COMEC- campinas/sp
O olhar no adolescente infrator
O COMEC - Centro de Orientação ao
Adolescente de Campinas é uma organização não governamental sem fins lucrativos, criada há 21 anos pelo então Juiz e Curador de
Menores de Campinas (SP), para ser um espaço intermediário de cuidado com os
adolescentes em situação de risco pessoal e social que não fosse a mera
advertência em nível de juizado ou a internação em uma unidade da Febem. O
objetivo era – e continua a ser - de garantir, com maior qualidade, que o
adolescente não perca os vínculos com sua comunidade, seja ela a família, a
escola ou o trabalho informal. É neste ambiente que atua uma equipe multi e transdisciplinar, formada
por duas terapeutas ocupacionais - a dra. Giovana de Lorenzo da Silva (há nove anos na instituição,
três dos quais como sua coordenadora) e
a dra. Beatriz Solternan, atual coordenadora do
COMEC), três assistentes sociais, duas psicólogas e ainda estagiários de
Terapia Ocupacional da PUCamp e da UFSCar. A presença
da Terapia Ocupacional no COMEC - Centro de Orientação ao Adolescente de
Campinas teve origem na atuação educacional de outra terapeuta ocupacional, a
dra. Sandra Galheigo, com seus alunos, como uma forma
de criar demanda para a terapia ocupacional. Desde essa época a terapia
ocupacional era reconhecida como necessária e fundamental à composição da
equipe.
A entidade surgiu com o nome de COMI
– Centro de Orientação ao Menor Infrator, uma denominação que estigmatizava o
menor em seu próprio nome. Em 1983 transformou-se em COMEC e, no início de
agosto deste ano, seguindo a orientação do Estatuto da Criança e do
Adolescente, substituiu a expressão Menor por Adolescente, mas manteve a sigla
pela qual é conhecida desde 1983. Alteração semelhante de nomenclatura passou o
Juizado de Menores, que teve alterado seu nome para Vara da Infância e da
Juventude.
O Estatuto da Criança e do
Adolescente prevê para o autor de ato infracional
algumas medidas sócio-educativas, entre elas a Liberdade Assistida e a
prestação de serviço comunitário, ou as duas combinadas, além da internação Em
Campinas, o COMEC é um dos prestadores de serviço que aplicam e acompanham
essas medidas. Até três anos atrás era o único no município. Com o aumento da
criminalidade, uma outra ONG oferece 50 vagas para liberdade assistida (o COMEC
dispõe de 160). Ainda existe um serviço dentro da própria Prefeitura (o Projeto
Resgate), que aplica outra medida prevista, a prestação de serviços à
comunidade.
As dras. Giovana
e Beatriz estão envolvidas, no COMEC, com o programa de acompanhamento da
Liberdade Assistida (a entidade também desenvolve outro programa, de caráter
preventivo, denominado Educação pelo Trabalho). Toda a clientela tem origem na
Vara da Criança e da Juventude de Campinas, seja porque eram internos que
passaram pela audiência de Liberdade Assistida, seja porque cometeram o
primeiro ato infracional ou foram transferidos de
outras cidades. O COMEC dispõe de um provimento do Poder Judiciário, que o
autoriza a acompanhar a medida imposta (o vínculo com o adolescente infrator é
obrigatório).
Em Campinas, o COMEC trabalha em
parceria com outros segmentos da sociedade: Prefeitura Municipal (que repassa
uma subvenção mensal), FEAC – Federação das Entidades Assistenciais de Campinas
(que congrega instituições com coerência pedagógica e garante as assessorias
jurídica e administrativa, além de
uma subvenção mensal) e a Febem (que comissiona no COMEC dois técnicos –
um psicólogo e uma assistente social – além de fornecer uma verba que permite atender a demanda de aproximadamente
160 adolescentes). “Efetuamos a captação do adolescente carente através do
Senac-Campinas e de algumas escolas municipais e, após um treinamento, que
inclui orientação e acompanhamento familiar, estes adolescentes são empregados
em empresas locais que conosco realizaram convênios”, relata a dra. Giovana. “Não fazemos apenas
o repasse da mão-de-obra para as empresas, mas um processo que pretendemos seja
sócio-educativo com o adolescente, fazendo de sua primeira experiência de
emprego um processo preventivo à delinqüência. Entendemos que, muitas vezes, os
adolescentes infratores ficam excluídos do mercado formal de emprego por
despreparo de qualificação e por estarem fora das escolas. Estes adolescentes
são contratados de acordo com a legislação e retribuem com uma taxa de
administração que, indiretamente, garante o sustento do programa de liberdade
assistida”.
