A VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE NO BRASIL

 

 

Rodrigo Stumpf González

 

 

 

Resumo: A violência cometida contra crianças e adolescentes, em especial meninos e meninas de rua é um fato que se encontra em evidência. Esta violência é, por um lado, estrutural, com a negação das condições de saúde, educação e saneamento a uma parcela da população. Por outro, a formação de grupos de extermínio, como forma de justiça privada, torna o assassinato uma das causas importantes da mortalidade juvenil no Brasil. A superação desta situação conta com mudanças legais como a adoção da Doutrina da Proteção Integral, da ONU, pela Constituição Federal de 1988 e sua regulamentação através do Estatuto da Criança e do Adolescente. O Estatuto cria instrumentos que possibilitam a intervenção na realidade social: os Conselhos de Direitos e os Fundos da Criança e do Adolescente, nacional, estaduais e municipais e os Conselhos Tutelares. Por fim, são necessárias medidas concretas para apuração e responsabilização nos casos de violência cometidos, ainda que nossas estruturas policial e legal tenham diversas deficiências.

 

Palavras-Chave: Violência, Criança, Adolescente

 

Abstract: The violence against children and adolescents, specially street children is a fact now in evidence. This violence is structural, by one side, with the negation of conditions of health, education and sanitation for most of the people. By the other side, death squads, as form of private justice, make assassination one of the important causes of juvenile mortality in Brazil. The change of this situation has the contribution of the adoption of the Whole Protection Doctrine, from UN, in the Federal Constitution of 1988 and its regulation by the Child and Adolescent Statute. The Statute create instruments to act over social reality: Councils and Funds of Child and Adolescent Rights, at national level, in the states and in the towns and Guardian Councils. Finally, it's necessary concrete measures to charge the authors of the violence, although the police and legal structures are deficient.

 

 

Introdução

 

Hoje se encontra em evidência na sociedade brasileira a violência[1] sofrida por crianças e adolescentes, em especial meninos e meninas de rua, como fato ultrajante e merecedor de providências por parte da Sociedade e do Estado.

 

Esta violência possui várias faces, desde as desigualdades econômico-sociais até a prática do extermínio. Com este estudo, mais do que apenas uma análise acadêmica da realidade, busca-se analisar suas causas e apontar alguns caminhos para sua mudança.

 

A primeira parte é dedicada à discussão da violência estrutural e do extermínio de meninos de rua. Na segunda parte, se aponta alguns caminhos para superação desta violência, com destaque especial para o Estatuto da Criança e do Adolescente e suas estruturas.

 

A Violência Estrutural

 

As diferenças sociais existentes na sociedade brasileira, bem como as sucessivas políticas econômicas adotadas pelo Governo Federal, em especial as políticas recessivas dos anos 80, ao afetarem a qualidade de vida da população, afetam diretamente a infância (CERVINIe CHAHAD, 1988; POERNER, 1987).

 

O processo de urbanização acelerada e a favelização das grandes cidades trouxe consigo o aumento do número de crianças nas ruas. A necessidade de crianças e adolescentes utilizarem as ruas como espaço de sobrevivência não é, certamente, um fato novo na história brasileira. As evidências estão espalhadas, desde os quadros de Debret, retratando crianças negras nas ruas do Império até os Capitães de Areia, de Jorge Amado, dos anos 40. Mas a falência do sistema repressivo de internatos coloca a nu esta situação, substituindo-se a violência institucional pelo extermínio.

 

As estatísticas na área da saúde infantil colocam o Brasil em 66º lugar, pela escala do UNICEF, baseada na taxa de mortalidade até 5 anos, junto a países como El Salvador(67) e bastante abaixo de vizinhos como Chile (97), Uruguai (93)    e Argentina (85) [2]

 

Esta situação é  o reflexo das condições precárias de saneamento, que atingem mais diretamente a infância [3]. A mortalidade na adolescência está relacionada principalmente com causas violentas (homicídios, acidentes, etc).

 

O processo de negação de cidadania de crianças e adolescentes completa-se com a evasão escolar, relacionada diretamente ao trabalho precoce. Este, na maior parte dos casos, ocorre sem a garantia de direitos trabalhistas e previdenciários[4].

