A APRENDIZAGEM E OS CURSOS TÉCNICOS

 

 

                                                                                                       Silvana Ribeiro Martins

Procuradora do Trabalho, RS.

 

 Claudio Carvalho Menezes

Auditor-Fiscal do Trabalho, RS.

 

 João Antônio Neves Allemand

Diretor de Relações Empresariais e Comunitárias,

Centro Federal de Educação Tecnológica de Pelotas, RS.

 

 

O presente texto tem como objetivo central argumentar, sob a ótica da legislação educacional e da legislação da aprendizagem (Lei 10.097/2000), a viabilidade da contratação dos alunos dos cursos de nível técnico na condição de aprendizes, de acordo com o estabelecido no art.430 da CLT.

 

Inicia-se com o § 2° do art. 430 da CLT e com o § 2° do art. 4° do Decreto Presidencial n.º 2.208, de 17 de abril de 1997 que possuem a seguinte redação:

 

“Aos aprendizes que concluírem os cursos de aprendizagem, com aproveitamento, será concedido certificado de qualificação profissional. (§ 2° do art. 430 da CLT)”

Aos que concluírem os cursos de educação profissional de nível básico será conferido certificado de qualificação profissional.(§ 2° do art. 4° do Decreto Presidencial n.° 2.208/97)”

 

Fica explícito pelos dois diplomas legais que a aprendizagem é um curso de nível básico, ou seja, possui todos os pressupostos dessa espécie de curso, que estão discriminados no art. 4° do citado Decreto:

 

 “A educação profissional de nível básico é modalidade de educação não-formal e duração variável, destinada a proporcionar ao cidadão trabalhador conhecimentos que lhe permitam reprofissionalizar-se, qualificar-se e atualizar-se para o exercício de funções demandadas pelo mundo do trabalho, compatíveis com a complexidade tecnológica do trabalho, o seu grau de conhecimento técnico e o nível de escolaridade do aluno, não estando sujeita à regulamentação curricular(art 4° do Decreto Presidencial n.ª 2208/97).

 

Quando o Decreto diz que o curso de nível básico deve ser compatível com o nível de escolaridade do aluno, não está estabelecendo a escolaridade mínima como parâmetro único. Existe uma variável, ou seja, cada plano de curso deve prever os pré-requisitos e a escolaridade necessários para o desenvolvimento das competências previstas. Com isso, podem existir cursos de aprendizagem para jovens com apenas parte do ensino fundamental e para jovens com maior nível de escolaridade. Portanto, a lei, nesse aspecto, não restringe o direito à aprendizagem com base na condicional de escolaridade mínima. E nem poderia. Isso porque, se assim o determinasse, estaria excluindo e discriminando uma significativa parcela de jovens contemplados pela lei.

 

O artigo 3° do Decreto Presidencial n.° 2208/97 identifica os tipos de cursos que são hoje considerados como de nível básico, técnico e tecnológico:

 

“A educação profissional compreende os seguintes níveis:

I - básico: destinado à qualificação, requalificação e reprofissionalização de trabalhadores, independentes de escolaridade prévia;

II - técnico:  destinado a proporcionar habilitação profissional a alunos matriculados ou egressos do ensino médio, devendo ser ministrado na forma estabelecida por este Decreto;

III - tecnológico: corresponde a cursos de nível superior na área tecnológica, destinados a egressos do ensino médio e técnico.(art. 3° do Decreto Presidencial n.° 2208/97)”

 

Ao se analisar os artigos acima, verifica-se que existe uma ‘hierarquia’ educacional, qual seja, os cursos de nível básico são mais simples, os de nível técnico um pouco mais complexos e os tecnológicos contemplam o último nível de educação profissional.

 

Entretanto, os cursos de nível básico, por não possuírem rigidez curricular,   tornam-se extremamente versáteis, o que possibilita que eles contemplem diversos conteúdos e possam ser até mais abrangentes que os cursos de nível técnico. Essa característica é extremamente importante, pois facilita sua organização e em nada impede que ele atinja um grau de excelência na qualificação dos seus alunos.

