RETÓRICA E REALIDADE DOS DIREITOS DA CRIANÇA NO BRASIL

 

 

Sinara Porto Fajardo

Dirigida pelo Prof. Dr. Manuel Calvo García Zaragoza, 1999.

Universidade de Zaragoza, programa de doutorado em
"Direitos humanos e liberdades fundamentais".

 

 

Introdução

 

O propósito deste trabalho é realizar uma aproximação ao tema dos direitos das crianças e dos adolescentes e as políticas para a infância no Brasil, especialmente a relação entre retórica e realidade, desde uma perspectiva de investigação crítica de aspectos históricos, normativos, políticos e sociais.

 

A tensão entre retórica e realidade, no Brasil, situa-se num contexto legal coerente com a normativa internacional dos direitos das crianças, num contexto político conflitivo entre defensores e contrários à nova lei - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - e num contexto concreto de imensa desigualdade sócio-econômica, que vulnera particularmente grande parte da população infanto-juvenil, com a insatisfação de suas necessidades básicas e de suas condições de autonomia.

 

A polêmica que se estabelece em nível político, evidencia posições contrárias ou em defesa da nova normativa jurídica, mas também expressa conflitos mais básicos sobre representações sociais de infância e de Estado. Por isso, não se esgota em manifestações nostálgicas em relação ao Código de Menores,  nem alarmistas em relação ao ECA, como se  tratasse de um processo evolutivo entre legislações que se sucedem.

 

Tentamos fugir da obviedade da relação crítica/elogio do ECA e do maniqueísmo entre lei e realidade, Estado e sociedade e, ainda, do evolucionismo entre passado, presente e futuro, através de algumas suposições básicas, que passamos a apresentar:

Há um processo histórico das representações de infância que dá suporte às elaborações normativas e às ações públicas e privadas em relação ao tema. As representações hegemônicas, em cada momento, expressam-se no ordenamento jurídico, mas isso não significa que as demais não sigam influindo no conjunto da institucionalidade e da sociedade em geral. Disso tratamos no primeiro capítulo deste trabalho, um resumo histórico das políticas para a infância desamparada no Brasil, que termina com uma breve descrição da legislação atualmente vigente. É possível identificar uma relação entre as políticas para a infância em cada momento histórico, com a razão de Estado hegemônica no mesmo contexto. Entretanto, não podemos absolutizar esta relação, pois há muito mais razões na sociedade que convivem com a do Estado, todas influentes e influídas pelas representações de infância.

 

Podemos construir um nexo entre diversos elementos das políticas para a infância, que possibilita organizar uma visão de suas possibilidades e limites. Observando os sujeitos, as estratégias, os meios e as práticas concretas que dão vida às políticas para a infância como um todo complexo e contraditório, de acordo com as representações de infância e de Estado em cada contexto, poderão surgir dados para a compreensão mais concreta do tema. Disso tratamos no segundo capítulo, uma aproximação teórica a alguns dos principais conceitos integrantes da temática das políticas para a infância, donde destacam-se o protagonismo da família, enquanto sujeito protegido e protetor da infância, e a relação cada vez mais complexa entre o público e o privado enquanto agentes de proteção, incluídos o Estado e as diversas dimensões da sociedade civil, desde as mais íntimas às mais coletivas, organizadas ou não. As estratégias e as práticas que dão corpo à intervenção, a partir desta análise, são vistas de forma articulada, embora não atribuamo-lhes um caráter necessariamente premeditado.

 

As normas, como as relações sociais, expressam ambigüidades, cuja existência ilumina o enfoque segundo o qual a lei constitui-se em reflexos e alavancas das contradições na sociedade e no Estado; expressa o resultado, num contexto histórico dado, da correlação de forças entre distintas representações do papel de Estado (ou de direito) em relação ao objeto da norma. O Estado apresenta-se principalmente através de suas caras normativa e política, em sua relação com a sociedade. De acordo com as representações sociais sobre seu papel em relação aos direitos da criança, a normatividade vai-se configurar de forma mais ou menos intervencionista, promocional, garantista, tutelar, autonomista, etc.. Disso se trata no terceiro capítulo, uma análise sócio-jurídica do ECA. Enfocamos, em princípio, as mudanças gerais que implicaram a nova legislação em relação à anterior e sua situação em relação à normativa internacional dos direitos da criança. Em seguida, identificamos quatro ambigüidades do discurso e da prática decorrente da implementação do ECA, que podem ser condicionadas por este processo histórico de disputa de representações de infância e, principalmente, do papel do Estado em relação aos direitos das crianças. Podemos resumir as quatro ambigüidades como entre teorias de Estado subjacentes à lei, entre finalidades mais protetoras ou mais controladoras, entre elementos internos do conceito de proteção integral e entre concepções inerentes ao modelo de justiça juvenil. Tratando da eficácia instrumental, julgamos necessário apresentar um quadro sucinto da realidade de violação dos direitos das crianças e adolescentes brasileiros, contextualizado brevemente no panorama de desigualdade sócio-econômica que caracteriza a questão social no Brasil hoje. Tentamos identificar limites legais e políticos a esta eficácia instrumental não para justificar, e sim para compreender e contribuir para superar obstáculos à plena realização dos direitos da criança e do adolescente. Finalmente, analisamos a eficácia simbólica do ECA enquanto negativa e em seu caráter positivo, pois por um lado, contribui para reforçar o paradigma internacionalmente aceito de criança como sujeito de direitos mas, por outro, ao não ser implementada de forma satisfatória, termina por legitimar o Estado brasileiro por havê-la promulgado, sem que se preocupe com a efetiva garantia e promoção destes direitos.

 

A sociedade institucionaliza de acordo com o que hegemonicamente representa, e não de acordo com o que hegemonicamente aspira. Essa afirmativa, com os devidos matizes dados pelo caráter contraditório e de disputas sociais tanto das representações como das aspirações da sociedade, assim como pelas dimensões pública e privada da realidade social, pode em parte elucidar as razões da incongruência entre o que podemos sintetizar como "retórica-realidade". Assim, por exemplo, a institucionalidade referente aos direitos da criança corresponde mais às representações hegemônicas no plano político que às aspirações hegemônicas expressas no plano normativo, o ECA. Isso indica que pode existir, também uma relação contraditória entre retórica (política) e retórica (jurídica). Ou ainda, uma contradição entre retórica e realidade política, pois o discurso político, necessário para a legitimação do Estado, nem sempre coincide com as práticas, as vezes institucionalizadas justamente para que funcionem em direção contrária ao discurso.

 

Não há vácuos no processo histórico. O fato do ECA não estar sendo ainda completamente implementado, não quer dizer que as crianças e os adolescentes estejam fora da tutela ou proteção do Estado e da sociedade. Algo está sendo implementado. Algo de cada representação de infância, mas sobretudo algo de cada representação do papel do Estado em relação aos direitos fundamentais. A coexistência de representações conforma umas mesclas que, como toda a realidade, extrapolam a normatividade formal. As bases legais, institucionais e sociais, em termos de respaldo ou legitimação, as condições objetivas para que determinadas estratégias e práticas implementem-se de forma paralela ou contrária a outras, são objetos de investigação importantes, que merecem mais que o tratamento dado no presente trabalho. Ao identificarem-se empiricamente as condições de implementação de medidas de uma ou outra vertente teórica, ideológica ou política, poderemos contribuir para construir as condições de implementação do ECA.

 

A realidade da infância no Brasil não corresponde à retórica legal e, em boa medida, política, e sim ao conjunto de condições estruturais e conjunturais que compõe as bases concretas das garantias de seus direitos. A injustiça do modelo econômico concentrador de terra e de renda, excludente de grande parte da população de qualquer oportunidade de satisfação de suas necessidades básicas e de construção de autonomia, já é, em si mesma, uma causa desta discrepância. Importantes setores da institucionalidade que sobrevivem, oriundos do sistema autoritário dos anos 60 e 70, são obstáculos evidentes à plena realização dos direitos da criança, como de toda a população. A desigual distribuição de recursos entre interesses públicos e privados e entre distintas áreas de responsabilidade do Estado, também inviabiliza a melhor implementação do ECA, prejudicando as condições de realização do paradigma da proteção integral.

 

O Brasil é sempre ativo sujeito no processo de positivação dos Direitos Humanos em nível internacional e regional, mas é também sempre reticente ou omisso quando trata-se de seus compromissos decorrentes da mesma legislação que ajuda a elaborar. Esta aparente contradição pode ser entendida como estratégia em direção a uma eficácia simbólica destas iniciativas. Até hoje, por exemplo, não enviou nenhum informe sobre a situação dos direitos da criança ao Comitê criado em função da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, e isso após participar ativamente nos trabalhos preparatórios deste documento. Além disso, promulgou o ECA, de acordo com tal Convenção, mas nunca chega a empreender todos os esforços e despender todos os recursos possíveis para sua implementação, descumprindo tanto a legislação internacional como seu próprio ordenamento constitucional, que define a prioridade absoluta para a infância e a juventude.

Ao analisar a eficácia instrumental da lei, tentamos identificar limites legais e políticos não para justificar, e sim para compreender e contribuir para superar obstáculos à plena realização dos direitos da criança e do adolescente. A defesa dos direitos da criança dá-se em diversas esferas, de forma inter-relacionada. Uma das esferas possíveis e úteis é a científica, desde que de uma perspectiva crítica. A investigação empírica, que embasa um esforço por desmascarar obviedades, desvelar conteúdos latentes, identificar ambigüidades, ressaltar elementos simbólicos, são ações que contribuem para reforçar as conquistas alcançadas e alargar os horizontes de direitos ainda não garantidos.

 

Analisar o ECA contribui para sua implementação, desde que com olhos críticos de seus limites mas atentos a suas virtudes e possibilidades. As virtudes do ECA estão em representar a normatividade internacional dos direitos da criança, e disso não podemos retroceder  nem sequer um milímetro. Já basta o que há que andar para a frente. O ECA é alavanca desta jornada.

 

O debate atual que surge a partir de posturas contrárias e defensores do ECA é o cenário no qual situa-se este estudo. Dentro deste debate, posicionamo-nos ao lado da defesa intransigente do ECA, como expressão e alavanca para a garantia dos direitos das crianças e adolescentes no plano internacional, acolhidos na legislação nacional. A prioridade absoluta, neste caso, é para a defesa do texto legal, e a aposta é para sua mais completa e imediata implementação.

 

Neste sentido, cada proposição deste trabalho é direcionada a contribuir para qualificar o debate e superar o silêncio prudente dos defensores do ECA, que justifica-se como se fosse necessário calar para não ceder. Ao contrário, é necessária a investigação empírica e a ruptura com as falácias argumentativas dos alarmistas contra a nova condição das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Para isso, entretanto, importa a determinação de encarar e enfrentar ambigüidades internas, conteúdos latentes em conflito que condicionam as possibilidades de sua implementação e, principalmente, lacunas e potencialidades do ECA ainda não desenvolvidas.

 

Nada aportaria este trabalho se somente evidenciasse a contradição entre a retórica e a realidade, como se uma e outra tivessem uma única possibilidade de coexistência: coincidir ou não. Este estudo tenta demonstrar que retórica e realidade convivem numa relação muito mais complexa que a simples ineficácia instrumental da lei em termos absolutos, incluindo elementos de análise extraídos do reconhecimento de uma correlação de forças presente desde a elaboração até o processo de sua implementação.

 

Além de defender a letra da lei, é imprescindível defender que se construam as bases concretas, econômicas e institucionais, para sua implementação. E isso só é possível a partir do conhecimento desta realidade, composta tanto por sua dimensão discursiva, simbólica, como concreta, objetiva. Supomos que um conhecimento científico crítico, tanto da lei como da realidade, contribuirá para a aproximação desejada, no caso do ECA, entre a retórica e a realidade.

 

Este trabalho é uma primeira aproximação ao tema, apesar de ser autônomo e não um estudo meramente exploratório. Isso porque apresenta uma lógica em si mesmo, com começo, meio e fim, embora o nível de conclusões ainda seja limitado ao alcance do aprofundamento bibliográfico e empírico. Mas já tentamos, a partir dos dados disponíveis, destacar algumas idéias ou indícios para a continuidade desta investigação, que será realizada tendo em vista a elaboração da tese doutoral. Relacionamos teoricamente alguns dados e construímos algumas proposições que cremos contribuirão para a compreensão do tema estudado. Os principais resultados, em termos de aproveitamento do estudo feito, foram a sistematização de informações obtidas a partir de investigação secundária, tanto bibliográfica quanto documental e de legislação, e a abertura de possibilidades teóricas e empíricas de investigação sobre o tema. O panorama geral construído servirá de base e contexto para a ampliação e aprofundamento da investigação tanto teórica como empírica.

Por último, além dos dados secundários, também nossa própria participação enquanto sujeito no processo desde 1990, ainda que de forma indireta, foi fonte de informações, oriundas tanto da observação como de apontamentos e relatórios de trabalho (CCDH 1993-1997); (CCDH 1995, 1996,1997).

 

CAPÍTULO I

Aproximação histórica

 

A tentativa de compreender o surgimento das políticas públicas não se deve limitar às descrições históricas, nem se deve deixar fascinar pelos momentos normativos como determinantes. Tampouco se pode compreender a gênesis das políticas públicas como resultado de causas externas, tão amplas como distantes do objeto de estudo. Meny e Thoenig (1992, cap. IV) denunciam três clichês que impedem uma visão real do nascimento das políticas públicas: O primeiro é chamado ascenso democrático representativo, que o situa a partir de demandas isoladas das bases, atendidas pela ação pública, e representa uma visão ingênua de democracia consensual e transparente. A tirania da oferta, por outra parte, atribui às autoridades públicas a ação de modelar as necessidades para logo atendê-las. Por fim, a ilusão fatalista, que define um momento fixo, um eixo inicial que impulsiona uma seqüência de ações e interações, a partir das quais surge uma política pública. Esta última visão exclui a possibilidade de outros cenários, outras circunstâncias que contextualizam o surgimento de uma política pública.

 

Todas essas limitações conduzem a uma visão parcial ou distorcida da realidade, mas, provavelmente, toda visão da realidade é parcial e distorcida. Portanto, cada tentativa de compreensão importa um risco de simplificação ou de desnecessária complexificação dos processos estudados. As saídas para este problema podem ser várias, desde um esforço para contemplar a maior parte possível da totalidade (se é que existe), até optar por aprofundar um ou alguns de seus momentos. Em suma, o que importa é não se deixar cair nem nos determinismos de qualquer tipo, nem numa visão espontaneísta dos fatos históricos.

 

O presente capítulo apresenta uma primeira aproximação às políticas sobre a infância "desamparada" no Brasil em termos gerais, com o objetivo de construir um panorama descritivo que sustente uma compreensão futura mais aprofundada de algumas dimensões atuais e perspectivas de investigação e ação. Estrutura-se em algumas relações entre as conjunturas em cada momento histórico e as correspondentes representações sociais sobre a infância desamparada e as políticas de enfrentamento da questão.

 

Em primeiro lugar, desenvolveremos alguns pontos sobre os quais se poderão marcar o desenvolvimento dos momentos normativos e as políticas públicas que afetam as crianças. Em particular, nos centraremos nos aspectos políticos das práticas referidas às crianças "desamparadas" no Brasil.

 

Numa segunda parte, descreveremos os aspectos gerais e as mudanças que pressupõem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei n. 8.069/1990, de 13 de julho, a atual legislação para a infância no Brasil.

 

1.      Processo histórico

 

Muitos séculos antes do Brasil ser conquistado por Portugal, os povos indígenas ocupavam todo o território hoje pertencente ao Estado brasileiro. Entretanto, diferente do que ocorreu com os povos do chamado velho mundo e de outras partes da América Latina, nossos antepassados não escreviam nem construíam edifícios de pedra que pudessem contar-nos um pouco de seus costumes e leis. Pelo fato de serem nômades, coletores, caçadores e pescadores, os povos indígenas brasileiros não desenvolveram uma civilização fixa e, assim, não se inscreveram na história escrita e hoje em dia reconhecida como história oficial. Não tanto por não haverem desenvolvido uma linguagem escrita, mas principalmente porque, no processo histórico desde o início da conquista, estes povos tiveram que resistir, muito mais que criar; que sobreviver, muito mais que viver.

 

Fragmentos da história viva, contada hoje em dia por indivíduos pertencentes a alguns dos raros povos sobreviventes do massacre histórico no sul do país, informam que as crianças, em suas comunidades, não eram nunca "desamparadas", porque a categoria "assistência" era tão desconhecida como a pobreza, a carência ou a desagregação familiar. Tudo isso, dizem, foi trazido pelos "brancos", e nunca mais as crianças, nem os adultos, foram livres como antes.

 

Assim, nossa "idade média" foi muito diferente da idade média européia e, portanto, as categorias com as quais explicamos a situação da criança nesta época não podem ser as mesmas que as hoje em dia hegemônicas nos meios acadêmicos oficiais.

 

Nossas histórias encontram um ponto em comum em 1500, quando os portugueses conquistaram o Brasil e, ao mesmo tempo, o Brasil descobriu a civilização branca ocidental da Europa.

 

A pobreza e a carência foram conhecidas a partir da expulsão dos povos indígenas de seus territórios tradicionais, como por exemplo do litoral (onde pescavam) para o interior (onde, em muitas regiões, não chovia e faltava comida). A desagregação familiar começou com as violações de mulheres nativas por europeus invasores, e com as separações forçadas de famílias devido à escravidão para trabalhos forçados nas lavouras e nas casas dos senhores. As crianças das comunidades deslocadas, as crianças caboclas, filhos de índias com brancos (bastardos) e os perdidos de seus pais, quando capturados por brancos foram, assim, as primeiras vítimas da chamada infância desamparada.

 

O processo de colonização, caracterizado por um constante deslocamento de famílias pobres e aventureiros para o novo mundo, incrementou o contigente de problemas relativos tanto à miséria quanto à desagregação familiar. Além disso, conflitos culturais de toda ordem e uma política de extermínio de população excedente à necessária para a escravidão contribuíram para complementar um quadro de violência e orfandade infantil.

 

Silva (1997, p. 34-49) resume o pensamento e as práticas assistenciais brasileiras desde 1500, de acordo com o contexto filosófico, ideológico e pedagógico que determinaram leis e políticas de tratamento à infância desamparada. Salienta o autor o reflexo sistemático da consciência humanística e decorrente evolução legislativa a partir da Europa no processo brasileiro. Utilizando como referência a cronologia proposta por este autor, trataremos de contextualizar esse processo no marco geral da história brasileira.

 

Uma primeira fase deste processo histórico poderia ser fixada entre 1500 e alguns anos antes da abolição da escravatura no Brasil, que ocorreu um 1888. O símbolo maior deste período seriam as Rodas dos Expostos, instaladas nas Santas Casas de Misericórdia, que eram o centro do modelo português. Nesta fase, as crianças, em geral, não permaneciam internadas por muito tempo, sendo encaminhadas a famílias beneméritas que as mantinham como agregadas. Até 1817, 45 mil crianças foram expostas e 90% delas morreram. As rodas foram um mecanismo alternativo às práticas comuns de expor crianças nas ruas, lugares públicos, etc..

 

Em 1822, o Brasil se torna independente de Portugal e, a partir da Assembléia Constituinte de 1823, surge no cenário da construção do Estado a preocupação com a difusão da instrução a todos os habitantes livres do império. Através do funcionamento das primeiras instituições educacionais de nível superior no Brasil, a temática da infância começa a tomar força, principalmente no campo da medicina. (Abreu e Martinez 1997, p. 20-1).

 

Em 1871, a Lei do Ventre Livre declara livres os descendentes de escravos nascidos a partir daquela data, o que impulsionou ainda mais as discussões sobre a proteção, educação e amparo aos filhos de escravos nascidos em liberdade e, consequentemente, de todos os meninos e meninas desamparados da ex-colônia. Para Abreu e Martinez (1997, p. 23-4), esta lei foi um marco a partir do qual a infância surge como um problema social. Esta fase poderia ser chamada filantrópica, pois predominaram práticas desta natureza em atenção à criança desamparada.

 

A introdução de práticas higienistas, que coexistiram e preponderaram sobre a continuidade da filantropia de corte mais caritativo, caracteriza o que se pode identificar como uma segunda fase no processo histórico das políticas para a infância, que se poderia localizar até o início da década de 20, com o surgimento das primeiras leis de infância na Europa, América e, em 1924, no Brasil.

 

Alguns anos antes da abolição da escravatura negra (1888), começaram a chegar imigrantes europeus - em primeiro lugar italianos, logo, de vários outros países. O incremento da imigração estrangeira suscitou a criação de diversas sociedades científicas que trabalhavam, principalmente, no controle de doenças epidêmicas e no ordenamento dos espaços públicos e coletivos, inclusive escolas, internatos e prisões (Silva, 1997, p. 34-5).

 

A ênfase sanitária sobre a jurídica e sobre a benemérita determinou a criação de programas de atenção à saúde caracterizados pela contratação de amas de leite que viviam na Casa dos Expostos, para cuidar das crianças até que outras famílias as acolhessem ou até sua morte. (Melo, 1986, p. 332).

 

Em 1889 se proclama a República e começa o Estado a prestar uma maior atenção às crianças abandonadas. Abreu e Martinez (1997, p. 26) afirmam que, a partir desta época, a criança é vista como base para a construção da nova nação. Entretanto, os discursos e propostas desta primeira república denotam um projeto mais repressivo que assistencial. Em 1899 se cria o primeiro Tribunal de Menores em Illinois (EUA) e de 1905 a 1921 se criam tribunais de menores em toda a Europa.

 

Na América Latina, a primeira lei de menores surge na Argentina em 1919. No Brasil, já em 1900, surgem críticas ao internamento de menores infratores na penitenciária do Estado e um projeto de lei que cria o Instituto Disciplinar, depois chamado Instituto Modelo de Menores e Colônia Correcional. Em 1909 o Estado assina convênios com instituições particulares para assistência de menores.

 

Nota-se, nesta fase, uma mescla de filantropia, higienismo e já a gestação de uma futura hegemonia do conhecimento jurídico na área da assistência à infância. Para Rizzini (1997-c, p. 42-3) a noção de higiene inaugura, no Brasil, a preocupação científica com a infância. Para esta autora, a higiene assumiu duas caras: a pública, adentrando todos os aspectos da vida social (principalmente os setores potencialmente ameaçadores para a sociedade) e a privada, remetida às regras de viver individualmente (alimentação, habitação, educação, etc.).

 

Uma terceira fase histórica, caracterizada como predominantemente assistencial, pode ser fixada entre as décadas de 20 e 50, até o golpe de Estado que deu início à ditadura militar em 1964.

 

A década de 20 significou um período de grandes mudanças na sociedade brasileira, muito bem exemplificados pelo conteúdo das comemorações do centenário da independência do país ou pela Semana de Arte Moderna de 1922. Foi, também, uma fase de crise econômica e política da República Liberal, o que levou a um questionamento sobre o papel do Estado nas questões sociais. Neste período se inauguraram várias instituições para educação, repressão e assistência a crianças, conforme indicam Abreu e Martinez (1997, p. 28-9).

 

Nesta fase foi aprovado o primeiro Código de Menores do Brasil e a Casa dos Expostos foi desativada. O Poder Judiciário cria e regulamenta o Juizado de Menores e todas suas instituições auxiliares. O Estado assume o protagonismo como responsável legal pela tutela da criança órfã e abandonada. A criança desamparada, nesta fase, fica institucionalizada, e recebe orientação e oportunidade para trabalhar.

 

Neste período, se criam os primeiros tratados e convênios internacionais dos direitos das crianças, que indicam uma distinção entre menores desamparados e infratores. Em 1924, surge a Declaração dos Direitos da Criança, aprovada pela Sociedade das Nações, um quarto de século antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Em 1939, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e a União Internacional para a Proteção da Infância elaboraram um projeto de convênio para a proteção das crianças nos conflitos armados, mas a guerra impediu a iniciativa de seguir adiante. Finalmente, em 1959, a ONU aprova a segunda Declaração dos Direitos da Criança, base principal da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989.

