HABILIDADES DE LINGUAGEM E PESSOAL-SOCIAL DE CRIANÇAS DE 0 A 3 ANOS DE IDADE CUIDADAS EM CRECHES [1]

 

 

Magda A . Rezende[2]

Fernanda G. de Lima[3]

Vivian C. Beteli[3]

Jair Lício F Santos[4]

 

 

Desenvolvimento infantil em creches

 

Em instituições de cuidado profissional, como é o caso de creches - instituições de educação infantil em que se atende crianças de 0 a 3 anos de idade -, impõe-se a necessidade de se promover condições para que o desenvolvimento infantil ocorra em sua plenitude, bem como avaliá-lo periodicamente, uma vez que isto permite uma rápida tomada de decisões, caso necessário (WONG, 1999). A "supervisão do desenvolvimento'' é tão importante que tem sido periodicamente sistematizada por organismos internacionais de saúde, como a OPAS (ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD, 1999), além do próprio Ministério da Saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1995; MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002). Estas tentativas tem sido organizadas para serem utilizadas quando a criança é levada às consultas de saúde. No entanto, ainda não foi sistematizada uma estratégia para ser usada especificamente em instituições de educação infantil como creches e pré-escolas. Apesar disso, profissionais de enfermagem, bem como de outras áreas da saúde, já vêm se debruçando sobre o tema supervisão do desenvolvimento infantil em creches  (BRÊTAS, 1991; BRÊTAS; SILVA, 1995; CUNHA, 2000; FERREIRA, 1989; HUGHES,1986; KAKEHASHI, 1990; FISBERG et al., 1997 ).

 

A situação das crianças cuidadas em creche é especialmente importante, uma vez que nela permanecem grande parte de sua infância.  Exemplo disto é a estimativa do Conselho Nacional de Credenciamento de Creches da Austrália (AUSTRÁLIA, 1993): uma criança de 5 anos pode freqüentar a creche durante 12.500 horas em um período de 5 anos (50 semanas x 50 horas ) enquanto, para a sua escolarização, terá dispensado praticamente o mesmo número de horas: 13.000 (40 semanas x 25 horas x 13 anos).

 

No caso do Brasil, este contraste é ainda mais evidente pois a escolarização de 1° e de 2° graus soma 11 anos. Além disto, nossas crianças permanecem na instituição 8 horas para dia ou mais. Em 2001, 5.912.150 crianças freqüentavam 92.526 creches e pré-escolas (5). É um grande contingente e ainda está aumentando.

 

Criança, desenvolvimento e creche

 

A escolha da creche, nesta investigação, deve-se ao fato de ser esta um local de cuidado humano profissional. Consideramos crucial analisar as influências ambientais colocadas à disposição de nossas crianças, deixando claro que entendemos como ambiente não somente os componentes físicos / arquitetônicos, mas também as pessoas que cuidam e educam. Percebe-se, portanto, a importância de se organizar as situações de cuidado, de molde a propiciar à criança oportunidades para se conhecer e se construir ativamente.

 

A criança deve encontrar no ambiente os componentes adequados a fim de que se desenvolva. isto implica em dar-lhe condições quer de aceitação de sua singularidade, quer de apoio e de "desafio" para a aquisição de habilidades e conhecimentos segundo o estágio de sua maturação. A criança tem valor por si só e não apenas por sua "utilidade” (ou não) como profissional no futuro (VERÍSSIMO & SIGAUD; 1996, TURNER, 2000).

 

