DINÂMICA DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO BRASILEIRO AFRODESCENDENTE[1]

 

 

Ricardo Franklin Ferreira

Doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP.

 

 

Resumo: O Brasil é um país onde os valores ancestrais africanos estão presentes e atuantes no processo de desenvolvimento da cidadania. Há, porém, a negação da importância desses valores. O ideal branco de ego determina, aos afrodescendentes, o desenvolvimento de auto-imagem negativa, acompanhada de auto-estima rebaixada, muito contribuindo para gerar condições precárias de existência, mantidas por complexo mecanismo social. A quase ausência de estudos na psicologia brasileira voltados a tais questões, torna premente a realização de trabalhos voltados a essa população. Em função disso, este trabalho buscou uma compreensão do processo de desenvolvimento da identidade do afrodescente e das formas de organização de sua experiência pessoal. É discutido um modelo de quatro estágios de desenvolvimento da identidade, desde uma subjetividade submetida a valores pessoais vistos como negativos, até à construção de uma identidade afrocentrada.

 

Palavras-chave: Afrodescendente; Preconceito; Identidade; Desenvolvimento.

 

 

A cultura negra nas Américas foi determinante na cosmovisão desenvolvida naqueles países em que ocorreram três grandes fenômenos : a vinda dos europeus, o genocídio das populações indo-americanas e a escravização de populações africanas. O imaginário coletivo desenvolvido em países formados por uma pluralidade de grupos étnicos, como é o caso do Brasil, é compartilhado, evidentemente, por todos os integrantes da sociedade. Assim, o desenvolvimento da identidade do brasileiro está absolutamente condicionado à participação dos africanos e à sua sabedoria, presentes nas manifestações culturais, nos gestos e nas relações. Os valores africanos, preservados ao longo da sucessão de gerações, mostram-se tacitamente ativos e constituintes do processo de formação da cidadania (RIBEIRO, 1996).

 

Somos todos morenos: um eufemismo brasileiro

 

O homem de origem africana e seus valores, entretanto, foram sistematicamente associados a qualidades negativas pelo europeu, já antes mesmo do 'descobrimento' do Brasil e do processo de colonização. O sistemático processo de negação da importância dos elementos da cosmovisão africana tem determinado aos afrodescendentes uma desvalorização pessoal, desenvolvido uma perspectiva de legitimidade do direito de dominação para os grupos humanos que se consideram mais adiantados que outros (D'ADESKY, 1996, p.91) e, em decorrência, mecanismos de exclusão da população afrodescendente por parte do grupo considerado hegemônico, constituindo-se em condições fundamentais para a manutenção de condições precárias de existência. A pessoa negra traz do passado a negação da tradição africana, a condição de escravo, o estigma de ser um objeto de uso como instrumento de trabalho e enfrentar no presente, a constante discriminação racial e, mesmo sob tais circunstâncias, tem a tarefa de construir um futuro promissor.

 

O Brasil, em relação às outras nações americanas, foi o país a escravizar o maior número de africanos e foi o último do mundo cristão a abolir a escravidão. Apesar destes dados, entre 1900 e 1950, o Brasil cultivou, com sucesso, a imagem de ser a primeira "democracia racial'' do mundo, onde a convivência entre brancos e negros era descrita como harmoniosa e igualitária.

 

Tal concepção, tornada discurso oficial, é na verdade um mito, hoje questionado, mas que ainda encobre, de maneira perversa, a discriminação negativa e o preconceito contra essa população, tornando muito difícil o combate efetivo da injustiça para com indivíduos e grupos etnoraciais diversos do branco-europeu.

 

A cor e as características fenotípicas acabam operando como referências que contêm duas faces, associadas de forma inseparável - raça e condição social, o que leva o afrodescendente a julgar-se inferior, não somente quanto ao aspecto racial, mas também em relação às condições sócio-econômica, o que cria condições para uma concentração racial de renda, de prestígio social e de poder por parte do grupo dominante (souZA, 1991). Entretanto, há a negação do preconceito racial por parte deste mesmo grupo, atitude que tende a manter o conceito de serem as misérias inerentes ao destino humano do negro. Dois mecanismos decorrentes dessa negação podem ser historicamente observados - desde o extermínio dos afrodescendentes, como na época do Brasil Colônia, até um mecanismo de ‘branqueamento’. A elite brasileira auto-identifica-se como branca. Assume as características do branco-europeu como representativas de sua superioridade étnica. Em contrapartida, o negro é visto como o tipo étnica e culturalmente negativo. Entre essa dicotomia, estabeleceu-se uma escala de valores, aqui chamada de 'gradiente étnico', de tal maneira que a pessoa com características mais próximas do tipo branco tende a ser mais valorizada e aquela, cujas características a aproxima do tipo negro, tende a ser desvalorizada e socialmente repelida. Assim, no Brasil, criou-se historicamente a crença de ser a miscigenação um processo pelo qual o afrodescendente tornar-se-ia mais respeitado e teria mais possibilidades de ascender na escala social. A "ideologia do branqueamento” reflete-se, dentre outros exemplos nas narrativas populares que incluem referências à necessidade de "limpar o sangue", através de sucessivos casamentos entre negros e brancos. A miscigenação tem servido de argumento para afirmar o quanto o brasileiro 'aceita' a convivência de raças, isto é, o quanto 'não há preconceito no Brasil'. Como conclui Souza:

 

A questão racial está, portanto, manipulada de forma a conservar os segmentos e grupos dominados dentro de uma estrutura já estabelecida e assim se confunde o plano miscigenatório, biológico, com o social e econômico. As oportunidades de trabalho e ascensão social não são idênticas para negros e brancos, mas joga-se sobre o negro a culpa de sua inferioridade social, econômica e cultural. (p.38)

 

No caso do brasileiro, este processo torna-se dramático, pois o preconceito veiculado é muitas vezes encoberto por 'frases educadas'. Este processo efetivamente alimenta o mito brasileiro de estarmos vivendo num paraíso de coexistência e de aceitação das singularidades, visão que conserva o problema, pois deixa de ser enfrentado de frente em função da idéia dele não existir.