 

Em 1927 é promulgado o Código de Menores, no qual a criança merecedora de tutela do Estado era o "menor em situação irregular". Silveira (1984, p. 57) entende que este conceito vem a superar, naquele momento histórico, a dicotomia entre menor abandonado e menor delinqüente, numa tentativa de ampliar e melhor explicar as situações que dependiam da intervenção do Estado.

 

No período de 1930 a 1945, em meio a problemas de incremento de urbanização e industrialização, cresce o centralismo do Estado assistencialista - agora denominado Estado Novo, especialmente a organização dos serviços públicos de atendimento, fazendo frente à evidente fragilidade das iniciativas privadas até então hegemônicas. A revolução de 1930 inaugura politicamente o chamado "Estado social" brasileiro, que atende a muitas reivindicações históricas dos trabalhadores e da população em geral como legislação trabalhista, ensino básico obrigatório e seguridade social, apesar de que de forma a tentar cooptar movimentos sociais importantes num projeto político centralizador e paternalista.

 

Nesse contexto, as décadas de 30 e 40 foram caracterizadas pela ênfase na assistência, não obstante, de acordo com Abreu e Martinez (1997, p. 30), a presença sempre forte nos discursos jurídicos de tentativas de criminalização da infância pobre. A assistência, entretanto, desde o final do século XIX, como vimos, se realizava prioritariamente em instituições fechadas. As críticas a este modelo seguiram toda sua trajetória e propuseram várias mudanças até a década de 50, quando as denúncias de superlotação, maus tratos, corrupção, etc., se fizeram mais fortes (Rizzini, 1997-c, p. 44-5). Surgem daí as primeiras iniciativas de assistência asilar, de corte mais preventivo. Este confronto entre discursos e práticas assistenciais de tipo asilar e preventivo, a partir de posturas ora jurídicas, ora médicas ou educativas, expressou o movimento mais geral de busca de uma ordem política, econômica e social coerente com a construção da república.

 

Até 1935, os menores abandonados e infratores eram, indistintamente, apreendidos nas ruas e levados a abrigos de triagem. Em 1940, se edita o atual Código Penal Brasileiro, onde a idade para a imputabilidade penal se define aos 18 anos. Em 1942 se cria o SAM (Serviço de Assistência ao Menor), órgão do Ministério da Justiça, de orientação correcional-repressiva. O SAM se estruturou sob a forma de reformatórios e casas de correção para adolescentes infratores e de patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios urbanos para menores carentes e abandonados. O SAM é reconhecido por muitos autores como a primeira política pública estruturada para a infância e adolescência no Brasil. Surgem, também, nesta época, diversas casas de atendimento sob as ordens da primeira dama, ou seja, diretamente ligadas ao poder central. O Estado e, especialmente, o Poder Judiciário assume, neste período, uma hegemonia em relação aos demais sujeitos anteriormente mencionados como a Igreja, os médicos e os filantropos.

 

Em 1964 os militares tomam o poder num golpe de Estado e começam uma ditadura que se prolonga até a primeira metade da década de oitenta. Em relação às políticas e práticas sobre a infância desamparada, este fato supõe um marco que justifica a identificação do início de uma nova fase histórica, que se estende até o final da década de 80.

 

Esta fase se inicia com a extinção do SAM e a criação da Funabem (Fundação Nacional do Bem-estar do Menor) e das Febems (Fundação Estadual do Bem-estar do Menor) em cada estado da Federação. A Funabem foi criada a partir das lutas de organismos não governamentais contra a ineficácia do SAM, e conforme as diretrizes oriundas da Declaração da ONU dos Direitos da Criança. Mas o sistema concreto institucional foi criado no espírito da Doutrina da Segurança Nacional, que militarizou a disciplina dentro dos internatos que, a partir de agora, já encerram definitivamente suas portas para a sociedade. A trajetória da criança ia da polícia diretamente até as unidades de recepção da Febem.

 

Na década de 70 algumas iniciativas começaram a ser tomadas para superar a ineficácia dos modelos do Estado de atenção à criança, tanto por parte da Igreja Católica como do próprio Parlamento. Pouco a pouco, estas iniciativas, associadas ao incremento de grandes problemas sociais como o aumento da violência, analfabetismo e exploração sexual infanto-juvenil, foram minando a legitimidade do caráter autoritário e excludente das políticas para a infância que predominaram nas décadas de 60 e 70. Neste período, surgem novos agentes sociais como movimentos populares de defesa dos direitos das crianças, e outros.

 

Como contraponto de todo este movimento, em 1972 ocorre uma Semana de Estudos de Problemas de Menores, na qual se recomendou todo um aparato de segurança baseado em agentes fortes e em contenção arquitetônica e física, reforçando as políticas repressivas já imperantes no sistema vigente.

 

No Brasil, as legislações sempre propugnaram a proteção total da infância, proibindo castigos físicos e direcionando a assistência para caminhos mais abertos que fechados. As práticas, entretanto, sempre privilegiaram o modelo asilar. Mas, nesta fase, se reforça uma política de contenção institucionalizada de corte militarista que, legitimada como política de Promoção Social, logrou sobreviver sob um novo Código de Menores editado em 1979. Este Código já contém a doutrina da proteção integral, mas baseada no mesmo paradigma do menor em situação irregular da legislação anterior.

 

O Código de Menores de 1979 traz um dispositivo de intervenção do Estado sobre a família, que abriu caminho para o avanço da política de internatos-prisão. O princípio de destituição do pátrio poder baseado no estado de abandono, através da sentença de abandono, possibilitou ao Estado recolher crianças e jovens em situação irregular e condená-los ao internato até a maioridade. Aos 18 anos, os "ex-menores" eram encaminhados, preferencialmente, ao serviço militar ou aos serviços públicos. Sobre os adolescentes autores de ato infracional, o Código de 1979 previa umas medidas de advertência, entrega aos pais ou responsáveis ou à pessoa idônea, através de termo de responsabilidade, colocação em lar substituto, regime de liberdade assistida, semiliberdade, internação em estabelecimento educacional, ocupacional, psicopedagógico, hospitalar, psiquiátrico ou outro adequado, levando em conta estudo de especialistas. Além disso, a lei previa a preferência pela reintegração sócio-familiar, e a excepcionalidade das medidas de internação. Entretanto, na prática, muitos jovens foram internados em instituições precárias e contrárias aos próprios dispositivos legais.

 

Nesta fase, as instituições passam a ter maior importância que os próprios menores, no sentido em que a disciplina interna e a segurança externa aos muros eram os principais critérios de eficácia dos programas de assistência aos menores.

 

Os movimentos críticos das políticas para a infância até então vigentes, da década de 70, chegam à década de 80 já apontando para o esgotamento da legislação recém imposta do Código de Menores e da Política Nacional do Bem-estar do Menor.

 

O início do processo de transição democrática do país foi o cenário de uma mobilização popular por uma assembléia constituinte, que foi instalada em 1987. A própria convocação da Assembléia Nacional Constituinte obrigou a sociedade a organizar-se para o alcance de suas metas através da elaboração de propostas e de emendas de iniciativa popular articuladas por entidades legalmente constituídas e subscritas por um mínimo de 30 mil eleitores. A oportunidade aberta para emendas populares criou espaço tanto para os grandes "lobbies" do poder econômico como para a atividade de diversas minorias, e formou o contexto sobre o qual se construiu a chamada "Constituição Cidadã".

 

Já em 1986, organizações não governamentais de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, influenciadas e influentes no projeto da Convenção dos Direitos da Criança da ONU, iniciaram um movimento em direção a introdução do conteúdo do documento das Nações Unidas na Constituição Federativa do Brasil (CF).

 

Nesta época, os meninos e meninas de rua se consolidam como símbolo da situação da infância e adolescência desamparadas no Brasil, tanto pela sua importância em termos quantitativos como pela sua crescente organização e conseqüente intervenção no panorama político nacional, com apoios internacionais. O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, em conjunto com grupos comunitários, setores da Igreja Católica, universidades, ONGs de estudos, investigações e atendimento direto e defesa de crianças e adolescentes, liderou a campanha para recolher assinaturas para as emendas populares referentes aos direitos das crianças na nova Constituição.

 

Em 1989, assim, se promulga a Constituição Federativa do Brasil (CF), após um longo período chamado de Transição Democrática, a partir de uma abertura "lenta, gradual e pacifica", promovido pelos últimos governos da ditadura militar e consolidado num processo de articulações entre setores das oposições dentro e fora do Estado com apoios de movimentos sociais e populares. Elabora-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e inicia-se o conseqüente reordenamento institucional, com a criação da Fundação Centro Brasileiro para a Infância e a Adolescência, em substituição à Funabem, mas com a tarefa peculiar e transitória de fomentar a organização nacional, estadual e municipal dos Conselhos de Direitos e dos Conselhos Tutelares. Não há nome atual para uma política nacional correlata ao Eca, como houve nas legislações anteriores, pois por sua própria força legal as políticas devem ser descentralizadas.

 

A promulgação da Constituição Federeativa do Brasil, em 1989 e do ECA, em 1999, marcam o início de uma nova fase, que pode ser chamada de desinstitucionalizadora, caracterizada pela implementação de uma nova política que se baseia numa legislação que rompeu com paradigmas anteriores de atenção à criança desamparada. É a fase atual.

 

2.      O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

 

A Constituição Federal situa as políticas sociais como instrumentos de garantia dos direitos sociais, que por sua vez integram o rol dos direitos e garantias fundamentais. Positiva, também, as normas relativas à organização da seguridade social que engloba a saúde, a previdência e a assistência social, assim como a educação, além de normatizar a família, a criança e o adolescente e o idoso, entre outros. O artigo 227 trata dos deveres da família, da sociedade e do Estado de assegurar, com prioridade absoluta, os direitos das crianças e dos adolescentes.

 

O artigo 227 CF deu origem ao ECA e o 228 define a idade de imputabilidade penal aos dezoito anos, lançando as bases, de acordo com a Convenção dos Direitos da Criança da ONU e documentos afins, do conteúdo dos direitos das crianças e adolescentes brasileiros.

 

O ECA é a lei federal que dispõe sobre os direitos de todas as crianças e adolescentes do Brasil. Não é uma lei somente dirigida às crianças desamparadas, mas a todos os meninos e meninas, enquanto sujeitos de direitos fundamentais e da garantia da prioridade absoluta em sua defesa. O ECA se define como lei de proteção integral da criança e do adolescente, e situa a criança como a pessoa até 12 anos de idade e o adolescente entre 12 e 18 anos, sendo aplicável, excepcionalmente, na faixa dos 18 aos 21 anos. Além de positivar os direitos e garantias individuais e regular a proteção judicial dos interesses individuais, difusos e coletivos, define e regula as políticas de atendimento desses direitos. Normatiza tanto a proteção como a sócio-educação, mas não está estruturado como para demarcar esta dualidade.

 

Nogueira (1996, p.715-6) resume o conteúdo do ECA, destacando algumas linhas gerais. A proteção e a garantia dos direitos das crianças e adolescentes se faz, no ECA, através de uma linha de promoção de direitos (artigos 7 a 69), uma linha de efetivação de políticas públicas estatais e comunitárias (artigos 86 a 97) e, finalmente, determinando o processo de reordenamento institucional em função de sua implementação. O ECA sistematiza, ainda, uma linha de defesa de direitos através da instituição de medidas de proteção (artigos 98 a 102), a explicitação do devido processo legal para apuração de atos infracionais praticados por adolescentes (artigos 103 a 128) e a instituição de um elenco de medidas jurídicas, administrativas e judiciais, de proteção desses direitos (artigos 129-1130 e 208 a 258).

 

O ECA se subdivide em duas partes. A primeira, chamada Parte Geral (Livro I) é uma declaração dos direitos das crianças e dos adolescentes, detalhando o artigo 227 CF. Define como o intérprete e o aplicador da lei deverão compreender a natureza e o alcance dos direitos elencados na norma constitucional. A segundo, chamada Parte Especial (Livro II), é composta dos mecanismos de viabilização destes direitos, ou seja, de suas garantias. Regulamenta as normas gerais a que se refere o artigo 204 CF, conforme o artigo 227 CF.

 

Para efeitos meramente descritivos, destacaremos alguns pontos do ECA, para demarcar a ênfase deste trabalho, quando da análise sócio-jurídica da lei.

 

A importância da institucionalidade no processo de implementação do ECA é marcada em toda a parte referente às políticas de atendimento, além da parte específica dirigida ao Conselho Tutelar. O artigo 87 define as linhas de ação da política de atendimento da infância, as quais se podem resumir como quatro: básicas, assistenciais, de proteção integral e de garantia de direitos. As políticas básicas são aquelas destinadas a todas as crianças e adolescentes como de saúde, educação, profissionalização, etc. As assistenciais têm como público alvo os que dela necessitam, conforme o artigo 204 CF e se regem pelas diretrizes de descentralização e participação. As de proteção integral se destinam a vítimas de ameaça ou violação de direitos. Finalmente, as políticas de garantia de direitos englobam os Conselhos de Direitos e Tutelares, a ação do Ministério Público e da Defensoria Pública.

As possibilidades e os limites de ação são regidos pelas diretrizes da política de atendimento, invocadas no artigo 88, que trata da iniciativa dos poderes públicos para formular políticas de atendimento e proteção da maternidade, infância e adolescência, através da figura da participação, sublinhando o princípio constitucional constante no artigo 1º, parágrafo único CF: "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos da Constituição."

 

De acordo com Sêda (1996, p. 281), o artigo 98 marca a ruptura com a doutrina da situação irregular e adota a doutrina da proteção integral. A união entre proteção e sócio-educação numa mesma lei é coerente com o atual paradigma. Todos os meninos e meninas têm direito às medidas de proteção, sempre que os direitos reconhecidos na lei sejam ameaçados ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis ou em razão de sua conduta (ECA, artigo 98).

 

Algumas das medidas de proteção podem e devem, de acordo com o ECA, acumular-se às medidas sócio-educativas, pois os adolescentes infratores não perdem seu direito à proteção integral. As medidas de proteção de I a VI são incluídas no rol de medidas aplicáveis aos adolescentes autores de atos infracionais, além das medidas sócio-educativas.

 

O Título III da Parte Especial "Da prática do ato infracional" acolhe o conceito de ato infracional, os direitos e garantias individuais e processuais, e cuida das medidas sócio-educativas. Finalmente, no último capítulo, trata da remissão, como forma de exclusão ou, ainda, de suspensão ou extinção do processo.

 

Veronese (1996) destaca o caráter inovador do ECA na parte referente ao acesso à justiça, que é a proteção judicial dos interesses individuais, difusos e coletivos referentes às crianças e adolescentes. É o que garante, ao menos formalmente, o acesso à educação e à serviços de saúde, por exemplo, a grande parte da população infantil e, também, aos adolescentes privados de liberdade.

 

A responsabilidade da família e da comunidade em garantir os direitos das crianças aparece, de forma declarativa, na parte geral e, de forma prescritiva, na parte especial, quando se normatizam as medidas pertinentes aos pais ou responsáveis e os crimes e infrações administrativas.

 

Até aqui, fizemos uma análise breve dos principais momentos que contextualizaram mudanças políticas e normativas em relação ao atendimento da infância desamparada no Brasil, assim como um resumo dos pontos fundamentais da atual legislação. No próximo capítulo, pretendemos percorrer teoricamente alguns elementos destacados deste recorrido histórico, numa tentativa de sistematização de conceitos que facilite a compreensão das políticas para a infância e adolescência.

 

 

 

 

CAPÍTULO II

As políticas para a infância

 

Revisando alguns dos elementos da história política, dos pensamentos e das práticas de assistência às crianças desamparadas no Brasil, destacaremos alguns conceitos-chave, cuja análise poderá contribuir para uma compreensão da atual legislação e de seu processo de implementação. O exame destes conceitos só é possível a partir da construção de um panorama esquemático de uma porção de racionalidade que se pode inferir da observação do processo histórico.

 

Trata-se de uma hipótese descritiva de condições objetivas e subjetivas, construídas historicamente, para as representações atuais das políticas sociais para a infância desamparada no Brasil.

 

O esquema que propomos para organizar esta análise é composto de dois elementos principais, que integram as políticas públicas sobre a infância: os agentes (protegidos e protetores) e a intervenção (composta de estratégias, meios e práticas).

 

1.      Os sujeitos

 

Os sujeitos das políticas sociais para a infância são, por um lado, os receptores ou usuários, em última análise, os protegidos em sentido amplo e, por outro, os autores, gestores ou executores, ou seja, os protetores, por dize-lo da mesma maneira. Os primeiros se identificam empiricamente com as crianças e adolescentes desamparados, em perigo ou perigosos, e com as famílias genericamente taxadas de estruturadas ou carentes. Os segundos podem ser visualizados a partir das relações entre o público e o privado no contexto do Estado social.

 

 

 

 

1.1. Os protegidos

1.1.1.      A criança desamparada

 

O conceito e as representações de criança desamparada mudaram no decorrer da história do Brasil pós conquista desde o bastardo (branco ou mestiço, abandonado na rua ou acolhido por famílias beneméritas), até o sujeito de direitos, passando pelo exposto (objeto de ações sanitárias das entidades médicas e de amas de leite), pelo assistido (destinatário da promotoria social, junto com sua família) e pelo menor (objeto de políticas públicas centradas nas instituições totais).

 

Um dos paradigmas do menor desamparado, no Brasil, são os meninos nas ruas. Desde o século XIX  há registros de meninos nas ruas, mas é a partir da década de 80 deste século, após 20 anos de ditadura militar, internando o problema dentro dos muros dos internatos, que este fenômeno logrou maior visibilidade nos meios políticos e acadêmicos.

 

Para as crianças mais pobres as ruas, além de espaços de ócio e convivência, são também o espaço próprio de sobrevivência, onde todas as atividades cotidianas que as classes médias e altas costumam realizar em casa, na escola ou no trabalho, são vivenciadas de modo peculiar. Para os modelos ideais impostos, esta peculiaridade se apresenta basicamente sob a forma de pequenos delitos ou simplesmente de situações incômodas ou agressivas. Assim, por exemplo, dormir, ir "ao banheiro" ou lavar a roupa no parque público, pedir comida nos restaurantes ou mesmo furtar frutas ou pão de pequenos estabelecimentos comerciais ou supermercados, etc., são atividades delitivas ou incômodas, mas sem dúvida definidoras da própria condição de vida destas pessoas, nas ruas.

 

Com ou sem família, as crianças que andam pelas ruas são o protótipo do "vagabundo", figura clássica que absorveu, desde há muito tempo, políticas de toda ordem em busca de seu encaixe nos modelos impostos de convivência social.

 

O vagabundo, alvo permanente da intervenção através de políticas de proteção, expressa um elemento de vulnerabilidade e, de acordo com Donzelot (1979, p. 81), pelo menos três componentes: o abandono (degradação física), a apropriação (exploração) e a periculosidade. O autor sintetiza estes três componentes num só, que é a corrupção, em três dimensões: a sexual, a econômica e a política. Salvo as distinções de época e lugar a que se refere Donzelot (1979), é certo que esta descrição da representação social do vagabundo encaixa perfeitamente nos fundamentos discursivos que informam os objetivos latentes das políticas atuais para a infância desamparada no Brasil. A progressiva ampliação da noção de vagabundo acompanha a ampliação dos supostos de intervenção preventiva, protetiva e repressiva.

 

Mesmo dentro do âmbito da infância desamparada, não se pode falar de uma única categoria informadora das políticas sociais. Apesar de, historicamente, abandonados e infratores terem sido tratados de forma conjunta por um longo período, conformaram-se, no Brasil, simbólica e concretamente, duas representações distintas - criança e menor - da infância desamparada, que eqüivaleriam às noções espanholas de "criança sujeito de direitos", por um lado, e em "proteção", ou em "reforma" (transgressores ou em conflito com a norma) por outro.

 

Olhando a história das legislações, políticas e instituições para a infância no Brasil, se comprova a divisão conceitual que se consolida entre as duas categorias. A primeira é alvo de políticas de assistência social, educação e saúde, enquanto o segundo é alvo de políticas repressivas, protetivas ou reeducativas. A assistência à criança e ao menor tem histórias paralelas, onde as relações institucionais nunca foram tranqüilas. Conforme sintetiza Rizzini (1995, p. 289-90), as políticas de proteção e de repressão, de caráter mais terapêutico, tiveram como alvo o menor, e as de prevenção ao abandono e ao delito, tiveram como alvo as famílias desagregadas ou em risco.

 

Esta divisão, vista como expressão de uma representação do conceito de infância como duas categorias distintas, de acordo com as condições objetivas de sua existência, também pode ser evidenciada através da constatação de que o menor foi sempre "auto-referido", ou seja, definido em conformidade com sua própria conduta ou condições, enquanto a criança foi sempre referida à sua família, à sua mãe, vistas ou como vítimas de circunstâncias ou como causadoras dos males da criança. Um exemplo é a divisão entre políticas de educação pública (para as crianças) separadas das de sócio-educação (para os adolescentes autores de ato infracional) informadas pelo ECA.

 

As crianças foram, pelo menos desde que existem como questão social, em menor ou maior medida, objetos de saberes e de poderes adultos e de práticas mais ou menos estruturadas de proteção ou repressão. Pode-se considerar que hoje em dia, em nível normativo, o que se outorga às crianças são as mesmas garantias e liberdades formais de que gozam os adultos, acrescidas da proteção contra ameaças em função de sua vulnerabilidade própria da idade. A mudança conceitual desloca, pois, a criança dentro de um mesmo campo de controle social e de intervenção estatal sobre a sociedade em geral. A condição de sujeito de direitos não lhes isenta da condição de objeto de proteção.

 

1.1.2.      A família em risco

 

A infância desamparada é representada dentro de famílias em situação de risco vistas, construídas e enfrentadas pelo Estado através de suas facetas normativa e de ação pública que, no Brasil, se apoiam num princípio de co-responsabilidade entre Estado, sociedade e família.

 

A família é constantemente redefinida socialmente enquanto distintas formas de relações íntimas e reaproveitada politicamente enquanto apoio para políticas mistas entre o Estado e a sociedade para dar conta do risco crescente de exclusão social dos indivíduos, decorrente de um processo de dolorosas transformações no mundo do trabalho e suas conseqüências no Estado de Bem-estar social.

 

Enquanto fator de risco social, a família é caracterizada como um cenário de enfrentamentos entre crianças e adultos, e pela inacessibilidade a sua faceta privada, onde prospera o risco de destruição da ordem social, como por exemplo através do aumento da taxa de natalidade ou das novas formas de organização íntima das relações interpessoais.

 

As famílias pobres foram, quase sempre, associadas à ignorância, negligência, incapacidade, vícios, abandono, promiscuidade, imoralidade e, definitivamente, foram locus privilegiado das políticas de proteção, pelo menos, no Brasil, desde a chamada fase higienista até a atualidade. De qualquer forma, a mulher/mãe de todas as classes sociais foi sempre o principal objeto dos projetos médico-higienistas, enquanto a família desestruturada foi sempre o objeto dos projetos assistenciais de corte asilar provindos do campo jurídico.

 

Donzelot (1979, p. 45-6) identifica no nascimento da família moderna uma orientação à primazia do educativo, apesar de não se expressar de forma igual em cada classe social. Enquanto as famílias ricas dirigiam sua preocupação às influências dos empregados domésticos, as famílias pobres se protegiam do exterior: da rua, do bar, etc. A criança rica era educada a uma liberação protegida, enquanto o pobre sofria uma liberdade vigiada. Fala da transição da família desde uma rede de relações de dependência e de posse, até transformar-se em terminações nervosas de aparatos que lhes são exteriores. A família, assim, é duplamente perpassada pelas normas direta ou indiretamente organizadoras de sua estrutura e dinâmica (Donzelot 1979, p. 92).

 

Definitivamente, o paradigma da família nuclear urbana, presente nas classes médias e altas, conformou o modelo sob o qual produziram-se as principais políticas públicas para a infância e adolescência, no período estudado. Como único espaço vital legítimo, a família modelo acaba criando as subversões representadas por alternativas de convivência interpessoal.

