O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA: UMA POLÍTICA DE MANUTENÇÃO DO VÍNCULO

 

 

Cenise Monte Vicente[1]

 

 

O vínculo tem dimensão biológica, afetiva e social

 

A todo nascimento corresponde um encontro entre um homem e uma mulher. O recém-nascido é, em si, expressão concreta de uma experiência de encontro. A própria gestação é impensável sem um vínculo concreto entre mãe e feto. Um cordão os une. Um cordão possibilita a vida.

 

Após o nascimento, o seio assumirá esta função de vinculação concreta. O récem-chegado expressa um vínculo, sobrevive graças a uma vinculação orgânica, biológica e crescerá e se desenvolverá com a constituição de uma vinculação simbólica, afetiva e social.

 

 

Toda criança tem família e rede de parentesco

 

O bebê, ao ser concebido, já pertence a uma rede familiar, que compreende o pai e a mãe e seus respectivos grupos familiares. Ao pertencer a estes grupos, também já está estabelecido quem são os outros e o universo de escolhas amorosas e interdições as quais estará sujeito, de acordo com a cultura onde ele está inserido[2].

 

Cada criança recebe um nome próprio e um sobrenome que indicam esta pertinência. Sua constituição enquanto ser social e enquanto indivíduo, ao ser nomeado, inclui imediata e intrinsecamente uma família, toda a rede de parentesco ao qual estará vinculado.

 

 

O vínculo é vital

 

Nos primeiros anos de vida a criança depende destas ligações para crescer. Ela carece de cuidados com o corpo, com a alimentação e com a aprendizagem. Mas nada disso é possível se ela não encontrar um ambiente de acolhimento e afeto. Os bebês não sobrevivem ao desamor. Pais conflituados e instáveis produzem uma relação de ambivalência que pode prejudicar a criança.

 

As doenças mentais infantis expressam, freqüentemente, as dificuldades afetivas das relações interpessoais familiares. Na área da saúde mental, o papel dos distúrbios familiares nos sintomas da criança tem sido cada vez mais reconhecido.

 

John Bowlby, um dos principais teóricos especializado em desenvolvimento humano afirmava, já em 1951, que "o amor materno na infância e juventude é tão importante para a saúde mental quanto as vitaminas e proteínas o são para a saúde física'' (apud Rutter 1972, 1981).

 

 

A criança nasce numa comunidade

 

A criança nasce em determinado território social e geográfico. Imediatamente recebe o direito à cidadania: é natural de algum lugar. Este lugar será incluído na sua definição, na sua identidade.

 

A criança nasce, portanto, em uma comunidade. "Sou filho de tais pessoas e sou de tal lugar". São duas coordenadas que permitem a qualquer um situar-se no mundo. Qualquer lugar sempre pertence a uma nação ou está submetido a uma bandeira.

 

A nacionalidade é um presente imediato de qualquer sociedade a uma criança. São as raízes brotando. É a faceta comunitária da necessidade humana fundamental de não estar só.

 

A criança inicia sua história dentro da história de sua família, de sua comunidade e de sua nação. Mais amplamente, ela participará de um período da história dos homens. Será marcada e afetada pelas diversas dimensões de seu tempo. Será aí também que dará sua contribuição enquanto ser e cidadão.

 

Hannah Arendt (1973) relaciona a ação ao nascimento. Segundo seu pensamento "agir é a resposta humana à condição da natalidade. Já que todos nós chegamos ao mundo em virtude do nascimento, estamos aptos, como recém-chegados e principiantes, a começar algo novo; sem o fator nascimento nem sequer saberíamos o que é a novidade", e qualquer "ação não passaria de comportamento ou preservação comum. Agir e começar não são a mesma coisa, mas estão intimamente ligados".