 

Parece ser 'politicamente correto' tratar o afrodescendente como 'moreno', eufemismo fortemente enraizado na cultura brasileira. É um recurso simbólico de fuga de uma realidade em que a discriminação impera. Assim, os aspectos etno-raciais são escamoteados pela maioria das pessoas que procuram elementos de identificação em símbolos do grupo social e economicamente dominante.

 

Esse processo está submetido a constante mecanismo de retroalimentação, denominado por HÉLlO SANTOS (1994) de trilha do círculo vicioso, por grande parte de agências de muita importância no processo de socialização e formação de cidadania, como o ensino e a mídia, que alimentam o preconceito de cor e diminuem, ou mesmo negam, a importância da presença da cultura africana em nosso país (RIBEIRO, 1996; GUSMÃO, 1990; H. SANTOS, 1996). Na mídia, o segmento negro tem sido representado através de imagens estereotipadas, sendo os afrodescendentes freqüentemente expostos numa posição subalterna em relação ao branco, como uma  minoria desprezada e sem qualidades estéticas (LIMA, 1996). A escola constituiu-se num espaço onde estas concepções se perpetuam graças a distorções da realidade histórica, omissão de fatos, reprodução de inverdades; sempre no sentido de mostrar os povos africanos como 'tribos' estáticas no tempo, alheias ao conhecimento científico e ao progresso humano (NASCIMENTO, 1991). É esclarecedor, neste sentido, o trabalho de GUSMÃO (1990), ao mostrar como a escola propaga aspectos legitimadores da dominação branca e de destruição de uma consciência negra, negando o direito à diferença e, o que é mais grave, de como as crianças, tanto brancas quanto negras, já têm estes aspectos internalizados, estando o preconceito já presente nas interações do dia a dia escolar.

 

As relações pessoais, tacitamente, são construídas em torno de fatores que tornam muito complexo o processo de identidade do brasileiro afrodescendente. É comum a auto-percepção diferir da percepção do outro no que se refere às características etnoraciais. Freqüentemente indivíduos que se consideram brancos são vistos como negros por outros. D' ADESKY (1996) aponta como o modo de vida e o status, acabam sendo também, fatores determinantes na classificação da cor em relação ao afrodescendente. É muito comum a pessoa, principalmente no caso do mestiço, com características negróides leves e com posição social elevada ser considerado branco. Em função de especificidades sócio-econômico adversas, a pessoa, com características físicas semelhantes, pode ser considerada negra. Fatores ideológicos, como a busca de afirmação da negritude, vista como modo de afirmação e legitimação de uma determinada especificidade cultural, do mesmo modo, interferem na definição das características raciais. Por exemplo, pessoas com características fenotípicas brancas, em função de seu envolvimento com a cultura negra, podem considerar-se negras. Como pode-se perceber, a ausência de unanimidade cria dificuldades adicionais para a construção da identidade do afrodescendente. Esse processo torna-se mais dramático no caso do mestiço, pois, como nos aponta REIS (1997), ele está submetido a uma ambigüidade de ser um e outro, um branco-não-branco e um negro-não-negro.

 

 

Preconceito etnoracial: uma construção branca

 

É importante entendermos o processo de construção do preconceito etnoracial. O preconceito é um julgamento de valor, não espontâneo nem hereditário, construído culturalmente e destituído de base objetiva, pertencendo à classe de mitos desenvolvidos através da socialização sendo a discriminação sua expressão comportamental.

 

No Brasil, o preconceito foi construído a partir da interação entre dois grupos - uma classe política e economicamente dominante, com uma concepção de mundo considerada superior, e com a finalidade de dominar um outro grupo - neste caso, o dos não brancos, caracterizando-o como de qualidade inferior, crença que passa a ter a função de justificar a dominação sobre ele. Concomitantemente, à medida em que o grupo dominado passa a compartilhar das crenças sobre si mesmo e se submete ao controle imposto, o processo passa a ser legitimado. Para FLORESTAN FERNANDES (1978), o preconceito de cor é uma categoria histórico-sociológico construída pelos 'brancos', em larga medida compartilhada pelos próprios 'não-brancos', e que comporta questões ideológicas de padrões ideais de civilização, como o eurocentrismo segundo e qual a Europa é considerada o berço da civilização e da cultura 'universais', concepção de tremenda imprecisão histórica que supõe ser o europeu um homem 'superior' aos asiáticos, africanos e americanos.

 

Para superar a visão simplista de serem os problemas relativos às pessoas afrodescendentes restritos à questão da cor da pele e características físicas, referências comumente associadas ao preconceito e à discriminação, e para podermos compreender melhor como estes processos são desenvolvidos e alimentados, considero importante aprofundar o debate a respeito de como essas pessoas desenvolvem e lidam com as características raciais e étnicas de sua identidade.

 

Os aspectos étnicos de matrizes africanas, extremamente mais complexos e mais ricos do que os aspectos biológicos, relativos à raça, influenciaram várias expressões culturais e religiosas brasileiras. Têm simultaneamente, servido também de referência para a avaliação negativa de pessoas. O processo de construção e manutenção do racismo, considerado aqui como a prática discriminatória institucionalizada (PEREIRA, 1996), apresenta as culturas africanas como folclóricas, primitivas e inferiores, se comparadas com a branco-européia. Assim, alguns de seus elementos são simplesmente omitidos nos estudos da formação do brasileiro, com exceção dos aspectos da escravidão à qual o africano foi submetido. Este tem sido considerado até como construtor de cultura, mesmo vista como folclórica, porém dificilmente como construtor de civilização. Assim, o preconceito contra a população afrodescendente tanto se dá em relação a variáveis raciais, visíveis através da constituição fenotípica, quanto em relação às variáveis étnicas, entendidas como aspectos culturais também de menor valia.

