A IDADE PENAL MÍNIMA COMO CLÁUSULA PÉTREA E A PROTEÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO CONTRA O RETROCESSO SOCIAL

 

 
Eugênio Couto Terra

 

 

O vagabundo

O dia inteiro pelas ruas anda

Enxovalhando, roto indiferente:

Mãos ao bolso olhar impertinente,

Um machucado chapeuzinho a banda.

Cigarro à boca, modos de quem manda,

Um dandy de miséria alegremente,

A procurar ocasião somente

Em que tendências bélicas expanda

E tem doze anos só! Uma corola

De flor mal desabrochada! Ao desditoso

Quem faz a grande, e peregrina esmola

De arranca-lo a esse trilho perigoso,

De tira-lo p’ra os bancos de uma escola?!

Do vagabundo faz-se o criminoso!...

AMÉLIA RODRIGUES[1]

 

Agradecimentos

A elaboração do trabalho seria impossível sem o apoio de Instituições e pessoas a quem quero externar meus agradecimentos.

À Escola Superior da Magistratura, pela iniciativa do convênio com a UNISINOS, que oportunizou a realização do curso e ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, pelo incentivo ofertado.

Aos professores, pela visão crítica e modo participativo que imprimiram na transmissão de seus conhecimentos.

Ao orientador, Prof. Dr. Lenio Luiz Streck, pelo incentivo, compreensão e irrestrito apoio, sem os quais nada seria possível.

Aos colegas de curso, pelo apoio e convívio estimulante.

A minha mulher, em especial, pela incondicionalidade de sua compreensão e carinho.

Aos meus filhos, Gustavo, Juliana, Carolina e Eduardo, pelas inúmeras horas subtraídas do nosso convívio.

A todos os amigos que, de alguma forma, colaboraram para que o desafio pudesse ser vencido.

 

 

Resumo

O presente trabalho procura demonstrar que a idade mínima de imputabilidade penal – 18 anos – estabelecida no artigo 228 da Constituição Federal é regra que não pode ser modificada, pois matéria integrante do núcleo essencial do texto constitucional. O Estado Democrático de Direito tem a sua estrutura fundada em princípios que o orientam para a promoção da dignidade humana, não sendo admissível a existência de alterações constitucionais que impliquem retrocesso social. A evolução do processo histórico, que resultou na Constituição de 1988, aponta para a sua legitimidade como obra de poder constituinte originário, não sendo possível ao poder reformador, por lhe faltar competência para tanto, alterar decisão de caráter político, livre e soberanamente adotada. A mudança de paradigma jurídico para o trato da questão da infância e da juventude só poderá ser percebida no senso comum teórico e realizada materialmente pela via hermenêutica. A modificação paradigmática choca-se com um modelo que se perpetua de muito tempo, sendo necessária a sua desconstrução e posterior reconstrução pela hermenêutica, para ocorrer a revelação da função transformadora da atual Carta Política, desvelamento esse que se dará por intermédio da efetivação da interpretação conforme a normatividade democrática que preside o Estado Democrático de Direito. Descortina-se que a regra da idade penal mínima é disposição de caráter híbrido, pois, sendo garantia asseguradora de direito individual, apresenta-se como condição de possibilidade do pleno desenvolvimento social da infância e juventude.

 

Abstract

The present work tried to demonstrate that the minimum age of penal imputability, eighteen years old, established in the article 228 of the Federal Constitution, is a rule that cannot be modified. The Democratic State of Right has its structure grounded in standards which lead it to the human dignity promotion, in a way that the existence of constitutional changes which imply social backward motion is not allowed. The historical process evolution, which had the Constitution of 1988 as a result, leads to its legitimacy as an original power. It is not possible, therefore, for the reformist power to alter any political decision free and autonomously adopted since it does not have the required competency in accomplishing that. The juridical paradigm reform towards the childhood and youth’s issue will only be realized in the theoretical common sense, and materially carried out through hermeneutics. The paradigmatic change contrasts to a model that perpetuates, since a long time ago, being necessary its disarrangement and later rearrangement through hermeneutics in order to occur the transforming function revelation of the present ‘Political Letter’. This disclosure will happen through the fulfillment of its interpretation according to the democratic standard which presides over the Democratic State of Right. It becomes evident that the rule regarding the minimum penal age is a disposition of hybrid aspect and, as it is the guarantee which assures the individual right, it is also presented as being a condition of possibility of the childhood and youth’s integral social development.

 

 

Sumário

RESUMO

ABSTRACT

INTRODUÇÃO

1 UMA UNIÃO INDISSOLÚVEL - PRINCÍPIOS E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

1.1 Os princípios  como  conformadores do Estado Democrático de Direito

1.1.1 Breves notas sobre princípios e regras

1.1.2 As funções dos princípios na Constituição

1.2 O surgimento do Estado Democrático de Direito

1.2.1 A opção terminológica por direitos fundamentais e sua conceituação no sistema constitucional brasileiro

1.2.2 A evolução do Estado Democrático de Direito e a emergência histórica dos direitos fundamentais

2 O FENÔMENO CONSTITUINTE E AS LIMITAÇÕES MATERIAIS DE REFORMA DA CONSTITUIÇÃO

2.1 Poder constituinte originário e poder reformador: distinções - a constituinte de 1987/1988 como poder originário

2.1.1 Poder constituinte originário

2.1.2 Poder reformador

2.1.3 A  constituinte de 1987/1988 como poder constituinte originário legítimo

2.2 A delimitação do âmbito de reforma constitucional, através de emenda, possível ao poder reformador

2.2.1 Reforma, revisão, emenda, diferenciações

2.2.2 A limitação material de reforma da Constituição

2.2.2.1 Limites materiais explícitos

2.2.2.2 Limites materiais implícitos

2.2.2.3 Alcance da proteção oriunda dos limites materiais à reforma constitucional

3 O VELHO E O NOVO PARADIGMA NA QUESTÃO DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA - A HERMENÊUTICA COMO MEIO DE SUPERAÇÃO

3.1 O controle sociopenal da infância e juventude - anotações sobre a trajetória do velho paradigma no Brasil

3.1.1 Tradição – uma idéia a ser compreendida e considerada

3.1.2 A evolução legislativa

3.1.3 O novo paradigma – a  doutrina  da  proteção  integral  na  Constituição

3.2 O caminho hermenêutico para efetuar a transição para o novo paradigma

3.2.1 O senso comum teórico dos juristas

3.2.2 Constituir a Constituição – o modo de efetivar o novo paradigma

4 A IMPOSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DA IDADE PENAL MÍNIMA ENQUANTO DIREITO DE CIDADANIA

4.1 A opção política

4.2 Algumas considerações sobre direitos fundamentais

4.2.1 O caráter aberto dos direitos fundamentais

4.2.2 Sintéticas anotações sobre as funções e classificação dos direitos fundamentais

4.3 O reconhecimento de direito fundamental fora do catálogo pelo Supremo Tribunal Federal e o caráter híbrido do artigo 228 da Constituição

4.4 A incidência do princípio do não-retrocesso social na questão da idade penal mínima

4.5 Os tratados internacionais como impedientes da modificação da idade de imputabilidade penal

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

OBRAS CONSULTADAS

 

 

Introdução

 

O tema a ser abordado neste trabalho é o da idade limite para a inimputabilidade penal, estabelecida em dezoito anos pelo artigo 228 da Constituição Federal e a discussão acerca do rebaixamento dessa "idade limite".

 

Até o advento da vigente Carta Política, a matéria era objeto de atenção exclusiva da legislação ordinária, sendo regulada, especificamente, pelo disposto no artigo 27 do Código Penal. A condução da idade mínima para a responsabilização penal à categoria de norma constitucional implica, inquestionavelmente, profunda alteração no enfoque jurídico a ser dispensado à questão.

 

Isso porque, de plano, subtrai a possibilidade de qualquer iniciativa do legislador infraconstitucional em tratar da matéria e, via de conseqüência, imbrica a inimputabilidade penal com o contexto principiológico que envolve a interpretação e aplicação da normativa constitucional. Vale dizer, a constitucionalização da idade penal mínima importa em radical modificação de sua natureza jurídica.

 

A partir de tal constatação, foi feita a opção de tratar a matéria sob o prisma constitucional especificamente, sem qualquer enfoque maior no Direito Penal ou em razões outras, que possibilitam o debate a respeito de eleição de critério(s) para o estabelecimento da idade ideal – ou aceitável – para a imputabilidade penal.

 

As eventuais referências sobre o trato penal ou protetivo a respeito da fixação da idade penal mínima são feitas de forma sintética e subsidiária, com a finalidade de situar historicamente a matéria. Para além disso, tais  digressões referenciais são manejadas, ainda, para facilitar a exata compreensão da mudança paradigmática que a Constituição de 1988 acarretou no âmbito da infância e juventude, da qual a idade penal mínima é indissociável.

 

Considerando que o exame da possibilidade ou imposibilidade de modificação da idade de imputabilidade penal passa, necessariamente, pela verificação de sua inclusão entre os direitos fundamentais e a plausibilidade de desconstitucionalização dos mesmos, procura-se trazer uma visão geral desse entrelaçamento. Sendo inviável o esgotamento de todas essas questões - por extrapolarem o objetivo da investigação - são efetuados cortes reducionistas, com o exame dos pontos entendidos como mais diretamente vinculados com a proposta central do estudo.

 

Nesse contexto, diante dos princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil (artigo 1º da Constituição Federal), procura-se verificar se a idade mínima de responsabilização penal é, ou não, insuscetível de modificação.

 

Diante da realidade brasileira, em que a desigualdade social é um fato incontroverso, por força do modelo economicista adotado, o debate sobre a idade da imputabilidade penal ganha corpo, pois o aumento da exclusão social implica o recrudescimento da criminalidade.

 

A discussão, entretanto, por parte daqueles que são favoráveis à diminuição da idade de responsabilização penal, é permeada de emoção - muitas vezes com forte exploração pelos meios de comunicação social - sem a consideração do papel que o Estado Democrático de Direito tem como promotor da dignidade humana.

 

Aliado a isso, em decorrência da incompreensão do tratamento a ser conferido à infância e juventude pelo acolhimento da doutrina da proteção integral na Constituição de 1988, a possibilidade de alteração do artigo 228  tem recebido aval de operadores jurídicos dogmáticos, entendendo-se por dogmáticos, importante esclarecer, aqueles operadores positivistas (ou neopositivistas) que não têm uma visão crítica do sistema jurídico.

 

Tendo em vista esses dados de realidade é que se escolheu a matéria a ser investigada, visando contribuir para que a discussão sobre a idade de imputabilidade penal seja enfocada pela ótica constitucional, a partir de uma visão principiológica que impregna o Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, a presente pesquisa tem por objetivo centrar o eixo da discussão sobre a idade penal mínima na esfera constitucional, com o afastamento, à medida do possível, da manipulação de sentimentos e de uma visão acrítica, tanto no aspecto jurídico como social.

 

O método de abordagem adotado foi o hermenêutico[2], centrando-se a pesquisa na revisão bibliográfica e documental sobre o assunto.

 

Para a redação da dissertação, optou-se por uma estrutura bastante simples, estabelecendo-se apenas quatro capítulos para o seu desenvolvimento.

 

No primeiro capítulo, demonstra-se a vinculação indissociável do Estado Democrático de Direito com a principiologia que preside e dirige a sua existência.

 

Começa-se por apontar a superação do positivismo dogmático em relação aos princípios, com o reconhecimento de que os mesmos deixaram de ter uma função meramente subsidiária e supletiva para assumir uma posição de proeminência e direcionadora do agir do Estado Democrático de Direito. Em seguimento, apontam-se as diferenças entre as normas – princípios e regras – e a especificação das finalidades precípuas de cada uma, com tópico específico sobre as funções dos princípios, explícitos e implícitos, na normativa constitucional.

 

Na mesma linha de contextualização do Estado Democrático de Direito, segue um apanhado histórico de sua evolução e, paralelamente, uma notícia sobre a emergência dos direitos fundamentais em suas diversas gerações ou dimensões. Isso, após o lançamento de um conceito sobre o que se entende por direitos fundamentais.

 

No segundo capítulo, são delineados o fenômeno do processo constituinte, em sua perspectiva histórica, e as limitações ao poder de reforma da Constituição.

A partir da Revolução Francesa, que se tem como fonte básica da compreensão atual da teoria do poder constituinte, é feita a distinção entre poder constituinte originário e poder reformador (poder constituinte derivado). Efetuada a diferenciação, demonstra-se a condição de poder originário da Constituinte de 1987/1988, da qual resultou a vigente Carta Política, com especial atenção para a circunstância de ter sido uma transição constitucional pacífica, fenômeno  relativamente recente na história constitucional.

 

Num segundo momento do mesmo capítulo, discorre-se sobre as limitações de reforma à Constituição, tanto no que diz respeito aos impedimentos expressos (cláusulas pétreas) como aos implícitos, havendo ênfase maior sobre a possibilidade de modificação constitucional através de emenda, pois diretamente relacionada com o objetivo central do estudo.

 

No capítulo terceiro, é anotada a mudança de paradigma no trato da infância e juventude, em vista do acolhimento, pela Constituição de 1988, da doutrina da proteção integral, abandonando-se, no sistema jurídico nacional, a doutrina da situação irregular, que se apresentava estampada no Código de Menores de 1979.

 

Visando a demonstrar o arraigamento da idéia de tratamento da criança e do adolescente (“menor”) de forma coisificada, pesquisa-se, a partir da realidade européia da Idade Média, a evolução do controle sociopenal da infância e juventude, com particular enfoque da evolução legislativa brasileira. Após, é analisado, de modo genérico, o conteúdo do novo paradigma na área da infância e adolescência – a doutrina da proteção integral – ressaltando-se a sua relação direta com a valorização da dignidade humana.

 

Pela necessidade de implementação do novo paradigma e de como isso deve ser feito, perquire-se o que é o senso comum teórico dos juristas, além de sustentar-se que a superação prática e efetiva da doutrina da situação irregular só poderá acontecer pela via da hermenêutica crítica, com particular atenção para o papel que deve desempenhar o Judiciário nesse sentido.

 

No quarto e último capítulo, analisa-se o viés político da constitucionalização da idade de imputabilidade penal, o caráter aberto dos direitos fundamentais na Constituição de 1988, as funções exercidas pelos direitos fundamentais e sua classificação. Foi feita a opção de enfrentar alguns pontos referentes aos direitos fundamentais na parte final do desenvolvimento da dissertação, para facilitar o dimensionamento do caráter de fundamentabilidade da inimputabilidade penal.

 

Ao depois, é feita análise do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) nº 939, pelo Supremo Tribunal Federal, em face de sua importância para a fixação de uma orientação jurisprudencial a respeito do exame de constitucionalidade de emenda constitucional, do alcance das cláusulas de intangibilidade previstas na Constituição Federal (artigo 60, § 4º) e sobre a possibilidade de localização de direitos fundamentais fora do catálogo elencado no texto constitucional.

 

Procura-se, ainda, salientar a dupla dimensão – ou caráter híbrido – da regra prevista no artigo 228 da Carta Magna, além de sua imbricação com a proibição de retrocesso social e com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, tratado internacional que versa sobre direitos humanos.

 


1 Uma união indissolúvel - princípios e Estado Democrático de Direito

 

A compreensão da possibilidade de mudança da Constituição, sem que isso implique a desnaturação de sua essência, passa, necessariamente, pelo exame do papel fundamental que os princípios exercem no Estado Democrático de Direito.

 

Considerando que a finalidade central desta pesquisa diz respeito à verificação da impossibilidade de modificação da idade penal mínima estabelecida na Constituição[3], impõe-se, modo prévio, tecer algumas breves considerações sobre a questão dos princípios.

A abordagem será feita de modo pontual, para que fiquem assentes as noções mínimas sobre a matéria – no que interessa especialmente para a investigação. Eis que um exame mais aprofundado da questão principiológica - pela sua amplitude e complexidade - extrapola o objetivo estabelecido para o trabalho.

 

Em seguimento, noticia-se a evolução do Estado Democrático de Direito e o surgimento dos direitos fundamentais, com a demonstração do imbricamento entre o evoluir daquele e a aparição ou emergência destes.

 

1.1 Os princípios como conformadores do Estado Democrático de Direito

 

Aristóteles (Metaphysica), após enumerar seis significados para princípio, sustentou que causa tem os mesmos significados, pois todas as causas seriam princípios, e observou o que todos os significados revelados têm em comum: “em todos Princípio é ponto de partida do ser, do devir ou do conhecer”.[4]

 

No Estado Democrático de Direito - como adiante se verá, a lei tem uma função transformadora - é da sua essência a instrumentalização da lei para que o vir-a-ser de uma sociedade justa, solidária, onde a promoção da dignidade humana seja a razão da própria existência do Estado, torne-se uma realidade. E só será possível a conformação material do Estado Democrático de Direito se, na sua origem, houver uma base de princípios que oriente o devir, que possa atuar como norte seguro para que a sua finalidade seja atingida; que o faça ser, tornando-o uma realidade e não mais uma promessa não cumprida; e, ainda, permita que se revele aos intérpretes e operadores do Direito.

 

Sem que no ponto de partida do ordenamento jurídico – no caso a Constituição – encontre-se uma base de princípios – explícitos ou implícitos - que oriente a interpretação do sistema, que lhe dê uma unidade de sentido, o Estado Democrático de Direito não se realiza, pois o seu ordenamento transformar-se-á numa junção de preceitos, desprovido de qualquer capacidade de coordenação do todo.[5]

 

A evolução do Direito, com a superação do positivismo dogmático, permitiu que os princípios deixassem de ser fonte subsidiária – aliás, de último recurso, só quando todas as possibilidades estivessem esgotadas[6] - para assumir um papel de centralidade interpretativa e aplicativa no ordenamento jurídico. Ou, conforme CARVALHO, os princípios têm “importância instrumental à superação da legalidade rasteira”.[7]

 

Num outro enfoque, a valorização dos princípios no nível constitucional permite a afirmação da centralidade antropológica que o Estado deve ter, servindo para que a sociedade consiga evoluir do fetichismo econômico que lhe foi imposto.[8]

 

E como o Estado Democrático de Direito não pode ser pensado sem ser um Estado principialista, importante a compreensão do que seja e como é a sua atuação, isto é, como os princípios revelam e efetivam a Constituição instituidora do Estado Democrático de Direito.

 

1.1.1 Breves notas sobre princípios e regras

 

A grande complexidade social em que vivemos implica que não se possa mais ver – ou melhor - não permite que as constituições sejam encaradas como mero meio regulatório das funções estatais no que se refere a sua organização e como meio de defesa da sociedade contra o Estado, como sustentado pelo liberalismo predominante no início do constitucionalismo moderno.

 

A sociedade mudou, e a doutrina constitucional também, muito embora não se possa falar na existência de um pensamento homogêneo a respeito do modo pelo qual a Constituição deve ser interpretada e aplicada.[9]

 

A mudança social, que é histórica, gerou alterações radicais no plano jurídico. As normas jurídicas, na sua generalidade, deixaram de lado um caráter condicional que as impregnava, em que tinham, basicamente, o fim de estabelecer uma determinada conduta de acordo com um padrão que, via de regra, era previamente estabelecido, e não a partir delas especificamente. A isso era anexada uma sanção pelo descumprimento do preceito normativo, que era implementada pelo Estado no caso de não-observância. Em outras palavras, a regra era subsunção do fato ao padrão legal abstrato anteriormente estabelecido. E, sem isso não havia força normativa obrigatória.

 

A evolução histórica exige uma nova postura. Conforme GUERRA FILHO,

 

“A regulação que no presente é requisitada ao Direito assume um caráter finalístico, e um sentido prospectivo, pois, para enfrentar a imprevisibilidade das situações a serem reguladas – ao que não se presta o esquema simples de subsunção de fatos a uma previsão legal abstrata anterior - precisa-se de normas que determinem objetivos a serem alcançados futuramente, sob as circunstâncias que então se apresentem.[10]

 

Ou seja, os princípios assumem proeminência no sistema jurídico.[11] E, no Direito Constitucional, tornam-se ferramentas essenciais para a interpretação e aplicação da normativa constitucional. O descobrir da importância central dos princípios traz, como conseqüência, a compreensão de que a Constituição é, no seu todo, uma norma jurídica obrigatória, com o abandono da classificação em enunciados preceptivos e programáticos. Em verdade, tal classificação só servia para afastar qualquer obrigatoriedade aos preceitos ditos programáticos; essa era a concepção civilista – privatística - dos princípios.

Em apertada síntese, como um dado certo e preliminar, pode-se afirmar que a importância reconhecida aos princípios estabeleceu, definitivamente, a força obrigatória de todas a normas constitucionais (princípios ou regras), independentemente de sua estrutura.

 

As normas jurídicas que formam o ordenamento apresentam duas configurações basilares: princípios e regras. As duas com força normativa, pois superada a questão da obrigatoriedade em relação aos princípios, como já referido, e as regras, que, de um modo geral, são as concretizações dos princípios[12], particularizando-os, nunca tiveram maior problema em relação a isso, uma vez que enquadráveis no esquema de subsunção do fato ao padrão legal previamente estabelecido.

 

A distinção entre um princípio e uma regra nem sempre se apresenta de forma cristalina, pois vários são os critérios para uma diferenciação. CANOTILHO, após ressaltar a complexidade da matéria, enumera critérios que podem ser utilizados para a distinção:

 

“a) Grau de abstração: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstração relativamente reduzida.

b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador? Do juiz?), enquanto as regras são suscetíveis de aplicação direta.

c) Caráter de fundamentabilidade no sistema de fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex.: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex.: princípio do Estado de Direito).

d) ‘Proximidade da ideia de direito: os princípios são ‘standards’ juridicamente vinculantes radicados nas exigências de ‘justiça’ (Dworkin) ou na ‘ideia de direito’ (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional.

f) (sic) Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante”.[13]

 

De tal rol enunciativo, pode-se extrair que há uma diferença qualitativa entre os princípios e as regras.[14]

 

Segundo ALEXY, o ponto fundamental para distinção em exame é que os princípios são normas que determinam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas que se apresentam. São, os princípios, “mandados de otimização” - num conceito amplo de mandado, isto é, abarcando, também, permissões e proibições. O autor, diz, também, que o âmbito das possibilidades normativas de otimização do princípio fica na dependência de princípios e regras que lhe são opostos.[15]

 

Ainda, conforme o mesmo doutrinador[16], as regras, por sua vez, são normas que somente podem ser cumpridas ou não. Se a regra é válida, faz-se exatamente aquilo que determina, nem mais nem menos. Logo, as regras contêm determinações no âmbito fático e jurídico, não sendo possível um grau de indeterminação no seu cumprimento; ou valem e são aplicadas, ou não valem e são afastadas.

 

Do exposto, pode-se concluir que os princípios revestem-se de um maior grau de generalidade e abstração do que as regras. Conseqüência disso, tem-se que o conteúdo dos princípios tem uma dimensão muito mais axiológica[17] do que o das regras, revelando os valores jurídicos e políticos do sistema em que vigem.

 

Cumpre consignar que, ao se afirmar que os princípios possuem conteúdo que recebe uma maior influência dos valores, não se está a dizer que as regras operam independentemente de qualquer apreciação axiológica. Essas também estão na esfera do dever-ser, e como atuam, no mais da vezes, como a concreção dos princípios, obviamente, sempre apresentam uma imbricação valorativa.

 

A distinção entre princípios e regras tem a sua importância, pois permite visualizar o caráter fundante daqueles, exercendo um papel de conformador de uma ordem jurídica, através da sua função de mandado de otimização. Todavia, como bem aponta ÁVILA, “a definição de princípios jurídicos e sua distinção relativamente às regras depende do critério em função do qual a distinção é estabelecida”.[18] O próprio ALEXY não afasta a possibilidade de que ora se tenha presente um princípio, ora se tenha uma regra tratando do mesmo conteúdo normativo, conforme se pode ver quando afirma a inexistência de princípios absolutos e trata da dignidade humana.[19]

 

Optou-se pela fixação de uma distinção entre princípios e regras, com a consciência de que todo critério distintivo ou classificatório apresenta incertezas, mas que esse se impõe para que se possa pensar e expressar uma idéia.[20] Em vista da pesquisa que se procede, pois haverá interesse em saber, no tempo oportuno, qual a natureza do artigo 228 da Constituição Federal - regra ou um princípio – a distinção qualitativa atende ao seu fim.

Não se aprofundará, também, o exame da matéria atinente à colisão de princípios e seu modo de resolução - via ponderação - ou ao conflito de regras, pois isso desborda a proposta do trabalho.[21]

 

No que diz respeito a isso, sumariamente, importante assinalar que, conforme a lição de ALEXY, a distinção entre regras e princípios apresenta-se clara nos casos de colisão de princípios e nos conflitos de regras. Comum às colisões e aos conflitos – de princípios e regras, respectivamente - a circunstância de que a aplicação de duas normas independentemente, levam a uma incompatibilidade, isto é, conduz a resultados incompossíveis, pois acarretam dois juízos concretos e contraditórios de dever-ser jurídico.

A solução varia para cada espécie de norma.[22]

 

Em relação às regras, assevera ALEXY, o conflito só pode ser solucionado pela introdução, em uma das regras, de exceção que elimine o conflito, ou pela declaração de nulidade de uma das regras, e, com isso, seja a mesma expurgada do ordenamento jurídico. Isso porque uma regra vale ou não vale juridicamente, e sua aplicação a um caso implica que a sua conseqüência jurídica também deve valer.[23]

 

De outra banda, ocorrente a colisão de princípios – quando para um princípio algo está permitido e para outro está proibido - um dos dois princípios deve ceder frente ao outro. Isso, entretanto, não significa declarar nulo o princípio que não venha a ser aplicado, ou que haja necessidade de introduzir no princípio afastado uma cláusula de exceção. O que  sucede é que em determinadas circunstâncias, um princípio tem precedência, e, em situação distinta, pode ocorrer o contrário, no que se refere à prevalência de aplicação. A razão disso decorre de que perante casos concretos os princípios apresentam pesos diferentes e prevalece a incidência do de maior peso em cada hipótese.[24]

 

Em suma, pode-se afirmar que os conflitos de regras resolvem-se na dimensão da validade, enquanto a colisão de princípios – que só ocorre entre princípios válidos - tem lugar fora da dimensão da validade, ou seja, a solução dá-se na dimensão de peso (valor).[25]

 

Como síntese da evolução da questão dos princípios, em vista do caráter parcial dessas breves observações, adota-se a conclusão de BONAVIDES a respeito do tema:

 

“Em resumo, a teoria dos princípios chega à presente fase do pós-positivismo com os seguintes resultados já consolidados: a passagem dos princípios da especulação metafísica e abstrata para o campo concreto e positivo do Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem jusprivatista (sua antiga inserção nos Códigos) para a órbita juspublicística (seu ingresso na Constituição); a suspensão da distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação de sua normatividade; a perda de seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento definitivo de sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e, finalmente, por expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios”.[26]

 

Fixado o critério qualitativo para a diferenciação entre princípios e regras, passa-se a analisar a função dos princípios como definidores do núcleo essencial da Constituição.

 

1.1.2 As funções dos princípios na Constituição

 

Uma ordem constitucional instituidora do Estado Democrático de Direito, necessariamente, é um sistema normativo aberto, composto de regras e princípios.[27]

Tem de ser um sistema aberto, pois, face à “intenção” de perenidade de toda Constituição, tal desiderato jamais seria atingido se não houvesse a possibilidade de atualização dos conteúdos das normas constitucionais. A normativa constitucional mantém-se porque aprende com a realidade, incorporando novos sentidos ao seu conteúdo[28] – que exerce uma função interpretativa/diretiva, que se espalha por todo ordenamento jurídico. Vale dizer, ao buscar no ser-do-mundo novos significados de verdade e de realização de justiça – que não são estáticos, pois refletem a pauta de valores da sociedade que evolui - a Constituição ganha vida e força para continuar a ser a conformadora do Estado e da vida social.

 

Não pode, também, afastar-se da condição de um sistema de princípios e regras. Por primeiro, porque um sistema constitucional fundado somente em princípios teria uma grande dimensão axiológica, porém seria de grande indeterminabilidade, em vista do caráter mais geral e abstrato dos princípios. E sendo um conjunto de conteúdos abstratos, não exerceria a sua função normativa, pois ficaria quase que exclusivamente na esfera axiológica (juízos de valor), perdendo a sua condição deontológica (dever-ser), que é essencial para uma função normativa que outorgue segurança jurídica. Em segundo lugar, porque a função da regra é densificar princípios, tornando-os de mais fácil realização ou otimização. Além disso, um sistema somente de regras padeceria de falta de unidade interpretativa, pois lhe faltaria o fio condutor de ligação entre as diversas regras, sendo que tal elo de concatenação é feito pelos princípios.

 

Os princípios, como já referido, são os sustentáculos do sistema jurídico, impregnando-o em seu todo, pois servem para fixar a interpretação e integração de todas as suas normas.[29]

 

Os princípios, ao ordenarem o texto constitucional no que diz respeito aos fins a serem alcançados pelo Estado e sociedade no Estado Democrático de Direito, dão o contorno ou a diretriz de conformação do ordenamento jurídico regulado pela Constituição. Por serem a base da Lei Maior, sem a qual não há um sistema organizado, funcionam como vetores de interpretação de toda ordem jurídica.

 

Impossível pensar em interpretação jurídica constitucional e infraconstitucional válida – no sentido de ter valia, serventia, aproveitabilidade - que não faça um rebate da norma a ser interpretada/aplicada com o sistema de princípios que informam o sistema jurídico. No nível constitucional, para estabelecer qual o princípio que deve preponderar no caso concreto de aplicação de uma norma; em relação à normatividade infraconstitucional, para verificação de sua adequação ao sistema principiológico da Constituição. E, em caso de não estar em conformidade, de ser afastada a sua incidência, por presente vício insanável, o da inconstitucionalidade.

 

Os princípios também dão a unidade sistêmica da Constituição, fazendo a integração de suas diversas normas, interligando-as em conexões de sentido, pois somente perante uma estrutura normativa referenciada entre si é que será possível uma perfeita interpretação, que, necessariamente, tem de ser sistêmica.

 

E para que isso seja possível, essencial a compreensão de que a conexão a ser feita é entre as normas e não entre os textos. Há que se fazer o esclarecimento, pois, em que pese a corriqueira utilização de texto e norma como sinônimos, trata-se de realidades distintas.

 

A norma é o resultado de uma interpretação, isto é, representa o significado de um texto ou disposição de norma. Conforme STRECK,

 

“faço a distinção entre texto (jurídico) e norma (jurídica). Isto porque o texto, preceito ou enunciado normativo é alográfico. Não se completa com o sentido que lhe imprime o legislador. Somente estará completo quando o sentido que ele expressa é produzido pelo intérprete, como nova forma de expressão. Assim, o sentido expressado pelo texto já é algo novo, diferente do texto. É a norma. A interpretação do Direito faz a conexão entre o aspecto geral do texto normativo e a sua aplicação particular: ou seja, opera sua inserção no mundo da vida. As normas resultam sempre da interpretação. É a ordem jurídica, no seu valor histórico concreto, é um conjunto de interpretações, ou seja, um conjunto de normas. O conjunto das disposições (textos, enunciados) é uma ordem jurídica apenas potencialmente, é um conjunto de possibilidades, um conjunto de normas potenciais. O significado (ou seja, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa”.[30]

 

Para além dessas funções, os princípios funcionam como identificadores do núcleo político essencial da Constituição.

 

A Constituição Federal consigna os princípios fundamentais nos artigos 1º a 4º, no seu Título I – Dos Princípios Fundamentais.[31] A partir daí, mais o que contém o seu preâmbulo, é permitido verificar quais são os princípios explícitos – isto é, expressos na Lei Magna - que são tidos como fundamentais para a caracterização do núcleo essencial (imodificável, pode-se dizer) da Constituição.

 

É certo que uma Constituição não necessita ter um preâmbulo como um elemento essencial. Todavia, muitos textos constitucionais apresentam-no, pois o nascimento de uma Constituição não é algo corriqueiro na vida dos povos. As Constituições são feitas, normalmente, em momentos de ruptura histórica ou de transições político-sociais. E, em razão disso, trazem um preâmbulo que expressa o momento histórico vivenciado pela Nação, não havendo um padrão, critério ou regra para a sua execução configurativa e, também, de conteúdo.

 

O preâmbulo é um texto de conteúdo primordialmente político – muito embora também possa apresentar disposições de outra ordem - de forte valor simbólico; mas nem por isso deixa de ter um caráter jurídico; vale dizer, de onde se extraiam conseqüências normativas.

Tem-se que o expresso no preâmbulo de um texto constitucional, por integrar esse e ter origem na mesma fonte – o Poder Constituinte – é Constituição. Aliás, no que se refere ao caráter formal, inviável qualquer entendimento em sentido contrário.

 

Ressalta do preâmbulo da Constituição de 1988[32] o seu caráter principiológico. E tanto é assim, que do cotejo da declaração preambular com os princípios fundamentais indicados no Título I – artigos 1º a 4º  da Constituição - verifica-se que há grande confluência de sentidos.

 

É certo que os princípios enunciados no preâmbulo não podem ser invocados isoladamente para a concretização de direitos – e nem se pode alegar inconsitucionalidade por afronta aos mesmos - pois, conceitual e tecnicamente, a força normativa da Constituição advém de seu conjunto. Mas nem por isso o preâmbulo perde a sua significação jurídica, pois a sua leitura no contexto da Constituição também contribui para a clarificação de qual é o núcleo político intangível da Carta Política.

