O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A POLÍTICA DE ATENDIMENTO

 

 

Marta Cecilia Ziliotto

Assistente social.

 

 

O presente artigo tem por objetivo demonstrar o processo de construção da política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente, preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

O artigo desenvolve, em primeiro lugar, os fundamentos constitucionais que dão base ao reordenamento jurídico-institucional incorporados pelo Estatuto e que alicerçam a nova ordem social. Tais fundamentos apontam não só as questões relativas à compreensão da criança e do adolescente como sujeitos de direito e como prioridade absoluta em todas as políticas sociais, mas também a participação comunitária, a municipalização e a descentralização como diretrizes norteadoras das mesmas políticas.

 

Em segundo lugar, o artigo destaca a questão da construção da política de garantia e atendimento dos direitos, enfatizando aspectos relativos à base doutrinária, às instâncias organizacionais, às linhas de ação e estratégias operacionais. Focaliza também os níveis de competência das esferas federal, estadual e municipal, colocando em questão o papel do poder público estadual, pouco definido pela legislação.

 

Introdução

 

O conhecimento e a análise do Estatuto da Criança e do Adolescente reveste-se de importância, por tratar-se de uma lei que estabelece nova concepção sobre os direitos da infância adolescência, indicando formas para a sua garantia.

 

O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) é produto de uma intensa mobilização nacional, por ocasião da Assembléia Nacional Constituinte. Ele “nasceu” de uma emenda popular, consignada no artigo 227 da Constituição Federal, que afirma ser a criança prioridade absoluta da nossa sociedade.

 

Para regulamentar o artigo 227, as entidades — que elaboraram a emenda popular da qual ele resultou — continuaram mobilizadas para a elaboração do ECA, que foi aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, promulgado pelo Presidente da República em 13 de junho de 1990 e entrou em vigor no Dia da Criança, 12 de outubro, do mesmo ano.

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente exige um esforço conjunto da sociedade civil e do Estado. O “problema da criança” não deve ser só do Estado, mas também da sociedade como um todo. Os segmentos organizados devem criar espaços onde o Estatuto possa acontecer e não se torne um “objeto de recordação”, para que daqui a alguns anos não se possa concluir: não aconteceu nada.

 

A letra é morta, a sociedade é que deve torná-la viva, implementá-la e fazê-la acontecer.

 

O ECA expressa anseios de todos os que estão em contato com os problemas das crianças e dos adolescentes brasileiros, principalmente os que estão em situação de risco e de marginalidade. O jornal Folha de S. Paulo, em matéria publicada na edição de 19 de outubro de 1990, afirma que 53 milhões de pessoas passam fome nesse país. Grande parte dessa população é constituída de crianças e adolescentes, o que nos permite antever um futuro sombrio: se não forem construídos equipamentos educacionais onde essas crianças tenham espaço para sobreviver, viver, crescer e exercer a cidadania, num futuro não muito distante deverão ser construídos sanatórios e hospitais para abrigar os “gabirus” resultantes da fome e da miséria.

 

Fundamentos do estatuto da criança e do adolescente

 

O Estatuto é fruto de um amplo debate, é uma conquista da sociedade civil que conseguiu inserir na Constituição Federal a garantia de prioridade nacional a crianças e adolescentes. Isto deve se concretizar em todas as políticas sociais desenvolvidas pelo Estado em colaboração com a sociedade, visando assegurar os direitos e a satisfação das necessidades fundamentais desse grupo.

 

Um marco dessa ampla mobilização nacional, desencadeada em relação à criança e ao adolescente por ocasião do Congresso Nacional Constituinte, foi o gesto histórico das crianças — meninos e meninas de rua — quando abraçaram o Senado Federal em Brasília, em 1988.

 

Em decorrência dessa mobilização da sociedade civil, a Constituinte incorporou, além de outras conquistas, no processo de redemocratização do país, o princípio consagrado no artigo 227, que diz: “é dever da família, da sociedade e do Estado garantir com absoluta prioridade os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes” (de todas as criança e de todos os adolescentes).

 

O mesmo artigo enumera quais são esses direitos: o direito à vida; o direito à liberdade e à dignidade; o direito à saúde e à alimentação; o direito à educação, ao lazer, à cultura e ao esporte; o direito à convivência familiar e comunitária e à proteção contra qualquer forma de abuso, violência, maus tratos, negligência ou opressão.

 

O fato da Constituição Federal ter incorporado esse dispositivo, que pela primeira vez consta de uma Carta Magna, representa uma mudança na postura da sociedade brasileira em relação à infância e à adolescência.