 

A sociedade brasileira, portanto, cria mecanismos desfavoráveis ao desenvolvimento de uma identidade articulada em torno de valores positivamente afirmados, o que evidentemente determina dificuldades aos afrodescendentes no seu exercício de cidadania. Entretanto, este não é  somente um problema dos afrodescendentes, mas para todo e qualquer cidadão, aí incluindo os brancos pois, na verdade, trata-se de um problema de constituição da identidade do brasileiro que, independente de suas características físicas, desenvolveu-se enquanto pessoa também em torno de qualidades culturais africanas.

 

 

A identidade do afrodescendente: um processo em construção

 

Estudos voltados para uma maior compreensão da dinâmica de desenvolvimento da identidade do afrodescendente são importantes para, além de compreender-se a formação da identidade do brasileiro, desenvolvermos estratégias favorecedoras para a construção de identidades positivamente afirmadas, para o desenvolvimento de uma vida mais saudável e efetivo exercício de cidadania.

 

 Vários trabalhos voltados para a identidade do afrodescendente, na psicologia, foram desenvolvidos a partir dos anos 70. CROSS (1991) fez um levantamento de estudos nesta área. São pesquisas correlacionais que avaliam a relação entre auto-conceito, auto-estima e as variáveis etnoraciais ligadas à identidade. A principal preocupação desses trabalhos é de identificar como as variáveis etnoraciais estão relacionadas com o ajustamento pessoal. Porém, em sua maioria absoluta, são pouco conclusivos, apesar de sua qualidade teórica e metodológica.

 

Na mesma época, outros estudos teóricos e pesquisas, relacionados à questão do afrodescendente, começaram a aparecer na literatura psicológica, voltados principalmente ao aconselhamento e à psicoterapia. Visavam, basicamente, servir de auxílio aos profissionais presumidamente brancos, tomando-os mais sensíveis às variáveis étnicas e raciais supostamente passíveis de influenciar o processo terapêutico e a favorecer a compreensão da dinâmica particular, intra e interpessoal, vista como única para todos os afrodescendentes (por exemplo, o estudo de JONES & SEAGULL, 1977). O principal objetivo de trabalhos desse tipo é o de ajudar o terapeuta a identificar e prever possíveis reações de hostilidade em situações de aconselhamento. Podem ter sua utilidade. Porém, partem da perspectiva apriorística de ser o 'cliente negro um problema', voltam-se para suas deficiências pessoais, sem a preocupação de pontuar qualidades da 'personalidade negra' ou voltar-se para o desenvolvimento de pessoas com competência para responder a situações de discriminação racial.

 

Um caminho, a meu ver mais fértil, seria o desenvolvimento de estudos preocupados em propor modelos sobre como a identidade do afrodescendente se constrói, visando ações concretas favorecedoras do desenvolvimento de identidades positivamente afirmadas.

 

Todo trabalho no campo das ciências humanas, além de um precioso exercício metodológico e instrumento de novas informações sobre um campo ainda pouco explorado, deve voltar-se para a compreensão das problemáticas existenciais concretas das pessoas, sugerir carinhos favorecedores de uma existência mais digna e propiciar o exercício pleno da cidadania. Assim, tornam-se importantes os estudos voltados ao ajustamento psicossocial com qualidade.

 

Tomando por base tais questões, parti de um outro grande grupo de estudos, CROSS (1971, 1978, 1991) e HELMS (1993), encontrados na literatura psicológica e propus em outro trabalho, FERREIRA (1999), um modelo cuja perspectiva volta-se para o processo de desenvolvimento da identidade do afrodescendente e para as condições, principalmente aquelas relacionadas aos vínculos pessoais, favoráveis ou não ao estabelecimento de uma identidade positivamente afirmada. É um modelo que descreve o desenvolvimento de um processo de deslocamento de um racismo internalizado para um senso mais afirmativo de identidade e pontua como este movimento se dá numa estreita conexão emocional com outras pessoas, sendo considerada uma condição importante para a saúde psicológica ter-se um senso positivo de si mesmo como membro de um grupo do qual se é participante, sem nenhuma idéia de superioridade ou inferioridade.

 

Descrevo o desenvolvimento da identidade em quatro estágios, fundamentais para o processo de constituição da identidade dos afrodescendentes. Denominei-os de Estágio de Submissão; Estágio de Impacto; Estágio de Militância e Estágio de Articulação. Utilizei, na nomeação dos estágios, palavras que refletissem processos psicológicos que se destacam em momentos de vida de uma pessoa.

 

Faço aqui um alerta. É importante entender-se que as características de uma pessoa em qualquer desses estágios não se referem a traços de personalidade e nem a algum tipo de patologia psicológica. Além disso, não quero sugerir com o termo 'estágio' a idéia de padrões fixos que se sucedem numa seqüência linear, mas sim, momentos em que o indivíduo expressa atitudes e concepções particulares desenvolvidas sobre si mesmo, sobre os outros e sobre seu mundo, dentro de um continuum de desenvolvimento da identidade. Quando me refiro a um indivíduo encontrando-se em determinado estágio, quero sugerir um momento de vida em que há a preponderância de certos dinamismos pessoais em relação a outros, não implicando na ausência de particularidades dos processos descritos nos outros estágios. Não se trata de uma 'camisa de força' conceitual mas um delineamento teórico que sugere a ocorrência de processos transitórios na construção da subjetividade e ligados a circunstâncias específicas, construído como artifício didático para ajudar a compreensão.

 

 

A Figura 1 pode esclarecer o modo como entendo a seqüência de estágios e os dinamismos pessoais a eles associados.

 

Figura 1 - Seqüência de estágios no processo de construção da identidade, pontuando dinamismos pessoais que se destacaram no processo.

 

 

 

 

Estágio de submissão: idealização do mundo branco como escudo

 

Há uma fase na vida das pessoas afrodescendentes onde é muito comum absorverem e se submeterem às crenças e valores da cultura branca dominante, inclusive a noção sintetizada nas idéias do 'branco ser certo' e o 'negro ser errado'.