 

É interessante notar que além da diferenciação vertical, entre as diversas classes sociais, existe também uma diferenciação horizontal, com mudanças significativas de indicadores sociais entre as regiões. Por exemplo,a probabilidade de mortalidade infantil é mais alta em setores com alta renda do Nordeste que entre a classe média-baixa do Sudeste/Sul. (IBGE, 1986)

 

Esta forma de violência mata silenciosamente muito mais que os esquadrões da morte, em todas as partes do país, e seu combate envolve mobilização de recursos financeiros e políticos de grande monta.

 

Ainda assim não podemos deixar de dar um tratamento especial às situações de violência que colocam hoje o país no banco dos réus frente à comunidade internacional - o extermínio [5] de meninos e meninas de rua.

 

O Extermínio

 

O assassinato de crianças e adolescentes ocorrido nos grandes centros urbanos tem merecido espaço destacado na imprensa nos últimos meses. Infelizmente este quadro de violência não é novo.

 

Opera-se sua descoberta pela Sociedade através do processo de organização de entidades como o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua que conseguiram trazer para a imprensa e para o grande público a denúncia dos fatos que vêm ocorrendo.

 

O extermínio de crianças e adolescentes foi objeto de pesquisas (IBASE, 1989; MNMMR/IBASE/NEV-USP, 1991) e foi denunciado em eventos como o II Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, ocorrido em Brasília em 1989.

 

O homicídio não é a única causa de mortes violentas de crianças e adolescentes nem é o Brasil o único país onde ocorrem [6]. O que choca, além da quantidade, é a aparente falta de motivos.

 

Esta violência relaciona-se com a crise do Estado brasileiro. Em nosso país o Estado ocupa um papel fundamental no fomento ao desenvolvimento social. Hoje, entretanto, ele não consegue realizar duas de suas tarefas básicas: garantia dos direitos individuais e pacificador da ordem pública.

 

O Estado, definido segundo Weber como detentor do monopólio da violência legítima [7], no caso brasileiro perdeu o controle da violência ilegítima. O poder paralelo do tráfico, os grupos de extermínio e os arrastões são elementos que denotam o retorno à violência privada característica do período medieval europeu.

 

A formação de grupos armados paralelos ao aparato estatal relaciona-se em primeiro lugar com o período de ditadura militar, onde surgiram esquadrões da morte e grupos paramilitares para auxiliar nas atividades de repressão.

 

Por outro lado, a combinação entre a corrupção dos órgãos policiais com o jogo do bicho e posteriormente o tráfico de drogas criou estruturas de poder paralelas em cidades como o Rio de Janeiro, onde a lei aplicada não é a oficial, mas a do potentado local.

 

Em ambos os casos os setores privilegiados de recrutamento de homens e armas são as polícias civil e militar e as empresas de segurança privada. Deve-se acrescentar a facilidade que o contrabando de armas pesadas tem encontrado para operar no Brasil.

Entre os maiores atingidos estão todos os não-cidadãos. Pessoas vivendo em nossa sociedade cujos direitos mais elementares são negados na prática. Entre estas pessoas um dos grupos mais atingidos são os meninos e meninas de rua.

 

Identifica-se aqui a situação proposta por O'Donnell em relação à homogeneidade de penetração das instituições do Estado de Direito [8] . Mesmo nos grandes centros urbanos da região Sudeste uma parcela razoável da população não tem garantias de defesa dos direitos civis básicos.

 

Devido a esta situação conjuga-se a miséria com a violência familiar, levando os jovens a buscar as ruas. Nestas ruas, além das formas tradicionais de violência sofridas, como a exploração sexual, do trabalho ou mesmo do produto do furto, hoje se agregam outras, passando da mutilação à eliminação física dos sujeitos atingidos por esta violência.

 

O extermínio é em geral caracterizado como "operação de limpeza", solicitada por comerciantes incomodados com a presença dos meninos no local, identificando estes como possíveis assaltantes, no presente ou no futuro[9].

 

Estas ações contam muitas vezes com a conivência, passividade ou silêncio pelo medo, por parte da população local. A concordância se embasa na negação de direitos humanos aos "bandidos"[10].

 

A polícia em geral tentava explicar a ocorrência dos casos de extermínio com "queimas de arquivo" ou disputa entre gangues. A pesquisa realizada pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, IBASE e NEV-USP ( MNMMR/IBASE/NEV-USP, 1991) ajudou a desmascarar esta justificativa. A grande maioria dos mortos não tinha antecedentes criminais, não portava armas ou drogas quando foram mortos.

