COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA SUBSTITUTA: ASPECTOS CONTROVERTIDOS
Ana Maria Moreira Marchesan
Promotora de Justiça, RS.
1. Competência
Ao intentarmos propor qualquer medida judicial, a primeira questão que nos assola é a da competência ou, em seu conceito sintético, medida da jurisdição.
O extinto Código de Menores facilitava a decisão quanto à competência, porque seu art. 2º, de forma exauriente, descrevia as hipóteses de situação irregular. Em não ocorrendo qualquer das situações ali elencadas, a competência para colocação em lar substituto tocaria ao juiz da Vara de Família (RJTJSP 64/247).
O Estatuto da Criança e do Adolescente confere ao Juízo da Infância e da Juventude a competência para apreciar todos os pedidos de adoção de pessoas com idade inferior a 18 anos e, por exceção, também de maiores, desde que já estivessem sob guarda ou tutela dos requerentes à época do pedido (art. 40 do ECA). Não se perquire, como ocorria sob a égide da Lei 6.697/79, da situação do adotando, como fator influenciador na determinação da competência.
Para os pedidos de guarda e tutela, a competência do juizado especializado restringe-se às hipóteses do art. 98 da Lei 8.069/90. Estando o menor sob a proteção de um dos pais, v.g., o pedido de guarda formulado por avós, por tios ou qualquer outro interessado, há de ser processado no juízo da Vara de Família, ainda que o juízo da Infância e Juventude disponha de melhor assessoramento técnico.
A competência recursal também mereceu alteração. Atualmente, no Estado do Rio Grande do Sul, os recursos interpostos contra decisões emanadas do Juizado da Infância e Juventude serão apreciados por uma das Câmaras Cíveis Separadas de nosso Tribunal de Justiça, por força do Assento Regimental 5/90, aliviando as inúmeras atribuições do Conselho Superior da Magistratura.
2. Guarda
Três espécies de guarda são previstas pelo Estatuto: a provisória, a permanente e a peculiar.
A guarda provisória (art. 33, § 1º, do ECA) subdivide-se em duas subespécies: liminar e incidental, nos processos de tutela e adoção, salvo nos de adoção por estrangeiros, onde é juridicamente impossível.
A permanente (art. 33, § 2º, 1º hipótese) destina-se a atender situações peculiares, onde não se logrou uma adoção ou tutela, que são mais benéficas ao menor. É medida de cunho perene, estimulada pelo art. 34 do ECA. As normas estatutárias permitem inferir que o legislador instituiu, em termos de colocação familiar, a seguinte ordem de preferência: manutenção do vínculo familiar, adoção, tutela, guarda e, somente em último caso, a institucionalização.
Em função do art. 33, § 1º, do Estatuto, há quem sustente não mais existir, em nosso ordenamento, a guarda permanente. Tal posicionamento com a devida vênia, é incorreto, máxime quando se tem em mente o previsto no art. 227, § 3º, VI, da CF, norma inspiradora, diga-se de passagem, do referido art. 34 do ECA.
A nominada guarda peculiar (art. 33, § 2°, 2° hipótese) traduz uma novidade introduzida pelo Estatuto. Visa ao suprimento de uma falta eventual dos pais, permitindo-se que o guardião represente o guardado em determinada situação (ex. menor de 16 anos, cujos pais estejam em outra localidade, impedidos de se deslocarem, e que necessita ser por eles representado para retirada de FGTS).
Propaga-se seu ineditismo, por outorgar ao guardião direito de representação, antes privativo do tutor ou curador especial.
Segundo o art. 33, § 3º, do ECA, a guarda assegura à criança e adolescente a condição de dependente para fins previdenciários. Não condiciona esse benefício a qualquer tipo de termo ou restringe a determinada espécie de guarda.
O Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul (IPE) vem exigindo que as guardas sejam reexaminadas a cada seis meses para que a carteira social obtenha revalidação. Essa imposição, a nosso juízo, é ilegal, porquanto a decisão judicial de conceder uma guarda de cunho permanente não pode ser questionada pela autarquia, quanto mais fora do Judiciário.
O que se deve evitar é a constituição de guardas somente com vistas à percepção do benefício previdenciário, pois o encargo é muito mais amplo, conferindo a seu detentor a responsabilidade de prestar assistência moral, material e educacional à criança ou adolescente.
