorrente
de uma hipertensão arterial numa mulher de 49 anos; a chance dessa
mulher estar grávida é pequena, em comparação com uma mulher de 20, 30
anos, então esse caso, geralmente, é deixado de lado (....), mesmo que ocorra
perda de casos positivos para morte materna, (....) não é significativa. Então,
no cômputo geral, pela própria vivência..., (....) desde 1995, o coeficiente de
morte materna alterou muito pouco, mesmo ampliando esse pool de investigação.
Observa-se,
assim, que a própria seleção dos casos a serem investigados está submetida a
decisões tomadas com base em contingências previamente avaliadas e julgadas por
quem a executa. Isso sugere que a prática classificatória,
sendo apoiada na "própria vivência", tem caráter de construto
social.
§
Seleção das DO de mulheres
com HIV/AIDS
Respondendo
à nossa pergunta sobre como são selecionados os óbitos de mulheres com HIV/AIDS para investigação de morte materna, o entrevistado
referiu que a AIDS é considerada como morte
materna não relacionada por definição da OMS, a não ser que haja o
envolvimento de uma causa gravídica provocando o
óbito, e assim exemplificou:
Uma paciente aidética que
tem uma crise convulsiva decorrente de uma eclâmpsia.
Então, o que provocou o óbito dessa paciente foi a eclâmpsia,
não foi a AIDS. Então, (....) morte materna é... direta, no caso. A mesma coisa
vale para cardiopatias, infecção puerperal, tudo isso; cada caso é analisado
para poder ser feita a classificação. Hoje, devido ao número elevado de casos
de AIDS, se não houver escrito na DO que ela estava grávida, ou não estiver
explicitado no campo "causa do óbito" que ela estava grávida, nós não
selecionamos o caso para investigação. Eu tenho outros casos mais importantes
para serem investigados, já que a AIDS é considerada como não relacionada.
A
seleção dos casos suspeitos de morte materna fundamenta-se no uso de uma lista
de causas justamente devido ao sub-registro da informação, tanto da causa
materna, quanto do estado gravídico nas DO. Entre as
mortes maternas de 1998, esse sub-registro foi da ordem de 60%, segundo a Secretaria
Municipal da Saúde de São Paulo (SMS-SP,1999). Portanto, basear-se na
informação sobre a existência de gravidez nas DO de mulheres com HIV/AIDS parece sugerir a operação de critérios
diferenciados para a seleção dos casos.
A investigação da morte de mulheres com HIV/AIDS quanto à causa materna
Entre
os cinco óbitos de mulheres com HIV/AIDS investigados
pelos comitês municipais de mortalidade materna de São Paulo, em 1998, elegemos
dois para análise mais aprofundada, de modo a compreender a decisão final da
reclassificação de inclusão de um e exclusão do outro na estatística de
mortalidade materna. Os resumos da investigação fornecidos pelo CCMM-SP são
apresentados na Tabela 2.
A
discussão em torno da classificação final pelo CCMM-SP dessas duas mortes - uma
como obstétrica indireta e a outra como não obstétrica - foi considerada
ilustrativa da complexidade do processo de decisão de inclusão ou exclusão de
óbitos de mulheres com HIV/AIDS nas estatísticas de
morte materna.
Dentre
esses dois casos, destacamos o óbito de Araci, que foi investigado pelo CRMM do
qual participamos. Portanto, acompanhamos de perto a pesquisa e discussão deste
caso.
O CRMM
já havia sido informado sobre a ocorrência e o local do óbito, bem como sobre a
sorologia positiva para o HIV, pelo Centro Municipal de Referência de DST/AIDS onde Araci fora atendida anteriormente. Assim
sendo, mesmo antes de receber a cópia da DO, o CRMM antecipou o início da
investigação solicitando à Maternidade o acesso às informações. A cópia da DO chegou
ao CRMM seis meses após a ocorrência do óbito. No campo das causas de morte do
Atestado de Óbito (AO) estavam declaradas: Insuficiência Respiratória e
Pneumonia Intersticial. O HIV não foi mencionado.
