PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS

 

 

Antônio Fernando do Amaral e Silva                                                                               

Desembargador.

 

 

1. Generalidades

1.1. Os direitos de crianças e adolescentes na América Latina

A regra, na América Latina, é a inobservância dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

Vida, saúde, alimentação, educação, esporte, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária de crianças e jovens, freqüentemente, são vulnerados pelo Estado que não realiza políticas sociais eficazes; pela sociedade e pela família que teimam em mão os reconhecer como sujeitos de direito, portadores da condição peculiar de pessoas em desenvolvimento.

 

Em que pese à trágica situação, o fato que na América Latina começa a surgir uma nova consciência a respeito da necessidade de se estabelecer novos mecanismos jurídicos capazes de garantir os direitos fundamentais e sociais de crianças e adolescentes.

No panorama internacional a causa dos direitos humanos de crianças e adolescentes ganha novos e seguros espaços.

 

Surgem projetos e leis baseados na Doutrina das Nações Unidas para a Proteção Integral da Criança.

 

A ratificação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, pela quase totalidade dos países membros, vem influindo na elaboração de novas leis garantistas e responsabilizantes, onde crianças deixam de ser objeto de proteção e passam a ser encaradas como verdadeiros sujeitos de direito.

 

A Convenção, pelo caráter cogente e coercitivo, inclusive pelos mecanismos de controle internacional, vem obrigando os países signatários a alterarem práticas e legislações, adequando-as ao novo modelo.

 

O importante tratado, depois de lembrar os princípios básicos das Nações Unidas e as disposições específicas de tratados e declarações de direitos humanos, reafirmando a necessidade de cuidado e proteção especial que devem gozar as crianças, trata dos direitos fundamentais; das formas de eficácia e das medidas de controle do seu cumprimento, bem como a sua vigência no tempo e no espaço.

 

Do resumo não oficial das principais disposições, publicado pelo Unicef:

 

Definição de criança para o efeito da Convenção:

“Todas as pessoas com idade inferior a dezoito anos, a não ser quando, por lei do seu país, a maioridade seja determinada com idade mais baixa.”

 

Não discriminação:

“O princípio de que todos os direitos se aplicam igualmente a todas as crianças sem exceção, e a obrigação do Estado em proteger as crianças de qualquer forma de discriminação. O Estado não deve violar qualquer direito e tomará medidas positivas para promovê-los.”

 

Os melhores interesses da criança:

“Todos os atos relacionados à criança deverão considerar os seus melhores interesses. O Estado deverá prover proteção e cuidados adequados quando pais ou responsáveis não o fizerem.”

 

Implementação dos direitos:

“A obrigação dos países em transformar os direitos da Convenção em realidade.”

 

 

Diretrizes paternas e a capacidade de evolução da criança:

“É dever do Estado respeitar os direitos e responsabilidades dos pais e familiares para proverem orientação apropriada à crescente capacidade de evolução da criança.”

 

Sobrevivência e desenvolvimento:

“O direito inerente à vida, e a obrigação do Estado em assegurar a sobrevivência e o desenvolvimento da criança.”

 

Nome e nacionalidade:

“O direito a um nome a partir do nascimento e o direito de ter uma nacionalidade.”

 

Prevenção da identidade:

“A obrigação do Estado em proteger e, se necessário, restabelecer os aspectos básicos da identidade da criança (nome, nacionalidade e laços familiares).”

 

Separação dos pais:

“O direito da criança de viver com seus pais a não ser quando incompatível com seus melhores interesses: o direito de manter contato com ambos os pais caso seja separada de um ou de ambos, as obrigações do Estado nos casos em que tal separação resulta de ação do Estado.”

 

Reunificação familiar:

“O direito da criança e de seus pais de deixarem qualquer país e de entrarem em seu país de origem para a reunificação ou para manter o relacionamento pai/mãe-criança.”

 

Transferência ilícita e não-retorno:

“A obrigação do Estado de prevenir e solucionar seqüestros ou retenções de crianças no estrangeiro por um dos pais ou por terceiros.”

 

A opinião da criança:

“O direito da criança de expressar uma opinião e de ter esta opinião levada em consideração em qualquer assunto ou procedimento que afete a criança.”

 

Liberdade de expressão:

“O direito da criança de obter e divulgar informação, e de expressar sua opinião, a não ser quando isto viole o direito dos outros.”

 

Liberdade de pensamento, consciência e religião:

“O direito da criança à liberdade de pensamento, consciência e religião, sujeito a diretrizes paternas e à legislação nacional.”

 

Liberdade de associação:

“O direito da criança de se encontrar com outros, participar ou fundar associações, a não ser que isto viole os direitos de outros.”

 

Proteção da privacidade:

“O direito à proteção contra a interferência à privacidade, na família, no lar e na correspondência, e contra a difamação.”

 

Acesso à informação apropriada:

“O papel da mídia em disseminar informações às crianças que sejam consistentes com o bem-estar moral, conhecimento e compreensão entre os povos, respeitando o ambiente cultural da criança. O Estado deverá adotar medidas que encorajam estes procedimentos e que protejam as crianças de materiais nocivos.”

 

Responsabilidades dos pais:

“O princípio de que os pais têm ambos responsabilidade primária na criação de seus filhos, e que o Estado deverá apoiá-los nesta tarefa.”