É comum os avós postularem a guarda de neto, quando a mãe (ou o pai) com eles reside, trabalha, mas só tem a assistência médica do INSS e quer beneficiar seu filho com o IPE ou outro convênio. Entendemos, respeitando posições em contrário, que tais pedidos devem ser indeferidos, porque a situação fática, nesses casos, estará em discrepância com a jurídica. Em suma, é uma simulação, com a qual o Ministério Público, como custos legis, e o Juiz competente não, podem ser coniventes, sob pena de se fomentar o assistencialismo às custas de entidades não destinadas a esse fim.
3. Tutela
O cabimento da tutela restringe-se às seguintes hipóteses: pais falecidos, desconhecidos ou previamente destituídos do pátrio poder ou com ele suspenso.
Não raras vezes, os interessados postulam a tutela ao invés da guarda, por ser mais fácil a obtenção dos direitos previdenciários, como dependente, naquela situação.
Entretanto, havendo genitor vivo, ainda que em local incerto e não sabido, não estando desprovido do pátrio poder, tem pertinência a guarda, não a tutela. Em sendo desconhecido o paradeiro dos genitores, é mister que sobrevenha uma sentença declaratória de ausência ou até mesmo de destituição do pátrio poder, tendo por base o abandono.
Importante frisar que, se a situação fática autorizar a propositura da ação de destituição do pátrio poder, deve o Ministério Público fazê-lo, porque para o menor é sempre mais interessante a tutela que a guarda, já que aquela medida envolve plenos poderes de representação.
O art. 409 do CC estabelece uma ordem entre os parentes a quem incumbe assumir a tutela, na falta de tutor testamentário. A priori, deve-se respeitar essa ordem, com arrimo no art. 36 do ECA. Todavia, como apregoa a jurisprudência, forma pacífica, tal ordem não é inflexível, devendo prevalecer o interesse do menor (RT 566/56 e 614/56).
A hipoteca legal é dispensada pelo Estatuto nas seguintes situações: a) tutelado sem bens ou rendas; b) com bens constantes de instrumentos públicos registrados no Registro Imobiliário; c) rendimentos suficientes apenas para mantença do tutelado; d) outro motivo relevante.
Essa previsão legal (art. 37 do ECA) vem ao encontro da necessidade de desburocratizar os processos de tutela, nos quais, na maior parte das vezes, o futuro tutor já está assumindo um encargo bastante pesado ao se responsabilizar pelo menor.
4. Adoção
Acompanhando a evolução legislativa, com raízes nas mudanças de nossos costumes, o Estatuto prevê, expressamente, a adoção por concubinos.
Para tanto, exige que provem a estabilidade de sua união (art. 42, § 2º).
Na prática, essa prova pode ser feita por meio de declarações com firmas reconhecidas; certidões de casamento religioso; credenciamento recíproco em entidade previdenciária, dentre outras formas.
Questiona-se se dois ex-concubinos, que tenham vivido juntos por longo tempo, no qual criaram uma criança como filho, sem qualquer título legal (mera entrega de fato da criança pela mãe), após a dissolução da sociedade de fato, podem, em conjunto, adotar essa criança.
A despeito da necessária prova da estabilidade da sociedade de fato, entendemos possível essa adoção, desde que se prove a estabilidade pretérita e que os adotantes acordem quanto à guarda e regime de visitas. A essa conclusão chegamos por força da equiparação constitucional da união estável à família legalmente constituída, em combinação com o art. 42, § 4º, do Estatuto.
O consentimento dos pais do adotando é indispensável para a medida em foco (art. 45 do ECA).
No caso de não-localização dos pais, em primeiro lugar, deve-se destacar a impossibilidade de a adoção ser requerida em Cartório, por petição assinada somente pelos interessados, sem a participação de advogado. Tal praxe errônea é comum no meio forense, gerando situações processualmente teratológicas.
A contrário senso, para que o pedido seja deduzido sem advogado, deve ocorrer, no tocante ao consentimento dos pais do adotando, uma das seguintes hipóteses: a) concordância dos pais em juízo; b) prévia destituição ou suspensão do pátrio poder; c) pais desconhecidos; d) pais falecidos.