 

Outro ponto importante a ser destacado é a não exigência de escolaridade mínima para os cursos de nível básico. Assim, qualquer aluno que tiver os conhecimentos mínimos necessários poderá freqüentá-lo. Por outro lado, ao se exigir do aluno do curso de nível técnico que ele esteja cursando ou tenha terminado o ensino médio, não se está impedindo que esses cursos possam ser considerados como de aprendizagem, pois esta, por ser de nível básico, não exige escolaridade mínima. Logo, o aluno do curso de nível técnico que estiver dentro da faixa etária legal pode ser aprendiz. Portanto, pode-se afirmar que a exigência de escolaridade para o curso de nível técnico não impossibilita que o mesmo venha a ser considerado como curso de aprendizagem, desde que possua os demais requisitos em termos de qualificação profissional.

 

Analisando a legislação sobre a aprendizagem, verifica-se que a mesma trouxe uma inovação para o curso de nível básico ao dispor que:

 

“ Contrato de aprendizagem é o contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado, em que o empregador se compromete a assegurar ao maior de quatorze e menor de dezoito anos, inscrito em programa de aprendizagem, formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz, a executar, com zelo e diligência, as tarefas necessárias a essa formação.”(Art. 428 da CLT, grifo nosso)

 

Ou seja, se a formação do aprendiz é técnico-profissional, ela engloba conteúdos dos mais simples aos mais complexos, incluindo, então, o de nível básico até o técnico. E, dependendo das bases tecnológicas do curso, identifica-se a escolaridade mínima para ingresso. Só assim se estará atendendo ao espírito da lei, na medida em que se está formando o jovem para ingresso no mundo do trabalho.

 

Há um outro ponto importante que precisa ser colocado e que consta no artigo 8° do Decreto Presidencial n.° 2.208 de 17 de abril de 1997:

 

“ Os currículos do ensino técnico serão estruturados em disciplinas, que poderão agrupadas sob a forma de módulos.

            §1º No caso de o currículo estar organizado em módulos, estes poderão ter caráter de terminalidade para efeito de qualificação profissional, dando direito, neste caso, a certificado de qualificação profissional.

(...)

            §4º O estabelecimento de ensino que conferiu o último certificado de qualificação profissional expedirá o diploma de técnico de nível médio, na habilitação profissional correspondente aos módulos cursados, desde que o interessado apresente o certificado de conclusão do ensino médio. (art. 8o do Decreto Presidencial n.o2.208 de 17 de abril de 1997)

 

Assim, o aluno do curso de nível técnico recebe o mesmo Certificado de Qualificação Profissional que é característico dos cursos de aprendizagem, sempre que concluir um módulo que tenha caráter de terminalidade. De outro lado, para adquirir o Diploma de Habilitação Profissional, é indispensável, como pré-requisito, a conclusão do ensino médio. Na hipótese de o aluno do curso técnico não concluir o ensino médio, fará jus a Certificado de Qualificação Profissional a cada módulo com terminalidade  que tiver concluído, equiparando-se ao curso de aprendizagem pois, estará igualmente apto a ingresso no mercado de trabalho.

 

Desta forma, fica demonstrado que o curso de aprendizagem e o curso de nível técnico possuem qualificações profissionais equivalentes e só há divergência entre ambos no que diz respeito ao tipo de certificado oferecido e exigências legais inerentes ao curso técnico, isso, na hipótese de o aluno concluir o ensino médio; caso contrário, há completa analogia entre ambos, visto que, ao fim de cada módulo com terminalidade é expedido certificado idêntico aos dos cursos de aprendizagem.

 

Veja-se que nenhuma dessas peculiaridades acima referidas afasta a possibilidade de o aluno de nível técnico ser contratado na condição de aprendiz, obedecidas as exigências da lei trabalhista. Se olharmos o curso de aprendizagem de forma abrangente, ele pode ser considerado gênero  e o curso técnico espécie, visto este poder ser um subconjunto dos tipos de cursos que podem ser considerados de aprendizagem.