 

Além dos princípios fundamentais referidos nos artigos do Título I, outros princípios - ou princípios decorrentes daqueles, que funcionam como explicitação dos indicados como fundamentais - emergem de distintos locais da Constituição e também integram o núcleo essencial.

 

Como exemplo, podemos citar o princípio da prioridade absoluta que, a família, o Estado e a sociedade devem conferir à criança e ao adolescente para que tenham um desenvolvimento pleno e sadio – artigo 227[33].

 

Sem a menor dúvida, pode-se afirmar que a proteção normativa outorgada à infância e juventude é uma explicitação do princípio da dignidade humana. Mas o Constituinte acrescentou um plus, tornou a consecução plena de tal princípio prioritária em relação à criança e ao adolescente. E esse acréscimo – mesmo tendo ocorrido fora das disposições do Título I - erige a total preferência estabelecida como um princípio fundamental, integrativo do núcleo essencial da Constituição.

 

Por fim, importante tecer algumas considerações sobre a possibilidade de princípios implícitos integrarem o núcleo essencial da Constituição.

 

A ordem constitucional não se restringe à soma dos dispositivos descritos na Carta Magna. Tratando-se de um sistema aberto, perfeitamente possível a localização – via interpretação, a partir dos valores acolhidos pela Constituição e de seu sistema - de princípios que não se encontrem enunciados formalmente. A ausência de referência expressa, entretanto, não lhes retira o status de princípio constitucional.

 

Logicamente, tais princípios não podem ser “criados” ao talante de eventual intérprete, surgindo do nada. A descoberta, necessariamente, passa por uma interpretação ciosa, que leve em conta todo o sistema constitucional, sendo de extrema importância, na revelação dos princípios implícitos, o trabalho da doutrina e da jurisprudência.

Identificado o princípio implícito – e como exemplos podemos citar: a supremacia do interesse público, da proporcionalidade - há que se verificar se o mesmo tem natureza fundamental, essencial para a preservação da Constituição. Presente tal caráter, sem a menor dúvida que integra o núcleo essencial da Lei Magna.

 

E sendo um princípio de estatura constitucional, não há que se falar em hierarquia entre princípios explícitos ou implícitos. Em sendo assim, pode ocorrer colisão entre os mesmos, que deverá ser solucionada diante do caso concreto, sem qualquer consideração sobre ser ou não um princípio explícito.

 

Passa-se, agora, ao exame da análise evolutiva do Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais que emergiram no decorrer da história.

 

1.2 O surgimento do Estado Democrático de Direito

 

Após o exame de caráter mais geral dos princípios, nesta seção, tem-se a visualização do Estado Democrático de Direito como meio de realização e garantias de direitos, bem como do dimensionamento dos princípios na sua conformação.

 

Importante salientar, também, que a utilização da terminolgia gerações de direitos, quando da notícia evolutiva do Estado Democrático de Direito, é feita num caráter facilitador da compreensão do surgimento dos direitos fundamentais. Vale dizer, a especificação dos direitos fundamentais em gerações é manejada como uma estratégia de demonstração da evolução histórica de tais direitos, visto que, sendo todos direitos fundamentais – independentemente da geração a que pertencem - inexiste hierarquia de precedência de uns sobre os outros.[34] O certo é que, em situação de colidência de interesses protegidos por direitos fundamentais distintos, no caso concreto é que se poderá verificar qual deve preponderar.

 

Antes de enfocar a evolução do Estado Democrático de Direito e a emergência dos direitos fundamentais, justifica-se a adoção do uso da terminologia direitos fundamentais, em detrimento de várias outras designações. Visando facilitar o entendimento do significado dos direitos fundamentais, desde logo, fixa-se um conceito.

 

Cumpre salientar que a questão específica dos direitos fundamentais, ainda que de forma não exaustiva, será retomada no quarto capítulo. Optou-se por isso, já que a compreensão do caráter de fundamentabilidade dos mesmos está diretamente ligada à sustentação da impossibilidade de modificação da idade penal mínima e será em tal capítulo que se tratará mais especificamente disso.

 

1.2.1 A opção terminológica por direitos fundamentais e sua conceituação no sistema constitucional brasileiro

 

Várias são as expressões utilizadas para designar os direitos  essenciais dos seres humanos, que merecem relevo constitucional.

 

Como bem observa LOBATO, o conhecimento das particularidades das várias designações dos direitos inerentes à pessoa humana é útil para “a correta compreensão do significado jurídico-constitucional dos direitos fundamentais”.[35] A partir disso, pode-se afirmar, até, que, através da evolução da nomenclatura utilizada, consegue-se ter uma panorâmica da significância que tais direitos, paulatinamente, passaram a ter para os ordenamentos constitucionais positivados. Em outras palavras, as modificações designativas acabam por espelhar o avanço da sociedade, que, dando maior importância à pessoa humana como razão última de sua existência, passou a ter como essencial o direito a uma vida digna para todos.

 

Em vista da proposta do presente trabalho, cujo eixo central é examinar um dado específico que se entende incluído entre os direitos fundamentais, deixa-se de fazer uma análise dos significados das várias denominações utilizadas - direitos humanos, direitos do homem, direitos subjetivos públicos, liberdades públicas, direitos individuais, liberdades fundamentais, direitos humanos fundamentais, além de outras - e passa-se, tão-somente, a justificar a opção por direitos fundamentais.

 

Tratando-se de pesquisa que tem por escopo o trato do direito constitucional positivo brasileiro, opta-se pela expressão direitos fundamentais, na esteira de uma tendência internacional com origem na Alemanha. LUÑO assinala essa tendência, observando que o designativo direitos fundamentais é utilizado para referir os direitos humanos positivados na normativa interna dos Estados, enquanto essa última é mais usual no plano das convenções e declarações internacionais.[36]

 

Aliás, a terminologia direitos fundamentais é adotada pela Constituição, que a refere em seu Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, abrangendo os direitos inerentes à dignidade do ser humano, como se pode ver dos capítulos que integram tal título, sem embargo da existência de direitos fundmentais em outros locais do texto constitucional.

Como explicita SARLET, tal opção terminológica da Constituição – que tem caráter inovador na nossa tradição constitucional - açambarca todas as espécies ou categorias de direitos fundamentais positivados.[37]

 

Estabelecida a razão, ainda que sinteticamente, da expressão a ser utilizada, consigna-se que, cada vez mais, há uma aproximação entre os conteúdos integrantes dos documentos internacionais de direitos humanos e os direitos fundamentais positivados nos textos constitucionais dos Estados, especialmente em relação ao que diz respeito à dignidade humana.

 

Importante trazer, desde logo, um conceito, para que se tenha a noção exata de qual o significado atribuído a direitos fundamentais no curso da investigação.

Adota-se a definição formulada por SARLET, pois a mesma é abrangente e leva em conta os aspectos formais e materiais do direitos fundamentais presentes na nossa Constituição:

 

“Direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentabilidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentabilidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura material do Catálogo)”. [38]

 

Feitas estas breves considerações introdutórias, passa-se ao exame da evolução do Estado Democrático de Direito.

 

1.2.2 A evolução do Estado Democrático de Direito e a emergência histórica dos direitos fundamentais

 

O Estado Democrático de Direito decorre de um processo evolutivo.

Para compreensão de seu desenvolvimento e conformação, deve-se remontar à origem do Estado Moderno, entendendo-se esse como: “aquele Estado no qual aparece unificado um centro de tomada e implementação de tomada de decisões, caracterizado pelo poder soberano incontrastável sobre um determinado espaço geográfico – território”.[39] O Estado Moderno apresenta-se com uma base dúplice. Em uma vertente, temos o Estado Absolutista, em que o rei encarnava o próprio Estado. A outra vertente é a do Estado Liberal, que é a que interessa – num corte reducionista, como é o adotado nestas breves notas explicativas – para que se chegue ao Estado Democrático de Direito.

 

O liberalismo, oriundo das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, acompanhou e favoreceu o desenvolvimento da economia capitalista. Funda-se o Estado Liberal, basicamente, na limitação da intervenção estatal, na liberdade individual e no dogma de que a sociedade regula-se espontaneamente. Ou, em outras palavras, o Estado restringe a sua atuação aos aspectos de monopolização da violência física e do poder jurídico, abstendo-se de qualquer intervenção nos domínios econômico e social, que são considerados estritamente privados. Há, portanto, no Estado Liberal, a predominância do privado.[40]

 

O Estado Liberal – visto exclusivamente na perspectiva de criação de direitos - surgiu como tentativa de contenção do poder dos monarcas, em decorrência do fortalecimento da burguesia ascendente, gerando direitos individuais. Vale dizer, visava a assegurar o indivíduo contra os desmandos do Estado ou dos governantes.

 

A nota básica do Estado Liberal de Direito, portanto, é uma limitação jurídico-legal negativa. E sua finalidade era a garantia dos cidadãos contra a eventual atuação do Estado, que viesse a impedir ou constranger a sua ação cotidiana.[41]

Em suma, o Estado Liberal de Direito veio para estabelecer instrumentos jurídicos que assegurassem o livre desenvolvimento individual, paralelamente à existência de restrições impostas ao atuar positivo do Estado.

 

Surgiram aí o que se chama de direitos fundamentais de primeira geração. A nota principal desses é a garantia individual; de regra, implicam uma abstenção do Estado.

 

E por se tratar de direitos garantidos pela abstenção (liberdades negativas), são, atualmente, os mais facilmente efetivados.[42] Ou, melhor dizendo, os direitos de liberdade tem maior efetividade, pois a sua maior parte “está consignada em normas constitucionais preceptivas e exeqüíveis por si mesmas e o seu exercício torna-se possível desde que estas sejam aplicadas”.[43]

 

Avançando, chegamos ao Estado Social de Direito, em que, além das garantias individuais (ideário liberal), agrega-se a questão social. E isso decorre da conjuntura social que se torna mais complexa, fazendo com que o Estado também passe a atuar através de uma prestação positiva.

 

O Estado Social desenvolveu-se a partir da Revolução Industrial, pois a transformação social gerada pela mudança dos métodos de produção - desfigurando rapidamente as cadeias produtivas até então existentes[44], bem como os laços tradicionais de solidariedade familiar e territorial - acabou obrigando a intervenção estatal, a fim de solucionar/mitigar os problemas decorrentes da massificação das necessidades.

 

É sabido que a intervenção estatal na solução de questões sociais deu-se por força da luta da classe trabalhadora que se formou, iniciando-se pela regulação de direitos atinentes às relações de trabalho, previdência e assistência social. E, ainda, os problemas decorrentes da formação de aglomerados urbanos – transporte, saneamento, habitação, educação, etc.[45]

 

Não se pode olvidar, entretanto, que a maior intervenção estatal também atendeu aos interesses do projeto liberal que se redesenhava. Vale dizer, a estruturação do modelo intervencionista serviu para alavancagem do processo produtivo industrial, pela assunção, por parte do Estado, de investimentos pesados em infra-estrutura – v.g.: construção de estradas, geração de energia, fornecimento de financiamentos para desenvolvimento de projetos, etc.

 

O certo é que a modificação das relações de produção – geradora de conflitos e tensões, próprios da industrialização e da paulatina organização dos não-detentores dos meios de produção - fez com que fosse tentado um equilíbrio. Não com o intuito de gerar igualdade entre todos, mas de manter a litigiosidade social em um nível de suportabilidade.

 

É dentro de tal contexto que emergem os direitos fundamentais de segunda geração, ou seja, os direitos que implicam uma prestação de natureza positiva do Estado, que passa a ter uma função promocional social, para assegurar um mínimo de dignidade ao cidadão.[46]

 

No Estado Social de Direito, a lei assume um papel de fazer o Estado agir de uma forma concreta, facilitando benefícios. Deixa de existir aquela excessiva centralização no individual, pois “o personagem central passa a ser o grupo que se corporifica em cada movimento social”[47].

 

Observa-se que, tanto no Estado Liberal de Direito como no Estado Social de Direito, tem-se uma adaptação social sem a modificação básica de sua finalidade.

 

O Estado Democrático de Direito, que representa um avanço em relação aos modelos anteriores – que nem sempre são democráticos - não é uma revolução na estrutura social. O Estado Democrático de Direito não é uma ruptura, um corte, para um outro modelo de Estado.

 

O novo do Estado Democrático de Direito é a incorporação de novas perspectivas ao Estado Social de Direito, isto é, sem afastar-se das garantias liberais (direitos individuais) e da exigência de prestação positiva do Estado (questão social), ao assumir a feição de democrático, o Estado passa a ter como objetivo a promoção da igualdade e da solidariedade.

 

No Estado Democrático de Direito, não basta mais a limitação e a função promocional, há o acréscimo da finalidade de tornar presente a perspectiva da igualdade com o contorno específico de garantir, por intermédio do ordenamento jurídico também, as condições mínimas de vida para o indivíduo/cidadão e para a comuna.

 

Como aponta MORAIS, o Estado Democrático de Direito visa à transformação do status quo, aparecendo a lei como instrumento de transformação da sociedade, pois é pretendida a reestruturação das relações sociais.[48]

 

É no âmbito do Estado Democrático de Direito que surgem os direitos fundamentais de terceira geração[49] – direitos de solidariedade; direito ao desenvolvimento sustentado, à paz e a um ambiente protegido; direito a uma não-perniciosa manipulação genética – e até de quarta e quinta gerações[50], sem embargo de reconhecer-se que não há um consenso classificatório em relação aos direitos integrantes da terceira e subseqüentes gerações.

 

No Estado Democrático de Direito, mais que uma mudança de meios ou de substância (e por isso não representa uma ruptura com o Estado Liberal e com o Estado Social de Direito), opera-se a modificação de finalidade de sua normatividade.[51] Isso porque se impregna o Estado, em sua totalidade, do qualificativo democrático[52], e, por conseqüência, a ordem jurídica que lhe é integrativa.

 

A reestruturação social que preside a finalidade normativa do Estado Democrático de Direito é a da promoção da igualdade com democracia, e isso, sem dúvida, passa pela solução dos problemas de uma existência material digna do ser humano. Solução, por óbvio, que não ocorrerá de forma mágica ou instantânea[53], mas através da implementação constante – e que necessita de permanente vigilância para que não ocorra desvirtuamento – dos princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito.

 

Importante a consignação dos princípios do Estado Democrático de Direito, pois dão conta de sua conformação e finalidade. Pela clareza de forma e conteúdo na elencação de tais princípios, adota-se o disposto por STRECK e MORAIS:[54]

 

“A – Constitucionalidade: vinculação do Estado Democrático de Direito a uma Constituição como instrumento básico de garantia jurídica;

B – Organização Democrática da Sociedade;

C – Sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos, seja como Estado de distância, porque os direitos fundamentais asseguram ao homem uma autonomia perante os poderes públicos, seja como um Estado antropologicamente amigo, pois respeita a dignidade da pessoa humana e empenha-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solidariedade;

D – Justiça Social como mecanismos corretivos das desigualdades;

E – Igualdade não apenas como possibilidade formal, mas, também, como articulação de uma sociedade justa;

F- Divisão de Poderes ou de Funções;

G – Legalidade que aparece como medida de direito, isto é, através de um meio de ordenação racional, vinculativamente prescritivo, de regras, formas e procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência;

H – Segurança e Certeza Jurídicas”.

 

No Estado Democrático de Direito, passa-se a ter um ordenamento jurídico que fica comprometido com a realização democrática da justiça social, que deve promover, de forma participativa, a convivência numa sociedade livre, justa e solidária. Isso, entretanto, não ocorrerá de uma forma dadivosa, decorrente do atributo transformador da lei no Estado Democrático de Direito. Advirá, com certeza, da conscientização - da sociedade em geral e dos operadores jurídicos em especial - do que implica a qualificação de democrático do Estado. E tal não é pouco, pois, além do risco de utilização do direito como meio de opressão/manutenção de estruturas e relações sociais arraigadas, através da dominância do discurso jurídico desconectado da realidade, há que se suplantar, também, a visão dogmática predominante nos meios jurídicos nacionais.

 

A concretização desse Estado é a oportunidade de alcançar a modernidade prometida e nunca atingida no Brasil. Em tal modernidade, a ordem jurídica, como agente transformadora/promovente da integração social dos excluídos tem de estar impregnada da tensão democrática, sob pena de transformar-se – ou permanecer - em puro e simples meio de controle social, fundado numa normatividade de articulação lógico-formal, tão-somente.

E a Carta Política de 1988 põe ao alcance da sociedade brasileira a possibilidade de concretização do Estado Democrático de Direito. LEAL bem sintetiza a idéia:

 

“Pode-se afirmar que, como referencial jurídico, a Carta de 1988 alargou significativamente a abrangência dos direitos e garantias fundamentais, e, desde o seu preâmbulo, prevê a edificação de um Estado Democrático de Direito no país, com o objetivo de assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.[55]

 

Vale dizer, ainda, que o Estado Democrático de Direito só se concretizará quando não for mais possível qualquer consenso autoritário e a vida social for presidida pela diversidade libertadora da democracia, que tem na Constituição sua fonte primária de irradiação, já que é a conformadora primeira do Estado. Logo, essencial que todo operador do direito procure a maximização da efetividade do texto constitucional, pois o processo de avanço social só acontecerá com a potencialização do interpretar efetivante das normas constitucionais.

 

2 O fenômeno Constituinte e as limitações materiais de reforma da Constituição

 

Neste capítulo, procura-se demonstrar a origem e legitimidade do poder constituinte para estabelecer um regramento constitucional, diferenciando-o do poder de reforma, que se entende uma criação daquele.

 

Feita a distinção de caráter geral, particulariza-se a situação em referência ao Poder Constituinte de 1987/1988, que foi o criador de nosso vigente texto constitucional. Examinado o momento histórico de sua ocorrência, sustenta-se ter sido o mesmo um autêntico poder constituinte originário, que, portanto, deu origem a uma Carta Política legítima, pluralista, democrática, que deve ter seus princípios preservados.

 

Dentro de uma perspectiva da necessidade de preservar os avanços sociais conquistados na conformação do Estado Democrático de Direito brasileiro, são analisados os limites materiais de reforma à Constituição. A ótica central disso é no sentido de que as limitações materiais – expressas ou implícitas - têm a finalidade de preservar a Constituição, salvaguardando-a de reformismos de ocasião, mas sem que isso venha a servir de entrave à incorporação das mudanças que se fizerem necessárias, pois a reforma também é um meio de vivificação da ordem constitucional.

 

2.1 Poder constituinte originário e poder reformador: distinções - a constituinte de 1987/1988 como poder originário

 

Faz-se essencial estabelecer a diferença entre poder constituinte originário – que cria uma Constituição de forma livre e soberana – e poder reformador, que é instituído/criado pelo poder originário na obra de sua criação. Isso porque, sendo um derivado, não pode agir de forma a desfigurar ou modificar completamente a obra (Constituição) originária.

 

Outra questão que não pode ser olvidada, em vista da Carta Constitucional de 1988, diz respeito à demonstração da legitimidade – como poder originário – do Constituinte de 1987/1988, para que se entenda a impossibilidade de modificação da idade de responsabilização penal fixada na Lei Maior.

 

2.1.1 Poder constituinte originário

 

Qualquer abordagem que se faça da questão constitucional implica, necessariamente, uma visitação do político e do histórico. É praticamente impossível uma abordagem puramente formal nesse campo.

 

Dentro dessa ótica, impossível um enfoque constitucional no Brasil – como de resto em toda América Latina – que se afaste da influência do chamado mundo ocidental, pois a tradição política e cultural dominante, por força da colonização européia, assim nos insere. E tanto é assim, que, em regra, os direitos dos povos originários da América são tratados como direito de minoria.

 

A idéia de Constituição – como se pode ver da teoria constitucional em nosso meio – vem/está impregnada de uma idéia já “universalizada” (pelo menos no Ocidente) de que uma Constituição é o meio pelo qual se dá a conformação do Estado, o modo de atuação de seus órgãos e os valores políticos-sociais que (pelo menos em tese) direcionam o Estado. Em termos de América Latina, essencial a ressalva de que isso pode ocorrer em tese, pois é corriqueiro o descolamento da Constituição formal/escrita da Constituição “real”.

 

Como alerta BOBBIO, muitas vezes, a linguagem dos direitos se apresenta ambígua e utilizada como mera retórica, pois, solenemente declarados (os direitos), permanecem no papel, praticamente sem qualquer concretização[56].

 

Além disso, são pontos também “universalizados” princípios e conceitos - tanto de ordem jurídica como política - que tiveram sua formação histórica inicial na Europa. Cita-se, como exemplo, o conceito de democracia, os princípios que informam nuclearmente as constituições – dignidade humana, liberdade, igualdade, entre outros.

 

Importa, agora, examinar o conceito de poder constituinte originário e reformador, fixando suas diferenças para que, adiante, possa-se demonstrar a legitimidade do Poder Constituinte de 1987/1988 e afirmar-se a presença de limitações insuperáveis para o constituinte derivado (ou instituído) quando se pensar em reforma via emenda constitucional.

 

Numa abordagem inicial, isto é, despregada da noção de legitimidade democrática, pode-se dizer, conforme SCHMITT, que poder constituinte é a vontade política cuja força ou autoridade é capaz de fazer concreta a decisão de conjunto sobre modo e forma da própria existência política, determinando, desse modo, a existência de uma unidade política como um todo.[57] Como assevera BONAVIDES, do ponto de vista formal/instrumental, o poder constituinte sempre existiu e existirá, pois é o meio através do qual, via Constituição, conforma-se o Estado e a estrutura da sociedade política.[58]

 

É inegável que, para compreender a evolução do que é o poder constituinte, importantes são o constitucionalismo inglês e o constitucionalismo americano. O primeiro tem uma evolução histórica de assegurar privilégios e liberdades à nobreza e ao clero, fazendo com que o governo (o rei) tivesse moderação no agir.

 

O constitucionalismo americano, por sua vez, tem como nota básica o reconhecimento de uma cidadania igualitária – igualdade jurídica entre homens livres - a salvaguarda da liberdade individual e a sujeição dos poderes de governo ao consentimento do povo.

CANOTILHO assim anota as características básicas antes referidas:

 

“(...) às ‘magnas cartas’ é estranha a dimensão projectante de uma nova ordem criada por actor abstracto (‘povo’, ‘nação’). Inerente à ‘ordem natural das coisas’ estava, pois, a indisponibilidade da ordem política, a incapacidade de querer, de construir e de projetar uma ‘ordem nova’, bem como a rejeição de qualquer corte radical com as estruturas políticas tradicionais”.

...

“(...) o poder constituinte, no figurino norte americano, transporta uma filosofia garantística. A Constituição não é fundamentalmente um projecto para o futuro, é uma forma de garantir direitos e de limitar poderes. O próprio poder constituinte não tem autonomia: serve para criar um corpo rígido de regras garantidoras de direitos e limitadoras de poderes”. [59]

 

A origem do poder constituinte democrático, entretanto, funda-se no constitucionalismo francês, ao tempo da revolução burguesa de 1789.[60]

 

A França pré-revolucionária vivia momentos de ebulição, em que se faziam presentes todos os ingredientes para que o processo de ascensão da burguesia se manifestasse, tornando-se o grande centro de irradiação da concepção liberal-burguesa que se expandiu por todo o mundo.

 

A situação geográfica da França, localizada no continente – e não numa ilha, como a Inglaterra, ou do outro lado do Atlântico, como a América – em muito contribuiu para que seu movimento revolucionário (que foi realmente inovador) ganhasse repercussão em todo mundo europeu.

 

Pode-se ver, a grosso modo, na gênese do processo revolucionário, um somatório de elementos. De natureza socioeconômica: o excessivo luxo na corte, o empobrecimento da nobreza – concomitantemente à acumulação de riquezas por parte da burguesia - e as dificuldades de obtenção de trabalho em Paris. Intelectualmente: “novas idéias”, fortemente influenciadas pelo liberalismo inglês, além de grande prestígio do racionalismo. Cumpre consignar que não cabe aqui uma investigação histórica de tais condições, pois a finalidade é demonstrar, tão-somente, a razão pela qual se afirma que a base do que se entende por poder constituinte democrático surgiu na França. Em razão disso, far-se-á um corte, adentrando-se, pontualmente, no exame da formulação do conteúdo teórico do poder constituinte (pouvoir constituante), o que importa para uma distinção entre poder constituinte originário e poder constituinte derivado ou, mais precisamente, poder reformador.

 

A grande questão política da Revolução Francesa foi encontrar um novo titular da soberania - ou poder supremo - em substituição ao rei. Visto que, a partir do momento em que a monarquia deixava de existir ou, pelo menos, apresentava-se sem forças como centro de poder político, ocorria uma completa desestruturação de toda a arquitetura política vigente. E naquele momento histórico, a nobreza e o clero – dois dos três estamentos oficiais da estrutura social da França – por suas vinculações com os privilégios que estabeleciam a opressão sobre o povo e impediam a liberação econômica postulada pela ascendente burguesia, não tinham legitimidade e força para reivindicar o exercício do monopólio da soberania.

 

Conforme COMPARATO,[61]

 

“Restava, pois, aquele que, à míngua de denominação mais precisa, era chamado ‘o terceiro estamento’ (le Tiers Etat), cuja identidade social era, por assim dizer, negativa: compunham-no todo aqueles que, excluídos da nobreza e do clero, não gozavam dos privilégios ligados a estas duas ordens superiores. O Tiers Etat era, na verdade, um aglomerado social heterogêneo, formado de um lado pela classe burguesa: o conjunto de comerciantes de todos os gêneros, os profissionais liberais e os proprietários urbanos que viviam de renda ou de juros (rentiers ou capitalistes). Era formado, ademais, pelo enorme grupo social restante, geralmente designado como o povo (le peuple), isto é, a massa dos não-proprietários, dos pequenos artesãos, empregados domésticos, operários e camponeses”.

 

Por óbvio, face à grande diversidade de integrantes e interesses do Terceiro Estado, não seria possível ao mesmo, enquanto um grupo, assumir o exercício da soberania. Foi a burguesia, em nome do Terceiro Estado quem acabou, de fato, resolvendo o problema político da titularidade da soberania e, via de conseqüência, assumindo-a. E fez isso através das idéias de Emmanuel Joseph Sieyès sobre o pouvoir constituante, constantes de sua obra Qu’est-ce que le Tiers État?, lançada pouco tempo antes do movimento popular que pôs fim à monarquia na França.

 

O certo é que a questão de atribuição/concretização de uma nova soberania – ou poder supremo – surgiu, ainda que não escancaradamente, desde o início das sessões da assembléia dos “estamentos gerais do reino” (états généraux du royaume), convocada por Luís XVI. A assembléia instalou-se, em Versalhes, em 5 de maio de 1789. Por decisão do Conselho do Rei, os representantes do Terceiro Estado conseguiram a duplicação de seu número de deputados em relação ao número de representantes do clero e da nobreza. E, em 10 de junho, os representantes do Tiers État passaram a exigir que as votações não fossem mais por estamento, mas de forma individualizada – cada cabeça um voto. Em protesto, a quase totalidade dos representantes do clero e da nobreza deixou de participar da assembléia, ficando essa plenamente sob o domínio do Terceiro Estado, surgindo a necessidade de uma denominação para a assembléia que já não era mais dos “estamentos gerais do reino”[62].

 

Subjacente a isso, estava a necessidade de justificar as decisões que viessem a ser tomadas em assembléia, a fim de que tivessem o reconhecimento de terem sido emanadas de um órgão com poder de deliberação válido e com poder de obrigar. Ou, em outras palavras, fazia-se essencial a solução da questão da legitimidade da assembléia, que só restara, basicamente, com representantes de um estamento – lo Tiers État.

 

A resolução desse problema teórico e também de ordem prática, até certo ponto, foi possível com o manejo do conceito do pouvoir constituante, criado por Sieyès, que tornou mais clara a noção vigente até hoje a respeito do mesmo. Por certo, a teoria moderna do poder constituinte apresenta-se agregada de indissociável conceito democrático de legitimação, decorrente de outra visão do que consiste o povo e, também, de outra perspectiva compreensiva em relação à autonomia e incondicionamento do poder constituinte. Isso, entretanto, não desmerece a obra revolucionária de 1789, posto que deve ser vista dentro de seu contexto histórico e político, sem embargo de que não pode ser olvidado que se tratou de uma revolução burguesa, em que a burguesia transmudou-se em classe dominante.

 

O abade de Chartes, ao fazer suas três clássicas perguntas: “1ª. O que é o Terceiro Estado? – Tudo; 2ª. O que tem sido ele, até agora, na ordem política? – Nada; 3ª. O que é que ele pede? – Ser alguma coisa”.[63], pretendia demostrar, em essência, que é o povo (a nação) que deve governar através de seus representantes. Isto é, o povo[64], único titular da soberania política, é quem tinha legitimidade para exigir obediência ou estabelecer o comando na sociedade:

 

“A nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, é a própria lei. (...) Em cada parte, a Constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte. Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar nada nas condições de sua delegação”.[65]

 

Em essência, a grande originalidade e contribuição de Sieyès foi a criação/visualização/explicitação[66] da distinção entre o poder constituinte originário e os poderes constituídos, criados pela obra do poder constituinte: a Constituição.

 

O poder constituinte originário, ao conformar o Estado, disciplinando as competências de seus órgãos e fornecendo diretrizes para uma nova vida em sociedade pelo reconhecimento de direitos e fixação de princípios a serem perseguidos, não se confunde com os poderes que constitui. Na condição de criador, o poder constituinte originário goza de supremacia, sendo hierarquicamente superior aos poderes constituídos. A preponderância decorre do exercício da titularidade da soberania da nação. E na qualidade de representante da nação, o poder originário tem de ser obedecido e respeitado por todos. Logo, é um poder autônomo, incondicionado e livre.

 

A teorização sobre o poder constituinte, divulgada como tal desde o aparecimento da obra do abade Sieyès, resulta numa transformação do poder; como diz BONAVIDES: “Poder essencialmente soberano, o poder constituinte, ao teorizar-se, marca com toda a expressão e força a metamorfose do poder, que por ele alcança a máxima institucionalização ou despersonalização”.[67]

 

Passa-se a compreender que a soberania é impessoal – dissociada do rei de poderes absolutos e decorrente de um poder divino – vinculada à nação, única legitimada para comandar a sociedade. E essa despersonalização do poder é fundamental para estabelecer as bases da legitimidade do Estado Democrático, pois impõe limite ao exercício do poder e permite a centralidade normativa em benefício dos direitos do homem.

 

É certo que a doutrina atual – e não poderia ser diferente, pois o contexto histórico é outro – não acolhe mais a concepção clássica de poder constituinte - autônomo, livre e incondicionado - de forma pura.

 

Mas tal mudança de entendimento não altera a essência estrutural da teoria clássica do poder constituinte, que ainda continua válida. Em verdade, dá-se novo sentido à autonomia, liberdade e incondicionalidade, inerentes ao poder constituinte, haja vista ser inquestionável que um poder constituinte não decorre de um fenômeno de geração espontânea e, portanto, sofre as influências do processo de sua formação e das condicionantes de nenhum Estado viver isoladamente:

 

“(...) se o poder constituinte se destina a criar uma constituição concebida como organização e limitação de poder, não se vê como esta ‘vontade de constituição’ pode deixar de condicionar a vontade do criador. Por outro lado, este criador, este sujeito constituinte, este povo ou nação, é estruturado e obedece a padrões e modelos de conduta espirituais, culturais, éticos e sociais radicados na consciência jurídica geral da comunidade e, nesta medida, considerados como ‘vontade do povo’. Além disto, as experiências humanas vão revelando a indispensabilidade de observância de certos princípios de justiça que, independentemente da sua configuração (como princípios suprapositivos ou como princípios supralegais mas intra-jurídicos) são compreendidos como limites da liberdade e omnipotência do poder constituinte. Acresce que um sistema jurídico interno (nacional ou estadual) não pode estar out da comunidade internacional. Encontra-se vinculado a princípios de direito internacional (princípio da independência, princípio da autodeterminação, princípio da observância de direitos humanos)”.[68]

 

A evolução histórica fez com que a compreensão da titularidade do poder constituinte, que era e continua sendo do povo, não tenha mais o mesmo significado. Na perspectiva da conformação do Estado Democrático de Direito, há que prevalecer, necessariamente, um entendimento pluralístico.

 

O significado de povo tem der ser abrangente, não podendo ser entendido como a população de um determinado Estado, num conceito puramente jurídico. O povo, titular do Poder Constituinte, deve ser mais que uma referência quantitativa que dá legitimidade democrática a um processo decisório ou delegação para tanto. O povo é “um elemento pluralista”, que ultrapassa o resultado da soma da significância individual de cada ser humano de uma delimitada extensão territorial com caráter de soberania. Povo é, também – além do conjunto de individualidades pessoais - partido político, interesses agrupados (por exemplo: uma ONG, uma associação de classe), a opinião científica, correntes culturais, movimentos sociais etc.[69] Em suma, povo é a sociedade viva organizada – formal ou informalmente - enquanto geradora de idéias e/ou concretizadora de atitudes, mais os seus integrantes individualmente, pois esses podem – no todo ou em parte – não comungar das idéias dos entes que se organizam no meio social.