A
pesquisa desse caso não fugiu à regra das dificuldades encontradas nas
investigações de morte materna em geral, sobretudo no que diz respeito à
obtenção das informações sobre o atendimento recebido pela mulher nos serviços,
sendo estas necessárias para a compreensão da evolução do caso. Do início da investigação
até a obtenção das informações sobre o pré-natal, transcorreu um ano e meio.
Por meio do estudo detalhado e reconstituição histórica do caso (cf. arquivo do
CRMM), foi possível acompanhar a peregrinação de Araci nos vários serviços de
saúde pelos quais passou, desde o início da gravidez até sua morte.
Além
dessas dificuldades, a discussão no CRMM sobre a classificação desse óbito e
sua inclusão ou exclusão na categoria de morte materna suscitou um debate em
decorrência do fato específico de tratar-se de uma mulher com HIV/AIDS. Entre as informações que embasavam o processo de
classificação, interferiam também dois fatores: a) a tendência na literatura em
afirmar que a gestação não altera o curso de progressão da infecção pelo HIV em
mulheres assintomáticas (MS, 1995) e b) a prioridade
para classificar como causa de morte a AIDS.
Essas
proposições pareciam postular que, sendo um caso de AIDS, não se tratava de
morte por causa materna, tendendo a considerar a classificação desses casos
como Morte Materna Não Relacionada.
Do CCMM-SP procedia a orientação também nesse sentido.
Entretanto, o CRMM defendia classificar o óbito de Araci como Obstétrico Indireto e, diante dessa
discordância, decidimos discutir sua classificação com o CCMM-SP.
Embora
um de seus membros discordasse da classificação deste caso como Morte Materna Não Relacionada, o CCMM-SP
defendeu a decisão de acatar a diretriz ditada pela comunidade científica
internacional. Concluiu, então, pela aceitação desta diretriz e a morte de
Araci foi incluída no relatório referente a 1998 entre as mortes maternas não
relacionadas.
Discussão: a difícil arte de classificar
Para
avançar na discussão propomos situar o processo de classificação da mortalidade
- entendido como uma prática social - na confluência de dois eventos: o processo de elaboração da CID e a prática classificatória
propriamente dita.
Nesses
dois eventos está em jogo uma complexa negociação que envolve uma variedade de
atores sociais: profissionais especialistas envolvidos com o processo de
elaboração da CID, pacientes, familiares, profissionais de saúde, membros da
sociedade civil organizada que atuam na área da saúde e membros do comitê.
Assim,
em relação à CID, com o reconhecimento da existência
de ajustes e concessões requeridos para sua elaboração (Laurenti,
1991) e do limite representado pelas condições diferentes de seu uso - que faz
dela o consenso possível de ser obtido entre parceiros desiguais e em
diferentes momentos (Novaes, 1987), é também com um olhar crítico que vemos a
submissão às diretrizes da comunidade científica internacional, observada neste
estudo. Quanto à prática classificatória propriamente dita, a postura do
CCMM-SP de defesa irrestrita ao princípio da comparabilidade estabelecido pela
CID parece reproduzir, no nível micro, as desigualdades que ela acarreta no
nível macro.
Tendo
em vista esses dois aspectos do processo classificatório, a discussão dos dados
desta pesquisa foi direcionada para uma maior compreensão da decisão de
inclusão ou exclusão de óbitos de mulheres com HIV/AIDS
nas estatísticas de morte materna. Com esta discussão não pretendemos
questionar as decisões tomadas ou reclassificar os
casos. Entretanto, com base nos dados apresentados na Tabela 2, procuramos dar
visibilidade e compartilhar nosso estranhamento com a classificação da morte de
Anita como Obstétrica indireta - e,
portanto, sua inclusão na estatística de morte materna - e a morte de Araci
como Não obstétrica ou Não relacionada, excluindo-a da
estatística de morte materna.
Buscando
aprofundar a compreensão dessa decisão do CCMM-SP realizamos uma entrevista com
o seu presidente. Paralelamente, de modo a entender os espaços de negociação
existentes, no que diz respeito à classificação de óbitos de mulheres com HIV/AIDS quanto à morte materna, realizamos uma sessão de
discussão desses dois casos com os integrantes do CRMM, responsáveis pela
investigação do óbito de Araci.
