Trabalho nada infantil. Trabalho nada educativo

 

 

Renata Coelho[1]
Procuradora do Trabalho.

 

 

Nos dias de hoje a infância, para muitos, já não é o período das brincadeiras, do lazer, da fantasia, do descompromisso. É, isto sim, época de trabalho árduo, de mãos calejadas, de obrigações mil e direito algum.

Esta é a realidade de milhares de pequenos brasileiros, das crianças e adolescentes que lidam com o sisal, com o corte da cana, que laboram nas carvoarias, nas olarias, na indústria de calçados, indústria madeireira, na colheita de laranjas e em dezenas de outros trabalhos divulgados constantemente pela mídia. Para esses brasileiros a infância jamais será lembrada como a “aurora de suas vidas”, mas como o início de um sofrimento que marcará para sempre sua existência.

No entanto, os trabalhos mencionados, embora sejam os que mais chocam nossa sociedade, não são os únicos a comprometerem o futuro de nossas crianças e adolescentes. Existem outros trabalhos que, apesar de aparentemente não sacrificarem os corpos e mentes dos trabalhadores mirins, certamente lhes são tão prejudiciais quanto o corte da cana e do sisal.

Desta espécie são aqueles trabalhos que mesmo realizados por crianças e adolescentes, ao estarem acobertados pelo falso rótulo de trabalho educativo, recebem ampla aceitação social. Este tipo de trabalho passa a ser tão perigoso quanto aqueles que visivelmente molestam as crianças e adolescentes deste país, pois ao possuírem convênios sociais como pano de fundo e envolverem muitas vezes Prefeituras e empresas renomadas, transmitem uma errônea impressão de legalidade e legitimidade.

Fazem parte dessa nova realidade os mais diversos tipos de atividades, como a lavagem de carros, a montagem de peças, a carga e descarga de bagagens, o empacotamento de mercadorias. Tais atividades, muito embora sejam efetuadas até mesmo por crianças com menos de oito anos de idade, por serem desenvolvidas mediante convênios, alguns com envolvimento direto do Poder Público, adquirem um cunho de favor social das partes signatárias, de beneficência, fazendo com que a sociedade ao invés de reprimir estes trabalhos, defenda fervorosamente a iniciativa “caridosa”.

No Brasil, a cultura e os costumes constituem, por si só, um grande empecilho à erradicação do trabalho infanto-juvenil. Em nossa sociedade ainda figura a idéia de que criança que trabalha desde cedo será um adulto mais responsável, e de que é preferível um filho que trabalhe desde muito jovem do que um filho nas ruas exposto às drogas, à prostituição, à miséria e ao crime.

Quando esta espécie de pensamento que permeia nosso dia-a-dia é, além de tudo, aliada a um “caráter beneficente” de programas de “trabalho educativo”, que vêm se multiplicando de forma espantosa, a opinião pública deixa de ser uma arma contra o trabalho infanto-juvenil e passa a ser sua maior força legitimadora.

Urge, desse modo, atentar para esta outra forma de trabalho irregular que surge com a desculpa de fazer o bem à comunidade, aumentando a renda familiar, ocupando as mentes das crianças, retirando-as das ruas e ensinando-lhes uma profissão, mas que se transforma em meio lucrativo de exploração da mão-de-obra de inúmeros pequenos cidadãos. Além disso, estes trabalhos respaldados por programas irregulares surgem com a agravante de que a ilegalidade não vem exposta, mas mascarada por malfadados convênios sociais.

O Estatuto da Criança e do Adolescente é esquecido e a Constituição da República maculada, quando crianças de sete e oito anos são colocadas, por exemplo, na montagem de grampos de roupas, com a afirmativa de que tal trabalho é educativo e traz benefícios à comunidade.

O trabalho educativo preconizado por nossa legislação está longe de ser aquele apresentado por programas sociais, desenvolvidos mediante convênios com Municípios. Estes programas irregulares escondem por trás de seus belos e doces nomes, trabalho ilegal e nada educativo.