 

Proteção contra abuso e negligência:

“A obrigação do Estado de proteger as crianças de todo tipo de maus-tratos perpetrados pelos pais, parentes ou outros responsáveis pelo seu bem-estar, e a obrigação de apoiar programas e tratamentos preventivos para estas situações”.

 

Proteção das crianças sem família:

“A obrigação do Estado de prover proteção especial às crianças desprovidas do seu ambiente familiar e assegurar ambiente familiar alternativo apropriado ou colocação em instituição apropriada, sempre considerando o ambiente cultural da criança.”

 

Adoção:

“Em países onde a adoção é reconhecida e/ou permitida, só acontecerá quando no melhor interesse da criança, com todas as garantias necessárias à criança e com autorização das autoridades competentes.”

 

Crianças refugiadas:

“Proteção especial será dada às crianças refugiadas ou buscando status de refugiada, e será obrigação e assistência.”

 

Crianças deficientes:

“O direito das crianças deficientes a cuidados, educação e treinamento especiais para ajudá-las a conseguir a maior independência possível e levar uma vida plena e ativa na sociedade.”

 

Saúde e serviços relacionados:

“O direito ao mais alto nível de saúde possível e acesso aos serviços médicos e de  saúde, com ênfase especial na medicina preventiva, educação sobre saúde pública e redução da mortalidade infantil. A obrigação do Estado de trabalhar para a abolição das práticas tradicionais nocivas. Ênfase é colocada na necessidade de cooperação internacional para assegurar este direito.”

 

Reavaliação periódica das crianças colocadas em famílias temporárias ou permanentes ou em instituições:

“O direito das crianças colocadas, pelo Estado, em famílias temporárias ou permanentes, ou em instituições em virtude de melhores condições de cuidados, proteção ou tratamento, de terem esta colocação reavaliada regularmente.”

 

Previdência social:

“O direito das crianças de se beneficiarem da previdência social.”

 

Padrão de vida:

“O direito das crianças de se beneficiarem de um padrão de vida adequado, a responsabilidade primária dos pais em prover este padrão e o dever do Estado de assegurar que esta responsabilidade seja cumprível e cumprida.”

 

Educação:

“O direito da criança à educação, e o dever do Estado de assegurar que ao menos a educação primária seja gratuita e compulsória. A administração da disciplina escolar deverá refletir a dignidade humana da criança. Ênfase é colocada na necessidade da cooperação internacional para assegurar este direito.”

 

Metas da educação:

“O reconhecimento por parte do Estado de que a educação deverá ser dirigida ao desenvolvimento da personalidade e dos talentos da criança, preparando a criança para uma vida adulta ativa, fomentando o respeito pelos direitos humanos básicos e pelos valores culturais e nacionais da própria criança assim como dos outros.”

 

Crianças de populações minoritárias ou indígenas:

“O direito de crianças de comunidades minoritárias e de populações indígenas de viver dentro de sua própria cultura e de praticar sua própria religião e língua.”

 

Lazer, recreação e atividades culturais:

“O direito da criança ao lazer, recreação e participação em atividades culturais e artísticas.”

 

 

Trabalho da criança:

“A obrigação do Estado de proteger crianças do trabalho que constitui uma ameaça à sua saúde, educação ou desenvolvimento, de estabelecer idades mínimas para o emprego e de regulamentar as condições de trabalho.”

 

Abuso de drogas:

“O direito da criança à proteção contra o uso de narcóticos e psicotrópicos, bem como contra o seu envolvimento na produção ou distribuição dos mesmos.”

 

Exploração sexual:

“O direito da criança à proteção contra a exploração sexual e o abuso, incluído a prostituição e o envolvimento em pornografia.”

 

Venda, tráfico e seqüestro:

“A obrigação do Estado de tomar todas as providências para evitar a venda, tráfico e seqüestro de crianças.”

 

Outras formas de exploração:

“O direito da criança à proteção contra todas as outras formas de exploração não cobertas pelos artigos 32, 33, 34 e 35.”

 

Tortura e privação da liberdade:

“A proibição da tortura, tratamento ou punição cruel, pena de morte, prisão perpétua, prisão ilegal ou privação da liberdade. Os princípios do tratamento apropriado, separação dos detentos adultos, contato com a família e o acesso à assistência legal ou outro tipo de assistência.”

 

Conflitos armados:

“A obrigação do Estado de respeitar e de fazer respeitar a lei humanitária com respeito às crianças. O princípio de que nenhuma criança com menos de quinze anos tome parte, diretamente, em hostilidades, ou seja, convocada para as forças armadas, e de que as crianças afetadas pelo conflito armado recebam a proteção e cuidados necessários.”

 

Reabilitação:

“A obrigação do Estado de assegurar que as crianças vítimas de conflitos armados, torturas, negligência, maus-tratos ou exploração, recebam tratamento apropriado a sua recuperação e reintegração social.”

 

Administração da Justiça de Menores:

“O direito da criança que suposta ou reconhecidamente infringiu a lei, ao respeito por seus direitos humanos e, em particular, de beneficiar-se de todos os aspectos de um adequado processo legal, incluindo assistência legal ou de outra natureza ao preparar e apresentar sua defesa. O princípio de que o recurso de procedimento legal e colocação em instituições deverá ser evitado sempre que possível e apropriado.”