A nossa experiência profissional mostrou-nos que a oportunidade de se desenvolver não vem sendo propiciada em creches que atendem os estratos econômicos mais baixos da população. Em uma situação de triagem, verificamos que o atraso de linguagem (6) de crianças atendidas em creches públicas municipais de São Paulo, visto pelo Teste de Denver (WHALEY & WONG, 1989 ) e pelo Guia Washington (BARNARD & ERIKSON, 1978), era revertido em praticamente 100% destas crianças em duas semanas quando era propiciado um aumento de sua habilidade oral. Esta evidência foi repetida à exaustão. Contudo, não se trata de fenômeno restrito às crianças deste nível sócio-econômico. TOLEDO (2000j relata um trabalho realizado em escola de educação infantil privada da cidade de São Paulo. A estratégia de estimulação do uso da linguagem oral por crianças de 5 anos ocorreu por ter sido percebido que até mesmo crianças e adolescentes de 10 a 15 anos não sabiam comunicar-se sozinhos. Face a isto, esta autora propôs atividades para que as crianças daquela classe de pré-escola aumentassem suas habilidades. CARVALHO e SCARPA (2000) reforçam o tema afirmando que "embora a linguagem oral seja unta realidade presente na prática das instituições de educação infantil, ela nem sempre é tratada com a devida importância (...... ) [devido] à falta de conhecimento das reais competências da criança''.

 

Estamos propondo, portanto, o favorecimento do desenvolvimento como parte do cuidado de saúde à criança.

 

Objetivo e metodologia

 

O objetivo desta pesquisa foi avaliar as habilidades das áreas de linguagem e pessoal-social de crianças de o a 3 anos de idade, que freqüentam creches consideradas de bom padrão de qualidade, em dois momentos separados por 5 meses de intervalo. Para tal foi utilizado o Teste de Triagem de Desenvolvimento de Denver II (ARCHER et al., 1992).

 

Esperava-se que as crianças apresentassem um bom nível de desempenho já por ocasião da primeira avaliação, tendo em vista que as creches selecionadas para a pesquisa são patronais, isto é, destinadas ao acolhimento de filhos de funcionários da instituição donde pode-se supor uma boa escolaridade, condição relacionada a índices melhores de desenvolvimento (DURMAZLAR et al., 1998).

 

A segunda medição permitiu avaliar se as crianças haviam se mantido estáveis, melhorado ou piorado. Esperava-se que as crianças se mantivessem estáveis ou melhorado, uma vez que as creches foram consideradas adequadas.

 

Trata-se de um levantamento descritivo no qual são avaliadas crianças em dois momentos distintos e os dados comparados. Cada criança é seu próprio controle, ou seja, os dados são emparelhados.

 

Cenário do estudo

O estudo foi realizado em três creches consideradas de bom padrão de atendimento, localizadas próximas entre si, na cidade de São Paulo (creches A, B e C). No que diz respeito à qualidade de atendimento levou-se em conta a situação estrutural (tamanho das classes e proporção adulto / criança) uma vez que estas creches ainda estão sendo analisadas quanto ao processo (capacidade do educador de responder aos interesses e necessidades infantis, prover atividades adequadas ao desenvolvimento da criança e ter sensibilidade às suas necessidades, segundo BURCHINAL et al., 1996; BURCHINAL et al., 2000).

 

A escolha de creches consideradas adequadas permitirá, na indicação de alternativas  no futuro, que se possa pontuar a necessidade de investimento em recursos humanos e materiais para um cuidado / educação de boa qualidade.

 

Grupo amostral

 

Foi formado por crianças de 0 a 36 meses que preenchessem os requisitos gerais de: ter idade gestacional conhecida; não ter malformações congênitas; e não ser estrangeiras (devido à avaliação da linguagem).

 

As crianças eram de nível sócio-econômico homogêneo, segundo avaliação por formulário padronizado desenvolvido no Chile para verificação do nível de pobreza de populações urbanas (ALVAREZ et al., 1982) e adaptado para a realidade brasileira por ISSLER e GIUGLIANI (1997). O formulário consta de 13 itens, compreendendo: constituição da família, escolaridade e atividade dos pais, condições de moradia e posse de bens. Cada um dos itens estabelece uma pontuação, cuja soma estabelece o nível de pobreza: miséria (até 17,3 pontos), baixa inferior (17,3 a 34,6 pontos) e baixa superior (34,6 a 52,0 pontos).

 

As crianças foram avaliadas em dois momentos distintos, respeitando-se um intervalo mínimo de cinco meses entre as duas avaliações. Assim procedendo, esperava-se conseguir um período de tempo em que a criança pudesse adaptar-se à creche e ser ou não beneficiada por freqüentá-la.