Além disso, o art. 430 da CLT coloca o seguinte:

 

Na hipótese de os Serviços Nacionais de Aprendizagem não oferecerem cursos ou vagas suficientes para atender à demanda dos estabelecimentos, esta poderá ser suprida por outras entidades qualificadas em formação técnico-profissional metódica, a saber:"

"I – Escolas Técnicas de Educação;"

"II – entidades sem fins lucrativos, que tenham por objetivo a assistência ao adolescente e à educação profissional, registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente."

   

Quer dizer que, na insuficiência de vagas nos cursos dos Serviços Nacionais de Aprendizagem, a Lei faculta às Escolas Técnicas e às Entidades sem fins lucrativos suprir as demandas. Ao assim dispor, o artigo supracitado inseriu, de maneira inequívoca, as Escolas Técnicas no sistema legal de aprendizagem.

 

Argumenta-se, outrossim, que as Escolas Técnicas, para se habilitarem a oferecer cursos de aprendizagem, devem criá-los nos moldes previstos pelo § 1° do art. 4° do Decreto Presidencial n.° 2.208 de 17 de abril de 1997, conforme transcrito a seguir:

 

“As instituições federais e as instituições públicas e privadas sem fins lucrativos, apoiadas financeiramente pelo Poder Público, que ministram educação profissional deverão, obrigatoriamente, oferecer cursos profissionais de nível básico em sua programação, abertos a alunos das redes públicas e privadas de educação básica, assim como a trabalhadores com qualquer nível de escolaridade.( § 1° do art. 4° do Decreto Presidencial n.° 2.208 de 17 de abril de 1997.)

 

Ora, essa interpretação não exclui a hipótese da contratação dos alunos dos cursos técnicos como aprendizes, isso porque as competências adquiridas num curso podem ser aproveitadas no outro, ou seja, os cursos são independentes, mas interrelacionados.

 

Aliás, a reforça. As particularidades que distinguem os dois tipos de curso – nível técnico e aprendizagem –  são as seguintes: a escolaridade, a carga horária, o atendimento a um rol mínimo de competências de cada área profissional e o tipo de certificado de conclusão. Entretanto, essas particularidades não impossibilitam a equiparação de um curso de nível técnico com de aprendizagem para efeito de contratação do aluno como aprendiz.

 

A opção da aprendizagem ser curso de nível básico se deve muito mais à possibilidade de universalização da educação técnico-profissional do que ser um fator restritivo aos jovens que estão matriculados no curso técnico. Desta forma, o curso técnico ampliaria o espectro de atuação da lei de aprendizagem, beneficiando um maior número de jovens na faixa etária de 14 a 18 anos.

 

Em que pese as considerações já elencadas, em face dos dispositivos legais pertinentes, há argumentos que ainda devem ser considerados.

 

Fala-se que o jovem que está fazendo um curso de nível técnico é um aluno privilegiado. Ele já está tendo uma oportunidade e, por isso, não se deveria desperdiçar uma vaga de um curso de aprendizagem com ele.

 

Na verdade, muitos dos jovens que freqüentam cursos técnicos também passam por dificuldades econômicas. Segundo os dados apresentados pelo CEFET – Centro Federal de Educação Tecnológica de Pelotas (RS), cerca de 70% dos jovens que lá ingressam possuem renda familiar variando de 1 a 5 salários mínimos. Essa portanto, seria uma grande oportunidade para os jovens das escolas técnicas habilitarem-se mais rapidamente ao mercado de trabalho. Muitos desses cursos inclusive, já estão sendo oferecidos à noite para possibilitar que os jovens possam trabalhar no outro turno ; além disso, cita-se que o CEFET oferece alimentação gratuita a muitos desses jovens como forma de mantê-los no curso.

Isto posto, questiona-se ao final: onde está escrito na lei a proibição dos alunos dos cursos técnicos serem contratados como aprendizes? Em verdade,  a lei que legislou a matéria relativa à aprendizagem  não proíbe, mas sim, amplia ao incluir outras instituições – Escolas Técnicas e Entidades sem fins lucrativos - entre aquelas que podem ministrar a aprendizagem. O artigo 430 da CLT deixa claro que essas instituições podem manter cursos de aprendizagem caso a demanda não seja suprida pelos Serviços Nacionais de Aprendizagem.