 

Examinada a estrutura teórica da origem e legitimidade do poder constituinte, bem como entendida a sua compreensão atual, isto é, como há que se focar, numa visão democrática, a concepção da titularidade (povo) e o que se entende por incondicionamento e autonomia, cumpre verificar quem pode introduzir modificações na obra do poder constituinte originário.

 

2.1.2 Poder reformador

 

Neste tópico, será feito exame de qual órgão pode efetuar a reforma da Constituição e dos motivos que justificam a sua existência, sem adentrar no âmbito das reformas que lhe são possíveis por intermédio de emendas. As limitações do poder reformador serão objeto de análise na seção seguinte.

 

Por uma questão de rigor técnico de linguagem, é de ser justificada a opção pelo uso da expressão “poder reformador”.

 

O poder constituinte de reforma de uma Constituição tem diversas denominações na doutrina: poder constituinte derivado, reformador, revisor, instituído, impróprio, de segundo grau, entre outras. São diversos termos para referir a mesma realidade, ou seja, a alteração de uma Constituição através da forma nela mesma prevista.

 

Tecnicamente – em que pese a grande aceitação da expressão poder constituinte derivado, de larga utilização[70] – a melhor denominação é a de poder reformador. Isso porque o poder constituinte originário, ao elaborar o texto constitucional, também institui poderes, e, entre tais poderes temos aquele que – dentro dos limites fixados pelo instituinte – é criado com a finalidade de proceder alterações na obra do constituinte originário: a Constituição.

 

Na condição de poder instituído ou constituído é, por natureza, inferior e subordinado ao poder criador – o poder constituinte originário. E não pode ser considerado um poder constituinte derivado, pois, se temos um poder que constitui o ordenamento jurídico, não se pode falar em “constituinte derivado”, já que, juridicamente, antes do constituinte originário nada havia.

 

Como bem salienta DANTAS[71], até semanticamente, por uma contradição inerente, utilizar a expressão poder constituinte derivado não é a forma mais técnica de nominar o poder reformador instituído.

A necessidade, como dado de realidade, de que o texto constitucional pudesse ser modificado foi solvida com fulcro no princípio da supremacia da Constituição. Eis que, sendo a Constituição a obra de um poder constituinte originário, soberano e ilimitado, juridicamente falando, um poder instituído (subordinado) não teria capacidade de modificá-la. Salvo se o poder constituinte originário assim dispusesse quanto ao órgão autorizado a tanto, dentro das condições e formas que estabelecesse.[72]

 

A compreensão da questão jurídica da supremacia da Constituição, que, na atualidade, é absolutamente tranqüila e não enseja discussões, nem sempre conseguiu ser vislumbrada.

Somente no final do século XVIII, passou-se a ter a percepção de que a Constituição tinha uma normatividade superior à do legislador ordinário, em que as leis comuns podiam e deviam ficar disponíveis para uma modificação mais constante; inclusive, como meio de manter o ordenamento jurídico de acordo com as mutações e exigências sociais. O texto constitucional, entretanto, em vista de sua finalidade conformadora do Estado – seu principal fim à época – não poderia estar disponível ao legislador comum, sob pena de fácil descaracterização como modo de instituição e organização do Estado e ilegitimidade do legislador comum para isso.

 

Segundo BITTENCOURT[73], foi Emmerich de VATTEL quem enunciou o princípio em comento, nos seguintes termos:

 

“O povo pode conferir o exercício do Poder Legislativo a um monarca ou a uma assembléia, ou a ambos conjuntamente, delegando-lhes a faculdade de elaborar novas leis ou revogar as anteriores. Indaga-se, todavia, se essa faculdade se estende até às próprias leis fundamentais, e, se podem modificar a Constituição do Estado. Os princípios que temos exposto (sic) até aqui nos conduzem certamente a decidir que a autoridade de tais legisladores não tem essa extensão, devendo as leis fundamentais ser sagradas para êles, a menos que a nação lhes tenha outorgado expressamente podêres para modificá-las... Se é da própria Constituição que derivam os podêres dos legisladores, como podem êstes modificá-la sem alterar o fundamento de sua autoridade?”

 

A questão política de quem teria poderes para modificar a Constituição dividiu-se, basicamente, no século XVIII, em três posições.[74] A primeira, que representaria a opinião de Vattel, propugnava pelo consentimento de todos os cidadãos para que a reforma da Constituição fosse possível. A segunda posição, sustentada nas idéias de Sieyès, permitia uma reforma de maneira mais simplificada, pois isso seria possível com base no direito que a nação conservava de alterar as suas próprias leis. A modificação realizar-se-ia pela convocação do poder constituinte para que a procedesse, pois ficava em potência até que fosse convocado pela nação para atuar. E o último posicionamento, inspirado em Rousseau, era no sentido de que a própria Constituição indicasse a autoridade que poderia alterá-la, bem como os modos e limites de sua modificação.[75]

 

A primeira Constituição a estabelecer em seu próprio texto a possibilidade de sua alteração, por emenda, com indicação de quem está autorizado a realizá-la e as condições em que isso é possível, foi a norte-americana.[76] E como se pode ver do constitucionalismo moderno, a solução comumente aceita para a viabilização da existência de um poder reformador, nos sistemas constitucionais rígidos, foi o de base rousseaniana ou o de “institucionalização da revolução”, se a abordagem da questão for centrada na doutrina de Locke.

 

Em suma, pode-se afirmar que a solução do problema de qual órgão está autorizado a proceder a reforma de um texto constitucional rígido, resolve-se com base no princípio da supremacia da Constituição. Eis que o poder constituinte originário, no exercício de seu poder ilimitado – no sentido jurídico – num ato de vontade soberana, estabelece as possibilidades de alteração de sua obra (Constituição), indicando os meios, condições, limites e órgão competente para tanto, que é o poder reformador.

 

A Constituição brasileira reconhece a possibilidade de sua modificação através de emenda constitucional, atribuindo ao Poder Legislativo ordinário a função de poder reformador.[77]

 

Por fim, cumpre observar que, numa visão política da possibilidade reformatória, o poder instituído para eventualmente promover modificações na Constituição não é um poder constituinte. Falta-lhe a condição de originário e ilimitado, pois fica, necessariamente, adstrito à competência e sujeito às restrições fixadas pelo poder constituinte – que constituiu, criou a obra que pode ser objeto da reforma.

 

Afirmar que o poder reformador é um poder constituinte é privilegiar uma visão unicamente jurídico-formal – inviável em matéria constitucional - pois só vê o resultado formal da produção normativa do poder reformador, já que, nesse aspecto, é inegável que ele produz regramento de status constitucional. Ainda assim, elabora norma de caráter constitucional porque teve tal poder atribuído pelo poder constituinte. Ou seja, sempre está presente o exercício de uma atividade/atribuição conferida/autorizada por um poder que lhe precede e o constituiu.

 

A compreensão do caráter de poder constituído e jamais de poder constituinte do poder reformador é essencial, pois permitirá o entendimento das razões pelas quais esse poder sofre limitações insuperáveis, quando no exercício de seu poder de reforma da Constituição.

 

Assentadas as distinções e características do poder constituinte originário e do poder reformador instituído, passa-se a analisar o processo gerador da Constituição de 1988, com o fim de demonstrar que a atual Carta Política é obra de autêntico poder constituinte originário.

 

2.1.3 A constituinte de 1987/1988 como poder constituinte originário legítimo

 

É imprescindível o exame da legitimidade da constituinte que elaborou a atual Carta Magna, pois a alegação de não ser o constituinte de 1987/1988 um legítimo poder constituinte é argumento utilizado para vislumbrar uma maior possibilidade reformatória do texto constitucional através do poder reformador, pela tentativa de atribuição de valor menor às chamadas cláusulas pétreas[78].

 

Vislumbrar o Poder Constituinte que elaborou a Carta de 1988 como um poder derivado da Constituição de 1967/1969, sem qualquer legitimidade originária para estabelecer de forma livre e soberana uma nova ordem, é, no mínimo, falta de entendimento do fenômeno constitucional moderno. Em outras palavras, é ver, até os dias de hoje, tão-somente a revolução ou a criação de um novo Estado como possibilidades de geração de um legítimo poder constituinte.

 

A forma mais tradicional de afloramento do poder constituinte é através de revolução. Todavia, não é a revolução o único modo de instauração de um novo regime político e que faz, também, surgir a atividade de geração de uma nova Constituição.[79]

 

A Carta Constitucional de 1967/1969 era, inegavelmente, o resultado do autoritarismo vigente no Brasil. Tinha um conteúdo antidemocrático de tal ordem, que não seria possível pela via da reforma constitucional – sem uma ruptura estrutural com o texto constitucional autoritário - implantar um sistema político-jurídico realmente democrático.

 

A sociedade que resistiu à ditadura e lutou pela democratização da vida nacional não se sentia vinculada – aliás, rechaçava, rejeitava a ordem jurídica constitucional então em vigor - e não admitia o estabelecimento de uma nova ordem com qualquer atrelação ao passado antidemocrático. A pretensão de uma transição do autoritarismo à democracia de forma encadeada e filiada – como se fosse possível – era o projeto dos grupos ligados à ditadura, tão-somente. Solapada a base de apoio ao autoritarismo, emergiram as forças democráticas no bojo do processo constituinte de 1987/1988, e implantou-se, sem qualquer vinculação com o passado, uma nova ordem jurídica, surgindo o Estado Democrático de Direito brasileiro.

 

A legitimidade do processo constituinte – mesmo que se critique não ter sido a Constituição elaborada por um Poder Constituinte exclusivo - numa mirada histórica, é facilmente apreendível. O estabelecimento da nova ordem decorreu de uma transição pacífica, sem o colapso de vigência do sistema anterior, por força da vontade soberana da nação, que não suportava mais viver sob uma ordem não-democrática, jamais se podendo falar em concessão patrocinada pelo regime militar.[80]

 

Ocorreu o que MIRANDA chama de transição constitucional, em que se faz presente um dualismo, isto é, “enquanto se prepara a nova Constituição formal, subsiste a anterior, a termo resolutivo”[81]. E a circunstância de não ter sido uma constituinte exclusiva e ter origem numa Emenda Constitucional da Constituição então vigente, em vista do momento histórico que se vivia, sem a menor dúvida, não possibilita que se desconsidere a existência de um legítimo Poder Constituinte[82].

 

JOBIM, enquanto deputado constituinte, em discurso na sessão da Assembléia Nacional Constituinte de 03 de março de 1988, bem enfocou a questão, demonstrando que a Assembléia era um legítimo Poder Constituinte originário, fruto de uma transição constitucional.

 

Observou o deputado que a Constituição de 1969 era incompatível com a idéia de democracia, razão pela qual a nação exigiu o chamamento de uma constituinte, que resultou na convocação da Constituinte Congressual, oriunda de um projeto do Executivo[83]. A convocação foi para uma atuação livre e soberana, sem qualquer limitação material – havendo condicionamento só em relação ao modo de aprovação da Carta a ser elaborada. Vale dizer, houve a convocação de uma constituinte livre e incondicionada, numa transposição pacífica para um novo sistema, sem que se possa falar em reforma do texto da

 

Constituição de 1969, pois ausente qualquer espécie de vinculação entre a Carta Política que deixaria de existir e a que estava por nascer.[84]

 

Sob outro enfoque, ainda, pode-se dizer que a Constituição de 1988 representa a reconstitucionalização – ou a restauração constitucional - do Brasil, sendo a exceção o período que vai de 1964 até a promulgação da vigente Carta Magna, período de ruptura constitucional causado pelo golpe militar.[85]

 

Logo, não é possível afirmar que a Constituição de 1988 foi realização de um poder constituinte derivado, criado pela Constituição de 1967, isto é, o Poder Constituinte de 1987/1988, ao proceder à “restauração” democrática no país (mesmo que com a incorporação de novas idéias de promoção da igualdade, não presentes na ordem democrática anterior restaurada), atuou como legítimo e verdadeiro poder originário, pois baniu do ordenamento jurídico o regramento constitucional ilegítimo.

 

A transição constitucional ocorrida no Brasil, que, como já visto, é modo legítimo e originário de mudança de regime político, não se apresenta como novidade no cenário internacional[86], a permitir a geração de dúvida sobre a qualidade do poder constituinte que gerou a Carta Política de 1988. Eis que é impossível visualizar o conceito de legitimidade num aspecto exclusivamente jurídico dogmático de vinculação entre validade e eficácia.[87]

 

O fenômeno da transição constitucional é mais difícil de ser fixado (visto, registrado) no momento em que ocorre e de menor freqüência até um passado recente, fazendo com que seja menos estudado[88]. Isso, todavia, não é motivo para a negação da legitimação originária de um poder constituinte. A evolução histórica fez surgir novas formas de mudança de regime político, afastando o processo revolucionário como fonte quase exclusiva de geração de poder constituinte originário.

 

Em suma, a Constituinte de 1987/1988 é fruto típico de transição constitucional – ou de restauração constitucional democrática - caracterizando-se como um legítimo poder constituinte originário. Eis que a sua vinculação jurídico-formal com a normatividade constitucional anterior decorreu de uma imposição da nação, sem a ocorrência de uma revolução violenta para a ruptura da ordem anterior.

 

Sociologicamente falando, a sua legitimidade como poder constituinte originário adveio do descrédito que a ordem anterior merecia do povo (nação), que exigiu a sua mudança. Utilizando-se a clássica expressão de LASSALE para evidenciar o descolamento da Constituição escrita dos fatores reais de poder de um país, pode-se afirmar que a Carta Constitucional de 1967/1969 transformou-se em simples “folha de papel”[89], visto que dissociada dos interesses das forças políticas que se insurgiram contra a ditadura militar e terminaram por predominar no meio social.

 

Todavia, há que se ressaltar, a exigência social de mudança não era representada por um pensamento político-social homogêneo e/ou hegemônico, pois congregava as mais variadas formas de pensamento. O seu espectro abrangia desde grupos alijados das benesses do poder político instalado no comando do país – com identificação ideológica com a ordem então vigente - até correntes políticas que pregavam a coletivização de todos meios de produção[90].

 

E como não havia a possibilidade de predominância de qualquer força – tanto em relação à ordem vigente como em relação aos grupos que exigiam mudança, ainda que esses possuíssem maior representatividade social - operou-se uma transição constitucional pacífica, que, por não trazer em si mesma uma ruptura revolucionária, não gerou uma obra com predominância ideológica claramente identificável. A Constituição de 1988 representou o compromisso possível entre forças conservadoras e forças renovadoras ou progressistas que participaram do processo de estabelecimento de uma nova ordem jurídica.

 

Num outro viés, pode-se verificar a legitimidade da Constituição de 1988 - e, via de conseqüência, resultado da atuação de poder constituinte originário legítimo – pelo trato que dá aos direitos fundamentais. Eis que a proteção dos direitos humanos, centrada na promoção da igualdade pela participação democrática – que obrigatoriamente se faz presente no texto constitucional do Estado Democrático de Direito, como é o Brasil – faz a sinergia das duas hipóteses inerentes ao conceito de legitimidade – “a justificação-explicação de uma ordem de domínio” e “de fundamentação última da ordem normativa”[91]. Vale dizer, a existência de estrutura de domínio só é aceitável, legítima, quando fruto da vontade soberana do povo e seu telos seja a promoção do ser humano.

 

É, dito de outro modo, a constatação da legitimidade do constituinte originário ao promover a conformação constitucional do “Estado antropologicamente amigo”, pois justifica a sua existência em razão da efetivação da dignidade humana, com o fim primordial de promovê-la de todas as formas possíveis. Ou como assenta PINTO, citando Paul Bastid:

 

“(...) o poder constituinte, ao estabelecer o estatuto de governante e governados, isto é, o domínio de homens sobre homens, não pode divorciar-se da ideia de que a legitimidade do poder assenta nos ‘direitos da pessoa humana, sendo os indivíduos simultaneamente a causa eficiente e a causa final de toda a organização política”.[92]

 

É a Carta Política de 1988 democrática, pluralista e compromissória, apresentando grandes avanços sociais, mas refletindo a diversidade do poder constituinte originário material na obra realizada pelo poder constituinte originário formal. Em outras palavras: representando a Constituição o compromisso possível entre o conservadorismo e a renovação – face à ausência de homogeneidade política de determinado grupo - muitos direitos foram reconhecidos no plano retórico, mas carecendo de meios para a sua implementação. Foi a solução possível, pois garantiu possibilidade de uma futura efetivação almejada pelas forças renovadoras/progressistas, mas serviu aos conservadores, à medida que afastou um mais imediato avanço nas conquistas sociais modificadoras do status quo.

 

E dessa ótica – de que a Constituição de 1988 representou o compromisso do possível - bem como de que a Constituição só ganhará consistência simbólica de conformadora e promotora da justiça social, no senso comum da nação, quando for manejada de forma a efetivar direitos, é que se passa a examinar os limites de reforma da Constituição.

 

2.2 A delimitação do âmbito de reforma constitucional, através de emenda, possível ao poder reformador

 

Todo ato de constituir traz ínsito uma pretensão de perenidade, como se pode verificar etimologicamente, pois não se constitui algo para que venha a fenecer sem ser percebido como basilar. Uma Constituição, em especial a de natureza rígida[93], materializa-se trazendo uma idéia que deve prolongar-se no tempo, sem modificações constantes.

 

Uma Constituição, entretanto, é obra humana e sujeita a imperfeições, além de não poder ficar indiferente às modificações que se operam no mundo onde atua como fonte normativa. Ou seja, a possibilidade de ser uma Constituição modificada apresenta-se como imposição da realidade. A respeito disso, há um consenso doutrinal.[94]

A rigidez de um texto constitucional significa:

 

garantia contra mudanças constantes, frequentes e imprevistas ao sabor das maiorias legislativas transitórias. A rigidez não é um entrave ao desenvolvimento constitucional, pois a Constituição deve poder ser revista sempre que a sua capacidade reflexiva para captar a realidade constitucional se mostre insuficiente”.[95]

 

A possibilidade reformatória é uma necessidade, mas há de ser exercida de forma criteriosa, ponderada, buscando-se perscrutar as conseqüências que advirão com as inovações. Há que se ter o cuidado para que as medidas reformatórias não agridam os princípios basilares do sistema constitucional. Além do que, uma inclinação muito grande para o exercício da atividade reformatória, como já disse HESSE [96], abala a “força normativa” da Constituição.

 

A grande indagação é saber-se até que ponto pode ser procedida a mudança, sem que ocorra uma descaracterização de tal monta, que, ao invés de uma modificação, venha a ser criada uma nova Constituição.

 

A questão tem relevância para que se possa delimitar, de modo claro, qual a competência modificadora do poder reformador, evitando-se a possibilidade da prática de abusos que venham atender a interesses momentâneos ou de maiorias eventuais que se formem no Parlamento. Não bastasse isso, o perfeito – ou, pelo menos, algo próximo - delineamento da possibilidade reformatória da Constituição torna o controle de inconstitucionalidade de eventual emenda mais seguro; e, também, mais transparente e compreensível para a sociedade.

 

A Constituição brasileira de 1988, como todas as constituições de natureza rígida, traz, em seu bojo, as possibilidades em que pode ser reformada, tanto em relação ao procedimento a ser seguido para a modificação como em relação ao conteúdo material da(s) mudança(s). Considerando o direcionamento central do presente trabalho, será enfocada somente a questão da amplitude material reformatória[97], bem como não se adentrará no exame do processo legislativo constitucional.[98]

 

No mesmo passo, importante esclarecer que o enfoque a ser examinado é, tão-somente, o da modificação constitucional através de emenda, prevista no seu conjunto permanente de normas. Eis que a possibilidade de revisão constitucional, estabelecida no artigo 3° dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, por já ter decorrido o marco para sua ocorrência, não se afigura de maior relevância para o objeto desta pesquisa, sem embargo de que, numa perspectiva histórica do constitucionalismo brasileiro, é um dado importante, pois pode colaborar para a fixação de diretrizes mais claras para a compreensão dos limites materiais de reformas constitucionais. Até porque, ainda que com a predominância doutrinária do entendimento de que a revisão constitucional não poderia ser ampla e irrestrita, também existiram opiniões em contrário.

 

2.2.1 Reforma, revisão, emenda, diferenciações

 

As notas que seguem têm por finalidade apontar as distinções entre reforma, revisão e emenda – com base na evolução do Direito Constitucional nacional - com o intuito de deixar bem delimitado o campo de abrangência da emenda constitucional, que é a forma de modificação que mais interessa à pesquisa que se desenvolve.[99]

 

Numa perspectiva histórica do constitucionalismo brasileiro, pode-se afirmar que reforma é o meio próprio para a modificação de uma Constituição em vigência, que tem a finalidade de permitir a atualização da normativa constitucional, incorporando, quando necessário, à Lei Magna as mudanças sociais, mantendo-a em sintonia com o corpo social que regula. Ou, como menciona AGRA: “tem a finalidade de evitar os conflitos sociais decorrentes das normas com a realidade”, pois no momento em que o desenrolar dos fatos sociais fizer uma norma tornar-se ultrapassada, “sua força normativa sofrerá um decréscimo,” ocasionando “uma tensão que prejudica a normalidade jurídica”.[100]

 

Do exame das Constituições brasileiras, verifica-se que os termos reforma, revisão e emenda não apresentam uniformidade designativa.

 

A Constituição de 1824 só utilizava a expressão reforma nos artigos 174 a 178, ao tratar das modificações do texto constitucional.[101] A Constituição de 1891 também só consignava a expressão reforma no seu artigo 90, para tratar de alterações de seu texto.

 

A Constituição de 1934, por sua vez – mudando a tradição - admitiu a possibilidade de emenda e revisão constitucional no seu artigo 178, fixando requisitos diferenciados para cada uma das espécies.

 

A Carta Constitucional outorgada em 1937, em Título denominado “Das Emendas à Constituição” (artigo 174[102]), falava, de forma ambivalente e carente de melhor técnica, em “emenda, modificação ou reforma”. O entendimento doutrinário é de que na Carta de 1937 só era possível a alteração constitucional através de emenda, pois seu texto não faz qualquer diferenciação a permitir conclusão diversa.[103]

 

As Constituições que se seguiram: 1946 – artigo 217 – e 1967/1969 – artigo 47 - só estabeleceram alteração de texto constitucional através de emenda.

 

A atual Carta Política, a seu turno, traz previsão de modificação constitucional por emenda e por revisão. Tal afirmação decorre da menção de possibilidade de emenda, que é versada no Título IV (Das Organizações dos Poderes), Capítulo I (Do Poder Legislativo), Seção VIII (Do Processo Legislativo), Subseção II (artigos 59 e 60) e da existência de possibilidade de revisão, prevista no artigo 3° dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias.

 

Havendo referência a duas possibilidades de modo de modificação formal da Constituição – revisão e emenda - pode-se afirmar que esses são os meios previstos na Constituição de 1988 para a sua reforma. Em outras palavras, considerando o disposto na Carta Política de 1988, não há como dar-se a mesma significação para os termos reforma, revisão e emenda à Constituição[104].

 

A revisão, estando prevista nos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, apresenta-se como um modo excepcional de modificação da Constituição, inclusive com previsão de acontecer em momento certo, uma única vez, com procedimento menos rigoroso e simplificado do que o previsto para a emenda constitucional.

 

A emenda, por outro lado, tem previsão e regulação no texto permanente da Constituição e é o meio de alteração permanente da Carta Magna, tendo um procedimento de tramitação/aprovação mais rigoroso do que o previsto para a revisão.

 

Como se viu, no constitucionalismo brasileiro, revisão e emenda não são sinônimos. Pode-se dizer que a reforma através de revisão é uma exceção, ditada por conveniência política, apresentando finalidade própria e realizando-se em condições especiais, enquanto a emenda é o meio ordinário, comum, de reforma constitucional, podendo ser utilizado a qualquer tempo desde que, por óbvio, atendidos os requisitos que lhe são impostos pela Constituição.

 

Em suma, a reforma é o gênero, enquanto a revisão e a emenda são espécies com finalidades e procedimentos diferentes, pois aquela é a denominação ampla de toda e qualquer modificação formal que altere a Constituição, não abrangendo, entretanto, as chamadas mutações constitucionais, pois essas não modificam o texto da Lei Maior.

 

Assentada a existência de diferenciação entre revisão e emenda no Direito brasileiro, passa-se a examinar os limites materiais do Poder Reformador na sua competência de reformar a Constituição através de emenda constitucional – meio permanente de alteração da Carta Magna - pois a possibilidade de revisão, pela sua excepcionalidade e já decorrido o tempo de sua ocorrência, não mais pode acontecer. [105]

 

2.2.2 A limitação material de reforma da Constituição

 

Como bem observa MIRANDA, “o sentido a conferir aos limites materiais de revisão constitucional tem sido uma vaexata questio (sic) que há cerca de cem anos divide os constitucionalistas”.[106] Basicamente, respeitadas as variações que ocorrem, três são os posicionamentos. Primeiro: fulcra-se no entendimento de que os limites materiais são da própria natureza de uma Constituição e, via de conseqüência, não há como pretender a superação dos mesmos. Segundo: não há nenhuma razão para o reconhecimento de limites materiais reformatórios, pois não há razão jurídica para sua existência; logo, qualquer limitação material padece de legitimidade e eficácia. Terceiro: vê qualquer limitação material de reforma como relativa, pois pode ser superada pelo processo de dupla revisão.[107]

 

O entendimento adotado como o correto, em conformidade com a fundamentação que segue, é o de que os limites materiais de reforma são imprescindíveis, não sendo possível tê-los como superáveis.

 

Limites materiais à reforma da Constituição são impedimentos –explícitos e implícitos - estabelecidos pelo constituinte originário e insertos no próprio texto constitucional, que tornam insuscetíveis de modificação determinadas matérias de seu conteúdo.

 

A existência de conteúdos imutáveis numa Constituição tem recebido críticas, sob a alegação de que não é possível uma Constituição imodificável, pois acarretaria seu imobilismo, gerando um descompasso normativo com a sociedade e, por conseqüência, implicando um desprestígio do texto constitucional.[108]

 

CANOTILHO, com a força de seu expressar, assim responde à indagação a respeito da vinculação futura que traz a existência da limitação ao poder de reforma de uma Constituição:

“A resposta tem de tomar em consideração a evidência de que nenhuma Constituição pode conter a vida ou parar o vento com suas mãos. Nenhuma lei constitucional evita o ruir dos muros dos processos históricos e, consequentemente, as alterações constitucionais, se ela já perdeu a sua força normativa. Mas há também que assegurar a possibilidade de as constituições cumprirem a sua tarefa e esta não é compatível com a completa disponibilidade da Constituição pelos órgãos de revisão[109], designadamente quando o órgão de revisão é o órgão legislativo ordinário. (...) Assegurar a continuidade da Constituição num processo histórico em permanente fluxo implica, necessariamente, a proibição não só de uma revisão total (desde que isso não seja admitido pela própria Constituição), mas também de alterações constitucionais aniquiladoras de uma ordem constitucional histórico-concreta. Se isso acontecer é provável que se esteja perante uma nova afirmação do poder constituinte mas não perante uma manifestação do poder de revisão”.[110]

 

A tentativa de entender descabida a existência de limites materiais para a reforma de uma Constituição – que à primeira vista pode impressionar, pois implicaria a mumificação de seu texto e desconectação da realidade - passa pela incompreensão da distinção entre poder constituinte originário e poder constituinte derivado (poder reformador), além de ser apresentada de forma ambígua.[111]

 

O poder constituinte originário é de natureza política, existindo fora da Constituição e acima dessa – pois o texto constitucional é a obra que realiza. É um poder de natureza excepcional, manifestando-se somente em momentos de viragem histórica de um povo. De outra banda, o poder reformador tem natureza eminentemente jurídica. Inserido na Constituição, tem nessa o contorno de sua atuação, bem como de sua limitação. É um poder de exercício normal, pois existe para funcionar nos períodos de normalidade constitucional.[112]

 

Logo, na condição de poder instituído ou constituído, o poder reformador sofre limitações no seu poder de modificação da Constituição. Deve respeitar as limitações fixadas pelo poder constituinte originário, que são explícitas quando indicadas no próprio texto (cláusulas pétreas) e, também, as limitações implícitas, oriundas dos princípios que presidem a Constituição e que existem pela necessidade de preservação da essência do núcleo político básico da carta constitucional.

 

A atividade reformatória de uma Constituição é um meio de sua vivificação, pois é pela reforma que se conserva renovando uma carta constitucional. A modificação de um texto constitucional jamais poderá servir como caminho para o seu fenecimento. Conforme assevera BONAVIDES,

 

“o constituinte que transpuser os limites expressos e tácitos de seu poder de reforma estaria usurpando competência ou praticando ato de subversão e infidelidade aos mandamentos constitucionais, desferindo, em suma, verdadeiro golpe de Estado contra a ordem constitucional”.[113]

 

Em suma, a finalidade dos limites à reforma da Constituição é impedir a subversão da Constituição através de reforma constitucional, preservando-se as suas características e princípios fundamentais e que lhe são estruturantes.

 

É de observar-se que, no momento atual brasileiro, a discussão sobre os limites materiais de reforma da Constituição traz subjacente uma questão ideológica. Os adeptos do neoliberalismo tentam minimizar o programa de mudança e promoção social que é inerente à Constituição Cidadã de 1988. No afã liberalizante de inserção numa economia globalizada, em que o centro de interesse predominante/hegemônico é o econômico, tentam minimizar as conquistas sociais e de valoração da dignidade humana que foram insculpidas na Lei Maior. E, para tanto, procuram afastar, se não todos, pelo menos a grande maioria dos limites que impedem uma reforma constitucional desnaturadora e o retorno a um Estado mínimo. Do outro lado, pugnando pela validade e reconhecimento da existência das limitações que decorrem da própria Constituição – aliás, como já demonstrado acima - estão os que lutam pela mantença dos avanços sociais conquistados e pela implantação do Estado Democrático de Direito, com a efetivação plena – ou pela máxima efetivação possível - dos princípios que regem a nossa normativa constitucional. É a tradução da posição de que a globalização – que se apresenta, ao que parece, como uma via sem volta - pode e deve ser feita com a sua centralidade focada no ser humano, na valoração da dignidade humana, esteiada na cooperação e solidariedade entre os povos.

Introduzida a matéria dos limites materiais da reforma constitucional, passa-se a sua particularização.

 

2.2.2.1 Limites materiais explícitos

 

Limitações materiais explícitas - ou expressas, ou cláusulas pétreas, ou cláusulas de intangibilidade, ou cláusulas de irreformabilidade, ou garantias de eternidade - são a enunciação constitucional das matérias que não podem ser objeto de alteração ou, pelo menos, não podem ser modificadas em determinado sentido. Em outras palavras, são as impossibilidades reformatórias indicadas, modo expresso, no texto da Constituição.

Conforme CANOTILHO,

 

Limites expressos ou textuais são os limites previstos no próprio texto constitucional. As constituições selecionam um leque de matérias, consideradas como o cerne material da ordem constitucional, e furtam essas matérias às disponibilidades do poder de revisão”.[114]

 

Numa retrospectiva das Constituições brasileiras, verifica-se que nunca houve texto constitucional com elencação tão expressiva de limites expressos para a reforma constitucional como o da vigente Carta Magna. O rol de limites expressos encontra-se no artigo 60, § 4º, em que é vedada qualquer deliberação sobre a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes, e os direitos e garantias individuais.[115]

 

A Constituição de 1824 não trazia nenhuma limitação expressa ao poder de reforma de seu texto. A primeira Constituição republicana, de 1891, em seu artigo 90, § 4º, vedava a abolição da “forma republicana federativa; ou igualdade da representação dos Estados no Senado”. A Carta de 1934, em seu artigo 178, § 5º, só estabelecia proibição de alteração a respeito da República e da Federação. A Constituição de 1937, por sua vez, não trazia nenhuma limitação reformatória expressa. A Constituição de 1946, no seu artigo 217, § 6º, reintroduziu a proteção expressa de não-abolição da Federação e da República. E essa mesma impossibilidade foi assentada na Constituição de 1967/1969, no seu artigo 47, § 1º.

 

Pode-se dizer que as limitações expressas ao poder de reforma, insculpidas nos textos constitucionais, visam à proteção dos princípios básicos e essenciais da Constituição, bem como as “implicações e desdobramentos” – na expressão de STRECK - de tais princípios.

Em relação às vedações expressas, inviável, ao poder reformador, qualquer possibilidade de alteração. Conforme STRECK,

 

“O obstáculo do parágrafo 4º faz desses princípios – que lhe são estruturais, básicos e fundamentais – rigidíssimos, supraconstitucionais, no sentido de que não podem ser solapados, reduzidos, diminuídos, mesmo pelos mais conspícuos poderes constituídos: o Congresso, como órgão de reforma constitucional”.[116]

 

A questão da intangibilidade das limitações materiais expressas à reforma da Constituição – pelo menos enquanto inalteradas, segundo alguns[117] - é matéria relativamente tranqüila na doutrina, não ensejando maiores dúvidas, eis que assente terem as cláusulas pétreas, como já dito, escopo de proteção de conteúdos estruturantes de uma normativa constitucional. A maior controvérsia, como se verá a seguir, existe em relação aos chamados limites implícitos.

 

2.2.2.2 Limites materiais implícitos

 

Ainda que não unânime o entendimento[118], é possível afirmar que, além dos limites materiais expressos, existem limitações implícitas ao poder de reforma, as quais, apesar de não-articuladas na Constituição, extraem-se do próprio texto constitucional, por se relacionarem com princípios fundantes da ordem constitucional.