SEM SETORIZAÇÕES - No COMEC, o trabalho não é setorizado, esclarece a dra. Giovana. “Não temos um setor específico de Terapia
Ocupacional, como também não temos um setor de Psicologia ou de Serviço Social.
O que temos é um mesmo olhar sobre a questão do adolescente infrator. As
abordagens, obviamente, tem suas especificidades”. À medida que o adolescente
chega, a dra. Giovana faz a
triagem e o acolhimento, examinando sua documentação pessoal, seu acompanhamento
escolar, as tentativas de vínculo empregatício e, dentro dos objetivos da
terapia ocupacional, garantindo a ele que a liberdade possa ser discutida com
responsabilidade. “O nosso grande paradoxo é justamente conciliar o ‘ser
obrigação’, porque ele tem um vínculo obrigatório e recíproco, para o
‘referenciar e criar’, no que chamamos na Terapia Ocupacional de espaço vivencial da atividade, para que através de diversas
atividades - não temos uma específica -
tentemos colher o que o grupo ou o adolescente está tentando passar
naquele momento e motivá-lo a fazer coisas e rever posições, de modo que ele
possa subjetivamente rever seus conceitos de propriedade, de moral, de
respeito, de não invasão a coisas alheias”.
“Temos, em média, no mínimo seis
meses e em alguns casos até três anos de permanência desses adolescentes. Não
podemos mandá-lo embora antes. Sob o ponto de vista terapêutico não dá para
fixar o tempo, mas trabalhamos com muitas questões que são visivelmente
terapêuticas. Em determinadas ocasiões somos educadores, trabalhando com
informação e orientação e em outras ocasiões, referência com os aspectos
legais, pois temos um compromisso com a Justiça. Temos autoridade até para
exercer um poder coercitivo, mas tentamos não ir para o lado coercitivo ou
punitivo, mas sim pelo caminho educativo. Com certeza é um risco e uma prática
bastante diferenciada sob o ponto de vista da Terapia Ocupacional. Não temos um
setting definido obrigatoriamente. O
atendimento pode acontecer na sala de espera, em uma atividade externa, em uma
visita domiciliar, no horário da refeição do adolescente conosco, na sala
adaptada para o grupo (a maioria dos procedimentos são
grupais)... As atividades são as mais diversificadas possíveis, partindo
do cotidiano deles e obviamente com algumas formas diferentes de comunicação.
Introduzimos, por exemplo, confecção de velas, sabonetes, costura, culinária,
horta... Esta casa, onde está instalado o COMEC, está sendo habitada e cuidada
por eles”.
FLEXIBILIDADE EXIGIDA - A experiência da Terapia
Ocupacional no COMEC é pautada por um perfil de profissional que busca e tem
que ser bastante flexível. “Lidamos muito com o inusitado”, lembra a dra. Giovana. “A realidade é aqui
pautada por uma série de nuances (o adolescente pode ir a óbito, pode reincidir
e ser transferido para a Febem, pode mudar de endereço por estar jurado de
morte, pode simplesmente sumir...). Às vezes não conseguimos que o adolescente
venha ao atendimento da Liberdade Assistida, mas no trabalho que realizamos com
a família, conseguimos mudanças significativas. O caso evoluiu bem sob o ponto
de vista subjetivo, afetivo e até preventivo, mas teve uma péssima evolução na
medida que não conseguimos trabalhar diretamente com o adolescente”.
As visitas domiciliares realizadas
pelos terapeutas ocupacionais e demais integrantes da equipe têm dois
objetivos: localizar o adolescente que está desaparecido e fazer uma
radiografia da família. “Em uma determinada época trabalhamos com adolescentes
gestantes, companheiras de adolescentes infratores. Existe uma grande demanda
de meninas com sua história marcada por desapego, violência, abandono,
tentativas de aborto... São dados em anamnese que nos
levaram a pensar que se conseguíssemos significar ou pelo menos responsabilizar
esta maternidade, haveria uma atuação preventiva na qualidade de geração dessa
criança. Temos crianças de seis anos, filhos de pais ou mães infratores, que
estamos acompanhando. Foram gestações que foram minimamente orientadas,
conduzidas, refletidas e sentidas, de modo que essas adolescentes pudessem ter
maior cuidado com essas crianças. O volume prático nos tira um pouco da atenção
teórica e este é o grande déficit hoje”.
E qual a referência teórica para
trabalhar com os adolescentes? “Temos adotado – relata a dra.