 

No tocante à exigência de nível de escolaridade, a mesma só pode servir de argumento para que a pessoa não faça um curso se estiver previsto em lei, como, por exemplo, entrar na faculdade sem ter concluído o ensino médio. Portanto, esse argumento não inviabiliza a contratação dos alunos dos cursos técnicos na condição de aprendiz, pois a lei não faz essa ressalva.

 

Em suma, conclui-se, com base exclusivamente na lei, que o aluno do curso técnico pode ser aprendiz se estiver dentro da idade legal.

 

Além disso, nada impede que uma pessoa com formação de nível superior faça um curso de nível básico ou técnico, pois ela tem os conhecimentos mínimos necessários. Ou seja, a escolaridade não define a qualidade ou profundidade de um curso, mas tão somente o mínimo de aptidões cognitivas necessárias para a aquisição de determinadas competências.

Uma outra particularidade importante é que os cursos de nível básico possuem maior grau de liberdade de organização curricular, podendo se adaptar facilmente às demandas do setor produtivo. Sendo assim, seria possível criar cursos de nível básico tão competentes quanto os de nível técnico, pois esses possuem uma regulamentação curricular pré-determinada.

Como então se pode negar a um jovem de um curso técnico a possibilidade de ser aprendiz se a formação profissional a que ele está sujeito tem a mesma qualidade da ministrada nos cursos de aprendizagem? Efetivamente, não se pode separar esses dois modelos de educação profissional sem beneficiar um e prejudicar outro, no que diz respeito à contratação do jovem como aprendiz.

 

Frisa-se que não se quer desprivilegiar cursos mais simples que existem e que também são compatíveis com a formação de nível básico. Sempre se terá demanda para ambos, e não se pode excluir por excluir, como se a classificação dos níveis de  educação profissional fosse excludente. Pelo contrário, a riqueza que ela oferece de opções é que possibilita olhar os cursos técnicos como um instrumento a mais para beneficiar os jovens desse país.

 

Referências :

 

1.      Constituição Federal, art. 7º, inciso XXXIII, e art. 227, § 3º, inciso II;

2.      Consolidação das Leis do Trabalho,  Capítulo IV do Título III da CLT.. alterado pela Lei 10.097/2000.

3.      Decreto-lei 4048 de 22 de janeiro de 1942 - Cria o Serviço Nacional de Aprendizagem dos Industriários SENAI

4.      Decreto-lei n.º 8.621, de 10/01/46 – Dispõe sobre a criação do SENAC.

5.      Decreto lei n.º 8.622, de 10/01/46 – Dispõe sobre o aprendizado dos comerciários.

6.      Lei n.º 8.069, de 13/07/90, arts. 60/65 – Dispõe sobre o estatuto da criança e do adolescente.

7.      Lei nº 8.706, de 14 de setembro de 1993 – Dispõe sobre a criação do Serviço Social do Transporte (Sest) e do Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SENAT).

8.      Lei 8315 de 23 de dezembro de 1991 – Cria o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) nos termos do art. 62 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

9.       Medida Provisória no 2.168-40, de 24 de agosto de 2001 - autoriza a criação do Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo - SESCOOP Decreto n° 1.007, de 13 de dezembro de 1993 – Dispõe sobre as contribuições compulsórias devidas ao Serviço Social do Transporte (Sest) e ao Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat) e dá outras providências.

10.  Decreto Presidencial n.º 2.208, de 17 de abril de 1997 - regulamenta o § 2º do art.36 e os arts. 39 a 42 da Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

11.  Portaria do Ministério da Educação e Desporto n.º 646, de 14 de maio de 1997 – regulamenta a implantação do disposto nos artigos 39 a 42 da Lei n.º 9394/1996 e dá outras providências

12.  Portaria da Secretaria de Inspeção do Trabalho n.° 20, de 13 de setembro de 2001 – dispõe sobre as atividades proibidas a menores de 18 anos.

13.  Portaria do Ministério do Trabalho e Emprego nº 702, de 18 de dezembro de 2001 – dispõe sobre normas para avaliação da competência das entidades sem fins lucrativos que tenham por objetivo a assistência ao adolescente e a educação profissional.