O FUNDO ESPECIAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E AS "DOAÇÕES CASADAS"
Murillo José Digiácomo
Promotor de Justiça com atribuições junto ao Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Estado do Paraná.
Na perspectiva de que a implantação de políticas de atendimento a crianças, adolescentes e suas respectivas famílias[1] demanda recursos financeiros e, em patamar muitas vezes elevado, paralelamente à expressa indicação de que a garantia de prioridade absoluta, estabelecida pela Constituição Federal à área da infância juventude (art. 227, caput, da CF/88), compreende a destinação privilegiada de recursos públicos (art. 4º, parágrafo único, alínea “d”, da Lei nº 8.069/90). Objetivando facilitar a captação e a aplicação de tais recursos, o Estatuto da Criança e do Adolescente previu a criação, em todos os níveis (União, estados e municípios), de Fundos Especiais, vinculados aos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente respectivos (art. 88, inciso IV, da Lei nº 8.069/90).
Embora tais fundos tenham diversas fontes de receita[2], uma das principais é (ou, ao menos, pode vir a se tornar), sem dúvida, a doação de recursos por pessoas físicas e jurídicas, resultado de campanhas de arrecadação, que o Conselho de Direitos pode - e deve - periodicamente promover[3].
A respeito do tema, nos termos do contido no art. 260 da Lei nº 8.069/90[4], pessoas físicas e jurídicas que efetuam doações aos Fundos Especiais para a Infância e Adolescência (também conhecidos por FIAs), existentes em qualquer nível, podem ter integralmente deduzido do imposto de renda devido, o valor doado, desde que este não ultrapasse 6% (seis por cento), no primeiro caso (pessoas físicas), e 1% (um por cento), no segundo (pessoas jurídicas[5]), daquele montante.
Em face da atual legislação fiscal, não é mais possível semelhante dedução, no que diz respeito às doações efetuadas diretamente às entidades "filantrópicas" e/ou declaradas de utilidade pública. Tornou-se corriqueira, em muitos municípios, a prática das chamadas "doações casadas", através da qual, as doações feitas às entidades por pessoas físicas e/ou jurídicas "passam" pelo FIA antes de chegarem a seu destino (seja com o repasse integral da verba doada diretamente à entidade, seja com a retenção de percentual do valor ao Fundo[6]), o que permite ao doador o abatimento da quantia respectiva (respeitados os limites acima referidos) em seu imposto de renda devido.
Com tal sistemática, de legalidade e, acima de tudo, moralidade, no mínimo, altamente DUVIDOSAS, os Fundos Especiais para a Infância e Adolescência acabam tendo desvirtuada sua própria razão de ser, pois passam a servir, unicamente, aos interesses privados daqueles que fazem as doações e das entidades que as recebem, pouco importando a orientação da política municipal de atendimento à criança e ao adolescente, definida pelo Conselho de Direitos respectivo.
Em que pese, não se possa ignorar o mérito das entidades que, através de campanhas ou esforços próprios, convencem as pessoas físicas e jurídicas a efetuar as doações, jamais podemos esquecer que o valor doado, uma vez ingressado no FIA, se torna recurso público, portanto, sujeito às mesmas regras de gestão financeira dos recursos públicos em geral, gestão essa, que é de competência exclusiva e indelegável do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente.
Também é certo que esses recursos públicos, uma vez captados pelo FIA, deixam de "pertencer" ao doador e/ou à entidade para a qual, em princípio, estariam destinados, pois se tornam de domínio público, devendo, obrigatoriamente, ser destinados a programas de atendimento à criança, ao adolescente e/ou às suas respectivas famílias, que o Conselho de Direitos entenda como prioritário mantê-los ou implementá-los, dentro da política de atendimento por ele traçada.
Nesse contexto é evidente que, caso a entidade que "buscou" a doação desenvolva um programa de atendimento que o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente considere prioritário e que, portanto, mereça receber recursos do FIA para sua manutenção ou mesmo ampliação, nada impede que a verba captada seja repassada a ela própria, no todo ou em parte.
Tal repasse, no entanto, não pode ocorrer sem as devidas formalidades e cautelas, pois devemos lembrar que estamos lidando com um recurso público, que tem sua destinação SEMPRE VINCULADA e deve ter sua utilização rigorosamente FISCALIZADA.
Tanto é, que, no momento do repasse, o Conselho de Direitos[7] deve celebrar CONVÊNIO específico, em que seja descrito o programa de atendimento onde a verba será aplicada[8], com a indicação pormenorizada de sua forma de utilização, que deve estar, obviamente, de acordo com as regras gerais, nesse sentido, editadas pelo próprio Órgão Gestor e com as normas e princípios traçados pela Lei nº 8.069/90.
