O NOVO CÓDIGO CIVIL E A VIOLAÇÃO AO DIREITO DA CONVIVÊNCIA FAMILIAR
Francismar Lamenza
Promotor de Justiça, SP.
1. Introdução ao tema
A Constituição Federal de 1988 trouxe à criança e ao adolescente enorme benefício ao dispor taxativamente a respeito do direito que os jovens têm à convivência comunitária e familiar (artigo 227, caput), sendo dever de todos, no trinômio família/Estado/sociedade, assegurar esse direito.
Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, essa determinação veio a ser enfatizada, esquadrinhando-se as características do direito a ser exercido no que tange à inserção e/ou manutenção do jovem em sua família, seja ela natural ou alternativa (artigos 19 e seguintes).
Garantindo-se a estrutura familiar para o jovem, seu desenvolvimento também terá conseqüências positivas, já que a auto-estima da criança e do adolescente será reforçada e traumas decorrentes da ausência da figura do pai e/ou da mãe poderão ser evitados.
Perante a comunidade, o jovem terá um referencial a ser exibido, como um reforço para que haja de acordo com as normas comportamentais modelares para que seu desenvolvimento possa ocorrer em ritmo normal e contínuo, sem as falhas que desencadeiam os transtornos de personalidade resultantes da ausência da estrutura familiar na vida da criança e do adolescente.
Emocionalmente, também haverá benefícios em razão da garantia do direito a essa convivência, tendo-se em vista a necessidade de amparo ao jovem em seus anseios e expectativas eventualmente frustradas, o que é concretizado com a boa estrutura de um grupo familiar.
Todavia, com a promulgação da Lei n° 10.406/02 (novo Código Civil), esse direito à convivência familiar passou a ser seriamente ameaçado, abalando-se as estruturas fundamentais lançadas tanto pela Magna Carta vigente como pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, isso em função da redação defeituosa do novo Código Civil, ensejando dúvidas e até mesmo conflitos com o texto constitucional, tudo em detrimento dos direitos fundamentais da criança e do adolescente.
2. O novo Código Civil e as imperfeições quanto à convivência familiar
Em termos de legislação para a questão de ligação da criança e do adolescente com a família, aponta-se o novo Código Civil (Lei n° 10.406/02), cujo início de vigência ocorreu em janeiro de 2003.
Destacam-se neste trabalho alguns excertos legais que atentam de forma indiscutível contra o direito do jovem a uma convivência familiar saudável.
O artigo 1.611 prevê que "o filho havido fora do casamento, reconhecido por um dos cônjuges, não poderá residir no lar conjugal sem o consentimento do outro".
Contrariando o espírito do Estatuto da Criança e do Adolescente, voltado única e exclusivamente para a proteção integral dos jovens, o novo Código Civil, no referido artigo, busca relegar o interesse do menor a segundo plano, colocando como primazia uma suposta paz familiar, residente no ânimo do cônjuge (ou companheiro) que irá possivelmente residir com o filho do outro.
Pelas regras estipuladas pela Lei n° 8.069/90, o filho que estivesse, por exemplo, abrigado em uma instituição, uma vez sendo reconhecido pelo pai (ou pela mãe), teria reais chances de desinstitucionalização, sendo conduzido ao lar familiar para que sua convivência com o grupo de sangue pudesse ser garantida.
Já segundo o novo Código Civil, essa inserção familiar não será necessariamente concluída. Uma vez reconhecido o filho, poderá ele permanecer abrigado numa determinada obra até a maioridade civil, caso haja discordância do cônjuge da pessoa que reconhecer a filiação.
E não estamos falando de virtualidade dessa proibição se dissipar com o tempo. Trata-se de verdadeira imposição legal, na qual, uma vez não realizada a condição de anuência do cônjuge, o jovem fica impossibilitado de coabitar juntamente com seu pai (ou mãe).