 

Respeito por padrões estabelecidos:

“O princípio de que se houver um padrão na legislação nacional ou em outro instrumento internacional aplicável, mais alto que os estabelecidos nesta Convenção, o padrão mais alto será utilizado.”

 

A Convenção reafirmou o contido na Declaração de Direitos Humanos de 1948, cujo artigo 25 deixou explícito “que a infância tem direito a cuidados e assistência especiais”.

A Declaração Americana, no artigo VII, repetiu “toda criança tem direito à proteção, cuidado e ajuda especiais”.

 

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembléia Geral da ONU de 1966, no artigo 24, trouxe a seguinte garantia:

 

“Toda criança tem direito, sem discriminação alguma por motivos de raça, cor, sexo, idioma, origem nacional ou social, posição econômica ou nascimento, a medidas de proteção que sua condição de menor requer, tanto por parte da família como da sociedade e do Estado”.

Do “Pacto de São José”, artigo 19, (Convenção Americana de Direitos Humanos):

“Toda a criança tem direito às medidas de proteção que sua condição de criança requer por parte de sua família, da sociedade e do Estado”.

 

Essa proteção especial surge como um “plus” nos direitos de crianças e adolescentes, sendo, hoje, pacífico entre os especialistas, que crianças e adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais e sociais e, além desses direitos, a uma proteção especial.

 

Alguns direitos no campo do sistema de justiça aparecem como próprios das crianças (pessoas menores de 18 anos). Por exemplo, o direito a não ser submetido à pena de morte; a não ser encarcerado juntamente com adultos; o direito a um processo mais célere e adaptado à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento; o resguardo do sigilo dos atos processuais, etc...

 

Importantes Documentos de Direitos Humanos, como as “Diretrizes da Riad” (Prevenção da Delinqüência Juvenil); “Regras de Peqüim” (Regras para Organização de Justiça Juvenil); Diretrizes da ONU para os jovens privados de liberdade, constituem as fontes da chamada “Doutrina das Nações Unidas para a Proteção Integral da Criança”. Tal doutrina enfatiza a necessidade da implementação de instrumentos jurídicos capazes de garantir todos os direitos fundamentais e sociais de crianças e adolescentes.

 

O “Pacto de São José” reconhece, no artigo 5.5., o direito do menor a um tribunal especializado.

 

A Convenção, as Regras de Bejing e o “Pacto de São José”, reafirmam às crianças e adolescentes a titularidade das garantias processuais, estas concebidas como garantias mínimas.

 

Assim, as novas legislações, baseadas na Convenção, portanto, na Doutrina das Nações Unidas, vêm aprimorando tais garantias, inclusive com instrumentos de descriminalização e despenalização, entre eles, a remissão pura e simples.

Nas novas leis, os países membros da ONU, via de regra, vêm estabelecendo mecanismos de garantias de direitos sociais, inclusive difusos e coletivos, como saúde, educação, profissionalização. No que toca à chamada delinqüência juvenil, enfatizam o caráter pedagógico das respostas pela delinqüência juvenil, implementando normas garantistas no sentido de se reservar à aplicação de medidas privativas de liberdade às hipóteses de estrita necessidade.

 

Em que pesem algumas adaptações eufemísticas aos princípios da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, (exemplo da Colômbia), o fato é que as adaptações legislativas têm sido positivas e substanciais. Exemplos do Brasil, Bolívia, Costa Rica, El Salvador, Guatemala (ainda não vigente), Nicarágua, Honduras, Panamá, Peru e República Dominicana.

 

Estão em tramitação propostas de leis no Chile, Equador, Paraguai, Argentina, Uruguai e Venezuela.

 

Enquanto a Convenção não for, de fato, implementada; enquanto seu caráter operacional não for pacificamente aceito; enquanto suas disposições forem encaradas como meramente programáticas, persistirá em nosso continente a vergonhosa realidade das condições deploráveis do verdadeiro apartheid social legalizado por normas ultrapassadas e antijurídicas. Muitas delas, inclusive, inconstitucionais. Todas repletas de mitos e eufemismos, penalizadoras e de controle social de pobreza, mascaradas de tutelares, tuitivas, protetoras.

 

A partir da Convenção Internacional, perdem terreno os discursos da compaixão-repressão característicos de certos círculos da chamada Justiça de Menores.

 

A sociedade civil começa a desconfiar de mitos e eufemismos. Patologia social; medidas terapêuticas, tutelares; situação irregular, Justiça Protetora; juiz sempre bondoso, paternal; Ministério Público defensor constante e intransigente de crianças em qualquer situação; centros educacionais, de bem estar, passam a ser vistos criticamente.

O controle social voltado para a menoridade abandonada e delinqüente; as legislações ditas tutelares; as prisões de meninos rotuladas de centros educacionais; a negação do direito de defesa em casos de envolvimento com o sistema, principalmente de justiça, começam a ser questionados.

 

Em grande parte dos países, as legislações protetoras não mencionam direitos, contentando-se com medidas rotuladas de tutelares, que não passam de penas. Sanções disfarçadas, impostas exclusivamente a crianças e jovens empobrecidos, não raro para segregá-los de suas famílias e comunidades, confinando-os em estabelecimentos eufemisticamente dominados educacionais. Instituições geralmente caracterizadas como verdadeiras casas de horrores, centros de violência e delinqüência.