 

A noção de família desestruturada remete a um modelo calcado em variáveis sociais, econômicas e culturais, mas principalmente relacionadas, na prática, ao sustento financeiro das crianças. Mas no interior das famílias ditas estruturadas também se abrigam práticas de sociabilidade autoritária que comprometem a sociabilidade primária livre e democrática, produzindo situações-problema tão ou mais graves que nas famílias desestruturadas.

 

A família pode ser vista, ainda, com uma dupla face entre o público e o privado, o que pode dar margem à legitimação de um amplo intervencionismo estatal no âmbito antes visto como fechado da intimidade familiar. Visualizar a família como espaço fechado com expressão pública, ou como espaço semi-público de relações privadas, traz como conseqüência a possibilidade de maior garantia dos direitos individuais dos indivíduos membros da família, assim como os direitos sociais de seu conjunto e de seus membros mais vulneráveis. Ferrajoli (1997, p. 934) identifica, a partir dessa visão, o que chama de "micropoderes selvagens", extrajurídicos, que se estabelecem entre membros de instituições como a família (pai/filho, marido/mulher), a fábrica ou o escritório (patrão/empregado), a escola (professor/aluno, direção/funcionário), o hospital (médico/doente), etc.. Estas relações de poder são a base de desigualdades entre as pessoas e as condições de sociabilidade autoritária, de violência moral ou física entre os indivíduos. Ao distinguir liberdades de poderes, e atribuir às primeiras a necessidade de preservar e aos segundos a de regular, tanto na esfera pública como na privada, o autor encontra vulnerabilidade de direitos fundamentais e justifica a necessidade de mais garantias, o que pressupõe mais intervenção.

 

A família é e sempre foi o lugar de proteção, escudo contra a violência da adversidade, manancial de solidariedade alternativa a do Estado, tecidos de laços sociais elementares. Assim considerada, a família representa, ao mesmo tempo, risco e um potencial de recursos de regulação dos problemas sociais. Agora, entretanto, é um novo modelo de família o que concentra a atenção das políticas públicas. O aumento da expectativa média de vida, a instabilidade e desinstitucionalização dos laços familiares, o ascenso do desemprego feminino e geral, a reestruturação das formas de organização do trabalho, a terceirização do emprego, etc., são mudanças que demandam uma nova forma de encarar a família, como elemento híbrido entre o público e o privado.

 

 

 

 

 

1.2. Os protetores

1.2.1. O público e o privado

 

As categorias público e privado são básicas no pensamento moderno sobre o espaço social. Uma das conotações contemporâneas mais comuns de público, que é a relação com o estatal, se consolida na medida em que a sociedade civil vai-se diferenciando do Estado. Rabotnikov (1993, p. 78) localiza, aí, a separação do público em relação ao privado.

 

Público e privado não podem ser vistos como exclusivos, pois historicamente nunca se apresentaram de forma pura. Processos históricos como absorção de espaços privados pelo público, ou de privatização de organismos predominantemente estatais, são exemplos do caráter misto destes conceitos.

 

Habermas (1998, p. 432-4) faz uma distinção entre as esferas da realidade que atribui ao paradigma sistêmico - a economia capitalista e a administração pública - e dois âmbitos gerais do mundo da vida: um de caráter mais privado, que corresponde à esfera mais íntima e protegida da publicidade, e outro mais público, que compreende seu componente mais social, formado pela totalidade das relações interpessoais como coletivos, associações, organizações, etc. Distingue, ainda, o poder político articulado em termos de Estado de direito entre um âmbito de poder administrativo e outro de poder comunicativo. Afinal, define o mundo da vida como uma totalidade que, considerada em conjunto, se caracteriza como "una red de acciones comunicativas" e, além disso, afirma a interconexão entre todas as esferas da realidade social.

 

García-Pelayo (1995, p. 112-3) salienta que o processo de

 

"desdibujamiento de límites entre el Estado y su ambiente, entre lo público y lo privado (...)"

hace con que eses límites ya

"no se configuren como fronteras, sino más bien como 'marcas' o como 'zonas' de intersección e interferéncia entre el Estado y otras organizaciones(....)".

 

A tradicional separação entre público e privado, dada pela fixação dos limites da ação do Estado, se associa, de acordo com este autor, com uma série de outras dicotomias próprias da teoria e da práxis política desde o século XIX, ou seja, entre homem e cidadão, entre público e privado, entre político e econômico e entre Estado e sociedade.

 

As conjunturas políticas contribuíram para conformar as relações entre o público e o privado na história das políticas para a infância no Brasil. O predomínio da ação privada e a omissão do Estado se fizeram possíveis no início da "República Velha", sob domínio do poder oligárquico/liberal, que defendia a não intervenção do Estado no social. A ditadura Vargas e o período populista nacionalista que se segue ao Estado Novo contextualizou e condicionou as políticas de controle social dos anos 30, compostas de setores assistenciais, jurídico/policiais e de saúde. O período democrático-populista do pós guerra traz as políticas clientelistas, com ênfase nas ações preventivas de doenças infantis e nas lutas pelo ensino público. As políticas repressivas contra a juventude "delinqüente", que acompanha toda a história revista, se intensificam praticamente a partir da ditadura militar dos anos 60 e 70. Neste período, o discurso de integração para a segurança nacional justificou o desenvolvimento de uma tecnologia de repressão da juventude marginalizada sob a doutrina da situação irregular.

 

A transição para a democracia foi um período de conflitos entre os setores públicos e privados em torno de propostas de políticas clientelistas e repressivas, por um lado, e descentralizadas e participativas, por outro. Atualmente a consolidação formal do Estado democrático de direito, a partir da Constituição de 1988 e do ECA, expressa um processo de democratização das políticas para a infância, através da parceria entre Estado e sociedade, a redução da atuação federal e a maior descentralização, até a municipalização das ações.

 

A intervenção sobre a pobreza, o abandono e o desamparo infantil passa historicamente, portanto, da sociedade (famílias beneméritas, igrejas, organizações caritativas) para o Estado (filantropia higienista, políticas promocionais, assistenciais, institucionalização pública fechada) e volta para a sociedade, agora numa síntese amalgamada por um sistema descentralizado e participativo representado pelos Conselhos de Direitos e Tutelares, baseados no ECA, coerente com uma nova representação de relações difusas entre público e privado.

 

A relação público/privado adquire maior importância teórica na discussão sobre o Estado social enquanto configuração de Estado que intervém de forma crescente na sociedade.

 

As políticas sociais contemporâneas são estratégias de proteção social compartilhadas entre o Estado, as iniciativas privadas, os "welfare states" locais (Carvalho 1997, p. 21) y a revalorização das micro-solidariedades, com ênfase nas minorias, cujo objeto seria algo resultante da associação entre mecanismos de redistribuição de renda e de revalorização de vínculos relacionais em diversos níveis públicos e privados. No Brasil, é fácil ver esta mescla porque as sociabilidades sócio-familiares nunca foram descartadas como estratégias de sobrevivência, frente a um Estado de Bem-estar que nunca foi suficiente. Carvalho (1997, p. 19) afirma que no Brasil nunca se formou um "Welfare State" forte. Caracteriza o processo brasileiro como de um débil Estado providência associado a uma forte sociedade providência, fluída e organizada.

 

1.2.2. O Estado social

 

O Estado social pode ser analisado a partir de dois de seus componentes fundamentais, que são seu caráter redistributivo e seu caráter interventor. Para explicar o primeiro nos apoiaremos em García Pelayo (1995) e para o segundo, principalmente em Habermas (1988 e 1998). Após uma breve descrição destas duas características, trataremos, dentro de questão da chamada crise do Estado social, a idéia de diminuição da primeira e aprofundamento da segunda. Ao final, relacionaremos este processo com a realidade brasileira atual.

 

García-Pelayo (1995, p. 30-4) situa no caráter distribuidor o próprio fundamento do Estado. Define o Estado social como

 

"la forma histórica superior de la función distribuidora que siempre ha sido una de las características esenciales del Estado",

e como um

"Estado de prestaciones que asume la responsabilidad de la distribución y redistribución de bienes y servicios económicos" (Idem, p. 35).

 

O que diferencia o Estado social do Estado de bem estar, assistencial ou providência, segundo este autor, é que o primeiro alude a uma configuração global do Estado, enquanto os demais se referem mais a uma função.

 

A partir desse caráter distributivo, pode-se definir o Estado social de direito como o que acolhe os direitos fundamentais e promove ações propositivas para os direitos econômicos, sociais e culturais, como por exemplo prestações sociais e os diversos tipos de serviços sociais. Estas ações, realizadas pelas políticas sociais, concretizam o caráter de crescente intervencionismo do Estado social.

 

O intervencionismo estatal sobre parcelas crescentes da vida social se realiza através das políticas sociais, mas se sustenta no incremento normativo. Habermas (1988, p. 511-3), explica como a juridificação do mundo, da vida, é uma forma de incremento do intervencionismo estatal, mas anterior ao Estado social. Para esse autor, o processo histórico de juridização começou com uma primeira fornada, que deu consistência à sociedade civil, com a instituição do Estado de direito pós revolução francesa, caracterizada por regulações das relações capital-trabalho. Logo vieram os processos de constitucionalização (no início, absolutistas), e de democratização da dominação burocrática. Finalmente, o desenvolvimento do Estado social no marco do Estado democrático de direitos, traz consigo um processo de juridificação garantidora de liberdade, o que constitui um paradoxo de garantia jurídica da liberdade transformada em perda de liberdade.

 

Como conseqüências do processo de juridificação Habermas (1988, p. 513) aponta a abstração da vida concreta individual e a homogeneização da sociedade civil, também destacadas por Picontó (1996, p. 78). Entretanto, há autores que chamam a atenção para um outro aspecto negativo que, aparentemente, se contradiz com a crítica de Habermas. É que as políticas sociais, como expressões do caráter distributivo e interventor do Estado social, individualizam o enfoque de problemas sociais estruturais.

 

Picontó (1996, p. 78-80) aponta, ao lado da juridificação do espaço vital espontâneo por parte do Estado social, um processo de administrativização das competências em matéria de políticas sociais, o que implica uma burocratização do tratamento dos problemas, necessidades e interesses. Além disso, a autora identifica uma cientifização dos processos de decisão administrativa, que serve de discurso legitimador das políticas intervencionistas.

Em suma, a chamada crise do Estado social, que tem como pano de fundo a onda neo-liberal, pode ser caracterizada, com base nesta breve descrição, como uma crise do seu aspecto distributivo, mas não do seu aspecto interventor. De acordo com Calvo (1998-a, p. 110):

 

"En la actualidad las normas jurídicas y las actividades de los poderes públicos que regulan sirven a fines intervencionistas muy variados y cada vez más extensos: asistenciales, redistributivos, control e integración social, estabilidad y racionalidad económica, 'juridificación' de las relaciones sociales, etc. Todo ello nos sitúa ante la tesitura de un modelo de intervención complejo, muy alejado de los anhelos de autonomía protegida y estado mínimo que caracterizaron las ideologías jurídicas imperantes en épocas pasadas".

 

Os recortes nos gastos com os direitos econômicos, sociais e culturais por parte dos Estados expressa a diminuição do caráter distributivo, ao menos de tipo mais democrático (se é que se entende aí a participação e a autonomia) deste modelo de Estado. O caráter intervencionista do Estado social não acompanha este movimento de descenso de sua cara distributivista. Logicamente, ao corte dos direitos sociais da agenda estatal, deve-se seguir um reforço de formas de controle social que garantam a legitimação de um Estado que não realiza seu lado distributivo.

 

O processo histórico de construção social da infância e as correspondentes intervenções pode ser caracterizado como coerente com a lógica do Estado em cada momento histórico, político e econômico. Por sua vez, esta lógica acompanha um movimento mais geral de desenvolvimento do pensamento ocidental contemporâneo.

 

No Brasil, o Estado se constituiu como um Estado social de fato desde a década de 30, mas sempre com uma forte ênfase na sua faceta intervencionista e assistencialista. O caráter distributivo só se manifestou como função subordinada, pontual, e não como elemento constituinte do modelo.

 

Hoje em dia, cada vez mais, o Estado brasileiro se retrai em suas funções redistributivas, através de um movimento geral de privatização. Ao mesmo tempo, convive com um ordenamento constitucional e legal que acolhe de forma importante, apesar de meramente formal, os direitos sociais.

 

Esta aparente contradição pode ser explicada pelo fato de que a Constituição Federal do Brasil é resultado de uma correlação de forças que, atualmente, segue viva através das disputas em torno da sua reforma. A reforma constitucional tem como objetivo a formalização do Estado neo-liberal, através da retirada dos direitos sociais. Neste jogo de forças, se incrementam programas estatais assistencialistas e aparentemente participativos, como para manter a aparência de preocupação do Estado com os direitos sociais. Exemplo é o programa Comunidade Solidária do governo federal, que convive com recortes importantes nos orçamentos federais para os processos de descentralização e municipalização das ações na área das políticas sociais.

 

Em resumo, no Brasil convive um ordenamento jurídico que acolhe os direitos sociais com um projeto político de desresponsabilização do Estado em relação a seu caráter redistributivo. Além disso, compõe este quadro um processo de incremento do caráter intervencionista, através da juridificação de um leque cada vez maior da situações da vida social, como por exemplo a vida familiar e comunitária. O ECA é exemplo de juridificação de parcelas importantes das relações íntimas familiares, antes menos normatizadas.

 

2.      A intervenção

 

O segundo elemento do panorama temático escolhido é o próprio conteúdo das políticas sociais, a intervenção, constituída pelas estratégias (repressão, prevenção e proteção), meios (principalmente administração e famílias) e práticas (orientadas a situações de pobreza, de violência e a vulnerabilidades e potencialidades coletivas).

 

2.1.        As estratégias

 

As principais estratégias de intervenção sobre a infância desamparada têm sido, historicamente, a repressão, a prevenção e a proteção. Apesar de que as três possam ser vistas como momentos ou expressões de um mesmo movimento de controle social, é importante destacar, ainda que muito brevemente, algumas peculiaridades de cada uma.

 

2.1.1.      Repressão

 

A repressão, enquanto estratégia de intervenção na questão da infância perigosa ou em perigo, nem sempre esteve ligada ao âmbito judicial. A diversificação de práticas repressivas de controle social da infância adquire uma importância teórica na medida em que expressa o dilema entre seu caráter penal e pedagógico. Para elucidar os termos deste dilema, trataremos de revisar brevemente as teorias e ideologias sobre as funções das penas e seus efeitos no chamado direito penal da infância. Os aparatos repressivos a serviço de estratégias punitivas do desvio eram alguns dos principais instrumentos funcionais à ideologia liberal, mas imperaram em todas as lógicas de Estado, cada vez de forma mais ampla e profunda. O castigo foi originalmente orientado a neutralizar a ação transgressora ou a prevenir novos delitos através da ameaça que ou dissuadia os potenciais transgressores, ou restaurava a confiança dos cidadãos no sistema social.

 

As teorias utilitaristas, que buscam o critério da justiça das penas na idéia de fim, podem ser classificadas em quatro modelos de autolegitimação do sistema mediante a declaração de seus fins úteis como propõe Baratta (1986, p. 82-4), quer dizer, de acordo com seu destinatário.

 

A prevenção especial, cujo alvo é o transgressor, se subdivide em negativa, quando visa sua neutralização ou positiva, quando, através do tratamento penal, visa sua reeducação e readaptação à normalidade da vida social. A prevenção geral, direcionada aos sujeitos em geral, pode ser negativa, quanto enfatiza um conteúdo dissuasivo, ou positiva, quando evidencia um conteúdo expressivo, ou seja, de restabelecimento da confiança institucional. As teorias justificadoras das penas costumam acolher mais de um destes modelos, sugerindo um esquema alternativo de classificação baseado em dois tipos fundamentais: um modelo de saber ideológico, que se apoia em funções não empiricamente demonstradas (a função de prevenção especial positiva e as de prevenção geral do esquema anterior), e um modelo de saber tecnocrático, que se apoia em funções empiricamente provadas ou prováveis (de prevenção especial negativa). Baratta (1986, p. 89-90) chama a atenção para a dupla mensagem do modelo de saber tecnocrático, quer dizer, uma mensagem tecnológica, relacionada com os mecanismos e efeitos reais da pena, e uma mensagem ideológica, que apresenta a realidade como normal, legitimando de uma só vez a repressão e o sistema social.

 

Ferrajoli (1986, p. 36) defende:

 

"la forma jurídica de la pena como técnica institucional de minimización de la reacción violenta contra la desviación socialmente intolerada".

A pena, neste sentido, tem a dupla função de prevenir injustos delitos e injustos castigos. De qualquer forma, o autor chama a atenção para o fato de que falar de função da pena - retributiva, reeducativa ou preventiva - é, hoje em dia, bastante irreal, pois

"Los sistemas punitivos modernos - gracias a sus contaminaciones policíacas y a las rupturas más o menos excepcionales de sus formas garantistas - se dirigen hacia una transformación en sistemas de control siempre más informales y siempre menos penales". (Ferrajoli 1986, p. 44).

 

Baratta (1991, p. 48-52) afirma que as funções de prevenção especial negativa e geral negativa não se demonstraram empiricamente, em termos estatísticos, eficazes, e põe em dúvida a possibilidade de alcance de sua finalidade imediata, ou seja, a tutela dos bens jurídicos e a defesa social. Critica a pena justificada pela teoria utilitarista, pois utiliza o indivíduo, instrumentalizando sua liberdade em função de algo que está longe de seus interesses ou direitos. Por outro lado, considera a teoria da pena justa como mais simbólica e mais cínica, na medida em que justifica a pena que se dirige a todos os cidadãos já fiéis à lei. O autor propõe um direito penal alternativo, que ponha

 

"una técnica rigurosa de limitación de lo que tal vez en un tiempo parecía una función útil y que hoy, cada vez más, aparece como la violencia inútil de las penas. Esto presupone un uso instrumental del derecho penal liberado de la ilusión de la instrumentalidad de la pena." (Baratta 1991, p. 55).

 

É impensável que o Estado abra mão de um dos mecanismos mais poderosos, em termos de eficácia simbólica, de controle social e de garantia de legitimidade do uso da força contra os membros da sociedade que se desviam dos parâmetros gerais de sociabilidade impostos. Mais além dos fins instrumentais, se impõe como prioritária a função simbólica da repressão sob a forma de justiça penal.

 

Calvo (1992, p. 104) diz que:

 

"El derecho penal para ser efizaz como medio de integración social, se dice, debe tener otras funciones además de las meramente retributivas o disuasorias. Mas allá de su trascendencia aflictiva individual, las sanciones penales tendrían una función simbólica importante: expresar el punto de vista del sistema social frente a los comportamientos desviados y restaurar la confianza institucional de los 'no' transgresores."

Desde um ponto de vista do sujeito penalizado judicialmente, se coloca a questão das garantias frente a um processo de crescente abertura do direito penal a novas demandas sociais relacionadas com a segurança cidadã.

 

O fato de situar-se no âmbito penal não eqüivale, necessariamente, a garantismo, principalmente porque o direito penal está passando, como todo o direito, por uma transição em direção a um "Estado de prevenção", onde a segurança dos bens jurídicos tende a prevalecer sobre a segurança da certeza do direito. O Estado preventivo é o Estado da segurança, e corresponde à sociedade de risco de que fala Beck (1998). É o Estado onde:

 

"la producción normativa y los mecanismos decisionales también tienden a reorganizarse permanentemente como respuesta a una situación de 'emergéncia estructural'." (Baratta 1991, p. 45).

 

Esta lógica implica a extensão e uma administratização do direito penal. O direito penal passa a acolher formas de controle não só das condutas, mas também da lealdade do sujeito ao ordenamento e ao Estado, como é o caso dos mecanismos de perdão a testemunhas arrependidas que delatam antigos companheiros de ações delitivas. A administrativização é concretizada, por exemplo, pela inclusão de saberes científicos e técnicos junto ao jurídico.

Transportando toda essa discussão para o âmbito da repressão aos menores, impõe-se a questão do garantismo dos modelos penais e pedagógicos de justiça juvenil.

 

A resposta mais fácil seria dizer que não precisa ser penal para ser garantista, e que se poderia aplicar todos os princípios garantistas aos modelos pedagógicos de justiça juvenil. Ou ainda que, por outro lado, o direito penal adulto, a par de toda sua técnica garantista, não abandona um importante conteúdo de pretensa atividade ressocializadora ou reeducadora. São elementos de ideologias tutelares de corte mais ou menos terapêutico no direito penal.

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente do Brasil é um exemplo de que esta resposta não é tão fácil. Em se tratando de uma legislação que tenta garantir os direitos individuais dos adolescentes em conflito com as normas, deixa em aberto lacunas por conta desse dilema entre rigor garantista e flexibilidade pedagógica. Por exemplo, a duração indeterminada das medidas sócio-educativas e as decisões judiciais com base nas condições e capacidade de cumprimento das medidas pelos jovens. A legislação espanhola já resolveu de forma mais coerente com a Convenção sobre os direitos da criança da ONU a questão da duração das medidas, estabelecendo um prazo máximo individual, dado por ocasião da decisão firme. O ECA prevê um prazo máximo de três anos, mas não determina a duração da medida individual. Quanto à capacidade de cumprimento, entendemos ser parte da questão da execução das medidas, e não de seu tipo, que se deveria relacionar mais com o delito, para não ferir os princípios de proporcionalidade e igualdade.

 

No Brasil, a repressão da infância e juventude esteve sempre à margem dos princípios garantistas, até a promulgação do ECA. Quando estava em vigor o Código de Menores, de corte tutelar, imperava a discrecionalidade absoluta do juiz de menores. A doutrina de proteção integral, que vige atualmente, traz dispositivos de intervenção que também põem em dúvida seu caráter garantista, pelo menos em alguns importantes direitos individuais.

Para compreender o dilema entre pena/garantismo e medida/discrecionalidade é necessário, ainda, fazer referência ao conteúdo substancialista nas diferentes escolas de direito penal e sua influência na justiça juvenil.

 

Na escola clássica era totalmente irrelevante para o direito penal qualquer dado relativo à personalidade do agente, pois não se atribuía à pena nenhuma função reabilitadora ou ressocializadora.

 

A chamada escola neo-clássica, dentro de um mesmo horizonte teórico, vai determinando as penas, cada vez mais, de acordo com seu valor reabilitador, o que abriu as portas para a figura dos especialistas das ciências sociais no âmbito judicial. O delinqüente, aqui, é visto como necessitado de ajuda, a qual será dada mediante restrição de liberdade, através de uma ampla margem de discrecionalidade do juiz ao ditar sentenças indeterminadas.

 

A escola positivista define o delito como um fato humano, com dimensões individual e social, e postula a necessidade de estudar o autor junto com seu meio. A determinação biológica e social do comportamento humano justifica reações defensivas, como medidas de segurança, dado o componente de risco e possível periculosidade social dos agentes. De acordo com Andrés (1986, p. 212-3), são conseqüências desta representação a perda do sentido do princípio de legalidade, a ampliação da margem de discrecionalidade do juiz e a centralidade na personalidade mais que no delito como referência básica do direito penal. O autor cita Ferri (1928), que resume os efeitos da escola positivista no âmbito do direito de menores como a adoção de:

 

"una serie de medidas defensivas, educadoras y curativas adaptadas (...) a la diversa peligrosidad y readaptabilidad social de estos sujetos conscientes, pero con voluntad no madura." (Ferri 1928 apud. Andrés 1986, p. 212).

 

A repressão à infância, a partir dos supostos teóricos firmados pela escola positivista, se expressa no direito penal de menores através de uma séria de características que Andrés (1986, p. 214-5) identifica no que chama "ideologia tutelar", que passamos a enumerar: um paradigma etiológico, que impulsiona a busca das causas imediatas e medidas que levaram o menor a cometer o fato anti-social; a representação da criança como doente, mais que como culpada a castigar; a visão de conduta reprovável como anomalia da personalidade do agente; a transgressão da fronteira entre a moral e o direito, justificada pelo fundo de perversão moral latente ou manifesto; a possibilidade e legitimidade para atuar sobre a consciência, para condicionar comportamento futuro; o caráter medicinal ou terapêutico da intervenção judicial, que fundamenta o caráter indeterminado e aberto das decisões dos tribunais tutelares de menores; e, finalmente, a não necessidade de garantias jurídicas, pois supérfluas e, inclusive, obstaculizadoras da terapia psicossocial.