 

Método de avaliação: o teste de triagem de desenvolvimento de Denver - II

Para a avaliação das crianças foi usado o Teste de Denver, criado com a finalidade de triar problemas de desenvolvimento. Elaborado em 1967, passou por uma reavaliação devido a algumas dificuldades na aplicação e interpretação. A partir disso, foi criado o TTDD-II (ARCHER et al., 1992) que pode ser aplicado em crianças desde o nascimento até 6 anos de idade. É composto por 125 itens, distribuídos em quatro áreas do desenvolvimento infantil: pessoal-social, motor fino-adaptativo, linguagem e motor-grosseiro. Alguns itens são aplicados através da solicitação para que a criança realize determinadas tarefas e outros através de relato de país ou cuidadores / educadores da criança.

 

O TTDD-II, vem sendo considerado adequado para a identificação de até mesmo discretos problemas de desenvolvimento. Em nosso país, sabe- se que tem sendo usado por vários profissionais da área de saúde. Considerando que é instrumento bastante conhecido e usado em nossa área, optou-se por ele neste trabalho.

 

Cuidados metodológicos na aplicação do TTDD-lI

 

Foram excluídas do grupo de pesquisa as crianças em que havia: (1) impossibilidade de conhecer a idade gestacional da criança (para as menores de 2 anos de idade), (2) malformação congênita, e, (3) ser criança estrangeira.

 

Outros fatores que também podiam levar à exclusão foram considerados: (1) os pais estarem se separando, (2) ter havido morte de familiar próximo, (3) ter ocorrido nascimento de irmão, (4) qualquer outro que fosse lembrada pela família ou pelos profissionais da creche, e que fosse por nós caracterizada como uma situação potencialmente estressante para a criança e, por conseguinte, para a avaliação de seu desenvolvimento.

 

Além disso, verificavam-se as condições imediatamente anteriores à aplicação do teste. Estes eram fatores de exclusão de caráter transitório. Procurava-se saber se a criança estava: (1) com sono, (2) fatigada, (3) adoentada, (4) com febre, (5) ou com medo. Caso a criança apresentasse algum deles, esperava-se até que fosse superado. Isto podia demorar vários dias. Um formulário foi criado para este fim, a ser preenchido também com os dados: idade gestacional da criança (com respectiva necessidade de ajuste), cálculo de idade da criança, e peso ao nascer.

 

Durante a aplicação, caso a criança se cansasse, o teste era interrompido. Outra situação em que o teste também era interrompido acontecia quando a criança precisava participar de alguma atividade prevista na creche, por exemplo, jantar. Não seria possível ignorar estes momentos, pois a creche não teria condições de dar à criança um atendimento tão individualizado que levasse em conta, inclusive, mudança de horário de refeições. A aplicação do TTDD-II pode ser eventualmente muito demorada, especialmente neste cenário de estudo no qual, muitas vezes, mães, pais, ou outros cuidadores primários não estavam presentes. Assim, é crucial que estes cuidados sejam tomados a fim de que a criança esteja se sentindo absolutamente segura e que o desempenho avaliado seja o real.

 

Modo de aplicação do TTDD-II

 

Antes da aplicação do teste é necessário realizar o cálculo da idade da criança em anos, meses e dias e traçar uma linha vertical correspondente a essa idade. Foi utilizado o formulário de aplicação traduzido e formatado por PEDROMÔNICO, BRAGATTO, STROBILIUS (1999). Aplicou-se todos os itens cortados pela linha e também três itens totalmente à esquerda em cada área do desenvolvimento, com o objetivo de detectar se havia atraso.

 

No cálculo da idade de crianças de até dois anos havia necessidade de se conhecer a idade gestacional. Caso a criança tivesse nascido prematuramente (menor ou igual a 37 semanas de gestação, a idade era ajustada de acordo com o recomendado pelos autores (ARCHER et al., 1992 ).