Em determinadas situações, para que a entidade possa ter acesso aos recursos captados pelo FIA, tenha ela contribuído ou não para tanto, talvez seja necessária uma completa revisão da forma de execução do programa de atendimento e/ou, até mesmo, a elaboração de um programa totalmente diverso[9], que venha a atender as mais prementes demandas apuradas, sempre na perspectiva de implantar e/ou otimizar a "rede" de atendimento existente, com vista à proteção integral da população infanto-juvenil local.
Em qualquer hipótese, o Conselho de Direitos deve fazer prevalecer a política de atendimento por ele traçada, com o aporte de recursos do FIA (sem embargo de deliberar pela destinação de recursos do próprio orçamento do ente público, pois as ações do referido Órgão Deliberativo não estão adstritas aos recursos eventualmente captados pelo FIA) para os programas mais importantes existentes.
Também é fundamental que o Conselho de Direitos faça com que o fundo especial por ele gerido tenha "vida própria", de modo que empresários e a população em geral efetuem doações diretamente ao fundo, sem pensarem em "condicionar" seu ato ao repasse da verba respectiva à esta ou àquela entidade.
Para tanto, é necessário, primeiro, que o próprio Conselho de Direitos ganhe sua independência face ao Poder Executivo local, assumindo uma identidade própria e agindo como verdadeiro órgão autônomo que é (ou ao menos deveria ser).
Vale lembrar que um dos objetivos da criação dos Conselhos de Direitos como órgãos deliberativos e controladores das ações na área infanto-juvenil em todos os níveis (art. 227, § 7º c/c art. 204, inciso II, da Constituição Federal e art. 88, inciso II, da Lei nº 8.069/90), foi, justamente, o de fazer com que a política de atendimento à criança e ao adolescente implantada e executada em cada ente federado não tivesse solução de continuidade com o término do mandato do Chefe do Executivo ou com a eventual mudança de sua orientação político-partidária, mas sim sobrevivesse à alternância dos governos e siglas partidárias, pois, face ao já citado mandamento constitucional da prioridade absoluta, todos os governantes e partidos políticos ficam igualmente obrigados a destinar à área infanto-juvenil um tratamento privilegiado, seja no que diz respeito à elaboração, seja na execução de todas as políticas públicas (art. 227, caput da Constituição Federal e art. 4º, parágrafo único, alíneas "c" e "d", da Lei nº 8.069/90).
A conquista da autonomia do Conselho de Direitos, seja no que diz respeito à questão financeira e material[10], administrativa[11] ou funcional[12], constitui-se em verdadeira conditio sine qua non para que o órgão alcance a necessária credibilidade e respeitabilidade junto à população e empresariado locais, que passarão a ver nele, não mais um mero "fantoche" e/ou "apêndice" do Poder Executivo (como infelizmente o são muitos dos Conselhos de Direitos em funcionamento), mas sim, um verdadeiro espaço de democracia participativa, onde a sociedade tem voz e vez e, efetivamente, participa da discussão dos problemas e da definição das políticas de atendimento para a área da infância e juventude e realmente controla sua execução, fiscalizando, assim, a destinação dos recursos públicos para tal canalizados, o que, sem dúvida, trará reflexos bastante positivos na captação de recursos através de doações.
Cabe ao Conselho de Direitos, portanto, buscar sua identidade própria e independência funcional, mostrando a todos que não está subordinado ao Poder Executivo local e que tem cumprido, bem e fielmente, sua missão constitucional já mencionada (se é que isso, de fato, ocorre), para então conquistar o direito de pleitear, junto ao empresariado e à população que representa, o aval e o suporte financeiro para suas ações, tornando as doações feitas diretamente ao FIA uma prática habitual e as "doações casadas" algo inimaginável.
De fato, se o Conselho de Direitos, através de sua autonomia e de suas ações, conquistar as indispensáveis estatura moral, visibilidade e credibilidade junto à comunidade, não será difícil conscientizar a todos que as doações efetuadas diretamente ao FIA, longe de serem um ato de "filantropia", constituem-se num verdadeiro exercício de cidadania, pois dada a possibilidade de abatimento das importâncias doadas no imposto de renda devido, o doador estará apenas "redirecionando", ao fundo da infância, recursos que, de outro modo, cairiam na "vala comum" do Tesouro Nacional, tendo ainda a prerrogativa de resgatar os valores doados (melhor seria então dizer, emprestados), sem ter, portanto, qualquer despesa efetiva.
Para aqueles que desejam praticar verdadeiros atos de filantropia, restará sempre a possibilidade de efetuarem doações diretamente às entidades de atendimento, porém, sem direito à restituição ou qualquer outro benefício, salvo a satisfação de terem auxiliado em sua manutenção.