 

O que é tratado no direito penal juvenil não é o ato reprovável, mas todo o indivíduo menor, sua personalidade fora da norma (Andrés 1986, p. 223-4), o que intensifica muito as conseqüências estigmatizadoras e excludentes da estada em instituições totais, principalmente na faixa etária da adolescência. As críticas ao caráter penal da justiça juvenil põe força em seu caráter pedagógico, recuperando elementos da ideologia tutelar da escola positivista. Assim é que a retórica educativista ocupa grande parte das justificativas de medidas de restrição de liberdade e, também, do caráter indeterminado em tempo e conteúdo de ditas medidas.

 

No Brasil, as legislações e políticas para a infância nunca propugnaram explicitamente pela repressão, apesar de que, na prática, todas as ações tenham sido de extrema dureza repressiva, tanto sobre as crianças perigosas como em perigo. A institucionalização de menores através da sentença de abandono, a permanência nos internatos e a prisão de adolescentes, atualmente, em entidades em tudo similares aos presídios, é prova da ineficácia instrumental das leis, em detrimento do logro dos objetivos latentes de controle social da delinqüência juvenil.

 

Aparte a normatividade, nos discursos e práticas políticas, houve um deslocamento da estratégia repressiva em direção a formas protetivas e preventivas de tratamento da questão. Na realidade, à repressão foram-se acrescentando outras formas de tratamento do delito, a par de uma transformação no discursos legitimador da própria repressão, com eufemismos provindos da pedagogia, do trabalho social, etc..

 

A ampliação de alternativas de estratégias de controle social sobre o delito acompanha o movimento mais geral apontado por Calvo (1998-b, p. 161), que demonstra a complexidade e amplitude do sistema de controle e integração social próprio da atualidade:

 

"las políticas de seguridad actuales siguen conservando, o mejor dicho, amplían los presupuestos del sistema de control tradicional, pero también avanzan considerablemente en el despliegue de nuevos instrumentos regulativos de control, positivo y negativo, vinculados a una lógica de intervención preventiva que se articula sobre definiciones difusas de situaciones de 'riesgo' para el orden social y la seguridad ciudadana".

 

2.1.2.      Prevenção

 

A prevenção pode ser vista, em princípio, como estratégia de intervenção frente à infância , em perigo, demarcando uma distinção didática em relação à repressão como estratégia de controle da infância perigosa.

 

A questão que surge de imediato ao tentarmos definir um conceito de prevenção, é que é quase impossível separá-lo de seu objeto. Em relação à infância e juventude, está quase sempre presente o binômio prevenção da delinqüência.

 

Johnson (1987, p. 13-25) identifica quatro racionalidades às que atendem os mecanismos de prevenção da delinqüência: o controle social, que visa a manutenção da ordem pública; uma racionalidade ambiental, que trata de reduzir as possibilidades de vitimização da pobreza, centrada nas características urbanísticas; uma racionalidade terapêutica, que se opõe a de controle social, visando objetivos mais humanistas; e a racionalidade comunitária, que reforça mecanismos primários de controle social e delega responsabilidades à comunidade.

A prevenção é um conceito que acolhe todo um leque de intervenções que vão desde ações no sentido de prevenir propriamente dito, passa por ações de proteção e chega à repressão em seu caráter preventivo especial positivo e geral. Daí surge uma classificação de graus de prevenção que, no caso da delinqüência, se apresenta em três níveis.

 

A prevenção primária, que se identifica com a proteção da infância em situações de risco pessoal e social, onde se dá a intervenção preventiva mais abstrata e precoce. Representa, dado seu escasso determinismo das causas da delinqüência, a forma mais intervencionista das políticas sociais para a infância, pois atua nos supostos mais distantes da concretização do ato delitivo.

 

A prevenção secundária, ainda no âmbito da proteção da infância, atinge situações de desamparo já configuradas e se justifica como ação preventiva de corte curativo, aproximando-se de uma delimitação mais apurada das causas da marginalização que levam à delinqüência.

 

A prevenção de terceiro grau constitui-se de ações sobre o indivíduo concreto ante a iminência da infração, por instâncias já judiciais, e se caracteriza por seu aspecto corretor. Costuma buscar evitar a reincidência de atos delitivos, através da dissuasão, expressando forte caráter repressivo.

 

A prevenção pode ser também classificada de acordo com o critério do objetivo, entre social, que busca atuar sobre as causas gerais, distantes do delito, e a ambiental, que atua sobre os obstáculos ao delito. A segunda costuma ser majoritária nos discursos justificadores da intervenção preventiva. A prevenção social planifica mecanismos que tendem a realizar o princípio da igualdade, enquanto a situacional visa a prevenção do delito ou da vitimização. Bernuz (1998, p. 111).

 

Podem-se sistematizar níveis de prevenção, ainda, desde um ponto de vista da proteção, desde a prevenção primária, que atua sobre o meio da criança e da família, até a quaternária, que incide diretamente sobre a criança em termos de separação da família de origem, passando por níveis intermediários de atenção à criança em seu meio social próximo. Esta sistematização é acolhida pela legislação espanhola, e confirma teorias que relacionam os níveis de prevenção a estratégias de controle sobre a delinqüência juvenil. Definitivamente, a prevenção se confunde com a proteção na medida em que se aproxima da criança em si, como indivíduo portador de direitos, mais especificamente, em situação de risco que justifique a intervenção (Picontó, 1996).

 

A comunidade costuma ser invocada como partícipe das estratégias preventivas da delinqüência juvenil, a partir de demandas de segurança cidadã e de apelos humanísticos ou solidários. As críticas que se podem fazer a esta aliança entre comunidade e Estado em torno do controle social da infância vão desde a inoperância prática até argumentos éticos e políticos relacionados com o processo de privatização da justiça, expansão da intervenção pública mediatizada pela própria sociedade e, é claro, incremento quantitativo e qualitativo de intervenção sobre toda a população.

 

A prevenção pode ser associada à noção de "risco" que, por sua vez, oportuniza e legitima as práticas que dão corpo a esta estratégia de intervenção. A idéia de risco informa, por exemplo, a legislação espanhola de proteção de menores, que acolhe em seu artigo 17 da Lei Orgânica 1/96 de 15 de janeiro, de Proteção Jurídica do Menor, a noção de situações de risco como supostos de intervenção em casos de desproteção da criança. Este conceito de risco também aparece nas legislações das comunidades autônomas competentes nessa matéria, dando lugar a uma possibilidade maior de intervenção, dada sua amplitude e ambigüidade ainda maior que do conceito de "desamparo".

 

A utilização do conceito de risco supõe alguns problemas que se fazem necessário analisar, ainda que brevemente. O risco é uma categoria que comporta uma série de significados, de acordo com o contexto a que se refere ou com o ponto de vista do investigador social. Bernuz (1998, p. 41-50) faz um resumo das diferentes perspectivas do conceito. Desde uma perspectiva objetivista, pode ser definido como uma propriedade ou característica de algo, ou como resultado de um conjunto de dados gerais ou fatores causais. As respostas que se costumam dar são políticas de gestão, com base em cálculos de probabilidades, traduzidas em medidas preventivas, independente da concretização do risco ou não. Desde um ponto de vista subjetivista, é um conceito construído social ou culturalmente, a partir da percepção do perigo. As respostas adequadas, de acordo com este ponto de vista, são as políticas voltadas para os riscos escolhidos para se prevenir, conforme as circunstâncias ou valores a potencializar.

 

Entre as duas perspectivas, pode-se ver o risco como composto de duas variáveis: o perigo real e a construção ou seleção política do mesmo, cuja intensificação ou redução resultam de processos de comunicação. De acordo com este ponto de vista, os riscos realmente existem, mas se podem realçar uns ou outros, conforme interesses políticos, morais ou religiosos.

 

Beck (1998), por sua vez, sustenta que:

 

 las causas de los riesgos son acuerdos sociales, pues el riesgo presupone incerteza y, por lo tanto, incerteza sobre sus conexiones causales y sus múltiplos factores.

 

O risco supõe sempre uma possibilidade futura ou uma referência ao passado. Como o momento presente, é uma abstração, algo construído racionalmente, que na realidade nunca ocorre, pois ao chegar imediatamente se torna passado. Pois o risco, ao se realizar, já não é mais risco, mas o fato mesmo. Portanto, é óbvio que qualquer intervenção sobre a realidade será sempre ou preventiva (em função de algo que poderá ocorrer) ou curativa (atuará sobre os efeitos do passado). O risco como estratégia para controlar o futuro encontra, por sua vez, as probabilidades como ferramentas para fazer o nexo entre as duas pontas desta construção racional. Para cada situação, há várias alternativas de continuidade, portanto há várias possibilidades de decisão para evitar o risco de que ocorram fatos indesejáveis ou para reforçar os desejáveis. Quanto mais abertas as perspectivas ou possibilidades de explicações causais, menos deterministas e mais amplamente intervencionistas serão as respostas aos riscos. Por outro lado, quanto mais fechadas as explicações causais, mais determinista é a perspectiva e, portanto, a intervenção será mais pontual e não tanto capilar.

As contrafaces da sociedade, frente aos riscos, olham para o Estado, com suas políticas preventivas e para si mesma, como sociedade ou individualista ou solidária, com suas estratégias de sobrevivência diante de um Estado impotente, omisso ou interessado na produção e reprodução do risco.

 

Os conceitos indeterminados a partir dos quais se articula a prevenção dão grande margem de flexibilidade para as políticas sociais em cada contexto e momento concreto.

 

O conceito de prevenção, associado ao de risco, embasa e legitima as políticas de extensão e aprofundamento da intervenção cada vez mais capilar do Estado no tecido social. Associada à previsão da delinqüência, implicou historicamente uma generalização da psiquiatria, que passou a introduzir seus princípios e métodos de diagnóstico, prevenção e internação, principalmente sobre os vagabundos e, em decorrência, sobre as crianças (Bernuz 1998, p. 128-31).

 

2.1.3.      Proteção

 

A proteção é uma estratégia de tratamento da infância desamparada, que inclui aspectos repressivos e preventivos. Enquanto repressão, atua sobre o comportamento, independentemente da existência de delito, e sobre as famílias, para que se adeqüem aos padrões de normalidade que se estabelecem como metas da proteção. Enquanto prevenção, funciona antecipando riscos de males maiores, protegendo a criança de seu ambiente hostil.

O reconhecimento da necessidade de prestar proteção especial às crianças tem suas bases no ordenamento jurídico internacional desde a Convenção de Genebra de 1924, que determinava:

 

"la necessidad de proporcionar al niño una proteción especial",

e na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948, quando apelava ao

"derecho a cuidados y asistencia especiales".

 

No mesmo sentido, a Convenção americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de São José, 1969), define que:

 

"todo niño tiene derecho a las medidas de protección que en su condición de menor requiere, por parte de la família, de la sociedad y del Estado".

 

A proteção integral tem suas bases mais próximas na Convenção Sobre os Direitos da Criança de 1989, que é parte do ordenamento jurídico brasileiro (Silva, 1996, p. 12).

 

Picontó (1996, p. 191-2) destaca dois valores político-sociais que um Estado que assinou a Convenção sobre os direitos da criança de 1989 deve realizar. Em primeiro lugar, deve regular os espaços de necessidade econômica ou terapêutica das famílias, e em segundo, desenvolver o princípio da proteção integral da criança. O grau de intervencionismo que isso supõe pode variar conforme os interesses e a violência com que atuam os operadores jurídicos e sociais. Ao sistema estatal compete compatibilizar o princípio de autonomia com a correta socialização das famílias.

 

O conceito de proteção costuma ser utilizado de forma ora mais, ora menos, geral, desde medidas amplas dirigidas a todas as crianças e adolescentes, até medidas mais concretas de substituição familiar.

 

Ao criticar o conteúdo repressivo ou intervencionista da proteção, o que fazemos não é criticar a estratégia em si, pois seria absurdo prescindir de qualquer intervenção para proteger a infância em perigo. O que queremos é explicitar seus limites e possibilidades, levando em conta as condições de vulnerabilidade em que podem viver ou estar as crianças que não estão no pleno gozo de seus direitos.

 

A proteção sempre supõe uma desigualdade de condições entre protetor e protegido. Esta desigualdade se reforça a partir da ideologia da incapacidade ou se tenta superar a partir de uma racionalidade que se pode chamar de autonomia, sem que se prescinda das ações necessárias para sanar a violação de direitos. Ao apoiar-se na ideologia da incapacidade, a proteção incorre na violação do direito à autonomia ou auto-determinação.

 

A incapacidade infantil se expressa, às vezes, através do conceito de discernimento associado à idade, como um critério para restrição de direitos. A este conceito se pode contrapor a noção de plena realização do potencial da criança, como critério para o alargamento máximo das possibilidades de exercício de direitos. O primeiro justifica medidas de proteção tutelar, enquanto o segundo justifica medidas de facilitação e de incentivo à autonomia.

 

A capacidade de discernimento como critério para definir medidas de proteção pode, entretanto, se utilizada com base no paradigma do interesse superior da criança, contribuir para o respeito aos direitos das crianças menores, dotadas de uma racionalidade e afetividade específicas e de formas de expressão nem sempre inteligíveis para os adultos. Tanto a representação de criança como despossuída de racionalidade como de adulto como proprietário deste atributo se desmancham no ar na medida em que se considera, por um lado, a especificidade da racionalidade infantil e, por outro, a relatividade da racionalidade adulta.

 

A criança, como agente social, é ao mesmo tempo receptor e produtor de conceitos, valores e práticas que, em conjunto, formam uma racionalidade específica que lhe constitui como pessoa em desenvolvimento. O adulto, nessa perspectiva, também recebe e produz elementos de sua própria trajetória social. Assim, ambos são agentes em estágios diferentes de desenvolvimento, diferenciados genericamente por especificidades decorrentes e estruturantes de diferentes posições e momentos num mesmo processo de convivência e de crescimento. Isso dilui significativamente a ideologia da incapacidade infantil (da qual decorre o paradigma da proteção tutelar) e da onipotência adulta (que fundamenta atitudes tanto autoritárias como paternalistas).

 

No outro extremo da ideologia da incapacidade infantil está a noção de criança adulta, que informa medidas responsabilizadoras que vão além da capacidade da criança de suportar situações difíceis. É uma distorção da noção de autonomia, e alimenta iniciativas no sentido de redução da idade para a imputabilidade penal.

 

Em qualquer caso, os discursos de corte terapêutico e pedagógico estão presentes como justificadores da intervenção protetiva. O primeiro, com ênfase no tratamento da personalidade ou da conduta, atualiza a noção de criança doente e pode legitimar tanto ações de apoio psicológico, como em situações de maus tratos, até limites (não raros) como medicalização de comportamentos rebeldes. O segundo, expressa tanto o conteúdo central das medidas de proteção (e de sócio-educação) que já há autores que lhe chamam "obseción educativa" (Rangugni, 1998, p. 184). Os limites desta obsessão refletem a idéia de potencial transformador da educação em relação à vida da criança protegida e, consequentemente, de toda a sociedade.

 

Não é de estranhar a relação íntima entre a proteção e o discurso educativista,  pois a própria estratégia protetiva de intervenção teve sua origem no período histórico em que coincide com a invenção da escola, e foi direcionada às crianças que não se adaptaram a esta forma de socialização, via educação formal. García Méndez (1994, p. 16) resume esta afirmativa:

 

"Se o século XVIII 'descobre' a escola como o lugar de produção da ordem e homogenização da categoria criança, o século XIX se encarrega da tarefa de conceber e por em prática os mecanismos que recolhem e 'protegem' aquelas que foram expulsas ou não tiveram acesso ao sistema escolar".

 

Tanto o discurso terapêutico quanto o pedagógico podem reduzir o potencial autonomista da proteção mas, por outro lado, podem informar práticas garantistas do princípio de autonomia. A chave da legitimidade da proteção enquanto estratégia interventiva na infância desamparada é a representação de criança sujeito de direitos em situação de ameaça ou violação, incluído aí o direito a desenvolver plenamente sua autonomia.

 

2.2.        Os meios

 

As estratégias de intervenção acima descritas se concretizam através de movimentos que articulam os agentes (protegidos e protetores) em alianças, compromissos ou conflitos, que se podem caracterizar como meios, num sentido que englobe tanto a noção de métodos como a de intermediários.

 

A administração e a família são os principais intermediários entre o Estado e a criança desamparada, enquanto a sociedade se aproxima através de ONGs e formas próprias de organizações locais, principalmente de tipo religioso.

 

2.2.1.      A administração

 

Calvo (1999, p. 57) atribui à lógica promocional dos direitos das crianças o deslocamento da intervenção nesse campo, desde a órbita judicial até a órbita da administração. Afirma que:

 

"la intervención activa de los poderes públicos con el fin de asegurar la realización efectiva de los derechos y el bienestar del menor va a producir un claro desplazamiento en la dinámica jurídica, desde la articulación de garantías judiciales y pseudojudiciales hacia la utilización del derecho para la realización de programas y políticas públicas."

 

Picontó (1996) vê outro motivo para este processo de mediação crescente entre o poder jurídico e a sociedade, via administração. Afirma que o Estado busca, cada vez mais, um controle indireto da população, em cuja estratégia os operadores sociais são os mediadores. Sua função, nessa visão, seria dar uma aparência de relação pessoal, humanista, a uma relação profissional e repressora. A justiça muda de ritual, sua referência cultural se deixa contagiar pela linguagem social das ciências humanas. Se introduz um tipo de justiça mais flexível. Assim, o principal meio de intervenção na infância desamparada é a administração pública.

 

O processo de desjudicialização das primeiras etapas da proteção da infância desamparada, que no Brasil se dá através da atuação do organismo não jurisdicional que é o Conselho Tutelar, supõe um processo simultâneo de administrativização destas mesmas etapas. Isso traz como conseqüências principais a ampliação do espaço de atuação dos especialistas sociais (que implica também numa cientifização do processo) e a ampliação da margem de discrecionalidade destes aparatos administrativos de intervenção. A presença dos especialistas se vê necessária para preencher de conteúdo os conceitos indeterminados que costumam incluir as normas próprias do direito regulativo, como, no caso da infância, é o desamparo, a situação de risco, ameaça, conduta, etc..

 

O processo de administrativização não é incoerente com a chamada juridificação das relações sociais a que se refere Habermas (1988), pois toda ação administrativa tem suas linhas reguladas juridicamente. Picontó (1996, p. 238-9) utiliza o termo para designar a transmissão dos poderes do juiz da infância, antes muito mais amplas, para a esfera administrativa, e explica que somente a execução é de responsabilidade dos operadores sociais. Entretanto, na legislação brasileira, mais que a execução é atribuída aos Conselhos Tutelares, o que tem efeitos contraditórios em termos do garantismo jurídico.

 

Alguns dos principais problemas que se podem apontar em relação ao protagonismo da administração pública na intervenção junto à infância desamparada são também tratados por Picontó (1996, p. 338-67): burocracia excessiva, demoras em decisões que demandam urgência, conflitos interinstitucionais, carência de meios para implementação de medidas, indecisões ou decisões tomadas com base em racionalidades alheias ao interesse superior da criança, formalismo e insensibilidade do direito em relação às situações que demandam proteção às crianças ou às famílias, etc.. A autora chama a atenção especialmente para o perigo de arbitrariedade e de ineficácia no uso da discrecionalidade que pressupõe a tarefa dos especialistas, e propõe regular procedimentos e garantias, mas deixando em aberto a resolução para critérios técnicos e para as circunstâncias caso a caso. A discrecionalidade de decisão leva à discrecionalidade de ação. Se impõe a necessidade de um controle judicial sobre a discrecionalidade administrativa para evitar o arbítrio, abusos, etc. A autora identifica, ainda, como riscos da administrativização do processo de proteção da criança, a dependência dos estados de emergência social, mudanças nos cargos políticos, preferência pessoais de quem decide, influência dos meios de comunicação de massa e falta de planificação política global. A administração baseia suas decisões numa racionalidade científica, o que supõe uma abertura às ciências sociais, e numa racionalidade política, que pressupõe a busca de um consenso em grupos sociais próximos ou resistentes.

 

2.2.2.      A família

 

Em termos gerais, a família pode ser considerada ao mesmo tempo como alvo e meio da intervenção pública e privada em relação à infância desamparada. Como alvo, já examinamos em item anterior deste estudo. Como meio, se caracteriza por representar um elo entre a criança, a sociedade e o Estado.

 

A família passou, historicamente, de alvo próprio de intervenção, antes da infância ser descoberta enquanto questão social, para mero meio de chegar à criança, tanto como intermediária quanto como vítima, ou como responsável pela sua situação, para outra vez voltar a um lugar central nas preocupações com a infância desamparada.

 

Apesar de a família ter sido sempre encarregada de assumir uma atitude mediadora entre o indivíduo e a sociedade, promovendo a proteção de seus membros mais vulneráveis, as questões familiares não foram sempre componentes da questão social. Uma razão para esta alienação pode ser que o Estado e, mais concretamente, o Estado social, historicamente, se construiu a partir da noção de indivíduos portadores de direitos como seu elemento central, usuários de políticas individualizadoras e fragmentadas, de acordo com suas demandas individuais (Carvalho, 1998, p. 94). A decadência do Estado social, com a crise das condições estruturais que lhe davam sustentação, contribuiu para o que algum autor chama "regresso al familismo", que sustenta propostas de responsabilizar a família por encargos antes já assumidos como despesas públicas.

 

De acordo com Picontó (1996, p. 202), a intervenção familiar se move entre dois pólos opostos: de um lado, privilegiar totalmente a família (familiarismo) e, de outro, neutralizá-la. Os riscos de um novo familismo seria o de encarregar a família com responsabilidades que talvez não possa suportar, além de reproduzir de forma ainda mais acentuada as desigualdades sociais. Os risco de novas desigualdades é óbvio, mediante a exclusão das decisões das pessoas menos aptas para intervir e com menos condições para investir na reciprocidade.

 

Encarar a família como elemento híbrido entre público e privado propicia novas propostas de políticas públicas que formam o que já se chama de modelo "welfare mix". Este modelo articula recursos do Estado com os do mercado, de parentes ou amigos, de instituições privadas com ou sem fins lucrativos, mediante experiências sociais baseadas na solidariedade. É claro que o mercado não segue esta lógica, sendo por isso um obstáculo real à chamada economia solidária. Outro possível limite seria o das condições das famílias para suportar tais encargos.

 

A solidariedade familiar só seria sustentável através da complementariedade com equipamentos coletivos como suporte, formando uma rede de solidariedade privada com a pública. Assim, a família poderia assumir o papel de proteção contra os problemas sociais e as dificuldades econômicas que a sociedade contemporânea impõe, ao largo de todo o ciclo de vida de seus membros (desde a infância até a velhice, incluindo situações de risco intermediárias como separações, desemprego, problemas de saúde, etc.).

 

À falta de um dos principais elementos de integração social que representa o mercado de trabalho formal, a família surge como espaço de relações sociais que propiciam inserção e proteção contra os riscos de exclusão social. Dentre as diversas opções políticas de enfrentamento do risco contemporâneo de ausência de trabalho para todos, como precarização do trabalho, redução das jornadas, substituição do pleno emprego pela plena atividade, se situam as ações de reforço das sociabilidades sócio-familiares como forma de alcançar maior inclusão social. A crítica que se faz é que estas políticas, por sua vez, incorrem no risco de produzir um fechamento do indivíduo na esfera privada, que não necessariamente importa uma inclusão social.

 

Por outro lado, a divisão entre as representações de criança e menor segue condicionando um afastamento da família frente às estratégias de políticas públicas para a infância. Os meninos e meninas nas ruas, por exemplo, costumam ser abordados longe de suas famílias, em seu próprio espaço de convivência. Os repetentes, ausentes ou incompetentes na escola, são protegidos através de articulações com professores e centros psicológicos ou psicopedagógicos. Os maltratados são procurados nos hospitais, através de alianças entre setores de atenção à saúde. Os infratores, entram na esfera de proteção e repressão através de aparatos policiais e judiciais. Na prática, a família tem sido, até hoje, meio para localizar a criança, mais que para participar em seu processo de autonomização.