 

Funciona na América Latina, para crianças e jovens vulneráveis, um Direito Penal de Menores, mais repressivo do que o dos adultos e, o que é pior, geralmente, sem garantias processuais.

 

Como observa Rodolfo Schurmann Pacheco, criticando as leis baseadas na “Doutrina da Situação Irregular”, (Modelos de Legislación de Menores en América Latina) – “vigora em todos os países um verdadeiro Direito Penal de Menores, mais repressivo, mais objetivista, mais perigosista do que a legislação de adultos, inclusive com a adoção de noções abandonadas pelo próprio Direito Penal.”

 

Há, no dizer do jurista, “uma trágica desorientação filosófica, político-criminal e, até, dogmática. A figura do sujeito de direitos frente à ação do Estado é desconhecida. Considera-se o menor como coisa desamparada que se tem de proteger, perigosa, que se há de institucionalizar.”

 

O quadro obriga reflexão.

Mudanças constituem imperativo dos novos tempos. Há que se interpretar as legislações latino-americanas de acordo com os princípios postulados da Convenção, principalmente da Doutrina da Proteção Integral.

O intérprete não poderá olvidar os Documentos Internacionais de Direitos Humanos, as Regras de Beijing, as Diretrizes de Riad, o Estatuto da Criança e do Adolescente do Brasil, a importância da participação comunitária e conscientização da sociedade.

 

A responsabilidade brasileira advém do pioneirismo na implantação do novo modelo, cujo êxito é compromisso com as novas gerações.

 

1.2. Brasil – Situação irregular – um viés que teima em não morrer.

Em que pese a Convenção Internacional, o Estatuto e as novas posições interpretativas da Doutrina da Proteção Integral, a “proteção”, que não passa de preconceituosa e odiosa opressão de crianças e adolescentes vulneráveis, persiste resistindo fortemente às mudanças substanciais de paradigma.

 

Ao modelo da proteção integral, do garantismo, se opõe a ambigüidade de que nos fala Garcia Mendez, em excelente artigo, sob o título “Infância, Lei e Democracia: Uma Questão de Justiça”:

 

“Frente aos paradigmas instalados e confrontados da situação irregular e a proteção integral, o paradigma da ambigüidade se apresenta como uma síntese eclética, apropriada para esta época de ‘fim das ideologias".

 

O paradigma da ambigüidade se encontra muito bem representado por aqueles que, rejeitando de imediato o paradigma da situação irregular, não conseguem acompanhar – talvez pela diminuição significativa das práticas discricionais e paternalistas no trato com as crianças – as transformações reais e potenciais que se deduzem da aplicação conseqüente do paradigma da proteção integral, que considera a criança e o adolescente um sujeito de direitos, e, não menos, de responsabilidades.

 

Nesse ponto me parece importante arriscar uma explicação que permita entender melhor o por quê da aparição (e difusão) do paradigma da ambigüidade.

 

“Se considerarmos o caráter de revolução copernicana da mudança de paradigma da situação irregular à proteção integral, sobretudo no sentido da diminuição radical da discricionariedade na cultura e práticas de ‘proteção’ (lembre-se que a história é muito clara ao mostrar as piores atrocidades contra a infância cometidas muito mais em nome do amor e da proteção, que em nome explícito da própria repressão), é necessário admitir que o direito (a Convenção) desempenhou um papel decisivo na objetivação das relações da infância com os adultos e com o Estado”.

“Esta objetividade (entendida como a tendência oposta à discricionariedade), que se expressa não só por um novo tipo de direito, mas também por um novo tipo de institucionalização, assim como por novos mecanismos de cumprimento e exigibilidade, transforma substancialmente o sentido do trabalho dos especialistas ‘tradicionais’, desde os juristas até os pedagogos, para atingir toda a variada gama destes operadores sociais”.

 

“Estas transformações se referem, especialmente, à redução da capacidade omnímoda para diagnosticar discricionalmente a existência e características da ‘disfunção’ social ou individual; e muito especialmente, o sentido e características das medidas, sejam estas jurídicas, terapêuticas ou sociais. As metáforas da medicina cada vez dão menos conta da nova situação”.

 

“O fato de considerar os adolescentes em conflito com a lei penal, de uma vaga categoria sociológica que comete feitos anti-sociais (situação irregular), a uma precisa categoria jurídica que comete infrações penais, típicas, antijurídicas e culpáveis (proteção integral), constitui um exemplo bem representativo desta situação”. (in Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina – ESMESC, v. 5, ano 4, 1998, pp. 27/28).

 

As novas disposições, garantistas e responsabilizantes do Estatuto, continuam a ser interpretadas com os mesmos princípios simplistas e autoritários da antiga postura, própria do ab-rogado Código de Menores.

 

A “proteção”, o “superior interesse”, o “bem-estar da criança e do adolescente”, a “reeducação”, a “ressocialização” justificam tudo.

 

As medidas sócio-educativas, de índole nitidamente retributiva e penalizante, são impostas sob a falácia do caráter “pedagógico”, “tutelar”, “protetor”, muitas vezes desnecessariamente.

Em que pesem as garantias constitucionais e legais, arbitrariedades continuam justificadas por eufemismos, como acontece, por exemplo, com a “internação” e, principalmente, com a “liberdade assistida”, apresentadas como intervenções meramente educativas, como se as palavras pudessem alterar a substância das coisas.