 

No Brasil, país de grande dimensão territorial, rico em condições de produção agro-industrial e em recursos naturais, os brasileiros têm sérios problemas a enfrentar. Essas riquezas e o crescimento econômico alcançado não estão beneficiando a totalidade da população. É preciso resgatar a dívida social contraída com a grande massa da população brasileira, principalmente com a infância e a adolescência dos estratos sociais de baixa renda. As crianças e os adolescentes não têm acesso às escolas, ou são expulsos delas; quando conseguem permanecer na instituição escolar são precocemente lançados no mercado de trabalho, porque seus pais não ganham salário suficiente para atender às necessidades básicas dos filhos.

 

Essas famílias são impelidas, pelo desenvolvimento dos centros urbanos, a abandonar o campo, constituindo o que é hoje a população da periferia, mesmo em pequenos centros urbanos no interior do nosso estado. Essa população demanda serviços que a sociedade civil e os municípios, na maioria dos casos, não têm condições de prestar. Setenta por cento da população brasileira, hoje, se encontra em situação de pobreza e/ou miséria absoluta.

 

Os dados disponíveis são estarrecedores: 50% do produto interno bruto do Brasil está nas mãos de apenas 10% da população, enquanto que cerca de 30% dele tem que ser dividido entre os 70% restantes. A questão da distribuição da renda no Brasil (as desigualdades econômicas aliadas às diversidades regionais) apresenta-se como um grande desafio.

 

É preciso ter claro que não será apenas a Lei, não será o Estatuto, nem o reordenamento jurídico que possibilitarão as mudanças necessárias na sociedade brasileira. Estes são instrumentos que a população consciente e organizada e os poderes públicos constituídos podem utilizar na luta pela conquista de melhores condições materiais de subsistência, na luta para a transformação das relações sociais, promovendo mudanças nos processos e nos dispositivos de distribuição de renda no país.

 

Não é a lei que muda a sociedade civil que, usando a lei como um instrumento, exerce poder de pressão no sentido da mudança.

 

O artigo 227 da Constituição Federal fixa outro principio fundamental: “é dever da família, da sociedade e do Estado garantir a satisfação das necessidades das crianças e dos adolescentes”. Esta responsabilidade não deve ser atribuída exclusivamente ao poder público — a sociedade também é responsável.

 

É preciso entender quais são as responsabilidades da sociedade com relação a essas crianças. A sociedade brasileira se acomodou e se acovardou perante o Estado que, por sua vez, invadiu a esfera do privado, amordaçou a sociedade, impediu o desenvolvimento de lideranças sociais e açambarcou, associado ao poder econômico, a riqueza socialmente produzida através da concentração de poder e de renda.

 

Não se trata de analisar apenas os últimos vinte anos. É preciso mudar as relações históricas entre a sociedade e o Estado brasileiro. A sociedade civil deve exigir a democracia, deve também exercitá-la. É oportuno lembrar as palavras de um eminente estadista do mundo moderno, presidente dos Estados Unidos, John Kennedy: “Nós devemos perguntar o que nós podemos fazer pelo nosso país e não o que o país pode fazer por nós”. As palavras de Kennedy não eximem a responsabilidade do Estado, mas representam um estímulo à colaboração entre sociedade civil e Estado.

 

A Constituição Brasileira define um princípio: que este país passe de uma democracia representativa para uma democracia Participativa. Este princípio está presente tanto no artigo 227 da Carta Magna, quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, quando se atribui à sociedade e ao Estado a responsabilidade de definir políticas e ações; de controlar ações; de arrecadar fundos e administrar recursos em benefício da totalidade das crianças e dos adolescentes.

 

O princípio da participação preconizado pela Constituição Brasileira está presente no ECA, regulamentando o artigo 227 da Constituição ao definir procedimentos, alternativas de ação e normas de funcionamento das instituições públicas e privadas, que juntas devem buscar a solução para os problemas da infância e da adolescência, em cada cidade e comunidade brasileiras.

 

A atenção dirigida aos municípios e comunidades expressa um outro princípio presente na Constituição Brasileira: a descentralização político-administrativa.

 

O período que antecedeu a transição democrática no Brasil foi de extrema concentração de poder, institucionalizado no governo central da República. Os municípios perderam a sua autonomia; submetidos, tinham que apresentar projetos às agências governamentais para receberem recursos em nível federal e, sobretudo, tinham que contar com os próprios prefeitos, com os vereadores e com os representantes da comunidade.