 

Tanto a administração quanto a família se constituem, assim, como meios e intermediários com as crianças desamparadas, e atuam através de práticas que concretizam as estratégias de intervenção.

 

2.3.        As práticas

 

A intervenção se traduz em práticas concretas, atividades que põem, cara à cara, protegidos e protetores, mediante as quais se realizam as estratégias de enfrentamento da questão da infância desamparada.

 

Propomos uma enumeração das práticas com base numa classificação bem geral, a partir do critério da orientação ao objetivo, independente da estratégia em que se inscreve e dependente do tipo de protegido a que se destina. Não é demais esclarecer que todas as práticas são, em maior ou menor grau, parte de todas as estratégias de intervenção e, principalmente, são contemporâneas entre si, formando um quadro de atividades que, aparentemente, gira em torno a objetivos díspares mas que têm em comum o fato de se constituirem em ações concretas, que unem as pontas soltas entre protetores e protegidos, de forma mais ou menos organizada, planejada, normatizada e controlada.

 

Além disso, costumam ser viabilizadas através de atividades mais ou menos profissionais ou técnicas de apoio, tais como entrevistas, pesquisas sociais, (que servem tanto para informar estratégias como para justificá-las), estudos sociais de casos específicos, laudos dos especialistas, exames, diagnósticos, fiscalização de entidades de atendimento, visitas domiciliares, controle de locais de risco para a infância, etc..

 

A partir deste enfoque, classificamos as práticas em três tipos básicos: orientadas a intervir em situações de pobreza, orientadas a intervir em situações de violência e orientadas a vulnerabilidades e potencialidades coletivas. As práticas assistenciais seriam as que se referem à questão da pobreza e exclusão social. As protetivas, seriam mais relacionadas com a questão da violência ou violação de direitos. As últimas diriam respeito à promoção de condições objetivas e subjetivas de exercício destes direitos. Todas seriam concretizadas através de atividades de apoio, que adquirem um status importante na medida em que se constituem em acesso privilegiado entre assistentes e assistidos ou protetores e protegidos, ou  melhor dito, em importante elo de dominação com base no saber.

 

2.3.1.      Práticas orientadas a situações de pobreza

 

Essas práticas se caracterizam por seu forte componente assistencial, e podem ser descritas em três grandes grupos, cada qual com, pelo menos, duas variáveis diferenciadoras: a caridade, a filantropia e a assistência social.

 

A caridade tradicional é uma prática que se concretiza dentro da esfera privada. O altruísmo (religioso ou laico) é seu fundamento básico, e o reforço e legitimação da desigualdade (tanto a interindividual como a estrutural) é sua principal conseqüência negativa. Hoje em dia, costuma ser justificada através do discurso da solidariedade, atualizando atividades individuais (esmola) ou coletivas (campanhas de doações) de atenção aos pobres. Um dos principais apelos éticos que impulsionam essa prática é a figura da criança pobre, mas um dos principais limites é seu caráter pontual, muito mais determinado pela disposição do caridosos que pela necessidade do beneficiário. A caridade moderna é tudo isto, mas mediatizada institucionalmente e, o que é mais importante, associada à noção de contrapartida, através da figura da poupança e controlada pela tutela fechada sobre o comportamento de seus beneficiários. Para isso, tende a ser mais contínua e contém um componente mais sistemático de controle. A caridade nunca visa solucionar as causas da pobreza, e sim os efeitos imediatos de uma situação concreta.

 

A filantropia segue a mesma linha da caridade, mas amplia seu espectro de atuação para além da situação concreta mais evidente, olhando adiante com um olho na qualidade de vida e desenvolvimento das crianças em seu ambiente familiar e comunitário, de forma mais integral. Em sua faceta assistencial, a filantropia assume uma postura mais controladora e tutelar dos comportamentos das famílias assistidas, e em sua faceta higienista, utiliza ajudas materiais com fins preventivos relacionados com a saúde pública. Em qualquer caso, costuma ser organizada e fortemente incentivada pelo Estado, mediante programas oficiais de atendimento a famílias pobre e a crianças desamparadas.

 

A assistência social propriamente dita, é uma prática profissional, que utiliza técnicas de aproximação às famílias e às crianças para concretizar diferentes objetivos relacionados tanto com as necessidades básicas como com as relações sociais, especialmente marcadas por situações de conflito. Aqui não se trata da disposição dos caridosos nem das boas intenções dos filantropos, mas sim dos critérios técnicos estipulados cientificamente por profissionais, tendo em vista a superação das condições causadoras imediatas e mediatas das situações que demandaram assistência. O fato de ser profissional não evita a possibilidade de se concretizar como prática tutelar, assimétrica, controladora e assistemática,  pois depende em grande medida de critérios políticos que lhes informam as grandes linhas de atuação, assim como das posturas profissionais de cada assistente social individual ou em equipe. Em sua faceta tradicional, a assistência social enfatiza o individual (plantões de emergência e casos continuados), os grupos (terapêuticos, operativos e voltados para ação social) e o desenvolvimento de comunidade como grandes eixos programáticos, aplicáveis em qualquer campo de atuação como hospitais, escolas, instituições de atenção à criança, fábricas, postos de saúde, etc., e se estrutura basicamente em fases de estudo, diagnóstico e tratamento de casos sociais. Reconceitualizada, a assistência social se apresenta como uma prática de atendimento de direitos econômicos, sociais e culturais com ênfase na autonomia dos usuários enquanto cidadãos e sujeitos de direitos. A reconceitualização da assistência social se limita, como diz o termo, a uma reformulação conceitual, ainda em busca de reformulação prática. Assim, seguem predominantes as mesmas práticas, mas fundamentadas em novos discursos e, melhor, numa nova racionalidade a partir de novas representações de pobreza, necessidades, conflitos e direitos. As possibilidades destas novas práticas assistenciais estão, em grande parte, na capacidade dos profissionais para abrir caminhos dentro dos jogos de força que se configuram entre velhas e novas representações que convivem de forma contraditória.

 

2.3.2.      Práticas orientadas a situações de violência

 

São aquelas que se dirigem a situações de violação de direitos ou violência que extrapolam a questão da pobreza. Se caracterizam como terapêuticas, protetoras em sentido estrito (medidas de proteção específicas) e sócio-educativas, conforme se dirigem, respectivamente, a crianças fisica ou emocionalmetne traumatizados, desamparados ou em conflito com as normas jurídicas. Todas, na realidade, podem andar juntas ou separadas, conforme o caso específico de violação de direito que se apresenta.

 

As práticas terapêuticas são aquelas que visam atender diretamente às situações ou seqüelas de violação de direitos, como por exemplo acompanhamento pedagógico a crianças com dificuldades escolares, tratamentos médicos ou psiquiátricos a crianças mal tratadas ou violadas sexualmente, usuários de drogas, ou portadores de deficiência física, emocional ou de sofrimento psíquico que não tiveram oportunidade de desenvolver integralmente suas potencialidades.

 

As práticas protetoras em sentido estrito são a realização das medidas de proteção previstas legalmente, dirigidas a crianças em situação de ameaça ou violação de direitos, que aqui chamamos desamparadas. Nelas se incluem, é claro, ações assistenciais e terapêuticas, assim como técnicas de apoio desenvolvidas por especialistas sociais, mas consistem basicamente na execução de determinações administrativas ou judiciais em função de problemas familiares como abandono, maus tratos, e em soluções como guarda, tutela, abrigo ou adoção.

 

As práticas sócio-educativas também estão normatizadas especificamente, e se caracterizam por seu discurso pedagógico legitimador de sua realidade sancionadora. Nelas, o adolescente se coloca cara à cara com os aparatos institucionalizados de reprovação social ao delito juvenil, enquanto se expõe a um tratamento de sua personalidade que visa a reforma de seu comportamento social. Proteção e sócio-educação são as práticas de intervenção mais diretas, mais intrusivas na vida das crianças em perigo ou perigosas.

 

2.3.3.      Práticas orientadas a vulnerabilidades e potencialidades coletivas

 

O terceiro tipo de práticas que compõe nossa proposta de classificação são as que visam atingir grande parte da população em risco ou em situação de vulnerabilidade física, emocional ou social. Visam tanto potenciar suas possibilidades de autonomia quanto garantir recursos para o exercício dos direitos sociais, através do atendimento de necessidades e da formação de agentes.

 

Estas práticas estão de acordo com as grandes diretrizes e metas estipuladas por organismos internacionais para o alcance de um nível de qualidade de vida para as crianças e adolescentes compatível com os documentos declarativos e convênios firmados.

 

O principal instrumento internacional de referência para esse tipo de prática é a Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento da Criança nos anos 90 e o Plano de Ação para sua Implementação.

 

Calvo (1999, p. 59) salienta os três níveis de ação que integram este documento: internacional, governamental e da sociedade em geral, incluindo desde a família até os meios de difusão de informações. As metas estipuladas dizem respeito à sobrevivência, desenvolvimento e proteção da criança, à saúde e educação da mulher, à nutrição e saúde infantil, à educação básica e a situações especialmente difíceis para as crianças. De acordo com este autor, a importância deste documento está no fato de haver fixado objetivos realistas e articulado parâmetros específicos para sua medição.

 

Fernández Sola (1994, p. 44) chama a atenção para a Declaração de Lima, onde se afirma as dificuldades de implementação da Convenção sobre os direitos da criança, devido às rigorosas políticas nacionais de ajuste econômico, ao aumento da pobreza e à falta de vontade política concreta e efetiva dos governos para cumprir os compromissos assumidos.

Apesar destas dificuldades, presentes no Brasil até hoje, podemos mencionar algumas iniciativas para assegurar direitos positivados na Constituição e no ECA. Acompanhamento pré natal, vacinação em massa, controle de peso e altura da população infantil, programas de conscientização sobre gravidez na adolescência, violência no trânsito, uso de drogas na juventude, campanhas de divulgação do ECA nas escolas são exemplos desse tipo de ações, levadas a cabo por organismos governamentais e não governamentais de defesa dos direitos das crianças e adolescentes.

 

Em resumo, neste capítulo tentamos identificar alguns elementos conceituais que sustentam teoricamente as políticas sociais para a infância, a partir de um recorrido histórico e conectado com a realidade atual. Enfocamos as políticas para a infância como relações sociais entre protetores e protegidos, que se realizam através de estratégias (repressão, proteção e prevenção) que se instalam mediante meios (principalmente a administração e as famílias), concretizando-se em práticas sobre a pobreza, a violência e outras vulnerabilidades sociais que contextualizam a infância desamparada no Brasil. Todas essas estratégias e práticas, é claro, pressupõem objetivos contraditórios entre a realização dos direitos e o controle social sobre a infância.

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO III

Análise sócio-jurídica do Estatuto da Criança e do Adolescente

1.      Contexto político da análise

 

Desde antes de sua entrada em vigor, o ECA concentra interesses contraditórios e, quase sempre, antagônicos que se expressam de forma ora mais, ora menos, visíveis no processo de implementação.

 

Para além dos debates políticos, mas coerente com a totalidade da luta ideológica sobre a nova normativa e suas conseqüências, os trabalhos científicos atuais situam-se em torno a duas grandes tendências: os críticos ao ECA, que ressaltam seus problemas de forma mais ou menos global ou pontual, e os defensores, que comentam e reforçam seu caráter inovador, garantista e participativo.

 

A literatura sobre o ECA informa sobre alguns elementos que impulsionam ou obstam sua implementação. De um lado, as forças político-sociais representadas por segmentos profissionais, técnicos e políticos que defendem e tentam levar a lei à prática. De outro, segmentos sociais que expressam e reproduzem o paradigma anterior ao ECA, da situação irregular como suposto de intervenção tutelar e repressiva. Este último setor vem alimentado por alguns meios de comunicação de massa que, por sua vez, expressam posições contrárias aos direitos humanos no Brasil.

 

O ECA ampliou o leque da tutela do Estado para todas as pessoas em idade de desenvolvimento físico e emocional. Duas importantes conseqüências vêm com este novo paradigma: em primeiro lugar, o protagonismo do Poder Judiciário nas políticas de assistência à criança deu lugar a uma divisão de responsabilidades entre o Estado e a sociedade, através dos Conselhos de Direitos e dos Conselhos Tutelares. Em segundo lugar, o estigma da criança desamparada, em perigo ou perigosa tende a dar lugar a um reconhecimento de toda criança como sujeito de direitos, independentemente de sua situação pessoal e social.

 

A correlação de forças na sociedade brasileira atual demanda uma postura política de fortalecimento incondicional do texto legal, contra toda forma de resistência e ataques provindos do conservadorismo mais ou menos esclarecido. Está claro o perigo de retrocesso numa conjuntura instável como costuma ser o cenário político e legislativo no Brasil. O rebaixamento da idade mínima para a imputabilidade penal de 18 para 16 anos é, atualmente, uma bandeira disputada por todos os segmentos conservadores e contrários aos direitos humanos de adolescentes em conflito com a lei.

 

Cada artigo e a totalidade do ECA têm sido sistematicamente questionados por juristas, técnicos e políticos, com o intuito de retroceder à antiga doutrina da situação irregular. Por outro lado, há uma espécie de pacto implícito entre profissionais, técnicos, políticos, ONGs, militantes de defesa dos direitos humanos, etc., de não enfrentar as debilidades, ambigüidades ou lacunas do ECA, com o objetivo de não vulnerar a própria existência da lei e de não apresentar entraves à sua implementação.

 

A esta postura conjunturalmente correta, seria oportuno acrescentar uma postura cientificamente crítica, ou seja, que levante e enfrente dúvidas e busque respostas a partir da referência da defesa dos direitos humanos das crianças e adolescentes. Em tal panorama, situamos uma proposta de estudo crítico do ECA dentro do marco da Convenção Sobre os Direitos da Criança da ONU e da Constituição Federativa do Brasil.

 

2. Luzes e sombras do ECA

2.1.  Mudanças no ordenamento jurídico e institucional

 

O ECA expressa mudanças importantes em termos conceituais, metodológicos e políticos em relação ao ordenamento anterior. Costa (1994, p. 140 e seg.) aponta três tipos de inovação na política de promoção e defesa de direitos a partir da nova lei da infância. Uma mudança de conteúdo, proveniente das fontes internacionais de direitos da criança; uma mudança de método, caracterizada principalmente pela substituição do assistencialismo pela sócio-educação e da discrecionalidade da doutrina da situação irregular pela concepção garantista; e uma mudança de gestão, que implica na descentralização das ações e requer a participação popular.

 

A mudança de conteúdo vem inspirada pelas fontes internacionais de direitos da criança e do adolescente. Apesar da Constituição Brasileira ser anterior à Convenção sobre os direitos da criança da ONU, já contém, no artigo 227, um resumo do texto internacional, que se desdobra nos 267 artigos do ECA .

 

O ECA atende, também, os principais itens de diversas Declarações e Convenções da ONU sobre o tema: A Convenção Sobre os Direitos da Criança; As Regras Mínimas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing); as Regras Mínimas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade; as Diretrizes para a Prevenção da Delinqüência Juvenil (Diretrizes de Riad); a Declaração Mundial Sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento da Criança e Plano de Ação para sua implementação .

 

Do conjunto de documentos internacionais que inspiraram a elaboração do ECA, destacam-se a Convenção Sobre os Direitos da Criança e as Regras de Beijing.

 

García Méndez (1994, p. 74-5) sistematiza num quadro (III.1.) uma comparação entre as disposições normativas da Convenção sobre os direitos da criança, as Regras de Beijing e o ECA, destacando coincidências nos textos legais nos seguintes princípios jurídicos básicos substanciais e processuais: humanidade, legalidade, jurisdicionalidade, contraditório, inviolabilidade da defesa, impugnação, legalidade do procedimento e publicidade do processo.

 

Quadro III.1. Princípios jurídicos básicos substanciais e processuais na Convenção Sobre os Direitos da Criança da ONU, nas Regras de Beijing e no ECA

PRINCÍPIOS JURÍDICOS BÁSICOS SUBSTANCIAIS E PROCESSUAIS

CONVENÇÃO

REGRAS DE BEIJING

ECA

PRINCÍPIO DE HUMANIDADE: Baseia-se no princípio da responsabilidade social do Estado e na obrigação de assistência para o processo de ressocialização. Deriva-se daqui a proibição de penas cruéis e degradantes.

Art. 37 incisos a e c

Art. 1 1.4.

Arts.15, 16, 17, 18, 126

PRINCÍPIO DE LEGALIDADE: Traduzida na proibição de existência de delito e pena sem a pré-existência de lei anterior (nullum crimen, nulla poena sine lege)

Art. 37 inciso b

Art. 40 inciso 2.a

Art. 2 2.2.b

Art. 17, 17 1.b

Arts.110, 108, 103

PRINCÍPIO DE JURISDICIONALIDADE: Pressupõe a existência dos requisitos essenciais da jurisdição: juiz natural, independência e imparcialidade do órgão.

Art. 37 inciso d

Art. 40 incisos 2.III, 2, 3.b

Art. 14, 14.1

Art. 111

PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO: Pressupõe uma clara definição dos papéis processuais (Juiz, defensor, Ministério Público)

Art. 40 incisos 2.b.II, 2.b.III, 2.b.IV e 2.b VI

Art. 7, 7.1

Arts. 110 e 111

PRINCÍPIO DA INVIOLABILIDADE DA DEFESA: Pressupõe a presença de defensor técnico em todos os atos processuais desde o momento em que se imputa o cometimento de uma infração.

Art. 37 inciso d

Art. 40 inciso 3

Art. 7, 7.1

Art. 15, 15.1

Arts. 111 III 124 III e 206

PRINCÍPIO DE IMPUGNAÇÃO: Pressupõe a existência de possibilidade de se recorrer perante um órgão superior.

Art. 37 inciso d

Art. 40 inciso 2.b.V

Art. 7, 7.1

Arts. 198 e 137

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE DO PROCEDIMENTO: Pressupõe que o tipo de procedimento deve estar fixado por lei e não pode ficar sujeito à discrecionalidade do órgão jurisdicional.

Art. 40 inciso 2.b.III

Art. 17, 17.4

Art. 110

PRINCÍPIO DE PUBLICIDADE DO PROCESSO: Faz referência à possibilidade que os sujeitos processuais devem possuir, de ter acesso às atas do processo. Ao mesmo tempo, refere-se à conveniência de se proteger a identidade da criança e do adolescente como forma de evitar a estigmatização.

Art. 40 inciso 2.b.VII

Art. 8, 8.1 e 8.2

Art. 143

Fonte: García Méndez (1994, p. 74-5).

 

Apesar deste quadro referir-se mais à parte de jurisdição que de administração, é útil para informar mudanças importantes no paradigma de infância, no qual baseia-se a legislação brasileira, coerente com a legislação internacional.

 

A mudança de método vem baseada em novos conceitos incorporados pela mudança de conteúdo antes descrita. Assim, por exemplo, a intervenção pública (seja administração ou jurisdição - disso se trata na mudança de gestão) dá-se a partir de uma violação de direito, apoiada na concepção de criança e adolescente como sujeitos de direitos e não mais como pessoas carentes, necessitadas ou em situação irregular. O método de intervenção inverte a lógica da criança objeto de proteção para criança sujeito de direitos, sob a doutrina da proteção integral.

 

O método de intervenção protetiva subdivide-se a partir da constatação de violação de direitos por três motivos: a ação ou omissão da sociedade ou do Estado; a falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis e a conduta da criança ou do adolescente. Para todos os casos, podem ser aplicadas as medidas de proteção e para o terceiro, sendo o autor adolescente, também as medidas sócio-educativas . A pobreza já não é motivo de privação de liberdade, nem o abandono justifica sentenças de internação indeterminadas ou até a maioridade. Entretanto, a pobreza é, ainda, na prática, o principal contexto familiar e comunitário que envolve as crianças e adolescentes com seus direitos violados. A diferença de método está em que o ato infracional requer a instauração do devido processo legal, assim como as medidas de proteção devem ser controladas jurisdicionalmente.

 

O ECA define as situações que justificam as medidas de proteção como de ameaça ou violação de direitos das crianças. Com isso, contempla as noções de risco ao mesmo tempo que de sua realização, como justificadores da intervenção estatal. Quanto às medidas sócio-educativas, o ECA define seu suposto de intervenção a partir do ato infracional, análogo ao delito, ou seja, algo já perfeitamente positivado no Código Penal. Além disso, neste caso, aponta como desencadeador da intervenção um fato já ocorrido, e não um risco. Disso podemos concluir que o ECA é amplamente intervencionista, legitimado pela doutrina da proteção integral que, por sua vez, apoia-se nas noções de risco ou ameaça de violação dos direitos da criança. Mas, por outro lado, o leque de supostos de intervenção define-se melhor porque refere-se aos direitos das crianças, já positivados na Constituição e na própria lei. Isso supõe um avanço em relação a legislações anteriores .

 

Em certa medida, o ECA não se apoiou na noção de risco para legitimar uma intervenção ampliada. O conceito de situação de risco não está explicitada no texto legal, que se limita a apontar a ameaça ou violação dos direitos definidos na própria lei como supostos de intervenção. Entretanto, é óbvio que a idéia de ameaça já é suficientemente aberta como para acolher a noção de risco, mesmo delimitada em relação aos direitos definidos na lei.

 

A mudança de gestão implica, de forma sintética, três formas de divisão de trabalho entre os sujeitos das políticas públicas para a infância: uma desconcentração entre a União, os estados e os municípios, que aparece como descentralização político - administrativa, enquanto diretriz das políticas de atendimento (art. 88 ECA); uma divisão de responsabilidades entre os poderes públicos e a sociedade civil, que aparece como participação popular, no mesmo artigo; e uma distribuição de deveres entre a família, a comunidade e o Estado, que aparece principalmente no artigo 4°, que distribui as responsabilidades pela efetividade dos direitos das crianças.

 

Em primeiro lugar, está a divisão de trabalho entre a União, os estados e os municípios . A legislação anterior normatizava as políticas públicas de atendimento à criança de forma totalmente centralizada, desconhecendo por completo as diferenças regionais e locais. Além de centralizadas na esfera federal, as políticas públicas normatizadas pelo Código de Menores eram de exclusiva competência do governo e do Poder Judiciário, sem nenhuma participação popular.

 

O ECA normatiza a descentralização das políticas desde sua elaboração, deliberação, controle e execução, definindo papéis para cada instância de poder. Trata-se de uma mudança dentro da própria esfera pública, de desconcentração de poder dentro do próprio Estado.

 

De acordo com Jovchelovitch (1998, p. 37-9), a descentralização pode ser vista sob dois enfoques: intragovernamental, no sentido nacional para esferas subnacionais (estadualização ou municipalização ), e do Estado para a sociedade, que reflete a democratização do país. O segundo processo representa um reparto de poder e auto-gestão local, e diferencia a descentralização da desconcentração físico-territorial das instituições. A flexibilidade, o gradualismo, a progressividade, a transparência e a existência de mecanismos de controle sobre o poder público são os princípios e diretrizes do processo de descentralização de políticas.

 

O ECA introduz, em segundo lugar, a divisão de trabalho entre poderes públicos e sociedade civil, através dos Conselhos de Direitos em todos os níveis, paritários, deliberativos e gestores dos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente e dos Conselhos Tutelares, compostos por pessoas eleitas diretamente nos municípios para executar as políticas de proteção e atuar em conjunto com os demais responsáveis pelas políticas de atendimento. É uma mudança de gestão entre o público e o privado, ou seja, descentraliza o poder entre o Estado e a sociedade. O principal meio normatizado para efetivar essa mudança é a participação popular (ECA, artigo 88).