 

 

O vínculo e o crescimento

 

O ser humano não dispõe, ao nascer, de repertório suficiente para sobreviver sem a participação de um outro significativo, que supra sua inabilidade para subsistir, sua falta de autonomia. Os primeiros anos de vida são de grande imaturidade e vulnerabilidade (Rosseti-Ferreira, 1984). Segundo Bowlby (1951), o vínculo (ou apego) é compreendido enquanto "sistema comportamental destinado a garantir a sobrevivência. O sistema é complexo, dinâmico, avaliado constantemente e capacitado para corrigir qualquer tendência que ponha em risco a criança".

 

Em outras palavras, o vínculo ou o apego seriam um desses sistemas, "cujo alvo (set goal) é a manutenção da proximidade entre a mãe e a criança, de maneira a garantir a segurança desta última" (Bowlby, 1951 e Bischoff, 1975, apud Rosseti-Ferreira, 1984).

 

 

A dor do rompimento

 

O outro significativo pode não ser a mãe. No processo interativo tanto a criança quanto o adulto têm papel ativo na constituição da ligação afetiva. O vínculo pode ser com outras pessoas que se ocupam ou não das necessidades básicas da criança.

 

No entanto, separar ou perder pessoas queridas ou romper temporária ou definitivamente os vínculos produz sofrimento.

Vários estudos dedicaram-se a estudar os danos causados pelo afastamento da criança de pessoas queridas. Um dos aspectos observados diz respeito à hospitalização. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) enfatiza o direito da família de acompanhar a criança durante a internação hospitalar: "Os  estabelecimentos de atendimento à saúde deverão proporcionar condições para a permanência em tempo integral de um dos pais ou responsável, nos casos de internação de criança ou adolescente" (artigo 12).

 

 

A importância do filho para os pais e a família

 

Já foi referida a importância da família para a identidade do bebê. Não se pode deixar de refletir sobre a reciprocidade, isto é, a importância do bebê para o pai e a mãe.

 

Quando um bebê é concebido e aceito, a identidade dos genitores também é alterada. Isto é, o homem e a mulher envolvidos nascem na condição de pai e mãe. Isto não acontece apenas com o primeiro filho. Cada nova criança promove uma alteração na "gestalt" familiar.

 

Do ponto de vista dos adultos grávidos - pai e mãe - o vínculo com o novo ser é anterior ao nascimento e composto de um imaginário repleto de esperança. Só um estado de extrema miséria ou incerteza (presente, por exemplo, nas situações de guerra), pode retirar das pessoas o sonho de um futuro melhor para seus filhos.

 

Pode-se dizer que a transformação de sonho em pesadelo, envolvendo uma nova gestação, é um dos piores sintomas da pobreza. Significa a perda da crença no futuro e a instalação de uma vivência de impotência civil profunda.

 

A experiência de convívio entre irmãos pode ser igualmente rica e marcante para as crianças.

 

 

Importância do vínculo no direito à vida

 

O vínculo é um aspecto tão fundamental na condição humana, e particularmente essencial ao desenvolvimento, que os direitos da criança o levam em consideração na categoria convivência – viver junto. O que está em jogo não é uma questão moral, religiosa ou cultural, mas sim uma questão vital.

 

Na discussão das situações de risco para a criança a questão da mortalidade infantil ou da desnutrição é imediata. Sobreviver é condição básica, óbvia, para o direito à vida. Deve-se acrescentar a dimensão afetiva na defesa da vida.

 

Em outras palavras, sobreviver é pouco. A criança tem direito a viver, a desfrutar de uma rede afetiva, na qual possa crescer plenamente, brincar, contar com a paciência, a tolerância e a compreensão dos adultos sempre que estiver em dificuldade.

A criança tem direito a chorar. Nem sempre a criança tem condição de verbalizar seus sentimentos, suas angústias, seus medos. A criança pequena utiliza modos corporais de expressão, como o gritar, o debater-se, o emudecer etc.

 

Pais e adultos devem estar informados e preparados para respeitar o momento da criança, a etapa de desenvolvimento na qual esta se encontra. A capacidade dos mais velhos deve ser estimulada para escutar aquilo que a criança está "contando".