 

O tema geral, em tomo do qual as pessoas neste estágio se articulam, corresponde a uma idealização da visão dominante de mundo branco, visto como superior. Em decorrência há uma desvalorização do mundo negro ou uma tendência dos indivíduos em assumirem como insignificante para suas vidas o fato de serem afrodescendentes. Para a manutenção desta concepção, o afrodescendente geralmente utiliza-se de algum mecanismo de dissociação. Mantém-se afastado do grupo de referências negras ao qual pertence e, simultaneamente, referencia-se em valores brancos, diminuindo, assim, o desconforto causado pela tensão desenvolvida nesse processo em que passam a coexistir qualidades consideradas como antagônicas – os valores de matrizes européias e os valores relacionados a matrizes africanas.

 

É comum os indivíduos, neste estágio, encararem as categorias 'raça' e 'etnia' basicamente como um problema de estigma desenvolvido pela discriminação social. Na visão de HELMS (1993), para a pessoa deste estágio permanecer com um baixo grau de angústia precisa manter a ficção de não terem as questões etnoraciais nenhuma relação com sua maneira de viver, mas de ser a mobilidade social determinada, fundamentalmente, pelo esforço e habilidade pessoal.

 

Há uma série de situações favoráveis à fixação das pessoas neste estágio, isto é, de sustentação das distorções a respeito de suas matrizes negras, dentre elas, a educação formal. Para PEREIRA (1987), a escola é fundamental na construção da identidade da criança afrodescendente, alimentando subliminarmente a figura do “negro caricatural". No plano do relacionamento, tanto entre os alunos como entre professores e alunos, a instituição escolar reproduz naquele microcosmo a mesma estrutura de relação que se dá na sociedade brasileira como um todo, isto é, uma relação assimétrica de dominação/subordinação. Assim, em vez de ser um lugar de reversão do problema, a escola estimula os estereótipos sociais relativos a essa população e a submissão do afrodescendente aos valores brancos. Apoiando-se numa visão de mundo histórico-cultural eurocêntrica, cria um processo pedagógico tal que leva o afrodescendente a inibir sua capacidade de advogar seus interesses culturais, políticos e econômicos aos quais tem direito como cidadão. Sua história, interpretada de maneira distorcida, encara, por exemplo, a escravidão como uma simples experiência civilizatória. Os problemas etnoraciais comuns neste estágio são explicados sob o prisma da "culpabilidade da vítima", onde as condições sociais e econômicas precárias são encaradas como fruto da inépcia e falta de capacidade pessoal dos indivíduos afrodescendentes. As noções de beleza são derivadas de uma estética ‘branca', usada como a 'referência correta' positiva, racional e bem desenvolvida, levando, em decorrência, a uma desvalorização da estética negra, encarada como exótica, emocional e primitiva, qualidades consideradas 'menores'.

 

Encontramos algumas tentativas de explicação do porquê as pessoas pertencentes a determinado grupo etnoracial toleram o status desvantajoso que sua pertença lhes confere. Taylor & MCKIRNAN (1984) utilizaram-se de referência da teoria da atribuição[2] para sugerir algumas respostas nesse sentido. Elaboraram um modelo geral para descrever as relações intergrupais, onde são identificadas as atribuições causais como um dos elementos-chave na determinação da maneira pela qual os grupos em situação de inferioridade reagem às desigualdades sociais. Para os autores, as pessoas pertencentes a um grupo etnoracial inferiorizado por outro grupo são induzidas a atribuir sua situação social desfavorável a características pessoais negativas circunscritas a elas (como a incapacidade e a falta de esforço pessoal) e não a fatores provocados por uma sociedade racista, isto é, assumem como devida a elas mesmas a discriminação exercida pelo grupo dominante.

 

O termo indução me parece forte, porém, ressalta o fato de a concepção negativa do afrodescendente sobre si mesmo ser alimentada pelas pessoas do grupo hegemônico ao atribuírem a discriminação a vários fatores sociais e pessoais ligados ao afrodescendentes, abstraindo a raça e a etnia como variáveis relevantes, procurando manter uma atitude condizente com aspectos considerados de 'bom tom' numa sociedade onde os discursos oficiais propagam a convivência harmoniosa de pessoas de todas as raças, como acontece na sociedade brasileira. Além disso, esta atitude passa a ser legitimada pelo grupo dos afrodescendentes, principalmente através das pessoas deste estágio, pois, enquanto se utilizam de referências brancas para articularem a realidade, acabam assumindo a responsabilidade por suas mazelas sociais, colaborando, assim, para manter o processo de retroalimentação da discriminação. Em síntese, as pessoas brancas acreditam ser seu status vantajoso devido à qualidade de seu esforço pessoal e as pessoas afrodescendentes, deste estágio, encaram suas dificuldades justificadas pelo fato de não realizarem o esforço equivalente ao esperado delas. Dessa forma, estas pessoas deixam de incluir, na construção de sua identidade, matrizes culturais africanas que, historicamente, são referências participantes da cultura de todo brasileiro.

 

Neste estágio, as pessoas evitam arriscar-se a questionar os estereótipos aos quais são submetidos por medo de perderem a aceitação, criativa ou desejada, das pessoas brancas e pelas desvantagens imaginadas passíveis de ocorrer se perderem tal status. É como se a idealização do mundo branco servisse de escudo para se protegerem. Em conseqüência, adotam uma crença inflexível na causação interna e individual das situações adversas sofridas, mesmo aquelas devido às suas características etnoraciais, alimentando a convicção de ser a aceitação determinada fundamentalmente pelo esforço pessoal. A esse respeito, observa-se uma situação irônica e muito comum no Brasil. O destaque social de alguns afrodescendentes, uma possível variável favorecedora da valorização de suas  qualidades etnoraciais, termina alimentando ainda mais a discriminação negativa, pois estas pessoas, avaliadas segundo os parâmetros de sucesso dos valores brancos, têm seu êxito visto como indício  do quanto ela é 'diferente' dos indivíduos de características etnoraciais semelhantes às suas.