 

Internação, liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade são exibidas como benefícios, institutos bons para o adolescente.

 

Fala-se de um sistema “reeducativo” ideal, que não existe.

Esquecidos da triste realidade das verdadeiras “prisões de meninos pobres”, apaixonados, “novos menoristas” exorcizam propostas garantistas, jurídicas, que, restringindo a discricionariedade, apenas propõem limites ao arbítrio, acoimando-as de retrocesso e compromisso com propostas de “lei e ordem”, como se o sistema, em relação aos infratores, fosse, mesmo, educativo de qualidade.

 

Esquecem-se integrantes do sistema administrativo e judicial da vergonha dos “internatos”, verdadeiras prisões, geralmente piores do que as dos adultos.

Programas de “liberdade assistida”, “prestação de serviços à comunidade”, geralmente, não passam de improvisações.

 

Não há efetivo controle jurisdicional de resultados, muito menos de integração ou de assistência educativa à família.

“Relatórios”, “diagnósticos” justificadores de puro assistencialismo e inadequadas intervenções continuam existindo.

 

A chamada “proposta pedagógica” persiste de pano de fundo da arbitrariedade.

Justificando sistemas pesados, caros, produtores e reprodutores de violência e criminalidade, salvo raríssimas exceções, a chamada “proposta pedagógica” continua reproduzindo o sistema penitenciário.

 

Reeducação e ressocialização não passam de mitos convenientes.

“Proposta pedagógica”: falácia que ninguém definiu, regulamentou.

Salvo exceções, sentenças, acórdãos, pareceres, defesas, recursos, relatórios, estudos de caso, diagnósticos refletem os vieses do sistema “protetor”, onde os adolescentes, ditos infratores, são “protegidos”, “reeducados”, “ressocializados”.

 

Se o sistema é protetor; se todos os atores processuais e administrativos buscam “o melhor interesse” do adolescente; se as medidas sócio-educativas são um bem para o adolescente; se, ao impor uma medida sócio-educativa, está-se realizando um dever relativamente ao direito à educação; não há necessidade de grandes e profundas justificativas. Basta aludir ao “superior interesse” do menino que precisa ser educado. Educação por meio dos benefícios da liberdade assistida, da prestação de serviços à comunidade, da internação, é óbvio.

 

Sob tal falácia acabam os “protegidos” sujeitos a verdadeiras penas indeterminadas, impostas subjetivamente sem garantias objetivas, como, por exemplo, os critérios de legalidade e proporcionalidade.

 

A individualização das medidas, via de regra, não é justificada por critérios objetivos. Diante de tanta “proteção”, eles são desnecessários. “O sistema não é penal. O adolescente não comete infração penal. Pratica ato infracional”. Predominando o subjetivismo, em nome da “reeducação”, adolescentes ficam sujeitos a respostas mais severas do que em iguais circunstâncias seriam impostas aos adultos.

 

A execução continua sem limites claros e precisos. Não há um devido processo legal explicitamente colocado.

Subjetivismo e improvisações de toda ordem persistem tanto nas remissões como nas sentenças.

 

Insisto: via de regra, adolescentes são punidos com maior rigor que adultos, acobertada a arbitrariedade pelas falácias da “proteção”, da “proposta pedagógica” e do “sistema tutelar”.

Erros judiciários e administrativos seja no processo de conhecimento, seja na fase de execução, repetem-se, tudo praticado em nome do “bem-estar do menor”, do seu “melhor interesse”, da “reeducação” , como se o sistema correspondesse, caracterizando-se como educacional e de excelente qualidade.

 

É preciso dar um basta nisso.

É necessário assumir a postura realista e científica preconizada na Doutrina da Proteção Integral.

Apesar do Estatuto, da Convenção e da nova doutrina, os “infratores” continuam sem cometer crimes.

 

Não cometendo crimes, mas “atos infracionais”, a eles não se aplicam “penas”.

“As medidas, por serem pedagógicas, não são retributivas e, não tendo caráter penal, são aplicadas em benefício dos adolescentes”. Assim, não há necessidade de tantos cuidados na certeza da autoria, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.

 

Não praticando crimes, “não têm direito” aos benefícios dos adultos – prescrição, graça e indulto.

Perguntem aos “protegidos”, “reeducandos”, “educandos” e principalmente aos internos, se estão satisfeitos com a “proteção”, com o sistema.

Perguntem se o sistema é justo.

 

Tem-se dito que o sistema difere do dos adultos porque o “Estado tem o compromisso de proteger, educando ou reeducando.”

Os defensores da “doutrina da ambigüidade”, justificando suas posições “paternalistas”, falam de um sistema ideal, perfeito. Daquilo que não existe. E jamais existirá!

 

Mas, se existisse, ainda assim, haveria o estigma da sentença e do sistema que não seria o educacional comum, mas reservado a uma classe especial de pessoas, os infratores.

Se a simples intervenção do sistema “educacional”, das chamadas Febens, não for estigmatizante, porque destinado aos “menores” ou “adolescentes infratores”, bastaria a sentença, a passagem pelo sistema de justiça para justificar o estigma e redobradas cautelas. Cuidados para não envolver desnecessariamente quem quer que seja.