 

Se a criança encontra pais e adultos que a enxergam, escutam, acompanham com interesse e com expectativa positiva seus passos, tornar-se-á uma criança feliz e segura.

 

 

A dimensão política do vínculo

 

Quando a família (tenha ela a configuração que tiver) e a comunidade não dão conta de garantir a vida dentro dos limites da dignidade (aí incluído um mundo amistoso, acolhedor), cabe ao Estado assegurar aos cidadãos tais direitos para que a criança desfrute de bens que apenas a dimensão afetiva pode fornecer.

 

O vínculo tem, portanto, uma dimensão política quando, para sua manutenção e desenvolvimento, necessita de proteção do Estado.

 

Neste momento, o vínculo, por meio do direito à convivência, passa a fazer parte de um conjunto de pautas das políticas públicas.

 

A família, a comunidade e a sociedade civil devem participar amplamente da elaboração de alternativas, priorizando o apoio à família para que esta possa cumprir com suas funções.

 

A família natural ou substituta é sempre melhor do que qualquer instituição de internação. A institucionalização tem historicamente produzido crianças analfabetas e sem perspectivas de vida autônoma.

 

Primo Levi, pensador italiano que passou pela experiência de institucionalização, sintetizou o efeito destrutivo da internação através do conceito de homem vazio:

 

 

 “Imagine-se agora um homem ao qual, junto com as pessoas amadas, lhe são levados sua casa, seus hábitos, suas roupas, tudo enfim, literalmente tudo o que possui: será um homem vazio, condenado a sofrimento e necessidade, esquecido da dignidade e discernimento, já que acontece facilmente a quem perdeu tudo de perder-se a si mesmo.[3]

 

 

As representações sociais sobre as famílias pobres

 

A dimensão política é afetada pelo universo das representações sociais, isto é, símbolos, idéias e imagens compartilhadas pelo coletivo. Tais representações dos problemas relativos à pobreza acabam por determinar a aprovação ou desaprovação de ações e programas desenvolvidos pelo poder público.

 

De certo modo, tais idéias e o imaginário participam, consciente ou inconscientemente, desde a elaboração das respostas institucionais, seja por parte dos políticos seja por parte dos técnicos.

 

As crianças em situação de rua expressam o nível de miséria de suas famílias e de suas comunidades. No entanto, a representação construída tem sido a de que as crianças não têm família, são "da rua". Ou então, que foram "abandonadas" por pais desprovidos de afetividade.

 

Além de escapar da incômoda evidência de tanta miséria, preenche-se este vácuo por uma retórica na qual os pobres são desqualificados enquanto pais. Passam a ser vistos como pais que não amam, incapazes de estabelecer vínculos com suas crianças.

 

Quando uma mãe pobre, em pleno puerpério, entrega seu bebê para salvá-lo da fome, o discurso do senso comum diz que ela deu sua criança. Nunca se ouve dizer que ela perdeu o filho.

 

Entre duas famílias interessadas em adotar uma criança, costuma prevalecer a opinião de que a família rica está mais apta para desenvolver bem a paternidade.

 

Nos denominados "orfanatos", a maioria das crianças têm família. As instituições, entretanto, insistem em manter uma designação que não corresponde à realidade. Mas ao "orfanizar" a clientela, explicita-se uma mentalidade segundo a qual a família miserável é ignorada ou tratada como inexistente.

 

Para que uma criança perca toda sua família (incluindo avós e tios maternos e paternos), é necessário que uma grande tragédia tenha lhe sucedido. E isto é raríssimo.

 

 

Poder público, sociedade civil e comunidade: construindo uma rede de apoio às crianças, aos jovens e  suas famílias

 

As famílias diretamente afetadas pela rua são em número menor do que o de crianças vivendo nas ruas, já que, em geral, não é uma única criança que migra da miséria doméstica.