 

A Constituição Brasileira reverte este quadro na medida em que restitui ao município sua autonomia. Cabe a este a responsabilidade de pensar e definir os destinos de sua gente, os contornos de seu território, os dispositivos políticos e institucionais mais adequados à realidade local. Essa ação deve corresponder às demandas, às necessidades e às características geoeconômicas de cada município. Esses, ao conquistar sua autonomia, recebem também uma série de atribuições, de responsabilidades e estão sendo chamados a assumi-las. O município não é apenas o poder público municipal, mas também é a coletividade e a sociedade civil organizada.

 

A nossa Constituição altera a competência da arrecadação de recursos e, por conseqüência, também a da sua gestão e aplicação. Estas alterações criam as condições necessárias para que se concretize uma reforma tributária, na qual os municípios adquiram recursos próprios para atender suas necessidades, além de receber complementação e suplementação orçamentária da União ou do Estado. O importante é que a decisão sobre o destino dos recursos seja tomada no município.

 

É preciso que a sociedade civil, por um lado, se organize através de instituições para auxiliar e assessorar o poder público municipal no levantamento de demandas, na elaboração de políticas públicas e na definição de alternativas e planos de ação. Por outro lado, é preciso que o poder público municipal esteja aberto para assumir esta proposta de participação. Este é o verdadeiro exercício da democracia, mas tanto a sociedade civil quanto os políticos que exercem ou postulam mandatos não estão acostumados a ouvir, a discutir. A relação entre a sociedade e o poder público precisa ser alterada, porém a sociedade é via de regra omissa. A prática mais comum é a crítica, por vezes pouco consistente, ao poder público — principalmente o municipal — em função do desconhecimento da complexidade dos problemas enfrentados e de todo o conjunto de dificuldades que deles decorrem.

 

A democracia exige das partes envolvidas no processo de participação o exercício permanente do “saber ouvir” e do “saber falar”: falar no momento adequado, expressando-se com clareza e, principalmente, com liberdade. A liberdade de expressão é uma conquista recente neste país. Ela faz parte do conjunto de conquistas da sociedade brasileira que se convencionou chamar de “abertura democrática”. A livre manifestação permite a expressão de todas as idéias, mas exige também que se saiba ouvir, para poder avaliar e criticar as idéias de outros grupos ou pessoas. Esta é a dinâmica do processo de construção da democracia.

 

A Constituição Brasileira é democrática porque é fruto de uma ampla discussão que envolveu todo o país, toda a sociedade, ela expressa o pensamento do povo brasileiro. Por isso, quando a Constituição afirma que a criança e o adolescente devem ser prioridade absoluta das políticas públicas, estes passam a ser privilegiados enquanto sujeitos de direito.

 

Assim, a primeira instância para a qual se deve atentar é o atendimento que está sendo prestado à criança e ao adolescente no município: quais são as demandas, que tipo de serviço se presta e qual a sua finalidade, em suma, o que está acontecendo com as crianças e com os adolescentes no município.

 

É preciso, portanto, repensar a forma pela qual a sociedade e o Estado estão realizando as ações, desde a base local até as esferas estadual e federal, nos diferentes setores que prestam serviços relacionados com os direitos e com as necessidades das crianças e dos adolescentes.

 

Construção da política de atendimento

 

A base doutrinária do Estatuto é inspirada na Convenção Internacional dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas, na qual se estabelece que toda criança e todo adolescente têm direito à proteção integral.

 

Essa doutrina preconiza que a criança precisa ser amparada, assistida e respeitada em todo os seus direitos. Ela difere fundamentalmente da doutrina da situação irregular que informava as práticas de Assistência à Criança e ao Adolescente antes da vigência do Estatuto.

 

Mas o que se entendia por situação irregular? Situação irregular era: passar fome, estar fora da escola, pertencer a uma família carente que não tivesse condições de garantir a subsistência da criança e por isso perdia o pátrio poder sobre seus filhos. Situação irregular era a dos adolescentes que estavam nas ruas pedindo esmolas, porque não tinham o que comer em casa, que eram mandados para as ruas a fim de garantir o mínimo de subsistência para o grupo familiar.

 

É importante lembrar que essas crianças e esses adolescentes permanecem nas ruas, a cada dia em maior número, representando uma ameaça à segurança individual, ao patrimônio particular e público, à tranqüilidade social, e são, afinal, considerados em situação irregular. Pelo que meninos e meninas de rua representam hoje em termos numéricos e pelas causas estruturais que os obrigam a optar por esta alternativa de vida, a sociedade brasileira é que está irregular; irregular também está o Estado brasileiro, que não provê e não atende à criança e ao adolescente; assim, a rua é o seu espaço de socialização.