 

A articulação entre Estado, sociedade e família constitui-se, no ordenamento jurídico e político do Brasil, através do princípio de participação como diretriz de políticas de atendimento em diversas áreas como saúde, educação, assistência social e proteção da infância . Esta opção pelo protagonismo da sociedade nos processos de deliberação, gestão e controle das políticas públicas, via participação, inscrita na Constituição e positivada no ordenamento legal, põe o Estado num lugar compartilhado e não exclusivo de responsabilidade pela realização dos direitos fundamentais, que é, ao lado da participação, o outro pilar da democracia. A participação ampliada, que extrapole as formas representativas clássicas, evidentemente não é condição indispensável para a democracia. Entretanto, compõe o que se poderia chamar democracia boa, além de correta ou, com as palavras de Bobbio (1987, p. 52), uma "democracia integral". Quanto mais amplas as possibilidades de participação popular nas decisões públicas, mais garantidos e realizados estarão, teoricamente, os direitos que dão forma e conteúdo à democracia.

 

Entretanto, nas práticas políticas e econômicas, condicionadas e condicionantes de relações internacionais globalizadas, os espaços de participação, auto-gestão ou auto-organização da sociedade são limitados, distorcidos e cooptados em função de interesses externos tanto ao governo quanto à própria sociedade. Convém falar de um processo de transição de um modelo centralizado no Estado para um modelo descentralizado e participativo em termos normativos,  mais que sociológicos. Podemos falar, no Brasil, de transição democrática que apoiou sua legitimidade na dimensão participativa mais que na dimensão garantista, como uma armadilha que joga sobre a sociedade a responsabilidade pela eficácia do governo mas que,  por outro lado, amplia a possibilidade de garantir a dimensão ética, no sentido de que quanto maior a visibilidade e controle da sociedade sobre o Estado, mais efetiva será a luta pela transparência, contra a corrupção. Mais do que isso, Santos (1998, p. 60-4) visualiza um processo de resistência à intensificação da exclusão e da marginalização sociais produzidos e reforçados pela globalização, através dos espaços criados pela participação popular.

 

O ordenamento constitucional brasileiro contempla tanto os direitos fundamentais como a participação popular, mas enfatiza positiva e politicamente a segunda em detrimento dos primeiros. Uma hipótese para explicar esse desequilíbrio é que seja instrumental ou funcional a um sistema não garantizador de direitos, na medida em que substitui, simbolicamente, um elemento do Estado democrático de direito (as garantias e liberdades fundamentais) por outro (a participação). O que se nos apresenta, assim, é uma ilusão de que está-se construindo a democracia através da participação popular, mas sem base sólida em termos de garantias de direitos fundamentais. A sociedade faz a sua parte, enquanto o Estado omite-se em sua responsabilidade. Entretanto, convém sustentar a ênfase nas formas constitucionalizadas de participação como um valioso instrumento para a conquista da realização do outro pilar do Estado democrático de direito e, talvez, do conteúdo social de um modelo nunca efetivado no Brasil.

 

As condições para superar esta ilusão de democracia a partir da participação popular são de duas ordens. Da parte do Estado, as garantia dos direitos econômicos, sociais e culturais, especialmente o direito à educação e uma distribuição de renda e terra que possibilite um mínimo de autonomia real e a descentralização dos meios de comunicação de massa. Da parte da sociedade, um esforço de articulação e valorização de organizações não governamentais que atuam em educação popular, que amplie e aprofunde o conhecimento do povo sobre seus direitos; um investimento mais forte das universidades em pesquisa e produção de conhecimentos e de tecnologias; e abertura à pluralidade como base desta democracia.

 

Avaliar processos de participação popular exigiriam, entretanto, a definição de dimensões alternativas às de legitimidade, eficácia ou ética, aplicáveis em análises do Estado. Talvez a criatividade, a solidariedade ou a capacidade de auto-organização de micro espaços sociais sejam mais úteis para entender a participação enquanto um processo efetivo e conseqüente na construção da democracia, entendida em sua dimensão de realização dos direitos humanos. Um estudo das estruturas e processos de implementação das normas referentes à descentralização e participação popular seria vital para contribuir para a definição de um conceito ou de uma dúvida sobre a democracia que estamos construindo.

 

A terceira divisão de trabalho que implica a implementação do ECA é entre e a família, a comunidade e o Estado. Esta divisão de responsabilidades está constitucionalizada no caput do artigo 227 CF e é positivada, por exemplo, nos artigos 4° e 70 do ECA. Trata-se de um aprofundamento da descentralização de poderes - e, ao mesmo tempo, de deveres - entre as esferas pública e privada, pois distingue, na segunda, a família da comunidade, aludindo a âmbitos mais ou menos íntimos do mundo da vida .

 

A família descumpre sua obrigação estatutária quando omite-se ou abusa na tarefa de cuidar e educar as crianças. Quando isso ocorre, o Conselho Tutelar deve atender e, conforme o caso, atua diretamente, aplicando medidas de proteção de sua alçada e/ou encaminha ao juiz para as providências judiciais, como por exemplo encaminhamento à família substituta . Quando o adolescente ameaça seus próprios direitos ou os de outros cidadãos, cabem duas iniciativas: O Conselho Tutelar aplica medidas de proteção e o Poder Judiciário aplica as medidas sócio-educativas, a serem executadas obrigatoriamente pelo Poder Executivo e facultativamente por organizações não governamentais (Sêda 1993, p. 101-2). Quando a sociedade ameaça os direitos das crianças e dos adolescentes, cabe ao Poder Judiciário corrigir a situação, como por exemplo em relação à entrada e permanência em locais públicos de ócio, espetáculos, etc.,  ou em relação ao atendimento de entidades de proteção ou sócio-educação . Nestes casos o juiz é, ao lado do promotor e do Conselho Tutelar, o fiscal das entidades (Sêda, 1993, p. 106). De todos estes procedimentos, concluímos que trata-se de uma rede de controles mútuos entre as esferas pública e privadas, o que possibilita, teoricamente, o caráter democrático do processo. Tudo isso tem como base o princípio da prioridade absoluta para o interesse primordial da criança e do adolescente.

 

2.2.  Ambigüidades no discurso e na prática

 

Os conceitos ambíguos são os que contêm duas ou mais representações sociais em si mesmos, opostas ou não, dando margem a distintas interpretações e práticas. Levando em conta que as normas são ou expressam relações sociais que, por definição, são contraditórias, óbvio que apresentem ambigüidades mais ou menos complexas. O ECA expressa, em seu conteúdo global, as relações sociais concretas a que se refere, e constitui-se como a síntese historicamente possível entre distintas representações sociais sobre infância, Estado, sociedade, família, etc..

 

Podemos identificar quatro grandes ambigüidades no conteúdo do ECA. Cada uma refere-se a um elemento conceitual e traz conseqüências tanto em sua interpretação como em sua implementação. A primeira refere-se às representações do papel do Estado em relação aos direitos fundamentais. A segunda, às finalidades da lei. A terceira, ao conteúdo interno do conceito de proteção integral e a quarta, ao conteúdo interno do modelo de justiça juvenil.

 

2.2.1.      Representações de Estado e direitos fundamentais

 

Em primeiro lugar, está a ambigüidade de representações de Estado quanto a seu papel em relação aos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes.

 

O ECA pode ser examinado à luz de algumas teorias sobre o papel do Estado em relação aos direitos fundamentais, pois sempre o direito influi e é influenciado pelas representações de Estado e sociedade que o contextualiza. Esta lei expressa elementos da teoria clássica ou liberal, ao positivar as liberdades e direitos individuais; da teoria institucional, ao criar instituições para influenciar ou transformar a realidade social; da teoria dos valores, ao decorrer da Constituição Federal, que fundamenta-se no princípio da dignidade humana, apesar do ECA, especificamente, declarar ou definir direitos, ao invés de fundamentar-se neles; da teoria da função democrática, também em decorrência do ordenamento constitucional, que define como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil princípios de uma sociedade democrática; e, finalmente, da teoria do Estado de bem estar social, ao responsabilizar, ainda que não exclusivamente, o Estado pela garantia da liberdade e igualdade reais entre os cidadãos .

 

Em síntese, o ECA reúne elementos teóricos de várias vertentes, o que expressa seu caráter de resultante de uma correlação de forças em torno a distintas representações não somente de infância, mas também de Estado e de seu papel em relação aos direitos humanos. Se uma representação hegemônica de infância foi contemplada na lei, apesar de ainda não totalmente nas práticas concretas, o mesmo não se pode dizer das representações de Estado ou, melhor dito, de poder. Esse caráter múltiplo deixa margem às polêmicas interpretativas de corte ideológico e, além disso, a um leque bastante amplo de alternativas de aplicação das normas e implementação das políticas delas decorrentes.

 

A partir do pressuposto de que as representações de Estado são mais determinantes que as de infância na eficácia instrumental do ECA, podemos facilmente intuir um objetivo latente de priorizar a eficácia simbólica, legitimando através de uma visão democrática de infância, umas práticas autoritárias de poder público.

 

Assim é que, conforme o ponto de vista e os interesses políticos, enfatiza-se uma ou outra vertente teórica do ECA e, ainda, justificam-se umas ou outras práticas que dão consistência à lei.

 

O Estado neo-liberal enfatiza a descentralização das ações invocando a participação popular, mas não a descentralização dos poderes de decisão (dois incisos do mesmo artigo 88 ECA). A sociedade reivindica mais aportes do Estado para a implementação da lei, invocando a responsabilidade pública prevista nos artigos 9°, 11, 54-59 ECA, por exemplo. Os menoristas criticam o caráter eminentemente garantista do ECA, para combatê-lo em defesa do paradigma anterior, enquanto os defensores desta lei invocam a dignidade de todas as crianças e adolescentes como fundamento dos direitos positivados. E assim, sucessivamente, as polêmicas apoiam-se nas distintas representações das relações entre o Estado e a sociedade, que dão conteúdo ao ECA.

 

2.2.2.      Finalidades da lei

 

Em segundo lugar, está a ambigüidade entre a proteção da infância e o controle social enquanto finalidades do ECA, que traz conseqüências importantes no processo de sua implementação.

 

Esta ambigüidade pode ser caracterizada através de alguns aspectos que informam sobre o modelo de intervenção próprio do direito regulativo ou, dito de outra forma, do direito orientado a fins promocionais e penetrado por critérios e determinantes de índole material (Calvo 1998-a, p. 103).

 

Os próprios fins protetores da lei são realizados através de maior controle social, na medida em que legalizam-se ou juridificam-se, de forma mais profunda, as relações sociais, ampliando e complexificando as formas de dominação ou de intervenção. Por exemplo, o aparato institucional proposto no ECA abrange toda uma gama de instâncias sociais que vão desde o poder público em nível federal, até a responsabilidade individual de cada cidadão em velar pela garantia dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes, num complexo público/privado que penetra cada família, entidade de atendimento, escola, hospital, vizinhança, organização não governamental, etc..

 

Uma reflexão mínima sobre os motivos pelos quais o Estado promove a proteção indicaria, pelo menos, duas razões principais: para compensar ou paliar os efeitos excludentes do modelo econômico e político adotado em relação a parcelas importantes da população e, consequentemente, do mercado; e para integrar estas mesmas parcelas num projeto de convivência social que não ponha em risco a ordem estabelecida como "normal". Nessa lógica, as políticas sociais jogam um papel vital e ambíguo entre o que pode-se chamar de garantias de direitos econômicos, sociais e culturais e, por outro lado, o controle social baseado na busca de legitimidade do Estado ou, pura e simplesmente, na legalização das relações sociais (García e Susín 1998).

 

Legalizando as relações sociais, contribui para o aprofundamento do controle sobre os comportamentos que põem em risco não só os direitos das crianças e dos adolescentes, mas também a ordem e a segurança cidadã. Normatizando a prevenção e a proteção, não necessita positivar a repressão de forma explícita, pois contempla seus conteúdos negativos de forma muito mais sutil e eficaz. Reunindo, num só texto, alternativas de intervenção com objetivos tão complexos como contraditórios como são, por exemplo, os de proteção e os de sócio-educação, expressa a ambigüidade mais geral entre proteger/assistir e integrar/controlar.

 

O ponto de partida é o elemento que mais evidentemente expressa esta ambigüidade: são os supostos de intervenção, tal como se positivam no ECA. As medidas de proteção desencadeiam-se a partir da ameaça ou violação de um valor protegido constitucionalmente, que é a infância, enquanto as medidas sócio-educativas desencadeiam-se a partir da violação de outro valor, que é a segurança, também protegido constitucionalmente , violado através do ato infracional, análogo ao crime ou contravenção penal. Neste caso, formalmente, a ambigüidade tem seu ponto de equilíbrio indicado na própria Constituição, ou seja, a prioridade absoluta é um princípio dirigido à infância (artigo 27 CF). Portanto, qualquer que seja o valor violado, a prioridade absoluta de proteção, em qualquer circunstância, deve ser dirigida à criança ou adolescente autor de ato infracional (artigo 4°, parágrafo único ECA).

 

Na prática, o equilíbrio é inverso, deixando clara a tendência patrimonialista e a lógica de segurança cidadã como hegemônicas entre as finalidades do ECA. A representação de criança perigosa prepondera, assim, sobre a de criança em perigo. A ausência de conteúdo pedagógico das medidas sócio-educativas é indicador empírico claro desta tendência, confirmando a finalidade controladora como preponderante sobre a protetora dos adolescentes em conflito com a lei.

 

Equívoco seria considerar, nessa ambigüidade, dois pólos opostos de forma maniqueísta, pois o controle social, desde que num espaço garantista, atende a necessidades de convivência social pacífica e de garantia dos direitos das crianças em situação de ameaça ou violação, enquanto a proteção e a assistência proporcionam, contraditoriamente, tanto a possibilidade e a qualidade de vida para muitas crianças e adolescentes desamparados, como uma forma de integração numa sociedade reforçada, simbolicamente, como boa em si mesma.

 

2.2.3.      O conceito de proteção integral

 

Em terceiro lugar, encontra-se a ambigüidade interna ao conceito de proteção integral absorvido pelo ECA a partir da normativa internacional sobre os direitos das crianças.

 

A doutrina da proteção integral é clara em relação ao seu destinatário, mas não ao seu método nem aos seus objetivos. A ambigüidade no ECA está entre um enfoque intervencionista, tutelar, que sobrepõe-se a uma ênfase autonomista, mais coerente com o conceito de criança e adolescente como sujeitos de direitos. A noção de sujeito de direitos (artigo 3° ECA) contrapõe-se à idéia de incapacidade, de criança objeto de intervenção, de tutela ou de repressão. Mas, também, pressupõe a oposição entre as representações de criança como protagonista e criança como vítima, que contribuem para reforçar os estereótipos da criança adulta e da criança incapaz. O artigo 15 do ECA define a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, o que sugere negar concepções como menor incapaz, objeto de intervenção, vítima, irresponsável. Sujeito de direitos pressupõe protagonismo, responsabilidade, mas, por outro lado, não pode significar adulto, culpado, protagonista exclusivo de sua situação. Todas estas contradições aparecem na prática de aplicação das normas legais, principalmente com respeito às medidas de proteção e sócio-educativas.

 

Por outro lado, está o equilíbrio entre a prevenção e o controle (de comportamento das crianças e das famílias), como conteúdos do conceito de proteção integral. Se o único caminho da prevenção é a previsão, e a única forma de prever cientificamente é identificando fatores, populações e comportamentos de risco, o passo seguinte - efetivamente preventivo - seria, logicamente, a tentativa de evitar o mal previsto: evitar os fatores, controlar as populações ou modificar os comportamentos de risco. Todas estas ações consistem, em última análise, em estratégias de intervenção preventivas com um forte acento repressivo e protetivo, pois sempre pressupõem um menor ou maior grau de intervenção seja tutelar, seja controladora de comportamentos.

 

O ECA expressa, em seu conteúdo híbrido entre penal e promocional, o caráter misto que resulta da transição de umas estratégias de controle social "negativo" ao "positivo", ou seja, da repressão à ênfase na prevenção e proteção integral, o que traz como conseqüências a necessidade de implementação de políticas e, para isso, a normatização de uns critérios de comportamento social e de aportes do Estado .

 

Finalmente, está a relação entre a natureza dos supostos de intervenção (amplos, genéricos) e as medidas concretas de proteção, que pressupõem uma potência de medidas individuais para solucionar problemas sociais. Essa ambigüidade é tratada, mas não superada, na própria lei, através de distintas esferas de intervenção normatizadas de acordo com uma classificação de violação de direitos. Para os direitos econômicos, sociais e culturais, o ECA prevê a proteção dos interesses individuais, difusos e coletivos, principalmente a educação (artigos 208 a 224 ECA). Para os direitos individuais, prevê medidas pertinentes aos pais ou responsáveis (artigos 129 e 130 ECA), fiscalização de entidades de atendimento (artigos 95 a 97 ECA) e garantias constitucionais (artigo 5° CF) e estatutárias (artigos 106 a 111 e 124 ECA).

 

A proteção integral contrapõe-se ao antigo paradigma de regularização da situação irregular do menor, o que, por um lado, reduz a estigmatização da criança desamparada mas, por outro, abre as portas ou justifica um intervencionismo ampliado, mais capilar, apesar de menos discriminador, que a doutrina anterior.

 

2.2.4.      O modelo de justiça juvenil

 

A quarta ambigüidade do conteúdo do ECA está no modelo de intervenção na parte dedicada ao ato infracional. O problema básico é a indefinição teórica e prática do modelo de justiça juvenil adotado . As decorrências são confusões, ao menos entre um caráter mais pedagógico, mais terapêutico ou mais penal do tratamento dos adolescentes em conflito com as normas jurídicas.

 

O ECA expressa a ambigüidade, ainda não solucionada em quase nenhum ordenamento jurídico sobre a infância e a adolescência, entre o caráter pedagógico e o penal do tratamento da delinqüência infanto-juvenil. Isso porque, apesar de garantir direitos individuais coerentes com a normativa internacional, incorre em vicissitudes decorrentes da concepção pedagógica que, em si mesma, é anti-garantista, ao mesmo tempo em que acolhe princípios garantistas questionáveis quanto ao seu caráter pedagógico. Exemplo da primeira contradição é a duração indeterminada das medidas sócio-educativas, que atende a critérios pedagógicos mas viola o direito de segurança jurídica. Da segunda, é exemplo o direito de não falar nada que possa comprometer o processo de ampla defesa, que atende a critérios garantistas mas interfere no processo pedagógico, através do direito de mentir ou omitir a verdade, ou de não assumir responsabilidades pela própria conduta.

 

Giménez-Salinas (1998) apresentou um quadro comparativo de modelos de justiça, como material facilitador em palestra sobre o tema de justiça juvenil , resumindo cinco sistemas principais, nos quais podemos identificar aspectos conceituais do ECA.

 

 

 

Quadro III.2. Aspectos conceituais de cinco modelos de justiça juvenil

 

Sistema protector

Sistema bien-estar/educativo

Sistema normalizado no intervencionista

Sistema de justicia

Sistema reparador/responsabilizante

Objeto

El menor

Menor y família

Reacción social

El delicto

Daño/dolor

El delicto es una expresión de:

Patológica

De necesidad educativa

De normalidad

De libre elección

De conflicto

La intervención consiste en:

Tratar

Educar

Evitar la estigmatización

Castigar

Reparar el daño

Personal

Psico/social

Psico/educativo

Comunitário

Judicial

Mediadores

Finalidad

Protectora -moralizante

Educativa

Integradora

Respecto a la ley y al orden

Responsabilizar

Fonte: Giménez-Salinas (1998). Jornadas sobre Justiça Juvenil: Teruel.

 

Analisando o ECA a partir deste quadro, podemos observar que, no discurso explícito e latente do texto legal, o objeto de intervenção é a criança (menores de 18 anos) e a família (objeto de medidas próprias), característicos do sistema de bem-estar/educativo. O delito é o ponto de partida, mas não se apresenta como objeto de intervenção, apesar de ser expressão de necessidade educativa, também oriundo do modelo de bem-estar/educativo. A intervenção consiste em educar, outro elemento do mesmo modelo. O pessoal pode ser psicossocial, psico-educativo ou judicial, contemplando os modelos protetor, de bem-estar/educativo e de justiça. O ECA dispõe, ainda, sobre pessoal comunitário, mas quando refere-se mais às medidas de proteção de crianças e adolescentes autores de ato infracional. A finalidade da intervenção, de acordo com o ECA, é educativa, também ressaltando o modelo de bem-estar/educativo.

 

Na prática, costumam-se implementar as medidas sócio-educativas, de acordo com o ECA, seguindo um modelo híbrido entre os sistemas protetor e de justiça. O objeto de intervenção prática é a criança, conforme o modelo protetor, assim como a visão do delito como uma expressão patológica, que fundamenta práticas baseadas em conhecimentos oriundos da psiquiatria, psicologia e farmacologia. Essa tendência, entretanto, costuma ser distorcida e manipulada, reforçando umas práticas mais repressivas que terapêuticas. A intervenção consiste em tratar, conforme o modelo protetor, mas também em castigar, o que coincide com o sistema de justiça. O pessoal judicial, na prática, é também encarado de forma distorcida em relação ao modelo de justiça original, pois além dos juristas, advogados, juizes, etc., tratam-se de agentes de segurança no manejo direto com os adolescentes. A finalidade prática do ECA é protetora/moralizante (mais moralizante que protetora), de acordo com um sistema protetor, mas também visa o respeito à lei e à ordem, conforme um sistema de justiça.

 

Em síntese, identifica-se uma ambigüidade teórica entre elementos do modelo de bem-estar/educativo e o modelo protetor, com ênfase no primeiro. E uma ambigüidade prática entre elementos dos modelos protetor e de justiça. Supõe-se que a ambigüidade prática seja, em parte, decorrente da indefinição teórica e da remanescência do modelo anterior, normatizado pelo Código de Menores de 1979, ainda presente na formação e na mentalidade de uma grande parte do pessoal que hoje em dia implementa a atual legislação.

O ECA, assim, apresenta-se como síntese dos modelos protetor e educativo e implementa-se como síntese dos modelos protetor e de justiça. Em termos gerais, o adolescente infrator é visto ao mesmo tempo como sujeito de direitos e como vítima/objeto de proteção e educação.

 

Os riscos deste caráter ambíguo do ECA são, basicamente, três: que o protecionismo com ênfase terapêutica reforça a estigmatização do adolescente autor de ato infracional, como se o delito fosse uma questão patológica, com origem claramente funcionalista e conseqüências totalmente anti-garantistas; que o educativismo retórico reforça a falácia pedagógica do ECA - segundo a qual a sócio-educação (indeterminada) é instrumento de transformação ou, pior, de reintegração num sistema social em si mesmo aceitável e bom; finalmente, que uma visão penalista estreita da justiça juvenil restringe possibilidades de resolução de conflitos com as normas desde fora do sistema judicial, tendo em conta realmente a condição de pessoa em desenvolvimento.

 

As vantagens desse ecletismo expresso no ECA são, evidentemente, importantes, pois pode-se aproveitar o melhor de cada modelo. Assim, ao garantismo, que nunca é exagerado, soma-se a proteção que sempre é necessária, desde que num sentido autonomizador, mais que tutelar. A uma visão global do adolescente como pessoa em desenvolvimento físico, intelectual e emocional, soma-se a possibilidade de construir formas alternativas de educação para a liberdade e convivência ao mesmo tempo pacífica e crítica. Às medidas de proteção ao adolescente, somam-se as dedicadas aos pais ou responsáveis, superando tanto a infantilização quanto a culpabilização da criança, ao mesmo tempo em que supera um familiarismo exagerado de corte paternalista ou repressor.

Na justiça juvenil brasileira a ambigüidade principal, em resumo, que aparece tanto no texto quanto em sua aplicação, é entre o caráter pedagógico e o penal, enquanto que a secundária, mas que aparece com força na prática, é entre os anteriores e o terapêutico/repressivo. Em nível de discurso, o argumento hegemônico sustenta o caráter pedagógico das medidas sócio-educativas (o próprio termo demonstra), mas em nível das práticas, as características principais são a ausência do caráter pedagógico e a violação do caráter garantista próprio do modelo penal .