 

Assim, programas que desenvolvam projetos com as famílias podem atingir as crianças e resgatar uma qualidade de vínculo que lhes permita abandonar o êxodo circular urbano.

 

A criança pode ser inserida em "continentes" institucionais destinados à sua proteção e desenvolvimento. Mas continentes estes complementares ao continente familiar. A família não pode ser excluída porque constitui um espaço privilegiado de convivência, dado que nele a dimensão afetiva é inerente.

 

O principal continente complementar é a creche ou a escola.

 

A construção de serviços, programas e ações deve contar com a participação das famílias e da comunidade, tanto na discussão quanto na execução e gerenciamento das propostas.

 

As respostas variam de acordo com a realidade e as potencialidades de cada localidade. O que deve ser garantido é o direito de participação popular em fóruns de discussão e de eleição de legítimos representantes nos conselhos deliberativos de políticas públicas.

 

 

Conflito familiar

 

O fato de a família ser um espaço privilegiado de convivência, não significa que não haja conflitos nesta esfera. Segundo Salem (1980), "cada ciclo da vida familiar exige ajustamento por parte de ambas as gerações, envolvendo portanto, o grupo como um todo".

 

Além disso, existem "conflitos e tensões" no decorrer de toda a existência da família. Tais conflitos podem ser manifestos ou latentes. A forma de lidar com os conflitos pode variar de modelos autoritários e intolerantes, nos quais predomina um relacionamento adultocêntrico, de opressão e silenciamento dos mais fracos, em geral, as crianças. O modo de lidar com os problemas pode ser também democrático e de respeito pelas diferenças, e mesmo de valorização da crise, quando o modo preferencial de lidar com as dificuldades é pelo entendimento, pela linguagem, pela conversa.

 

O silêncio nem sempre é sinal de paz ou de liberdade. Quando a resolução de um conflito se dá pelo silenciamento do mais fraco remete os ressentimentos à esfera latente, carregada de energia pronta para emergir, muitas vezes utilizando-se de um modo de expressão que acentua a barreira para o diálogo.

 

Pode-se imaginar razões históricas, e elas certamente existem, para a freqüência de relacionamentos violentos nas interações dos adultos com as crianças na família, na escola etc.

 

A construção de uma sociedade democrática passa por uma transformação destas relações, por uma nova compreensão da vitalidade do conflito, pela produção de novas respostas, centradas no único método não-violento: o diálogo. Dialogar e aprender a conviver com as diferenças são instrumentos fundamentais para esta mudança no relacionamento do mundo adulto com o infanto-juvenil.

 

O ser humano é complexo e contraditório, ambivalente em seus sentimentos e condutas, capaz de construir e de destruir. Em condições sociais de escassez, de privação e de falta de perspectivas, as possibilidades de amar, de construir e de respeitar o outro ficam bastante ameaçadas. Na medida em que a vida a qual está submetido não o trata enquanto homem, suas respostas tendem à rudeza da sua mera defesa da sobrevivência.

 

As milhares de famílias sem-terra, sem casa, sem trabalho, sem alimento, enfrentam situações diárias que ameaçam não só seus corpos - território último do despossuído - mas, simultaneamente, seus vínculos e subjetividades.

 

Este estado de privação de direitos ameaça a todos, na medida em que produz desumanização generalizada.

 

Do ponto de vista daqueles que não são pessoalmente atingidos pela miséria, emerge um tipo peculiar de desumanização - a ausência de solidariedade e a dessensibilização para com os problemas sociais.

 

A solidariedade social é uma dimensão mais ampla da noção de vínculo. As famílias têm o direito de contar com esta forma de apoio.

 

 

Serviços e programas

 

As famílias e a sociedade têm, no mínimo, três grandes problemas a enfrentar: 1) a rua; 2) a institucionalização e 3) a violência.

