FICAI
- UM INSTRUMENTO DE REDE DE ATENÇÃO PELA INCLUSÃO ESCOLAR
Simone Mariano da Rocha
Procuradora de Justiça, RS.
O artigo 227 da Constituição Federal abriu
definitivamente as portas para uma verdadeira transformação na condição
sócio-jurídica da criança e do adolescente. Ao se referir ao Direito à Educação
de forma específica prescreve o artigo 225 da Lei Maior a regra consoante a
qual a "educação, direito de todos e dever do Estado e
da Família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,
visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho".
O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, diploma legal que
regulamenta, dentre outros, o direito fundamental à educação disciplinando as
relações jurídicas, não se limita a garantir o acesso ao ensino público e a
estabelecer mecanismos para compelir o Estado a cumprir suas obrigações.
Estabelece, ademais, regra de controle externo da manutenção do aluno na rede
escolar, atribuindo aos dirigentes dos estabelecimentos de ensino fundamental a
responsabilidade de, superado o funcionamento da instância escolar, comunicar
ao Conselho Tutelar e, na sua falta, à autoridade judiciária os casos de altos
índices de repetência, reiteração de faltas injustificadas e evasão escolar.
Tal comunicação oportuniza o surgimento de novas relações institucionais que
superam práticas individualizadas e permitem inserir a sociedade na discussão
para detectar as causas e encontrar meios de possibilitar o retorno e a
freqüência do aluno às aulas, integrando todas as forças para mantê-lo na
Escola.
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Embasados nessas considerações e mobilizados a desenvolver ações
educacionais-integradoras para superar as insuficiências existentes que
decorrem de interpretações parcializadas, sobretudo, as do disposto no artigo
56, inciso II, do ECA, reuniram-se o Ministério
Público, a Secretaria Estadual de Educação, a Secretaria Municipal de Educação
de Porto Alegre e a Coordenação dos Conselhos Tutelares de Porto Alegre, com o
objetivo de avançar na interpretação, tendo como propósito buscar uma melhor
eficiência no trato da evasão escolar e da garantia de permanência na Escola.
Um dos principais e mais significativos resultados da constituição desse fórum
interinstitucional foi a elaboração de um plano de
orientação de ações, as quais poderiam ser executadas pelos agentes em seu
cotidiano, diante da situação de alunos evadidos ou infreqüentes.
Para tal elaboração, ficou clara a necessidade de alcançar-se um consenso
mínimo quanto a formas de uniformização de atuações e de consolidação sobre o
conhecimento dos papéis de cada instituição, uma vez reconhecido que a
conseqüência dos afastamentos, definitivos ou temporários, da Escola era e é
extremamente negativa para o aluno que se desvinculava da Escola e do grupo ao
qual pertencia, sendo muito difícil em seu retorno, o restabelecimento das
relações tanto com o grupo quanto com o trabalho desenvolvido na sala de aula.
Para o aluno e para a sua família, esse afastamento, até então, se dava sem
muitos questionamentos, pois não havia movimentos organizados por parte da
sociedade como um todo, no sentido de conscientizá-la sobre os direitos da
criança e do adolescente e os deveres da família e do poder público na garantia
do acesso e da permanência desse aluno na Escola.
Discussões sobre propostas pedagógicas e regimentos escolares também foram
contempladas no fórum por permear a avaliação das reais condições de inclusão,
permanência e avanço do aluno. Ademais, o percentual de 75% de freqüência
exigido pela Lei 9.394/96 (LDB) também mereceu definição de atuação integrada,
apesar de não ser o único critério, por representar uma ameaça à aprovação dos
infreqüentes e evadidos que retornam à Escola. Nesse sentido, idealizou-se a
possibilidade de realizar-se o trabalho de resgate do aluno em prazos curtos.
Chegou-se ao prazo de 5 semanas, antevendo-se a possibilidade de novo resgate
em caso de eventual reincidência de infreqüência ou evasão, por igual período,
sem que seu direito de aprovação, pelo critério de freqüência, já estivesse
prejudicado, uma vez que o equivalente a 25% dos 200 dias letivos significa 50
dias letivos ou 10 semanas de aula, período que, sem prejuízo do necessário
acionamento e atuação de todas as instituições envolvidas
(Escola/ConselhoTutelar/MinistérioPúblico),
possibilitaria a mobilização pretendida para o retorno do aluno.
O prazo de 5 semanas ficou assim distribuído: uma semana para o professor
regente de turma ou disciplina dar o alerta à direção; uma semana para a equipe
diretiva, juntamente com o Conselho Escolar, tomar as providências no âmbito
escolar; duas semanas para o Conselho Tutelar aplicar as medidas cabíveis; e
uma semana para o Ministério Público exercer suas atribuições.
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Harmonizada a forma de atuação interinstitucional, surgiu a FICAI - Ficha de
Comunicação do Aluno Infreqüente, uma elaboração coletiva de proposta
político-pedagógica inovadora, resultado de um processo de discussão realizado
pelo conjunto de instituições co-responsáveis na práxis por combater a evasão
escolar.
A FICAI é um instrumento que visa à adoção de um procedimento uniforme de
controle da evasão escolar em todo o Estado do Rio Grande do Sul, que se
materializou, inicialmente, em Porto Alegre, através de termo de compromisso,
firmado em 1997 pela Coordenadoria das Promotorias da Infância e da Juventude,
Conselhos Tutelares, Secretaria Estadual de Educação e Secretaria Municipal de
Educação. No primeiro semestre de 1999, já contabilizava o Ministério Público
idêntico compromisso firmado por 409 dos 467 Municípios do Estado do Rio Grande
do Sul.