Em havendo necessidade de destituição do pátrio poder, a ação será proposta pelo Ministério Público ou pelo interessado, via advogado.
A menos que o pedido de adoção esteja sendo formulado em conjunto com uma ação de destituição do pátrio poder - na qual haverá uma imputação dentre as previstas no art. 395 do CC ou no art. 24 do ECA reputa-se incabível a citação-edital dos genitores localizados no processo de adoção.
Freqüentemente deparamo-nos com pedidos de adoção formulados em Cartório, sem assinatura de advogado, nos quais, em função de se desconhecer o paradeiro dos genitores (ou de um deles) se faz a citação ficta, com decreto de revelia e nomeação de curador especial.
A citação via edital só pode ocorrer em processo contraditório de suspensão e/ou destituição do pátrio poder, ajuizada cumulada ou isoladamente com o pedido de adoção.
Deve ser assegurado o due process of law para que alguém seja destituído do pátrio poder. Inclusive, as hipóteses de destituição são exaustivas ou numerus clausus (nesse sentido, Nívio Geraldo Gonçalves aduz que as hipóteses são exaurientes, in Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 143, Forense).
Assim, a destituição do pátrio poder só pode ocorrer nos seguintes casos: a) castigos imoderados; b) abandono; c) atos contrários à moral e bons costumes; d) descumprimento injustificado dos deveres e obrigações previstos no art. 22 do ECA (sustento, guarda, educação, cumprir e fazer cumprir determinações judiciais).
Sendo os genitores do adotando menores absoluta ou relativamente incapazes, com seus pais (avós do adotando) em local ignorado, sugere-se, aí sim, a citação por edital desses representantes legais, pois o consentimento nuclear já foi dado pelo genitor, restando a aquiescência de seus pais para perfectibilizarem o ato. Nesse diapasão, aliás, sugere Paulo Afonso Garrido de Paula.
Pode-se dizer, ainda, que o ato de dar um filho em adoção é de cunho personalíssimo, daí dessumindo-se a dispensabilidade da ouvida dos avós.
Considerando-se a irrevogabilidade característica à adoção, o vínculo entre pais biológicos e o adotado pode ser restabelecido por meio de outra adoção.
A seu turno, a revogação do vínculo pode se dar por meio de sentença destituitória do pátrio poder. As sentenças de deserdação e indignidade excluem o filho adotivo da sucessão, mas seus efeitos limitam-se ao aspecto patrimonial, não rompendo o vínculo filial.
5. Ação de destituição do pátrio poder
A leitura fria do art. 161 do ECA dá a entender que, não havendo contestação, a ação pode ser julgada independentemente de produção probatória.
Essa exegese simplista e literal não é acolhida a nível doutrinário, de vez que se trata, indubitavelmente, de ação envolvendo direito indisponível (pátrio poder), restando neutralizados os efeitos da revelia, a teor do art. 320, II, do CPC. Não em outro sentido lecionam Wilson Donizeti Liberati (O Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 110, IBPS) e Nívio Geraldo Gonçalves (ab. cit., p. 150).
6. Ação de remoção de tutor
No processo de remoção de tutor, apregoamos ter aplicação o art. 161 do Estatuto, ex vi do art. 164 do mesmo diploma legal. Nesse caso, não está em jogo o direito indisponível, permitindo-se o julgamento antecipado, ao contrário do que ocorre na ação de destituição do pátrio poder.
Comunga dessa opinião Samuel Alves de Melo júnior, in Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 157, Forense.
Esse mesmo autor (ob. cit., p. 157), acompanhado de Wilson Donizeti Liberati (ob. cit., p. 114), professa que o prazo contestacional na ação de remoção de tutor prevista no Estatuto é de 10 dias, conjugando os arts. 158 e 164.
Paulo Lúcio Nogueira tem posição diversa, apontando o prazo de cinco dias, insculpido no art. 1.195 do CPC, como o cabível (Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 233, Saraiva).
Respeitando o ilustrado menorista, sugerimos como aplicável à espécie o decêndio a que alude o art. 158 do ECA, porque essa norma procedimental é perfeitamente ajustável ao processo de remoção de tutor, incidindo, portanto, o precitado art. 164. Não bastasse isso, impende salientar que o Estatuto é lei especial e de igual hierarquia ao CPC.