 

As tentativas de dar resposta à questão, a partir da pressão de organismos e entidades internacionais como UNICEF e ANISTIA INTERNACIONAL resultaram na elaboração de um plano de combate à violência, feito por um grupo de trabalho do Ministério da Justiça e na realização de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara dos Deputados. O plano a tingiu poucos resultados práticos. A CPI contribui para trazer à questão para a ordem do dia, mas ainda se aguarda que seus encaminhamentos e propostas surtam efeitos.

 
A Superação

 

Por mais trágica que seja a situação, de nada serve chorar. Temos que lutar por mudanças. Neste sentido deve ser reafirmada uma relação direta entre democracia, cidadania e respeito aos direitos humanos. Um não convive sem o outro.

 

A construção de uma ordem democrática e o resgate da cidadania da população exige mudanças estruturais com a obtenção de uma ordem social mais justa. Isso só será obtido com mobilização da sociedade e a construção de uma nova proposta hegemônica de Sociedade. Pressionar o Estado e não apenas esperar por ele.

           

O processo de construção da nova ordem deve ser concomitante com o combate à violência cotidiana. Devemos denunciar e combater os atos de violência para romper com o ciclo de impunidade.         

 

As próprias crianças e adolescentes devem participar deste processo como cidadãos ativos, buscando não uma superação individual da situação, mas coletiva enquanto grupo. Não fazer por eles, mas com eles.

 

Um dos instrumentos que temos à disposição, atualmente, para esta luta, é o Estatuto da Criança e do Adolescente e suas estruturas. Mas há outros, tanto políticos como jurídicos, que devemos usar, buscando resultados efetivos no presente e não esperando pelo futuro.

 

A mudança de forma e de conteúdo: o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Proteção Integral

 

A visão tradicional da questão da infância separava, sem qualquer constrangimento, os ricos dos pobres. E estes últimos eram considerados "caso de polícia". (Costa, 1991)

 

Estas talvez sejam palavras duras, mas reais, para descrever como operava a doutrina da "situação irregular", consagrada pelo Código de Menores. Eram regidas pelo Código as situações envolvendo crianças e adolescentes em situação irregular, isto é, sejam os que praticaram atos infracionais, seja os que não tinham condições de sustento garantidas pela família. A resposta aos dois casos era a institucionalização, que no mais das vezes era feita através das Fundações Estaduais do Bem-estar do Menor (FEBEMs)

 

A Constituição de 1988 e, após, o Estatuto da Criança e do Adolescente, vêm consagrar a "doutrina da proteção integral", preconizada pela ONU. Por esta visão todas as crianças e adolescentes devem ter especial atenção para que obtenham proteção integral contra a violação de seus direitos. 

 

São importantes de ressaltar duas mudanças: uma de conteúdo jurídico-filosófico, outra de cunho simbólico. Quanto à primeira, crianças e adolescentes passam a ser vistos como sujeitos de direitos, isto é, cidadãos integralmente, e não apenas como objetos da atenção do Estado.

 

Em segundo lugar, o rompimento com a titulação de "menor". Embora sob esta denominação estivessem incluídos todas as pessoas abaixo dos 21 anos (maioridade civil) ou 18 (maioridade penal), somente os miseráveis eram assim tratados. Quando um meio de comunicação se refere ao "menor" nunca o faz acerca de um filho de alguma família próspera da alta sociedade. O Estatuto é da criança e do adolescente, porque aplica-se a todos, independente de sua situação social.

 

As Estruturas Previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) não é considerado uma lei avançada apenas pelo discurso ou proposição de direito de condições de vida para a juventude. Seu grande avanço é prever instrumentos para sua viabilização. Entre os principais encontram-se os Conselhos de Direitos, os Conselhos Tutelares e os Fundos da Criança. Como última instância é possível ainda recorrer à ação civil pública para responsabilização de autoridades que, por ação ou omissão, descumprirem o Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

            a) Os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente - existem já o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio Grande do Sul - CEDICA e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - CONANDA. Cada município deve formar seu Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, sendo que já existem cerca de 150 no Rio Grande do Sul.

 

Os Conselhos de Direitos são a execução prática do disposto no Art. 204 da Constituição Federal, garantindo a participação da população na formulação e controle das políticas de atendimento. Estão previstos no Art. 88 do Estatuto da Criança e do Adolescente, com a garantia de participação paritária para os representantes da sociedade.