No sistema de operacionalização da FICAI, a atuação da Escola é primordial,
pois, além da família, as instituições educativas são fundamentais na
complementação do desenvolvimento pessoal e social das
crianças e adolescentes, representando não apenas um espaço físico, mas
também uma extensão do corpo social que convive com os desafios trazidos para
seu interior. Ressalta-se como fundamental seu papel inovador à medida que age
ativamente, de forma flexível, permitindo e
possibilitando espaço de ousadia em sua política pedagógica, quando as
circunstâncias sócio-educacionais o indicarem. Tal concepção rompe com a
dimensão meramente organizativa e funcionalista da Escola.
Nessa senda, o agente principal do processo é o professor. Cabe a ele
diagnosticar quando o aluno não está indo à Escola e desencadear o movimento,
por meio do preenchimento do documento denominado Ficha de Comunicação do Aluno
Infreqüente - FICAI, acionando a Equipe Diretiva que, juntamente com o Conselho
Escolar e em parceria com as entidades organizadas da comunidade escolar,
deverá realizar contato com a família e todos os movimentos necessários para
possibilitar o retorno do aluno. Por certo, a Escola poderá criar suas próprias
alternativas no sentido de resgatar seu aluno de um processo de exclusão
social.
Esgotadas as providências do âmbito escolar para reinserção do aluno, caberá à
Equipe Diretiva encaminhar a 1ª e 3ª vias da FICAI ao Conselho Tutelar e, na
sua falta, à autoridade judiciária, resumindo os procedimentos adotados. O
Conselho Tutelar, no âmbito de suas atribuições, poderá exigir oficialmente a
participação dos pais, aplicando as medidas protetivas consideradas cabíveis
para manter a criança ou o adolescente na Escola.
O Conselho Tutelar, não logrando o resultado almejado, encaminhará a 1ª via da
FICAI à Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude, comunicando à Escola
o encaminhamento. De posse da 1ª via da FICAI, onde constará a identificação e
a qualificação do aluno, bem como o resumo das providências efetuadas pela
Escola e pelo Conselho Tutelar, o Promotor de Justiça tentará ainda o retorno
do aluno (poderá realizar audiência pública com os pais ou notificar para ouvir
individualmente) e, se for o caso, promoverá a responsabilidade dos pais ou
responsáveis. Em qualquer das hipóteses, o Promotor de Justiça dará ciência do
ocorrido ao Conselho Tutelar e à Escola, efetuando a devolução da 1ª via para a
escola, que registrará o encaminhamento na 2ª via, remetendo a 1ª via à
respectiva Secretaria de Educação.
Na hipótese de acionamento judicial dos pais ou responsáveis,
por descumprimento da medida aplicada, em razão da obrigação de matricular o
filho e acompanhar sua freqüência e aproveitamento escolar, relevante é
a participação integrada da autoridade judiciária ao agilizar o processo formal
de exigibilidade, priorizando a realização de audiências coletivas e
individuais, nos processos originados pela FICAI, visando o efetivo e breve
retorno do aluno à Escola.
Na preparação para deflagrar o processo de participação dos diferentes
segmentos na implantação da FICAI, buscou-se como estratégias de mobilização e
sensibilização, realizar audiências públicas e reuniões, agrupando as Escolas
da rede Estadual e Municipal de uma mesma região para, apresentando a proposta
e discutindo a evasão e a repetência, sempre pontuais nas agendas educacionais,
sinalar a importância da participação comprometida e do trabalho coletivo
também com a família e a comunidade escolar, como forma de garantir a qualidade
da ação e construir uma relação de parceria interinstitucional, respeitando e
estabelecendo os papéis que competem a cada uma. Esses encontros permitiram a
socialização do instrumento FICAI e oportunizaram ricas reflexões críticas
coletivas, inclusive de nossas práticas e discursos que, muitas vezes, retroalimentam micro-processos de exclusão.
Coletivizada a ação da rede de atenção ao aluno infreqüente, o fato de esse
instrumento ter sido acolhido como política institucional do Ministério Público
possibilitou o comprometimento dos Promotores de Justiça da Infância e da
Juventude com a implantação da FICAI em todos os municípios do Estado do Rio
Grande do Sul, abrangendo, até o primeiro semestre de 1999, um percentual de
87,59% de municípios que implantaram a FICAI, conforme demonstra gráfico
abaixo:
Avalia-se que a FICAI tem produzido cotidianamente resultados positivos que já
começam a ser percebidos. Das 1.557 FICAI´s encaminhadas ao Ministério Público no período de junho de 1998 até julho de 1999, 1.071
crianças e adolescentes retornaram à Escola. Muitos outros casos foram
resolvidos no âmbito escolar ou na esfera de atuação do Conselho Tutelar.
Não obstante entender-se que a consolidação da FICAI se dará a
médio prazo - afinal foram décadas trabalhando na lógica de apenas
considerar o percentual de infreqüência sem fazer muitos movimentos efetivos
para o retorno do aluno - mesmo que os resultados ainda não atendam totalmente
a nossas expectativas, sua realização é importante, uma vez que representa a
construção e a constituição de uma nova prática pela inclusão escolar.