REFLEXÕES SOBRE A PROCRIAÇÃO ARTIFICIAL E OS DIREITOS
DAS CRIANÇAS
Resumo: O autor
levanta algumas indagações de caráter ético e jurídico sobre as repercussões
nos direitos das crianças em razão da utilização do processo artificial.
Comenta normatizações e decisões judiciais estrangeiras referentes à matéria.
A evolução tecnológica
e científica que vem ocorrendo nas últimas décadas trouxe um grande poder ao
Homem para aluar sobre as condições físicas e psíquicas do próprio ser humano.
A realização de transplantes de órgãos e de tecidos, a viabilidade do
reconhecimento antenatal das condições de viabilidade do feto, as atividades da
engenharia genética como a manipulação de gametas, a possibilidade da escolha
do sexo da criança a ser gestada, a inseminação
artificial, a fertilização "in vitro", entre outras, são inovações tecno-cientificas
que trazem a imperiosa necessidade de profunda reflexão filosófica, ética e
jurídica sobre as repercussões dessas práticas nos direitos fundamentais que
devem reger a vida humana.
As conquistas
cientificas devem visar o bem do ser humano e por isso há necessidade que seus
resultados e conseqüências sejam limitados pela manutenção das garantias e
liberdades dos indivíduos, preservando-se a dignidade do ser humano, seu
direito à vida, à saúde e à integridade física e psíquica. O interesse de cada
indivíduo deve prevalecer sobre o da sociedade e o da ciência, como disposto na
Declaração de Helsinki, de 1964, elaborada pela
Associação Médica Mundial, a respeito da realização de pesquisas sobre o ser
humano [1].
A dignidade
da pessoa humana é princípio inserido na Norma Constitucional Brasileira (art.
1°, III) e qualquer atividade cientifica deve ser balizada por tal diretriz,
assim como objetivada pela promoção do bem comum (art. 3°, IV).
O homem, além
de seu caráter individual, tem uma dimensão social traduzida no reflexo de sua
vida, suas atitudes, seus conceitos, seus julgamentos, sua reputação nos
contextos sociais onde está inserido. Sendo assim, o indivíduo deve ter
assegurado o poder da livre manifestação de sua vontade sobre tudo o que disser
respeito a seu corpo, expressando-a através do consentimento. Consentimento
este livre de coações físicas e psíquicas, de erros, enganos ou atos dolosos.
Esclarecido por meio de informações que norteiem suas decisões sobre aspectos
biológicos, jurídicos, éticos e econômicos.
Cabe dizer
que o consentimento só é válido para atos lícitos, não exonerando práticas
culposas ou dolosas que infrinjam os limites estabelecidos pela lei.
Princípio
este a ser também resguardado nas reflexões sobre as medidas cientificas
modernas e na sua relação com os direitos humanos, é o que coloca o corpo
humano como fora das relações comerciais, insuscetível de apropriação e de
alienação. Tal princípio é reforçado pelo disposto no art. 199, § 4° da
Constituição Federal, referente à remoção de tecidos, substâncias e órgãos
humanos para pesquisas, transplantes e tratamentos, vedando qualquer forma de
comercialização.
Direito à
reprodução
O poder de intervenção do homem sobre o processo biológico, que vinha até agora sendo controlado por via natural, leva ao manifesto desejo dos indivíduos em aceder a essa nova forma de liberdade como também da própria sociedade em utilizá-la em seu proveito. A atual Carta Constitucional refere-se ao direito do cidadão brasileiro ao planejamento familiar (art. 226, § 7°), tanto para evitar a geração de crianças, quanto para procriá-las, direito baseado na livre decisão do casal e cabendo ao Estado proporcionar recursos de informação e de educação para garantir a eficácia do princípio.
Resta saber
se devem ser estabelecidas normas legais que fixem os limites de intervenção da
sociedade no domínio da reprodução humana artificial por intermédio de
regulamentação infraconstitucional, ou se é preferível deixar o assunto na
dependência da vontade do casal, da consciência ética dos profissionais de
saúde e das decisões deontológicas e jurisprudências,
quando da resolução de problemas concretos advindos da realidade dos fatos.
CALLAHAN nos lembra que ainda não há um consenso na sociedade sobre o comportamento
ético da tecnologia existente para planejar, limitar ou interromper as
gravidezes; ainda não há o preparo adequado para avaliar-se
eticamente as mais novas alternativas de reprodução artificial [2].
A
inexistência de regras específicas faz com que o estudo e a
discussão sobre esta temática seja baseada nos princípios gerais da ética e do
direito brasileiro e nas experiências provenientes dos países onde as técnicas
de reprodução artificial estão mais desenvolvidas e já vêm suscitando,
há algum tempo, interrogações legais e éticas.