 

Concretamente, sete situações contrárias aos direitos dos adolescentes em conflito com a lei surgem dessas ambigüidades: 1) As sentenças baseadas nos antecedentes criminais, que compõem o quadro do comportamento e da personalidade que fundamentam as decisões do juiz. 2) A duração indeterminada das medidas sócio-educativas, que viola os princípios de proporcionalidade, legalidade e segurança jurídica. 3) Os laudos técnicos que fundamentam as mudanças de medidas, baseados nos comportamentos mais que no alcance de objetivos definidos individualmente. 4) A medicalização ou psicologização do conteúdo das medidas. 5) A coisificação ou vitimização do adolescente infrator. 6) A desilusão sobre a eficácia instrumental da norma. 7) O espaço aberto para o retorno de modelos superados, mediante alarmas sociais sobre a ineficácia do atual.

 

Duas coisas mais sobre os modelos de justiça juvenil. A intervenção tendente a evitar a estigmatização do adolescente autor de ato infracional, a importância do pessoal comunitário e a finalidade integradora, próprios do sistema normalizado não intervencionista, são elementos presentes no conteúdo do ECA, mas de forma secundária e, de qualquer forma, com escassa eficácia instrumental. Além disso, não se pode identificar nenhuma marca do sistema chamado reparador/responsabilizante. Talvez seja útil, oportunamente, examinar as vantagens e desvantagens deste modelo, com vistas a contribuir para a implementação de alguns de seus elementos, de forma compatível com o ECA. Isso porque trata-se de um modelo muito valorizado e discutido atualmente, tanto em nível teórico quanto de experiências práticas com resultados apreciáveis, ainda que incipientes.

 

A aparente confusão entre modelos expressa no ECA não é alheia às contradições presentes nas representações em conflito na própria sociedade, sobre infância, segurança cidadã, etc.. Supõe-se que a sociedade brasileira normatizou o que aspira, mas mantém institucionalizado o que realmente representa em relação à segurança cidadã e à infância em perigo ou perigosa . Isso explicaria, em parte, a defasagem entre a retórica e a realidade da proteção da infância e da sócio-educação dos adolescentes infratores. A falácia de enfatizar retoricamente a legitimidade global do ECA está em tomar a parte pelo todo, pois não há garantias dos direitos fundamentais nas sentenças nem na execução das medidas. A ênfase garantista do processo contradiz-se com a ênfase substancialista ou comportamentalista no julgamento e repressiva na execução. Por outra parte, o discurso educativista garante, também simbolicamente, a legitimação do modelo, enquanto a prática repressiva e terapêutica garantem a eficácia de objetivos latentes de controle social.

 

A solução das ambigüidades apontadas não está mais no discurso que na própria prática. A primeira, entre representações de Estado, possibilita uma pluralidade de intervenções em direção à garantia dos direitos da criança, apesar de também poder confundir sobre as condições concretas desta garantia. A segunda, entre as finalidades da lei, pressupõe um conflito entre racionalidades opostas e indica a possibilidade de solução mais política que legal, entre uma retórica ligada aos direitos humanos e a lógica de mercado. A terceira expressa o núcleo do conflito específico entre paradigmas de intervenção e deverá, em qualquer caso, pender para o lado da representação hegemônica na lei, que é a de criança sujeito de direitos e, portanto, para o caráter autonomista da proteção integral. A quarta ambigüidade tem sua solução incógnita, pois reflete um debate internacional ainda não resolvido e cheio de possibilidades, apontando apenas para um modelo eclético que acolha elementos compatíveis com a Convenção Sobre os Direitos da Criança.

 

Todas estas ambigüidades identificadas no ECA não levam à necessidade de mudança da lei, e sim indicam a riqueza de possibilidades de sua implementação. Pois se a lei expressa a convivência tensa entre distintas forças sociais, sua implementação será a expressão prática, a continuidade concreta dessa luta, e a história informará as sínteses construídas a partir destas ambigüidades.

 

3. Eficácia instrumental

3.1. Realidade e perspectivas

 

Uma das conseqüências práticas da mudança de paradigma que implicou a substituição do Código de Menores de 1979 (situação irregular) pelo ECA (proteção integral) foi em relação aos supostos de intervenção pública na vida das crianças e das famílias. O paradigma da situação irregular, que atingia as crianças pobres em perigo ou perigosas, supunha um direito e dever de intervenção do juiz da infância em situações que hoje em dia, com o paradigma de proteção integral, já não justificam a intervenção judicial. Entretanto, o paradigma atual permite uns supostos de intervenção pública ainda mais indeterminados, pois a proteção integral supõe a multiplicidade de situações de risco e a impossibilidade de traçar-se uma linha única desde a causa até o delito. Isso supõe uns objetivos latentes do ECA relativos ao controle social da infração, ou seja, relacionados com a segurança cidadã. A mudança de paradigma foi em relação à natureza da intervenção, agora mais administrativa que judicial em todos os supostos de risco ou violação de direitos das crianças, exceto quando referem-se a ato infracional.

 

A mudança de paradigma pode ser expressa, ainda, como de menor em situação irregular para criança como sujeito de direitos. Isso porque o ECA positiva direitos de todas as pessoas até 18 anos de idade e, em casos excepcionais expressos na lei, até os 21 anos. A eficácia instrumental deste aspecto pode ser avaliada, principalmente, pela exigência do devido processo legal, como direito à ampla defesa da criança em tudo o que diz respeito a seus interesses e direitos. O paradigma anterior culpabilizava a própria criança por sua situação irregular, enquanto o atual responsabiliza a família, a sociedade e o próprio Estado pelas situações de ameaça ou de violação de direitos das crianças, ainda que esta violação seja devido à sua própria conduta . De qualquer forma, essa mudança supõe um avanço em termos garantistas e um incremento em termos intervencionistas.

 

Os direitos civis das crianças e dos adolescentes estão positivados no ECA, principalmente nos artigos 15 a 18, onde definem-se os direitos à liberdade, respeito e dignidade. O ECA garante à criança e ao adolescente, em qualquer circunstância, o direito à defesa técnica especializada, concretizando a figura do defensor como correlato do sujeito de direitos no devido processo legal . Podemos afirmar que o ECA garante todos os direitos fundamentais no processo de apuração e julgamento do ato infracional, mas não na decisão (análoga à sentença no direito penal adulto) nem na execução .

 

Quanto aos direitos econômicos, sociais e culturais, investigar elementos para analisar a eficácia instrumental do ECA supõe confrontar a realidade da infância e juventude desamparada no Brasil com os objetivos explícitos e implícitos da lei. Para isso, seria necessário comparar a situação concreta desde antes de sua promulgação e, progressivamente, até hoje, após dez anos de validez. Não é preciso muita intuição para mencionar a possibilidade de que pouco mudaram as condições concretas de vida das crianças e adolescentes no Brasil, ao menos no que diz respeito aos direitos positivados no ECA.

 

A violência (violação de direitos) contra crianças e adolescentes no Brasil pode ser observada em todas as áreas da vida privada e pública como em casa, nas escolas, estabelecimentos de saúde, nas ruas e nas instituições de abrigo, passagem e internação. É uma violência física e moral, que vai desde as práticas de punição física e psicológica dentro das famílias, passando por maus tratos, negligência, abandono material, intelectual e afetivo, chegando a diversas formas de violência sexual, repressão policial, exploração para o trabalho, torturas e extermínio.

 

A negligência familiar, a omissão governamental e a própria conduta da criança são os supostos de intervenção mencionados no ECA. Todos são agravados pela indiferença de grande parte da sociedade em relação aos direitos humanos das crianças e adolescentes.

 

Antes de toda forma de violação de direitos individuais, as crianças e adolescentes no Brasil têm seus direitos econômicos, sociais e culturais amplamente ignorados. A realidade atual da infância desamparada no Brasil pode ser constatada por alguns dados gerais, que passamos a apresentar. Para a finalidade deste estudo, pensamos ser suficiente descrever a situação dos principais direitos sociais e individuais universalmente reconhecidos, acolhidos pela legislação brasileira mas, até hoje, pouco efetivados.

 

O Brasil tem uma população total de mais de cento e cinqüenta milhões de pessoas, das quais 38,8% são crianças de zero a 17 anos de idade . A renda familiar de 40% destas crianças é insuficiente para manter as condições mínimas de alimentação, saúde e educação.

 

No Brasil, as contradições sociais apresentam-se nitidamente em forma de desigualdades sociais, geográficas, econômicas, culturais, legais e fundiárias, que configuram um quadro contrastante entre muitos miseráveis e poucos ricos, entre regiões mais atrasadas e mais desenvolvidas, entre analfabetismo e avanços tecnológicos, entre um alto PIB e uma reduzida distribuição de renda. As desigualdades constituem, no Brasil, o conteúdo da chamada questão social. Manifesta-se através de problemas como fome, falta de acesso à saúde, educação, habitação, etc.; trabalho infantil, desemprego, salário mínimo insuficiente, sistema de proteção social restrito, fragilidade na estrutura e dinâmica familiar, desamparo na infância e velhice, etc..

 

Tudo isso conforma um panorama sócio-econômico onde 64% da população está excluída de qualquer possibilidade de autonomia, o que eqüivale a aproximadamente 63,3 milhões de pessoas que vivem abaixo do nível de pobreza .

 

Em 1995, 28,8% dos domicílios brasileiros não tinham abastecimento adequado de água, 11,4% não possuía esgoto sanitário e 38,8% não tinha serviço de coleta de lixo .

 

A taxa de mortalidade infantil é de 44 bebês para cada mil nascidos vivos. Além disso, muitas crianças morrem sem sequer haver sido registradas, do que se conclui que a taxa pode ser ainda maior.

 

A desnutrição crônica e aguda de crianças de até cinco anos de idade atinge um total de 5,7% desta população . Entretanto, uma investigação realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e Bemfam (Sociedade Bem Estar e Família) revelou que, entre 1989 e 1996, houve significativa queda da taxa de desnutrição infantil no Brasil, da ordem de 16,9% .

 

Quanto à educação, 10% das crianças entre 10 e 14 anos e 6,6% de adolescentes entre 15 e 17 anos brasileiros são analfabetos . Num processo de desescolarização crescente, somente 1% da população chega à universidade, sendo que 11,4% dos matriculados abandonam a escola durante o primeiro grau e 2,2% durante o segundo grau . Este processo está intimamente relacionado com o trabalho infanto-juvenil. Seja prejudicada pela incompatibilidade de horários ou por impossibilidade de aproveitamento devido ao cansaço ou doenças laborais, a escolarização é sempre o lado mais frágil do desenvolvimento das crianças trabalhadoras.

 

O ECA proíbe o trabalho até os 14 anos de idade (artigo 60), salvo na condição de aprendiz. Além disso, regula as condições do trabalho educativo, limita tipos de atividades e horários das jornadas (artigos 60 a 69). Entretanto, 2 milhões de crianças entre 10 e 13 anos e 7,5 milhões entre 14 e 18 anos trabalham, o que representa 11 % da população economicamente ativa . No mundo, o Brasil só está atrás do Haiti e do Paraguai, sem contar os pequenos trabalhadores de 5 a 9 anos de idade, que representa aproximadamente 522 mil crianças trabalhadoras, justamente no período de ensino básico obrigatório .

 

Outra violação grave de direitos das crianças e adolescentes no Brasil é a exploração sexual, que costuma ocorrer em quatro âmbitos da sociedade: o doméstico, o comercial, nas ruas e em instituições educacionais, de abrigo ou de internação .

 

No Brasil, apesar de não existirem pesquisas oficiais globais, supõe-se que 62% das situações de abuso sexual ocorrem dentro das famílias. De um total de 2.700 denúncias recebidas, a cada ano, pela Justiça em todo o país, 83% referem-se a vítimas jovens do sexo feminino. No Rio Grande do Sul, há uma média de uma em cada cinco mulheres que sofrem abuso sexual antes de cumprir 18 anos .

 

Outra forma de violação de direitos das crianças no Brasil é a violência que sofrem nas ruas, cujo ápice são os assassinatos e o extermínio.

 

Na faixa etária de 10 a 14 anos, os acidentes (atropelamentos, acidentes motores e afogamentos) são as principais causas de mortes fora de casa, o que pode pressupor atitudes negligentes ou mesmo abandono por parte dos adultos responsáveis por estas crianças. Já na faixa de 15 a 17 anos, a causa principal é, de longe, o homicídio, que representa uma quarta parte do total de causas identificadas .

 

O extermínio é uma forma peculiar de violência de morte contra alguns setores vulneráveis no Brasil, como é o caso das crianças e adolescentes pobres, principalmente os que vivem nas ruas. Uma média de 10% dos assassinatos de crianças e adolescentes no Brasil são caracterizados como extermínio, definido como:

 

"ação individual ou de grupo, concebida e organizada com o fim da eliminação, por qualquer meio, de criança ou adolescente considerado ou suspeito de se encontrar em situação de risco pessoal ou social ou para ocultar práticas delitivas."

 

Todos estes dados exemplificam muito bem a realidade atual da infância desamparada no Brasil e a defasagem que expressa em relação à retórica jurídica e política correspondente. Evidentemente, a eficácia instrumental não é uma variável absoluta, podendo ser avaliada em termos dinâmicos ou relativos, o que leva a considerar a possibilidade de eficácia (ou ineficácia) parcial em relação aos objetivos propostos, assim como à possibilidade de alcance progressivo dos objetivos, no tempo.

 

A Convenção Sobre os Direitos da Criança da ONU aponta a obrigação dos Estados-parte a destinar, progressivamente, todos os recursos e meios possíveis para a efetivação dos direitos conveniados (artigo 4°). Trata-se, aqui, da necessidade de investigar os gastos do Estado brasileiro na promoção dos direitos da criança, no período estudado, mais do que - ou ao lado da - própria evolução da qualidade de vida e das garantias individuais dos direitos das crianças e adolescentes.

 

De acordo com Calvo (1999, p. 54-5), a Convenção sobre os direitos da criança:

 

"sienta tajativamente el princípio de responsabilidad e intervención activa de los poderes públicos en la realización efectiva de los derechos del menor, sancionando la necesidad de que los estados intervengan positivamente para garantizar en última instancia su eficácia."

 

O caráter predominantemente positivo dos direitos das crianças atinge também os chamados direitos negativos, ou seja, os que geram obrigações de não fazer, como por exemplo o direito à vida, protegido não só individual e negativamente como, principalmente, mediante dispositivos legais, políticos e administrativos que dêem resposta às necessidades das crianças devido à sua condição especial de pessoa em desenvolvimento, tais como referentes à sobrevivência, saúde e desenvolvimento (Calvo 1999, p. 55-7).

 

Os Estados parte da Convenção Sobre os Direitos da Criança assumem, ainda, obrigações subsidiárias em relação à família, quando da necessidade de dar proteção integral à infância.  Isso leva à necessidade de investigar também o processo participativo e seus efeitos na implementação do ECA, em termos de resultados concretos tendo em vista os direitos das crianças.

 

 

3.2. Limites legais e políticos à eficácia vertical

 

A mudança de conteúdo, método e gestão, que implicam uma correlação de esforços intra e entre família, sociedade e Estado frente aos direitos das crianças e adolescentes, evocam a questão da eficácia vertical e horizontal destes direitos.

 

A eficácia vertical tem a ver com a relação entre os cidadãos e o Estado, ou seja, com as garantias dos direitos frente ao Estado, enquanto a horizontal diz respeito às garantias dos direitos entre particulares, no âmbito privado.

 

Um primeiro limite à eficácia vertical dos direitos das crianças no Brasil é a forma de seu reconhecimento formal. Há três níveis de reconhecimento formal dos direitos fundamentais: Em primeiro lugar, está o reconhecimento constitucional, seguido da normativa internacional que, por força do parágrafo 2° do artigo 5° CF, é válida no ordenamento jurídico interno. Em terceiro lugar, há o reconhecimento formal em nível estatutário ou legal.

 

Os direitos das crianças estão regulamentados em nível estatutário, além de positivados constitucionalmente (artigo 227 CF) e acolhidos da legislação internacional (principalmente Convenção Sobre os Direitos da Criança da ONU). Como os demais direitos fundamentais, entretanto, os direitos das crianças não gozam, no ordenamento jurídico brasileiro, de recursos jurisdicionais de garantias individuais em nível constitucional, com o que reduzem-se a quase zero suas possibilidades de eficácia instrumental. As garantias dos direitos fundamentais são limitadas, no Brasil, ao nível estatutário ou legal, não existindo figura análoga ao recurso de amparo constitucional espanhol .

 

Mas, como não somente o reconhecimento formal é condição para a eficácia vertical, especialmente tratando-se de direitos com forte caráter positivo, pode-se buscar na implementação uma condição objetiva de seu alcance. A implementação das leis, através das políticas e programas de ação, em sentido amplo, é o que concretiza a garantia dos direitos econômicos, sociais e culturais e, consequentemente, contribui para possibilitar o exercício dos direitos individuais.

 

A implementação depende, por sua vez, de mecanismos institucionais de defesa e de promoção de direitos. O ECA é pródigo em positivar mecanismos de defesa de direitos como Defensoria Pública da Infância e Adolescência, Ministério Público (Promotorias da Infância e Juventude) e de proteção integral como Conselhos de Direitos e Tutelares mas, como de resto todo o ordenamento jurídico brasileiro, é quase nulo em normatizar a institucionalidade para promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais coerentes com o novo paradigma que expressa.

 

São óbvios os limites do direito como protagonista no processo de construção das condições materiais da eficácia dos direitos. Entretanto, é certo que o direito atua, ao mesmo tempo em que é influenciado, nas condições formais e simbólicas deste processo. A Constituição Federal de 1988 e o ECA deixam em aberto o principal espaço de eficácia instrumental dos direitos econômicos, sociais e culturais, ao deixarem intacta grande parte do aparato institucional que sustentou a estrutura política e econômica da ditadura militar. Assim é como tanto o Tribunal Constitucional como as Febens, por exemplo, são instituições que dão continuidade à lógica autoritária do regime anterior, o que significa uma institucionalidade defasada em relação aos direitos positivados. Aqui é evidente a possibilidade da existência de objetivos latentes no novo ordenamento, que supõe-se ter sido promulgado para não ser implementado. O grau de premeditação desta situação jurídica da institucionalidade, como para impedir ou dificultar ao máximo a implementação dos direitos constitucionalizados, é resultado da correlação de forças que se formou durante o processo constituinte.

 

Evidente que a promulgação do ECA, apesar de ter sido resultante de um processo de luta social ou, melhor dito, entre distintas representações sociais, legitima o Estado frente a umas demandas de regulamentação de direitos humanos das crianças, ao mesmo tempo em que encobre, através do discurso jurídico, a realidade concreta de continuidade da violação e de omissão frente a estes mesmos direitos. É o que Villegas (1993, p. 257-9) chama de "eficácia de legitimação".

 

A manipulação dos mecanismos institucionais como obstáculo à eficácia vertical dos direitos não esgota, ainda, os limites de sua garantia. Antes das instituições, estão as condições estruturais ou materiais de sua eficácia. A escassez de recursos é mais eficaz que a defasagem institucional na garantia da ineficácia dos direitos, especialmente os econômicos, sociais e culturais. Mais que a escassez, é a questão da distribuição de recursos o que condiciona sua implementação. Peces Barba (1995, p. 588, 609-10) fala de limites de fato como preponderantes sobre os limites jurídicos à eficácia dos direitos econômicos, sociais e culturais, tanto que não haveria necessidade de limitá-los juridicamente - podem ser positivados sem medo - pois nunca vão-se realizar num sistema desigual como o vigente. González Amuchástegui (1994, p. 114) vai mais longe, dizendo que:

 

"los derechos humanos no son compatibles con cualquier tipo de modelo económico".

 

O ECA positiva como fundamentais muitos direitos econômicos, sociais e culturais, sem a preocupação de normatizar as condições de fato para sua garantia material. Aqui, outra vez, aparece o limite do direito para condicionar materialmente a eficácia das normas. Portanto, supõe-se um objetivo latente de legitimação de uma demanda social através de uma retórica garantista, frente à ineficácia instrumental, talvez prevista, condicionada pela escassez e concentração de recursos.

 

O ECA não dispõe sobre recursos mínimos nem máximos, limitando-se a reconhecer direitos e distribuir responsabilidades entre a família, a sociedade e o Estado. Portanto, não entra na lógica do possível, e sim afirma a razão dos direitos da criança com prioridade absoluta. Entretanto, delimita as possibilidades de sua interpretação, no artigo 6°, apontando como critérios, entre outros, "os fins sociais" e as "exigências do bem comum", ambos conceitos indeterminados mas possivelmente relacionados com limites políticos ou econômicos à eficácia instrumental da lei. Neste sentido, o ECA é débil como ferramenta jurídica de restabelecimento da igualdade. Normatiza medidas de proteção individual, garantindo a eficácia dos direitos individuais mas, ao mesmo tempo, tratando como se fossem isolados problemas sociais. Também positiva a proteção judicial dos interesses individuais, difusos e coletivos, que referem-se à oferta de condições concretas, pelo Estado, para a eficácia dos direitos da criança e do adolescente, tais como serviços de educação, saúde, etc. (Artigo 208 ECA).

 

O fato de igualar na lei o que é desigual na realidade tem dois efeitos simbólicos importantes. O primeiro, relativo à aceitação social do direito das crianças serem tratadas de forma igualmente digna, independentemente de sua condição econômica ou social, o que na legislação anterior não era garantido. O segundo, por outro lado, relativo ao encobrimento, através do discurso jurídico, da real desigualdade que conforma o quadro da infância e juventude brasileiro .

 

O critério da possibilidade aplicado à eficácia dos direitos econômicos, sociais e culturais é conseqüência prática do discurso neo-liberal no direito. Ou seja, uma postura relativista que condiciona a realização destes direitos aos recursos disponíveis e que busca constantemente uma redefinição, redirecionamento e delimitação destes direitos em função de objetivos múltiplos e, às vezes, contraditórios relacionados, em última análise, com o desmantelamento do Estado social em benefício da rearticulação do Estado liberal em moldes globalizados.

 

Uma segunda conseqüência é a busca de alternativas ao papel do Estado na eficácia destes direitos. Uma das principais mudanças trazidas com o ECA é a descentralização e a participação popular como princípios básicos das políticas públicas de atendimento. Em geral, o incremento do mercado informal, as estratégias de sobrevivência comunitárias, o voluntariado, etc., foram formas de enfrentamento da ausência do Estado desde sempre no Brasil. Hoje em dia, com a diminuição cada vez maior do Estado no campo social, este movimento tende a crescer, tanto que já é incorporado pelo próprio ordenamento jurídico.

Claro está que a diminuição do Estado aparece disfarçada de democratização através do aumento do poder popular nas decisões que dizem respeito à sociedade. Este processo, portanto, termina por legitimar a lógica neo-liberal do Estado mínimo. Calvo (1998-c, p. 13) defiende que:

 

"Los llamamientos a la responsabilidad de los indivíduos y de la sociedad civil en la realización de los valores de solidariedad, bienestar y cohesión social son perfectamente legítimos y defendibles, siempre que no sean una mera coartada para escamotear los derechos sociales de una parte de la sociedad en beneficio del bienestar de otros sectores de la misma. Dicho de otra manera, no es lo mismo patrocinar el papel de los movimientos sociales y de la sociedad civil en la defensa y promoción de los derechos sociales, que utilizar la retórica de la libertad y el argumento del retorno al protagonismo de la socidad civil frente al Estado para legitimar torcidamente la sociedad de los tres tercios y justificar que al menos una parte de la población viva bien."

 

Mas, por outro lado, esse processo de democratização, ainda que limitado e condicionado a esta lógica de desresponsabilização do Estado em relação aos problemas sociais, apresenta o potencial transformador que se apoia na possibilidade de aproveitamento deste espaço de participação, ampliado ao máximo na correlação de forças durante a elaboração da Constituição Federal e do ECA, para influenciar realmente nas decisões relativas à eficácia instrumental dos direitos das crianças e adolescentes. Isso porque o âmbito de participação legal começa na deliberação das políticas e vai até a gestão e controle de orçamento para seu financiamento.

 

Levando em conta as funções negativas e positivas do direito, isto é, por um lado, limitar o poder enquanto ameaça aos direitos fundamentais e, por outro, potencializá-lo enquanto promotor da realização destes direitos, conclui-se que o ECA desempenha as duas. A primeira, através de dispositivos como o devido processo legal garantido para os adolescentes autores de ato infracional, ou a fiscalização de entidades de atendimento por parte do Ministério Público, entre outros. A segunda, cumpre-se mediante a regulamentação dos Conselhos de Direitos e Tutelares, diretamente influentes na deliberação, controle e execução das políticas e medidas de proteção integral e através de serviços e prestações, contemplando também a assistência social.