Observe-se a nocividade desse texto legal, além de sua ambigüidade. Não se sabe se o consentimento será expresso ou não (o cônjuge poderá dar sinais implícitos de que se agrada com a permanência do jovem em seu lar). Inexiste previsão a respeito da perenidade do consentimento (ou seja, se ele é passível de retratação a qualquer tempo).
É importante garantir à criança e ao adolescente o direito de conviver sob o mesmo teto que seu pai biológico, ainda que não haja consentimento do outro cônjuge. Utilizando-se uma vez mais o exemplo do menor abrigado, torna-se inviável, realmente atentatório contra os direitos humanos, deixar determinada criança ou adolescente em instituição em subordinação aos caprichos de cônjuge do pai que reconhece a filiação.
Sendo primordial o atendimento dos jovens em suas demandas fundamentais, deve-se promover a inversão de valores neste caso, privilegiando-se o interesse do menor sobre o da outra parte, observadas situações excepcionalíssimas de convívio familiar (e.g., falta de condições materiais para a residência sob o mesmo teto, que deverá ser superada com a aplicação de recursos comunitários para afastar tal obstáculo).
Já o artigo 1.621 do novo Código Civil se refere ao condicionamento de prévio consentimento dos genitores ou dos representantes legais (diferentemente do artigo 45, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que faz menção a representante legal) do jovem para a sua colocação em lar substituto.
A convivência familiar está aqui de certa forma sujeita a riscos em virtude da redação dada ao §2° do referido artigo, o qual dá margem à possibilidade de retratação do consentimento até a publicação da sentença constitutiva da adoção.
Sabe-se que os procedimentos relativos à Justiça da Infância e da Juventude são mais céleres do que em outros feitos, sendo até mesmo marcados por uma maior informalidade.
Ocorre que há pedidos de adoção em que existe a necessidade de acompanhamento mais lento do procedimento de adaptação da criança ou do adolescente ao lar alternativo.
Seja por fatores extrínsecos (e.g., pai e/ou mãe que passa por dificuldades de emprego), seja por elementos de ordem interna (e.g., o nascimento de outro filho, separação recente do casal adotante), o processo sofre uma ruptura, sendo preciso acompanhar com mais vagar o caso concreto a fim de que seja apurado o real modus vivendi do jovem em seu novo ambiente familiar.
Por sua vez, o artigo 1.624 do novo Código Civil autoriza a adoção de órfão não reclamado por qualquer parente, por mais de um ano.
Mais uma vez esse texto legal desqualifica o interesse superior da criança e do adolescente, fazendo com que seja considerada principalmente a vontade parental. Se e quando algum parente quiser o jovem consigo, basta que o receba em prazo inferior a um ano para que o menor não seja inserido em lar alternativo.
A nova legislação criou agora mais uma figura da qual depende a vontade para a colocação do jovem em lar substituto. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 45, já condicionava a adoção à prévia manifestação dos pais ou do responsável legal pelo menor (vide supra).
Agora, em se tratando de jovem órfão, temos o estabelecimento de outros participantes: os parentes da criança ou do adolescente.
Com essa disposição do novo Código Civil, abre-se uma porta para o perigoso prolongamento da instituição da criança ou do adolescente em condições de inserção em família substituta.
Isto porque a legislação fala em qualquer parente. Estipulou-se convenção pela qual todos os parentes devem ser consultados a respeito da colocação do jovem em lar alternativo, a fim de que seja assegurada uma aparente convivência familiar.
Contudo, há riscos variados, já que um parente pode estar interessado no jovem em um momento e, no instante seguinte, mudar de idéia, devendo ser feita indagação a outro familiar se está desejando receber a criança ou o adolescente para tê-lo sob seus cuidados.
Isso sem contar situações extremas, em que o jovem está institucionalizado e é indicado um parente que resida em outra localidade, por vezes longínqua, fazendo com que o procedimento para desinternação daquela criança ou adolescente se arraste por muitos meses, sem qualquer solução concreta para o jovem.
Também há o aspecto da fixação de lapso temporal condicionador da colocação de criança ou adolescente em família substituta, a qual é por demais perigosa.
