O DIREITO DE VIR A SER APÓS O NASCIMENTO

 

 

Eliane Elisa de Souza e Azevêdo

 

 

Ainda que a variabilidade seja a característica fundamental da espécie humana, os mecanismos de transmissão das características genéticas não variam (Dobzhansky, 1968). O modo segundo o qual o DNA se duplica, se reduz, se distribui nas células germinativas masculinas e femininas (células haplóides: 23 cromossomos) e, após a fertilização, se recompõe em um zigoto diplóide, com 46 cromossomos, é único em todas as pessoas. A variabilidade genética da espécie consiste em variações nas seqüências de bases na molécula de DNA e não  no processo através do qual estas variações são transmitidas  de geração a geração.

 

Todavia, erros podem ocorrer durante o processo de transmissão das características genéticas, ou seja, durante o processo genético de reprodução humana. A freqüência total destes erros, ao nascimento, é baixa e muito semelhante entre populações, povos, raças, países, continentes ou hemisférios (Salzano e Freire-Maia, 1970).

 

Este conjunto de fatos nos convence que não somente as leis da genética, mas também suas falhas, são universais e igualmente aplicáveis a todo ser humano, sem privilégios ou preconceitos.

 

As técnicas de reprodução assistida conseguiram separar o ato sexual da reprodução sem interferirem nos mecanismos de transmissão da informação genética. Mesmo as propostas avançadas de terapia gênica de células germinativas têm por finalidade alterar ou substituir um gene, sem contudo interferir no mecanismo de transmissão da hereditariedade. A dinâmica molecular e celular da reprodução humana não permite alternativas: todo ser humano se desenvolve a partir de uma célula inicial, seja ela resultante de fertilização por processo natural, por técnicas in vitro ou até mesmo clonagem.

 

Sobrevivência antes do nascimento

A freqüência de erros nos mecanismos de transmissão da hereditariedade observada ao nascimento representa apenas uma pequena proporção do que realmente ocorre. Os problemas genéticos observáveis ao nascimento são os menos graves, isto é, são aqueles cujo impedimento à saúde do embrião ou feto não foram suficientes para levá-lo à morte durante a vida intra-uterina.

 

Na espécie humana, a maior parte das concepções tem morte embriônica ou fetal e apenas uma em quatro sobrevive até o nascimento. Em outras palavras, 75% das concepções são abortadas espontaneamente. A maioria destas mortes é bem precoce, ocorre antes da sexta semana, contadas a partir da última menstruação e, muitas vezes, a gestante aborta sem saber que estava grávida. Além disso, do total de gestações que se tornam reconhecidas e confirmadas, 15% a 20% também terminam em abortamento espontâneo e 2% resultam em feto nascido morto. Entre os abortamentos espontâneos, 50% a 60% apresentam alterações de número ou da forma de um ou mais cromossomos, o que por si explica o abortamento. Entre aqueles fetos que conseguem chegar ao final da gestação, mas nascem mortos, 5% a 10% também apresentam alterações cromossômicas. E, finalmente, entre os que nascem vivos, apenas 0,5% têm alterações cromossômicas. Deste conjunto de dados fica fácil compreender que quanto mais grave a alteração cromossômica mais precoce a mortalidade na vida intra-uterina. E que as alterações cromossômicas observadas nas crianças que nascem vivas são menos graves em relação àquelas que impediram a sobrevivência de embriões e fetos (Simpson et al., 1982; Harris, 1974).

 

Em conclusão, a maioria dos conceptos na espécie humana não chega a nascer, pois resulta em abortamento ou nati-mortalidade por razões ligadas à própria genética da reprodução da espécie.

 

As razões mais conhecidas, como vimos, estão relacionadas à mortalidade pré-natal por alterações cromossômicas. Além delas, existem muitas outras causas genéticas de abortamento cuja alteração não é perceptível ao nível da estrutura dos cromossomos. Sabe-se, por exemplo, que existe maior freqüência de abortos em casais consangüíneos que em casais controles não-consangüíneos e que a causa destes abortamentos está associada a genes raros e de herança auto-sômica recessiva (Morton et al., 1956).