Ou, no dizer de STRECK,

 

“Além dos limites formais/explícitos (...) há aqueles que decorrem da sistematicidade da Carta Política. Tais vedações – implícitas – são limitações de reforma produzidas pela própria estrutura do discurso pelo qual se expressa a Constituição. São aquelas que se originam dos paradigmas adotados pelo próprio sistema jurídico e que definem, com alguma clareza, quais as normas que a ele pertençam ou possam pertencer”.[119]

 

De outro modo, é possível falar que as limitações implícitas são disposições intangíveis de uma Constituição, aquelas que servem para garantir determinados valores fundamentais da Constituição, que não devem estar necessariamente expressas ou em instituições concretas, pois vigem como implícitas, imanentes ou inerentes à Constituição. A proibição de reforma produz-se a partir do “espírito” ou telos da Constituição, sem uma proclamação expressa em uma proposição jurídico-constitucional.[120]

 

Em suma, as limitações implícitas ao poder de reforma existem para preservar a estrutura fundante e a relação entre os princípios que balizam uma Constituição, evitando-se a desnaturação de seu texto.

 

SCHMITT, ao reconhecer o caráter político do poder constituinte e distinguindo-o do legislador constituinte, instituído pela Constituição, introduz a noção de limites materiais implícitos à reforma da Constituição, visto que a modificação não se confunde com a supressão da Constituição. A manifestação do constituinte originário não pode ser modificada pelo legislador instituído com a competência para reformar a Constituição, pois lhe falta a autoridade (força política) do poder instituinte para modificar as decisões políticas fundamentais assentadas na Lei Maior.[121]

 

O entendimento de que a dificuldade em estabelecer quais seriam os limites materiais implícitos de reforma implica a inexistência desses, como bem observa CANOTILHO, é algo que não se pode aceitar:

 

“Para esta doutrina, os limites materiais seriam apenas os expressamente previstos no texto constitucional; só os limites textuais expressos seriam autênticos limites de revisão. Embora se possa admitir que esta doutrina tem ainda a seu favor a presunção de modificabilidade de normas anteriores por normas posteriores do mesmo grau, não devem minimizar-se os resultados a que ela conduzirá quando levada até às últimas conseqüências. As constituições que não previssem limites textuais expressos transformar-se-iam em meras leis provisórias, em constituições em branco (Blanko-Verfassung), totalmente subordinadas à discricionariedade do poder de revisão. Mas, a aceitarem-se limites imanentes deduzidos a partir do ‘telos’ constitucional, então terá de exigir-se que esses limites não sejam meros postulados, mas autênticas imposições da Constituição, verdadeiros limites impostos por ‘vontade da Constituição’ (Wille der Verfassung)”.[122]

 

A lição se aplica para as constituições que apresentam limites materiais expressos, isto é, também nessas não há como afastar a existência de limites materiais implícitos. Um exemplo bem elucidará o ponto. A Constituição de 1988 estabelece, expressamente, como imutável a forma federativa do Estado (artigo 60, § 4º, inc. I). Conforme o artigo 1º da Carta Magna, a federação é composta “pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”. Ninguém tem dúvida de que o princípio da federação não se limita ao disposto no artigo primeiro antes referido, mas que se espraia abrangendo todos os dispositivos que visam a garantir a essência do federalismo reconhecido como cláusula imutável. Sendo a auto-organização e a autonomia municipal (artigos 29 e 30), entre outros, elementos essenciais para a caracterização da Federação, inquestionável que tais princípios constituem cláusulas pétreas, mesmo que não diretamente arrolados no catálogo das cláusulas imutáveis da Constituição. Logo, qualquer modificação, via reforma constitucional, que suprima a auto-organização e autonomia dos Municípios, implicará mutilação do princípio da federação, pois haverá alteração de elemento que lhe é fundamental.

 

Diante do que já foi dito sobre os limites materiais implícitos à reforma de uma Constituição, pode-se concluir que os mesmos só podem ser considerados e visualizados a partir de uma ordem constitucional determinada.

 

Seria impossível tentar delimitar quais são os limites tácitos de reforma da Constituição de uma maneira abstrata, pois sempre serão variáveis, já que devem estar de acordo com os princípios fundamentais que cada normativa constitucional consagrar. Identificadas as vedações implícitas perante uma Constituição, ficam essas erigidas no mesmo patamar dos limites materiais expressos, uma vez que também preservam a ordem constitucional de um desvirtuamento que implique ruptura.[123]

 

Dentro dessa ótica vinculativa, com os olhos postos na Constituição de 1988, serão apontados limites materiais implícitos que podem ser extraídos de nosso ordenamento constitucional positivo.

 

Desde logo, em razão de lição[124] multicitada pela doutrina brasileira, que inclui os direitos fundamentais entre os limites materiais implícitos à reforma da Constituição, cumpre consignar que, atualmente, tal não se justifica, pois esses, na sistemática da Carta Política de 1988, são objeto de cláusula pétrea expressa – artigo 60, § 4º, inc. IV.

 

Ante a ausência de previsão de possibilidade de reforma total[125] da Constituição, é der ser excluída a hipótese. Isso porque implicaria o reconhecimento de ter o Poder Reformador capacidade equivalente ao Poder Constituinte que o instituiu, quando se sabe que tal não ocorre, visto ser o poder de reforma subordinado e limitado. Além da reforma total, há limitação implícita de reforma em relação a princípios fundamentais que norteiam a Constituição, cuja supressão ou modificação poderiam alterar ou destruir a identidade da ordem constitucional.[126]

 

É de ser consignada a percuciente observação de SARLET, no sentido de que, havendo a efetiva aplicação do princípio da inalterabilidade da identidade da Constituição,

 

“até mesmo a existência de limites expressos parece dispensável, já que os princípios e direitos fundamentais, assim como as decisões essenciais sobre a forma de Estado e de governo fatalmente não poderiam ser objeto de abolição ou esvaziamento”.[127]

 

Os princípios fundamentais que estão protegidos pelas limitações implícitas são aqueles – que juntamente com os que são objeto de cláusula de intangibilidade expressa - funcionam como fio condutor do sistema constitucional, estruturando a Constituição no seu todo. Vale dizer, representam o núcleo político da Carta Magna, consubstanciando as diretrizes de efetivação plena do Estado Democrático de Direito. Para o exame da matéria referente ao conteúdo do núcleo político essencial da Constituição, remete-se ao capítulo I, tópico

 

1.1.2, local em que foi a questão delineada.

 

Tradicionalmente, inclui-se a titularidade do Poder Constituinte e do Poder Reformador entre os limites tácitos à reforma. A razão para tanto é evitar a flexibilização da titularidade do Poder Constituinte Originário e do Poder Reformador, pois, isso ocorrendo, a rigidez e a soberania da Constituição restariam enfraquecidas ou, até, destruídas. E tanto uma como a outra são essenciais para a estabilidade da Carta Política.

 

A possibilidade de alteração ou supressão dos limites materiais expressos à reforma, via modificação constitucional pelo Poder Reformador, deve ser analisada à luz das limitações materiais implícitas, eis que ausente declaração manifesta a respeito na Constituição.

 

A pretensão deve ser rechaçada. As limitações expressas à reforma da Constituição decorrem diretamente do Poder Constituinte que as estabeleceu, soberanamente e por ato de vontade.

 

Admitir-se que o Poder Reformador, por natureza subordinado e limitado, pode alterar condições tidas como intangíveis pelo Poder Constituinte Originário implica colocar o Poder Reformador no mesmo nível do Poder Constituinte. E dessa equiparação decorreria um reconhecimento para que o Poder de Reforma pudesse fazer uma alteração total da Constituição, o que, por sua vez, poderia implicar o desnaturamento ou liquidação da obra do Poder Constituinte.

 

E, como é sabido, não há equiparação entre o Constituinte Originário e o Poder Reformador, pois este é, por natureza, subordinado àquele, não tendo competência para suprimir ou alterar aquilo que foi estabelecido como imodificável pelo seu superior e condicionante na obra de sua criação.

 

A compreensão da impossibilidade de alteração ou supressão dos limites materiais expressos, por intermédio de reforma, fica facilitada se for introduzida a idéia de cláusulas superconstitucionais, que é desenvolvida por VIEIRA:

 

“Por superconstitucionais entenda-se um conjunto de princípios normativos fundamentais que – reconhecidos explícita ou implicitamente pela Constituição - se encontram em posição hierarquicamente superior em relação aos demais preceitos da Constituição; esta hierarquia constitucional, contestada pela maioria da doutrina, pode ser comprovada sob a perspectiva mais comum aos positivistas, que se refere à impossibilidade de se reformar as chamadas cláusulas pétreas pelos procedimentos de reforma ordinária da Constituição, e da possibilidade de se controlar a constitucionalidade de emendas à Constituição em face destas cláusulas; também de uma perspectiva mais material da Constituição, através da qual se propugna que as demais cláusulas constitucionais devem ser interpretadas em conformidade com os princípios constitucionais (...), particularmente aqueles protegidos por cláusulas superconstitucionais; uma terceira hipótese, mais radical, é no sentido de que se poderia propor o controle da constitucionalidade da própria Constituição, não só de emendas, em face destes princípios fundamentais”.[128]

 

Existindo impeditivo de deliberação sobre proposta de emenda “tendente a abolir” os limites materiais explícitos de reforma, caracterizam-se esses como cláusulas superconstitucionais que estão em posição hierarquicamente superior a qualquer processo de reforma constitucional, pois as cláusulas pétreas existem para aumentar a proteção de princípios fundamentais da Constituição.

 

CANOTILHO também entende que não há possibilidade de reforma para as “normas de revisão”, as quais qualifica como normas superconstitucionais, já que “atestariam a superioridade do legislador constituinte e a sua violação, mesmo pelo legislador de revisão, deverá ser considerada como incidindo sobre a própria garantia da Constituição”.[129]

 

Ainda em relação à imodificabilidade das cláusulas pétreas expressas, há que se enfrentar o entendimento de ser isso possível pela possibilidade da dupla revisão, que encontra adeptos na doutrina brasileira.[130] Tal posição é defendida por aqueles que sustentam a relatividade dos limites materiais à reforma da Constituição.

 

É reconhecida a existência de limitação material ao poder de reforma, inclusive sendo entendido que a limitação é necessária. Todavia, não pode ocorrer uma estagnação evolutiva que impeça futuras modificações que se façam necessárias. Em tais circunstâncias, o que se exige é um duplo processo, em tempos sucessivos. Isto é, num primeiro momento, remove-se o limite de revisão. Posteriormente, substitui-se a norma constitucional visada e que era assegurada pela cláusula de intangibilidade, suprimida no primeiro processo. Para o afastamento de um limite material de reforma, então, o que se exige é o agravamento do processo de reformatório.

 

A tese não pode ser aceita, pois, como já referido acima, atenta-se contra a própria garantia de imutabilidade da Constituição. O certo é que a alteração/supressão dos limites de reforma através de reforma é indicador de prática de fraude à Constituição ou de ruptura constitucional.[131]

 

Após a realização da consulta plebiscitária, efetuada em abril de 1993, em que o titular do Poder Constituinte – o povo - manifestou-se de forma direta em favor da forma republicana de governo e do sistema presidencialista, pode-se dizer que a República e o Presidencialismo inserem-se entre os limites implícitos de reforma.[132]

 

Não tendo o Constituinte de 1987/1988 incluído tais decisões fundamentais entre as cláusulas de intangibilidade expressas, mas estabelecendo a realização de consulta popular a respeito, forçoso concluir que preferiu deixar a decisão para o titular do Poder Constituinte. Ocorrida a manifestação prevista, a forma e o sistema de governo deixaram de ser questões disponíveis ao Poder Reformador.

 

Delineado o contorno das vedações implícitas da reforma constitucional, cumpre verificar qual o âmbito da proteção outorgada pelas limitações materiais reformatórias da Constituição.

 

2.2.2.3 Alcance da proteção oriunda dos limites materiais à reforma constitucional

 

As vedações expressas (cláusulas pétreas), previstas no artigo 60, § 4º, incisos I a IV, da Constituição e, também, os limites implícitos conferem proteção contra a atividade reformadora do texto constitucional. Funcionam como verdadeiras barreiras às intenções reformistas, salvaguardando os valores fundamentais da Constituição, pois

 

“O processo de mudança constitucional nada tem a ver com as conveniências dos políticos – os partidos ou chefe do governo – para se soltar dos freios da lei suprema, visto que a Constituição, enquanto produto de um jogo de forças que se estabeleceram na Assembléia Nacional Constituinte, tem uma sistematicidade e uma materialidade que não podem ser ignoradas. A Constituição, em seu sentido amplo, não é uma máscara do jogo do poder que se possa abandonar quando se chega lá”.[133]

 

A grande questão é visualizar até que ponto as limitações materiais impedem qualquer modificação na Constituição. E isso tem grande relevância – não para as situações de puro casuísmo político, em que modificações são pretendidas para atendimento do governo de plantão ou de algum interesse específico menos sério – mas para aquelas circunstâncias em que modificações são necessárias para a adequação da norma à realidade social que avançou. Eis que tais instrumentos de garantia da Carta Política não podem servir de entrave para o seu aperfeiçoamento. É necessário chegar a uma posição intermediária: de mantença da estabilidade com não-impedimento de atualização do texto constitucional.

 

Para tal, há que se entender a finalidade da imposição de limites à reforma como a intenção de manter o núcleo da Constituição. E isso não quer dizer a manutenção de dispositivo literal da Carta Magna, mas, sim, dos princípios centrais (nucleares) que permeiam os dispositivos tidos como imutáveis e, também, os princípios fundantes da ordem constitucional instituída.[134]

Não é possível estabelecer critérios prévios de verificação, sendo necessária uma aferição tópica, para apuração da adequação da emenda ao caso concreto. Até porque, em determinadas hipóteses, a modificação de um preceito que, aparentemente, não tem conteúdo principiológico ou fundamental, pode ser a expressão da expansão de garantia de um princípio, e sua alteração ou eliminação, portanto, estar vedada.

 

Por fim, é de ressaltar-se que a redação do § 4º, do artigo 60 assegura, em relação às limitações expressas, a sua intangibilidade, tanto em relação a sua supressão como, também, contra as emendas “tendentes a abolir” a limitação. E aqui, também, é impossível fixar aprioristicamente quando uma disposição tende a abolir uma disposição de fundo essencial, a sua averiguação há de ser diante da situação concreta.

 

Não poderia deixar-se de anotar que, para fins de controle de constitucionalidade, há uma equiparação entre emenda supressiva de dispositivo e aquela que veicula uma tendência abolidora de preceito assegurado por cláusula pétrea explícita, isso porque ambas as hipóteses são proibidas expressamente pela Constituição.

 

3 O velho e o novo paradigma na questão da infância e adolescência - a hermenêutica como meio de superação

 

O trato jurídico da questão da infância e juventude – para ficarmos no campo específico do Direito, pois a matéria, inegavelmente, extrapola esse âmbito - pode ser estudado sob o prisma da crise paradigmática. De um lado, temos o que vai convencionalmente ser chamado de velho paradigma e representa toda a produção legislativa e seu suporte teórico a respeito da “menoridade”, que se estende até a promulgação da Constituição de 1988. E, a partir daí, surge o novo paradigma, quando ocorre uma (r)evolução conceitual e normativa no tratamento dos interesses das crianças e adolescentes.

 

A utilização da teoria dos paradigmas bem se amolda à questão, pois, a grosso modo, até o advento da vigente Carta Política, havia uma certeza jurídica baseada no binômio proteção-repressão da infância “desajustada” aos padrões estabelecidos pela elite social. Introduziu-se, por intermédio do texto constitucional, uma nova realidade jurídica democrática e emancipadora, em conformidade com o Estado Democrático de Direito – que precisa ser materialmente efetivada – em que deixa de existir o “menor desajustado” e passa a merecer atenção legal a infância e juventude como um todo, independentemente de qualquer condição social ou adjetivação qualificadora.

 

A ruptura que ocorreu desestabilizou o saber instituído, pois alterou os referenciais básicos institucionalizados e arraigados no senso comum da sociedade e, em especial, dos operadores jurídicos. E a não-aceitação da mudança de modelo por operadores do Direito e parte da sociedade faz com que se instaure uma crise paradigmática, em que a resistência às mudanças se faz, também, pela tentativa de modificação/supressão de conquistas alcançadas, como, por exemplo, a constitucionalização da idade fixadora da inimputabilidade penal.

 

CARVALHO bem explicita a ocorrência de uma crise paradigmática, como a que se passa no plano da questão jurídica da infância e juventude:

 

“Ao estar consolidado no universo da comunidade, o paradigma passa a ser irrefletidamente repassado aos demais pesquisadores por meio de um específico modo de reprodução do saber. (...) Todavia, a partir do momento em que a comunidade científica identifica objetos estranhos que não deveriam ali estar sendo estudados ou que suas respostas não correspondem à expectativa do grupo, estamos diante de uma ‘crise paradigmática’. A crise se processa no interior do universo de análise pré-constituído, pois se percebe que elementos que deveriam ser objeto de pesquisa estão fora da lupa deste parâmetro oficial de realização de ciência que não mais consegue responder satisfatoriamente aos interesses da comunidade. Há crise paradigmática neste momento intermediário em que o paradigma vigente não consensualiza mais a comunidade científica e o novo modelo instrumental ainda não logrou plena aceitação, ou não atingiu processo aceitável de maturidade”.[135]

 

Dentro dessa perspectiva de choque de modelos, procurar-se-á demonstrar a evolução do velho paradigma no Direito brasileiro até se chegar à doutrina da situação irregular, que é a que se encontra mais arraigada no senso comum da atualidade.

 

Após, em linhas gerais, far-se-á uma explanação sobre a doutrina da proteção integral, que representa o novo paradigma e foi plasmada na Constituição, na esteira das idéias que originaram a Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os direitos da criança.

 

Fixados os pontos de distinção entre os dois modelos, será visto o modo de superação do antigo paradigma, que só pode ocorrer pela via hermenêutica, por intermédio da desconstrução do velho modelo que ainda domina o imaginário simbólico dos juristas e construção da nova realidade a ser desvelada a partir da Constituição, que deve ser interpretada de acordo com os princípios norteadores do Estado Democrático de Direito.

 

3.1 O controle sociopenal da infância e juventude - anotações sobre a trajetória do velho paradigma no Brasil

 

A compreensão do que foi/é o velho paradigma jurídico[136] no trato da questão do “menor” fica mais facilmente compreensível com uma mirada histórica, em especial na legislação menorista, mesmo que restrita e pontual, como será a realizada. Isso porque, do trato conferido à infância no decorrer do tempo – especialmente em relação às crianças das classes menos favorecidas – será possível observar que sempre houve um tratamento legal de “objeto de direito” e não de sujeito de direito, como se passou a reconhecer a partir do advento da Constituição de 1988.

 

A verificação demonstrará que, apesar do discurso da plena responsabilidade dos adolescentes – e até de crianças[137] - em decorrência do livre acesso a informações no mundo (pós)moderno a pretensão de modificação da idade penal mínima não representa nenhum avanço ou adequação à realidade, não passando do mais puro retrocesso institucional e político. E apresenta-se de modo tão escancarado, que até a retórica discursiva é a mesma.[138]

 

3.1.1 Tradição – uma idéia a ser compreendida e considerada

 

O entendimento ou o visualizar de que a infância, como um período especial de formação do ser humano, merece um tratamento diferenciado – inclusive do sistema jurídico - é algo relativamente recente na história do mundo ocidental. E, talvez em decorrência disso a literatura sobre o tratamento penal da criança no transcorrer da história seja escassa, enquanto em relação ao jovem a pesquisa no campo sociojurídico-penal é mais abundante.

 

Conforme outro entendimento, sustentado por MÉNDEZ, a falta bibliográfica histórica em relação à criança explica-se pela confusão na utilização dos termos jovem ou menor como representativos de mesma categoria, sendo possível, então, concluir que os estudos sobre jovens e sistema penal englobam, também, o trato relativo às crianças.[139]

 

Tentando situar o surgimento da infância como categoria que passa a ter relevância na evolução da humanidade, adota-se a perspectiva histórica, que entende o seu surgimento como “resultado da complexa construção social que responde tanto a condicionamentos de caráter estrutural quanto a sucessivas revoluções no plano dos sentimentos”.[140]

 

Nessa linha, aceita-se a tese sustentada por ARIÈS, em profundo estudo histórico realizado sobre a infância na sociedade tradicional (Idade Média), de que, até mais para o final do século XVII, não existia a compreensão da infância – ou do sentimento da infância - como é observado hoje. A criança, superada a fase inicial de dependência física inafastável, adentrava diretamente para o mundo adulto, onde lhe eram passados valores, conhecimentos, e ocorria a sua socialização.[141] O trabalho tem forte fundamentação no exame das artes do período medievo, em particular na pintura, em que o pesquisador procurou observar a evolução do tratamento destinado às crianças para chegar as suas conclusões, após cruzamento com outras fontes de pesquisa.

 

Segundo ARIÈS, somente a partir do século XVII é que se iniciou um processo de mudança da situação da infância, quando a escola passa a substituir a aprendizagem como meio de educação e a criança deixa de ser misturada com os adultos e de “aprender a vida diretamente”, passando a ser isolada – no colégio – antes de ser liberada para o mundo. Esse é o início do processo de escolarização, que anda junto com o processo de enclausuramento das crianças.[142]

 

A partir disso, inicia-se o processo de criação da nova categoria, de acordo com MÉNDEZ:

 

“Nesse processo de descoberta-invenção da infância, a vergonha e a ordem constituem dois sentimentos de caráter contrapostos que ajudam a modelar um sujeito a quem a escola dará forma definitiva. A escola, organizada sob três princípios fundamentais, que são a vigilância permanente, a obrigação de denunciar e a imposição de penas corporais, cumprirá, juntamente com a família, a dupla tarefa de prolongar o período da infância, arrancando a criança do mundo dos adultos. É o nascimento de uma nova categoria”.[143]

 

Outra questão significativa para o evidenciar histórico da afirmação da infância como uma categoria diferenciada do adulto é a que se refere ao fim da prática do infanticídio. Provavelmente, em uma continuidade histórica, ainda que não-declarada e bem conectada de forma expressa com a antiga Roma - onde as crianças recém-nascidas eram expostas nas portas do palácio imperial e as não-eleitas eram mortas - por longo tempo, na Idade Média, o infanticídio teve uma representatividade quantitativa importante e, ainda que proibido, era tolerado. E isso persistiu até o final do século XVII.[144]

 

Do exposto, pode-se concluir: a) a categoria da infância surgiu quando começou a ocorrer a separação da criança do mundo adulto, com a atribuição da tarefa da educação à escola; b) junto com a escolarização da criança, começou a ocorrer a preservação da vida infantil; c) a descoberta da criança produziu, também, os sentimentos de ordem e vergonha.

 

E ao descobrir da infância, com as características de sua separação do mundo adulto, escolarização através da segregação e com métodos rígidos de disciplina, inclusive de castigos corporais, mas com preservação de sua vida,  denominar-se-á tradição.

Pelo pensar através da tradição, chega-se ao conceito de criança corrompida, isto é, a criança que não se amolda à educação escolar ou que dela não faz parte.

 

Procurou-se fixar o momento inicial da formação da categoria infância e os métodos utilizados para a sua educação a partir daí, calcados na disciplina rígida e no enclausuramento/segregação, por se ter a certeza de que o imaginário simbólico do senso comum da sociedade está povoado de sentidos que advêm da tradição, obviamente que sofisticados pela evolução dos costumes, do progresso científico e surgimento de novas teorias de preservação e valorização da infância.

 

A tradição, de uma maneira quase atávica, ganha força no imaginário simbólico quando se trata de solver problemas que se apresentam próximos, mas as suas causas/conseqüências – ou a materialização/visualização das mesmas – mostram-se de forma despersonalizada. Vale dizer, quando a sociedade se sente acuada pela violência recrudescente de uma infância e adolescência marginalizada[145] - que não tem o rosto próximo de suas crianças e adolescentes ou de seus “iguais” – intuitivamente soluciona o problema com base na tradição. Isto é, pensa na educação que deve ser dada ao “inadequado social” para que venha a se tornar um igual, mas que deverá ser feita de forma segregada, até que ocorra o aprendizado e possa aquele voltar ao convívio social. A questão do sentimento e da afetividade, de extrema importância no trato com a infância, por se apresentar o “desviante” de forma despersonalizada e de certa forma distante, fica reservada somente para a infância e juventude próxima, ou seja, do núcleo familiar-afetivo ou dos iguais.

 

Num raciocínio generalizante, pode-se afirmar que até o advento da Constituição de 1988 toda a legislação menorista tinha na sua base uma essência de tradição, já que sempre teve por objeto o comportamento da infância e juventude anormal (corrompida), operando com a dicotomia normal/anormal. Interessante observar, ainda, que o controle social, mesmo que apresentado com um discurso de proteção da “menoridade”, antes de constituir um direito, é resultado de uma imposição.

 

3.1.2 A evolução legislativa

 

Estabelecida a premissa básica do velho paradigma – pensar nos moldes da tradição – passa-se a uma breve recapitulação da evolução da legislação menorista brasileira.

 

Do descobrimento do Brasil até 1830, a regulação da conduta penal “dos menores” dava-se pelo disposto nas Ordenações Filipinas, que tinham o mesmo espírito das demais legislações da época, operando com a possibilidade de diminuição da pena a ser imposta no caso de cometimento de delito por autor com idade entre dezessete e vinte anos e vedando a aplicação de pena capital para os menores de dezessete anos.[146]

 

O certo é que, na ausência de uma maior compreensão da categoria infância, até 1639, nunca houve manifestação de interesse oficial em favor da proteção das crianças, conforme informa MONCORVO FILHO:

 

“O anno de 1693 marca a primeira demonstração official pela protecção directa á infancia. Refere-se ella ao amparo das creancinhas desherdadas da sorte no Rio de Janeiro.

...

Abandonados ao principio os nossos expóstos á caridade do povo, que os recebia e criava em suas casas, fazendo delles muitas vezes seus escravos; expóstos outras vezes nas praças e ruas á ferocidade dos animaes e ás intemperies do tempo, sem que ainda as autoridades cuidassem delles; só mereceram a attenção de El Rei em 1693 que, por carta regia de 12 de Dezembro do mesmo anno ordenou que fôssem alimentadas pelos bens do Conselho”.[147]

 

No Brasil, a preocupação específica em tratar da questão da infância e juventude faz-se presente a partir da metade do século XIX, que se caracterizou como um período histórico bastante atribulado da vida nacional. Numa perspectiva conjuntural, foi esse período marcado pelo grande crescimento das cidades maiores, com o fim da escravatura, surgindo a força de trabalho livre que iria prover de mão-de-obra a industrialização emergente. Paralelamente e em decorrência disso, dá-se um ascendente empobrecimento de significativo contigente da população, fazendo aflorar o problema da “delinqüência de menores”, vagabundagem e violência. E, desde logo, esses problemas foram associados com a pobreza.

 

O Código Criminal do Império (1830), em seu artigo 10, estabelece que os menores de catorze anos “não se julgarão criminosos”[148], acrescentando o artigo 13: “se se provar que os menores de quatorze annos, que tiverem commetido crimes, obraram com discernimento, deverão ser recolhidos ás Casas de Correção pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda á idade de dezasete annos”. Entre catorze e dezessete anos, estavam os “menores” sujeitos à pena de cumplicidade, ou seja, dois terços do que cabia ao adulto, e os maiores de dezessete e menores de vinte e um anos eram beneficiados com a atenuante da menoridade.

 

O Código Penal da República, de 1890, guardava alguma similitude com o anterior, reconhecia a inimputabilidade absoluta dos menores de nove anos incompletos e dos maiores de nove a catorze anos, desde que agissem sem discernimento. Para aqueles que atuassem conscientemente, determinava o recolhimento em estabelecimentos disciplinares industriais, pelo período que fixasse o juiz, não podendo ultrapassar, entretanto, o limite da idade de dezessete anos. Estabelecia, ainda, para os infratores entre dezessete e vinte e um anos, a atenuação obrigatória da pena a ser imposta.

 

O grande diferencial da nova lei penal foi o de incorporar a pedagogia do trabalho coato como meio de “regeneração” dos “menores” infratores, pois a segregação não seria mais feita em casa de correção, de caráter puramente disciplinar. A internação deveria ser cumprida em uma instituição de caráter disciplinar industrial.

 

Foi a atualização da legislação ao novo espírito que reconheceu a legitimidade da intervenção estatal direta para que o Estado atendesse aos seus fins. E, dentro dessa ótica, deveria o Estado promover, através de estabelecimentos correcionais de labor, o encaminhamento ao trabalho honesto, capaz de assegurar o futuro, e, também, servir como meio de preservar a corrupção da infância e adolescência, além de proteger a sociedade dos maus elementos.[149]

 

Cumpre ressaltar que, na ausência de “Casa de Correção” (Código Penal de 1830) ou de “Instituição disciplinar industrial” (Código Penal de 1890), os “menores” sempre foram jogados às prisões de adultos, com todas as conseqüências decorrentes da inserção no sistema penitenciário.

 

Uma palavra impõe-se a respeito da condição de aplicabilidade de pena aos “menores” por força da teoria do discernimento. Como era de se esperar, tal circunstância gerava grande polêmica, pois alto era o grau de indeterminação do conceito de discernimento. A definição mais comum era de que “o discernimento é aquela madureza de juízo, que coloca o indivíduo em posição de apreciar com retidão e critério as suas próprias ações”.[150]

 

Como se vê, a tentativa que se fazia de definir um conteúdo para discernimento também apresentava um grau enorme de subjetividade e indeterminação, podendo-se dizer que, em verdade, nada esclarecia, pois só remetia para a subjetividade mais profunda. O que é, objetivamente, a “madureza de juízo” referida? Qual o conteúdo da “posição” permissora da apreciação reta e criteriosa das próprias ações?

 

Em suma, pode-se afirmar que a teoria do discernimento[151] não apresentava critérios claros para a sua densificação, pois, como se vê da definição então correntia para discernimento, era a mesma vazia de qualquer conteúdo a priori, devendo o conceito ser apurado diante de cada fato concreto, cabendo à jurisprudência estabelecer se o “menor” tinha obrado com discernimento.[152]

 

A partir da iniciativa norte-americana, mais precisamente do Estado de Illinois, em 1899, onde foi criado o primeiro tribunal de menores, a idéia ganhou a Europa, onde praticamente todos os países, no período de 1905 a 1921, criaram seus tribunais de menores.

 

No Brasil, nas duas primeiras décadas do século XX, fortes eram as críticas pela não-diferenciação no tratamento dado às crianças e adultos delinqüentes. Procurava-se uma solução que coibisse o delito e, ao mesmo tempo, evitasse que o contato entre o adulto criminoso e o “menor” inserisse este definitivamente no mundo do crime. Ou, em outras palavras, ocorria uma ambigüidade: por um lado, a infância e adolescência em estado de vadiagem e criminalidade, geravam medo e repressão, e, por outro, isso suscitava preocupação – pelo menos discursivamente – em mitigar suas carências, a fim de evitar que viessem os “menores” a ingressar na delinqüência.

 

Desde então, essa dubiedade entre assistência e punição – pão e palmatória – passa a impregnar as soluções legislativas para as questões da “menoridade”. Nesse contexto, a idéia da criação dos tribunais de menores e de um código específico para tratar da infância e juventude anormal - quer seja pela delinqüência ou por estar em situação de desvalia - ganha corpo.

 

Em 1927, é criado o primeiro Código de Menores do Brasil – Decreto n.º 17.943, de 12.10.1927 – que ficou conhecido como o Código Mello Matos, em homenagem ao seu elaborador, José Cândido de Albuquerque de Mello Matos, que veio a ser o primeiro Juiz de Menores do Brasil.

 

O primeiro Código de Menores sistematiza a ação da tutela e da coerção – com fins de reeducação – que o Estado brasileiro passa a adotar em relação à menoridade. Ou seja, em síntese, pode-se dizer que os “menores” foram classificados/definidos enquanto delinqüentes (efeito) e abandonados (causa).

 

A primeira legislação codificada não vê a infância e a juventude como sujeitos de(o) direito, pois tem nítido caráter tutelar, criando a figura do Juiz de Menores, ao qual cabe – em nome do Estado – a tutela e assistência dos “menores”. Ao Juizado de Menores são atribuídas múltiplas funções, pois açambarca a área penal, civil e trabalhista, além de exercer funções administrativas em relação à infância e juventude. A nota básica do Código Mello Matos é a regulação do “menor” vadio (corrompido) e do “menor” trabalhador, que, via de regra, tinham/tem origem nas camadas mais pobres da população.

 

Ainda que se possa ver o primeiro Código de Menores como um avanço[153] em relação à situação anterior, pois passa a menoridade a ter uma atenção especial e ordenada, em que se manifesta uma preocupação de consideração com o estado físico, moral e mental do “menor”, bem como com a situação social, moral e econômica de sua família (pais), continua-se operando com a categorização estigmatizante de normal/anormal. Propõe-se a intervenção estatal, de forma mais organizada, visando a um atuar mais incisivo, pois o problema do “menor” é percebido em escala crescente de periculosidade, face ao aumento do abandono e delinqüência que se apresentam.