 

Acreditarei na excelência do sistema educacional dos “infratores”, quando desembargadores, juízes, promotores, assistentes sociais, psicólogos e pedagogos encaminharem os filhos para serem protegidos, educados nas internações, nas liberdades assistidas ou nas prestações de serviço à comunidade.

 

Enquanto o sistema for reservado aos “infratores”, tenham eles o nome que tiverem, não será “protetor” dos adolescentes, será, como tem sido, e necessariamente tem de ser, um sistema retributivo e de proteção da sociedade. Jamais dos adolescentes!

Adolescentes são protegidos por meio de políticas básicas, principalmente da política de educação nos estabelecimentos da rede comum de ensino.

 

O direito à educação e o correspondente dever são exercidos dentro da normalidade.

Se o Estado tem de impor, agindo coercitivamente, as medidas que tomar, atingindo direitos fundamentais da pessoa humana, têm de ater-se ao princípio da legalidade. Vale dizer, da excepcionalidade devidamente justificada.

 

Aos que necessitarem apenas proteção, educação e não respostas preventivas e repressivas, que sejam encaminhados ao sistema educacional comum.

Seria iníquo submeter, sem necessidade, qualquer pessoa a um sistema educacional especial, reservado a infratores.

 

No momento em que se cria um sistema “educacional” paralelo de intervenção estatal coativa, com restrições, inclusive privação de liberdade, o sistema deixa de ser simplesmente educativo, protetor, para ser, também, limitador de direitos fundamentais, numa palavra, repressivo.

Lamentavelmente a chamada “doutrina da situação irregular”, preocupada com “denominações” e “estigmas”, persiste viva naqueles em que teimam em ver nas medidas sócio-educativas tão-somente o caráter pedagógico, esquecidos que, substancialmente, sendo respostas a condutas reprovadas, têm caráter retributivo, interferindo na liberdade, na autodeterminação e, até, na intimidade das pessoas.

 

Desde quando privação coativa da liberdade, semiliberdade, prestação de serviços à comunidade, desde quando restrições aos direitos fundamentais podem ser consideradas um bem para a pessoa humana restringida, submetida ao Estado? Constituem, isto sim, um mal.

Um mal necessário, mas um mal.

 

São um bem para a sociedade, para a prevenção e repressão da delinqüência juvenil.

Esta é a verdade que precisa ser compreendida e aceita.

 

E a eufemística liberdade assistida, tão “assistida”, que o descumprimento de suas regras pode implicar também na eufemística “internação”, ou seja, privação de liberdade por até três meses.

 

É preciso ter coragem e assumir o verdadeiro significado das palavras. Impõe-se, em nome dos direitos humanos, ver o que existe de verdadeiro no sistema dito “Tutelar”.

 

O atual jogo de palavras, procurando suavizar institutos de Direito Penal com a simples alteração de nomes, possibilita injustiças em relação aos adolescentes. A postura provoca preconceitos e severidade.

 

Argumentam os defensores do paradigma identificado por Garcia Mendez:

“Sendo um bem, as medidas sócio-educativas, não há porque livrar o adolescente do sistema”.

 

Insisto: Com base na falácia da “reeducação”, “educação” e “integração sóciofamiliar”, adolescentes continuam sendo jogados no sistema, como se as medidas sócio-educativas fossem um bem.

 

Um bem podem ser consideradas as medidas protetivas. Basta ver a separação que o Estatuto faz entre umas e outras.

 

Vítimas e vitimizadores reclamam apenas por justiça.

O sistema não deve ser encarado nem como bem, nem como um mal, mas como uma resposta justa e adequada ao fenômeno da delinqüência juvenil.

 

Tenha-se presente: enquanto a adultos se livram por meio da prescrição, do indulto, da anistia, da graça, adolescentes são compelidos, forçados a medidas sócio-educativas.

 

Insisto: justificam-se medidas restritivas de direito e privativas de liberdade sob o falacioso argumento de que constituem um benefício para os adolescentes.

 

Chega-se a dizer que a medida não é imposta, é “aplicada”. E o é no subjetivismo do “melhor interesse” e da “proteção”, dogmas, há muito, superados pela “Doutrina da Proteção Integral”.

 

Viés dos piores, a interpretação do Estatuto, com base no subjetivismo, nos mitos e nas falácias do antigo Direito, só será superada quando os operadores judiciais e administrativos se convencerem da necessidade da interpretação sociológica, teleológica do artigo 6º do Estatuto, que se baseia no garantismo.

 

O Direito Norma, o Estatuto, tem de ser interpretado e aplicado sociológica e sistematicamente, reconhecendo e separando o intérprete, as hipóteses em que adolescentes são vítimas daquela em que aparecem como vitimizadores.

 

Medidas protetivas para crianças e adolescentes vítimas. Sócio-educativas para vitimizadores sempre que necessárias como respostas justas e adequadas.

 

Repito: não é mais possível conviver com mitos, eufemismos e falácias.

É preciso identificar corretamente, separando institutos de proteção da criança e do adolescente dos institutos de proteção da sociedade.

 

É preciso assumir a postura técnico-científica, abandonando o paternalismo inconseqüente e a repressão disfarçada.

 

Só assim os operadores administrativos e judiciais estarão desempenhando o verdadeiro papel de realizar justiça, que é o que se espera de um sistema judiciário e administrativo.