 

A rua afasta crianças e jovens de suas famílias e comunidade, oferecendo de modo sistemático o ingresso ao crime e à droga. Estes caminhos levam à violência, à privação de liberdade e, muitas vezes, à morte.

 

A organização de programas e serviços destinados a atender e dar retaguarda às famílias durante todo o ciclo de vida - desde a concepção até a velhice - pode evitar os três problemas citados.

 

Compreender a família enquanto um sistema dinâmico exige alteração na maioria dos programas existentes, que costumam refletir o processo de especialização ocorrido no conhecimento científico.

 

Planejamento familiar, acesso a métodos de pré-concepção, informações sobre os principais cuidados com a maternidade e a importância do papel do pai precisam ser amplamente discutidos. O conhecimento e o acesso a bens e serviços facilitam a vida da família e o bem-estar de seus membros.

 

O trabalho técnico ou comunitário consiste, freqüentemente, da defesa dos direitos, de conhecimento dos recursos existentes e de retaguarda. Esta retaguarda deve ser transitória, centrada na promoção da família.

 

É importante que todos saibam que a pobreza não pode acarretar a perda dos filhos. Assim, a cada criança com problemas corresponde uma família em dificuldades. Ninguém tem o direito de orfanizar a criança pobre.

 

As crianças de zero a seis anos têm direito à creche. Os municípios devem executar 25% dos seus orçamentos para atender à área de educação e a sua principal responsabilidade é com as crianças, do berçário à pré-escola e com a educação básica.

 

O Conselho de Direitos do Município deve acompanhar atentamente a execução orçamentária. O Conselho Tutelar deve ser acionado sempre que alguma criança não seja atendida ou esteja sendo ameaçada.

 

Na idade escolar a participação dos pais na escola e no processo de aprendizagem da criança são importantes para evitar a evasão. O estímulo, a expectativa positiva e o interesse pelo que a criança realiza têm um papel muito significativo.

 

O olhar da família no acompanhamento da criança deve ser estimulado e valorizado. A família é um observador especial  pela proximidade e afeto pela criança. É necessário que a sociedade entenda que a família, ao cuidar das crianças, trabalha pela reprodução social.

 

A luta das famílias e das comunidades contra a evasão escolar passa pela análise dos fatores que excluem a criança da escola e/ou a atraem à rua. Analisar sem culpabilizar nem a criança, nem a escola, nem a família, mas voltados à descoberta de alternativas realizáveis que reintegrem a criança à escola. Pais, escolas, comunidades e jovens devem participar deste processo.

 

O menino ou menina que freqüenta ou vive na rua exige projetos pedagógicos destinados a reaproximá-los de sua família e comunidade. O retorno à escola da comunidade com seus pares deve ser a meta. Preparar a escola para acolher esta criança e jovem que regressa é igualmente importante. Quando uma criança fracassa, toda a sociedade está fracassando. Quando uma jovem não pode deixar a prostituição, por pobreza ou preconceito, todos estamos perdidos.

 

A discussão da renda e do trabalho precoce é inadiável. O processo de profissionalização não pode impedir o jovem de estudar e, principalmente, não pode impedi-lo de construir um projeto de vida.

 

As cidades devem ter projetos para todos os jovens, criar oportunidades efetivas de aprendizagem, profissionalização e remuneração para seus adolescentes. Esporte, lazer e cultura são tão importantes para a formação quanto o trabalho.

 

A discussão sobre a sexualidade que enfrente a questão da gravidez precoce e indesejada, a questão da AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis, a prevenção de drogas, enfim, toda uma série de tópicos cujo desconhecimento só aumenta a tragédia individual e familiar.

 

A luta cotidiana pela sobrevivência retira dos jovens a perspectiva do futuro. Precisam ser instituídas medidas que apóiem as famílias em suas lutas para vencer o limiar de pobreza que ameaça o vínculo. Tais medidas devem ser transitórias e promover, a curto prazo, sua autonomia.