 

Após o Código de Mello Matos, sucedem-se vários textos legislativos de significância para a menoridade. Pode-se citar, já no Estado Novo – período de 1937 a 1945 – a ampliação da idade da imputabilidade penal para dezoito anos com a vigência do Código Penal de 1940. O Decreto-lei n.º 2.024, de 17.02.1940, que “fixa as bases de organização da proteção à maternidade, à infância e à adolescência em todo país”. É criado, também, o Departamento Nacional da Criança (DNC), diretamente vinculado ao gabinete do ministro do Ministério da Educação e Saúde.

 

Em 1941, por intermédio do Decreto-lei n.º 3.799, subordinado ao Ministério da Justiça e ao Juizado de Menores do Distrito Federal, é instituído o Serviço de Assistência a Menores (SAM). Tal órgão funciona sem qualquer vinculação com o Departamento Nacional da Criança e adota uma política de criação de instituições totais. Segundo PEREIRA JÚNIOR,

 

“(...) O SAM segue a lógica do sistema penitenciário adulto. Parte da premissa, apontada no Código de Mello Matos, de que o ‘menor’ (delinquente ou abandonado) necessita passar por um processo de ressocialização, pautado na coerção, para que as distorções fossem corrigidas, possibilitando sua reintegração na sociedade. Corresponde, portanto, a uma instrumentalização da máquina do Estado para cumprir as determinações penais do Código de Menores”.[154]

 

O Código Mello Matos foi objeto de revisão, visando a sua atualização, com o novo Código Penal (1940), sendo procedida essa revisão através do Decreto-lei n.º 6.026/43. As modificações introduzidas pautaram-se “na noção de periculosidade, abandonando a categoria ‘delinquente’ para utilizar a de ‘infrator’, o que vem a cristalizar de vez a visão da menoridade como caso de polícia”.[155]

 

O Estado Novo, também na área da infância e juventude, teve uma política baseada no autoritarismo, assistencialismo, clientelismo e paternalismo que o caracterizaram. Isso não implicou uma mudança central do conteúdo da política instaurada com o Código de Menores de 1927. Houve, isso sim, uma acomodação do Código ao que determinou o Código Penal de 1940 como instituidor de uma nova ordem penal. O certo é que, na essência, nada mudou, pois a menoridade continuou sendo pensada e vista como potencialmente perigosa à sociedade, a qual precisava defender-se ou ser protegida contra a ameaça.

 

Depois do golpe militar de 1964, surgiu uma nova proposta para a infância e juventude, a Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM), criada pela Lei n.º 4.513, de 1º.12.1964. A visão do “menor” passava a ter outro eixo, deixava de ser centrada no perigo social, assumindo o seu lugar a perspectiva da criança carente e abandonada. O assistencialismo ganha prioridade em relação à punição. Há o reforço da ótica de que a anormalidade do comportamento do “menor” é decorrente de sua pauperização e desestrutura familiar, que são os problemas a merecer solução prioritária.

 

Instituiu-se um sistema centralizador e vertical de atendimento da criança e juventude, em que o órgão nacional de controle e orientação era a Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor – FUNABEM – que substituiu o SAM e deveria promover a correção de suas falhas estruturais. Tal não aconteceu, permanecendo a FUNABEM trabalhando na mesma lógica carcerária que a antecedeu e baseando a sua ação no determinado pelo Código Mello Matos.

 

Nos anos setenta do século XX, o “menor” é colocado em evidência, pois o recrudescimento das desigualdades sociais originadas no modelo econômico implantado pelo regime militar acaba por fazer das ruas – pelo menos nas grandes metrópoles do país – um espaço alternativo de sobrevivência da infância e adolescência, bem como para adultos excluídos do sistema. Em decorrência disso, possível assegurar que, de forma definitiva, cristaliza-se no senso comum a associação entre pobreza e violência/criminalidade urbana.

Dentro desse quadro, a discussão sobre o problema do “menor” vai ganhando contornos totalmente estigmatizantes, pois a procura é de uma solução para “o problema” e não para a infância e juventude. Encaminha-se a questão para a adoção da doutrina da situação irregular, que impregna praticamente todas as legislações menoristas da América Latina de então.

 

Em 1979, entra em vigor o novo Código de Menores – Lei n.º 6.697, de 10.10.1979, que se funda na chamada doutrina da situação irregular.

 

Em linhas gerais, conforme MÉNDEZ, todas as legislações que adotam a doutrina da situação irregular apresentam as seguintes características centrais:

 

a) Essas leis pressupõem a existência de profunda divisão no interior da categoria infância: crianças-adolescentes e menores (entendendo-se pelos últimos o universo dos excluídos da escola, da família, da saúde etc.). Como conseqüência, essas leis, que são exclusivamente para menores, tendem objetivamente a consolidar as divisões aludidas dentro do universo da infância;

b) Centralização do poder de decisão na figura do juiz de menores com competência onímoda e discricional;

c) Judicialização dos problemas vinculados à infância em situação de risco, com clara tendência de patologizar situações de origem estrutural;

d) Impunidade (com base na arbitrariedade normativamente reconhecida) para tratamento dos conflitos de natureza penal. Essa impunidade se traduz na possibilidade de se declarar juridicamente irrelevante os delitos graves cometidos por adolescentes pertencentes às classes sociais média e alta;

e) Criminalização da pobreza, dispondo de internações que constituem verdadeiras privações de liberdade, por motivos vinculados à mera falta ou carência de recursos materiais;

f) Consideração da infância, na melhor das hipóteses, como objeto de proteção;

g) Negação explícita e sistemática dos princípios básicos e elementares do direito até mesmo dos contemplados na própria Constituição Nacional como direito de todos os habitantes; e

h) Construção sistemática da semântica eufemística que condiciona o funcionamento do sistema à não-verificação empírica de suas conseqüências reais”.[156]

 

Pelas notas básicas da doutrina da situação irregular, verifica-se que a mesma está embebida na idéia de tradição, mantendo a operação do sistema na dicotomia normal (infância fora de situação irregular)/anormal (“menor” em situação irregular).

 

O arraigamento dessa discriminação estigmatizante é grande, sendo, de regra, chamado de “menor” a infância ou adolescência em conflito com a lei ou marginalizada do sistema, enquanto a denominação criança é referencial dos inseridos no sistema.

 

No velho paradigma, não se vê a infância como sujeito de direitos. É, isso sim, o objeto do direito. Reconhecida a sua situação irregular – cuja caracterização é ampla, abrangendo as categorias de material e/ou moralmente abandonado, nada deixando de ser potencialmente irregular – oportuniza-se uma solução individual, a ser decidida pelo juiz, que age discricionariamente como “um bom pai de família” à procura do melhor para seu filho!

 

O que deveria ser um sistema legal de regras aplicáveis, gerando certeza e segurança jurídica, não passa de um conjunto de recomendações/possibilidades postas à disposição do juiz para que escolha qual a melhor solução para cada caso.[157]

 

3.1.3 O novo paradigma – a doutrina da proteção integral na Constituição

 

Comumente se diz que o grande marco de mudança paradigmática da questão da infância no Brasil foi o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente. Entretanto, tal afirmação é equívoca.

A Lei n.º 8.069/1990 nada mais é do que a integração legislativa do que estabelece a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 227, que introduziu em nosso país a doutrina da proteção integral. Logo, possível afirmar que, desde a vigência da atual Carta Política, toda a legislação menorista que contrariava os princípios constitucionais fixados para a infância e juventude restou derrogada. E assim é, pois, sendo o Estado Democrático de Direito um Estado principialista, não há como subsistir normativa legal que contrarie os princípios que o presidem.[158]

 

Imperativo esse esclarecimento, ainda que para dizer o óbvio, pois é a falta de clareza ou compreensão do papel representado pela Constituição no Estado Democrático de Direito que leva a equívocos interpretativos tendentes a minimizar a efetivação do texto constitucional.

 

Durante o processo constituinte, fruto de um intenso debate que se processava no país desde os anos oitenta do século passado, predominou o entendimento de que a nova Constituição deveria incorporar os diversos aspectos de proteção da infância e adolescência que consubstanciavam diversos documentos internacionais específicos e tinham como linha básica a proteção dos direitos humanos.

 

O conteúdo do artigo 227 da Constituição é reconhecido como veiculador da síntese da doutrina da proteção integral, que restou plasmada na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada por unanimidade pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 20.11.1989.

 

A doutrina da proteção integral tem como antecedente direto a Declaração dos Direitos da Criança (1959), condensando-se em quatro documentos internacionais fundamentais: a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil (Regras de Beijing), as Regras Mínimas das Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade e as Diretrizes das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil (Diretrizes de Riad).

 

A doutrina da proteção integral, acolhida pela Carta Política de 1988, representa a verdadeira mudança de paradigma, pois implica a modificação do enfoque. Passa-se “do menor objeto de compaixão-repressão à infância-adolescência como sujeito pleno de direitos”.[159] A preocupação deixa de ser com o “menor” delinqüente-abandonado, para existir em relação a toda infância, à qual é assegurado, de forma prioritária, o exercício de seus direitos básicos e fundamentais, face à condição de ser humano em desenvolvimento.

 

Em outras palavras, a visão agora é de toda população infanto-juvenil, que deverá ter seus direitos garantidos, afastando-se o foco de segregação e repressão da doutrina da situação irregular.

 

O alvo de ação não será mais o “menor” desviante, pois não é a criança que precisa de controle e reintegração, uma vez que não se encontra irregular. A irregularidade, agora, está nas condições precárias para a sua sobrevivência e desrespeito de seus direitos fundamentais. A ordem é agir para assegurar à criança condições de uma vida digna, e para isso deverá estar voltada a ação do Estado, da família e da sociedade.

 

No campo da infração penal, não mais subsiste a ótica criminalizadora do Código de Menores. Assegura-se a existência de um procedimento para apuração de atos infracionais, em que é assegurado o amplo direito de defesa, sem uma preconcepção do “menor” como infrator potencial a ser ressocializado. Acaba o estigma e a lógica da segregação como meta. A privação de liberdade passa a ser excepcional. Em caso de ser aplicada, deve-se sempre levar em conta a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento do adolescente que vier a ser submetido a uma medida de tal espécie.

 

É dentro desse contexto de acolhimento da doutrina da proteção integral, que assegura direitos à infância e juventude e, no campo da infração penal, estabelece a apuração de eventual responsabilidade dentro de um sistema que oferece garantias processuais, que a Constituição plasmou a idade da inimputabilidade em dezoito anos.

 

Visando a demonstrar que o Brasil não se encontra em descompasso com o mundo – ao contrário do que se apregoa amiudemente – ao ter estabelecido a idade de responsabilidade penal em dezoito anos, apresenta-se um quadro comparativo com diversos países.

 

No quadro, quando foi possível a obtenção de dados, apresenta-se a idade da responsabilidade penal juvenil, isto é, a partir de que idade há apuração de infração penal cometida por adolescente. No Brasil, de acordo com o estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente, a idade da responsabilidade penal juvenil é de doze anos.

PAÍS

IDADE DA RESPONSABILIDADE PENAL JUVENIL

MAIORIDADE PENAL (IMPUTABILIDADE PENAL)

Alemanha

14

18-21*

Argentina

16

18

Arkansas/EUA

 

21

Áustria

14

19

Bélgica

16

18

Bolívia

12

16

Bulgária

14

18

Califórnia/EUA

 

21

Chile

14

18

Colômbia

12

18

Costa Rica

12

18

Dinamarca

15

18-21*

Egito

 

15

Espanha

12

18-21*

França

13

18

Grécia

13

18

Holanda

12

18

Hungria

14

18

Índia

 

15

Inglaterra

7-15

18

Itália

14

18

Paraguai

 

15

Peru

12

18

Polônia

13

17

Portugal

 

16-21*

Romênia

16

18-21*

Suécia

15

18

Suíça

7-15

18-25*

Uruguai

14

18

Wyoming/EUA

 

19**21***

* Entre as idades apontadas, aplica-se legislação especial para o jovem adulto.

** Sexo masculino.

*** Sexo feminino.[160]

 

3.2 O caminho hermenêutico para efetuar a transição para o novo paradigma

 

Agora, em linhas gerais, sem qualquer pretensão de esgotamento da matéria, procurar-se-á demonstrar que a superação do velho paradigma na questão da infância e juventude só é possível através da hermenêutica. Vale dizer, a efetivação/materialização dos direitos fundamentais assegurados à infância e juventude, de modo especial pela Constituição,[161] depende da compreensão de que houve uma real mudança de diretriz no trato da matéria: a infância e juventude deixou de ser objeto de direito para se tornar sujeito de direitos.

 

À primeira vista, tal afirmação aparece como paradoxal, pois, como já visto, a doutrina da proteção integral (novo paradigma) foi objetivamente acolhida pela Constituição de 1988. E, se já se fez norma, tem força obrigatória e deve ser cumprida. É o óbvio. Ocorre, entretanto, como diz STRECK: “A obviedade somente exsurgirá ‘como’ obviedade a partir de seu des-velamento (algo como algo)”.[162]

 

Sem que se demonstre, descubra-se, revele-se o que diz a Constituição na sua dimensão transformadora, como norteadora/conformadora do Estado Democrático de Direito, o novo paradigma não se traduzirá numa realidade praticada. Isso porque a dogmática jurídica do neopositivismo, ainda dominante, arrima-se em conceitos (jurídicos) e preconcepções do mundo ideologicamente imbricados com os interesses de preservação do status quo, que acabam por retirar do Direito a sua possibilidade modificadora.

 

No caso específico da criança e do adolescente, o abandono dos conceitos arraigados – vale dizer, a aceitação do novo paradigma expresso na Carta Magna – apresenta maior dificuldade. E assim é, pois faz parte do imaginário simbólico dos operadores do Direito o tratar de crianças e adolescentes de forma coisificada, sem o reconhecimento de que são titulares de direitos e garantias.

 

A longa tradição em ver a questão “menorista” na ótica da doutrina da situação irregular, em que a intervenção estatal se dava pelo dispor dos “menores” material ou moralmente abandonados, exige um esforço redobrado para fazer emergir da Constituição a compreensão de que crianças e adolescentes devem ser compreendidos como cidadãos merecedores de prioridade absoluta por parte da família, da sociedade e do Estado, pois são pessoas em desenvolvimento.

 

Nesse viés, tratar-se-á de esclarecer, sucintamente, o que constitui o senso comum teórico dos operadores do Direito e como a dogmática jurídica é instrumento insuficiente para realizar a transição de paradigma na questão da infância e juventude, que só poderá ser efetuada por intermédio de uma hermenêutica crítica. O enfoque do acontecer hermenêutico, é bom que se diga, será centrado no modo pelo qual deve atuar o Poder Judiciário para a efetivação da Constituição e, via de conseqüência, consolidação do Estado Democrático de Direito.

 

3.2.1 O senso comum teórico dos juristas

 

Difunde-se e assim se encontra disseminado no imaginário social - ainda que não de forma absoluta, mas seguramente de forma majoritária – que o Direito é um sistema lógico, em que a ocorrência de eventuais contradições é natural e solvida pela própria lógica do sistema. Obtém-se tal entendimento no campo da dogmática jurídica,[163] através do senso – ou sentido – comum teórico dos juristas.[164]

 

O senso comum teórico é o conjunto de influências que os operadores do Direito recebem na sua prática diária, “numa espécie de corpus de representações”.[165] Ou, conforme WARAT,

 

“(...) senso comum teórico dos juristas designa as condições implícitas de produção, circulação das verdades nas diferentes práticas de enunciação e escritura do Direito.

....

Nas atividades cotidianas – teóricas, práticas e acadêmicas – os juristas encontram-se fortemente influenciados por uma constelação de representações, imagens, pré-conceitos, crenças, ficções, hábitos de censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente seus atos de decisão e enunciação”.[166]

 

De um modo geral, estuda-se e pratica-se o Direito a partir de um conjunto de saberes acumulados e preestabelecidos, tidos como verdadeiros e que acabam não sendo questionados, muito embora não se os tenha como inquestionáveis. São, na verdade, pré-dados que envolvem os operadores e acabam sendo aceitos sem maior reflexão. É como uma racionalidade subjacente, que “aparece de vários modos e maneiras e configura a instância de pré-compreensão do conteúdo e os efeitos dos discursos de verdade do Direito”.[167]

 

Em vista disso, pode-se dizer, na esteira de WARAT e STRECK, que a produção cotidiana do jurista por si só não tem significado. Apresenta-se como significante em razão do conteúdo que lhe agrega o senso comum teórico, no momento em que essa produção é dada ao conhecimento. Vale dizer, o seu significado, que advém do senso comum teórico, traz uma carga  axiológica dos saberes que veicula de forma reprodutiva. Todavia, em que pese transmitir valores, não traz qualquer compreensão ou explicação sobre os mesmos.

 

É, em essência, uma reprodução valorativa acrítica, que não gera a possibilidade de modificação, pois tende a paralisar qualquer atividade crítica ou criadora do operador do Direito, levando-o a um “conformismo”. Essa aceitação paralisante, então, facilita a diluição dos paradoxos que emergem de uma sociedade plena de conflitos e contradições.[168]

 

Se a mudança de paradigma[169] na questão da infância e juventude não for percebida como algo realmente novo, corre o risco de ser absorvida pelo senso comum teórico e daí ganhar uma transmissão de significância preconcebida e operada com categorias da doutrina da situação irregular.

 

E se tal acontecer, mais uma vez não cumprirá a lei a sua função transformadora, pois haverá um descolamento da realidade fática – que, no caso, precisa de uma grande e efetiva modificação[170] - do sentido determinado pela nova ordem, que, sem dúvida, é inovador e promovente da dignidade humana.

 

Pela desconstrução dos velhos conceitos da doutrina da situação irregular, com a introdução das diretrizes fixadas pelo novo paradigma da proteção integral no imaginário simbólico dos juristas, é que se atingirá a transformação a que se propõe a lei no Estado Democrático de Direito.

 

Há que se mudar as pré-compreensões na esfera da infância e juventude, aparelhando os operadores jurídicos com um ferramental que encaminhe para uma efetivação do entendimento de que as crianças e adolescentes não são mais objeto de tutela, mas sujeitos de direitos.

 

Essa modificação, entretanto, não se dará através da dogmática jurídica neopositivista. Uma dogmática não-questionadora - que vê o Direito como a lei, como o texto dos códigos, que não perscruta princípios, pois entende o Direito como simples meio de controle social - jamais operará qualquer mudança. E isso porque cumpre um papel ideológico de manutenção de privilégios, mantendo as coisas da forma em que se encontram.

 

3.2.2 Constituir a Constituição – o modo de efetivar o novo paradigma

 

Em termos jurídicos, o problema que se apresenta para a efetivação do novo paradigma da infância e juventude é como trazê-lo à compreensão dos operadores do Direito. Existe uma grande dificuldade em realizar a função conformadora do texto constitucional, isto é, trazer para a prática jurídica, com reflexo efetivo no meio social, a transformação que a lei pode/deve fazer.

Incumbe à hermenêutica a tarefa de demonstrar que a Constituição obriga a um agir vinculado ao que ela dispõe, e para isso é necessário descobrir o seu sentido. Não necessariamente “um sentido”, mas que exista “um sentido de Constituição”.[171]

 

Para o descobrimento disso, entretanto, é necessário verificar a razão pela qual a Constituição, como já dito, apesar de ter força obrigatória, apresenta um alto grau de inefetividade. A Carta Política de 1988, inegavelmente, é um novo modelo de Direito, mas continua sendo visto com velhos olhos, isto é, os operadores jurídicos continuam operando como se nada tivesse mudado, reproduzindo interpretações e conceitos vinculados à velha ordem.[172]

 

Tal maneira de operar o Direito também passa pela utilização de conceitos advindos da hermenêutica clássica, concebida como técnica de interpretação. E nessa, a linguagem é utilizada como um condutor de significados e corretas exegeses das normas, o qual se interpõe como terceira coisa entre sujeito e objeto. Conforme STRECK, trata-se de uma resistência à mudança do paradigma hermenêutico-interpretativo de sujeito-objeto para sujeito-sujeito:

 

“Não é temerário afirmar que o Direito – entendido através de sua intrumentalização (a dogmática jurídica) – é uma trincheira que resiste (teimosa-mente) a essa viragem hermenêutica. O rompimento com a dualidade sujeito-objeto, e a conseqüente morte do sujeito, assustam a comunidade jurídica. Ora, a linguagem não é uma terceira coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto. Antes e mais do que isto, a linguagem é condição de ser-no-mundo, porque já é precedida por um compreender que nasce da auto-explicitação do nosso modo-de-ser. É nele, pois, que se funda toda a hermenêutica”.[173]

 

Dito isso, pode-se afirmar que o sentido da Constituição é constituir, não é um instrumento ou ferramenta. E constitui não porque se trata de uma Lei Fundamental que assume o seu papel no mundo, mas porque nascida do processo constituinte como algo que deve acontecer, de onde deve surgir a sociedade nova que conforma com seus princípios e regras de natureza cogente.

 

Logo, a efetivação do novo paradigma da infância e da juventude só se impõe pela hermenêutica, pois será por intermédio dela que se revelará a sua obrigatoriedade de assegurar aos cidadãos menores de dezoito anos um desenvolvimento social calcado na prioridade absoluta, que advém da força normativa da Constituição.

 

No Estado Democrático de Direito, para que ocorra a efetividade material da Constituição, reserva-se ao Poder Judiciário um especial papel. Isso porque tende a ocorrer um deslocamento do centro de decisões para o Judiciário.[174] A inércia do Executivo em cumprir as políticas públicas e os programas sociais que lhe são impostos pela Consituição, entre as quais as referentes à infância e juventude em caráter prioritário, bem como a desídia do Legislativo, pode ser suprimida pelo Judiciário, bastando que, para tanto, sejam manejados (efetivamente) os instrumentos jurídicos que se encontram na Carta Política.[175]

 

Contextualizando. Exigida a manifestação do Judiciário no campo da infância e adolescência e sendo ele confrontado com a inércia do Poder Executivo em implementar as diretrizes constitucionais, impõe-se descobrir o sentido da Constituição na questão. Entende-se que isso se inicia pela rejeição de qualquer prática relacionada com o velho paradigma (doutrina da situação irregular), isto é, que não trate a infância e juventude como sujeito de direitos e não atenda ao dever de promoção da dignidade humana.

 

Incumbe ao juiz desvelar o conteúdo da Constituição. Para atingir tal desiderato, primeiro tem que descobrir/ver as irregularidades existentes no mundo real enquanto irregularidades, ver o ser-no-mundo. E, descobrindo-as, tratá-las como situações irregulares que são. Isto é, ver que irregulares estão o Estado, a sociedade ou família que não cumprem com a prioridade de atendimento que devem ter crianças e adolescentes[176]. E, ao descobrir isso, fazer valer a Constituição, impondo a execução de suas normas promoventes da igualdade e da dignidade humana.

 

Isso, entretanto, só será possível quando houver consciência de que o juiz não pode estar preso a um dogmatismo fechado, acrítico e que não procura ver a realidade, pois, no Estado Democrático de Direito, tem ele uma missão social a cumprir. Deve transformar-se

 

“num ator dotado de competências hermenêuticas menos rígidas e consciente de que, a partir do momento em que o direito deixou de ter como função apenas controlar e conservar a sociedade, passando também a desempenhar funções de direção e transformação social, inexistem possibilidades práticas para a eficácia de sistemas jurídicos ‘fechados’ e completos”.[177]

 

Em suma, a Constituição só será efetivada se todos os operadores do Direito - o juiz em especial – assumirem que a hermenêutica é muito mais que uma técnica de interpretação dirigida à compreensão de fatos concretos à luz de normas gerais, abstratas e impessoais, em que o juiz opera como simples realizador de uma função subsunçora. A hermenêutica deve ser assumida metodologicamente como um saber conectado à realidade e às exigências históricas de renovação da aplicação do Direito, pois interpretação jurídica é indissociável de aplicação.

 

É necessário, diante da Constituição de 1988, que instituiu um novo paradigma, que o intérprete sinta a “angústia do estranhamento”, na feliz expressão de STRECK. Ou, em outras palavras, experimente a ansiedade que o novo traz. Mas, para descobrir/compreender o novo, é essencial o abandono de preconcepções, pré-dados – desvencilhar-se do corpus de representações que povoa o imaginário – e ver o novo como novo e com todas as suas possibilidades: “Compreender é estabelecer espaços para poder e deixar ver. Compreender é ser-em; é poder estar-aí”.[178]

 

4 A impossibilidade de alteração da idade penal mínima enquanto direito de cidadania

 

Neste capítulo, tendo como suporte de fundo as idéias até agora desenvolvidas e mais algumas considerações sobre direitos fundamentais – centradas nos aspectos mais diretamente relacionados com o objeto da investigação – declinar-se-á, pontualmente, os motivos pelos quais se entende impossível a modificação da idade penal mínima, com especial atenção para a tendência da Suprema Corte em valorizar as cláusulas pétreas.

 

4.1 A opção política

 

Os defensores da diminuição da idade da imputabilidade penal cometem um grande equívoco,  não reconhecendo que a sua fixação foi uma opção política do Constituinte de 1987/1988. Logo, toda e qualquer discussão com base na teoria do discernimento, como vem sendo travada, é desfocada. O critério para estabelecer a idade penal mínima foi político, não tendo relação com a capacidade ou incapacidade de entendimento.

 

Aceitar-se que a fixação constitucional da imputabilidade penal baseia-se na falta de compreensão do caráter ilícito ou anti-social de uma conduta criminosa implica em equiparar adolescentes a insanos mentais, e isso, à evidência, é algo que padece de um mínimo de coerência. Ninguém tem dúvida de que o jovem e mesmo a criança têm plena capacidade de entender que é reprovável furtar, danificar, matar, etc.

 

Também não se pode falar na adoção, pelo Constituinte, de um critério puramente biológico. A decisão foi no sentido de valorização da dignidade humana de todas as pessoas menores de dezoito anos, de acordo com a tendência internacional de reconhecimento jurídico da doutrina da proteção integral, que acabou consubstanciada na Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Em outras palavras, sendo o Estado Democrático de Direito presidido, entre outros, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, a fixação da imputabilidade penal aos dezoito anos representa o seu compromisso com a valorização da adolescência, por reconhecer tratar-se de uma fase especial do desenvolvimento do ser humano.

 

E sendo uma opção política, sequer se pode falar que a idade penal mínima não deveria ter sido erigida à condição de norma constitucional, pois não existe um critério certo para definir o que pode/deve ou não ser constitucionalizado, até porque, em uma democracia pluralista, tudo tem  potencial político.

 

Aliás, o discurso para redução da idade de responsabilidade penal é essencialmente político. Trabalha-se com o mito de que aumentando o número de clientes potenciais do sistema penitenciário haverá uma diminuição dos delitos cometidos por adolescentes, por força de um pretenso efeito intimidador e fim da impunidade.

 

Os argumentos são falaciosos e, na verdade, encobertam uma opção ideológica por um Estado mínimo. Não existe nenhuma base séria para a afirmação de que o aumento de penalização diminui a criminalidade. Se assim fosse, onde é adotada a pena de morte ter-se-ia a redução da prática de crimes e não há notícia de que isso esteja acontecendo. No Brasil mesmo se verifica isso, pois as estatísticas estão a demonstrar que desde o advento da Lei dos Crimes Hediondos – que é de 1990 - em que foram agravadas penas e condições de execução das mesmas não ocorreu a diminuição da criminalidade que tal lei quis coibir. Por outro lado, os adolescentes infratores não restam impunes pelos atos delituosos que cometem. Há previsão de responsabilização, inclusive com privação de liberdade.[179]

 

De mais a mais, o atendimento ao clamor para a diminuição da idade de imputabilidade, na prática, só viria a alcançar os marginalizados, pois, como desassistidos em suas necessidades essencias pelo Estado, representam a maioria dos adolescentes que entra em conflito com a lei.[180]

 

A ótica, dentro do novo modelo implantado pela Constituição, é a de exigir que o Estado cumpra com sua obrigação de garantir um desenvolvimento sadio à infância e adolescência, pois, com certeza, havendo o devido atendimento, ocorrerá uma sensível diminuição da criminalidade juvenil. Oportunize-se uma existência digna, que os resultados aparecerão.

 

A intenção de modificação da idade penal mínima enquadra-se, certamente, no contexto da crise pela qual passam a sociedade, a democracia e a cidadania, em decorrência da globalização econômica. O projeto de mundialização tem priorizado o econômico, pelo menos no Brasil, onde o neoliberalismo tem apresentado grande força e fôlego. Muito dessa força, é verdade, advém da situação periférica do país, geradora de uma grande dependência dos centros industrializados, que, por isso, acabam impondo a prevalência de seus interesses. E fazem isso por intermédio das elites locais, que estão mais interessadas em preservar interesses próprios.

 

Não interessa, ao projeto de globalização econômica em curso, a existência de um Estado forte e promotor da igualdade social, pois isso acabaria criando uma consciência de cidadania, que, muito provavelmente, viria a questionar o modelo que pretende ser hegemônico.

 

Por tudo isso, é de se reconhecer que andou bem o Constituinte em trazer para a Lei Maior a questão da idade da imputabilidade penal, pois, sendo uma opção política de valorização da dignidade humana, assegurou-lhe o status próprio.

 

4.2 Algumas considerações sobre direitos fundamentais

 

Os direitos fundamentais exercem papel de capital importância no Estado Democrático de Direito. Isso porque os direitos fundamentais são a principal garantia de que o Estado, através de seu sistema jurídico e político, promoverá a proteção do cidadão enquanto individualidade e, também, a solidariedade social, visando a um pleno desenvolvimento da comunidade como um todo. Em outras palavras, os direitos fundamentais garantem o respeito dos direitos individuais e a promoção social baseada na valorização da dignidade humana, cumprindo a função de descortinar o horizonte emancipatório a alcançar no Estado Democrático de Direito, o que decorre do seu compromisso antropológico.

 

Por força do papel que desempenham, os direitos fundamentais gozam, em nosso ordenamento, de um reforço de efetividade[181], pois, de acordo com o § 1º do artgo 5º da Constituição, “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Tal disposição implica uma “juridicidade reforçada”, que é uma característica comum e diferenciada dos direitos fundamentais[182]. Além disso, são os direitos fundamentais protegidos contra a possibilidade de extirpação da Constituição, já que protegidos pela intangibilidade fixada no artigo 60, § 4º, inciso IV, da Lei Maior.

 

Os direitos fundamentais tomaram assento constitucional – presidindo a normatividade do Estado Democrático de Direito – não de forma graciosa. Tal posição foi alcançada depois de muita luta, em cada momento histórico, para que fosse reconhecido o direito que hoje se encontra entendido como fundamental. Ou, conforme PINTO,

 

“A história constitucional ensina-nos também que os direitos humanos só acedem à institucionalização ao preço de muita luta por parte daquelas forças que, usando a terminologia de A. Heller, são portadoras das ‘necessidades radiciais’ (os ‘sujeitos da história’) – luta dirigida contra aqueles que, em cada momento histórico, protagonizam o papel de ‘inimigos’ (Castro Cid) de tais direitos, seja o poder absoluto do Estado, sejam os poderes privados que emergem da liberdade económica, etc.”.[183]

 

Em vista disso, é possível afirmar que os direitos fundamentais têm origem histórica, não decorrendo de nenhuma circunstância metafísica inerente ao ser humano. Sem embargo da reconhecida importância das concepções jusnaturalistas no desenvolvimento da luta histórica pela afirmação dos direitos fundamentais.

 

O processo histórico-evolutivo e o reconhecimento universalizado - que se consubstancia nas declarações de direitos de caráter internacional - demonstram que os direitos fundamentais representam um patrimônio cultural comum da humanidade.[184]

 

E tanto é assim, que esse reconhecimento universal passou a ser decisivo para a incorporação dos direitos fundamentais nas ordens constitucionais positivas. E o grau de incorporação de direitos fundamentais em uma Constituição serve como critério aferidor da legitimidade da ordem constitucional, pois indica a dimensão da centralidade no ser humano que tem um Estado.

 

4.2.1 O caráter aberto dos direitos fundamentais

 

O processo histórico-evolutivo dos direitos fundamentais também demonstra a sua concepção materialmente aberta, pois sempre permite a emergência de novos direitos ou a agregação de novos conteúdos aos já existentes, que passam a ter uma nova conotação.[185]

 

A Constituição Federal, conforme se vê do § 2º do artigo 5º,[186] abriga o caráter materialmente aberto dos direitos fundamentais, pois permite localizar tais direitos em todo o seu texto, e não só aqueles que estão elencados no catálogo que apresenta (Título II). Além disso, autoriza o reconhecimento de outros direitos fundamentais que não se encontram no texto constitucional (direitos materialmente fundamentais), desde que decorram do regime e princípios por ela adotados, bem como de tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte. Vale dizer, o rol de direitos fundamentais elencados na Constituição não é exaustivo, permitindo a localização de outros.

 

Algumas críticas são feitas ao catálogo de direitos fundamentais constante na Constituição (Título II), e contra a possibilidade de uma maior abertura para o reconhecimento de outros que não os elencados na Carta Magna.

 

No que diz respeito aos catalogados, ainda que se possa, em algumas situações, ter como aceitáveis as críticas,[187] pois realmente foram incluídos dispositivos que não se caracterizam como direitos fundamentais – v.g., o inciso XLIII do artigo 5º [188] - não há como afastar, pelo menos formalmente, o caráter de fundamental dos dispositivos assim consagrados pela Constituição.