 

Para a aplicação do teste, são necessários os seguintes materiais: 1 pompom vermelho de 10 centímetros de diâmetro; 1 chocalho de cabo estreito, 1 sino; 1 saco de balas de goma  tipo "jujuba"; 10 cubos de madeira de 2,5 cm nas cores vermelho, amarelo, azul, verde e laranja; 1 caneca; 1 boneca de plástico com mamadeira; 1 lápis vermelho; folha de sulfito A4; 1 folha contendo cinco desenhos (pássaro, cachorro, gato, cavalo e menino) e folha de aplicação do teste.

Cada item aplicado pode ser classificado como: passou, falhou, não observado e recusa. Para a interpretação dos itens são utilizados  os termos:

 

Normal: quando a criança passa em um item que está sendo cortado pela linha da idade, quando a criança falha ou recusa-se a realizar um item que está completamente à direita da linha da idade.

 

Cautela: quando a criança falha ou recusa-se a realizar o item no qual a linha da idade cruza entre 75 e 90%.

 

Atraso: quando a criança falha ou recusa-se a realizar um item que esta totalmente à esquerda da linha da idade

 

Nesta pesquisa o teste foi aplicado por inteiro, mas não foi interpretado como um todo, e sim em áreas isoladas. Cada área foi considerada adequada quando a criança não apresentou itens de cautela e/ou atraso.

 

Nas situações em que o resultado era suspeito (considerando o teste como um todo, ou seja, quando havia duas ou mais cautelas e/ ou um ou mais atrasos) as crianças eram reavaliadas uma ou duas semanas após

 

Análise dos dados e cuidados éticos

 

A análise dos dados foi realizada através de testes não-paramétricos (SIEGEL, 1975 ).

 

A fim de que os participantes desta pesquisa tivessem seus direitos resguardados este projeto foi (1) submetido à aprovação pela Comissão de Ética da Escola de Enfermagem da USP (EEUSP); (2) foi realizado esclarecimento às mães e pais (ou responsáveis) das crianças quanto ao objetivo da pesquisa, bem como a forma de realização. Foi garantido que as crianças individualmente não seriam identificadas nos relatórios produzidos. Após este esclarecimento, o responsável legal por cada criança, caso concordasse com a realização da pesquisa, assinava um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

Apresentação dos resultados e discussão

Na primeira avaliação foram analisadas 36 crianças. Destas, 19 são da Creche A, 9 da Creche B, e 8 da Creche C. Na segunda foram avaliadas 33, sendo 19 da creche A, 9 da creche B e 3 da creche C. Vale lembrar que, para a primeira avaliação, muitas crianças não puderam ser consideradas por diferentes motivos, tais como: não autorização pela família (restrito a uma creche somente); criança sempre ausente nos períodos definidos para aplicação do teste; criança recusava-se a ser avaliada; impossibilidade de contato com os pais a fim de completar os itens da avaliação; malformação congênita; desconhecimento da idade gestacional; criança estrangeira e criança que abandonava a creche após poucos dias de freqüência.

 

Na segunda avaliação, houve perda de três crianças, constituindo uma mostra final de 33. Os motivos foram: saída da creche e não comparecimento devido às férias da mãe.

 

Consideramos como idade da avaliação o momento em que esta de fato terminou de ser executada, uma vez que algumas foram realizadas em mais de um dia devido a peculiaridades da criança ou da creche. Além disso, havia a situação de, após uma primeira avaliação, a criança ser considerada suspeita em relação a alguma área. Neste caso, era feito uma re-testagem cerca de uma ou duas semanas após. Deste modo evitou-se resultados falsamente negativos. Portanto, nas ocasiões de suspeita, a criança foi re-testada e esta é a data que estamos considerando Houve necessidade de re-testagem somente na primeira avaliação.

 

No momento que as crianças foram avaliadas estavam freqüentando a creche há períodos  que variavam de 1 dia até 5 meses  e 12 dias (1ª  avaliação), e de 5 meses e 28 dias até 9 meses e 13 dias (2ª  avaliação).

 

O intervalo entre as duas avaliações variou de 5 meses até 7 meses e 23 dias.

 

O número de crianças do sexo masculino foi de 18 e do feminino 15.