 

É importante avaliar-se os efeitos psicológicos incidentes sobre as pessoas deste estágio. Evidências empíricas, como as de PARHAM & HELMS (1985), sugerem que as pessoas deste estágio tendem a apresentar auto-conceito pobre, baixa auto-estima, auto-realização pobre, alta ansiedade e depressão. O indivíduo, tem a sensação de não se 'encaixar' realmente em nenhum grupo. Entretanto, se ele gradualmente toma consciência da desvalorização à qual está submetido, pode iniciar um movimento na direção de uma transformação, vindo a encontrar-se no estágio seguinte do desenvolvimento de sua identidade - o Estágio de impacto.

 

 

Estágio de impacto: descoberta do grupo etnoracial de referência

 

No estágio de submissão, o afrodescendente tende a desenvolver uma identidade referenciada nos valores brancos, associando os valores negros a qualidades negativas. Este processo vai se modelando e sedimentando a partir das relações pessoais que se dão com o indivíduo no seu dia a dia, envolvendo suas primeiras experiências com a família de origem, com as pessoas agrupadas ao núcleo familiar, com os vizinhos na comunidade e na escola, cobrindo toda fase da infância, adolescência e início da fase adulta. A identidade assim constituída tem como uma de suas funções filtrar as experiências, de tal forma que as informações assimiladas são aquelas que se 'encaixam,' na estrutura pessoal presente, permitindo à pessoa sentir-se centrada, articulada nas situações de vida e ter um bom grau de controle e previsibilidade sobre elas. Há, entanto, dois processos antagônicos ocorrendo ao mesmo tempo - uma tendência a manter a identidade e o mundo simbólico, ao longo da vida - o que traz segurança e, através das experiências desconfirmatórias, gradualmente ser-se impelido a transformar a identidade, processo necessariamente conflitivo. Para CIAMPA (1987), este movimento se dá, na verdade, de uma maneira ininterrupta durante toda a vida de uma pessoa - um infindável processo de morte-e-vida. Assim, uma pessoa no estágio de submissão tende a manter-se nesse estágio até a ocorrência de algumas experiências cruciais que a desorganizem e questionem sua maneira de ser e de ver o mundo. É o momento no qual torna-se impossível negar a rejeição por parte do 'mundo branco'. São experiências com um efeito de choque, que lhe fogem das mãos. Experiências que destróem a funcionalidade da identidade e visão de mundo presentes e, ao mesmo tempo, sugerem nova direção no sentido de uma transformação ou ressocialização. São circunstâncias que levam a pessoa a experimentar uma sensação de falência e suas referências não mais lhe permitem articular-se com segurança nas situações de vida. É um momento de espanto e vertigem.

 

Numa sociedade onde há discriminação, como no caso brasileiro, é claro ter a pessoa afrodescendente já se deparado, por diversas vezes, com situações de afronta e indignidade em função de suas características etnoraciais, sob a forma de agressões físicas ou verbais abertas, através de formas mais sutis, como recusas com relação a empregos sob diferentes justificativas, encobrindo o motivo real, do fato de o indivíduo ser afrodescendente.

 

Entretanto, o estágio do impacto passa a desenvolver-se a partir do momento da tomada de consciência da discriminação sofrida ao longo da vida, exercida pelo grupo de hegemonia branca. Algumas vezes, o impacto dá-se a partir de uma situação dramática singular. Nos anos 60, nos E.U.A., milhares de pessoas passaram a voltar-se para uma compreensão mais profunda do movimento negro após a norte de Martin Luther King (CROSS, 1991). Outras situações servem de estopim para o desenvolvimento deste estágio - ser pessoalmente agredido na escola ou na situação de trabalho, ser rejeitado para uma festa, ser testemunha da agressão sofrida por um amigo, situações de violência praticadas pela polícia, incidentes raciais mostrados num jornal da TV, o encontro com amigos envolvidos de maneira mais profunda com movimentos de valorização das raízes negras, dentre outras. Entretanto, não há um conjunto de experiências comuns, determinantes do momento de mudança. São situações absolutamente idiossincráticas, sendo comum a sensação de despedaçamento da identidade. Na maioria das vezes, a situação de impacto não é determinada por um único fato, mas sim, através do efeito cumulativo de uma sucessão de pequenos episódios vividos pela pessoa, levando-a cada vez mais a tomar ciência de ser rejeitada, a partir do que conclui não estar sendo vista como igual. Deparando-se com a realidade de não poder ser verdadeiramente branco, o indivíduo é forçado a focalizar-se em aspectos de sua identidade que o inclui no grupo discriminado, o dos afrodescendentes.

 

Tomemos como exemplo uma situação comum do nosso dia a dia. Imaginemos duas pessoas afrodescendentes, funcionárias de determinada empresa, submetidas a situações de discriminação etnoracial. Uma delas pode,  frente a tal fato, assumir a atitude de que ‘deve aprender a lidar com as pancadas da vida’; a outra pode descrever o efeito da situação como 'aquele que ensinou a ver, ser a discriminação, à qual está constantemente submetida, um verdadeiro obstáculo para a sua vida'. No primeiro caso, a pessoa abstrai a variável etnoracial de sua interpretação, tendendo a manter sua estrutura psicológica. No segundo caso, a situação sugere uma tomada de consciência da discriminação que a pessoa sistematicamente tem sofrido. A situação provocante deve conter, para o indivíduo, força significativa para ocasionar uma mudança de atitude frente às situações de discriminação, favorecendo a alteração de seu sistema pessoal. Não basta simplesmente a experiência da situação, mas é necessário um segundo momento, o de personalização dessa experiência. Uma mudança que pode ocorrer a partir da exposição a eventos, envolvendo informações relevantes, poderosas e favoráveis acerca de aspectos culturais e históricos da experiência negra e das raízes africanas, anteriormente desconhecidos pelo indivíduo no estágio de submissão. À medida que assimila novas informações e passa a usá-las como referências pessoais, ele é desafiado a repensar de maneira radical suas concepções sobre as questões negras. Entretanto, o momento de impacto contém uma faceta dolorosa, pois é inevitável ao indivíduo sofrer uma desarticulação de seu mundo simbólico, sempre acompanhado de angústia.