Giovana - a postura de Donald Winnicott,
que vê no ato infracional (na postura delinqüente) um
pedido de ajuda. Ele buscou a raiz etimológica da palavra agressão, que é agredere, que significa ir ao encontro de e não o
que entendemos como agressividade. Gosto desta leitura. Associando essa
característica normal de adolescente com uma postura infratora, tendo a achar
que de alguma forma, em algum momento de sua história, o adolescente está
denunciando alguma falta com o ato infracional e por
isso agride ao outro, ao social, a família e a si próprio. Partindo desse
pressuposto tentamos achar o caminho para tentar significar o processo
conosco”.
Basicamente, no processo de educação
pelo trabalho, a atuação se faz com adolescentes já engajados na escola, com
referência familiar mais oficializada. “Trabalhamos os aspectos educativos,
discutindo cidadania, direitos e deveres enquanto trabalhador, as escolhas de
seu trabalho com testes vocacionais voltados a aptidões e, no ponto de vista da
terapia ocupacional, se ele se adapta a função, se o trabalho é salutar... Do
ponto de vista de técnica, utilizamos a dinâmica de visita aos locais de
trabalho dos adolescentes, de orientação com os familiares e suas expectativas.
Do ponto de vista da liberdade assistida, a intervenção é idêntica, porém com
outros objetivos. Na maioria das vezes você não tem o adolescente engajado no
mercado, preparado minimamente, pois muitos são analfabetos funcionais.
Tentamos trabalhar com estrutura de valores, de conceitos e de moral, mas não a
moral punitiva”.
“O COMEC com sua equipe, e a Terapia
Ocupacional dentro dela, atua na orientação, prevenção e capacitação dos
agentes ligados aos adolescentes e, da mesma forma, com o pessoal interno de
saúde, outras ONGS e equipamentos locais com os quais temos parceria. O
terapeuta ocupacional tem uma inserção que extrapola o que normalmente
discutimos em sala de aula, em nossa formação. Temos que ter um olhar muito
ampliado e engajado nas questões, com visão política e social do que é esse
adolescente infrator. Quando temos a violência associada, temos que buscar algumas formas alternativas de ligar com esse assunto e onde
temos que ir mais fundo é na questão familiar. Em Campinas, temos uma
migração muito forte: pessoas que na busca de uma melhor qualidade de vida,
acabaram perdendo suas referências históricas e culturais, ocuparam espaços
pouco organizados para recebê-los (como invasões, sem nenhum equipamento). O que atendemos
aqui é o reflexo desse cenário”.
Objetivo Geral
Atuar junto ao adolescente, visando promover seu desenvolvimento integral,
dando-lhe subsídios para exercer conscientemente sua cidadania.
Objetivos Específicos
Rotina de Trabalho
O adolescente sentenciado, acompanhado de seu responsável, passa, inicialmente,
por uma triagem com um dos membros da equipe técnica. O caso é apresentado em
reunião da equipe, que ocorre semanalmente, traçando-se, então, o plano de
atendimento e elegendo o profissional que ficará responsável pelo adolescente.
Geralmente, havendo empatia na triagem, este mesmo técnico que acolheu o
adolescente encarrega-se de seu acompanhamento.
Durante o período de atendimento (mínimo de seis meses), o adolescente é
atendido, semanalmente, em sessões individuais ou grupais, recebendo passes de
ônibus e alimentação ao final do atendimento. A documentação pessoal do
adolescente é conferida e, se necessário, o mesmo é orientado e encaminhado
para a obtenção desta documentação. O retorno à escola e a permanência nela é
uma preocupação do programa.
Os pais ou responsáveis dos adolescentes também se reúnem semanalmente em
grupos, de modo que, mediante a troca de experiências entre seus membros e a
orientação de um técnico, possam se posicionar frente à situação conflitiva que estão vivendo, identificar suas
responsabilidades e descobrir seu potencial para ajudar o adolescente no
processo de formação integral.
Durante o período de atendimento, são realizados contatos com o Juizado e
segundo a evolução do adolescente é solicitado o término da medida de Liberdade
Assistida.
Atendimento Individual
Clientela: adolescentes com dificuldade de inserção em grupos de atividades.
Objetivo: levar à reflexão sobre a vida e o ato praticado, tendo, como ponto de
partida, a realidade do próprio adolescente, procurando levá-lo a uma
participação produtiva na sociedade.
Metodologia: leitura de histórias, contos fábulas, poemas, apreciação e
comentários de filmes de vídeo, atividades de terapia ocupacional e atividades,
tais como, desenho, linguagem escrita e falada, reforço escolar e jogos
pedagógicos.
Atendimento Grupal
·
Grupo
de acolhimento
Clientela: adolescentes que não se enquadram, de imediato, aos grupos existentes.
Objetivo: formação de vínculo, auto-conhecimento
e conhecimento / aceitação do outro.