 

Essa situação é gerada por causas estruturais ligadas à organização da sociedade brasileira; irregular é a sua existência e persistência.

 

A doutrina da situação irregular culpa os pais pelo abandono dos filhos. É preciso reverter esse processo, esse modo de pensar: não mais considerar as crianças e os adolescentes em situação irregular, mas sim a sociedade e o Estado.

 

A doutrina da proteção integral responsabiliza o poder público e a sociedade como agentes promotores das garantias dos direitos e provedores das necessidades básicas da infância e adolescência, sem qualquer tipo de discriminação, exclusão ou exceção.

 

Baseado nesta nova doutrina, o ECA, no seu livro II, nos artigos 86 a 102, estabelece linhas de ação, diretrizes e procedimentos relativos à política de garantia e de atendimento aos direitos da criança e do adolescente. Especifica também as medidas de proteção que devem ser aplicadas quando ocorrer a ameaça de violação dos direitos fundamentais.

 

A política de atendimento propugnada pelo ECA, em relação à garantia dos direitos fundamentais, está definida como um conjunto de ações articuladas de órgãos governamentais e não governamentais, em nível federal, estadual e local, perpassando todos os setores responsáveis pela prestação de serviços à infância e à adolescência.

 

Essa política de atendimento é colocada num primeiro enfoque como um conjunto de ações articuladas, isto é, se a proteção integral, as ações dela decorrentes também o devem ser, para garantir que todos os serviços sejam prestados a toda a população infanto-juvenil, em todas as etapas de seu desenvolvimento.

 

Esta articulação está prevista tanto no plano vertical quanto no horizontal. Deve ser garantida nos diferentes níveis da ação governamental: federal, estadual e municipal, concomitantemente. Deve estar presente em todos os setores das políticas sociais, tanto pela ação pública quanto pela ação das organizações privadas. Deve, portanto, haver articulação, complementariedade, suporte a situações emergenciais em substituição ao paralelismo, fragmentação, superposição de programas e serviços, como ocorre tradicionalmente.

 

Outro enfoque que é preciso ressaltar diz respeito à continuidade das ações estabelecidas pela política de atendimento. Por ser urna construção coletiva, uma ação conjunta de Estado e sociedade civil, não será obra de um único governo ou ideário do partido político que estiver no poder. Ela representa a garantia dos direitos fundamentais de todas as crianças e todos os adolescentes e, portanto, deve ter um caráter permanente e contínuo, sem, contudo, deixar de ser flexível e adaptada às características locais e conjunturais, atendendo a circunstâncias históricas determinadas.

 

Entre os detratores do ECA, deparamos cora uma crítica sempre presente: de que o Estatuto foi previsto para países altamente desenvolvidos e organizados, não sendo aplicável ao Brasil, país de Terceiro Mundo. Há um descrédito quanto à capacidade e competência do Estado e da sociedade civil em reformular e modernizar seus métodos de ação e procedimentos, para gerir as políticas sociais de forma participativa e inovadora.

 

Aqueles que colaboraram para que o Estatuto fosse promulgado — e também aqueles que acreditam na sua viabilidade — têm a tarefa de continuar lutando pela sua operacionalização e concretização, através da conscientização, da sensibilização e da mobilização dos poderes públicos e da sociedade.

 

É preciso demonstrar que a viabilização de diretrizes e linhas de ação compõem um processo de mudança institucional e esta só ocorrerá se houver vontade política e ampla participação dos diversos segmentos da sociedade civil, no sentido de exigir a execução e fiscalizar o cumprimento dos dispositivos da legislação.

 

É importante salientar que o ECA, na definição da política de atendimento, aponta para a consolidação e para a sistematização de ações e práticas que já vêm sendo discutidas, testadas e/ou implementadas pelos setores de atendimento à criança e ao adolescente, privilegiando aquelas que propiciam a alteração do quadro de carências e que oferecem proteção especial aos grupos em situação de risco pessoal e social.

 

O processo de operacionalização das diretrizes políticas do Estatuto tem início no âmbito municipal, que é o locus privilegiado do atendimento real dos direitos das crianças e dos adolescentes. É importante refletir como se processa, na prática, a definição e a priorização dos serviços que são necessários à garantia dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes.

 

Cada município brasileiro precisa repensar as suas práticas, rever as suas políticas, conhecer a sua realidade, não apenas no nível das instituições que atendem crianças e adolescentes, mas também na instância do processo de planejamento municipal, porque cada município deverá ter políticas próprias de atendimento às crianças e aos adolescentes, dentro do seu território.

