DEFICIÊNCIA CONGÊNITA E AUTISMO SECUNDÁRIO: UM RISCO PSICOLÓGICO*

 

 

Maria Lucia Toledo M. Amiralian

Mestre em Psicologia Clínica.

 

Elisabeth Becker

Mestre em Psicologia Clínica.

 

 

A constatação de comportamentos autísticos em crianças que apresentam deficiências congênitas sugere a importância de que se considere as vicissitudes de desenvolvimento a que estão expostas estas crianças desde o seu nascimento.

 

O ser humano recém-nascido necessita neste momento evolutivo para cumprir a finalidade de seu desenvolvimento — constituição do sujeito psicológico —, de um outro ser humano que possa estabelecer com ele uma relação especifica, a maternagem.

 

São discutidas as peculiaridades de vinculação mãe-bebê com deficiência congênita e três possibilidades de vínculo são esquematizadas:

 

a)     mãe-fantasma do bebê desejado-bebê deficiente;

b)     mãe-deficiência-bebê desejado;

c)     mãe-bebê deficiente.

 

As vicissitudes derivadas destes padrões são analisadas como fatores de risco psicológico para a instalação do autismo secundário. Tais reflexões nos levaram a formular algumas medidas consideradas de caráter preventivo a tal ocorrência.

 

Os autores que se dedicaram a definir e pesquisar a etiologia do autismo, depararam-se até o presente momento com uma intensa heterogeneidade de possibilidade, inviabilizando sua atribuição a um único e específico mecanismo patológico.

 

Leboyer (1987) destaca que um quarto dos autistas têm uma doença orgânica associada e identificada. Por outro lado, a apresentação de um problema orgânico congênito, que possa resultar numa condição de deficiência, nem sempre resulta na apresentação de comportamentos autísticos nesse bebê. Entretanto, a literatura especializada descreve a presença destes comportamentos em crianças com patologias tão diversas quanto a anóxia neonatal, fenilcetonúria, ou fibroplasia retrolental, de tal forma que para estes quadros cunhou-se o termo autismo secundário por oposição aos casos que seriam considerados como autismo primário, para os quais nenhum diagnóstico associado é demonstrável.

 

Quando pensamos em um bebê recém-nascido, podemos defini-lo como um ser inacabado. O ser humano após seu nascimento passa por sucessivas etapas maturacionais, sendo muito pouco o que já vem pronto para funcionar, sejam simples funções fisiológicas ou complexas habilidades mentais. Podemos dizer então, que a finalidade do desenvolvimento neste período já deve contemplar sua especificidade: a constituição do sujeito. Todavia, para que isso ocorra é necessário um outro ser humano, que o acolha e possa promover, através de uma relação específica (maternagem), tal constituição.

 

Na ausência de alguém que cuide dele, o bebê não terá condições de sobrevivência, seja física ou psicológica.

 

Spitz (1973) descreve o recém-nascido como relativamente isolado do mundo exterior por um elevado limiar de percepção e denomina este período de pré-objetal. O bebê não diferencia seu corpo, seus afetos, não se diferencia de seu ambiente. O Eu não se diferencia do não-Eu.

 

A mãe, por sua vez, vivencia nesse momento a experiência do puerpério, cujas nuances psicológicas, tal como foram descritas por Soifer (1980), podem variar desde uma resolução satisfatória, propícia à ocorrência de uma saudável relação mãe-bebê, até um extremo patológico dificultador desta relação.

 

A relação estabelecida entre o bebê e sua mãe será assim a condição determinante de todo o processo de desenvolvimento deste ser recém-nascido.

 

Decorre disto que precisamos refletir sobre o vínculo que se estabelece entre a mãe e o seu bebê para compreendermos as vicissitudes no desenvolvimento, derivadas da condição de deficiência, reste período inicial, entre as quais se coloca o autismo secundário, tal como descrito por Leboyer (1987).