 

As situações de impacto, inicialmente, provocam reações intensas e de muita ansiedade. A pessoa sente-se confusa, assustada, com sensação de anomia, sendo comum a queda num quadro depressivo. É uma experiência aflitiva, pois descobre não permitirem mais, suas referências, seus valores e sua visão de mundo, um posicionar-se na realidade com segurança. Entretanto, como aponta CROSS (1991), são reações temporárias, pois a pessoa, gradual e cuidadosamente, vai aprendendo a testar a validade de suas novas percepções. A grande gama de emoções com a qual a pessoa vê-se envolvida, como culpa, raiva e angústia generaliza, poderão, entretanto, tomar-se fatores favoráveis, por gerarem grande energia para a ação. Para CROSS (1991), a pessoa passa a dirigir sua revolta ao que ela atribui com a 'causa' dos problemas sofridos anteriormente - as pessoas brancas e todo o seu mundo branco. É um momento muito delicado. "A culpa, a fúria, voltada pura as pessoas brancas e a angústia frente a exigência de desenvolver um padrão correto de pessoa negra combinam-se para formar a energia psíquica favorecendo o mergulho numa busca frenética, determinada, obsessiva e intensamente motivada, de uma identidade negra" (p. 201). É um momento semelhante à experiência de "conversão religiosa".

 

O estágio do impacto é uma fase intermediária entre a morte do estágio de submissão e a emersão da pessoa 'afrocentrada'. O reconhecimento de uma identidade referenciada também em torno de valores africanos, a ser desenvolvida, sinaliza a entrada da pessoa no Estágio de Militância.

 

 

Estágio de militância: construção de uma identidade afrocentrada

 

Após o período de conflito no qual o afrodescendente vê desarticular-se a estrutura de subjetividade provedora de sustentação e segurança, inicia-se um processo de intensa metamorfose pessoal, onde ele, gradualmente, vai demolindo velhas perspectivas, referencias de mundo em torno das quais construía sua identidade e, ao mesmo tempo, passa a desenvolver uma nova estrutura pessoal referenciada em valores etnoraciais de matrizes africanas. Os limites de sua estrutura pessoal entram em colapso e seus aspectos passam a ser valorados de uma maneira negativa. A pessoa ainda não tem familiaridade com a nova estrutura que deseja desenvolver, com a pessoa que deseja tornar-se. "O novo convertido tem falta de conhecimento sobre a complexidade e textura da nova identidade e é forçado a construir uma imagem especulativa de self simplista, glorificada e altamente romantizada, que ele acredita ser a correta." (CROSS, 1991, p.202).

 

É uma situação extremamente ansiógena, pois o indivíduo não tem referências claras do significado de tomar-se 'verdadeiramente' negro e tem necessidade de sinais patentes de estar progredindo na direção 'correta'. Em seu trabalho, HELMS (1993) pontua ter estado a pessoa, até esse momento, submetida a uma visão do negro denominada pela cultura branca e sua maneira de agir ainda é estereotipada, sendo a referência da pessoa negra uma referência de grupo definida externamente, levando-a a pensar, sentir e comportar-se de acordo com padrões idealizados de como a pessoa negra 'deve' agir.

 

É provável que esta situação explique por que é comum o afrodescendente apegar-se de forma obsessiva a símbolos da nova identidade em processo de construção, a jargões verbais, a algumas ideologias rígidas e a avaliações dicotômicas. Envolvido na transformação da identidade antiga e, simultaneamente, na busca das características básicas daquele que quer tonar-se para poder se agarrar, o indivíduo passa a julgar os outros afrodescendentes em conformidade com seus padrões 'idealizados', desenvolvendo uma forma tendenciosa e extrema de atacar pessoas que aparentemente demonstra valores antigos e a de afirmar os novos de uma forma bizarra.

 

Em função das concepções da pessoa, neste período, estarem articuladas com uma visão dicotômica de mundo, há a tendência de considerar todos os brancos como maus, desumanos e inferiores e os negros como superiores, mesmo no sentido biogenético, passando a presença de melanina na pele a ser vista como um sinal de superioridade racial.

 

A pessoa mergulha no mundo negro, passando a participar de grupos onde seus valores são intensamente afirmados. O grupo apoia o novo 'convertido', valorizando novos códigos, roupas, comportamentos, favorecendo um padrão de conformidade por parte do novo militante, criando a possibilidade do desenvolvimento de posturas radicais em relação a outros grupos. O interesse pela 'Mãe África’ torna-se evidente. As pessoas passam a participar de momentos e organizações voltadas para a busca de estratégias de combate à discriminação racial, momentos de valorização da cultura negra e em torno de expressões artísticas relacionadas ao tema. Quaisquer conteúdos africanos passam a ser valorizados e todos os interesses são voltados a eles. Nessa experiência de mergulho na negritude e libertação dos valores brancos, a pessoa vivencia um desenraizamento, acompanhado de sentimentos de raiva (contra a cultura e pessoas brancas, pelo seu papel na opressão sofrida contra outras pessoas negras, por ainda não terem aberto os olhos a tal problemática), culpa (pelo tempo em que esteve enganada acerca da cultura negra) e orgulho (em relação à cultura negra). É muito comum, dependendo da região do Brasil, o indivíduo passar a suprimir a denominação 'preto' ou ‘de cor' como auto-referência, preferindo ser referenciado como 'negro'. Isto não se constitui em uma regra. O que ocorre é a busca de uma nova nomenclatura. Entretanto ocorre uma situação paradoxal: para fugir ao conformismo da fase de submissão, o indivíduo cai num outro tipo de conformismo - o do novo grupo etnoracial de referência.