A procriação
artificial
Consiste na
inseminação cirúrgica de uma mulher com o esperma de seu marido, companheiro ou
terceiro, ou a fecundação "in vitro" graças
aos gametas do casal ou de terceiros.
A procriação
artificial se utiliza de dois métodos básicos. A
técnica de inseminação artificial de gametas masculinos diretamente no útero
feminino e a fertilização realizada "in vitro",
onde há o encontro dos gametas masculinos com o óvulo feminino em condições
laboratoriais dando origem a um embrião, que por técnicas de congelamento e
descongelamento, são conservados para serem posteriormente implantados no útero
da doadora do óvulo ou de outra mulher.
A inseminação
pode ser homóloga, quando são utilizados os gametas do próprio casal ou heteróloga, quando o embrião resultar de gametas
provenientes de terceiros, estranhos ao casal.
Há, portanto,
três situações possíveis para a procriação artificial:
I -
intervenção no seio do próprio casal;
II -
intervenção com terceiro doador de gametas;
III-
intervenção com a participação de terceiro procriador, denominado de mãe
substituta ou popularmente conhecida como "barriga de aluguel".
Atualmente,
no Brasil, estima-se que as técnicas utilizadas levem a um resultado desejável,
ou seja, o nascimento de uma criança normal, em torno de 10 a 25% das vezes
[4].
A procriação
artificial e os direitos das crianças
Há um direito
irrestrito à procriação artificial? Todas as pessoas têm, em quaisquer
condições, direito a ter uma criança gerada artificialmente, sob a alegação do
princípio da autonomia e da liberdade individual?
Um casal com
graves distúrbios mentais pode requerer a utilização de técnicas de
reprodução artificial? Será permitido que mulher solteira ou viúva possa
praticar procedimentos que resultem em uma gravidez artificial? É ético e legal a inseminação artificial de gametas masculinos ou de
embrião derivado de progenitor já falecido?
Quando
prevalece o direito dos pais em situação de confronto com os direitos das
crianças? É direito da criança ter uma família ao nascer, constituída de pai e
mãe, ou basta somente a presença materna? A criança
deve ser encarada como um fim em si mesma ou um meio para a realização de
interesses ou desejos dos adultos?
No final de
1992, o Conselho Federal de Medicina estabeleceu algumas regras para a
utilização da "reprodução assistida", através da resolução n°
1358/92, trazendo resposta a algumas das indagações feitas. Permite, esta
resolução, que toda mulher legalmente capaz possa ser receptora das técnicas de
reprodução assistida, quando de sua concordância [3].
As atuais
proposições legislativas francesas, por exemplo, vedam a reprodução artificial
para mulheres solteiras e viúvas, argumentando que deve prevalecer o interesse
da criança sobre a satisfação dos pais ou da mulher em trazer alguém a este
mundo e que essa tem o direito de nascer no seio de uma família constituída
[9].
Recentemente
a Suprema Corte americana rejeitou o recurso impetrado por uma senhora que
ensejava utilizar os óvulos fertilizados pelo sêmen congelado de seu ex-marido,
contra a vontade deste.
Será esse o
entendimento que tem a sociedade brasileira neste momento histórico?
As técnicas
de procriação artificial foram desenvolvidas como meios de luta contra a esterilidade masculina, feminina ou de ambos os membros do
casal. Sendo assim, podem ser utilizadas como uma nova forma de procriação,
vindo substituir a procriação natural, sendo realizada sem
razões módicas, simplesmente para conforto do casal ou da mulher?
Um casal que
é capaz de procriar normalmente está legitimado a demandar a realização de
procedimentos de procriação artificial?
Antes da
realização dos procedimentos técnicos, o profissional de saúde deve constatar
devidamente a existência de esterilidade irreversível ou a presença de
condições de forte transmissão de afecções consideradas como incuráveis pêlos
conhecimentos científicos do momento?
Fundamental é
que os procedimentos devam ser realizados por profissionais médicos devidamente
habilitados e em instituições que congreguem recursos humanos, técnicos e
materiais condizentes com as necessidades científicas para tais práticas.
Indaga-se,
ainda, se é papel do Poder Público normatizar sobre
quais parâmetros e variáveis devam ser consideradas na escolha dos doadores.
Consideramos
que a doação deve manter o princípio da gratuidade, ser uma ação altruística,
um gesto humanitário e não uma transação comercial, pois o corpo humano está
fora das relações comerciais. Sabe-se da dificuldade de se manter este princípio
na prática diária das atividades de pesquisa e de assistência reprodutiva, mas
consideramos que para sua preservação faz-se necessário que ocorram campanhas
de esclarecimento e conscientização sobre os benefícios do gesto da doação com
essa finalidade.