 

O primeiro passo para a aplicação de uma política adequada de atenção à infância é a criação e organização do Conselho Municipal de Direitos. Através dele será possível formular e controlar a execução de políticas no interior do município - não só dos órgãos municipais, mas também de órgãos públicos estaduais e federais e organizações não governamentais de atendimento às crianças e adolescentes[11].

 

O trabalho do Conselho facilita a articulação com os programas de atendimento não-governamentais (por exemplo, os ligados às Igrejas) para que as ações deixem de ser paralelas e descoordenadas.

 

            b) Os Conselhos Tutelares - são órgãos não jurisdicionais encarregados de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Faz parte da proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente de desjurisdicionalização das questões sociais envolvendo crianças e adolescentes. Desta forma retira-se dos antigos juizados de menores, hoje juizados da infância e da juventude, as funções de assistência social.

           

Assim os casos que envolvam violação dos direitos de crianças e adolescentes são encaminhados ao Conselho Tutelar que busca soluções -seja encaminhamento ao Ministério Público ou Judiciário, quando necessário, seja no trabalho junto à família e comunidade, seja requisitando serviços públicos.

 

O Conselho Tutelar é formado por 5 pessoas, eleitas pela comunidade em processo organizado pelo Conselho Municipal de Direitos. Seus direitos e vantagens, inclusive remuneração, devem ser definidos em lei municipal. As competências estão no Estatuto da Criança e do Adolescente. Sua infra-estrutura deve ser fornecida pelo Poder Público Municipal.

Fundamentalmente é uma forma de comprometer as comunidades com a solução de seus problemas, rompendo com a política de "exportação", que consistia em enviar à Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) os jovens considerados problemáticos, e com a impunidade nas violações de direitos, devidas à dificuldade de acesso ou falhas na atuação de autoridades públicas.

 

            c) Os Fundos da Criança e do Adolescente - cada Conselho de Direitos deve ter vinculado a si um Fundo, conforme previsão do Estatuto da Criança e do Adolescente, como instrumento de captação de recursos.

 

Sabe-se que uma política de atendimento custa dinheiro e que os recursos em geral são escassos. Para permitir uma dilatação dos orçamentos destinados à área da infância e juventude foram idealizados os fundos.

 

Como fontes de recursos há a possibilidade de obter doações de pessoas físicas e jurídicas, mediante o desconto no imposto de renda; o recebimento de multas aplicadas pela Justiça nas violações do Estatuto da Criança e do Adolescente; contribuições de organismos internacionais e o repasse de recursos estaduais e federais (destacava-se a Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência (FCBIA), órgão do governo federal na área da infância, extinta por ato do Presidente em 1 de janeiro de 1995.), além do orçamento público.

 

Estes recursos podem ser utilizados para a manutenção dos programas de atendimento de entidades não-governamentais conveniadas bem como manter ações especiais do município visando à cobertura de lacunas das políticas básicas.

 

O Combate à Violência

 

A aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente é uma forma de coibir a violência contra crianças e adolescentes. Mas além das causas estruturais da violência, há medidas a serem tomadas nos casos individuais.

 

A tomada de medidas, em qualquer caso, depende da comunicação a alguma autoridade da existência do fato. As demais providências dependerão das possibilidades de apuração do ocorrido e identificação de responsabilidades.

 

Primeira limitação: cada vez mais fica demonstrado que grande parte dos atos de violência contra crianças e adolescentes ocorre dentro da família. Por isso esta violência fica oculta, sendo mantida na obscuridade por uma cortina de medo e constrangimento emocional.

           

Segunda limitação: o desenvolvimento na Sociedade de um sentimento de tolerância ou mesmo cumplicidade com a violência, aliado ao individualismo que busca apenas a defesa dos interesses pessoais, vendo no direito violado do outro um fato no qual não devemos nos envolver.

 

Nestas condições, muitos dos atos de violência praticados e testemunhados não são levados ao conhecimento das autoridades, não chegando nem ao menos a existir, sob a ótica do mundo jurídico.

 

Terceira limitação: a estrutura, muitas vezes precária e burocratizada, das instituições com competência para receber as denúncias. Assim, mesmo que algum cidadão mobilize-se e leve à autoridade a comunicação do fato, este poderá ter de esperar horas para ser atendido, sendo tratado às vezes como se ele fosse o agressor e não o outro. E a comunicação poderá cair na vala comum das demais ocorrências, vindo a ser investigada nas semanas ou meses após, quando a providência já poderá ser tardia (não se falando de quando não há interesse que a apuração seja feita).