Vejamos o que preceitua o art. 60, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90):

 

“O programa social que tenha por base o trabalho educativo, sob responsabilidade de entidade governamental ou não-governamental sem fins lucrativos, deverá assegurar ao adolescente que dele participe condições de capacitação para o exercício de atividade regular remunerada”.

 

Diante de tal dispositivo, percebe-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente objetivou compatibilizar educação com produção, contudo, a finalidade de profissionalizar deve prevalecer sobre a de produzir. Saliente-se, desde já, que o trabalho educativo, como deixa patente a redação da Lei nº 8.036/90, pode ser realizado apenas com adolescentes, sendo ilegal então, o trabalho de crianças nesses programas sociais.

Destarte, a razão precípua que fundamenta a existência de programas sociais previstos no Estatuto, resume-se na expressão “trabalho educativo”. É preciso atentar para o fato de que o trabalho só é educativo quando importa na conjunção de duas fases: educar para o trabalho e pelo trabalho, pois, a assertiva segundo a qual o trabalho dignifica o homem não pode ser tomada como uma premissa infalível aplicável a todo e qualquer trabalho, porque há os que aviltam quem a ele deve submeter-se para manter-se nos limites de uma sobrevivência física. Uma das mistificações mais correntes consiste em falar num trabalho para a grandeza da pátria, como se não existisse mediação de interesses entre o trabalhador e o país, mediação esta que faz com que, freqüentemente, os frutos sociais do trabalho só beneficiem alguns poucos.”[2]

Educar para o trabalho significa ensinar e preparar uma pessoa para o exercício desse direito, como cidadão e nunca como objeto. Compreende a ampliação de conhecimentos a fim de possibilitar a escolha de uma profissão, além de desenvolver a personalidade, o caráter, e proporcionar a melhor convivência social.

Educar pelo trabalho representa permitir que o adolescente adquira experiências sociais e profissionais, capacidade técnica, responsabilidade, que evolua intelectualmente e desenvolva suas aptidões.

Nesse sentido, somente o programa que abarque o trabalho educativo na forma acima exposta e com predomínio da finalidade pedagógica sobre a econômica, encontra-se ao abrigo do Estatuto da Criança e do Adolescente.

O que não se pode perceber é como lavar carros, carregar pacotes, montar grampos de roupas ou descarregar bagagens serão capazes de desenvolver habilidades de crianças e adolescentes e garantir-lhes um futuro capaz de fornecer-lhes uma vida digna.

Os programas sociais que visem realmente educar e preparar seus participantes para o mercado de trabalho devem criar oportunidades, mostrar caminhos e opções, a fim de que possam escolher uma profissão. Todavia, questiona-se que tipo de formação um programa de lavagem de carros pode fornecer a seus integrantes. Sem sombra de dúvida, as atividades mencionadas não podem proporcionar grande aprendizado, tendo em vista que não exigem grande técnica ou conhecimentos teóricos.

Atividades de leitura, datilografia, memorização, redação e muitas outras seriam verdadeiramente capazes de atingir o escopo de educar para e pelo trabalho, além de não capacitar apenas para uma, mas para diversas profissões. Programas que visem o bom desenvolvimento de crianças e adolescentes devem prezar pela educação, não havendo motivos para implantar trabalhos repetitivos e nada estimulantes.

Vale mais uma vez destacar que, mesmo os programas que consigam conciliar trabalho e educação nos fiéis termos do art. 68 da Lei nº 8.038/90, não devem permitir a participação de menores de 16 anos, primeiro porque estes, acorde norma constitucional (art. 7º, XXXIII), somente podem trabalhar sob a condição de aprendizes (desde que maiores de quatorze anos), e segundo, porque como crianças ainda não estão aptos física e psicologicamente para trabalhar.