 

O nascimento de uma criança portadora de deficiência tem sido descrito na literatura especializada como uma experiência catastrófica e traumática, para a mãe e toda a família, com a chegada de alguém não esperado e a perda da criança desejada. Esta perda cairá sobre os pais abrindo uma ferida narcísica, que pode evoluir para as vicissitudes de uma depressão melancólica ou ativar mecanismos dissociativos individuais, que freqüentemente se expressam num jogo de atribuições de culpa, podendo levar até à dissolução do vínculo conjugal.

 

Predominando a condição depressiva, por mais que a família e o pai tentem ser continentes e facilitadores de uma aliança mãe-bebê, o nascimento de uma criança “defeituosa” é nitidamente um obstáculo maior a que a mãe, sentindo-se fortalecida, possa fortalecer seu pacto com o bebê, e assim buscar formas de interação capazes de suprir as intensas necessidades deste recém-nascido.

 

Uma análise da reação das mães frente a esta condição nos mostra três formas possíveis de conduta, que refletirão sua própria história, a qual, por sua vez, foi intensamente reativada pela expressão, no plano inconsciente, do desejo de maternidade que a gravidez propiciou.

 

Podemos assim observar:

 

a)      A mãe que não consegue aceitar a substituição do filho desejado pela sua criança real, ficando completamente submersa pelo luto. Vincula-se com o fantasma do filho desejado, morto mas constantemente insepulto. Não consegue jamais desvincular o filho real daquele de sua fantasia. Esta criança real será apenas uma imagem distorcida de seu filho imaginário. Há uma recusa em aceitar seu produto “falho”, “defeituoso” e “mal-feito”. Podemos supor que a ruptura narcísica que se operou nessa mãe a impede de encontrar nessa criança traços que se ajustem ao filho ideal que havia estabelecido. A relação entre eles tornar-se-á então frágil e freqüentemente incompreendida para ambos. A mãe não conseguirá aprender de maneira satisfatória as necessidades de seu bebê porque, como um outro fator complicador, a condição de deficiência impõe a esta criança uma forma diferente de expressão. A criança não conseguirá jamais satisfazer as expectativas desta mãe. Poderemos ver então um eterno desencontro que deteriorará o vínculo necessário à normalidade do seu desenvolvimento, favorecendo desta maneira a instalação de um autismo secundário.

 

Esta relação pode ser assim esquematizada: mãe-fantasma do bebê desejado-bebê deficiente.

 

b)      Em outros casos podemos ver a mãe estabelecendo um vínculo com a deficiência e não com seu bebê deficiente. São aquelas situações em que a deficiência torna-se a condição fundamental sobre a qual a relação mãe-bebê se estabelece.

 

A criança deixa de ter vida própria para ser apenas um objeto de satisfação dos desejos maternos. Essas mães podem tornar-se mártires ou vítimas de um castigo, missionárias ou orgulhosas guerreiras por seus filhos. Ao assumir um destes papéis a mãe considerará mais suportável a carga que a chegada desta criança lhe impôs. Todavia esta criança não será nada mais do que um objeto complementar deste personagem encarnado pela mãe (ou por ambos os pais): será uma “coisa” para ser heróica e sofridamente reparada. Terá um programa e um plano, nada ficará ao acaso, não haverá escolha possível, porque tudo já estará previsto (Jerusalinsky, 1989). Este tipo de relação também impedirá o aparecimento do sujeito psicológico, pois esta criança estará impossibilitada de vivenciar e expressar seus desejos, devendo apenas concordar passivamente com o que para ela foi planejado. Vemos aqui novamente uma condição propiciadora para a instalação do autismo secundário.

 

O esquema para esta relação poderá assim se definir: mãe-deficiência-bebê deficiente.

 

c) Encontraremos também aquelas mães que, vivenciando a depressão provocada pela ferida narcísica, permitem-se expressar a dor e o luto necessários à elaboração da perda do bebê da fantasia, que é a única forma de poderem se vincular a este bebê real portador de uma deficiência.

Apenas nestes casos poderemos encontrar uma relação mais saudável, que poderá propiciar as melhores condições para a emergência de um sujeito psicológico.

 

Nesta o esquema da relação será: mãe-bebê deficiente.