 

A identidade dos indivíduos fixados neste estágio poderia ser considerada como uma pseudo-identidade negra, pois baseia-se principalmente na aversão e negação dos valores brancos, portanto não numa perspectiva de afirmação positiva de suas referências negras.

 

Os aspectos pontuados permitem afirmar a importância da participação em grupos de movimento negro, onde o militante tem a chance de recuperar os valores da cultura e da história do negro para, através de um processo de reconstrução, levá-lo a revisar os valores introjetados e os estereótipos negativos assimilados durante o processo de socialização, possibilitando, assim, o desenvolvimento de uma identidade e uma auto-estima mais positivas, favorecendo relacionamentos harmoniosos no âmbito sócio-cultural mais amplo. Estes aspectos são concordantes com os resultados de uma pesquisa realizada no Brasil por SOUZA (1991).

 

É importante, no entanto, uma análise mais aprofundada dos grupos de militância negra, no sentido de criar mecanismos que evitem um problema apontado por FIGUEIREDO (1995), num ensaio onde são analisados aspectos da identidade das pessoas que participam da militância como um modo de vida. O militante tende a desenvolver uma identidade apoiada em procedimentos de exclusão e vedamento que resultam na "repetição estéril do próprio terreno que pretendia transformar'' (p. 114), independentemente da região - na política, religião, ciência, - e da direção - 'revolucionária', 'conservadora' ou 'alternativa' - em que a militância esteja sendo exercida. Pesquisas anteriores realizadas por mim (FERREIRA, 1995, 1996) sugerem que este processo dá-se também com o militante religioso, propenso a um fechamento em torno de suas referências, no caso religiosas, vindo a produzir dificuldades na aceitação da alteridade. Tratando-se do desenvolvimento de uma identidade articulada em tomo de características etnoraciais o fechamento em torno de suas novas referências pode provocar a fixação da pessoa neste estágio, ou seja, alimentando uma atitude preconceituosa, agora contra o euro-descedente, preservando exatamente o mesmo padrão de subjetividade que visava transformar.

 

Creio que, apesar dos riscos, a militância parece ser um estágio importante a ser vivido para o desenvolvimento da identidade, pois tem a oportunidade de explorar aspectos de sua própria história e cultura, com o apoio dos pares referenciados na mesma estrutura etnoracial. Muita da hostilidade voltada para pessoas brancas é dissipada neste estágio em função da energia pessoal estar voltada a seu próprio grupo e à auto-exploração. Gradualmente, o afrodescendente tende a desenvolver um controle sobre sua emocionalidade, com o abandono das ideologias simplificadoras, freqüentemente reconhecendo suas primeiras impressões sobre a negritude românticas e idealizadas. Há certa decepção com relação aos grupos radicais, passando a participar de grupos mais seriamente voltados para uma reversão da discriminação e valorização das matrizes africanas, buscando, ainda, articular-se com diversos grupos simultaneamente.

 

Neste momento, pode ocorrer a internalização de valores de matrizes africanas e a construção de uma identidade positivamente afirmada. O indivíduo entra no Estágio de Articulação.

 

 

Estágio de articulação: abertura para a alteridade

 

Aos poucos, a pessoa desenvolve uma perspectiva afrocentrada não estereotipada, com atitudes mais expansivas, mais abertas e menos defensivas, voltadas para a valorização das qualidades referentes à negritude, onde as matrizes africanas são salientadas. O grupo negro torna-se o principal grupo de referência, sendo seu vínculo determinado por qualidades do próprio grupo e, não mais, exclusivamente, por fatores externos a ele (HELMS, 1993). Para CROSS (1991), a “nova identidade'' construída tem três funções dinâmicas: defender e proteger a pessoa de agressões psicológicas; prover um sentido de pertença e ancoradouro social e prover uma fundação, ou ponto de partida, para transações com pessoas de culturas diferentes daquelas referenciadas em matrizes africanas. Psicologicamente, a partir do momento em que o indivíduo deixa de considerar os valores, associados a matrizes etnoraciais distintas, como antagônicas, sua internalização deixa de ser conflitiva, tornando a pessoa mais calma, mais relaxada. As estruturas cognitivas tornam-se mais flexíveis, vindo a determinar avaliações de aspectos fortes e fracos da cultura negra. Neste estágio, o indivíduo, enquanto mantém relações com pares negros, deseja estabelecer relacionamentos significativos com não negros de seu conhecimento, respeitando suas auto-definições. Está pronto, também, para realizar coalizões com membros de outros grupos organizados em torno de projetos ou valores distintos, o que no estágio de militância tende a não ocorrer.

 

As pessoas neste estágio encontram maneiras de articular seu senso de negritude num plano de ação e de compromisso como participante de um grupo. Deixam de referenciar-se no preconceito como um universo por si só.

 

Este estágio é de tal importância que a pessoa percebe-se totalmente mudada. Sente-se uma 'nova' pessoa. Há uma mudança no grupo de referência. Antes a raça e a cultura africana eram vistas como de pouca importância, agora são consideradas como fundamentais para a vida diária. Passa a haver uma referência multicultural.

 

É importante salientar que a análise feita acerca do processo psicológico do afrodescendente em tomo das referências etnoraciais, apesar de sua importância, refere-se somente a algumas variáveis de uma matriz ampla de dimensões em torno das quais, na configuração da identidade, articula seu mundo simbólico.

 

Essa 'nova' identidade, com qualidade africana, passa a ter uma função protetora. O indivíduo tem consciência de o racismo ainda fazer parte da experiência brasileira e de, provavelmente, ainda ser alvo de atitudes racistas, porém, a partir deste estágio, já desenvolveu recursos de defesa, um sistema de censura e uma orientação de eficácia pessoal que o predispõe a atribuir a culpa de circunstâncias adversas a outros fatores e não mais somente a si próprio. Desenvolve-se, assim, a consciência da importância das matrizes africanas na construção de sua identidade, qualidades valiosas para uma vida saudável e o bem-estar pessoal. O afrodescendente passa a sentir-se aceito, com propósito de vida, a estar profundamente enraizado na cultura negra, sem deixar de perceber as condições às quais está submetido num mundo que o vê com preconceito. As matrizes africanas passam a ser efetivamente afirmadas.