É da essência
do processo que se mantenha o anonimato do doador. Correntes doutrinárias
advogam o anonimato absoluto, vedando o conhecimento da identidade do doador
dos gametas em todas as condições, e argumentam que, assim, a criança poderá
crescer e desfrutar de sua filiação suposta de maneira plena [10].
Nesse caso a
lei deve estabelecer que não exista relação alguma entre o doador e a criança
nascitura devendo, os vínculos desta, ser apenas com os pais naturais.
Há outras
correntes que defendem o anonimato relativo, podendo este ser rompido em
condições especiais mediante autorização judicial. Lei sueca, de 1980, permite
à criança que atingiu sua maioridade, ser informada de sua filiação biológica.
FERRAZ expôs a mesma tese, considerando que o sigilo relativo ao doador poderá
ser rompido quando for de interesse da criança obter informações genéticas
extremamente necessárias para sua vida ou sua saúde [5].
Quanto ao
doador, este não deve ter o poder de influenciar na escolha dos receptores de
suas células germinais e nem ter o conhecimento da identidade dos donatários.
O
consentimento à prática de procriação artificial é atribuído aos membros do
casal, seja qual for sua condição marital, devendo ser expresso. No caso de
doação de gametas deve-se obter o consentimento do doador para a utilização de
seu patrimônio genético. Quando casados ou em união estável, será necessário o
consentimento do cônjuge ou companheiro, sob pena de ser alegada violação grave
ao dever conjugal de exclusividade de procriação no seio do casal.
Questão
altamente controversa refere-se à intervenção de terceiro procriador - a
maternidade de substituição. Países como a Alemanha, a França e a Austrália
impedem essa prática, que é permitida por diversos estados
americanos. A Igreja Católica, de grande influência cultural em nosso pais, através do Direito Canônico, se coloca em
posição frontalmente contrária a esse tipo de procriação [7].
O Comitê
permanente para o estudo dos aspectos éticos da reprodução humana da Federação
Internacional de Ginecologistas-Obstetras, em 1989, pelo entendimento da
maioria de seus membros, considerou que a maternidade de substituição pode ser
admitida como uma prática válida em situações muito particulares e raras, mas
todo o processo deve ter a aprovação de um Comitê de Ética e manter-se sob
estrito controle médico. Alertam para que sejam evitadas situações de
exploração das mulheres que, em virtude de suas precárias situações sociais
aceitem serem mães substitutas utilizando seu corpo como fonte financeira [10].
A Resolução
do Conselho Federal de Medicina estabelece validade ética para o procedimento
em caso de problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora
genética. A mãe substituta deverá ser da família da doadora genética, num
parentesco de até segundo grau, cabendo aos Conselhos Médicos Regionais a
autorização para outras situações.
A utilização
dessa técnica traz o questionamento de saber quem é a mãe verdadeira da criança
nascida? A mãe biológica, produtora do óvulo ou aquela
responsável pela gestação e pelo parto, a mãe natural?
Quem deve
ficar com a criança em caso de discordância jurídica em casos concretos? A
legislação francesa optou por considerar que é a mãe natural a responsável pela
criança. Por sua vez, a jurisprudência americana conduziu a uma solução oposta,
pois toma em conta o contrato estabelecido entre os genitores biológicos e a
"mãe de aluguel". Acatando o princípio da responsabilidade
contratual, determina que a criança permaneça com os pais biológicos.
Por fim, vale
ressaltar que na ausência de regras éticas e jurídicas já definidas e com a
ampliação das possibilidades em nosso país para a realização das técnicas de
procriação artificial, é imperioso que a sociedade, juntamente com os
profissionais de saúde preocupados com a questão ética, como os juristas,
ampliem a discussão e a reflexão sobre o tema e suas conseqüências sociais
sobre os direitos das crianças.
Referências
bibliográficas
1. BELANGER,
M. Droít international
de ia santé por lês textes.
2. CALLAHAN,
S. The ethical challenge ofthe new reproductive technology.
In: MONAGLE, J. F.;
3. CONSELHO
FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n° 1358/92, de 11.11.92.
4. CONSELHO
REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Reprodução assistida: amplo
debate. Jornal do CREA-FESP. 48:6-7, 1989.
5. FERRAZ, S,
Manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma introdução. Porto
Alegre. Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991.
6. FOLHA DE
SÃO PAULO. Justiça impede mulher de usar os óvulos fertilizados pelo ex-marido,
23 de fevereiro de 1993.
7. PESSINI,
L.; BARCHIFONTAINE, C. de P. Problemas aluais
de bioética. São Paulo, Edições Loyola, 1991.p.
143-164.
8. REVILLARD,
M.; REVILLARD, J. P. Aspects éthiques
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9. SUREAU, C.
De 1'éthique au droit. Du droit
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FORTES. P.A.C'. Reflexões solire a
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