 

Após todo esse processo seletivo que, na vida intra-uterina, elimina os desviantes genéticos graves, sobrevive uma pequena parte de portadores de desvios genéticos que nascem com vida. Desta forma, entre os humanos que conseguem nascer vivos, somente 3% são portadores de problemas congênitos graves (Kennedy, 1967). Em outras palavras, 97% dos que nascem vivos já passaram por rigoroso processo de seleção genética na vida intra-uterina e, conseqüentemente, estão biologicamente aptos à sobrevivência.

 

Ainda que as causas genéticas de abortamento espontâneo sejam mais fáceis de estudo que as ambientais, estas também existem e atuam, principalmente, a partir do segundo trimestre de gestação. Os exemplos melhor estudados são infecção materna por rubéola (Gregg, 1941), uso de medicamentos, como talidomida (McBride, 1961; Lenz, 1961), alcoolismo materno (Jones et al., 1974), tabagismo (Meyer e Tonascia, 1977) e várias outras formas de agressão fetal, inclusive tentativas de abortamento. As dificuldades de estudos epidemiológicos sobre causas de abortamentos na espécie humana respondem por muitas imprecisões estatísticas.

 

Depois do nascimento, todavia, invertem-se as situações. As causas ambientais de agravos à saúde são mais fáceis de observação e, conseqüentemente, de registros mais confiáveis e também, ao contrário das alterações genéticas, são passíveis de erradicação.

 

Sobrevivência depois do nascimento

A espécie humana é caracterizada por produzir seres incompletos ao nascimento. Durante vários anos os novos representantes da espécie são incapazes de consumar atos biológicos essenciais à sobrevivência como se alimentar, mover-se, proteger-se, etc. Diferentemente de outros mamíferos, os humanos nascem dependentes dos cuidados de alguém para assegurar-lhes a sobrevivência. Esta dependência é mantida até que a pessoa adquira autonomia física e mental.

 

Antes do nascimento, as interações com o ambiente são mediadas pelas relações materno-fetais, as quais amenizam, até certo ponto, os impactos ambientais. Depois do nascimento, a exposição direta do organismo ao ambiente cria uma nova realidade. O acelerado padrão de crescimento corpóreo e os complexos mecanismos de desenvolvimento do sistema nervoso central passam a ter dependência exclusiva do ambiente, fazendo com que os primeiros anos de vida sejam de fundamental importância para o destino biológico da criança. Em outras palavras, o futuro físico e mental de qualquer pessoa depende, fundamentalmente, do ambiente no qual seu organismo se desenvolve nos primeiros anos de vida.

 

Bioética e pobreza

Desnutrição, doenças infecciosas, ambientes de risco à  saúde, ausência de assistência médica, baixa escolaridade e carência cultural são capazes de destruir vidas, com mortes precoces ou incapacitações, independentemente da constituição genética da pessoa.

 

Desde o início da década de sessenta, vários estudos, conduzidos por diferentes pesquisadores em diversos países, demonstraram que existe uma associação entre desnutrição nos primeiros anos de vida e alterações permanentes das funções cerebrais. A desnutrição em crianças reduz a velocidade de divisão celular, a síntese de DNA e o número total de células no cérebro além de interferir no processo de mielinização (Winick, 1976; Sabater, 1980). Documento do UNICEF  em 1998 reconhece que a desnutrição prejudica o intelecto, a produtividade e o potencial, não apenas da pessoa, mas de toda uma sociedade.

 

A Associação Americana de Retardo Mental (AAMR), em revisão publicada em 1992, exige a confluência de três critérios para definição de retardo mental: - QI inferior a 70-75; significantes limitações adaptativas em duas ou mais áreas de treinamento; presença destes achados desde a infância. Além disso, a AAMR identifica cinco categorias de causa de retardo mental: (1) condições genéticas; (2) problemas durante a gravidez: uso de álcool ou drogas pela gestante, desnutrição, rubéola, doenças hormonais, diabetes, etc.; (3) problemas devido ao nascimento; (4) doenças: coqueluche, varíola, varicela, afogamento, intoxicação por chumbo ou mercúrio; (5) pobreza e carência cultural: crianças de famílias pobres podem tornar-se mentalmente retardadas por causa da desnutrição, das condições causadoras de doenças, de cuidados médicos inadequados e de perigos ambientais à saúde.

 

É fundamental destacar-se que dessas cinco categorias que levam ao retardo mental, quatro estão direta ou indiretamente relacionadas ao problema da desnutrição e da pobreza. Desta forma, fica evidente, com suporte científico e respaldo por organizações competentes, que desnutrição é causa reconhecida, e divulgada, de retardo mental.