Relatamos,
a seguir, os argumentos apresentados nesses dois momentos, para a classificação
dos dois casos que nos mostraram como parece tênue a margem que separa a
classificação em uma e outra categoria. Ou seja, a classificação da causa das
mortes de Anita e Araci nos pareceu paradigmática da difícil arte de
classificar.
Para
justificar a diferença na classificação, o argumento de nosso entrevistado no
CCMM-SP tomou por base a diferença das patologias. No caso de Araci, uma
gestante de 25 semanas, a pneumonia intersticial foi associada a um quadro de
debilidade imunológica em decorrência somente da AIDS, o que levou a
classificar a morte como Não Obstétrica
ou Não Relacionada, e, portanto, uma
morte por AIDS. No caso de Anita, uma gestante de 28 semanas, a limitação
respiratória foi considerada como sendo decorrente de uma gestação mais
avançada, piorando o quadro pulmonar já comprometido pelo antecedente de um
tratamento incompleto para tuberculose. Considerou-se que a broncopneumonia
estava associada à tuberculose, portanto, uma patologia pré-existente que foi
agravada pela gravidez. A tuberculose foi então, a base para classificar a
causa de morte como Obstétrica indireta
e, portanto, uma morte materna. A AIDS foi considerada apenas uma intercorrência do caso. Conforme o entrevistado:
O enfoque é diferente, no
caso da Araci, ela tinha uma pneumonia intersticial que geralmente é provocada
por vírus e a gente sabe que o vírus, ele vai se aproveitar mais do estado de
debilidade. Quer dizer, a AIDS facilitou essa pneumonia que não teve origem
nenhuma a não ser a AIDS. Agora, o outro caso não, no outro, ela já tinha uma
patologia de base que seria a tuberculose. Há cinco anos que ela já tinha
antecedente de ter tratado mal essa tuberculose, e aí a gente joga a definição
que seria uma patologia pré-existente, que foi agravada pela
gravidez. Chegou no terceiro trimestre, ela começou a ter um quadro de
insuficiência respiratória básica, essa insuficiência respiratória infeccionou
um pulmão já prejudicado por uma tuberculose, então a gente não relacionou o
fato de ela ser portadora de AIDS; a AIDS aí virou uma intercorrência,
não uma causa, por isso que ela foi classificada como indireta.
Na
discussão dos dois casos no CRMM, em que participaram quatro Ginecologistas
Obstetras (GO), membros do CRMM, um deles considerou que uma das hipóteses para
o raciocínio do CCMM seria que, no caso de Anita, a AIDS não havia sido o fator
predominante; que, pelo antecedente de tuberculose, ela teria morrido em
decorrência de uma pneumonia bacteriana. Quanto à Araci, sua morte teria sido
decorrente de uma pneumonia intersticial causada pela infecção por Pneumocystis carinii, ou
seja, uma PCP decorrente da imunodepressão por causa do HIV (GO-3).
Entretanto,
esse profissional concorda que a PCP é facilitada pelo somatório de efeitos
decorrentes da própria gravidez, ou seja, a baixa imunidade somada à dinâmica
respiratória costal superior da grávida, que
predispõem à pneumonia, conforme argumento apresentado por outro GO integrante
do CRMM (GO-1).
No
CRMM, onde a morte de Araci fora classificada como Obstétrica Indireta, além de argumentos condizentes com os
levantados pelo CCMM-SP, a discussão comparativa com o caso de Anita trouxe
argumentos para a inclusão das duas na classificação de Obstétrica Indireta. Para isso, o CRMM baseou-se no entendimento de
que a gravidez diminui a imunidade e piora a evolução da AIDS. Isso, não em
relação às portadoras do HIV assintomáticas, mas em
relação àquelas que já manifestaram sintomas da doença, como entendiam ser o
caso de Araci. Um dos ginecologistas obstetras argumentou que a morte em
conseqüência da associação entre AIDS e gravidez deveria ser classificada como Obstétrica Indireta, assim como é a
morte decorrente da associação entre cardiopatia e gravidez (GO-1).
Em
relação à morte de Araci, um dos participantes afirmou: "nós classificamos como obstétrica
indireta" (GO-4). Ao que outro participante acrescenta: "O Comitê Regional, nós classificamos certo,
lá eles mudaram. E nós continuamos achando que nós estamos certos"
(GO-1).