 

As idades gestacionais das 33 crianças foram adequadas no caso de 31, isto é, era de 37 até 42 semanas (inclusive). Duas crianças tiveram idade ao nascimento menor, de 36 semanas e 36 semanas e 4 dias, respectivamente, e neste caso foi realizado o ajuste recomendado pelos autores do TTDD-lI (ARCHER et al., 1992).

Tivemos duas duplas de gêmeos que nasceram no período considerado adequado, isto é, entre 37 e 42 semanas.

 

O peso de nascimento das crianças variou entre 1970g a 4280g.

 

Quanto à situação sócio-econômica, o grupo estudado demonstrou ser homogêneo:  não houve família alguma que tivesse pontuação menor do que 45 (ISSLER & GIUGLIANI, 1997). Deste modo, todas se enquadram, no mínimo, na categoria baixa superior. Assim, é possível considerar que todas as crianças que participaram do estudo partiram de um mesmo patamar mínimo. A pontuação obtida pelas 31 famílias (havia dois pares de gêmeos de cada criança) variou de 45 a 52. Houve uma família que alcançou 45 pontos e todas as outras (em número de 30) obtiveram de 46 a 52.

 

As classificações obtidas pelas crianças referentes às áreas de linguagem (adequado, cautela e atraso) foram as seguintes (Tab. 1) ;

 

Tabela 1 - resultados das avaliações de linguagem de crianças.  São Paulo, 2001.

 

 

Na primeira avaliação 26 crianças tiveram desempenho adequado (78,78%), e 7 (21,22% ) não adequado. É importante lembrar que cautela não pode ser considerada verdadeiramente um risco, tal como atraso. Assim, estaríamos fazendo a análise mais pessimista, o que no entanto, é mais prudente, pois faz com que o profissional de saúde e o educador fiquem mais atentos à situação da criança.

 

Na segunda avaliação da mesma área, linguagem, obteve-se 28 adequações (84,84%), e 5 (15,15%) cautelas. Não houve atrasos, nem cautela + atraso. Percebe-se, portanto, que houve melhora de um período em relação ao outro.

 

Quanto à área pessoal-social as crianças se comportaram da seguinte maneira (Tab. 2):

 

Tabela 2. resultados das avaliações da área pessoal-social  de crianças das 3 creches. São Paulo, 2001.

 

 

Na primeira avaliação 26 (78,78%) crianças estavam adequadas e 7 (21,22%) apresentavam cautela ou atraso. Na segunda o resultado foi excelente: todas 33 (100%) estavam adequadas.

 

Com a finalidade de verificar se havia diferença entre as três creches, a área de linguagem foi analisada usando-se as categorias adequada e cautela somada à de atraso usando-se o teste exato de Fisher (SIEGEL, 1975). O resultado não foi significativo e a partir deste momento os dados referentes às 3 creches foram trabalhados juntos (Tab. 3).

 

Tabela 3. Interpretação dos itens de linguagem da 1ª avaliação de crianças de 3 creches. São Paulo, 2001.

 

 

 

O mesmo procedimento foi repetido quanto à área pessoal-social obtendo-se também resultados não significativos, ou seja, as creches também não diferem nesta área (Tab. 4).

 

Assim, os dados referentes às avaliações de linguagem das 33 crianças foram agrupados (Quadro 1) e trabalhados conjuntamente, fazendo-se a comparação da primeira com a segunda avaliação através do teste dos sinais (SIEGEL, 1975). Para a realização do teste dos sinais, nas duas áreas, cada criança foi comparada consigo mesma nos dois momentos em que  foi avaliada. Considerou-se empate quando esta se manteve adequada nas duas avaliações, sinal positivo quando ela teve uma interpretação diferente de adequada na 1ª avaliação e mudou para adequada na 2ª  e sinal negativo quando ocorreu o inverso.

 

Na área de linguagem houve 21 empates, 7 sinais positivos e 5 sinais negativos, não significativos (p=0,387). Este resultado demonstra que as habilidades de linguagem das crianças não se modificaram entre os dois períodos avaliados: o bom desempenho medido em primeiro momento repetiu-se no segundo. Pode-se afirmar que as crianças freqüentarem creches não prejudicou seu desenvolvimento, e isto numa área em que são muito dependentes do comportamento dos adultos (BURCHINAL et al. 1996),

 

Tabela 4. interpretação dos itens da área pessoal-social da 1ª avaliação de crianças de 3 creches. São Paulo, 2001 .