 

Por outro lado, em relação à abertura do sistema de direitos fundamentais, sustentam os críticos a necessidade de uma interpretação restritiva, pois a rotulação das mais diversas situações como direitos fundamentais leva a uma banalização de tal categoria de direitos. E isso acaba gerando um desprestígio desses direitos, pois não serão assegurados a todos os direitos fundamentais reconhecidos uma garantia de eficácia, fazendo com que percam a sua força e prestígio.

 

Ocorre que a questão da abertura dos direitos fundamentais não se resume a uma circunstância de interpretação (restritiva ou ampliativa). Com efeito, como já visto, os direitos fundamentais são históricos e resultam de um processo de conquista dos seres humanos, e correlacionam-se com as necessidades concretas de cada sociedade em um determinado momento de sua existência. As necessidades surgem – especialmente num mundo cambiante como o atual – implicando a valoração deste ou daquele bem jurídico, que passa a ter relevância e acaba sendo considerado fundamental. Vê-se isso, na atualidade, com mais clareza, em relação à genética, pois as pesquisas científicas avançam em velocidade vertiginosa, e ainda não se definiram, de forma clara, critérios para que as modificações genéticas que se apresentam possíveis ou viabilizáveis venham em favor de todos os seres humanos e não como mais um fator de desigualdade social.

 

Dentro desse contexto, por óbvio, a pretensão de reconhecer-se um direito não incluído na Constituição como fundamental somente através de uma interpretação restritiva implicaria o afastamento do sistema jurídico da realidade, o que em nada contribuiria para a valoração da dignidade humana, que é um princípio fundamental e norteador do Estado Democrático de Direito, além de retirar ou, pelo menos, minimizar a função transformadora do Direito.

Logo, para o reconhecimento de um direito fundamental fora do catálogo, essencial o estabelecimento de critério para sua identificação, e isso se faz possível pelo exame do conteúdo de cada direito, para verificação de sua fundamentabilidade.

 

A fundamentabilidade material de um direito decorre de sua imbricação direta com a pessoa humana, valorizando a sua dignidade; e resulta, também, “da concepção de Constituição dominante, da idéia de Direito, do sentimento jurídico coletivo”.[189] É importante observar que se uma Constituição – nem formal e nem materialmente – valoriza os direitos fundamentais, por não procurar a concreção da dignidade humana, o problema não são os direitos fundamentais, mas a Constituição que é deficiente, a denotar que o Estado padece de essencial falta de centralidade antropológica, que, provavelmente, tem origem na ausência de um regime político democrático a presidi-lo.

 

O certo é que o princípio da dignidade humana sempre está no centro, ou vinculado, à existência de um direito fundamental fora do catálogo, quer em outro lugar da Constituição, quer se trate de um direito fundamental não-escrito, mesmo que isso não seja de forma exclusiva, “já que em diversos casos outros referenciais podem ser utilizados”.[190]

 

No que interessa especificamente para a investigação em curso, importante ressaltar que a verificação de estar uma posição jurídica, de forma direta, relacionada ou sustentada – no que diz respeito à sua proteção essencial – pela dignidade humana, implica reconhecer que se está frente a um direito fundamental. Sem embargo da necessária cautela na sua detectação, que sempre deverá ser feita de forma individualizada e considerando o caso concreto.[191]

 

E segue SARLET - depois de informar que o princípio da dignidade da pessoa humana serve como critério justificador de fundamentabilidade material de direitos positivados no texto constitucional fora do catálogo e de direitos implícitos - afirmando que o mesmo princípio ampara o reconhecimento de direitos fundamentais autônomos. Isso porque

 

“nada impede – em que pese as respeitáveis opiniões em contrário – que do princípio da dignidade da pessoa humana se possam deduzir autonomamente – sem qualquer referência direta a outro direito fundamental – posições jurídico-subjetivas fundamentais”.[192]

 

Pode-se concluir, portanto, que o princípio da dignidade da pessoa humana é valor-referência da Constituição, podendo ser visualizado como o catalisador (dando o tom de fundamentabilidade a uma posição jurídica) de todos os direitos fundamentais materiais. E como a catálise implica a modificação de uma reação, em que um dos elementos (o catalisador) não se altera no processo, todos os direitos fundamentais materiais exteriorizam-se pela dignidade da pessoa humana – ainda que não de forma exclusiva - tornando-se indissociáveis da mesma.

 

4.2.2 Sintéticas anotações sobre as funções e classificação dos direitos fundamentais

 

Os direitos fundamentais exercem uma série de funções no ordenamento jurídico, em vista da dúplice perspectiva em que podem ser visualizados: jurídico-objetiva e jurídico-subjetiva.[193] Em razão do reconhecimento da multifuncionalidade dos direitos fundamentais, resta ultrapassada a compreensão dos direitos fundamentais com a única função de direitos de defesa contra os poderes públicos, e, também, não podem ser entendidos como sendo só direitos subjetivos públicos.

 

Em vista do seu caráter multifuncional, pode-se, inicialmente, classificar os direitos fundamentais em dois grandes grupos: a) direitos de defesa e b) direitos a prestações fáticas e jurídicas, sendo que o grupo de direitos a prestações pode ser dividido em dois sub-grupos: direitos a prestações em sentido amplo – açambarcando direitos à proteção e direitos à participação na organização e procedimento – e direitos a prestações em sentido estrito.[194]

 

Na matriz liberal clássica, os direitos fundamentais constituem, primordialmente, direitos de defesa do indivíduo contra o Estado, visando à preservação da liberdade pessoal e da propriedade. Contemporaneamente, entretanto, já não há uma correspondência estrita com a concepção original, muito embora esses direitos continuem desempehando papel de importância, pois numa ordem democrática não estão os cidadãos livres de sofrerem constrangimentos oriundos do poder.[195]

 

Ou, no dizer de CANOTILHO, os direitos de defesa

 

“(1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)”.[196]

 

Em suma, os direitos fundamentais de defesa são, precipuamente, direitos negativos, pois visam a uma conduta omissiva – de não intervenção – de seus destinatários, que podem ser o Poder Público e os particulares (em relação aos particulares é o que se chama de eficácia “horizontal” dos direitos fundamentais).[197]

 

São os direitos de defesa de grande amplitude, pois abrangem, para além dos ditos direitos de liberdade, a igualdade perante a lei, o direito à vida, o direito de propriedade e todos os direitos fundamentais que tenham por escopo principal proteger contra ingerências descabidas. Logo, possível dizer que os direitos de defesa protegem uma livre manifestação da personalidade. Enquadram-se entre os direitos fundamentais de defesa, também, as garantias fundamentais, “os direitos políticos, proteção da intimidade e da vida privada, parte dos direitos sociais e até mesmo os novos direitos contra manipulações genéticas e a assim denominada liberdade de informática e o direito a autodeterminação informativa”.[198]

 

Os direitos fundamentais, como direitos a prestações, são aqueles que impõem ao Estado a obrigação de disponibilizar os meios materiais e implementar as condições de fato que permitam o gozo efetivo das liberdades fundamentais, isto é, os direitos a prestações, em essência, têm a finalidade de assegurar a liberdade por meio do Poder Público, pois implicam o fornecimento de prestações jurídicas e materiais que assegurem uma existência digna ao cidadão, tanto no que se refere a alcançar isso quanto mantê-la assim. Daí decorre que os direitos a prestações comportam uma visualização estrita e ampla.

 

Em sentido amplo, os direitos a prestações correspondem aos direitos fundamentais propriamente ou predominantemente prestacionais e que não constituam direitos de defesa. De acordo com ALEXY, os direitos a prestações são a contrapartida exata do conceito dos direitos de defesa que exigem uma abstenção do Estado, enquanto os direitos a prestações implicam um comportamento ativo do Poder Público.[199] Nessa categoria situam-se os direitos a uma prestação normativa, abrangendo direitos à proteção e participação na organização e procedimento.

 

Os direitos à proteção são aqueles em que o titular do direito fundamental perante o Estado pode exigir deste a outorga de uma proteção (garantia) contra ingerência de terceiros. São direitos cujo objeto pode ter um espectro bem distinto, estendendo-se desde a proteção de uma norma penal até a proteção frente aos perigos da utilização pacífica da energia nuclear.[200]

 

Os direitos à organização e ao procedimento, por sua vez, designam, conforme MENDES,

 

“todos aqueles direitos fundamentais que dependem, na sua realização, tanto de providências estatais com vistas à criação e conformação de órgãos setores, ou repartições (direito à organização), como de outras, normalmente de índole normativa, destinadas a ordenar a fruição de determinados direitos ou garantias, como é o caso das garantias processuais-constitucionais (direito de acesso à justiça; direito de proteção judiciária; direito de defesa)”.[201]

 

Os direitos a prestações, em sentido estrito, são aqueles que autorizam o cidadão a obter algo (prestação material) através do Estado: saúde, educação, assistência previdenciária, etc.

 

Os direitos a prestações também são classificados, por outra perspectiva, como direitos originários e direitos derivados, abrangendo os direitos a prestações em sentido amplo e em sentido restrito. São originários quando a pretensão à prestação deriva diretamente de dispositivo constitucional. Os direitos derivados dependem da existência prévia de um sistema de prestações e caracterizam-se pelo direito de exigir e obter igual participação nas prestações criadas (v.g.: atendimento hospitalar nos que existem à disposição da comunidade).

 

Feitas essas breves anotações sobre os direitos fundamentais, pode-se afirmar que a doutrina da proteção integral acolhida pela Constituição – artigo 227 e parágrafos – apresenta caráter de fundamentabilidade, pois tem por escopo valorizar a dignidade humana da infância e adolescência, fazendo isso de forma reforçada, já que reconhece a essa categoria de cidadãos (crianças e adolescentes, rectius menores de dezoito anos) absoluta prioridade no atendimento de suas necessidades. E a regulação é essencialmente reconhecedora de direitos a prestações, tanto em sentido amplo como em sentido restrito.

 

4.3 O reconhecimento de direito fundamental fora do catálogo pelo Supremo Tribunal Federal e o caráter híbrido do artigo 228 da Constituição

 

A idade penal mínima é autêntico direito fundamental localizado fora do catálogo elencado pela Constituição no Título II, pois inequivocamente vinculado ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

 

Não só em sede doutrinária há o reconhecimento de direitos fundamentais fora do catálogo e com caráter de cláusula pétrea, pois o Supremo Tribunal Federal já deixou isso assentado, ao apreciar a Ação Direta de Incontitucionalidade nº 939/93, questionadora da constitucionalidade da Emenda Costitucional nº 3, de 17.03.1993[202], que instituía a arrecadação do Imposto Provisório sobre Movimentações Financeira – IPMF – a partir de agosto daquele ano[203], conforme estabeleceu a Lei Complementar nº 77, de 13.07.1993, que também foi objeto de argüição de inconstitucionalidade.

 

Foi sustentado, no que interessa para o presente, que havia violação: a) do princípio da anterioridade, considerado garantia individual do contribuinte, que não poderia ser objeto de supressão (art. 150, III, b, art. 5º, § 2º e art. 60, § 4º, IV); e, b) do princípio da imunidade tributária recíproca, que é garantia da Federação (art. 150, VI, a e art. 60, § 4º, I).

 

Os Ministros do Supremo reconheceram a inconstitucionalidade da Emenda, que não respeitava a imunidade recíproca entre os entes da Federação, bem como excluiu da tributação as demais entidades ou empresas referidas nas alíneas a, b, c e d do inc. VI, do artigo 150 da Constituição Federal. No que se refere ao princípio da anterioridade, o Tribunal entendeu que essa era uma garantia constituconal do contribuinte, devendo ser reconhecida como cláusula pétrea, logo não podendo ser excepcionada ou afastada.

 

Interessa ver mais de perto a questão do tratamento dado ao princípio da anterioridade[204], pois é importante para o objetivo deste trabalho, já que se pode entender a idade penal mínima como uma garantia individual fundamental (direito-garantia).

 

A Emenda foi defendida pelo Advocacia-Geral da União e pela Consultoria Jurídica do Ministério da Fazenda. Em linhas gerais, sustentaram que a emenda não poderia ser tida como inconstitucional, pois compatível com a Constituição, mesmo que limitando direitos, uma vez que não tendia à abolição dos mesmos e, portanto, não atingia o cerne inalterável de qualquer direito, que é o objeto da cláusula de intangibilidade. Havia, segundo o Governo, só a ampliação de limites já reconhecidos na própria Lei Maior. Além do que, o disposto no artigo 60, § 4º, IV, não abrange todos os direitos e garantias expressos na Constituição, nem os decorrentes do regime e princípios por ela adotados, ou de tratados internacionais de que o Brasil seja parte, sob pena de haver uma petrificação do texto constitucional. Somente os direitos e garantias que são essenciais à liberdade humana é que não podem ser modificados através de emenda, e o princípio da anterioridade não se inclui entre esses.

 

O Supremo Tribunal Federal, por maioria, reconheceu que a cobrança do imposto no mesmo ano de sua instituição, mesmo que havendo ressalva em tal sentido na Emenda, implicava violação ao princípio da anterioridade, que é direito individual garantido por cláusula pétrea (artigo 60, § 4º, inc. IV), pois o artigo 5º, § 2º da Carta Magna autoriza a localização de direitos e garantias fora do capítulo em que se localizam os direitos e garantias catalogados na Constituição.

 

O debate foi centralizado na questão da natureza do princípio da anterioridade, isto é, se constituía, ou não, um direito individual.

 

Examina-se, agora, parte da argumentação esgrimida no julgamento, pois interessante para a hipótese que se analisa nesta pesquisa. Além do que, foi a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal discutiu a respeito de constitucionalidade de uma emenda constitucional e confrontou-a com limites materiais de revisão.[205]

 

O Relator, Ministro Sydney Sanches, reconheceu a possibilidade de existência de direitos e garantias fundamentais fora do catálogo, anotando que,

 

“entre esses direitos e garantias individuais, estão pela extensão contida no § 2º, do art. 5º e pela especificação feita no art. 150, III, ‘b’, a garantia ao contribuinte de que a União não criará nem cobrará tributos, ‘no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou’. (...) a violação, quanto a esse ponto, ao princípio da garantia individual do contribuinte, que nem por Emenda Constitucional se pode afrontar, ainda que temporariamente, em face dos referidos § 2º do art. 5º, artigos 150, III, ‘b’ e 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal. Nem me parece que, além das exceções ao princípio da anterioridade, previstas no no § 1º do art. 150, pela Constituição originária, outras pudessem ser estabelecidas por emenda constitucional, ou seja, pela Constituição derivada. Se não se entender assim, o princípio e a garantia individual tributária, que ele encerra, ficariam esvaziados, mediante novas e sucessivas emendas constitucionais, alargando as exceções, seja para impostos previstos no texto originário, seja para os não previstos”.[206]

 

Merece ser destacada, também, a manifestação do Ministro Marco Aurélio, que considerou a regra da anterioridade como uma garantia individual, ressaltando que a existência de exceções feitas pelo Constituinte originário não autoriza o Poder Reformador a produzir outras exceções:

 

“(...) não temos, como garantias constitucionais, apenas o rol do artigo 5º da Lei Básica de 1988. Em outros artigos da Carta encontramos, também, princípios e garantias do cidadão, nesse embate diário que trava com o Estado, e o objetivo maior da Constituição é justamente proporcionar uma certa igualação das forças envolvidas – as do Estado e as de cada cidadão considerado de per se. A demonstração inequívoca da procedência desse entendimento está no § 2º do artigo 5º: (...)as exceções a esses direitos, insertas na própria Carta, apenas os confirmam, e ninguém coloca em dúvida, por exemplo, que a propriedade é um direito do cidadão; no entanto, esse direito está mitigado pela regra insculpida no inciso XXIV do artigo 5º, que cuida da desapropriação. Ninguém duvida, também, que a exclusão da pena de morte é um direito, é um direito previsto no rol do artigo 5º e está excepcionado por regra insculpida na própria    alínea ‘a’ do inciso XLVII do artigo 5º, admitindo-se-a em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84, inciso XIX. (...) A Corte, ao enfrentar o pedido de concessão de liminar, teve presente que a anterioridade encerra uma garantia constitucional, e não vejo, em face apenas de a Carta conter algumas exceções a esse princípio, como esvaziá-lo, como colocá-lo em plano secundário a ponto de dizer da impertinência do inciso IV do § 4º do artigo 60, ou, até mesmo, num passo um pouco mais largo, assentar que não se está diante de uma garantia constitucional, (...) como está previsto, com todas as letras, na alínea ‘b’ do inciso III do artigo 150 da Carta: (...) houve a opção pelo legislador constituinte de 1988 e, com ela, tivemos o esgotamento das exceções, porque taxativamente fixadas na Carta. Os dispositivos são numeros (sic) clausus, não apenas exemplificativos. Fora das hipóteses excepcionadas cabe observar, com rigor, a anterioridade”.[207]

 

O Ministro Carlos Velloso, na mesma linha, entendeu pacífica a possibilidade de existência de direitos fundamentais fora do catálogo e que também estão protegidos pela cláusula de intangibilidade, fazendo um acréscimo de que esses não se referem somente a direitos individuais:

 

“É sabido, hoje, que a doutrina dos direitos fundamentais não compreende, apenas, direitos e garantias individuais, mas, também, direitos e garantias sociais, direitos atinentes à nacionalidade e direitos políticos. Este quadro todo compõe a teoria dos direitos fundamentais. Hoje não falamos, apenas, em direitos individuais, assim direitos de primeira geração. Já falamos em direitos de primeira, de segunda, de terceira e até quarta geração.

O mundo evoluiu, e assim, também, o Direito.

É certo que é respeitável o argumento, mais metajurídico do que jurídico, propriamente, no sentido de que o raciocínio abrangente da matéria – a matéria dos direitos e garantias individuais – sem distinguir direitos e garantias individuais de primeira classe e direitos e garantias de 2ª classe, poderia impedir uma maior reforma constitucional. O argumento, entretanto, não deve impressionar. O que acontece é que o constituinte originário quis proteger e preservar a sua obra, a sua criatura, que é a Constituição. As reformas constitucionais precipitadas, ao sabor de conveniências políticas, não levam a nada, geram a insegurança jurídica e a insegurança jurídica traz a infelicidade para o povo. É natural, portanto, que o constituinte originário, desejando preservar a sua obra, crie dificuldades para a alteração da Constituição”.[208]

 

Dentre os votos vencedores, por fim, é de ser ressaltado o do Ministro Celso de Mello, que enfatiza a necessidade de as emendas respeitarem os princípios que presidem a Constituição:

“O princípio da anterioridade da lei tributária, além de constituir limitação ao poder impositivo do Estado, representa um dos direitos fundamentais mais relevantes outorgados pela Carta da República ao universo dos contribuintes. Não desconheço que se cuida, como qualquer outro direito, de prerrogativa de caráter meramente relativo, posto que as normas constitucionais originárias já contemplam hipóteses que lhe excepcionam a atuação.

Note-se, porém, que as derrogações a esse postualdo emanam de preceitos editados por órgão exercente de funções constitucionais primárias: a Assembléia Nacional Constituinte. As exceções a esse princípio foram estabelecidas, portanto, pelo próprio poder constituinte originário, que não sofre, em função da própria natureza dessa magna prerrogativa estatal, as limitações materiais e tampouco as restrições jurídicas impostas ao poder reformador. (...)

O respeito incondicional aos princípios constitucionais evidencia-se como dever inderrogável do Poder Público. A ofensa do Estado a esses valores – que desempenham, enquanto categorias fundamentais que são, um papel subordinante na própria configuração dos direitos individuais ou coletivos – introduz um perigoso fator de desequilíbrio sistêmico e rompe, por completo, a harmonia que deve presidir as relações, sempre tão estruturalmente desiguais, entre as pessoas e o Poder.(...)

É preciso não perder de perspectiva que as emendas constitucionais podem revelar-se incompatíveis, também elas, com o texto da Constituição a que aderem. Daí, a sua plena sindicabilidade jurisdicional, especialmente em face do núcleo temático protegido pela cláusula de imutabilidade inscrita no art. 60, § 4º, da Carta Federal.

As denominadas cláusulas pétreas representam, na realidade, categorias normativas subordinantes que, achando-se pré-excluídas, por decisão da Assembléia Nacional Constituinte, do poder de reforma do Congresso Nacional, evidenciam-se como temas insuscetíveis de modificação pela via do poder constituinte derivado.(...)

O poder reformador, portanto, é um poder derivado e subordinado às prescrições jurídicas condicionantes que, estabelecidas com absoluta supremacia pelo texto da Lei Fundamental do Estado, pautam, necessariamente, a ação do Parlamento no exercício dessa competência institucional”.[209]

 

O Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADIn nº 939, exerceu o papel de guardião da Constituição e impediu que o sistema de direitos e garantias fundamentais fosse descaracterizado. Especial relevância teve o julgamento, pois serviu como balizador da impossibilidade de descaracterização paulatina do texto constitucional, além de fixar, com clareza, que as chamadas cláusulas pétreas exercem importante papel na manutenção da unidade sistêmica da Constituição.

 

Fazendo uma suma da posição majoritária adotada no julgamento da ADIn 939[210], pode-se assentar que: a) restou inquestionável a possibilidade da existência de direitos fundamentais fora do catálogo; b) a unidade sistêmica da Constituição deve ser preservada, pois os princípios e direitos fundamentais apresentam íntima ligação, não podendo ocorrer uma visão da Constituição que não abranja o seu todo, devendo haver respeito incondicional aos princípios que informam a Carta Magna; c) os limites materiais de reforma não podem ser minimizados pela existência de exceções previstas no próprio texto constitucional; d) todas as exceções feitas pelo Constituinte originário são no exercício de uma competência incondicionada e que não se transfere ao Poder Reformador, pois este é, por natureza, subordinado; e) a abrangência da cláusula de intagibilidade do art. 60, § 4º, IV é ampla, pois vai além dos direitos e garantias estritamente pessoais, açambarcando, pelo menos, os chamados direitos de primeira e segunda gerações ou dimensões; f) a possibilidade de alteração do núcleo essencial de direito fundamental que constitui cláusula pétrea tem de ser vista de forma restritiva, sob pena de esvaziamento do direito por novas e sucessivas reformas; g) toda emenda constitucional, por não emanar de poder originário, é suscetível de controle de constitucionalidade.

 

O Supremo Tribunal Federal, sem a menor dúvida, agiu na defesa da Constituição, tratando de preservá-la de uma modificação desfigurante, pois patente a pretensão de esvaziamento dos limites materiais reformatórios. Foi muito clara a posição adotada em relação à chamada erosão constitucional, pois ficou sobejamente assentado que não é possível reforma que tenda a abolir uma posição jurídica fundamental, entendendo-se isso como qualquer prática que vise a minimizar o alcance da proteção outorgada pelas cláusulas pétreas.

 

Em outras palavras, a Corte Maior apontou a necessidade de preservar-se a obra do Constituinte originário, único legitimado a excepcionar a incidência de princípios ou garantias instituídas em favor do cidadão. Entender de modo contrário seria fazer letra morta da disposição que veda a deliberação a respeito de emenda que tenda à abolição de direito fundamental.

 

A preservação da obra originária do Poder Constituinte não implica  risco de ruptura da ordem constitucional. Pelo contrário, atua no sentido de demonstrar ser possível a efetivação plena do Estado Democrático de Direito, pois traz a certeza – ou pelo menos a esperança - de que os direitos  inseridos na Constituição são passíveis de realização e de que em uma sociedade injusta, como a brasileira, há chance de a lei exercer uma função tranformadora.[211]

 

Pode-se proclamar, agora – também no plano da jurisprudência - que a fundamentabilidade material de um direito na Constituição não depende de uma posição topológica (inserção no catálogo), pois localizável em qualquer parte do texto constitucional. A sua caracterização depende da relevância que lhe foi atribuída e da sua imbricação com direito ou princípio que integre o núcleo essencial da Carta Magna. E se a Corte Constitucional assim agiu ao apreciar uma questão de matéria tributária, com muito mais razão, não deixará de reconhecer a impossibilidade de supressão de qualquer direito fundamental que seja diretamente vinculado ao princípio da dignidade da pessoa humana.

 

O artigo 228, ao estabelecer a idade mínima para a imputabilidade penal, assegura a todos os cidadãos menores de dezoito anos uma posição jurídica subjetiva, qual seja, a condição de inimputável diante do sistema penal. E tal posição, por sua vez, gera uma posição jurídica objetiva: a de ter a condição de inimputável respeitada pelo Estado.

 

Num enfoque do ponto de vista individual de todo cidadão menor de dezoito anos, trata-se de garantia asseguradora, em última análise, do direito de liberdade. É, em verdade, uma explicitação do alcance que tem o direito de liberdade em relação aos menores de dezoito anos. Exerce uma típica função de defesa contra o Estado, que fica proibido de proceder a persecução penal.

 

Trata-se, portanto, de garantia individual, com caráter de fundamentabilidade, pois diretamente ligada ao exercício do direito de liberdade de todo cidadão menor de dezoito anos. E não se pode olvidar que a liberdade sempre está vinculada ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, especialmente em relação às crianças e adolescentes, pois foram reconhecidos como merecedores de absoluta prioridade da atenção da família, da sociedade e do Estado, em face da peculiar condição de seres humanos em desenvolvimento.

 

Se o Constituinte optou pela demarcação da imputabilidade penal aos dezoito anos, estabelecendo um maior grau de liberdade perante o Estado até tal idade, fê-lo de forma livre e soberana, não cabendo ao Poder Reformador a possibilidade de restringir a liberdade, pois afetaria diretamente o núcleo essencial do direito de liberdade, no que diz respeito ao cidadão com idade inferior ao limite consignado na Carta Magna.

 

Ademais, ao fixar a idade de imputabilidade penal, o Poder Constituinte não deixou de estabelecer um regime de sujeição próprio para os que são tidos como inimputáveis, pois determinou a sujeição dos mesmos “às normas da legislação especial”. O artigo 228, portanto, tem um conteúdo negativo – subtração ao sistema penal – e um conteúdo positivo – sujeição à legislação especial. Daí, forçoso concluir que o Constituinte regrou todas as hipóteses relacionadas à esfera penal em relação aos cidadãos menores de dezoito anos.

 

Ao assim agir, o Constituinte originário cerrou todas as possibilidades de alteração do regime de sujeição penal daqueles que foram considerados inimputáveis, pois o regramento a respeito foi total e assegurador de uma posição jurídica fundamental, eis que valorizadora da dignidade humana. E se  o Constituinte não deixou qualquer possibilidade de ser aberta exceção ou ser feita restrição, não se pode atribuir tal competência ao Poder Reformador.[212]

 

É certo, portanto, que a regra do artigo 228 é uma garantia de direito individual, de caráter fundamental, pois asseguradora do direito de liberdade dos cidadãos menores de dezoito anos, que impõe um agir negativo para o Estado. Logo, é insuscetível de modificação pela via da emenda constitucional.

 

Num outro enfoque, possível ver essa mesma regra como condição de exercício dos direitos reconhecidos no artigo 227 da Constituição Federal.

 

As obrigações para com a infância e adolescência estão diretamente vinculadas com a plena promoção da dignidade humana de tal categoria de cidadãos. A Lei Maior determina um atendimento amplo e digno a todas crianças e adolescentes, nas mais diversas áreas, a fim de que se tornem, na idade adulta, cidadãos conscientes e socialmente integrados. Vale dizer, não se quer uma infância e juventude marginalizada, pois isso gerará cidadãos adultos excluídos do processo social, e, assim, não cumprirá o Estado Democrático de Direito a sua função de promover a dignidade, a igualdade e a solidariedade.

 

Dentro dessa ótica, inegável que a inimputabilidade penal até os dezoito anos de idade integra o direito de livre desenvolvimento da personalidade, pois permite uma abertura maior de proteção ao ser humano em desenvolvimento e formação.

 

A idade de imputabilidade penal fixada na Lei Maior, portanto, tem um caráter híbrido – ou uma dupla dimensão. É, por um lado, garantia do direito individual de liberdade dos menores de dezoito anos, e, de outra banda, ao balizar até quando vai a adolescência, estabelece condição de possibilidade para ser titular dos direitos a prestações – nos sentidos amplo e restrito - em caráter preferencial, que são assegurados às crianças e adolescentes pela doutrina da proteção integral acolhida pela ordem constitucional.

 

Coarctar a plena possibilidade de desenvolvimento individual e social, instituída por livre e soberana vontade do Poder Constituinte em favor de todos os cidadãos menores de dezoito anos, implica cometer agressão contra o conteúdo de dignidade humana dos direitos assegurados aos mesmos. E isso, à evidência – além de atingir direito fundamental que é garantido por cláusula pétrea – apresenta-se em absoluta desconformidade com a idéia de Estado Democrático de Direito.

 

É inviável, no Estado Democrático de Direito, qualquer possibilidade de interpretação que não se harmonize com os princípios que o conformam, pois a lei e sua aplicação (e aplicar é interpretar) não podem, em nenhum momento, afastar-se de uma finalidade transformadora da realidade e promotora da dignidade humana.

 

Importante salientar que a função transformadora da lei e a promoção da dignidade humana são de caráter permanente no Estado Democrático de Direito, pois uma situação ideal - em que nada mais tenha de ser modificado - jamais ocorrerá. As necessidades humanas variam em cada momento histórico, e novas conquistas – ou novos direitos – sempre se apresentam e precisam tornar-se realidade.

 

Em vista disso é que se impõe a afirmação de que a impossibilidade de modificação da idade penal mínima, por se tratar de direito fundamental, já que indissociável do princípio da dignidade da pessoa humana e asseguradora de direitos dos menores de dezoito anos, não é pura questão circunstancial, conforme tem sido afirmado.[213]

 

Pensar a idade como núcleo essencial do direito à inimputabilidade penal, salvo melhor juízo, é um equívoco. O núcleo essencial está vinculado ao conteúdo do direito, e esse, no que concerne à idade penal mínima, diz respeito a sua vinculação com a dignidade humana.[214]

 

Não bastasse isso, aceitar-se a modificação da idade penal mínima, desde que mudasse o estado atual do sistema carcerário, seria desconsiderar a existência do princípio do não-retrocesso social e tal não é possível, pois implica o afastar-se da principiologia do Estado Democrático de Direito.

 

4.4 A incidência do princípio do não-retrocesso social na questão da idade penal mínima

 

O princípio do não-retrocesso social passou a ter aplicação no campo dos direitos sociais – mais diretamente em relação aos direitos a prestações em sentido estrito, ainda que não exclusivamente – visando a impossibilitar que direitos fundamentais implementados, ou delineados no tocante a sua  efetivação, viessem a ser suprimidos ou diminuídos.

 

Isso porque, representando os direitos fundamentais implementados uma conquista, não se faz possível um retrocesso prejudicial ao pleno exercício – ou exercício parcial – de uma posição jurídica fundamental alcançada para fruição. Funciona a proibição de retrocesso como uma eficácia impediente de retrogradação do desenvolvimento atingido, sendo passível - a supressão ou diminuição do direito fundamental – de ter a sua inconstitucionalidade reconhecida.

 

Conforme CANOTILHO, o princípio da vedação de retrocesso social pode assim ser enunciado:

 

“o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (‘lei de segurança social’, ‘lei do subsídio do desemprego’, ‘lei do serviço de saúde’) deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzem na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado”.[215]

 

A Corte Constitucional de Portugal, em julgamento paradigmático – Acórdão 39/84, julgado em 11.04.1984 - ao apreciar a revogação da lei que estabelecia a mudança do sistema de saúde previsto na Constituição, ainda que se tratasse de diretrizes fundamentais para a instituição do sistema, entendeu que isso não era possível, pois representava um retrocesso social, caracterizando inconstitucionalidade por conflitar com a garantia de direito à saúde, previsto no artigo 65 da Constituição da República Portuguesa.

A Corte foi taxativa no reconhecimento da impossibilidade de retrocesso social:

 

“Quando a tarefa constitucional consiste na criação de um determinado serviço público (como acontece com o Serviço Nacional de Saúde) e ele seja efectivamente criado, então a sua existência passa gozar de proteção constitucional, já que a sua abolição implicaria um atentado a uma garantia institucional de um direito fundamental e, logo, um atentado ao próprio direito fundamental”[216].

 

E adiante, é ressaltada a obrigação negativa do Estado em se abster de atentar contra o direito fundamental que já se implementava:

 

“(...) a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação, positiva, para se transformar (ou passar) também a ser uma obrigação negativa. O estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social”.[217]

 

Em suma, ficou devidamente plasmado que o princípio do não-retrocesso social garante uma posição jurídica fundamental contra a possibilidade de desaparecimento ou diminuição da mesma, em decorrência de um agir atentatório por parte do Estado, visto que implementado – ou iniciando a ser efetivado – um direito fundamental a prestações surge para o Estado ter a obrigação negativa de não piorar a situação do titular da posição jurídica fundamental, sob pena de ofender ao próprio direito fundamental.

 

Em que pese consagrado o princípio do não-retrocesso social quando do tratamento de questões atinentes a direitos a prestações, em especial em sentido estrito, inexiste qualquer óbice de aplicá-lo em relação a todo e qualquer direito fundamental. Vale dizer, a proibição de retrocesso incide sempre que, no  âmbito do Estado Democrático de Direito, proceda-se de modo a suprimir ou diminuir uma posição jurídica materialmente fundamental.