Espera-se, pois, que os Conselhos de Direitos, em respeito aos princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade (art. 37, caput, da Constituição Federal), que devem nortear toda e qualquer ação do Poder Público[13], não utilizem ou deixem utilizar os fundos especiais, por eles geridos, como meros instrumentos de burla à legislação fiscal, a serviço de empresários e dirigentes de entidades de atendimento, mas sim façam com que eles se tornem verdadeiros exemplos de captação e aplicação de recursos públicos, o que, certamente, redundará num substancial aumento de confiança e de arrecadação, que permitirá a implantação e/ou manutenção de, cada vez, mais programas de atendimento[14], em benefício direto a todas as entidades[15] que os desenvolvem e à população infanto-juvenil local.
Em suma, as necessárias emancipação, moralização, visibilidade e operosidade dos Conselhos de Direitos e dos fundos especiais por eles geridos, são pressupostos básicos para a existência de uma política de atendimento séria, que, uma vez instituída na forma do previsto na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, por certo irá desencadear uma verdadeira mobilização social, com vista à sua continuidade e aperfeiçoamento, no mais puro espírito do art. 88, inciso VI, da Lei nº 8.069/90, que importará, dentre outras, no substancial incremento das doações de pessoas físicas e jurídicas diretamente aos FIAs, cujo montante deverá ser canalizado para a implantação e/ou manutenção de programas de atendimento (e não para entidades, que devem cada vez mais buscar sua auto-suficiência administrativa) tidos como necessários e prioritários dentro da política para a área infanto-juvenil, traçada pelo órgão deliberativo, sem que, sequer, se venha a pensar nas chamadas "doações casadas", que não têm lugar dentro da sistemática que se entende como correta.
Notas:
[1] através da criação de programas previstos no art. 90 ou
correspondentes a medidas relacionadas nos arts. 101,
112 e 129 da Lei nº 8.069/90.
[2] dotações orçamentárias,
transferências de recursos inter e intragovernamentais, multas administrativas
aplicadas em procedimentos para apuração de infração administrativa às normas
de proteção à criança e ao adolescente (arts. 194 usque 197 e 245 usque
258 da Lei nº 8.069/90) e/ou cominadas em ações civis públicas ajuizadas com vista
à garantia de direito fundamental de crianças e adolescentes (art. 213, §§ 2º e
3º, da Lei nº 8.069/90), tal qual previsto nos arts.
154 e 214 da Lei nº 8.069/90, dentre outras previstas na lei específica, que cria o fundo.
[3] campanhas essas, que devem ser desencadeadas, em especial, no
sentido da conscientização da população para sua efetiva participação no
debate, descoberta e implementação de soluções para os problemas enfrentados na
área da infância e juventude, pois, afinal, a "mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação
dos diversos segmentos da sociedade" (verbis) é uma das diretrizes da política de atendimento
traçada pela Lei nº 8.069/90, ex vi do disposto em seu art. 88, inciso
VI.
[4]
com alterações efetuadas a posteriori.
[5]
ressalvadas aquelas que fazem suas declarações
com base no lucro presumido.
[6]
a título de "pedágio", "comissão" ou coisa que o valha.
[7] ou seu braço "operacional", que no caso do Conselho
Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Estado do Paraná
- CEDCA, é o Instituto de Ação Social do Paraná - IASP.
[8] programa esse que, desnecessário dizer, deve ser devidamente
registrado e aprovado pelo Conselho de Direitos, ex vi do disposto no art.
90, parágrafo único, da Lei nº 8.069/90.
[9] desde que, é claro, a entidade tenha capacidade física e técnica de
implementá-lo ou, ao menos, esteja disposta e possa fazê-lo nos moldes do
conveniado.
[10] pois incumbe ao Poder Executivo manter, em sua proposta
orçamentária, previsão de recursos que permitam o funcionamento ininterrupto do
órgão.
[11]
inclusive com a criação de uma estrutura
administrativa própria, de preferência
com sede também própria, destacada
dos prédios normalmente utilizados pelos órgãos governamentais.
[12] o que somente será possível se a ala não governamental do órgão for
realmente representativa da sociedade local, imune a qualquer ingerência do
Chefe do Executivo, quer quando de sua composição, quer quando de sua atuação.
[13] que em seu sentido mais amplo engloba, também, o Conselho Direitos, dada sua
função administrativa de deliberar e controlar a execução das políticas
públicas para a área da criança e do adolescente.
[14] o que, por sinal, é uma das diretrizes
da própria política de atendimento a ser traçada pelo Conselho de Direitos, ex
vi do disposto no art. 88, inciso III, da Lei nº 8.069/90.
[15] e não apenas daquelas que, por serem mais conhecidas ou melhor
estruturadas no setor de marketing, são as destinatárias tradicionais
das doações espontâneas.