 

As causas genéticas de retardo mental, não obstante preocupar tanto as pessoas, são sempre raras. A mais freqüente delas, a Síndrome de Down, ocorre, em média, em um de cada 600 nascimentos vivos, isto é, em 0,16% (Harris, 1974). No entanto, a Síndrome de Down causa forte impacto na sociedade economicamente competitiva, é foco de exagerada ênfase nos riscos em função da idade materna e, por essas razões, alimenta bastante o comércio de diagnóstico pré-natal.

 

A desnutrição, por outro lado, é vista como "uma emergência silenciosa e invisível" conforme as próprias palavras da Diretora Executiva do UNICEF, Carol Bellamy, ao apresentar o documento sobre o Estado das Crianças no Mundo (UNICEF, 1998). A realidade, todavia, é que neste silêncio e nesta invisibilidade, a desnutrição mata ou incapacita um número maior de crianças que todas as doenças genéticas juntas.

 

Esse documento do UNICEF, que é recente (1998), revela que dos 12 milhões de crianças que com menos de cinco anos de idade morrem, a cada ano, a desnutrição está presente em mais da metade (55%) delas. Estas cifras superam a de qualquer doença infecciosa e excede em muito a todas as causas genéticas de retardo mental. Além disso, entre as crianças vivas e também com menos de cinco anos de idade, 200 milhões estão desnutridas, em países em desenvolvimento. São 200 milhões de crianças sem direito a desenvolver seu potencial mental devido à desnutrição. São vítimas da fome que quando não leva à morte, incapacita a vida (UNICEF, 1998).

 

É também do documento do UNICEF (1998), a informação de que anemia na infância retarda o desenvolvimento psicomotor, impede o desenvolvimento cognitivo e é capaz de reduzir, em média, nove pontos no QI. Ao lado destas evidências científicas, estão os relatos epidemiológicos demonstrando que a Organização Mundial de Saúde (WHO) calcula que 51% das crianças nos países em desenvolvimento e com idade até quatro anos estão anêmicas, e que, na África e na Ásia, 20% das mortes maternas, no pós-parto, têm a anemia carencial como fator contribuinte.

 

Qualquer pessoa que tenha conhecimento sobre as regiões de pobreza no mundo, por tê-las visitado, visto na TV, ou lido algo sobre elas, e que tenha um mínimo de capacidade de observação, mesmo sem qualquer requinte de metodologia científica, percebe os danos que a desnutrição é capaz de causar ao ser humano. Não apenas isso, mas quase ninguém deixa de perceber que alimentação é fundamental ao crescimento e desenvolvimento de qualquer ser vivo, seja uma planta, um animal ou uma criança.

 

O direito de vir a ser após o nascimento

Do momento da concepção ao nascimento e deste ao final da infância, o organismo humano põe em execução um extraordinário projeto genético que se inicia com uma única célula e cumpre um padrão de multiplicação celular de tal ordem que, nove meses depois, isto é, ao nascimento, já existem cerca de 2 bilhões de células altamente diferenciadas e organizadas, formando um corpo humano com peso de aproximadamente três quilos. Para que este projeto seja levado a termo conforme as especificações genéticas, é fundamental que haja aporte dos nutrientes necessários em qualidade e quantidade. É o ambiente uterino em interação com o organismo materno e com o ambiente externo que fornece os nutrientes essenciais ao desenvolvimento do embrião e do feto.

 

Após o nascimento, a parte mais nobre do projeto genético ainda está em execução, isto é, o sistema nervoso central. Até os três anos de idade, a ausência de nutrição adequada continua pondo o projeto genético em risco; isto é, pondo em  risco a saúde da criança para toda a sua vida. Muito mais que fruto de um determinismo genético, a espécie humana é fruto do determinismo ambiental. O ambiente é superior ao biológico. Não existem genes que assegurem o crescimento e o desenvolvimento na ausência de ambiente adequado.

 

Diante de todos esses fatos, o reconhecimento do direito ao crescimento e ao desenvolvimento físico e mental impõe-se como o mais essencial dos direitos da criança.