 

Estas são as políticas sociais básicas de responsabilidade do poder público: as políticas de Saúde, de Educação, de Lazer, de Cultura, de Saneamento Básico e de Habitação. É necessário levantar os recursos públicos existentes no município; por exemplo, quantos hospitais, quantas creches, quantas escolas e quantos centros de saúde estão em funcionamento e a que clientela atendem? Quais os serviços por eles prestados? Qual a qualidade destes serviços?

 

É fundamental detectar se os serviços em funcionamento atendem à demanda existente, tanto em termos quantitativos quanto do ponto de vista das especificidades que ela apresenta. A especificidade da demanda está relacionada às particularidades das carências vivenciadas pelas crianças e pelos adolescentes, cuja condição de pessoas em processo de desenvolvimento exige que a sociedade e o Estado priorizem a atenção a eles.

 

Ao mesmo tempo, não se trata de avaliar e modificar só as ações do poder público. As organizações não governamentais, as entidades sociais de beneficência e assistência prestam serviços de caráter supletivo e, na maioria das vezes, compensam a falência das políticas sociais. Elas devem se organizar para atender a situações emergenciais ou a situações de carência absoluta, garantindo às crianças e a suas famílias uma assistência adequada.

 

Os programas assistenciais podem propiciar o acesso aos direitos fundamentais, quando entendidos como direito de cidadania dos seus beneficiários, e não como caridade ou benevolência. Indaga-se: como as entidades estão priorizando o atendimento à criança e ao adolescente? Quais as mudanças ocorridas? Como passar do assistencialismo à garantia dos direitos? A resposta a estas indagações contribuirá para o estabelecimento da política de atendimento.

 

Trataremos agora de outra linha de ação preconizada pelo ECA que, não obstante ser percebida no cotidiano, não tem ainda visibilidade política e, portanto, não recebe um tratamento adequado.

 

Dados de realidade

 

O que acontece, em nível municipal, com as crianças que são vítimas de maus tratos, de negligência, de repressão e de abuso? A repressão pode ocorrer no interior das instituições privadas, aa escola, nas ruas ou no interior de instituições oficiais, por parte de funcionários e policiais, que freqüentemente são solicitados a promover operações “arrastão”, ou “operações limpeza”, para que as crianças e os adolescentes pobres que vivem da rua ou na rua não mostrem a face cruel da desigualdade social.

 

A “limpeza” do centro da cidade, via de regra, é solicitada por comerciantes ou pelas autoridades municipais, que acreditam na internação de crianças e adolescentes, ou na simples contenção deles numa cadeia, como solução para a problemática que apresentam. Essas soluções, na verdade, buscam esconder a situação de miséria e de injustiças sociais que a conduta dessas crianças denuncia. Há também o problema dos maus tratos à criança por membros da própria família. É importante lembrar que a denúncia de espancamentos de crianças, principalmente por parte de membros da própria família, tem sido cada vez mais freqüente. As denúncias têm partido dos médicos ou de vizinhos que não se deixam enganar por argumentos do tipo “queda acidental”.

 

Diante do exposto, cabem as seguintes questões: de que forma a sociedade encara estes fatos? Quais são os serviços existentes na comunidade para prevenir estes maus tratos e orientar a população no sentido de denunciá-los? De que forma o município consegue identificar as crianças desaparecidas, as crianças que são encontradas abandonadas pelas ruas e que não têm família? De que forma o município recebe a denúncia de uma família que afirma que o filho está desaparecido?

 

Os serviços públicos de saúde, educação, assistência social e segurança devem estar articulados. Por exemplo, no caso de uma criança ter desaparecido, os serviços de segurança devem ser comunicados, porque é normalmente à área de segurança pública que se faz a denúncia sobre o desaparecimento de pessoas. Como se pode garantir que uma criança, que se extraviou da família, não será considerada abandonada? Ela tem o direito à família, então, é preciso procurá-la.

 

O exemplo dado parece muito distante da realidade dos pequenos municípios, mas é uma situação bastante comum nas cidades médias, grandes e nas metrópoles, principalmente porque o país vive um processo permanente de migrações internas. Os municípios precisam organizar serviços de identificação e localização de crianças desaparecidas e de famílias, de pais desaparecidos, para tentar reajustar este binômio.