O trabalho praticado por crianças e adolescentes em projetos sociais irregulares não lhes educa em nada, ao contrário, são trabalhos repetitivos e estagnantes, alguns em condições insalubres, nos quais, em geral, ganha-se por produtividade e o valor pago é ínfimo. Isto só favorece as empresas que deixam de contratar adultos para, “caridosamente”, participarem de convênios sociais em que exploram a mão-de-obra barata, sem possuir qualquer dever trabalhista com os explorados, porque estes não são considerados empregados, mas participantes “privilegiados” de um projeto social.

A comparação entre o labor desenvolvido sob o manto de “trabalho educativo” e o trabalho infantil que gera comoção social (carvoarias, etc.) não pode servir para que o mal considerado maior seja amparo ou justificativa para o mal considerado menor. Este falso trabalho educativo deve ser tão repudiado quanto o trabalho que mutila e deforma, porque ilegalidade é ilegalidade, devendo ser punida para que não se propague e para que sejam preservados os direitos e garantias fundamentais do cidadão, os fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, da Magna Carta), além dos objetivos da ordem social, quais sejam: o primado do trabalho, o bem-estar e a justiça sociais (art. 193, da Constituição da República).

Resta claro que qualquer tipo de trabalho, quando realizado por crianças menores de quatorze anos é, por si só, prejudicial ao seu desenvolvimento. Essas crianças estão assumindo muito cedo responsabilidades de adultos e estão sendo privadas do lazer.

Estudos já demonstram que crianças que começam a trabalhar desde cedo e sob condições de exploração são crianças tristes, dóceis, domesticadas e submissas. Falam pouco e trabalham muito. Não têm, na maioria das vezes, possibilidades de estudar, ou seja, têm mínimas condições de um dia mudarem de vida. Serão adultos sem instrução e que provavelmente farão com que seus filhos passem pelos mesmos sofrimentos que eles, pois geralmente não há outra escolha.

É certo que empregar crianças é mais lucrativo que empregar adultos. O trabalho infantil cresce porque os trabalhadores conseguiram direitos que os empresários não querem cumprir. Além de ser mais rentável, as crianças e adolescentes são obrigados a fazer o mesmo trabalho que um adulto faria, e estes meninos e meninas são consideradas mais fáceis de moldar, tendo menor poder de resistência às ordens emanadas de seus empregadores.

Assim, se crianças e adolescentes menores de dezesseis anos são colocados em projetos sociais, exercendo atividades idênticas a dos empregados das empresas conveniadas, bem distantes do verdadeiro trabalho educativo, onde muito trabalham e pouca coisa útil aprendem, com certeza não é por caridade das empresas, mas pelo lucro que obtém sem a sujeição às normas trabalhistas.

Entretanto, o lucro de poucos é o prejuízo de milhões. Não pensem os mais ingênuos que a exploração da criança e do adolescente só afeta a eles mesmos. Essa exploração mata pouco a pouco as pessoas que atinge, e ajuda a formar adultos apáticos, conformados e analfabetos em grande número. Vítimas dessa violência absurda são esses pequenos trabalhadores que para não morrerem de fome martirizam seus corpos, são a infância e a juventude, é o país que mergulha num buraco e numa pobreza que parecem não ter fim, é a própria democracia, pois esta não pode existir sem pessoas vivendo decentemente, sem pessoas com acesso à escola e à saúde, sem cidadãos que lutem por seus direitos e que os vejam efetivados.

Por fim, cumpre lembrar que a miséria de uma comunidade não pode ser utilizada em defesa dos projetos sociais irregulares e da exploração de crianças e adolescentes, porque sobre eles não pode pesar o encargo de manter suas famílias. Se a pobreza assola as famílias, deve-se empregar os pais, não os filhos.

 

Notas

 

[1] Procuradora do Trabalho lotada na Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região.

 

[2] OLIVEIRA, Oris de. O trabalho da criança e do adolescente. São Paulo: LTr, 1994, p. 176