 

Entretanto não deveremos supor que esta condição seja isenta de dificuldades para ambos. Ao contrário, será sempre um caminho cheio de percalços, tanto para um, como para o outro. A mãe, ainda ferida em seu amor próprio, com sentimentos de culpa e depressão, precisará de um tempo que cicatrize sua ferida e possibilite a elaboração de seu luto. Muitas vezes, nestas ocasiões, necessitam de intensificado apoio familiar, bem como profissional, em sua luta para recompor sua posição de mulher disposta a criar um filho. Assim, nas primeiras semanas da vida do bebê a qualidade do vínculo estabelecido entre eles poderá não ser satisfatória, ou como diz Winmcott, “suficientemente boa”. Vemos então, neste momento, o perigo de que o bebê deficiente, que necessita de um acréscimo de estímulo para compensar suas dificuldades biológicas, receba menos estímulo do que o bebê normal. Devemos sempre nos lembrar de que este bebê frágil não admite demoras; o distanciamento da mãe, se prolongado, poderá trazer conseqüências graves e talvez irreversíveis.

 

Outro fator complicador será a reação do bebê à depressão materna, que pode traduzir-se em um afastamento do objeto depressivo (mãe) levando-o a um estado de passividade e isolamento regressivo e pré-objetal. Nestas condições a criança poderá desenvolver processos de defesa em relação a qualquer contato com o mundo externo a fim de que nada altere seu mundo interior, que adquire para ela uma importância preponderante. Esta atitude pode ser deter­minada também pela experiência de dor física, como no caso, por exemplo, de bebês portadores de glaucoma congênito.

 

Nesta etapa do desenvolvimento o bebê responde à estimulação com padrões reflexos, relativamente fixos. Com o passar do tempo ele aprende a modificar estas respostas reflexas e suas sensações primitivas de prazer e dor ligam-se a outras experiências sensoriais. O bebê deficiente, sendo menos adequadamente estimulado, terá um menor conjunto de pistas sobre o qual construirá as modificações progressivas de seus reflexos inatos, ocorrendo desde cedo possibilidade de limitação de respostas ao mundo exterior.

 

Podemos novamente presenciar riscos de desenvolvimento de condutas autuísticas por parte de um bebê nestas condições.

 

Por outro lado a mãe desconhece esse bebê diferente, seja pela especificidade da nova relação, seja pela especificidade imprimida pela deficiência. Vê-se às voltas tanto com a ausência de experiências anteriores similares, quanto com sua dificuldade em internalizar este bebê. A mãe não sabe o que é ser cego, portador de paralisia cerebral, ou de deficiência mental. Seus conhecimentos sobre estas condições estão freqüentemente envolvidos em idéias preconceituosas, originadas mais de conteúdos simbólicos, que assim se expressam, do que de um conhecimento realista da deficiência.

 

O vínculo inspirado no desejo de maternagem, que geralmente suficiente para guiar a mãe em suas atitudes para com o recém-nascido, aqui, algumas vezes, não é o bastante. Facilmente a mãe puérpera descobre as pistas que expressam as necessidades do seu bebê e este intercâmbio prazeroso facilita novas descobertas. Com o bebê deficiente este jogo é freqüentemente marcado por interrupções, a mãe tendo dificuldades para entender seu filho e descobrir caminhos facilitadores de interação com ele. Por outro lado, também ela é pouco realimentada pelas respostas muitas vezes limitadas de uma criança com falhas constitucionais.

 

Vale nesse momento citar Mannonni (1985) “Mesmo nos casos em que entra em jogo um fator orgânico, a criança não tem que fazer face apenas a uma dificuldade inata, mas ainda à maneira como a mãe utiliza esse defeito num mundo fantasmático, que acaba por ser comum às duas” (pág. XVIII).

 

O nascimento de uma criança com defeitos orgânicos se constitui assim como uma dificuldade de desenvolvimento não só por suas carências constitucionais mas, talvez com maior intensidade, pelas dificuldades de interação que ocorrem desde o início de sua vida. Podemos conjeturar ser esta, talvez, uma das razões propiciadoras da ocorrência de condutas autísticas encontradas entre as crianças portadoras de deficiências sensoriais, neurológicas, motoras ou mentais.