Lembrando
que a visão do CCMM também não está tão errada, outras ponderações foram
feitas:
É difícil, teria
que analisar profundamente (GO-3).
É muito
complicado,...você vê, às vezes a gente traz o caso
aqui e a gente mesmo fica sem saber como classificar, não é? Você investigou e
você não sabe como classificar; aí quando vai para eles, a coisa piora porque
... ele está chegando lá... (GO-2).
Ainda
referindo-se à Araci, a discussão prossegue com o seguinte diálogo:
Vamos supor que
ela não estivesse grávida, a evolução seria igual? ... se ela não estivesse
grávida, ela morreria nesse momento? Eu acho que não (GO-1).
Possivelmente,
não (GO-2).
Pode ser que
sim, mas possivelmente, não. Por isso que nós classificamos como Obstétrico
Indireto (GO-1).
Diante
da suposição de que Araci e Anita não estivessem grávidas e comparando seus
quadros clínicos, três dos obstetras do CRMM estavam de acordo que Anita teria
mais chance do óbito pela pneumonia em conseqüência da tuberculose do que
Araci, com aquele quadro de pneumonia intersticial. Um deles, referindo-se à
morte materna, concluiu: "esse
argumento seria válido para classificar justamente ao contrário"
(GO-1).
Conclusão: morte por AIDS ou morte materna?
Diante
desses dados, o que se coloca não é uma questão de certo ou errado, ou de qual
seria a verdade dos fatos, mas que esse conhecimento é construído com base em
interpretações sobre as informações disponíveis que também têm, na base de sua
produção, outros conhecimentos e interpretações.
Para
além da possibilidade de classificações precisas nesta ou naquela categoria -
tanto no caso da Anita e da Araci, como de tantas outras -, coloca-se a
necessidade de se refletir sobre a possibilidade de evitar a morte de mulheres
no auge de sua vida produtiva e reprodutiva.
Portanto,
após as considerações sobre a difícil arte de classificar e pensando para além
da classificação da Morte por AIDS ou Morte Materna, cabe aqui refletir que,
quando as consideramos como eventos passíveis de serem prevenidos muda-se o
foco, passando da classificação para a assistência. Mais precisamente, para uma
assistência ao ciclo gravídico-puerperal com a
qualidade necessária para evitar que essas mortes ocorram.
Com
esse estudo, pretendeu-se chamar a atenção para o risco que a exclusão de
mortes maternas entre mulheres com HIV/AIDS das
estatísticas da mortalidade materna poderia ter para as ações de intervenção e
prevenção dessas mortes.
Referências
BONCIANI,
R. D. F., 2001. Morte por AIDS ou Morte
Materna: A Classificação da Mortalidade como Prática Social. Dissertação de
Mestrado, São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo.
LAURENTI,
R., 1991. Análise da informação em saúde: 1893-1993,
cem anos da Classificação Internacional de Doenças. Revista de Saúde Pública, 25:407-417.
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Materno Infantil, MS.
MS
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Medicina, Universidade de São Paulo.
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SMS-SP
(Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo), 1999. Relatório sobre o Ano de 1998 do Comitê Central de Mortalidade Materna.
São Paulo: Secretaria Municipal da Saúde, Prefeitura Municipal de São Paulo.
SPINK,
M. J. P. & MEDRADO, B., 1999. Práticas discursivas e produção de sentidos:
A perspectiva da psicologia social. In: Práticas
Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano: Aproximações Teóricas e
Metodológicas (M. J. P. Spink, org.), pp. 41-61,
São Paulo: Cortez Editora.
Notas:
[1] Artigo
publicado em Cad. Saúde Pública, mar./abr. 2003, vol.19, no.2, p.645-652. ISSN
0102-311X. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2003000200031&lng=pt&nrm=iso.
Recebido em 9 de janeiro de 2002; Versão final reapresentada em 25 de setembro
de 2002; Aprovado em 5 de fevereiro de 2003.
[2] Endereço para correspondência: Rosa Dalva F. Bonciani - rua Bartolomeu Zunega
44, São Paulo, SP 05426-020, Brasil. E-mail: boncianir@uol.com.br e Mary Jane
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