 

Proteção jurídico-social

 

As crianças são sujeitos de direitos, mas o acesso à justiça só é garantido através da prestação de serviços de proteção jurídico-social, em nível de cada município. Assim, é importante que estes serviços sejam organizados e que os já existentes, otimizados. Para organizá-los é fundamental a participação da Ordem dos Advogados do Brasil, dos Centros de Defesa e Comissões de Direitos Humanos. Estas instituições devem atuar na garantia de acesso da criança e do adolescente aos seus direitos.

 

A garantia dos direitos da criança e do adolescente exige, da sociedade civil e do poder público, duas instâncias de atuação: uma delas visa a intervenção imediata, no sentido da garantia do direito lesado pela conduta inadequada de uma pessoa, um grupo de pessoas, ou por uma situação adversa. A outra instância reclama ações de médio e longo prazos, através da implementação de políticas sociais básicas.

 

Para que esta estrutura de atendimento se viabilize, cada município precisa criar o seu próprio Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente. Esse é o órgão municipal que tem a responsabilidade de decidir, definir e formular as ações básicas para a concretização das políticas sociais no âmbito da infância e da adolescência. A responsabilidade de deliberação e definição dessas políticas no município está a cargo do Conselho Municipal que, se ainda inexistente, deve ser criado através de uma lei. Esse Conselho, além de ser deliberativo, tem uma outra característica básica que está fundamentada no preceito constitucional da participação, de modo mais específico, da participação comunitária.

 

É exigência do ECA que o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente tenha um caráter paritário. Isso significa, na prática, criar condições para o processo de participação da sociedade civil na decisão sobre a política de atendimento, em igualdade de condições com o setor público. O princípio da paridade garante a presença de representantes dos diferentes segmentos da sociedade civil, em número igual ao dos representantes dos poderes constituídos no Conselho dos Direitos. Este, sendo deliberativo, irá decidir sobre a formulação da política dos direitos da criança e do adolescente, na sua respectiva esfera de competência (municipal, estadual ou federal).

 

O Estatuto não determina quais instituições devem compor o Conselho Municipal, apenas estabelece seu perfil: são aquelas que prestam serviços ou desenvolvem programas vinculados à infância e à adolescência, sejam elas públicas ou particulares. O critério fundamental para a composição do Conselho Municipal de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente é o da representatividade institucional. O município tem autonomia para decidir e, portanto, não há “receita” de como este Conselho deve ser composto. Cada município deve definir a composição do seu Conselho com base nos critérios da representatividade institucional, isonomia e paridade.

 

A importância de se constituir o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente está no fato de ser ele a mola propulsora para que as mudanças necessárias passem a ocorrer no município. O Conselho garante as condições para o exercício adequado das competências dos diferentes setores envolvidos no atendimento à criança e ao adolescente, porque define as prioridades municipais e os serviços que precisam ser criados, com base nas demandas existentes.

 

É também com base nas demandas municipais que o Conselho deve carrear recursos do próprio município, do estado, ou da federação, quando necessário o Conselho também pode exigir que o Estado preste, de forma direta, um determinado serviço.

 

Pode ainda articular a criação de consórcios intermunicipais de prestação de serviços, Possibilitando, assim, o atendimento da demanda e um melhor aproveitamento dos recursos materiais e humanos, evitando a ociosidade.

 

O atendimento através de consórcios intermunicipais é uma alternativa para a garantia da prestação de serviços em pequenos municípios, uma vez que médias e grandes cidades, via de regra, têm recursos materiais e humanos para prestação de serviços, e o volume das suas demandas dificilmente permite que eles fiquem ociosos.

 

Os consórcios intermunicipais são uma forma de operacionalização das políticas sociais na área da criança e do adolescente, cujas prioridades são definidas pelos Conselhos Municipais. A articulação entre eles garante, ao mesmo tempo, a qualidade dos serviços prestados e o pleno aproveitamento dos recursos disponíveis.

 

A articulação entre os Conselhos Municipais é prevista institucionalmente pelo ECA. Assim como cada município deve ter o seu Conselho de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, cada estado também deve formar o seu e a União deve organizar um Conselho Nacional. Cada um desses Conselhos tem atribuições de acordo com as instâncias que representam. Mas, independentemente da sua instância de atuação, eles não substituem os órgãos públicos, as entidades particulares e os serviços já existentes. O Conselho Municipal, por exemplo, não substitui as secretarias ou os departamentos municipais de Educação, de Saúde ou de Promoção Social. Da mesma forma o Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente não irá substituir a Secretaria Estadual de Educação, a de Promoção Social, ou qualquer outra. Assim também o Conselho Federal não assumirá as atribuições de qualquer ministério, secretaria ou fundação.