 

2 – Medidas sócio-educaticas ou o controle social arbitrário de adolescentes: um viés que precisa morrer

Válida a advertência de Mário Volpi:

“Portanto, o momento presente não se caracteriza pela necessidade de ecletismos ou sincretismos doutrinários, mas sim de superação de antigas doutrinas para a consolidação de uma nova, despida de todos os vícios do passado. Trata-se realmente de um paradigma (da situação irregular) a ser superado e da transição a um novo paradigma: da proteção integral. Não há, então, espaço para a ambigüidade. Há a necessidade de um posicionamento firme e de um compromisso real para promover crianças e adolescentes à inclusão social e à sua participação crítica e criativa no Estado Democrático de Direito.” (SARAIVA, João Batista da Costa, in Adolescente e Ato Infracional: garantias processuais e medidas sócio-educativas, Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1999, p. 08)

 

Antes de aprofundar o tema a respeito da realidade da aplicação e execução das medidas sócio-educativas, impõe-se aclarar seu verdadeiro caráter, se pedagógicas ou retributivas.

Estamos no campo do Direito. A análise não é feita a partir da ótica do pedagogo, do psicólogo ou do assistente social. A visão é jurídica.

 

Não tenho a menor dúvida: juridicamente consideradas, as medidas sócio-educativas são retributivas, pedagógicas e, inclusive,  repressivas.

 

São retributivas porque constituem resposta à prática de um ato infracional, portanto legalmente reprovável.

 

Só o autor do ato infracional (eufemismo que corresponde a crime ou contravenção penal – ECA, art. 103), pode ser submetido (apenado) a uma medida sócio-educativa.

Não se olvide: as medidas são impostas coercitivamente.

 

Não se diga que a possibilidade da remissão, da não imposição de qualquer medida ou a faculdade que tem o Juiz de aplicar medidas de proteção retira o caráter retributivo das medidas sócio-educativas, porquanto essas providências despenalizantes nada têm com a natureza da medida. Existem, inclusive, no Direito Penal Comum: a suspensão condicional do processo, da pena, o perdão judicial, etc.

 

O caráter retributivo é visível na mais branda das medidas – a advertência –, onde o Juiz admoesta, vale dizer, avisa, adverte, repreende.

 

São pedagógicas, porque têm caráter eminentemente educativo, mas são repressivas (do latim, repressio, de reprimere – reprimir, impedir, fazer cessar).

 

O caráter repressivo das medidas sócio-educativas não reflete o sentido vulgar da palavra, mas o significado técnico-jurídico de “oposição”, “resistência”, “impedimento”.

Como explica De Plácido e Silva no Vocabulário Jurídico:

 

“As medidas impostas para reprimir podem chegar até o castigo. Mas, juridicamente, repressão não é castigo: é meio de fazer cessar, de fazer parar, de impedir ou de moderar adolescentes em conflito com a lei e a sociedade”.

 

As medidas sócio-educativas visam prevenir e reprimir a delinqüência juvenil, vale dizer, fazê-la parar relativamente ao agente e impedir ou moderar o fenômeno em relação aos demais adolescentes.

 

Admitir o caráter repressivo, penal especial, diferente do penal comum dos adultos insisto, é útil aos direitos humanos de vítimas e vitimizadores.

 

É necessário superar o viés da “proteção”: ciente o aplicador da medida que, além de imposta, é repressiva, redobrar-se-á em cautelas para não impô-la sem os critérios da fundamentação da despenalização, da excepcionalidade, da legalidade, da brevidade, da proporcionalidade e da resposta justa e adequada.

 

Despenalização concretizada pela remissão pura e simples.

Proporcionalidade para impedir a imposição de medida severa por fato irrelevante.

Como as penas criminais, as medidas sócio-educativas são restritivas de direito (advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida) e privativas de liberdade (semiliberdade e internação).

 

Enquanto as penas criminais são determinadas e subordinadas a critérios objetivos e limitativos (os adultos gozam da suspensão condicional do processo e da substituição de penas privativas de liberdade por restritivas de direito), os adolescentes continuam submetidos a medidas indeterminadas e sem critérios prévios, claros e objetivos, capazes de conter o possível arbítrio do Estado.

 

Carecem adolescentes de mais garantias, explícitas e objetivas, capazes de proporcionarem a justa individualização da medida.

 

O subjetivismo, segundo o qual (§ 2º do art. 122) “em nenhuma hipótese será aplicada internação, havendo outra medida adequada”, constitui porta aberta ao arbítrio.

 

A prevalência dos princípios enviesados da antiga “doutrina”, segundo a qual as medidas do chamado “Direito do Menor” sempre visam o melhor interesse dos adolescentes, tem propiciado a imposição de respostas mais severas do que em iguais circunstâncias seriam impostas aos adultos pelo Direito Penal Comum.

 

Uma correta visão das medidas sócio-educativas, ciente o aplicador do seu caráter predominantemente pedagógico, mas repressivo, nitidamente penal, favorecerá os adolescentes, porque a imposição ou o ajuste (remissão) passará a ser restritivo, submetido ao princípio da estrita legalidade.

 

Favorecerá a sociedade e os adolescentes, reforçando o compromisso com a cidadania, com o reconhecimento da dignidade de ser sujeito de direitos e obrigações.