 

3.3. Eficácia horizontal

 

A desigualdade formal entre cidadãos e Estado justificou a garantia dos chamados direitos fundamentais frente ao poder. Entre particulares, entretanto, a igualdade formal não corresponde à igualdade real, o que levou ao reconhecimento de garantias de direitos fundamentais também em nível horizontal. Prieto Sanchís (1990, p. 209) afirma que, a partir daí, postula-se a:

 

"formulación de unos derechos resistentes que sirvan como barrera protectora de la libertad frente a los sujetos privados. (...) En estas condiciones, los derechos humanos no sólo tienen sentido y operatividad en las relaciones de Derecho privado, sino que incluso algunos despliegan su eficácia principalmente en este ámbito".

 

Portanto, podemos definir a horizontalidade dos direitos fundamentais como as garantias de sua realização entre os particulares. Pressupõe uma desigualdade real entre os cidadãos, que dá margem à violação de direitos entre si, apesar da igualdade formal explícita na lei. Ou, ainda, pressupõe a coexistência de direitos que concorrem, em termos de proteção, na convivência social, o que dá lugar a limites entre os direitos fundamentais.

 

A existência, ou validez, da horizontalidade dos direitos é um fato inquestionável. A questão que se coloca é a de sua eficácia. Para Peces-Barba (1995, p. 619-39), não se deve questionar a validez das normas que garantem os direitos fundamentais entre os particulares, e sim sua eficácia. E, para tanto, afirma a necessidade de examinar os mecanismos que dão eficácia a estas normas. O autor diz que o recurso de amparo não é a única garantia dos direitos fundamentais em caso de violação, pois estão também as vias penal, administrativo-contenciosa, civil, etc..

 

No Brasil, onde não existe a figura do recurso de amparo junto ao Tribunal Constitucional, os limites da eficácia dos direitos fundamentais, tanto vertical como horizontal, estão no próprio ordenamento legal. A inexistência do mecanismo constitucional induz a uma produção crescente de normas de fundo estatutário e legal, que regulamentam ao máximo estes direitos. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, somente em nível federal, já surgiram 38 normas (entre leis, decretos, portarias e resoluções) que dispõem sobre os direitos fundamentais das crianças e adolescentes. Além disso, seguem vigentes outras vinte, anteriores à Constituição e, ainda, está toda a normatividade de nível estadual e municipal, que visam dar eficácia aos direitos fundamentais positivados na CF e ECA. Toda esta normatividade refere-se à eficácia vertical e horizontal dos direitos das crianças.

 

Quanto à eficácia horizontal, um dos principais problemas que se colocam são os conflitos ou limites entre direitos fundamentais. No Brasil, este problema se complica devido a uma "banalização" do conceito de direito fundamental, que faz com que todos possam invocá-los legalmente em casos de conflitos, apesar de nenhum ser realmente garantido constitucionalmente. Aparte tal complicação, é certo que surgem questões sérias de conflitos de direitos entre distintos cidadãos, tanto entre crianças como entre elas e adultos. Exemplos são episódios de violência sexual entre adolescentes e crianças, quando coloca-se a necessidade de proteção de ambos em seus direitos à vida, proteção integral, liberdade, intimidade, etc. Ou quando uma criança furta comida de um pequeno estabelecimento comercial, e recebe em troca uma bala do comerciante, que se alega em seu direito de defesa de propriedade. Ou ainda, quando um adolescente agride um educador e confrontam-se direitos à integridade física de ambos. Ou quando um adolescente viola sistematicamente várias mulheres (meninas e adultas), e tem seu direito à intimidade e imagem violado pelos meios de comunicação de massa, que divulgam seus dados alegando o direito à segurança de toda a comunidade. Todos estes exemplos referem-se ao estereótipo de criança perigosa em conflito com a segurança cidadã, o que traz à luz a ambigüidade entre as finalidades do ECA, antes descrita.

 

Mas há casos nos quais a criança é vista como em perigo, quando os conflitos de direitos não se encontram mais simples. Por exemplo, o trabalho infantil num contexto cultural em que é visto como importante para o desenvolvimento da personalidade e caráter, por parte de seus pais, que prejudica seu direito ao tempo livre e, muitas vezes, a estudar. Ou a punição física como elemento pedagógico em contextos familiares em que justifica-se socialmente, que vai de encontro ao direito da criança à sua integridade física e emocional. Ou, ainda, casos nos quais o direito de opinião das crianças é conflitante em relação ao direito de decisão dos pais sobre seu desenvolvimento integral. Ou quando os meninos recebem bebidas alcoólicas desde muito pequenos, em contextos culturais ou familiares onde o álcool não está visto como prejudicial à saúde. Todos estes exemplos referem-se a conflitos básicos entre direitos das crianças e dos adultos, onde especialmente apresenta-se o confronto entre o pátrio poder e a liberdade ou condições de autonomia das crianças.

 

Mais que discutir a eficácia dos direitos fundamentais entre particulares e seus conflitos e limites é necessário, ainda, examinar as condições formais e concretas para que seja garantida. Afinal, a garantia da eficácia horizontal dos direitos depende, em grande medida, da proteção jurídica e, em última análise, da atuação do poder público para sua realização. Perez Luño (1995, p. 23) afirma a necessidade de:

 

"actuación de los poderes públicos encaminada a 'promover las condiciones para que la libertad y la igualdad del indivíduo y de los grupos en que se integra sean reales y efectivas', así como a 'remover los obstáculos que impidan o dificulten su plenitud' a tenor de cuanto expresamente postula el artículo 9, 2 de nuestra Constitución".

 

Com isso o autor alude ao caráter positivo ou promocional das normas para que se realizem os direitos fundamentais também entre os cidadãos.

 

O ECA normatiza a defesa dos membros da sociedade civil entre si, como por exemplo coibindo a violência institucional através de registros e fiscalização das entidades privadas de atendimento, e reprimindo a violência familiar, através de medidas pertinentes aos pais e responsáveis, responsabilização da comunidade e atribuições dos Conselhos Tutelares. Com isso, cumpre sua função negativa em relação à eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Mas não contribui com a força necessária para a superação das desigualdades que existem na sociedade civil, limitando-se a declarar os direitos fundamentais e os interesses individuais, difusos e coletivos a serem protegidos para sua realização. Com isso, segue a (i)lógica constitucional brasileira, de positivar direitos sem as garantias de mesmo nível para sua realização.

 

4.      Eficácia simbólica

 

A eficácia simbólica em sentido genérico pressupõe, em seu aspecto negativo, uma violência, na medida em que impõe, através da linguagem, uma representação social da realidade, buscando um consenso apoiado no desconhecimento da arbitrariedade e no reconhecimento de sua legitimidade. Caracteriza-se pelo poder de impor como legítima uma mensagem cujo conteúdo real ou latente é desconhecido do receptor, através de eufemismos e outras técnicas de retórica legal ou política. Esta mesma violência pode, entretanto, estar a serviço de objetivos contraditórios, como por exemplo o controle social e a subversão de relações autoritárias de poder. Neste sentido, apesar de sempre implicar a violência da linguagem implícita, a eficácia simbólica pode, também, expressar um aspecto positivo, de construir ou transformar aspectos subjetivos da realidade, o que pode contribuir para a reconfiguração concreta de relações de poder.

 

Quando o conteúdo simbólico da lei, isto é, quando a mensagem que se busca transmitir através do discurso jurídico é, em si, ampliadora ou garantidora de direitos, ou quando a lei representa um avanço em relação a normas anteriores que restringiam direitos, etc., a eficácia simbólica se apresenta em seu aspecto positivo. Quando esta mesma lei, entretanto, não é implementada, quando supõe-se haver sido elaborada em função exclusiva de sua eficácia simbólica em sentido específico, isto é, deliberada no bojo de uma estratégia mais geral de legitimação da ordem social vigente, surge seu aspecto negativo pois, ao mesmo tempo em que não realiza suas finalidades concretas, termina por legitimar simbolicamente o poder a partir de seu discurso jurídico.

 

Neste trabalho, referimo-nos à eficácia simbólica do ECA em sua cara positiva, construtora da realidade a partir de mudanças nas representações sociais da infância, desde uma ótica discriminadora e restritiva de direitos, até uma visão mais ampla e democrática de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, suas conseqüências nas políticas sociais e, especialmente, na realização destes direitos. Quanto ao seu aspecto negativo decorrente de dificuldades em seu processo de implementação, preferimos apostar que se trata mais de uma questão de trabalho e de correlação de forças do que de um cálculo ou estratégia premeditada, como se o ECA houvesse sido promulgado para não ser implementado. A origem da lei informa a natureza contraditória de sua elaboração, a partir de forças sociais representantes de, basicamente, duas vertentes opostas.

 

Supomos que, na sua implementação, essa correlação continue fazendo-se atuante. Podemos falar de omissão deliberada do governo em atender os direitos econômicos, sociais e culturais das crianças e adolescentes, constituindo-se aí uma eficácia simbólica negativa do ECA, na medida em que credencia o Estado brasileiro como sujeito atuante no conjunto do movimento internacional em defesa dos direitos humanos e, especialmente, das crianças e adolescentes, quando na realidade, estes direitos são violados sistematicamente. No que concerne à atuação de outros setores responsáveis pela implementação do ECA, entretanto, é difícil ver uma premeditação contra sua eficácia instrumental. Melhor seria investigar em que medida as dificuldades de implementação do ECA são causadas por políticas, deliberadas ou não, por parte de diferentes instâncias do poder público/privado que se conforma a partir da lei.

 

Assim, a eficácia simbólica do ECA, em sentido genérico, constitutiva de discursos, é positiva em relação ao seu conteúdo formal, mas negativa em relação ao fato de não ser implementada e, assim, servir à legitimação de um projeto de restrição de direitos apoiado na retórica de sua garantia.

 

4.1. A mudança de paradigma

 

No contexto brasileiro a substituição do termo menor (em situação irregular) pelos termos criança e adolescente (sujeitos de direitos) é a mudança com maior potencial simbólico do novo paradigma, pois representa a síntese da superação de uma legislação e das políticas correspondentes de corte repressivo e discriminador à uma legislação e políticas universais e participativas de proteção integral da infância e da adolescência . O caráter simbólico está em que tenta, mediante um novo discurso, transformar as representações de infância e adolescência na sociedade e nos poderes públicos . Hoje em dia, a correlação de forças entre defensores dos direitos das crianças e menoristas (defensores do Código de Menores) é quase equilibrada nos meios intelectuais, políticos, ativistas, técnicos, profissionais e, principalmente, no espaço que se costuma chamar de opinião pública. A disputa ideológica em torno a distintas representações de infância e adolescência é visível nos meios de comunicação de massa, debates acadêmicos e políticos e sua expressão prática é visível nas políticas e programas de atendimento à infância desamparada, seja em instituições de proteção, internamento, educação, saúde, recreação, etc..

 

A força do termo menor, como símbolo do paradigma anterior, deve-se não somente a seu poder evocatório de uma representação social ligada a uma lógica de sociedade e Estado profundamente arraigada na sociedade brasileira (autoritarismo e clientelismo), como também ao fato de fazer parte de uma estratégia de permanência e reforço no imaginário popular, através do manejo de recursos de comunicação social.

 

Por outra parte, o potencial simbólico do conceito de criança e adolescente vem reforçado por influência internacional (direitos humanos) e, principalmente, por uma mudança de postura e discurso de importantes segmentos da sociedade, como recursos de formação de opinião dentro e fora dos meios de comunicação de massa, também com respaldo em amplos setores da chamada opinião pública. Além disso, afinal, o paradigma atual é vencedor na disputa pela verdade da forma jurídica, ou seja, conseguiu impor-se como parte do ordenamento jurídico geral, situado na Constituição, o que confere-lhe um status de confiabilidade como legítima e oficial. Mas também é verdade que:

 

"la lucha por la determinación del sentido de los textos jurídicos no termina con la promulgación" (Villegas 1993, p. 83).

 

Sobrevivem, nesta correlação de forças, a par da legislação atual, não só a eficácia simbólica do paradigma anterior, mas também uma eficácia instrumental decorrente de posturas práticas remanescentes da representação de infância em perigo e perigosa oriunda do antigo Código de Menores.

 

Neste sentido, podemos afirmar que estão-se construindo, historicamente, as condições sociais para o reconhecimento e, consequentemente, para o alcance de uma eficácia instrumental e simbólica do ECA, e que estas condições sociais constituem-se em aspectos objetivos e subjetivos dependentes da correlação de forças sociais antagônicas que coincidem no tempo. Assim, não se pode falar de superação do paradigma anterior, mas sim de uma simultaneidade tensionada de representações de infância - e de Estado - na sociedade brasileira.

 

Todos estes questionamentos sugerem a questão da potência do direito para construir representações ou práticas. O ECA representa a tentativa de impor uma representação de infância na sociedade brasileira mas, ao mesmo tempo, expressa ou sintetiza essa mesma representação, já forte na sociedade, tentando impor-se mediante o discurso e os instrumentos jurídicos. Ou seja,

 

"ni el derecho tiene el poder de transformación social que dicen sus normas, ni sus normas se reducen a lo que la sociedad quiere hacer de ellas" (Villegas 1993, p. 249).

 

Ambas alternativas são válidas para explicar a correlação entre direito e representações sociais e, especificamente neste caso, entre o ECA e as representações sobre infância e adolescência no Brasil. Em decorrência, não está demais afirmar que o ECA, mais que uma representação de infância, expressa ou define uma visão de homem, de sociedade e de Estado que se confronta com outras visões de mundo no mesmo contexto histórico.

 

4.2. A prioridade absoluta

 

O conceito de prioridade absoluta é o correlato jurídico brasileiro da centralidade que a infância assume, internacionalmente, no panorama dos direitos humanos. Além de uma eficácia instrumental, definida no parágrafo único do artigo 4° do ECA, este princípio pretende ter o poder simbólico de propor uma representação de sociedade fundamentada nos direitos humanos e, especialmente, nos direitos da criança e do adolescente. Os limites de tal proposta são óbvios num sistema historicamente calcado por uma visão adultocentrista ou, pior, patrimonialista, no qual o ser humano é secundarizado por interesses políticos e econômicos próprios da lógica mercantilista.

 

O conceito de prioridade absoluta aparece como critério básico para a efetivação dos direitos das crianças e adolescentes pela família, comunidade, sociedade em geral e poder público. Entretanto, o parágrafo único do artigo 4° delimita a prioridade absoluta em quatro elementos: primazia de receber proteção e socorro em qualquer circunstância; precedência do atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção da infância e juventude.

 

4.3. Os direitos fundamentais das crianças e adolescentes

 

A importância de discutir os direitos fundamentais está, de acordo com Ferrajoli (1997, p. 916) em que eles sempre correspondem a valores vitais da pessoa histórica e culturalmente determinada. Para este autor, é pela sua qualidade, quantidade e grau de garantia que pode ser definida a qualidade de uma democracia e medir-se seu progresso. Daqui podemos começar a pensar sobre que tipo de democracia constitui-se no Brasil, a partir da realidade dos direitos fundamentais.

 

Os direitos fundamentais positivados no ECA são: direito à vida e à saúde, à liberdade, respeito e dignidade, à convivência familiar e comunitária, à educação, à cultura, esporte e lazer, à profissionalização e à proteção no trabalho (artigos 7° a 69 ECA).

 

Partimos do pressuposto de que somente podemos falar de direitos quando, além de constitucionalizados e normatizados, são passíveis de exigência e, principalmente, quando são real e concretamente garantidos aos cidadãos. Assim, denominar as crianças e adolescentes brasileiros como sujeitos de direitos tem um valor moral e político considerável, mas na realidade não corresponde à situação concreta da maioria da população infantil e jovem. Em outras palavras, tem uma eficácia simbólica mas não instrumental.

 

A especificação dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes acompanha um processo mais geral que atinge também outras parcialidades como idosos, mulheres, pessoas com vulnerabilidades específicas expostas a restrições físicas e sociais (por exemplo, surdos, deficientes físicos, etc.), povos indígenas, etc..

 

Não deixa de ser inovadora a denominação de fundamentais a direitos legais e significa, sem dúvida, uma intenção revolucionária com conteúdo simbólico, no sentido de atribuição de direitos novos a novas parcelas da população, antes apartadas da cidadania. De concreto, deixa esta intenção a possibilidade de que se busquem mecanismos de exigibilidade destes direitos, tanto como de todos os direitos fundamentais constitucionalizados.

 

Considerações finais

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente é fruto de um processo histórico de disputa entre distintas representações da infância desamparada. É resultado de uma construção coletiva entre setores públicos e privados. Como tal, é contraditório, pois reflexo e resultado desta correlação de forças. Apresenta, como prova, ambigüidades de fundo que trazem implicações em seu processo de implementação.

 

Se é verdade que o papel do Estado em relação aos direitos fundamentais é muito mais determinante na efetivação dos direitos da criança do que as representações de infância que os informam, as perspectivas de implementação do ECA aparecem como múltiplas e contraditórias, pois há uma ambigüidade de fundo entre diferentes visões de Estado que aparecem no texto legal.

 

No movimento mais geral brasileiro de disputa pela realização dos direitos humanos num contexto adverso moldado pelo projeto neo-liberal, o ECA apresenta uma eficácia simbólica importante, tanto positiva, como bandeira de luta pela defesa dos direitos das crianças e adolescentes, quanto negativa, ao não ser implementada e servir de mecanismo de legitimação de um Estado que não cumpre seu papel de garantia efetiva dos direitos fundamentais, frente à comunidade internacional.

 

Esta ineficácia instrumental do ECA apresenta um caráter intencional evidente, no contexto atual de desmanche das já escassas garantias constitucionais dos direitos fundamentais. Antes disso, entretanto, já se observam os indícios da posição do Estado brasileiro em buscar uma eficácia simbólica tanto em nível interno como internacional, como demonstra a documentação sobre a participação do Brasil nos grupos de trabalho e, principalmente, nas exposições de motivos de reservas e votos a instrumentos internacionais e regionais sobre direitos humanos (Trindade 1998).

 

Apesar disso, grande parte do esforço em positivar direitos fundamentais às crianças e adolescentes tem-se multiplicado em esforços cada vez mais amplos e profundos em torno à sua implementação. A capacidade de ampliação quantitativa e qualitativa da participação da sociedade na elaboração, deliberação, gestão e controle das políticas para a infância, é a chave política para a garantia da implementação da lei. A vontade política do Estado, nesse sentido, poderia ser medida pelo grau de investimento na institucionalidade já legalmente instituída para esse fim, e não necessariamente pela criação de novas e velhas políticas de assistência, por mais democráticas que pareçam. Enquanto as instituições permanecerem moldadas em matriz autoritária, pouco ou nada adiantarão retoques administrativos ou técnicos mais ou menos criativos.

 

As finalidades do ECA aparecem polarizadas principalmente em torno a duas lógicas coerentes com sua natureza promocional, tendendo ora à proteção, ora ao controle social sobre a infância e a adolescência e, consequentemente, as famílias e a sociedade. Essa ambigüidade tende, na prática, a dar margem a predominância do controle, ainda que inseridas em estratégias protetivas ou preventivas, o que demonstra a força da representação social sobre a infância perigosa frente à infância em perigo.

 

A proteção integral da infância é um paradigma não totalmente isento de ambigüidades e, desta forma, pode atender a diferentes projetos de intervenção, de cunho mais ou menos tutelar ou autonomista. O fiel da balança será seu correlato "sujeito de direitos", garantindo-se a oportunidade de, protegida das ameaças e violações de seus direitos, a criança poder desfrutar de toda a autonomia que sua condição de pessoa em desenvolvimento físico, emocional e intelectual permitir.

 

A garantia dos direitos dos adolescentes em conflito com as normas jurídicas não é violada apenas nas fases de execução das medidas sócio-educativas, devido às péssimas condições das entidades de internação. Nem tampouco pelo escasso empenho na implementação das medidas abertas e semi-abertas. Há uma ambigüidade básica no próprio modelo de justiça juvenil desenhado no ECA, que expõe uma questão tampouco resolvida no plano internacional, que é entre um caráter mais penal e garantista e um caráter mais pedagógico e flexível. Ambos, ainda, encontram-se contraditórios em relação com a realidade, onde não são oferecidas nem garantias, nem educação ou proteção.

 

O direito é, ao mesmo tempo, instrumento e resultado de transformações sociais. Não tem poder de, sozinho, transformar a realidade mas, por outro lado, contribui tanto simbólica como instrumentalmente para essas transformações. O ECA é exemplo disso, pois é resultado de um processo histórico ao mesmo tempo em que implica em mudanças no conteúdo, método e gestão das políticas para a infância e adolescência, tudo pelo menos em nível formal. No movimento atual de defesa dos direitos da criança no Brasil, adquire um caráter de bandeira de luta, simbolizando todo um projeto de sociedade apoiado nos direitos humanos e no interesse primordial da criança e do adolescente. Esse caráter, entretanto, favorece uma visão acrítica e fetichista da legislação que dificulta uma análise mais profunda de seus limites enquanto mecanismo de transformação social.

 

As políticas sociais, principais instrumentos de implementação do ECA, apresentam-se de forma aparentemente caótica, casual, pontual, enquanto iniciativas do poder público de caráter assistencialista. De outro lado, aparecem como superficialmente articuladas de forma lógica em função do discurso jurídico ou político que as legitima. Entretanto, constituem-se em todos complexos e articulados de acordo com razões globais mas determinadas pelas condições estruturais e conjunturais em cada momento histórico.

 

Protetores e protegidos interagem a partir de situações hegemonicamente definidas como de ameaça à ordem social. A intervenção provém de estratégias repressivas, preventivas ou protetivas para lidar com estas supostas demandas, através de meios cada vez mais administrativos e informais, e menos judiciais e garantistas. As práticas concretas que dão corpo a estas estratégias dirigem-se a remediar a pobreza, compensar a violência ou promover os direitos individuais e econômicos, sociais e culturais das crianças e adolescentes.

 

As perspectivas de implementação do ECA se apresentam, à luz destas considerações, apoiadas na riqueza do texto legal e no entusiasmo dos movimentos sociais de atendimento e defesa de direitos das crianças e adolescentes. Têm sua via obstaculizada, entretanto, principalmente pela determinação do governo em desresponsabilizar-se da questão social, repassando à sociedade a sua parte do compromisso assumido internacionalmente.

 

As perspectivas de investigação que surgem a partir deste estudo são tão amplas que, seguramente, extrapolarão inclusive o projeto de pesquisa para a elaboração da tese doutoral. Porque à riqueza de conceitos inerentes à análise sócio-jurídica do texto do ECA sobrepõe-se a riqueza de políticas, resultados, dificuldades, contradições, obstáculos, potencialidades, etc. do contexto concreto de sua implementação, que demandará um esforço considerável de trabalho de campo para uma aproximação mais efetiva ao tema.

 

Numa avaliação breve, consideramos que o Brasil tem avançado muito em nível normativo mas pouco em nível de efetiva garantia dos direitos fundamentais, também no campo da infância e juventude. As expectativas mais otimistas depositam justamente na sociedade, através de canais de participação direta, suas esperanças de implementação do ECA, tanto por pressão sobre o Estado como por sua própria iniciativa e criatividade. Desde um ponto de vista pessimista, esta atitude termina por legitimar a meia democracia institucionalizada no Brasil, ou seja, apoiada na participação mais que na garantia dos direitos fundamentais.

 

Este trabalho situa-se como uma contribuição ao enriquecimento do debate sobre os limites e possibilidades de implementação do ECA a partir de uma análise sócio jurídica do texto legal, contextualizada no panorama histórico e atual das políticas para a infância no Brasil. Não há primeiro e segundo passo. Há um único movimento contraditório no qual o que importa é situar e buscar, com prioridade absoluta, o interesse primordial da criança e do adolescente, nem fetichizando a lei, nem justificando a realidade, senão criticando a primeira e tentando constantemente transformar a segunda.

 

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