 

A importância da comunidade em apoiar as famílias em momentos críticos, como os de nascimentos, doenças, ou mesmo aqueles que as impeçam de assistir totalmente suas crianças, deve ser enfatizada.

 

O papel da comunidade na luta por equipamentos de Educação, Saúde, Cultura e Lazer e no gerenciamento democrático-participativo destes, quando já existem, deve ser estimulado.

 

 

 

 

Violência doméstica

 

A violência doméstica está presente em todas as classes sociais. Resulta de um conflito de gênero ou de gerações. Decorre de uma forma de lidar com as desigualdades na qual as diferenças são transformadas ou em relação entre superiores e inferiores e/ou onde o mais fraco é tratado enquanto "coisa" (Azevedo & Guerra, 1989 e 1990).

 

Existe a tradição de ensinar através do castigo, da punição e ela conta com diversos provérbios populares que defendem uma interação violenta, legitimada pela "obrigação" da família em corrigir a criança.

 

Em muitos casos, a família não dispõe de um repertório democrático para resolver as situações conflitivas e recorre, portanto, a seu acervo pessoal (memória) de procedimentos adquiridos no próprio processo de aprendizagem.

 

Soma-se, às vezes, a esta memória individual e coletiva (presente na história de vida do pai ou mãe violentos e nos costumes), uma intensificação da conduta destrutiva, quando predomina o ódio, o ressentimento, o abuso e a transgressão. É o mundo da tragédia relacional.

 

Existem, no mínimo, dois grandes campos de atuação nesta área. Um diz respeito ao trabalho no interior da família, para impedir a crueldade, a tortura e o estupro ou abuso, ou, em alguns casos mesmo, retirar o agressor do convívio com a criança. Outro campo refere-se à necessidade de romper com o "pacto de silêncio" que cerca este tema (Azevedo & Guerra, 1989 e 1990).

 

A denúncia tem um papel importante na conscientização sobre os direitos da criança. Para além da constatação do fenômeno, são necessários serviços de notificação, acompanhamento de famílias maltratantes, programas preventivos e de intervenção, atendimento especializado de atenção e de retaguarda às vítimas e agressores.

 

Os abrigos podem ter uma função importante durante o estudo do caso, enquanto a justiça não define se a família perde o pátrio poder.

 

A vida da criança não pode ser danificada ou destruída de modo irreparável. Evitar este risco pode levar o juiz a optar pela busca de uma família substituta. Esta nova família pode precisar de apoio técnico para lidar com a criança ou jovem que vem marcado por tais vivências. Elaborar o passado é uma das maneiras de livrar-se da mera repetição.

 

 

NOTAS:

           

[1] Professora do Departamento de Psicologia e Educação da Universidade de São Paulo, Campus Ribeirão Preto - SP. Ex-Conselheira do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Campinas - SP.

 

[2] As sociedades humana variam n» forma de parentesco, casamento, residência, vida doméstica (Durham, 1983 ). Não se pretende aqui naturalizar o processo, mas assinalar possíveis aspectos psicológicos existentes nas famílias brasileira; mesmo considerando inúmeras possibilidades de arranjos. A definição de parentesco defendida pela Antropologia, segundo Durharn (p. 22), é a seguinte: "estrutura; formais que consistem em arranjos e combinações de três relações básicas as de descendência (entre pai -filhos e/ou mãe -filhos), de consangüinidade (entre irmãos ) e de afinidades (criadas pelo casamento)".

 

[3] Si imagini ora un noma a cui, insieme con le persone Jmate vengono iolli la sua casa, le sul abituúini, 1 suor abiti furto infine, letteralmente tullo quanto possiede: sara un uomo vuoto, ridotto a soffercnza e bisogno, dimentico di dignità e discernimento, poiché accade facilmente a chi há persa furto di perdere se stesso", ln "Se Questo è um Uomo  (apud  Basagli

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

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BASAGLIA, F. Scritti / - J953-J968. Torino, Einaudi, 1981.

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