 

Por mais paradoxal que pareça, "a maioria dos subalimentados do mundo encontra-se, exatamente, entre os que trabalham nos campos, na produção de alimentos (UNESCO, 1984). E, mais grave ainda, muitas doenças que atingem as  crianças desnutridas, como diarréias, infecções, cegueira noturna ou deficiência de vitamina A, bócio endêmico ou deficiência de iodo na alimentação, anemias por deficiência de ferro, etc., poderiam ser erradicadas por meios simples e baratos, faltando apenas decisão política para enfrentar o problema. Na avaliação de Paul Lunven (1984), especialista da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, alguns projetos de desenvolvimento rural dedicaram-se mais aos cultivos para fins comerciais que às culturas de víveres para subsistência das famílias rurais.

 

A conclusão óbvia é que o combate à fome no mundo não é problema que esteja a depender de avanços científicos, como o PDGH, nem de inovações tecnológicas, transgênicas ou não. O combate à desnutrição é tão-somente um problema de respeito a um direito fundamental da pessoa, um direito diretamente ligado à vida e à saúde de grande parte da humanidade e, conseqüentemente, um dos mais universais problemas de bioética.

 

À medida que novas idéias, métodos e técnicas são criadas, ampliam-se os limites de competência da espécie e amplia-se, também, o distanciamento entre os elementos que a constituem. Quanto mais rápido o desenvolvimento científico e tecnológico, quanto mais rápida a expansão das fronteiras do saber, mais se ampliam as distâncias sociais entre os que conhecem e os que ignoram, entre os que se beneficiam dos novos avanços da ciência e os que sequer sabem que eles existem. As novas tecnologias da informação beneficiam oásis sociais e mantêm-se ao largo dos tradicionais desertos de recursos e bens materiais. Os subalimentados do mundo também têm fome de informação e saber; vivem à margem dos benefícios da ciência e da tecnologia.

 

Nas sociedades pré-técnicas, de cultura oral, a distância entre os mais e os menos informados pouco afetava a forma de sobrevivência. O acesso à alimentação, moradia, saúde, etc., era compartilhado de tal forma, que tornava a desnutrição e suas conseqüências desconhecidas desses povos (Kabo, 1985). A exemplo, recordemos o sadio aspecto físico dos brasilíndios descrito na histórica carta que informava o rei de Portugal sobre os habitantes da terra descoberta.

 

Nas sociedades industriais, todavia, o saber é ferramenta fundamental para a sobrevivência e a alfabetização tornou-se protetor eficaz contra a fome, a miséria e a mortalidade precoce. Os oásis de desenvolvimento e riqueza no planeta Terra possuem forte força de atração para mais desenvolvimento e mais riqueza. E sendo as riquezas materiais do mundo um bem finito, a geração de zonas de rarefação de riquezas torna-se inevitável, até mesmo para aqueles bens alimentares mínimos essenciais à sobrevivência.

 

Nesse contexto de sobrevivência da espécie humana, é fundamental relembrar que as exigências de ordem biológica  são rigorosamente verificadas na vida intra-uterina e aquelas concepções inadaptadas são abortadas espontaneamente antes do nascimento. O fato de nascer vivo já é, por si, uma garantia de qualidade biológica capaz de assegurar um desenvolvimento saudável, na maioria dos casos. Todavia, o crescimento físico e o desenvolvimento mental das pessoas têm absoluta dependência das condições ambientais nas quais ocorrem. O ambiente é soberano ao biológico. Por melhor que seja a constituição genética de qualquer um, o seu crescimento e desenvolvimento estarão irremediavelmente prejudicados na ausência de alimentação adequada em quantidade e qualidade, assim como de condições de moradia que impeçam ou dificultem exposições a agentes infecciosos e parasitários.

 

A ausência de condições mínimas de alimentação e moradia, requeridas pelo organismo humano, funciona como anulador de potencialidades genéticas, condenando as pessoas à morte precoce, antecedida de um viver sub-biológico. Negar o mínimo essencial a qualquer pessoa é usurpar-lhe o mais sagrado dos direitos essenciais, ou seja, o direito ao desenvolvimento das potencialidades biológicas e mentais que traz consigo.

 

Reconhecemos, assim, o Direito de Vir a Ser após o nascimento e o definimos como o direito de cada criança desenvolver-se em ambiente que não anule ou iniba o seu potencial biológico para desenvolvimento pleno de suas capacidades físicas e mentais

 

TODOS TÊM O DIREITO DE VIR A SER APÓS O NASCIMENTO.