Além de ser a institucionalização prolongada uma medida extremamente danosa à regular formação do jovem, traz o inconveniente de ardis por parte dos parentes interessados de qualquer forma em ter o menor ao alcance, sem que seja posto em outra família.
Exemplifica-se: determinada criança ou adolescente internada pode passar 364 dias em abrigo. No 365° dia, parentes retiram o jovem da instituição. Presente virtual interesse, não se desliga o menor do grupo familiar de origem. Contudo, passados alguns dias, esse mesmo jovem é restituído ao abrigo, qualquer que seja o motivo alegado.
Poderá aí ser posta a necessidade de observância de novo lapso temporal para a verificação de eventual desinteresse em ter o jovem em convívio. E aí teremos mais um ano até que se constate essa falta de vontade por parte de qualquer parente.
O jovem órfão, no caso, ficará disponível no abrigo, ao bel-prazer dos parentes, sem que haja efetivo interesse e, o que é pior, com a perspectiva de, passado algum tempo, não ser desejado por qualquer outra família substituta. Ficará o menor institucionalizado sine die, sem que ninguém (parentes incluídos) manifeste interesse de recebê-lo como família alternativa.
Para garantir que os jovens tenham assegurado o direito a uma família, o magistrado, a pedido da parte interessada ou do representante do Ministério Público, poderá declarar incidenter tantum a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que atentarem contra o direito da criança e do adolescente à convivência familiar.
Nunca é demais lembrar que o novo Código Civil trata da adoção (ao contrário do Estatuto da Criança e do Adolescente) como matéria relativa aos vínculos de parentesco (Livro IV, Título I, Subtítulo II, da Lei n° 10.406/02), e não referente à colocação de jovem em família substituta, tendo por conseqüência um enfoque mais distante sobre o assunto, despreocupado com o cerne do tema, que é efetivamente onde será o jovem inserido num futuro para que tenha desenvolvimento pleno e alcance o bem-estar total junto ao novo grupo familiar.
Ressalta-se igualmente que a convivência familiar irrestrita é garantida pela Magna Carta vigente, indicando-se o grupo como base da sociedade (artigo 226, caput) e sendo dever de todos como conseqüência do princípio tuitivo assegurar à criança e ao adolescente a convivência familiar.
Como em todo texto legal imperfeito (como o novo Código Civil), tratamos aqui de questões que serão resolvidas ou com revisão pelo Poder Legislativo (virtualmente impossível a curto ou médio prazo), ou (como ocorre com previsível freqüência) com análise pelo Poder Judiciário, tudo a fazer com que os direitos fundamentais da criança e do adolescente não pereçam.
3. Conclusões
Há várias facetas expostas a respeito do direito da criança e do adolescente a uma convivência familiar digna e respeitável. Existem outros pontos que podem vir à tona para discussão em termos de aplicação certa dos preceitos contidos na Lei n° 8.069/90 e na própria Magna Carta vigente, sendo reservados para abordagem e discussão futura.
A convivência do jovem com sua família é algo que os operadores do Direito da Infância e da Juventude devem ter como meta optata, justamente porque, além de a família ser a base social (artigo 226, caput, da Constituição Federal), havendo uma perfeita harmonia no ambiente criado, o jovem crescerá pronto para se tornar um cidadão consciente de seus direitos e deveres, integrando-se plenamente ao meio social reinante.
Alijando-se a criança e o adolescente de um círculo familiar falho (seja por existência de desavenças variadas, seja por presença de indivíduos consumidores de entorpecentes ou afins), deve-se procurar garantir o pleno direito ao convívio com uma família que dê ao jovem condições de harmonia, respeito e dignidade.
Essa garantia deve ser buscada pelos operadores do Direito da Infância e da Juventude de forma a tentar sanar as turbulências dentro da família de origem. Caso contrário, lar substituto deve ser procurado, de modo que a criança e o adolescente possam se desenvolver em um ambiente sadio, com afeto e apoio mútuos, construindo-se o arcabouço para a estruturação perfeita da humanização e da cidadania.