OITIVA
INFORMAL DE ADOLESCENTE ACUSADO DA PRATICA DE ATO INFRACIONAL: NOTIFICAÇÃO PARA
O ATO POR OFICIAL DE JUSTIÇA
Murillo José Digiácomo
Como conseqüência natural do princípio constitucional da prioridade absoluta à criança e ao adolescente insculpido no art.227, caput da Constituição Federal, e da disposição expressa contida no art.4º, parágrafo único, letra "b" da Lei nº8.069/90, a tônica de todo procedimento para apuração de ato infracional praticado por adolescente é a celeridade, que se materializa em uma série de dispositivos destinados a agilizar, o quanto possível, o atendimento do jovem acusado da prática infracional e a aplicação das medidas sócio-educativas e/ou protetivas de que o mesmo necessita.
Nessa perspectiva, os arts.174 e 175 da Lei nº8.069/90 estabelecem que, apreendido o adolescente em flagrante de ato infracional, sua apresentação ao representante do Ministério Público deverá ocorrer logo após a formalização do respectivo ato perante a autoridade policial, preferencialmente no mesmo dia, sendo que, se impossível, há previsão de que em relação ao adolescente colocado em liberdade seja colhido de seus pais ou responsável o compromisso de sua aludida apresentação "no primeiro dia útil imediato" (verbis) e, em sendo mantida sua privação de liberdade, no pazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas.
Embora a lei estabeleça claramente a obrigatoriedade de que a própria autoridade policial, quando da entrega do adolescente a seus pais ou responsável, notifique-os a comparecerem perante o representante do Ministério Público para a oitiva informal de que trata o citado art.179, caput, da Lei nº8.069/90, na prática isto muitas vezes acaba não ocorrendo ou, mesmo notificado, o adolescente deixa de comparecer ao ato designado.
Dessa situação, surge a necessidade da expedição de nova notificação ao adolescente, dispondo o art.179, parágrafo único, da Lei nº8.069/90 que:
"Em
caso de não apresentação, o representante do Ministério Público notificará
os pais ou responsável para apresentação do adolescente, podendo requisitar o
concurso das Polícias Civil e Militar" (verbis - grifei).
Como resultado da interpretação literal do dispositivo acima transcrito, surgiu o entendimento segundo o qual a notificação de adolescentes, bem como de seus pais ou responsável (e mesmo de vítimas e testemunhas da conduta infracional), para fins do disposto no citado art.179 da Lei nº8.069/90, seria ato "privativo" do Ministério Público, de natureza meramente administrativa, que portanto não importava no acionamento da "máquina judiciária" para sua realização.
Nesse sentido, em diversos estados da Federação, órgãos de cúpula do Poder Judiciário e mesmo do Ministério Público expediram recomendações e resoluções disciplinando a matéria, não estabelecendo obstáculos à utilização, pelo órgão do Parquet, da estrutura existente no Juizado da Infância e Juventude.
Em que pese a redação do texto legal acima reproduzido, e data venia o citado entendimento segundo o qual as notificações que tivessem por objetivo o cumprimento do art.179 da Lei nº8.069/90 seriam de responsabilidade única do Ministério Público, não nos parece ser esta a melhor interpretação que a matéria comporta.
Com efeito, o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente possui, em seu art.6º, uma regra de hermenêutica, que analisada em conjunto com o art.1º do mesmo Diploma Legal, nos leva à conclusão de que todo e qualquer dispositivo estatutário deve ser sempre interpretado da forma mais benéfica a crianças e adolescentes, que afinal, são os principais destinatários da norma, que em última análise tem por objetivo sua proteção integral.
Assim sendo, o art.179, parágrafo único, da Lei nº8.069/90, não pode ser interpretado de forma literal e muito menos isolada, mas sim considerado dentro de toda uma sistemática idealizada para o atendimento do adolescente em conflito com a lei da forma mais célere possível, tal qual preconiza o mencionado princípio constitucional da PRIORIDADE ABSOLUTA à criança e ao adolescente insculpido no art.227, caput, da Constituição Federal que, segundo o art.4º, parágrafo único, da Lei nº8.069/90 importa, dentre outras, na "precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública" (verbis), dentre os quais, por óbvio, se encontra a prestação jurisdicional, com a qual se encerra o procedimento para apuração de ato infracional praticado por adolescente, ainda que via homologação de uma remissão concedida pelo representante do Ministério Público (conforme arts.126, caput, 127 e 181, §1º, todos da Lei nº8.069/90), o que por sinal, da inteligência do art.182, caput, primeira parte, da Lei nº8.069/90, se conclui deve ser a regra.
Nessa perspectiva, e considerando que a oitiva informal de que trata o art.179 da Lei nº8.069/90 não visa apenas a concessão de remissão, mas sim a tomada de qualquer das providências previstas no art.180 do mesmo Diploma Legal, dentre as quais a própria representação sócio-educativa, não seria lógico excluir, de antemão, a possibilidade de o representante do Ministério Público contar, para fins de realização das notificações necessárias a cumprir a atribuição respectiva, que por sinal é essencial para a própria deflagração de eventual procedimento judicial, com a colaboração e o auxílio dos serviços à disposição do Juizado da Infância e Juventude.