 

E assim é, pois, em se tratando de direito que tem o seu caráter de fundamentabilidade material reconhecido, não há que se falar em qualquer diferenciação, hierarquia ou preferência. Quer sejam direitos de defesa, quer sejam direitos a prestações, todos são direitos fundamentais igualmente. E eventual preponderância de uma  posição jurídica fundamental sobre outra é decorrência de caso concreto, mas jamais na condição de que um direito fundamental vá aniquilar ou menoscabar outra posição jurídica fundamental.

 

O que se pode dizer, com certeza, é que, “no plano normativo, a eficácia impeditiva de retrocesso fornece diques contra a mera revogação de normas que consagram direitos fundamentais, ou contra a substituição daquelas por outras menos generosas para com estes”.[218]

 

Em vista do exposto, verifica-se que há impossibilidade da modificação da idade de imputabilidade penal também pela incidência da proibição de retrocesso social.

 

Fixada a idade penal mímina em dezoito anos, ficou assegurada a todos os cidadãos com idade inferior a essa uma posição jurídica subjetiva de caráter fundamental (ser inimputável perante o sistema penal), asseguradora de seu direito de liberdade. Modificar tal situação, sem a menor dúvida, implicaria uma agressão ao próprio direito de liberdade do menor de dezoito anos, pois haveria supressão ou, pelo menos, diminuição de uma parcela de seu direito de liberade.

 

A diminuição da idade penal mínima também agrediria o conteúdo de dignidade humana do direito de os adolescentes merecerem absoluta prioridade no desenvolvimento de sua personalidade (artigo 227), pois os excluídos da condição de inimputáveis não mais fariam jus a qualquer atenção especial e diferenciada.

 

Isso implicaria atingir o núcleo essencial do direito de liberdade e de serem considerados prioritários para a sociedade, num evidente retrocesso social em relação a direitos já reconhecidos. E não havendo tal possibilidade no Estado Democrático de Direito, inviável, portanto, qualquer possibilidade de redução da idade de imputabilidade penal.

 

4.5 Os tratados internacionais como impedientes da modificação da idade de imputabilidade penal

 

A partir da Constituição de 1988, intensifica-se a interação e conjugação do direito internacional e do direito interno, que fortalecem a sistemática de proteção dos direitos fundamentais, com uma principiologia e lógica próprias, fundadas no princípio da primazia dos direitos humanos.

 

Apesar disso, pouca atenção tem sido dada para a questão da impossibilidade de modificação da idade penal, por força do disposto no § 2º do artigo 5º da Constituição Federal, na parte que trata de direitos fundamentais oriundos de tratados[219] internacionais de que o Brasil é parte.

 

Trata-se, entretanto, de uma abordagem importante e que é olvidada pela inexistência de uma prática de relacionar o direito internacional e o direito interno.[220]

 

Vivemos em um mundo globalizado – quer gostemos ou não disso – e, cada vez mais, há uma interação entre direito interno e direito internacional. O tradicional conceito de soberania e autonomia do Poder Constituinte – conforme já referido – sofre uma mitigação em decorrência da integração cada vez maior dos Estados. Na visão de MELLO,

 

“Inicialmente queremos lembrar que o Estado não existe sem um contexto internacional. Não há estado isolado. A própria noção de Estado depende da existência de uma sociedade internacional. Ora, só há Constituição onde há Estado. Assim sendo a Constituição depende também da sociedade internacional. Ao se falar em soberania do Poder Constituinte se está falando em soberania ‘relativa’ e quer dizer que tal poder não se encontra subordinado a qualquer norma de D. Interno, mas ele se encontra subordinado ao DIP de onde advém a própria noção de soberania do Estado”.[221]

 

A introdução na Carta Magna da doutrina da proteção integral e, também, da fixação da imputabilidade penal aos dezoito anos, decorreu da internalização da vertente protetora dos direitos humanos de caráter internacional, dos quais a proteção da criança e do adolescente é uma das facetas. Tanto é assim, que o disposto no artigo 227 é reconhecido como síntese das diretrizes fixadas pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança[222]. O Brasil, ao ratificar a Convenção - e fez isso sem qualquer ressalva de reserva[223] - assumiu a obrigação de cumpri-la integralmente.

 

Vale dizer, é vedado ao Estado brasileiro tomar qualquer iniciativa que venha a tornar ineficaz ou contrariar qualquer dispositivo da Convenção sobre os Direitos da Criança, que, entre nós, por força do § 2º do artigo 5º, tem status de norma constitucional. Isso porque a Carta Magna de 1988, na esteira de outras Constituições, passou a considerar as normas de tratados de direitos humanos como de hierarquia constitucional.

 

O tratado em referência, inequivocamente, tem conteúdo de proteção dos direitos humanos. A Convenção, em seu artigo 41,[224] estabelece que nenhum de seus signatários poderá tornar sua normativa interna mais gravosa em vista do que dispõe o tratado. Conforme SARAIVA,

 

“Demais, a pretensão de redução viola o disposto no art. 41 da Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança, onde está implícito que os signatários não tornarão mais gravosa a lei interna de seus países, em face do contexto normativo da Convenção”.[225]

 

Ora, em caso de eventual modificação da idade penal mínima, estará o Brasil a descumprir o que foi estabelecido no tratado que se comprometeu a  a cumprir. E o descumprimento implica a responsabilização internacional do Estado violador.[226]

 

Pode-se concluir, portanto, que, enquanto o Brasil for Estado-parte da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, em respeito ao que estabelece a Constituição, que conferiu estatura constitucional aos direitos e garantias decorrentes de tratados internacionais de que o Brasil seja parte, fica inviabilizada qualquer possibilidade de alteração da idade penal mínima.[227]

 

O enfoque aqui brevemente referenciado está a merecer mais atenção, pois representa uma grande possibilidade de efetivação de direitos fundamentais, além de melhor intrumentalizar resistência às tentativas de supressão de posições jurídicas fundamentais, haja vista que um melhor manejo da interação – na área de direitos humanos e, portanto, de regra, fundamentais - entre direito internacional e direito interno pode resultar num reforço para a implementação plena – ou pelo menos um pouco mais efetiva - do Estado Democrático de Direito.

 

Há que se reconhecer que existe uma certa deficiência na aceitação da abertura externa do ordenamento constitucional brasileiro, tanto por parte da doutrina mais tradicional como em relação à jurisprudência.

 

Predomina, ainda, no Supremo Trbunal Federal, o entendimento de que as normas oriundas de tratados internacionais equiparam-se às leis ordinárias, como se pode ver, por exemplo, do não-reconhecimento da impossibilibidade de prisão por dívida para depositário infiel – autorizada pela Constituição, artigo 5º, inciso LXVII - e vedada pela Convenção Americana de Direitos Humanos[228] (Pacto de San José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário.

 

Considerações finais

 

No decorrer da investigação, pois foi a mesma permeada por uma visão/compreensão hermenêutica, ainda que nem sempre explícita, demonstrou-se que qualquer exegese de norma constitucional deverá, obrigatoriamente, ser procedida por intermédio da valoração dos princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil. Vale dizer, é inviável qualquer interpretação que não passe por um rebate principiológico, ou seja, só é possível a aplicação/interpretação da lei (lato sensu) em consonância com os princípios constitucionais que dão a conformação do Estado Democrático de Direito.

 

Isso porque não se admite mais uma função meramente programática para um princípio constitucional. Pelo abandono do positivismo dogmático, adquiriram os princípios uma centralidade interpretativa e aplicativa  dentro do sistema jurídico.

 

Na dimensão interpretativa, possibilitam identificar a conexão de sentidos que deve haver no ordenamento jurídico constitucional, fazendo a concatenação entre suas normas. No viés aplicativo, os princípios funcionam como meio de superação da legalidade literal ou rasteira, direcionando a compreensão do caráter transformador e promovente da justiça social da lei,  essência do Estado Democrático de Direito – ou do Estado Social e Democrático, como preferem  outros.

 

E assim é, pois só se justifica o existir do Estado – “domínio de homens sobre homens” – porque a razão única de sua existência e finalidade é o ser humano. O Estado que não tenha por fim a promoção da dignidade  humana – ou, se preferido, a realização dos direitos fundamentais – não tem razão de ser, padecendo, numa contextualização política, de falta de legitimidade, autorizativa do exercício do direito de resistência por parte de seu povo, visando a sua adequação de finalidade.

 

Para a identificação dos princípios dirigentes e das funções que exercem no Estado Democrático de Direito, importante ter-se presente duas noções. Primeira, de que as normas jurídicas configuram-se basicamente em  princípios e regras. E  a segunda é a de que texto (legal) não tem o mesmo significado que norma (jurídica).

 

Os princípios apresentam um maior grau de abstração do que as regras, necessitando, de um modo geral, de uma mediação concretizadora, para determinação de seu grau de aplicabilidade. As regras, em razão de possuírem um baixo grau de abstração, são aplicadas diretamente. Os princípios têm um caráter de fundamentabilidade no sistema constitucional, estruturando-o e, portanto, com forte conteúdo axiológico. Servem de fundamento para as regras, que, por sua vez, podem ter um conteúdo meramente funcional. Vale dizer, os princípios são “mandados de otimização”, determinando que algo seja efetivado na maior medida possível, enquanto as regras apresentam determinações de âmbito fático-jurídico, não sendo possível grau de indeterminação no seu cumprimento.

 

Importante anotar que a vinculação de uma regra a um princípio fundamental, especialmente em relação ao da dignidade da pessoa humana, faz com que possa ser dimensionada como um direito fundamental e, portanto, goze do reforço de efetividade em sua aplicação (art. 5º, § 1º da Constituição Federal), bem como fique protegida contra a possibilidade de supressão ou modificação por intermédio de reforma constitucional.

 

Conforme mencionado, importante ter clara a distinção entre texto e norma, pois essa é o resultado da interpretação feita do texto legal. A norma é o resultante do processo de dar vida - inserindo na realidade concreta - a uma disposição, preceito ou enunciado normativo. E isso é feito pela transformação, via interpretação, do ordenamento jurídico potencial (dispositivos legais) em uma realidade jurídico-aplicativa concreta.

 

A partir da visualização de como identificar um princípio fundamental no Estado Democrático de Direito, observa-se que a sua principiologia tem um caráter aberto, não se restringindo aos expressamente previstos como tais na Constituição (Título I, arts. 1º ao 4º). Há possibilidade de localização de princípios fundamentais em outros locais da Carta Constitucional, bem como outros sem assento no texto constitucional, mas que decorram da interpretação de suas normas (princípios materialmente fundamentais).

 

A legitimidade de um processo constituinte, do qual resulte a elaboração de uma Constituição reconhecida, por uma comunidade, como apta  a fazer o desenho do modelo de Estado e indicar diretrizes para a vida em sociedade, depende de sua representatividade.

 

Representividade essa que decorre do exercício da soberania pelo seu titular, o povo. A compreensão atual de povo, em decorrência da evolução do processo civilizatório, é assentada muito mais num caráter – ou elemento – pluralista do que na soma de individualidades pessoais de um determinado espaço geográfico. Vale dizer, nas democracias contemporâneas, a concepção de povo é arrimada na pluralidade das forças sociais, políticas e culturais que influenciam o processo constituinte, tanto de forma prévia como durante o seu desenvolvimento.

 

No mesmo passo, a concepção clássica de Poder Constituinte – autônomo, livre e incondicionado – ganha nova interpretação. Isso porque não se admite mais que um poder de natureza política, concebido para fazer uma Constituição que organize e imponha limitações ao poder (através da asseguração de direitos aos cidadãos), possa agir de forma desvinculada da “vontade de constituição” que lhe deu origem. Na diversidade libertadora da democracia, o compromisso com a vontade do povo instituidor do processo constituinte é inarredável, efetivando-se, por intermédio da incorporação à Constituição a ser criada, aquilo que se pode chamar de consciência jurídica comunitária, ou seja, o “sentimento” de justiça e os valores que estruturam a sociedade. Além disso, em razão de nenhum Estado viver isoladamente, a obra do poder constituinte – a Constituição – não pode desconsiderar os princípios de direito internacional, como, por exemplo, o princípio de respeito aos direitos humanos.

 

As mitigações sofridas na concepção moderna do Poder Costituinte, entretanto, não o desnaturam como poder originário com competência para organizar juridicamente o Estado. As restrições que lhe são impostas, à evidência, são de ordem política, pois vinculadas à exigência de que tenha um caráter democrático.

 

Na perspectiva jurídica, o Poder Constituinte permanece livre, soberano e incondicionado, disso decorrendo a sua condição de poder originário, hierarquicamente superior aos órgãos que cria. Logo, ao instituir o Poder Reformador, o Poder Constiuinte faz nascer um poder limitado e jungido às atribuições e competências que lhe conferir.

 

Sendo o Poder de Reforma instituído por outro que lhe é superior, não pode extrapolar a competência reformatória que lhe foi outorgada, sob pena de usurpação. Não pode um poder constituído pretender mudar a essência da obra de seu criador, pois a sua razão de existir é exatamente preservar a perenidade daquela, visto que pensar uma Constituição como imutável é algo que se choca com a realidade.

 

Uma Constituição, como obra humana que é, sempre apresentará imperfeições, além de não poder ficar indiferente às modificações que se operam no mundo em que exerce a sua função direcionadora. Logo, a possibilidade de sua reforma é imperativa, até para que não venha a perder a sua “força normativa”. A reforma constitucional é meio de vivificação da Constituição, pois permite a sua atualização e adequação à realidade. Entretanto, a atividade reformatória, por limitada, não pode transformar-se num meio de desnaturação da vontade do Constituinte originário, sob pena de ser cometida fraude contra a Constituição. A impossibilidade de reforma irrestrita tem por finalidade a preservação do núcleo essencial da Constituição, impedindo que ocorra a perda de sua conexão de sentidos, que é o que lhe dá unidade sistêmica.

Exatamente por isso, o Constituinte fixa na sua obra os limites de sua reforma. São explícitos, quando constam no texto constitucional as matérias e conteúdos que não podem ser modificados. São implícitos, quando não-articulados de modo expresso, mas podem ser extraídos do texto da Constituição, por se relacionarem com princípios fundamentais/estruturantes da normativa constitucional.

 

Compreendendo-se o fenômeno constituinte, com a devida atualização oriunda do processo civilizatório da humanidade, constata-se que a revolução – meio tradicional de geração de um processo constituinte – não é mais a única forma de produzir uma Constituição legítima. A transição constitucional pode ocorrer de forma pacífica. E isso se dá quando uma ordem instituída não for mais aceita pelo povo, que, dentro de um contexto histórico próprio, força a derrocada da velha ordem, substituindo-a por outra que atenda aos anseios da sociedade.

 

O processo constituinte de 1987/1988, do qual resultou a Carta Política vigente, é típico caso de transição constitucional pacífica, pois houve a emergência de uma nova ordem constitucional democrática e pluralista, que não apresenta nenhuma vinculação com o regime de força que estava instaurado no país.

 

Via de conseqüência, possível afirmar que a Carta Magna atual é fruto de legítimo Poder Constituinte originário, com legitimação absoluta para impor limites ao Poder Reformador que instituiu, a fim de preservar as conquistas civilizatórias que representam a conformação do Estado como um Estado Democrático de Direito.

 

Na área da infância e juventude, a Constituição de 1988 implicou  verdadeira (r)evolução paradigmática.

 

Suprimiu a chamada doutrina da situação irregular, em que a preocupação era com o “menor desajustado” e o tratamento dispensado era objetificante. Vale dizer, o “menor” era objeto de tutela, de cunho elevadamente discricionário, a fim de que se ajustasse a uma normalidade nem sempre bem delineada, pois variando de acordo com a concepção disso do responsável pelo seu processo de “ajustamento social”.

Ao introduzir no ordenamento jurídico pátrio a doutrina da proteção integral, que tem caráter promocional da dignidade humana, passou a tratar da infância e juventude como um todo, preocupando-se com todos os cidadãos menores de dezoito anos, sem fazer qualquer diferenciação entre normal/anormal. Passou-se do “menor” objeto de compaixão e repressão para uma situação de reconhecimento da infância e juventude como sujeito de direitos.

 

A Constituição, ao determinar prioridade absoluta na concretização das condições de uma existência digna para a infância e juventude, estabelece  que a promoção da dignidade humana dessa categoria de cidadãos tem natureza fundamental, posto que visceralmente ligada ao princípio da dignidade humana.

 

A mudança de paradigma promovida pela Constituição, entretanto, até agora – especialmente em relação à responsabilidade do Estado – não tem sido efetivada da forma esperada.

 

E isso acontece porque a velha ordem (doutrina da situação irregular) encontra-se arraigada no imaginário simbólico de significativa parte da sociedade, bem como no de grande número de operadores do Direito. Essa difuculdade é decorrente, no que se refere aos juristas, de uma visão dogmática acrítica do novo que representou para o Direito a Carta Política de 1988. Continua-se operando como se nada de diferente existisse no campo jurídico, interpretando-se a legislação infraconstitucional como de validade intrínseca, e, de regra, as poucas referências que se fazem à Constituição, são para reconhecer na mesma um conjunto de normas meramente programáticas.

 

A compreensão da mudança paradigmática – em especial na área da infância e juventude, muito embora as constatações feitas sirvam, de um modo geral, para todos os campos do Direito – só ocorrerá através da hermenêutica.

 

Para tanto, por mais paradoxal que pareça, pois a Constituição tem vigência desde 1988, há que se iniciar pelo óbvio: fazer ver que o regramento constitucional é norma de força obrigatória e deve ser cumprido/efetivado. E isso se impõe, pois, como proclama STRECK insistentemente: “a obviedade somente surgirá ‘como’ obviedade a partir de seu des-velamento (algo como algo)”.

 

Pela via hermenêutica, há que se revelar o sentido da Constituição, que é o de “constituir” uma nova ordem. Não pela circunstância de ser a Lei Maior do país, mas porque originária de um processo constituinte e, portanto, como algo que deve “acontecer” - ser constituído materialmente – fazendo surgir a nova sociedade que emoldura através de seus princípios e regras de força obrigatória. Em outras palavras, tem de haver a transformação da vontade do povo – representada na Constituição e elaborada pelo Poder com legitimidade para isso – em realidade prática e efetiva.

 

E na efetivação do Estado Democrático de Direito – inclusa aí a plena implementação do novo paradigma traçado para a infância e juventude –especial responsabilidade incumbe ao Judiciário. Isso porque, sendo a Constituição dirigente da atividade estatal e, portanto, plena em determinações a serem cumpridas pelo Executivo e Legislativo a fim de que o Estado cumpra a sua função de promoção de justiça social, havendo a inércia desses Poderes e sendo o Judiciário provocado a cumprir a sua função jurisdicional, deve agir no sentido de obrigar ao atendimento dos direitos não realizados.

 

É claro que isso deve ser feito com os olhos postos na “reserva do possível”, já que a  demanda – real e potencial – pela efetivação de direitos que implicam prestações positivas do Estado é enorme. Todavia, esse não é o enfoque principal a ser observado.

 

Com efeito, na condição de aplicador da lei, ao Estado-Juiz incumbe revelar o conteúdo da Constituição, impondo-a como norma de força cogente. E isso não exige uma grande dose de ousadia ou inovação, basta ver o novo como novo e aplicar, em sua totalidade, as normas (princípios e regras) que emergem da Constituição em vigor. Para tanto, basta não ficar preso a um dogmatismo acrítico e procurar ver a realidade. E, é de se convir, exigir isso de quem tem por função fazer cumprir a lei não é nada de demasiado.

 

O Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADIn nº 939, que versava sobre a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional que instituiu o IPMF, delineou o seu entendimento sobre a possibilidade de existência de direito fundamental fora do catálogo previsto na Constituição. Foi reconhecido o caráter materialmente aberto dos direitos fundamentais, posto que podem ser localizados em qualquer local do texto constitucional (e até fora dele), sempre que presente uma posição de fundamentabilidade no conteúdo do direito. Ocorreu, com isso, o acolhimento jurisprudencial da posição da doutrina majoritária.

 

Para além disso, a Corte Constitucional – ainda que o resultado do julgamento não tenha sido unânime – reconheceu que a Constituição é uma unidade sistêmica, em que há um entrelaçamento entre princípios e direitos fundamentais, devendo haver um respeito incondicional aos princípios informativos da Carta Política. Foi ressaltado, também, que os limites à reforma constitucional devem ser observados, pois visam a assegurar a obra do Poder Constituinte, não cabendo ao Poder Reformador agir para desnaturar os direitos e garantias fundamentais insculpidos na Constituição, razão pela qual a pretensão reformatória  que possa atingir o núcleo essencial de direito protegido por cláusula de intangibilidade deve, necessariamente, ter uma apreciação restritiva.

 

A Corte Maior, inequivocamente, agiu em defesa da Constituição, resguardando-a de mutilação deformadora, e, o que é principal, trouxe um norte jurisprudencial seguro, no sentido da necessidade de preservação da obra originária do Poder Constituinte.

 

Houve o reconhecimento, pela Corte Constitucional, de que a opção política da Constituinte de  1987/1988 deve ser respeitada, o que implica  poder dizer-se que apontou na direção da plena e efetiva implementação do Estado Democrático de Direito.

 

Sendo a regra que estabelece a idade da imputabilidade penal uma opção política do Constituinte, tanto que a erigiu à condição de norma constitucional, deve assim ser respeitada, visto que a sua constitucionalização implicou na mudança de sua natureza jurídica.

 

Apresenta-se como um direito de defesa da liberdade de todo cidadão menor de dezoito anos de idade, a exigir uma abstenção do Estado, qual seja, a de não promover a persecução penal. Nessa ótica, é garantia (direito-garantia) de direito individual, cuja condição de claúsula pétrea tem expressa (e literal) previsão constitucional (artigo 60, § 4º, inc. IV).

 

Por outra dimensão, apresenta-se como condição de possibilidade do pleno exercício à fruição dos direitos a prestações – garantes de um pleno desenvolvimento social – outorgados à infância e juventude pelo artigo 227 e parágrafos da Lei Maior. E assim é, pois a idade da maioridade penal é que demarca o limite da adolescência. Diminuída, implicaria afastar da condição de adolescente uma parcela dos cidadãos menores de dezoito anos.

 

O artigo 228 da Constituição é regra de imbricação direta com o princípio da dignidade humana, pois preservadora do direito de liberdade, caracterizando-se como autêntico direito fundamental. Logo, pela proibição de retrocesso da posição jurídica outorgada, no que se refere ao seu conteúdo de dignidade humana, é insuscetível de qualquer modificação. Além do que, uma interpretação desse artigo conforme o Estado Democrático de Direito afasta toda e qualquer possibilidade de que sofra alteração.

 

 


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Notas:

Trabalho apresentado na Universidade do Vale Do Rio Dos Sinos, Centro De Ciências Jurídicas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em Direito. Nível Mestrado. Prof. Orientador: Dr. Lenio Luiz Streck, São Leopoldo, junho de 2001.

 

[1] RODRIGUES, Amélia. O vagabundo. In: Álbum das meninas. Revista literária e educativa dedicada às jovens brasileiras, em circulação em 1898. Com o soneto, trazia-se às jovens a preocupação recorrente da sociedade paulistana de então: o enorme número de “menores” criminosos que constantemente ameaçavam a ordem pública e tranqüilidade das famílias.

 

[2] Ver nesse sentido, STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, em especial as notas introdutórias.

 

[3] Constituição Federal, Artigo 228 – “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”.

 

[4] Conforme ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, p. 792.

 

[5] Tratando-se a questão dos princípios, matéria que enseja grande controvérsia classificatória, esclarece-se que não se tem “princípio” como algo que só está no início, na base. Os Princípios ultrapassam um mero ponto de partida, pois envolvem, com suas irradiações de sentidos, todo o processo de criação e aplicação do Direito. Nesse sentido, ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da igualdade, p. 18-9: “Por isso o sistema constitucional é concebido e dinamizado sobre pilares que têm natureza de esteios da construção jurídica que sobre ela se elabora e diretrizes que conduzem o seu entendimento e sua aplicação. Estes pilares fundamentais que, inseridos no sistema constitucional, formam-lhe as bases e definem-lhes os contornos e os matizes são os princípios constitucionais, sem os quais não se faz simétrica e integrada a construção jurídica”.

 

[6] O artigo 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil, assim dispõe: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Na mesma linha, o contido no artigo 126, do Código de Processo Civil: “O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais, não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito”. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 264, em preciosa manifestação, bem situa a questão: “Os princípios baixaram primeiro das alturas montanhosas e metafísicas de suas primeiras formulações filosóficas para a planície normativa do Direito Civil. Transitando daí para as Constituições, noutro passo largo, subiram ao degrau mais alto da hierarquia normativa”.

 

[7] CARVALHO, Amilton Bueno de. Lei para que(m)?, p. 1. O autor observa que a aplicação efetiva dos princípios é restrita: “Muito menor do que o esperado em busca de dar racionalidade (leia-se, justiça) à ordem (im)positva”. Ao discorrer sobre a motivação disso, traz um alerta que deve ser seriamente considerado por quem pretende uma plena efetivação da Constituição: “É que – ao meu sentir – nós, operadores jurídicos, enquanto regra, somos positivistas-legalistas. Trabalhamos com a hipótese subsunçora da lei ao fato. Parece-me que o alto grau de abstração, próprio dos princípios, gera pânico: carrega a falsa idéia de insegurança. É que nosso senso comum é forjado à aplicação da norma visível que exige mínimo – às vezes nenhum – esforço intelectual. Não somos ‘programados’ para abstração – exige criação e não mera repetição do saber manualesco. Ao abstrair, torna-se impossível encontrar modelo já fabricado: somos forçados ao novo. Não logramos, pois, descobrir o invisível que está por detrás da realidade aparente, como ensina Michel Mialle, (...) e tudo fica – cansativamente – como está: a nossa empolada retórica é mesmice espetacular!” (p. 8-9).

 

[8] BUARQUE, Cristovam. A desordem do progresso: o fim da era dos economistas e a construção do futuro, p. 83-4: “De todas as deformações que o enfoque econômico e a visão desenvolvimentista produziram no entendimento do processo social, a mais grave é decorrente do fetichismo de como o problema civilizatório foi transformado em um problema da economia. A deformação se torna mais grave na medida que permeia toda a sociedade, que passa a se ver como espelho da economia. Os problemas sociais e aqueles vinculados diretamente à essência do processo humano deixam de ter uma identidade própria, e são apropriados pela realidade única da economia. Influenciada por anos de primazia do econômico, a sociedade cai na armadilha de considerar as dificuldades econômicas como sendo seus verdadeiros problemas fins. Desaparecem como problemas enfáticos o nível de desnutrição, a deseducação, a falta de cultura e de saúde; tornam-se problemas básicos a dívida externa, a inflação, a crise energética, a taxa de juros”.

 

[9] No Brasil, sem a menor dúvida, forte a corrente liberal que, em pugna constante, bate-se para que o espírito liberal predomine na compreensão da Lei Maior; quer seja por uma interpretação, no mais das vezes, de negativa da Carta Magna, ou pelo esforço de sua conformação, via reforma constitucional, a de um Estado Mínimo.

 

[10] GUERRA FILHO, Willis Santiago (coord.). Direitos fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade. In: Dos direitos humanos aos direitos fundamentais, p. 17.

 

[11] A presença de um determinado princípio num ordenamento jurídico – de forma explícita ou implícita – vai depender, sempre, de seu acolhimento em tal sistema, pois nem todos princípios vigem de forma universal e igual nos diversos ordenamentos: “Em cada ordenamento jurídico subjazem determinados princípios. Cuida-se de princípios – princípios gerais do direito (isto é, desse direito) – que, embora não enunciados em texto escrito, em cada ordenamento estão contemplados, em estado de latência. (...) Tais princípios, em estado de latência existente sob cada ordenamento, isto é, sob cada direito posto, repousam no direito pressuposto que a ele corresponda. Neste direito pressuposto os encontramos ou não encontramos; de lá os resgatamos, se nele preexistirem. (...) Cumpre distinguirmos, pois, os princípios positivados pelo direito posto (direito positivo) e aqueles que, embora nele não expressamente enunciados, existem, em estado de latência, sob o ordenamento positivo, no direito pressuposto”. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, p. 102-3.

 

[12] Cumpre esclarecer, desde já, que a concretização dos princípios através das regras não implica uma relação direta entre determinado princípio e uma regra. Tal concretização pode vir mediada por outros menos genéricos ou subprincípios, até ser densificado por uma regra. SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal, p. 42-3: “Dentro do sistema jurídico, os princípios passam por um processo de concretização sucessiva, através de princípios mais específicos e subprincípios, até adquirirem o grau de densidade de regras. Tal concretização não se dá através de um simples processo lógico-formal (...) O que ocorre, na verdade, é um procedimento dialético, no qual cada subprincípio em que se desdobra o princípio original adiciona a este novas dimensões e possibilidades, subsistindo o princípio original no papel de vetor exegético dos cânones mais específicos”.

 

[13] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 1086-87.

 

[14] Esta é a posição de ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, p. 83-7, ao examinar os critérios tradicionais para distinção entre regras e princípios, concluindo que “(...) la diferencia entre reglas y principios es cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien una regla o un principio”.

 

[15] Idem, p. 86.

 

[16] Idem, p. 87.

 

[17] É inequívoco que os princípios apresentam-se imbricados com valores, muito embora não sejam da mesma categoria. Os valores têm caráter nitidamente axiológico – de juízos de valor. Os princípios, por sua vez, como “mandados de otimização” (isto é, de realização possível, como já visto), estão no nível deontológico – do dever ser. Para um exame acurado do ponto, ver ALEXY, Robert. Op. cit., p. 138 e ss.

 

[18] ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade, p. 154. Na mesma linha, GUASTINI, que, após enumerar cinco modos - sendo que alguns com subdivisões - de diferenciação de princípios e regras (que refere como normas) - conclui que “(...) la interpretación es capaz de transformar los principios em normas y las normas en principos. De esta forma, la distinción entre normas y principios se desvanece completamente. Ya no podrá decirse, al nivel de la teoría del derecho que, el derecho está compuesto de normas y principios. Únicamente se podrá decir, al nivel de la metajurisprudencia descriptiva o de historia de las doctrinas jurídicas que, algunos juristas interpretan ciertas disposiones como normas y otras como principios”. GUASTINI, Ricardo. Distinguiendo. Estudios de teoría y metateoría del derecho, p. 147.

 

[19] ALEXY, Robert. Op. cit., p. 105-9.

 

[20] UNGER, Roberto Mangabeira. Conhecimento e política, p. 44: “O ato de pensar e a linguagem dependem do uso de categorias. Precisamos classificar para pensar e para falar. Mas não podemos estar certos de que algo neste mundo corresponde às categorias que usamos. Nossas concepções sobre a ciência e a natureza parecem implicar que acreditamos tanto em que as nossas classificações possam ser verdadeiras quanto em que possam ser falsas”.

 

[21] Para uma visão panorâmica da matéria, entre outros, ver SARMENTO, Daniel. Op. cit.,Também, com outra perspectiva, ÁVILA, Humberto Bergmann. Op. cit.

 

[22] ALEXY, Robert. Op. cit., p. 87.

 

[23] ALEXY, Robert. Op. cit., p. 88.

 

[24] Idem, p. 89.

 

[25] Idem, ibidem. “Los conflitos de reglas se llevan a cabo en la dimensión de la validez; la colisión de principios – como sólo pueden entrar en colisión principios válidos – tiene lugar más allá de la dimensión de la validez, en la dimensión del peso”.

 

[26] BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 265.

 

[27] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 1085.

 

[28] Importante consignar que a aprendizagem atualizadora dos princípios tem limites. A renovação de atualização não pode ser utilizada como um meio de promover uma ruptura da ordem constitucional, transformando-se num modo sorrateiro e ilegítimo de reforma constitucional. Tem de ficar nos limites da tarefa de interpretação, tão-somente, sem transformar-se em maneira de subverter a ordem constitucional legítima.

 

[29] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 1090: “Consideram-se princípios jurídicos fundamentais os princípios historicamente objetivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional. Pertencem à ordem jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo”.

 

[30] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 18. No mesmo sentido, ver, também: GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 164.

 

[31] “Artigo 1º- A República Federativa do Brasil, formada pela União indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político”. “Parágrafo único - Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição”. “Artigo 2º- São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. “Artigo 3º- Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. “Artigo 4º- A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I – independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político”. “Parágrafo único - a República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.

 

[32] “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.

 

[33] “Artigo 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

 

[34] Não se desconhece a crítica à opção de visualizar a evolução dos direitos fundamentais em gerações, ao invés de falar em dimensões de tais direitos. Ocorre que se entende que a idéia de geração bem traduz o processo evolutivo-histórico e sucessivo do surgimento dos direitos fundamentais. Tem-se que “os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. p. 5. Além do que, é sabido que os direitos fundamentais mudam de conteúdo em cada momento histórico, pois o processo de emergência dos mesmos é cumulativo e complementar.

 

[35] LOBATO, Anderson Cavalcante. O reconhecimento e as garantias constitucionais dos direitos fundamentais, p. 145.

 

[36] LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos humanos, estado de derecho y constitucion, p. 31.

 

[37] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 30.

 

[38] SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 80.

 

[39] STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, Jose Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do estado, p. 93.

 

[40] Para uma compreensão ampla da questão sobre público/privado, ver BOBBIO, Norberto. A grande dicotomia: público/privado. In: Estado, governo, sociedade; por uma teoria geral da política, p. 13-31.

 

[41] MORAIS, José Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses trans-individuais, p. 72.