Metodologia: dinâmicas de interação.
·
Arte-terapia
Clientela: adolescentes usuários de droga.
Objetivo: trabalhar formas de expressão plástica.
Metodologia: uso de material plástico diversificado.
·
Meninos
trabalhadores
Clientela: adolescentes já inseridos no mercado de trabalho informal ou formal.
Objetivo: discutir relações de trabalho e assuntos de interesse geral:
sexualidade, drogas, DST, etc.
·
Adolescentes
do sexo feminino
Clientela: adolescentes do sexo feminino.
Objetivo: reflexões sobre questões pertinentes ao seu desenvolvimento e
à sua posição como mulher.
Clientela: adolescentes do sexo feminino,
grávidas.
Objetivo: apoiar e propiciar uma gestação acompanhada,
responsável e cuidadosa.
Metodologia: acolhimento, informação e orientação.
Clientela: jovens precocemente mães.
Objetivo: Orientação pós parto, focalizando os
seguintes temas: puericultura, relacionamento do casal, retorno ou início de
trabalho fora de casa, vivência de vários papéis no lar (mãe, esposa, trabalhadora
e adolescente).
Metodologia: diálogo, dinâmicas de grupo e jogos dramáticos.
·
Oficineiros
Clientela: adolescentes com aptidão para atividades manuais.
Objetivo: pré-profissionalização e/ou terapia
ocupacional.
Metodologia: atividades de jardinagem, pátina, recuperação de móveis,
cerâmica e reciclagem de papel e de alumínio.
Grupo de Pais ou Responsáveis
·
Grupo Oficineiro de Mães
Descrição: através de atividades oficineiras, escolhidas pelo próprio grupo, vivencia-se a atividade e, a
partir dela, desenvolvem-se temas relacionados à vida pessoal das
participantes.
·
Grupo
de Orientação a Responsáveis
Descrição: encontros semanais que objetivam desenvolver a reflexão dessas famílias
possibilitando a melhor compreensão do relacionamento pais e filhos, como
também discutir temas referentes à adolescência: drogas, sexualidade, AIDS,
gravidez, etc. As reuniões são ilustradas por vídeos educativos, palestras informativas, dinâmicas de grupo, etc. Observamos
no transcorrer dos encontros um amadurecimento grupal e individual, como
participante e responsável por mudanças familiares. Alem disso o grupo promove,
além da troca de experiências, contribuições significativas pessoais.
Contato com Juizado da Infância e da Juventude e Desligamento
Durante o período de atendimento do adolescente, são enviados, periodicamente,
relatórios à Vara da Infância e da Juventude sobre o desenvolvimento do caso.
Quando, por exemplo, o adolescente deixa de comparecer, após envio de cartas e
realização de visitas domiciliares que resultem infrutíferas, é solicitada sua
busca, apreensão e reencaminhamento à entidade para
continuidade do atendimento.
A responsabilidade pelo conteúdo dos relatórios é, geralmente, dividida com o
adolescente, de modo que haja transparência e honestidade na relação
profissional-cliente e que este último assuma, conscientemente, as
conseqüências de seus atos.
Quando o adolescente se equilibra e passa a ocupar uma posição atuante na
comunidade, seja como estudante, seja como trabalhador ou de ambas as formas, é
enviado um relatório ao juiz com parecer favorável à cessação da Liberdade
Assistida, quando, então, o adolescente é liberado dos atendimentos.
Comentários e Conclusões
O adolescente infrator, ao agredir a sociedade, é, na verdade, um denunciador
inconsciente de suas injustiças sociais.
Fazer um trabalho com o adolescente infrator demanda profissionalismo,
experiência e dedicação.
Os resultados nem sempre correspondem ao esperado e não podem ser facilmente
auferidos pois a clientela é bastante rotativa, perdendo-se o contato com a
maioria dos adolescentes, após seu desligamento.
Estamos tentando iniciar uma nova pesquisa para constatar como estão os
ex-clientes do COMEC após um ano da data da cessação da Liberdade Assistida, a
fim de verificar se houve alguma reincidência.
Na última pesquisa realizada em 1990 mostrou que, cerca de 50% dos
adolescentes, não voltavam a cometer infrações.
Acreditamos que essa porcentagem hoje deve ser muito diferente, pois a disseminação
das drogas não era tão ampla e acessível como hoje, em 1998. Além da realidade sócio econômica cada vez mas excludente,
ressaltamos então, o nosso jovem que já foi excluído de várias instâncias:
família, sistema de saúde, escola, etc.
* Fonte (menção obrigatória):
revista O COFFITO – edição nº 12