Vale lembrar que a oitiva informal do adolescente pelo representante do Ministério Público, por expressa disposição do art.179, caput, da Lei nº8.069/90, pressupõe a autuação, "pelo cartório judicial" (verbis), do auto de apreensão, boletim de ocorrência circunstanciado ou relatório policial, cabendo ao referido órgão também certificar os eventuais antecedentes que o adolescente possui. Já há, portanto, a expressa previsão legal para o acionamento e a atuação da Justiça da Infância e Juventude antes mesmo da propositura da ação sócio-educativa (que por sinal é sempre de natureza pública incondicionada, versando sobre direito indisponível, razão pela qual a utilização de serviços como o prestado pelos Oficiais de Justiça não é estranha e/ou incompatível com essa fase do procedimento.
A realização das referidas notificações por intermédio de Oficiais de Justiça a serviço do Juizado, deve ocorrer dentro do mais puro espírito de integração preconizado pelo art.88, inciso V da Lei nº8.069/90 como uma das diretrizes da política de atendimento à criança e ao adolescente, que por sua vez, na clara dicção do art.86 do mesmo Diploma Legal, pressupõe um conjunto articulado de ações, por parte dos órgãos públicos integrantes do Sistema de Garantias idealizado pelo legislador estatutário, única forma de tornar efetiva a já mencionada promessa de proteção integral à criança e ao adolescente efetuada pela Constituição Federal.
Pelo exposto conclui-se que o verdadeiro e único objetivo do art.179, parágrafo único da Lei nº8.069/90, é o de facultar ao agente ministerial a notificação do adolescente e seus pais ou responsável para o ato da oitiva informal sem que, para tanto, tenha obrigatoriamente de acionar a máquina judiciária, visando assim dar maior agilidade à aludida notificação em comarcas onde o Ministério Público disponha de meios próprios e mais céleres para o cumprimento da diligência, e não o de "fechar as portas" para que o representante do Parquet se valha dos serviços forenses, notadamente naquelas comarcas onde não dispõe de uma estrutura administrativa que lhe permita realizar diretamente a diligência.
Pensar e agir de outro modo seria criar injustificáveis embaraços à atividade ministerial, com prejuízo direto à rápida realização da notificação para oitiva informal do adolescente, daí resultando num atraso no seu atendimento e, por via de conseqüência, na própria conclusão do procedimento sócio-educativo, jamais previsto ou desejado pelo legislador quando da inclusão do art.179, parágrafo único, ao texto da Lei nº8.069/90.
O que deve prevalecer em casos semelhantes é, acima de tudo, o bom-senso e o espírito de cooperação entre Ministério Público e Poder Judiciário, que afinal, devem estar irmanados na busca do objetivo maior do procedimento sócio-educativo, que consoante alhures ventilado é o atendimento do adolescente em conflito com a lei da forma mais célere e eficaz possível, não havendo margem para a pura e simples negativa em realizar as notificações imprescindíveis à sua deflagração e conclusão por intermédio de servidores da Justiça da Infância e Juventude (que em razão de seu costumeiro ofício poderiam fazê-lo sem maiores dificuldades e delongas), criando uma situação que acarreta prejuízos não (apenas) ao agente do Parquet, mas sim e fundamentalmente a todos os adolescentes destinatários da prestação jurisdicional que, em última análise, em razão de semelhantes obstáculos, acabará prejudicada.
Ao arremate, como síntese do acima exposto transcrevo acórdão do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo versando sobre a matéria:
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº72.019.0/9
AGRAVANTE: PROMOTOR DE JUSTIÇA DA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DE SUMARÉ
AGRAVADO: A.S.C.B.D.C. (MENOR) E OUTROS
AGRAVO DE INSTRUMENTO - Autuação de boletim de ocorrência que comunica a prática de ato infracional por adolescente - Requerimento do Ministério Público de que seja notificado judicialmente, para proceder à oitiva informal - Indeferimento, sob argumento da providência de incumbir àquele órgão - Inadmissibilidade - Interpretação do art.179, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente - RECURSO PROVIDO.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 72.019.0/9, da comarca de SUMARÉ, em que é agravante PROMOTOR DE JUSTIÇA DA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DE SUMARÉ, sendo Agravados A.S.C.B.D.C (menor) e outros.
ACORDAM, em Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por maioria de votos, dar provimento ao recurso, de conformidade com o voto do Relator, que fica fazendo parte integrante do presente julgado.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores ÁLVARO LAZZARINI (Presidente, com voto vencido) e GENTIL LEITE.
São Paulo, 28 de setembro de 2000.
NIGRO CONCEIÇÃO
Relator
1 Trata-se de agravo de instrumento interposto contra decisão que, nos autos de procedimento judicial de apuração de ato infracional, indeferiu requerimento de que o Juízo determinasse notificação dos menores para que fossem ouvidos informalmente, sob argumento de que não é hipótese de procedimento administrativo de responsabilidade do Ministério Público, com menção de vários precedentes nesse sentido (fls. 02/07).