 

Os Conselhos de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente devem formular as diretrizes, articular e coordenar as ações que estes órgãos devem executar e os programas que eles devem implantar no âmbito das suas competências. Os serviços existentes continuam sendo prestados. Eles podem ser reformulados, adequados ou, em alguns casos, extintos. Podem também ser criados outros serviços, de acordo com as demandas existentes e com a qualidade dos serviços prestados.

 

É importante ter clareza na definição da competência do Conselho dos Direitos, pois o seu caráter é deliberativo e não executivo das políticas. Corre-se o risco de esperar que os Conselhos se ocupem das questões cotidianas do atendimento, pela visão imediatista, de urgência ou emergência de situações individuais, o que inviabilizará sua função articuladora e implementadora das mudanças.

 

O papel executor e fiscalizador das questões cotidianas da violação dos direitos está destinado, pelo Estatuto, ao Conselho Tutelar, outro órgão a ser criado no conjunto das mudanças e do reordenamento institucional. Ao Conselho Tutelar compete zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, cabendo-lhe atender às denúncias de violações e encaminhá-las para as instâncias responsáveis pela sua execução. Esses Conselhos serão criados apenas nos municípios, pois terão ação direta e fiscalizadora sobre a falta, a omissão ou a violação dos direitos e das necessidades básicas das crianças e dos adolescentes residentes na sua área de competência.

 

Considerando que um dos pressupostos básicos do Estatuto é a garantia dos direitos da criança e do adolescente, e uma vez que esta garantia se concretiza objetivamente no município, quase toda a discussão sobre a execução da política de atendimento tem recaído sobre a instância municipal. Entretanto, as esferas federal e estadual também são responsáveis e solidárias na fixação de normas gerais, na coordenação das ações e no financiamento das políticas a serem executadas no território municipal.

 

Cabe, portanto, apontar como indicativas algumas competências próprias das esferas estadual e federal na área das políticas sociais sem pretender restringir ou esgotar a discussão sobre o tema.

 

Do ponto de vista da esfera federal, pelo caráter normativo das instituições públicas no país, parece estar mais claro que ao Governo Federal não cabe a execução direta de ações, salvo em situações expressas em lei, como é o caso dos benefícios da Previdência Social. Entretanto, à União cabe estabelecer normas gerais de atendimento, que garantam a universalidade do acesso aos serviços, a igualdade de condições de atendimento, a equalização de oportunidades e a redistribuição de recursos que contribuam para diminuir as diversidades e as desigualdades regionais existentes no país.

 

Para garantir a normatização, algumas estratégias e linhas de ação definidas pelos órgãos federais perpassam as demais esferas de governo, através da articulação das ações e do processo de cooperação financeira.

 

A primeira, como estratégia para implementação e operacionalização do ECA nos estados e municípios por parte do governo federal, diz respeito à necessidade de capacitar e treinar agentes em todos os níveis de atuação, a fim de colaborar para melhoria das formas de atenção direta às crianças e aos adolescentes.

 

O acompanhamento das mudanças no panorama legal constitui-se numa segunda estratégia da ação federal, tendo por objetivo adequar toda a legislação pertinente aos direitos da criança e do adolescente, como, por exemplo: a questão do direito e da exploração no mercado de trabalho; a lei de diretrizes e bases da educação; a lei orgânica da assistência social, e outros. A terceira estratégia diz respeito ao reordenamento institucional na área da política de atendimento direto à criança e ao adolescente. Implica no esforço de reformulação por parte dos governos estaduais e municipais em relação aos programas e projetos destinados a oferecer proteção especial a crianças e adolescentes que se encontram em situação de risco pessoal e social, e, portanto, excluídas do sistema de atenção básica ministrado pelas políticas sociais setoriais.

 

Cabendo à esfera federal a normatização e o acompanhamento das ações; à esfera municipal a definição e a execução direta dos serviços, qual o papel da esfera estadual? O Estatuto “é opaco” na definição da competência estadual, no que diz respeito à política de atendimento. Além de estabelecer a necessidade de criação de Conselhos de Direitos e Fundos Financeiros, de âmbito estadual, nada mais é especificado como competência do estado.