 

 

 

O brasileiro: negro e branco e índio

 

Creio ser fundamental ao afrodescendente, além de participar do estágio de militância, momento em que toma contato intenso com as raízes históricas que lhe foram ocultas, superar este estágio desenvolvendo comportamentos característicos do estágio de articulação. Então, superar a discriminação racial constitui-se em um trabalho de dupla via - o branco superando o seu preconceito, passando a olhar o afrodescendente, um cidadão como ele - com peculiaridades pessoais positivamente valorizadas e, o afrodescendente desenvolvendo uma consciência mais afrocentrada, olhando para o branco, cidadão como ele, contendo outras especificidades.

 

Para isso, acredito ser uma importante contribuição a educação formal enfatizar as nossas raízes nos currículos e, com a ajuda do afrodescendente, reconstruir a história do processo de formação do povo brasileiro, não mais sob a ótica branca oficial, mas com uma visão mais abrangente e isso, já temos condições de fazer. Na academia, o debate sobre tais questões deve ser ampliado. O papel do pesquisador é importante, pois ele pode ser um interlocutor privilegiado sobre a problemática negra, já que sua influência, como formador de opinião, torna-se um fator de ampliação deste processo de superação da discriminação negativa. Os grupos organizados, com objetivos culturais, políticos, religiosos ou acadêmicos, voltados para a valorização das matrizes culturais africanas do Movimento Negro são fundamentais na busca de políticas favorecedoras desses processos de valorização das matrizes africanas e reversão do preconceito.

 

Sob esse aspecto, a psicologia brasileira pode e deve ter um papel fundamental. Torna-se imprescindível o conhecimento de como os processos psicológicos se dão para a compreensão mais ampliada da problemática do afrodescendente, principalmente frente às armadilhas que um discurso social e político, como no caso de uma militância enquanto modo de vida, pode provocar. Para isso devem ser desenvolvidos estudos que, se não diretamente voltados às questões do afrodescendente, pelo menos assumam como relevantes e incluam as variáveis etnoraciais, de modo a favorecer a formação do cidadão brasileiro sem o risco de legitimar a discriminação.

 

Torna-se importante, paralela a esta luta por uma identidade afrocentrada, a luta pela construção de uma identidade brasileira, onde o branco deixe de negar suas raízes culturais africanas e indígenas, assim como o negro brasileiro, suas raízes culturais européias e também indígenas, Portanto, esta é uma luta do brasileiro, seja ele negro ou branco, é uma luta do brasileiro que é, culturalmente, negro e branco e índio.

 

Talvez seja possível realizar o desejo de DARCY RIBEIRO (1995), um grande apaixonado pelo povo brasileiro - uma civilização composta de cidadãos constituídos por matrizes africanas, indígenas e européias. Porém, não através de um caminho biológico, pela miscigenação, pois esta tem se demonstrado um processo que alimenta o preconceito e as desigualdades sociais, mas de um caminho psicológico, pelo qual, tanto o afro quanto o euro-descendente venham a incluir, na sua construção pessoal, referências de força e beleza humanas que, por um processo histórico, lhes foram apresentadas distorcidas ou, o que é pior, lhes foram ocultas ou omitidas.

 

Par que o negro, nascido num meio físico e socialmente adverso que contém características favorecedoras à reprodução de padrões determinantes de submissão e alienação, através de algumas situações voltadas à consciência de sua negritude e do lugar hostil em que se encontra, possa desenvolver força para a luta a partir da busca de sua história ancestral. Desenvolvendo-se um caminho de superação - do 'negro' transformando-se em 'afrodescendente'. Não mais determinando-se pela cor da pele e por um status estabelecido por uma sociedade referenciada em outra cor, mas passando a identificar-se pela posição numa rede de relações sociais, configurada por um processo histórico marcado por sofrimento e luta, sentindo-se instalado num grande território construído sobre uma cosmovisão africana, contendo muitos parceiros, não mais num pequeno lugar nas franjas da sociedade, antes a ele destinado. Tendo a possibilidade de reconstrução da história que um dia foi apagada, de resgate da importância de sua ancestralidade, de desenvolvimento da consciência de ser futuramente um ancestral e da responsabilidade de um projeto - o de deixar um legado positivo aos descendentes.

 

A pessoa negra, antes vítima de um processo histórico perverso, talvez possa, hoje, de sobrevivente transformar-se em construtor de um novo caminho - o da construção de uma identidade afroincludente e do sentido de autoria da própria história.

 

Assim, os brasileiros, todos afro-euro-índio-descendentes, um dia, talvez, ao aceitarem de fato as diferenças como riquezas provedoras de crescimento pessoal,  possam olhar- se de frente, viver dignamente e construir um projeto coletivo mais justo.

 

 

Notas:

 

 

[1] Este artigo baseia-se num dos capítulos da tese de doutorado: Uma história de lutas e vitórias: a construção da identidade de um afrodescendente brasileiro. São Paulo, 1999. 281 p. – Instituto da Psicologia da Universidade de São Paulo. Orientadora: Ronilda I. Ribeiro. Bolsista CNPq.

 

[2] O trabalho de HEWSTONE (1992) oferece uma análise sobre a teoria da atribuição sob o enfoque da psicologia social. É um estudo que levanta os mais importantes trabalhos empíricos sobre o tema.

 

 

 

 

 

FERREIRA, R.F. Dinâmica de Construção da Identidade do Brasileiro Afrodescendente. Rev. Bras. Cresc. Desenv. Human., São Paulo, 9(2), 1999.