VISÃO SISTÊMICA DA IMPLEMENTAÇÃO E DA GESTÃO DA REDE DE ATENDIMENTO PROJETADA PELO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

 

 

Leoberto Narciso Brancher

Juiz de Direito da 3ª Vara do Juizado Regional da

Infância e da Juventude de Porto Alegre.

 

 

Este texto se propõe a contribuir ao debate sobre a implantação e gestão do Sistema de Atendimento previsto na Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Dada sua finalidade eminentemente prática, e estando dirigido a operadores do próprio sistema – tanto na área de justiça quanto administrativa - e atores dos movimentos sociais já familiarizados com as concepções que expõe, não se demorará na sua fundamentação, limitando-se a indicar sinteticamente as idéias e linhas de pensar que irão sendo tecidas no esforço para dar-se forma – ainda que a princípio no campo ideal – à “trama”, ou “rede” de serviços de atendimento que se diz projetada por esta Lei.

 

Referências Legais.

 

O artigo 224 da Constituição Federal determina que as ações governamentais na área da assistência social observarão como diretrizes (I) a descentralização político-administrativa e (II) a participação direta da sociedade, através de suas entidades representativas.  Dando a perceber – ao menos do ponto de vista do Direito Constitucional Positivo – que atribui à área da proteção à infância e juventude cunho assistencial, o parágrafo 7º do art. 227 da Constituição Federal expressamente se reporta ao art. 224 para colher dele os mecanismos que regerão a implantação do respectivo sistema de direitos e garantias, que por esta remissão adota os mesmos princípios.

A seguir, além de situar o Município como campo prioritário de construção dos serviços de atendimento à infância e à juventude (art. 88, inc. I), o ECA reafirma e concretiza o art. 224 da Constituição Federal, especificando seu modo de incidência na área, através dos incisos II e III do mesmo artigo 88. A excelência do modelo organizacional proposto, no entanto, vem expressa no art. 86 – que por tal razão merece ser transcrito: “A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

 

Mudanças conceituais correlatas.

 

Contemplando profundas alterações estruturais no sistema e na gestão dos serviços de atendimento a infância e juventude, o reordenamento jurídico inaugurado pela Constituição de 1988 em verdade expressa a adoção de um conjunto de novos referenciais teóricos, a implicar em seu conjunto na opção legal por um novo paradigma que esses dispositivos, embora traduzindo sua expressão normativa, não esgotam. Oportuno recordar algumas inovações conceituais abrangidas nesta mudança de paradigma:

ASPECTO

ANTERIOR

ATUAL

Doutrinário

Situação Irregular

Proteção Integral

Caráter

Filantrópico

Política Pública

Fundamento

Assistencialista

Direito Subjetivo

Centralidade Local

Judiciário

Município

Competência Executória

União/Estados

Município

Decisório

Centralizador

Participativo

Institucional

Estatal

Co-gestão Sociedade Civil

Organização

Piramidal Hierárquica

Rede

Essa combinação de novos fatores marca a intenção da Lei em fazer construir, na base municipal, um sistema articulado de serviços que agregue os esforços do Poder Estatal – principal devedor do direito social à proteção assegurado em lei a crianças e jovens – e das organizações não-governamentais – historicamente reconhecidas como responsáveis, na prática, pelo atendimento assistencial às populações em situação de risco. Daí a introduzir-se a alteração no modelo organizacional de que se trata a seguir, como pressuposto da viabilização da nova política de direitos.

 

Objetivos da busca de uma formatação matricial.

 

Vigendo por força de lei desde o ano de 1990, por mais que se registrem avanços históricos no setor, o modelo sistêmico ainda não logrou maior efetividade prática e, por conseqüência, vem produzindo resultados aquém dos desejados. Tal se pode atribuir à insuficiente composição de uma visão compartilhada quanto à formatação matricial do sistema, uma questão teórica cuja sedimentação e assimilação cultural mostra-se indispensável ao seu bom funcionamento.

É o que se quer propor a partir daqui, com os objetivos seguintes:

·        Estabelecer uma comunidade de sentido na área em matéria organizacional.

·        Aclarear competências, atribuições e funções.

·        Estimular atuação interinstitucional integrada.

·        Agregar serviços em rede.

·        Firmar as bases para os planos e gestões estratégicas integradas.

·        Romper confusão conceitual entre proteção especial e sócioeducação.

A construção da matriz pode partir da decomposição dos direitos sociais estabelecidos no art. 227 da Constituição Federal (e reproduzidos no art. 4º do ECA), aliados aos mecanismos de restauração das situações de risco originárias da sua violação (arts. 101 c/c 129, art. 23, p. único e art. 34) ou, ainda, de recomposição da situação de adolescentes “em conflito com a lei” (arts. 112 c/c 129). Abstraindo-se por ora as garantias individuais (dignidade, respeito, liberdade), bem como aquelas medidas que dispensem programas específicos (encaminhamento aos pais ou responsáveis, p. ex.),  e agrupando-se os demais, pode-se tê-los distribuídos por três segmentos a que também podem corresponder cortes setoriais na organização do sistema de políticas públicas dedicado ao seu asseguramento – a que vamos denominar genericamente políticas:

 

POLÍTICAS

BÁSICAS

POLÍTICAS DE PROTEÇÃO ESPECIAL

POLÍTICAS SOCIOEDUCATIVAS

CF art. 227, ECA, art. 4º

ECA, arts. 101 c/c 129; art. 23, p. único; art. 34.