 

Quadro 1 – resultados emparelhados das avaliações da área de linguagem pelo TTDD-II de crianças em 3 creches. São Paulo, 2001.

Na área pessoal-social houve 26 empates, 7 sinais positivos e nenhum negativo. O resultado dos testes foi significante (p=0,008) (Quadro 2).

 

Quadro 2 – resultados emparelhados das avaliações da área pessoal – social pelo TTDD-II de crianças em creches. São Paulo, 2001.

 

Como esta também é uma área em que as crianças dependem da atuação dos adultos, consideramos o resultado muito importante: as crianças freqüentarem a creche não prejudicou seu desenvolvimento, talvez até o tenha o melhorado devido às possibilidades de interação entre crianças e adultos e crianças e seus pares. Sem dúvida, não pode ser negligenciada a influência da família, da qual o bom desempenho na primeira avaliação é uma evidência. Mas a continuidade desta estimulação deve ser buscada na instituição. Assim, a explicação deste resultado deve se voltar para os recursos humanos de que dispunham. É o que faremos a seguir.

 

Ao analisarmos a estrutura (BURCHINAL et al., 1996; BURCHINAL et al., 2000) das creches, ou seja, a proporção adulto/criança nos grupos que participaram da pesquisa, e comparamos com o preconizado pela Secretaria do Menor (SÃO PAULO, 1992) obtivemos a tabela abaixo (Tab. 5 ).

 

Observa-se que, nas creches estudadas, a estrutura está adequada, sendo em alguns grupos a proporção adulto/criança até menor do que o recomendado, o que reafirma o bom padrão de cuidado/educação dessas creches. Além disto, alguns grupos possuem funcionárias volantes que não foram incluídas na tabela mas que também auxiliam no cuidado/educação. Mais ainda: as crianças são cuidadas sempre pelas mesmas educadoras, que ficam responsáveis por grupos pequenos, o que é importante para seu bem-estar emocional e, conseqüentemente, para a sua disponibilidade para se desenvolverem (BOWLBY 1984; HONIG, 2001).

 

No que diz respeito à situação de processo, temos somente um indicador até o momento e que se refere à creche B. Pesquisou-se de que modo as educadoras percebiam o conversar com crianças de 0 a 3 anos de idade (SHIBAYAMA, 2001). Percebeu-se que, para as educadoras, conversar é uma atividade executada e valorizada. As educadoras constroem intencionalmente o conversar e este ato é, inclusive, discutido em suas reuniões de trabalho que são periódicas.

 

Tabela 5.  proporção educador/criança em 3 creches. São Paulo; 2001,

 

Considerações finais

 

Dividiremos o item de considerações finais em duas sub-áreas: furta, relativa aos resultados obtidos das avaliações das crianças propriamente ditas;  outra referente aos cuidados metodológicos que foram adotados e que são tão importantes quanto o resultado propriamente dito.

 

No que diz respeito à primeira, foi possível relacionar os bons desempenhos obtidos pelas crianças às condições estruturais, e talvez às de processo, apresentadas pelas creches. Sem dúvida, a influência da família também se deu. Deste modo, foi possível perceber que uma "boa creche", ou seja, uma que apresenta padrões de qualidade objetivos e mensuráveis como, por exemplo, a proporção de crianças por educador, dá continuidade à estimulação começada pela família. É possível até que a creche propicie uma situação de desenvolvimento verbal à criança mais adequada do a família. No entanto, definir a influência de cada uma dessas duas esferas, família e creche, exige outros estudos.

 

É imprescindível levar em consideração, ao se lidar com a questão o cuidado na creche, a quantidade e a qualificação do pessoal adulto disponível. Esta questão precisa permanecer sempre em foco.

 

No que diz respeito a estudos realizados na área, não é maiss admissível que a instituição creche seja simplesmente nomeada, sem que se apresente ao leitor sua conformação e seu modo de agir, ainda que brevemente, dado que, sob o nome "creche", há modos muito distintos de educar e cuidar.