Processo com liminar (fl.31), vieram informações do Juízo (fls.37/47).
A Procuradoria-Geral de Justiça opinou pelo provimento do recurso (fls. 49/51).
2. Conquanto admiráveis os argumento expedidos pelo MM. Juiz, a verdade do processo não pode repousar em premissas filosóficas que não atendem à sua utilidade e finalidade.
No caso, houve comunicação pela autoridade policial de que os adolescentes foram surpreendidos cometendo ato infracional (tipificado nos arts. 147 e 163 ambos do Código Penal), em expediente que foi autuado pelo Cartório Judicial, justamente para esta apuração e não apenas, como ventilado, para conhecimento de seus antecedentes.
Se assim ocorreu, não se trata, na espécie, de providência de natureza administrativa, que incumba diretamente ao Ministério Público. A instauração deste procedimento apuratório redundará, certamente, em três alternativas, já que se pode requerer o arquivamento, aplicar remissão como forma de exclusão do processo, ou representar para verificação da viabilidade da imposição de medida sócio-educativa adequada, como se vê no artigo 180 do Estatuto da Criança e do Adolescente .
É curial que as duas primeiras hipóteses competem ao Ministério Público, mas sempre dependente da devida homologação judicial. Se esta é indispensável, antes que se possa cogitar de oferecimento da representação, nota-se que o procedimento apuratório é desde o início judicial, assim que autuados os documentos relativos a alguma prática infracional.
É esta a interpretação que deve ser extraída do caput do art. 179, do Estatuto da Criança e do Adolescente, em função da qual cabe ao Juízo da Infância e Juventude expedir a notificação indispensável, sem que possa objetar que o parágrafo único venha prevalecer em interpretação literal, que não atende à sistemática do próprio Estatuto.
Não se justifica, data venia, entrave que se mostra desarrazoado em confronto com a necessidade de averiguação da prática infracional, mormente em função dos superiores interesses dos adolescentes, diante do princípio constitucional de proteção integral.
Não é apenas conveniente, mas inadiável, a rápida solução desta apuração, para que os menores, eventualmente considerados infratores, possam, desde logo receber a medida sócio-educativa que se mostre adequada, sempre presente a natureza pedagógica e preventiva do instituto.
Deixa de ser razoável, portanto, a insistência no indeferimento de requerimento tão simples e que, salvo engano, não precipitará o cartório judicial em situação de caos, até porque a notificação pleiteada, pode, sem dúvida, ser inicialmente tentada por correio.
Sem que se possa ombrear as colocações de profunda erudição do MM. Juiz, pondere-se apenas que, às vezes, a autoridade judiciária olvida a finalidade de sua existência: a pronta e célere prestação da tutela jurisdicional, mormente quando notório o desaparelhamento e falta de infra-estrutura do Ministério Público na maioria quase absoluta das Comarcas do Interior, não sendo a menção de casos isolados que poderá levar a entendimento diverso.
Tem razão o Ministério Público quando refere que a questão foi equacionada de a muito, pela orientação determinada no Assento Regimental TJSP 164/90, sendo inteiramente pertinentes, as razões que invocou, da lavra do Eminente Desembargador LAIR LOUREIRO, descabendo ao Magistrado suscitar em suas informações a constitucionalidade de tal ato, já que deveria submeter o assunto ao crivo direto da Presidência do Tribunal de Justiça, como seu órgão emissor.
Impende notar que o posicionamento desta Colenda Câmara não discrepa deste posicionamento, como pode ser visto nos julgamentos dos Agravos de Instrumento nº 15.518.0/9, rel. Des. SABINO NETO, e 18.340.0/8, Rel. Des. YUSSEF CAHALI, a par de outros v. acórdãos mencionados na petição de interposição deste recurso.
Frise-se que a celeridade desejada pelo legislador não pode esbarrar em escolho colocado pelo próprio Poder que, constitucionalmente, detém a tarefa de prestar a tutela jurisdicional, sendo necessário lembrar que, nos dias atuais, em que sociedade tanto clama contra a morosidade da Justiça a providência reclamada, que é simples, sem causa de tanta celeuma, com prejuízo especialmente, dos menores cuja situação urge adoção de medidas que se mostrem adequadas no caso concreto.
Ante o exposto, dá-se provimento ao recurso, confirmada a liminar concedida.
NIGRO CONCEIÇÃO
Relator
No mesmo sentido: AI nº 75.288-0/7-00, Sumaré/SP - Câm. Esp. - Rel. Des. Nigro Conceição - j. 19/10/00 - m.v; AI 75.287-0/2-00, Sumaré/SP - Câm. Esp. - Rel. Des. Nigro Conceição - j. 19/10/00 - m.v; AI nº 73.461-0/2-00, Sumaré/SP - Câm. Esp. - Rel. Des. Nigro Conceição - j. 23/11/00 - m.v; AI nº 72.593-0/7-00, Sumaré/SP - Câm. Esp. - Rel. Des. Nigro Conceição - j. 23/11/00 - m.v.