           

Quarta limitação: a inexistência de garantias para o autor da denúncia ou para as testemunhas. Os interesses envolvidos e a periculosidade do agressor ou agressores podem colocar em risco a vida daqueles que se dispõe a testemunhar. A inexistência de garantias leva ao ocultamento, devido ao medo.

 

Digamos que seja possível passar esta primeira fase para o fato seja apurado e apontado  aos responsáveis. Neste caso a possibilidade de aplicação das medidas de proteção previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente é limitada pela inexistência, na esmagadora maioria de nossas cidades, dos serviços de apoio necessários.

 

Por outro lado, a aplicação das penas previstas na legislação penal além de não contribuir para o resgate do direito violado, pode expor o agredido a retaliações futuras do agressor.

 

Estas considerações longe de desvalorizar os caminhos legais, visam abrir os olhos para a necessidade de outras mudanças, paralelas à legislação, para que essa possa ser eficientemente aplicada.

 

Em primeiro lugar é necessário investir na mudança de mentalidade da Sociedade, reforçando as noções de solidariedade e comprometimento com os demais membros da comunidade, que é pressuposto para trazer à tona as agressões que ocorrem no dia-a-dia.

           

A reestruturação das instituições responsáveis pela apuração dos fatos e aplicação de medidas, não só enquanto organização burocrática, mas também na formação de seus recursos humanos, é imprescindível.

 

E aqui não se inclui apenas o aparato policial, tradicionalmente citado nestes casos, mas o Judiciário, o Ministério Público, a criação de uma verdadeira Defensoria Pública, mudanças nos hospitais, escolas, casas de abrigo e outros programas, e mesmo no tipo de formação dado nas Universidades aos profissionais que irão atuar nestas áreas. Necessário também a mudança do sistema penitenciário, que hoje é punitivo e desumano, e não reeducativo, além de uma maior utilização das penas alternativas (como a prestação de serviços à comunidade).

 

Junte-se a isso o rompimento da impunidade existente - neste caso não a propalada impunidade dos inimputáveis, mas a verdadeira impunidade dos responsáveis pela violência que, por distorções no uso do poder ou incapacidade do Estado, não sofrem as conseqüências legais de seus atos.

 

Cada uma de nossas instituições poderá fazer uma parte desta imensa tarefa na sua área mas, fundamentalmente, é unidos e mobilizados para a mudança que será possível levar a cabo transformações na Sociedade. E, desta forma, conquistar a existência do que poderia ser realmente um Estado de Direito - conceito que apenas de forma tênue se parece com o quê vivemos hoje - onde cidadania e direitos humanos sejam plenamente respeitados e a democracia seja uma realidade e não apenas um discurso.

 

 

Notas:

 

[1] Neste texto é considerada violência toda forma de negação de direitos contrária à garantia de proteção integral à infância e juventude, assegurada pelo artigo 227 da Constituição Federal

 

[2] A escala vai do pior (Afeganistão = 1) ao melhor (Finlândia = 131).Segundo UNICEF – 1990

 

[3] Barcelos, 1986

 

[4] Fausto e Cervini, 1991

 

[5] A Comissão Especial de Controle e Prevenção ao Extermínio do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio Grande do Sul adotou a seguinte definição de extermínio: "Extermínio é uma execução sumária e proposital de pessoa menor de 18 anos com a finalidade de eliminar a causa de ações vistas como inadequadas ou pelo fato de estar em situação de risco".

 

[6] O estudo de Yunes compara a mortalidade por causas violentas entre diversos países das América. Em 1986 o Brasil era o segundo em mortes por acidentes de trânsito - 21,4 contra 24,4 da Venezuela, segundo em homicídios - 14,8 contra 19,5 do México e o sétimo em suicídios, com 3,1 contra os 12,8 dos EUA, em primeiro ( taxa por 100.000 habitantes, considerados os mortos entre 5 e 24 anos).

 

[7] Weber, 1984.

 

[8] O'Donnell propõe uma visão alternativa à análise da existência de democracia nos países como uma realidade homogênea. Propõe um mapeamento entre as áreas "azuis", onde a lei e os direitos seriam garantidos e as áreas "marrons", onde estas garantias seriam fracas. Por exemplo, boa parte do nordeste do Brasil seria uma área "marrom".

 

[9] Faleiros, 1993.

 

[10] Caldeira, 1991

 

[11] vide obrigatoriedade de registro de entidades e inscrição de programas, arts. 90 e 91 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

 

 

 

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