 

Em relação aos cuidados metodológicos, tivemos a. possibilidade e o intento de rastrear todas as situações julgadas deletérias à avaliação da criança. Assim, eventuais cautelas e atrasos seriam, na medida do possível, devidos a própria criança, e não a quaisquer outros fatores que mascaram o desenvolvimento infantil pleno.

 

Ressaltamos que o TTDD-II foi criado para de ser aplicado em consultórios e ambulatórios, enfim, em locais nos quais se conta com a presença dos familiares da criança. A presença da mãe, ou de outro adulto significativo, modifica o comportamento da criança (BOWLBY 1984). Assim, ao realizarmos a avaliação em ambiente do qual não se dispunha da presença da mãe, ou de algum outro adulto significativo para a criança, foi necessário tomar estes cuidados para garantir a serenidade e sentimento de confiança da criança.

 

Deste modo, o tempo necessário para aplicação aumentou muito. A afirmação de que o tempo necessário para aplicação é de 15 a 20 minutos (O'HARA et al., 1998) não se aplica à avaliação dessas crianças. Outra situação importante foi o auxílio das educadoras infantis para que a avaliação se desse. Foi mais do que "criar condições" para ajudar na obtenção das informações. Nas três creches, as educadoras são fixas, isto é, permanecem sempre com as mesmas  crianças. Isto é feito com o propósito de favorecer a ligação afetiva entre criança e educador, condição útil para o favorecimento do desenvolvimento das crianças. Assim, as educadoras tornam-se o que BOWLBY (1984) nomeia "cuidadores secundários" e exercem, em pane, o papel que caberia à mãe (ou ao cuidador primário) durante a aplicação do TTDD-11. As educadoras executam um papel importante servindo como base logística para os pesquisadores - devido à sua posição dentro da instituição e a sua posição como base afetiva para as crianças.

 

Finalmente, salientamos que seria indicado reproduzir este estudo em condições diferentes. Por exemplo: se as crianças avaliadas proviessem de lares nos quais não dispõem de um ambiente propício ao desenvolvimento e passassem a freqüentar creches nas quais têm esta oportunidade. Outros desenhos também poderiam ser feitos. De qualquer modo, sabe-se que as condições ambientais são fundamentais para o desenvolvimento infantil. É necessário que tais parâmetros, sejam incorporados a todas as creches.

 

Agradecimentos

 

Agradecemos a inúmeras pessoas e instituições, dentre elas, Profª Dra. Márcia R. M. Pedromônico da Disciplina de Distúrbios da Comunicação Humana da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina - pela permissão do uso do formulário do TTDD-II, traduzido por ela e sua equipe, bem como por sua disponibilidade de discussão, à Coordenadoria de Assistência Social (COSEAS) da USP, aos responsáveis pelas crianças, às próprias crianças e à Fernanda Guedes de Lima, acadêmica de enfermagem, que durante o período da pesquisa participou voluntariamente de todas as atividades, incluindo coleta e análise dos dados, elaboração dos relatórios e participação dos congressos.

 

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Notas

 

[1] Pesquisa parcialmente financiada por Bolsa de Iniciação Científica fornecida pela FAPESP à Vivian C. Beteli (Processo 00/11890-7).

 

[2] Professora Doutora do Departamento de enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de enfermagem da USA. Coordenadora do grupo de pesquisas "Saúde em creches e saúde da criança" (Diretório de Grupos de Pesquisas do CNPq - versão 5.0).

 

[3] Alunas do curso de graduação em enfermagem da Escola de Enfermagem da USP (EEUSP).

 

[4] Professor Titular do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto.

 

[5] www.inep.gov.br,"estatisticas/perfil:/resp_uf_reg.asp?tipo=2&regiao=BRASIL em 15-10-02.

 

[6] O mesmo vêm sendo encontrado pela enfermeira e colega Damaris G. Maranhão ao avaliar desenvolvimento infantil em creches públicas da cidade de São Paulo (comunicação pessoal).

 

 

Fonte

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