 

Sabemos que os governos estaduais têm sido responsáveis por grande parte da definição de metas e estratégias e também da execução das ações no âmbito das políticas sociais. É de bom senso, portanto, que o processo de municipalização e de descentralização político-administrativa ocorra sem causar maiores traumas nas estruturas institucionais. Deve-se reservar sempre, ao estado, a execução direta das ações e dos serviços que, pela sua natureza, dimensão e complexidade exigem:

 

a) especialização do corpo de profissionais e agentes executores;

b) recursos materiais e equipamentos sofisticados e de rápida obsolescência na sua operação;

c) articulação e cooperação institucional entre agências governamentais de competência exclusiva do estado, como Segurança Pública e Justiça;

d) investimentos e gestão que aumentam os custos operacionais quando realizados em pequena escala em municípios de pequeno porte.

 

Da mesma forma que para os municípios propõe-se à efetivação de consórcios intermunicipais — a fim de racionalizar a utilização de recursos humanos e materiais e utilizar plenamente os equipamentos e instalações físicas — propõe-se que o estado desconcentre e regionalize ações de atenção direta que, pela sua natureza, diversificação e distribuição da demanda, não se tornem racionais quando geridas e mantidas pela esfera municipal.

 

Por ser essa uma questão pouco discutida e analisada, é aqui colocada como ponto de partida para debate e enfrentamento com todos aqueles interessados em efetivar uma política de atendimento realmente articulada e conseqüente.

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Finalizando, dois aspectos precisam ser considerados: o financiamento da política de atendimento e a sugestão de democratização e participação nos Fóruns, objetivando a permanente mobilização da sociedade civil.

 

A gestão das políticas, a articulação e a coordenação dos serviços prestados às crianças e aos adolescentes exigem recursos. Por isso, o Estatuto prevê a criação de um organismo de apoio ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, encarregado de gerir um fundo do município e de captar recursos para garantir a implementação das políticas sociais formuladas pelos Conselhos.

 

A captação de recursos para esse fundo municipal pode ser feita de várias formas. Os recursos podem advir, por exemplo, de dotação orçamentária do município, de dotação orçamentária através da transferência de recursos do estado ou da União, de doações por parte de pessoas físicas ou jurídicas. Quanto às doações por parte de pessoas físicas ou jurídicas, o Estatuto estabelece, no seu artigo 260, que tais doações podem ser abatidas da renda bruta daquela pessoa, física ou jurídica, que doa recursos ao Conselho do município onde reside ou, no caso de empresa, do município onde está instalada.

 

Uma das fontes de arrecadação do Fundo, o qual apóia o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança, são as multas aplicadas pela justiça e decorrentes da transgressão das normas do Estatuto.

 

O dinheiro arrecadado no Município, bem como a verba procedente do Estado e da União destinada ao implemento das políticas sociais voltadas à infância e à adolescência, são administrados pelo Fundo. Essa prática se distingue radicalmente daquela usada para a arrecadação da maioria dos impostos, que são pagos no município e administrados pelo Estado ou pela União.

 

O ECA está em vigor. Ele coloca à disposição do município e da comunidade dispositivos necessários para a sua implementação e por conseqüência garante às crianças e aos adolescentes o acesso aos seus direitos. Portanto, ao município e à comunidade, cabe a instalação do seu Conselho e do Fundo Financeiro através da aprovação de uma lei municipal.

 

A implementação desta legislação, conforme já se afirmou, não é rígida, mas obedece, principalmente, as características de cada região e localidade. Sua flexibilidade não é aleatória e nem desvinculada dos princípios e das diretrizes consolidados no Estatuto. Para que a política de atendimento expresse realmente o modo de pensar da comunidade sobre as questões relativas à infância e à adolescência, recomenda-se a organização de um Fórum Permanente dos Direitos da Criança e do Adolescente, do qual sejam convidados a participar todas as pessoas interessadas, envolvidas nas áreas relacionadas com os problemas da infância e da adolescência (pessoas ligadas à Educação, à Saúde, às Entidades Sociais, aos Sindicatos, às Associações de Moradores), bem como os representantes locais dos poderes públicos constituídos e de órgãos públicos estaduais e federais.

 

Juntas, as pessoas e as instituições do município devem discutir e, a partir disso, fixar as prioridades municipais no campo das políticas sociais para a criança e para o adolescente. O conjunto das prioridades fixadas pelo Fórum Permanente deve ser transformado em um projeto de lei que, uma vez submetido aos poderes Legislativo e Executivo municipais e aprovado, virá a transformar-se na lei de criação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

 

 

Referências:

 

ZILIOTTO, M. C. O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Política de Atendimento. Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. II(I): São Paulo, 1992.

 

 

Notas:

 

[1] Marta Cecilia Ziliotto - Assistente social, professora universitária, chefe do escritório regional da Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência (FCBIA/SP). Rua 24 de Maio, 250, 7º andar — São Paulo — SP — Cep 01041