 

Colocam-se, em decorrência, algumas sugestões de medidas psicoprofiláticas que, utilizadas pelos psicólogos, ou pela equipe interdisciplinar, no momento oportuno, poderão vir a prevenir a instalação ou agravamento do autismo secundário às deficiências:

1 — Possibilitar aos pais e familiares o acesso à informação diagnóstica da real condição do recém-nascido (momento da notícia), em tempo, espaço e formulação apropriados à posterior emergência de seus sentimentos.

2— Acolher a expressão dos sentimentos dos pais, desde as fantasias mais negativas, como a expressão do desejo de morte ou abandono do bebê às mais realistas, como a depressão e a elaboração do luto.

3 — Suportar a ambigüidade da verdadeira e definitiva descoberta do potencial da criança e, conseqüentemente, da extensão da perda.

4 — Incrementar o vínculo mãe-bebê, mas também os outros vínculos do sistema familiar, como o conjugal, o parental e o fraterno, evitando a cristalização de uma relação simbiótica entre mãe e filho.

5 — Incentivar o pai a assumir seu papel frente ao bebê e à mãe, propiciando à criança deficiente a vivência do acesso ao mundo real, ordenado por regras e interdições imprescindíveis a uma adequada elaboração egóica, conquistada também pela diminuição da interdependência mãe-bebê.

6 — Valorizar a espontaneidade e as soluções criativas peculiares que mães e bebês estão descobrindo e desenvolvendo; isto opõe-se à prática, ainda vigente, de atribuir-se aos profissionais responsáveis todo o saber sobre as deficiências.

 

Conclui-se que cabe a estes especialistas a extrema sabedoria de resistir à tentação de “maternar” onipotentemente o bebê e seus pais.

 

A afirmativa de Fraiberg (1977) parece sintetizar nossas colocações:

 

“Uma criança que não pode registrar experiências devido a uma imperfeição central e uma criança que não pode registrar experiências porque seu mundo é vazio podem produzir o mesmo quadro clínico que nós denominamos autismo” (pág. 5).

 

Referências bibliográficas

 

1.  FRAIBERG, S. Jnsightsfrom the Blind. Comparative Studies of Bimdand Sighted lnfants. New York, Basic Books Publishers, 1977.

 

2.  JERUSALINSKY, A. Psicanálise do Autismo. Porto Alegre, Artes Médicas, 1984.

 

3.  JERUSALINSKY, A. e col. Psicanálise e Desenvolvimento Infantil. Porto Alegre, Artes Médicas, 1989.

 

4.   LEBOYER, M. Autismo Infantil. Fatos e Modelos. Campinas, Papirus,1987.

 

5.   MANNONNI, M. A Criança Retardada e a Mãe. São Paulo, Martins Fontes, 1985.

 

6.  SOIFER, R. Psicologia da Gravidez, Parto e Puerpério. Porto Alegre,

Artes Médicas, 1980.

 

7.  SPITZ, R. El Prinier Afio de Vida dei Nifio: Genesis de las Primeras Relaciones Objetales. Madrid, Aquillar, 1973.

 

Notas sobre o texto

 

* Trabalho opinativo apresentado no IV Congresso Mundial de Autismo, realizado em São Paulo em junho de 1990.

 

AMIRALIAN, M. L. T. M. & BECKER, E. Deficiência Congênita e Autismo Secundário: Um Risco Psicol6gico. Rev. Bras. Cresc. Des. Hwn. 11(2): São Paulo, 1992.

 

Nota sobre as autoras

 

Maria Lucia Toledo M. Amiralian é mestre em psicologia clínica, professora assistente do Instituto de Psicologia da USP-PSA e coordenadora do curso de especialização - O psicólogo e a pessoa portadora de deficiência.

 

Elisabeth Becker é mestre em psicologia clínica, professora assistente do instituto de psicologia da USP-PSC e coordenadora do curso de especialização - O psicólogo e a pessoa portadora de deficiência — Instituto de Psicologia da USP — Av. Prof. Mello Moraes, 1.721 Cidade Universitária — São Paulo — CEP 05508.