 

3. Brasil – Prescrição – direito universalmente reconhecido e sonegado aos adolescentes

Não se deve confundir a natureza da medida com seus objetivos. Proteção, educação, reeducação, reintegração sócio-familiar, fortalecimento de vínculos familiares são os objetivos das medidas sócio-educativas, mas sua natureza, sob o ângulo jurídico, é penal.

Para o jurista importa mais a natureza do que o objetivo, porque este pode ser alcançado de outro meio, sem o estigma do ato infracional, por intermédio das medidas de proteção. Comparem-se os artigos 101, 112 e 114 do Estatuto.

 

O pedagogo prioriza os objetivos; o jurista, a natureza e o reflexo da intervenção estatal coercitiva sobre os direitos da pessoa humana.

 

Para o pedagogo, por exemplo, a liberdade assistida, vista da ótica dos objetivos, pode ser encarada como um bem, mas para o jurista, atento às restrições aos direitos e à imposição, é sempre encarada como um mal. Um mal necessário, mas um mal. Assim, sua imposição só pode ocorrer com observância dos princípios da estrita legalidade, da excepcionalidade e da brevidade.

 

A despenalização, o Direito Penal Mínimo, próprios das garantias e dos benefícios do direito ciência e do direito norma não podem ser recusados aos adolescentes inimputáveis. Inimputáveis perante o Direito Penal Comum, mas responsáveis diante das normas da legislação especial de que trata o artigo 228 da Carta Política.

 

Outra interpretação, baseada nos “bons objetivos” em detrimento da natureza das medidas sócio-educativas, constitui falácia que choca flagrantemente com a hermenêutica jurídica e os mais elementares princípios da justiça, da eqüidade, dos fins do direito.

A exegese, para ser adequada aos princípios da Convenção Internacional, não pode prescindir das diretrizes do artigo 6º do Estatuto. Interpretação, finalística, teleológica, sociológica, que não pode ser isolada, tem de ser sistemática.

 

Tenha-se presente: o ato infracional corresponde a crime ou contravenção penal (art. 103).

A prescrição (garantia só excluída em casos excepcionalíssimos – CF, art. 5º, XLIV) não pode ser recusada aos adolescentes.

 

O inescondível caráter retributivo das medidas sócio-educativas, a maioria claramente repressiva, obriga o intérprete a se socorrer do Direito Penal no que ele tem de garantias.

Dentro desses pressupostos, ao invocar-se a parte especial (repressiva) da Lei Penal Comum para punir o autor do ato infracional, há que se ter em conta, também, a parte geral, principalmente os seus benefícios, dentre eles a prescrição.

 

Justiça, eqüidade, antíteses da iniqüidade, da negação do Direito (princípios e diretrizes da correta interpretação) têm de ser levados em conta, principalmente a analogia, aplicável no Direito Penal, sempre que para beneficiar ou excluir a sanção.

Liberdade assistida (vigiada), prestação de serviços à comunidade, semiliberdade e internação, eufemismo definido como medida privativa de liberdade, não podem ser impostos sem limites.

 

O Estado não pode continuar sem atribuir aos adolescentes um direito universalmente reconhecido a todos, a prescrição, sob a falácia da proteção, do seu bem-estar, da sua educação, como se esses objetivos ilidissem a natureza repressiva, própria de toda medida que limite ou suprima direitos, principalmente a liberdade.

 

4. Conclusões

A regra, na América Latina, é a inobservância dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

 

Vida, saúde, alimentação, educação, esporte, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária de crianças e jovens, freqüentemente, são vulnerados pelo Estado que não realiza políticas sociais eficazes; pela sociedade e pela família que teimam em não os reconhecer como sujeitos de direito, portadores da condição peculiar de pessoas em desenvolvimento.

 

Em que pese à trágica situação, o fato que na América Latina começa a surgir uma nova consciência a respeito da necessidade de se estabelecer novos mecanismos jurídicos capazes de garantir os direitos fundamentais e sociais de crianças e adolescentes.

No panorama internacional a causa dos direitos humanos de crianças e adolescentes ganha novos e seguros espaços.

 

Surgem projetos e leis baseados na Doutrina das Nações Unidas para a Proteção Integral da Criança.

 

A nova doutrina da Proteção Integral, preconizando que crianças e adolescentes são sujeitos de direito, afastou completamente os enviesados princípios da antiga “doutrina da situação irregular”, entre eles o subjetivismo e o arbítrio, travestidos da falácia da “proteção”, que não passava de odiosa opressão.

 

Há que assumir o modelo garantista e responsabilizante do Estatuto e da Convenção.

Palavras e institutos têm de ser interpretados e aplicados com base na ciência e na técnica, sem mistificações, dentro dos princípios da Hermenêutica Jurídica e do Direito.

A delinqüência juvenil é um fenômeno social que exige respostas justas, e estas não podem persistir baseadas em mitos, eufemismos e falácias.

 

Para o jurista, o que importa, fundamentalmente, não é o objetivo (reeducação), mas a natureza repressiva das medidas sócio-educativas. Sendo claramente restritivas de direitos fundamentais, embora marcadas pela excepcionalidade e brevidade (CF, art. 227, § 2º, V), as medidas sócio-educativas não podem ser impostas sem se submeterem a uma das garantias básicas da pessoa humana, a prescrição.