ECA, arts. 112 c/c 129

Saúde

Orientação, apoio e acompanhamento temporários

Prestação de Serviços à Comunidade

Alimentação

Reingresso escolar

Liberdade Assistida

Habitação

Apoio sócio-familiar / manutenção de vínculo

Semiliberdade

Educação

Necessidades especiais de saúde

Internação com atividade externa

Esporte

Atendimento a vítimas de maus-tratos

Internação sem atividade externa

Lazer

Tratamento da Drogadição

 

Profissionalização

Renda Mínima Familiar

 

Cultura

Guarda Subsidiada

 

 

Abrigo

 

 

Redução didática.

Para fins meramente didáticos, a matriz pode ser convertida na representação visual de uma “sinaleira de trânsito”, um semáforo, a partir do qual se diga que, se tiver todos os direitos sociais fundamentais assegurados pela família ou, na impossibilidade ou ainda em complementação desta, pela sociedade e pelo Estado, a criança terá assegurada suas condições de desenvolvimento – ou seja, terá “sinal verde” para a vida. Do contrário, a violação do seu direito ao acesso a tais mínimos sociais implicará na intervenção corretiva do sistema de atendimento assistencial, a título de proteção especial, como se acenando com um sinal de alerta, ou seja, dizendo que se acende um “sinal amarelo” na trajetória de vida desta criança ou adolescente.

Finalmente, em consumando-se os riscos a que exposta pela insuficiência de atendimento às suas necessidades básicas e, falhando a intervenção do sistema protetivo, muito possivelmente já adolescente, da condição de vítima que foi, poderá passar à de “produtor de vítimas” ou vitimizador, transgredindo a lei penal. Neste caso, é de acionar-se o sistema do “alerta vermelho”, eis que se chegando à situação da delinqüência, mais ou menos grave, há que fazer-se a derradeira e mais intensiva intervenção objetivando o resgate da cidadania fraturada nesse percurso. Daí a inserção do sistema sócio-educativo como “sinal vermelho” na trajetória de quem antes foi vítima, mas tornou-se agora infrator.

Tal estruturação, na terminologia que vem-se convencionando adotar no meio jurídico, (embora seu caráter excludente ) para enumerar as políticas de atenção à infância sob o prisma da prevenção da delinqüência juvenil, corresponderia aos níveis ditos tradicionalmente como relativos à prevenção primária, à prevenção secundária e à prevenção terciária.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Cabe anotar  que tais políticas não se resumem de forma estanque num ou noutro segmento, mas, dinamizadas pela multiplicidade das situações da vida, apresentam colorações variáveis segundo a maior ou menor gravidade das situações envolvidas, de modo que a seria mais apropriada  sua visualização como uma escala em “degradê” (conquanto graficamente sempre incompleta e aqui adotada por efeitos sobretudo didáticos), como ver-se-á mais adiante.

Agentes Integradores

Situadas as políticas ditas “lato senso” de proteção integral nestes três campos, antes de compor-se a representação da nova matriz organizacional em rede há que tratar-se de quem faça, no âmbito de cada um destes três cortes, a função integradora das demais funções, como que estabelecendo uma referência “gravitacional” que possibilite o agrupamento e a orientação das demais unidades componentes do sistema como que “satélites” de uma constelação de órgãos, programas e serviços de atendimento.

Tal esforço partiria da identificação, no articulado interinstitucional, dos agentes de cujo papel revela inserção prevalente em razão da multiplicidade das suas relações interfuncionais e do potencial regulador de sua atuação, portanto apta à maior complexidade de interfaces, a ponto de terem suas ações capazes de exercer função integradora com relação às demais.

Estas instituições seriam:

 

POLÍTICAS BÁSICAS

PROTEÇÃO ESPECIAL

SOCIOEDUCATIVAS

ESCOLA

CONSELHO TUTELAR

JUIZADO DA INFÂNCIA

 

 

 

Reconfigurando a matriz organizacional.

Pode-se agora tentar evoluir para uma síntese agregada das idéias até aqui expostas, ou, noutras palavras, trançar a forma delineada a partir da conjugação destes pontos de vista e linhas de pensar, o que se pode visualizar da maneira demonstrada na ilustração que segue:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Conclusão.

A partir deste esboço acreditamos ser possível propor submeter-se a formulação ao debate entre os diversos atores do Sistema de Justiça e Sistema de Atendimento à Infância, convocando-se as contribuições da academia, instituições, órgãos, programas, movimentos sociais, profissionais e atores relacionados à área dos direitos da criança e do adolescente.

É também de lembrar-se que a contribuição do autor, malgrado o esforço metodológico, não pode ser dissociada da posição que ocupa no sistema e da função que portanto exerce no cotidiano,  tão rica ao fornecer os elementos empíricos que embasaram a construção da proposta, quanto condicionante e portanto inspiradora de cautelas quanto à validade meramente relativa de suas formulações.

É por tal ordem de razões que se conclui salientando não se pretender a construção de uma  visão hegemônica ditada por concepções que exerçam algum tipo de centralidade com relação às demais, senão que, a partir do esboço surtido pela leitura técnico-jurídico da Lei, do amadurecimento gerencial dos serviços já instalados e da observação do funcionamento do sistema a partir de uma das posições profissionais – no caso, de um dos operadores do Sistema de Justiça – abrir o debate sobre a oportunidade e conveniência de que se tenha um traçado comum para que todos, no seu afazer cotidiano, possa fazer convergir seu esforço na construção de uma tecitura comum – pressuposto do desencadeamento de ações que possam atingir a efetividade por todos naturalmente objetivada.