 

[42] Cumpre salientar que nem todas as liberdades são garantidas somente pela abstenção do Estado. Existem liberdades que exigem um agir positivo do Estado, garantindo o exercício da mesma; v.g.: a liberdade religiosa, em que o Estado, além de permitir a liberdade de crença, também tem de assegurar as condições necessárias para a sua prática. Vide MIRANDA, Jorge. Os direitos fundamentais – sua dimensão individual e social, p. 202.

 

[43] Idem, p. 204.

 

[44] A tecnologia introduzida, através da estruturação do processo fabril, criou uma regularidade de produção antes inocorrente, pois esta ficava dependente/condicionada a variáveis da natureza (clima) e do ritmo de labor estabelecido pelos artesãos/produtores.

 

[45] Observa-se que o viés aqui adotado é da notícia da evolução do Estado Liberal para o Estado Social, em grandes pinceladas, sem a fixação do enfoque nos atores que impulsionaram a mudança, como também poderia ser feito. Para tanto, vide MORAIS, José Luis Bolzan de. A subjetividade do tempo. Uma perspectiva transdisciplinar do direito e da democracia, p. 27: “Ocorre, nestes tempos de Revolução Industrial, uma transformação completa nos modos de vida incrustrados no contexto social. Estabelece-se um rearranjo no processo produtivo que incorpora ‘a disciplina, a monotonia, as horas e as condições de trabalho; a perda do tempo livre e do lazer; a redução do homem ao status de instrumento’, entre outras coisas”.

 

[46] Volta-se a ressaltar que se traz uma visão panorâmica e geral da emergência histórica dos direitos fundamentais. Tal ressalva é importante, pois à luz do ordenamento constitucional positivo brasileiro, os direitos fundamentais sociais – de regra identificados pela doutrina como direitos de segunda geração ou dimensão – não se constituem somente de direitos a uma prestação positiva do Estado. V.g.: direito de greve, art. 9º, da Constituição Federal; proibição de discriminação em relação a salário e critério de admissão para o trabalhador portador de deficiência, art. 7º, inc. XXXI, da Carta Magna; direito de livre associação sindical, art. 8º da Carta Política. Em tais casos é exigida uma omissão dos destinatários – Estado ou particular – a fim de assegurar o exercício desses direitos pelos trabalhadores. Em suma, pode-se afirmar que, em relação ao nosso sistema constitucional, os direitos fundamentais sociais não se restringem a prestações positivas.

 

[47] MORAIS, José Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses trans-individuais, p. 80.

 

[48] MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 83.

 

[49] “São os direitos humanos de terceira geração aqueles que ultrapassam em seus limites subjetivos a figura de um indivíduo, de um grupo, ou de um determinado Estado. Aprofundam, como já salientado, o seu conteúdo genérico, tendo como destinatário direto e indireto o gênero humano. O seu asseguramento ou a sua violação atingem inarredavelmente este conjunto indeterminado de indivíduos”. Idem, p. 166.

 

[50] Conforme P. Bonavides, a democracia afigura-se como um direito fundamental de quarta geração, pois deve ser de “aplicação compulsiva”, já que é o “mais fundamental dos direitos políticos” – positivado em Constituições e Tratados – e “de observância necessária, por conseguinte, tanto na vida interna como externa dos Estados”. BONAVIDES, Paulo. Teoria do estado, p. 350. Depois, também, já acrescentando a informação e o pluralismo como direitos de quarta geração. Idem. Curso de Direito Constitucional, p. 525. ALCEBÍADES JÚNIOR, José. Cidadania e novos direitos. In: O novo em direito e política, p. 193: refere direitos de quinta geração relacionados com o desenvolvimento da cibernética.

 

[51] STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 91.

 

[52] Definir/conceituar democracia é algo difícil e complexo, que, em vista da finalidade deste trabalho, não será investigado. Interessa, no entanto, consignar que se trabalha com a idéia de democracia como algo necessariamente imbricado no seu conteúdo histórico, com o sentido de uma forma de sociedade que é “precisamente o privilégio da invenção quotidiana [da sociedade], a exaltação de seus antagonismos e formas de resistência às práticas de dominação. Ela precisa, para constituir-se, do reconhecimento de um território simbólico coletivamente constituído como negação de um lugar a priori, e como rebelião a um delito social julgado previsível”. WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito, III, p. 102.

 

[53] Cabe anotar que um dos argumentos mais utilizados pelos que lutam por constantes reformas da Constituição brasileira, com a intenção da implantação plena do neoliberalismo no país, é de que a Carta Magna de 1988 é um grande conjunto de promessas irrealizáveis, devendo ser “limpa” das utopias e tornar-se algo concretizável. Ora, a “concretização” pretendida nada mais é do que manter o status quo de pura predominância econômica, com término de qualquer normatividade que possibilite/obrigue o Estado a promover a inclusão social. É, em essência, a pretensão de negação do Estado Democrático de Direito, com retorno ao Estado Liberal Individualista.

 

[54] STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 90.

 

[55] LEAL, Rogério Gesta. Direitos humanos no Brasil: desafios à democracia, p. 131.

 

[56] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 9.

 

[57] SCHMITT, Carl. Teoría de la constitución, p. 93-4: “Poder constituyente es la voluntad política cuya fuerza o autoridad es capaz de adoptar la concreta decisión de conjunto sobre modo y forma de propria existencia política, determinando así la existencia de la unidad política como un todo”. Cumpre observar que a Teoria da Constituição de Carl Schmitt é obra que faz arguta crítica ao Estado Liberal, examinando as contradições decorrentes da assunção do poder pela burguesia. Por óbvio, não se pode esquecer que o autor introduz um fundo ideológico subjacente – de todo reprovável, posto que tinha convicções políticas nazistas. A compreensão disso, que faz com que Schmitt não consiga trazer para suas reflexões um sentido pluralístico democrático e concentre-se na exaltação de um estado nacional homogêneo, isto é, que não reconhece como de validade intrínseca os direitos das minorias, não invalida que a obra seja aproveitada enquanto crítica objetiva, profunda e histórica do constitucionalismo liberal-burguês.

 

[58] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 122.

 

[59] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 65-6.

 

[60] Consigna-se o fundamentado entendimento de Oscar Vilhena Vieira de que a teoria constituinte norte-americana é mais sofisticada e democrática que a concepção formulada por Sieyès, pois esteia a supremacia da Constituição “em um somatório de razões, que associa valores substantivos, modelo de deliberação e processo de ratificação – ou seja: conjuga justificações valorativas, de racionalidade procedimental e majoritária”. VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. Um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma, p. 58-9.

 

[61] COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 123.

 

[62] A questão da denominação da assembléia foi resolvida, também, com base nas idéias de Sieyès – que adiante serão explicitadas – ficando os deputados do Terceiro Estado reunidos em uma Assembléia Nacional.

 

[63] SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa: que é o terceiro estado, p. 51.

 

[64] Mais precisamente, conforme SCHMITT, Carl. Op. cit., p. 95-6: a nação, pois já existia, na França, uma consciência de existência política como tal, conformada como um Estado desde a monarquia absolutista. Tal constatação só tem sentido no viés liberal do que seja uma nação; mas em sede de revolução burguesa, como foi à francesa, a observação é absolutamente pertinente.

 

[65] SIEYÈS, Emmanuel Joseph. Op. cit., p. 94.

 

[66] Impõe-se a consignação da tríade de possibilidades, pois os norte-americanos – sem a clareza teórico-conceitual expressa por Sieyès – já haviam feito a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos, no curso do processo que culminou com a Constituição de 1787 (isto é, da Constituição de uma confederação até a formação da federação).

 

[67] BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 122.

 

[68] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 77.

 

[69] Entendimento estruturado com base em HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, p. 37 e passim. Conforme, também, CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 71: “(...) o povo, nas democracias actuais, concebe-se como uma ‘grandeza pluralística’ (P. Häberle), ou seja, como uma pluralidade de forças culturais, sociais e políticas, tais como partidos, grupos, igrejas, associações, personalidades, decisivamente influenciadoras da formação de ‘opiniões’, ‘vontades’, ‘correntes’ ou ‘sensibilidades’ políticas nos momentos preconstituintes e nos procedimentos constituintes”.

 

[70] Está tão disseminado o uso de tal denominação na doutrina, por força da tradição, que acaba por não gerar qualquer dúvida de significação, já que o seu conteúdo é o de referência inequívoca ao poder reformador.

 

[71] DANTAS, Ivo. O valor da Constituição (do controle da constitucionalidade como garantia da supralegalidade constitucional), p. 170-1: Apesar de alguns autores referirem-se à existência de um (Poder Constituinte Originário) e de um (Poder Constituinte Derivado), tais expressões não nos satisfazem, dentre outros motivos, por trazerem em si contradições, até mesmo de ordem semântica. (...) ou estamos diante de um Poder Constituinte (necessariamente originário e juridicamente ilimitado), ou estamos diante de um Poder Constituído de Reforma (necessariamente derivado e juridicamente limitado). Em outras palavras: enquanto o primeiro precede ao ordenamento jurídico, trazendo em si uma natureza de poder de facto, o segundo – Poder de Reforma – existe dentro do próprio ordenamento, por opção do constituinte, tendo em vista a necessidade de adaptar-se o texto a novas situações, realidades e valores sociais. Tal previsão pelo ordenamento jurídico-constitucional, lhe dá uma natureza de poder de jure constituído, pois. Também, entre outros, pugnam pela denominação poder reformador: SAMPAIO, Nelson de Souza. O poder de reforma constitucional, p. 109; AGRA, Walber de Moura. Fraudes à Constituição: um atentado ao poder reformador, p. 125.

 

[72] SALDANHA, Nelson. Formação da teoria constitucional, p. 143: “(...) a compreensão do alcance técnico deste princípio, inserido na feitura mesmo dos textos constitucionais, que levou à idéia de rigidez constitucional, correspondente à existência, nas constituições, de dispositivos concernentes à reforma delas próprias: competência, alcance, procedimento”.

 

[73] BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, p. 65-6.

 

[74] Conforme SALDANHA, Nelson. Op. cit., p. 144, com base no entendimento de A. Esmein, que cita.

 

[75] Também na mesma linha de entendimento, BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. Op. cit., p. 67-8, com o esclarecimento de que a enunciação precisa da terceira posição deve ser atribuída a Rousseau “nos seus estudos sobre a reforma do governo da Polônia”. Ainda, BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 174-75, quando explana sobre o surgimento da reforma constitucional.

 

[76] Para uma visão histórica de como a possibilidade reformatória, via emenda, foi introduzida na Constituição norte-americana, ver VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. cit., p. 60 e ss. Muito interessante, também, a idéia sustentada de que a possibilidade de reforma prevista na própria Constituição, pode ser vista como a institucionalização da revolução, visão essa baseada na “alternativa lockeana” de que qualquer correção na Constituição só poderia ser feita com recurso à revolução.

 

[77] A matéria atinente à alteração da Carta Política, via emenda, pelo Poder Reformador instituído, está regulada no artigo 60 e parágrafos da Constituição Federal. A possibilidade de revisão da Constituição de 1988, prevista no artigo 3º dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias – cuja possibilidade de ocorrência se deu em 1993 - também tinha previsão de ser procedida pelo Congresso Nacional, só que reunido em sessão unicameral e com quorum de aprovação menor (maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional).

 

[78] Argumenta-se que a Constituinte de 1987/1988 era, tão-somente, o Congresso Nacional com poderes especiais para reforma, conforme se vê da Emenda n° 26/85 à Constituição de 1967/1969: “Esta Emenda n.° 26/85 alterou o processo de emenda previsto na Constituição então vigente, com isso autorizando o Congresso Nacional a assumir a feição de ‘Constituinte’, simplificando o procedimento (maioria absoluta dos membros do Congresso para a aprovação e não maioria de dois terços de cada Casa), e, sobretudo, suprimindo as ‘cláusulas pétreas’ consagradas na Constituição de 1967, na Emenda n.° 1/69, art. 47, § 1°. Nem por sombra aparece nesse processo político-jurídico o poder inicial de organizar a nação que é o verdadeiro poder constituinte. (...) as ‘cláusulas pétreas’ em vigor vieram de uma reforma constitucional, tendo sido obra do poder constituinte derivado. Ora, o que o poder derivado estabelece, poder derivado pode mudar”. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Significação e alcance das “cláusulas pétreas”, p. 9.

 

[79] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Constituição e inconstitucionalidade II, p. 76: “Não é, com efeito, todos os dias que uma comunidade política adota um novo sistema constitucional, fixa um sentido para a ação do seu poder, assume um novo sentido; é apenas em tempos de ‘viragem histórica’, em épocas de crise, em ocasiões privilegiadas irrepetíveis em que é possível ou imperativo escolher. E estas ocasiões não podem ser catalogadas a priori; somente podem ser apontados seus resultados típicos – a formação de um Estado ex-novo, a sua restauração, a transformação da estrutura do Estado, a mudança de um regime político. Poder constituinte equivale à capacidade de escolher entre um ou outro rumo, nessas circunstâncias. E nele consiste o conteúdo essencial da soberania (na ordem interna), pois, como ensina a doutrina mais autorizada, soberania significa faculdade originária de livre regência da comunidade política mediante a instituição de um poder e a definição de seu estatuto jurídico”.

 

[80] E tanto é assim que desde o golpe de 1964 houve resistência e luta pelo retorno à democracia, obrigando o poder militar a fazer uso dos Atos Institucionais para implantação plena da ditadura. Por algum tempo, especialmente após a edição do Ato Institucional n.º 5, com certeza, o instrumento mais autoritário da história política brasileira, houve uma diminuição da resistência democrática pelo recrudescimento da repressão política. Todavia, a partir de 1982, com a eleição dos Governadores dos Estados, a luta pela restauração democrática tomou novo fôlego, ganhando as ruas, e em 1984, de forma nunca vista no Brasil, tivemos a mobilização popular para a eleição direta do Presidente da República. Tal perspectiva restou frustrada naquele momento, mas o processo de redemocratização apresentava-se irreversível e passou a acontecer pelos meios estabelecidos pela própria ditadura para garantir a sua sobrevivência, sendo Tancredo Neves eleito Presidente da República pela via indireta. Buscavam as forças democráticas, dentro do possível, fazer avançar o processo de restauração da democracia. Tancredo Neves morreu antes de assumir a Presidência da República, mas nem a posse do Vice-Presidente eleito, José Sarney - figura que historicamente sempre esteve vinculada com o que havia de mais retrógrado em termos políticos e fora sustentáculo civil da ditadura militar - foi capaz de frear a marcha para a democracia exigida pela nação. O clamor social por mudanças, pelo enterro da ordem autoritária que se instalara em 1964, fez com que fosse convocada uma constituinte congressual através da Emenda Constitucional n.º 26, promulgada em 27 de novembro de 1985.

 

[81] MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 87.

 

[82] MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 88-9: “(...) na transição constitucional se observam as competências e as formas de agir instituídas: o Rei absoluto, por o ser, pode autolimitar-se, tal como uma assembléia pode ser autorizada por uma lei formalmente conforme com a Constituição previgente a decretar uma nova Constituição. Dir-se-á que, de qualquer sorte, existe desvio ou excesso de poder, visto que um órgão criado por certa Constituição está vedado, por natureza, suprimi-la ou destruí-la. Mas esse desvio de poder só se dá do prisma da Constituição anterior; não do prisma da nova Constituição, que, precisamente, surge com a decisão de abrir caminho ou deixar caminho aberto à mudança de regime. E nisto consiste – em paralelo com o que se verifica com a revolução – o exercício do poder constituinte originário. Em última análise, uma transição constitucional produz-se porque a velha legitimidade se encontra em crise e justifica-se porque emerge uma nova legitimidade. E é a nova legitimidade ou idéia de Direito que obsta à arguição de qualquer vício no processo e que, doravante, vai não só impor-se como fundamento de legalidade mas ainda obter efetividade”.

 

[83] A Emenda Constitucional n.º 26/85, no que interessa para o exame da questão, está assim lavrada: “Art. 1º. Os Membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional. (...) Art. 3º. A Constituição será promulgada depois da aprovação de seu texto, em dois turnos de discussão e votação, pela maioria absoluta dos Membros da Assembléia Nacional Constituinte”.

 

[84] JOBIM, Nelson. Poder constituinte originário e poder constituinte derivado, p. 5-6: As estruturas e os paradigmas da Carta de 1969 são incompatíveis com as concepções democráticas, mormente quanto à regulamentação do Estado em suas relações com a sociedade. Por isso, e exatamente por isso, a Nação clamara pela convocação da Assembléia Nacional Constituinte, porque tinha presente a impossível tarefa de extrair do ventre do autoritarismo um modelo democrático de convivência social. E assim, o Congresso Nacional de 1985, na esteira de um projeto oriundo do Executivo, convoca a Assembléia Nacional, para que esta, integrada pelos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, escreva a nova Constituição, livre e soberanamente. Note-se que o Congresso Nacional de 1985, com a competência que lhe outorgou a Carta de 1969, convocou esta Assembléia Nacional com a finalidade explícita de criar, sem limitações materiais de qualquer natureza, uma nova Constituição. As únicas limitações contidas no ato convocatório dizem com temas procedimentais: a aprovação da nova Carta dar-se-á por maioria absoluta e em dois turnos de votação. (...) um poder constituinte, livre e soberano – incondicionado, portanto – emerge, sem o colapso do sistema anterior e no bojo de uma transição pacífica. O ato convocatório não atribuiu ao Congresso Nacional de 1987 o poder de reformar totalmente a Carta de 1969. Aliás, o ato convocatório não modificou em nada a Carta Constitucional de 1969 quanto aos poderes de emenda do Congresso Nacional. Manteve-os íntegros. (...) Podemos agora afirmar, sem medo algum, que esta Assembléia Nacional é um poder cuja legitimidade decisória não decorre da Carta de 1969, porque não sujeita aos paradigmas desta, nem mesmo aos seus procedimentos. Não somos um poder com a competência de produzir normas constitucionais. Somos, isto sim, um poder com a força de produzir uma Constituição. É esta Assembléia um poder constituinte originário porque tem a força de criar um sistema de normas constitucionais ‘por via diferente das que a Constituição atual autoriza e à margem das limitações que fixa’. (...) Com a promulgação e vigência da nova Constituição, derrogada estará a Carta de 1969.

 

[85] RUSCHEL, Ruy Ruben. Direito constitucional em tempos de crise, p. 160: “O fato de sua convocatória ter emanado de uma emenda interposta à Carta de 1967-1969 (a Emenda n.º 26, de 27-11-1985) não impediu que funcionasse como Assembléia Nacional Constituinte livre e soberana. Esta restou de ruptura constitucional, sim, mas ocorrida em 1964 (aliás repetida sucessivas vezes) provocada pelo acesso dos militares ao poder, e não em 1985-88. O período que se estendeu de 1964 a 1988 pode considerar-se um hiato constitucional, como o chamaria Ivo Dantas (Poder Constituinte e Revolução, Ed. Rio, 1977, p. 36). Com efeito, a Carta de 1967 nunca serviu de apoio a um legítimo estado de direito, nascida que foi de uma imposição (Ato Institucional n.º 4) e posteriormente sujeita a constantes violações. O movimento contra o farisaísmo dessa Carta teve o objetivo claro de reconstitucionalizar o país, dando-lhe uma Constituição que a rigor não tinha. Dizer que a Constituição Cidadã nasceu de uma costela da Milica (Carta de 1967) representa apego exagerado à forma”.

 

[86] Exemplificativamente, pode-se citar a passagem da IV para a V República na França, em 1958; a redemocratização do Chile após a Ditadura Pinochet, entre 1988 e 1990; a mudança do regime de segregação racial na África do Sul, que, em 1994, teve a primeira eleição com a participação igualitária da população negra.

 

[87] WOLKMER, Antônio Carlos. Uma nova conceituação crítica de legitimidade, p. 31: “(...) a construção crítica de uma legitimidade democrática que venha fundamentar o Poder político e o Direito justo tem seu ponto de referência deslocado da antiga lógica de legitimação, calcada na legalidade tecnoformal para uma legitimidade instituinte, formada no justo consenso da comunidade e num sistema de valores aceitos e compartilhados por todos. Não se trata mais de identificar e reduzir o conceito de legitimidade ao aspecto simplesmente jurídico, ou seja, a estrita vinculação com a validade e eficácia enquanto produção de efeitos normativos. Numa cultura jurídica pluralista, democrática e participativa, a legitimidade não se funda na legalidade positiva, mas resulta da consensualidade das práticas sociais instituintes e das necessidades reconhecidas como reais, justas e éticas ”.

 

[88] MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 85.

 

[89] LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição, p. 59-60: “Onde a Constituição escrita não corresponder à real, irrompe inevitavelmente um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dia menos dia, a Constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a Constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país”. É de observar-se que LASSALE, na obra antes referida, logrou explicitar a fundamentação sociológica das constituições, tornando claro que essa se baseia nos fatores reais/efetivos de poder de uma sociedade.

 

[90] Pode-se afirmar que a sociedade que impôs o fim do regime militar representava o poder constituinte originário material (fatores reais de poder preponderantes no meio social) e que é a fonte de legitimidade da Constituinte de 1987/1988, independentemente do modo pelo qual houve a sua convocação.

 

[91] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, p. 15.

 

[92] PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral. Os limites do poder constituinte e a legitimação material da Constituição, p. 142.

 

[93] Conforme SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 45-6: “Rígida é a Constituição somente alterável mediante processos, solenidades e exigências formais específicas, diferentes e mais difíceis que os de formação das leis ordinárias ou complementares. Ao contrário, a Constituição é flexível quando pode ser livremente modificada pelo legislador segundo o mesmo processo de elaboração das leis ordinárias. Na verdade, a própria lei ordinária contrastante muda o texto constitucional. Semi-rígida é a Constituição que contém uma parte rígida e outra flexível, como fora a Constituição do Império do Brasil, à vista de seu art. 178”.

 

[94] V.g.: MELO, Oswaldo Aranha Bandeira de. A teoria das constituições rígidas, p. 40-1: “As Constituições, como obras, não podem ser perfeitas; demais, a sociedade evolve, pois, certos preceitos convenientes em determinadas situações sociais e políticas já se não amoldam exatamente a outras, e surge, naturalmente, a necessidade de reformá-las, para não ficarem sendo objetos de museu de antigüidades. Impossível se admitirem leis imutáveis em todas as suas disposições”. Também, BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 173-74: “A imutabilidade constitucional, tese absurda, colide com a vida, que é mudança, movimento, renovação, progresso, rotatividade. Adotá-la equivaleria a cerrar todos os caminhos à reforma pacífica do sistema político, entregando à revolução e ao golpe de Estado a solução das crises. A força e a violência, tomadas assim por árbitro das refregas constitucionais, fariam cedo o descrédito da lei fundamental”.

 

[95] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 211.

 

[96] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição, p. 22: “Igualmente perigosa para a força normativa da Constituição afigura-se a tendência para a freqüente revisão constitucional sob a alegação de suposta e inarredável necessidade política. Cada reforma constitucional expressa a idéia de que, efetiva ou aparentemente, atribui-se maior valor às exigências de índole fática do que à ordem normativa vigente. Os precedentes aqui são, por isso, particularmente preocupantes. A freqüência das reformas constitucionais abala a confiança na sua inquebrantabilidade, debilitando a sua força normativa. A estabilidade constitui condição fundamental da eficácia da Constituição”.

 

[97] Como a pesquisa procura demonstrar que é inviável a modificação da idade penal mínima, que tem expressa consignação constitucional e enquanto lá constar não deixará de gerar seus efeitos, não será feita uma análise da chamada mutação constitucional informal, ou seja, daquela mudança que se opera gradualmente no tempo e modifica a Constituição de modo informal, sem alteração de seu texto. Tal modificação se dá pela interpretação, usos, costumes, etc.: “En la mutación constitucional, por outro lado, se produce una transformación en la realidad de la configuración del poder político, de la estructura social o del equilibrio de interesses, sin que quede actualizada dicha transfomación en el documento constitucional: el texto de la constitución permanece intacto”. LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución, p. 165.

 

[98] A regulação da matéria atinente ao processo de emenda está contida no artigo 60 da Constituição, que tem a seguinte redação: Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II – do Presidente da República; III – de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. § 1º - A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. § 2º - A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. § 3º - A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem. § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta tendente a abolir: I – a forma federativa do Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais. § 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.

 

[99] Para uma visão panorâmica histórica dos procedimentos de reforma das Constituições brasileiras, ver: VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. cit., p. 116-25.

 

[100] AGRA, Walber de Moura. Op. cit., p. 133.

 

[101] Interessante observar que a Constituição de 1824, em seu artigo 178, estabelecia o que era matéria de ordem constitucional e estava sujeita ao procedimento especial instituído para reforma da Constituição: “Art. 178. É só Constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos Poderes Políticos e aos Direitos Políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o que não é Constitucional pode ser alterado sem as formalidades referidas pelas Legislaturas ordinárias”.

 

[102] “Art. 174. A Constituição pode ser emendada, modificada ou reformulada por iniciativa do Presidente da República, ou da Câmara dos Deputados. § 1º O projeto de iniciativa do Presidente da República será votado em bloco, por maioria ordinária de votos da Câmara dos Deputados e do Conselho Federal, sem modificações ou com as propostas pelo Presidente da República, ou que tiverem a sua aquiescência, se sugeridas por qualquer das Câmaras. § 2º O projeto de emenda, modificação ou reforma da Constituição de iniciativa da Câmara dos Deputados, exige, para ser aprovado, o voto da maioria dos membros de uma e outra Câmara. § 3º O projeto de emenda, modificação ou reforma da Constituição, (...)”. O artigo antes transcrito é o de redação original, que sofreu modificação pela Lei Constitucional n.º 9, de 28.02.1945, mas sem alterar a parte em que há referência à “emenda, modificação ou reforma”, que é o que interessa para o tema que se desenvolve.

 

[103] MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967, p. 143-44: “Na Constituição de 1937, a terminologia era ambígua; e mais que ambígua: equívoca. O Título era Das emendas à Constituição, o que fazia crer-se no sentido de emenda como o do conceito geral, abrangente de quaisquer modificações ou alterações do texto constitucional, do mínimo ao máximo de mudança permitida, dentro da ordem constitucional. Mas o art. 174 logo nos apontava três conceitos, repetidamente, como se fossem indispensáveis ao bom entendimento dos seus princípios: emenda, modificação, reforma”.

 

[104] Há que se consignar que tal entendimento não é pacífico, havendo posicionamento de que o termo revisão, no constitucionalismo brasileiro, não tem acepção técnica. Ou seja, não tem significado diverso ao de emenda. Vide: RUSCHEL, Ruy Ruben. Op. cit., p. 161-62. No mesmo sentido, identificando, numa acepção ampliativa, reforma, revisão e emenda como conceitos que se identificam, FERREIRA, Luiz Pinto. Curso de direito constitucional, p. 333.

 

[105] Para uma visão crítica da questão da revisão constitucional, ver STRECK, Lenio Luiz. Constituição: limites e perspectivas da revisão.

 

[106] MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 190.

 

[107] A explicitação do que seja a dupla revisão será feita no tópico em que se tratar dos limites implícitos de forma específica.

 

[108] LOEWENSTEIN, Karl. Op. cit., p. 192, faz crítica de outra ordem à existência de limites à reforma. Aduz que tais vedações não apresentam nenhum efeito prático em momentos históricos de crise: “En general, sería de señalar que las disposiciones de intagibilidad incorporadas a una constitucion pueden suponer en tiempos normales una luz roja útil frente a mayorías deseosas de enmiendas constitucionales – y según la experiencia tampoco existe para esto una garantía completa - pero com ello en absoluto se puede decir que dichos preceptos se hallen inmunizados contra toda revisión. En un desarrollo normal de la dinámica política puede ser que hasta cierto punto se mantengan firmes, pero en épocas de crisis son tan sólo pedazos de papel barridos por el viento de la realidad política”.

 

[109] A palavra “revisão” vem utilizada como sinônimo de reforma; aliás, como é comumente usada na doutrina estrangeira. Vale dizer, não se dá a tal termo o mesmo conteúdo significativo que, majoritariamente, é conferido no constitucionalismo brasileiro.

 

[110] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 995.

 

[111] BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 178.

 

[112] Na mesma linha, também, MOREIRA, Vital. Constituição e revisão constitucional, p. 103: “Na verdade, os limites de revisão constitucional partem de dois pressupostos, que hoje são indiscutíveis na teoria constitucional: a) uma Constituição não é uma lei qualquer, um mero conjunto de preceitos reguladores do processo político, mas sim a lei fundamental da sociedade política e do Estado, que não pode ser alterada nos seus aspectos essenciais sob pena de subversão da própria colectividade política; b) o poder de revisão constitucional é um poder derivado do poder constituinte e a ele submetido, sendo a sua função não a de renovar o poder constituinte, alterando livremente a Constituição, mas sim a de defender e preservar a Constituição, mantendo a sua identidade originária e introduzindo as alterações e os ajustamentos que se revelem necessários para reforçar a vitalidade da Constituição”.

 

[113] BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 178.

 

[114] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 994.

 

[115] Segundo VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. cit., p. 134-35, a existência de rol tão extensivo justifica-se pela circunstância de que o quorum de três quintos para aprovação de emenda constitucional, “dissociado de outros mecanismos que diminuam os ímpetos reformistas, certamente abre a possibilidade de constantes mudanças no texto da Constituição. (...) Caso essa flexibilização não viesse acompanhada de uma expansão das cláusulas limitativas do poder de reforma, poderia gerar situações de absoluta fragilidade do cerne básico da Constituição, que organiza o Estado Democrático de Direito. Daí surge a importância absoluta não apenas dos dispositivos que estabelecem os limites materiais ao poder de reforma, como de sua adequada compreensão e aplicação”.

 

[116] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 32-3.

 

[117] MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 198-99. Também, FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 8, 10.

 

[118] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 8, por exemplo, apresenta restrições a uma existência clara de limites imanentes ao poder de reforma de texto constitucional. Vê dificuldade na localização de um núcleo fundamental de uma Constituição quando essa não expressar limites a sua reforma, e, por conseqüência, assentar-se quais os limites implícitos a uma reforma é algo bastante difícil. Em existindo expressamente limite à reforma – pela indicação de qual o núcleo fundamental, que se apura pelas cláusulas pétreas - sustenta ser impossível conceber a existência de limite implícito: “A lógica parece excluí-lo. Difícil é admitir que o constituinte ao enunciar o núcleo intangível da Constituição o haja feito de modo incompleto, deixando em silêncio uma parte dele, como que para excitar a capacidade investigatória dos juristas”.

 

[119] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 38.

 

[120] LOEWENSTEIN, Karl. Op. cit., p. 189.

 

[121] SCHMITT, Carl. Op. cit., p. 109, 119. É de observar-se que SCHMITT admite que, em determinadas situações, pode o poder constituinte – que sempre está presente em estado de latência – operar com a aparência de poder reformador.

 

[122] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 996. Em seguimento, acrescenta exemplo em que mesmo havendo limites expressos, como no caso da Constituição de Portugal, artigo 288 - aliás, com longo rol - não há como afastar a existência de limites implícitos, indicando, como cláusula de intangibilidade não-expressa, a integridade do território (artigo 5º) e o próprio artigo 288.

 

[123] SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 352: “(...) há que se dar razão aos que sustentam que a construção de uma teoria dos limites implícitos à reforma constitucional apenas pode ser efetuada à luz de determinada ordem constitucional (isto é, do direito constitucional positivo), no sentido de que as limitações implícitas deveriam ser deduzidas diretamente da Constituição, considerando-se especialmente os princípios cuja abolição ou restrição poderia implicar a ruptura da própria ordem constitucional. Na medida em que diretamente extraídos de uma Constituição concreta, aos limites materiais implícitos pode ser atribuída a mesma força jurídica dos limites expressos, razão pela qual asseguram à Constituição, ao menos em princípio, o mesmo nível de proteção”. No mesmo sentido. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 995: “A idéia de limitação do poder de revisão, no sentido apontado, não pode divorciar-se das conexões de sentido captadas no texto constitucional. Desta forma, os limites materiais devem encontrar um mínimo de recepção no texto constitucional, ou seja, devem ser limites textuais implícitos”.

 

[124] SAMPAIO, Nelson de Souza. Op. cit., p. 95.

 

[125] As Constituições da Suíça e da Áustria são exemplos de textos constitucionais que permitem a sua modificação total. Conforme MENDES, Gilmar Ferreira. Limites da revisão: cláusulas pétreas ou garantias de eternidade – possibilidade jurídica de sua superação. AJURIS, p. 253.

 

[126] BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 179, alerta para o cuidado que se deve ter com reformas parciais “que, removendo um simples artigo da Constituição, podem revogar princípios básicos e abalar os alicerces a todo o sistema constitucional, (...) Trata-se em verdade de reformas totais, feitas por meio de reformas parciais. Urge precatar-se contra essa espécie de revisões que, sendo formalmente parciais, examinadas, todavia, pelo critério material, ab-rogam a Constituição, de modo que se fazem equivalentes a uma reforma total, pela mudança de conteúdo, princípio, espírito e fundamento da lei constitucional. (...) configurando-se assim o fenômeno político que os publicistas consignam debaixo da designação de fraude à Constituição. São freqüentes os exemplos históricos dessa prática abusiva de violação da Constituição, em que as formas se resguardam para mais facilmente alterar-se o fundo ou a base dos valores professados”.

 

[127] SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 352.

 

[128] VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. cit., p. 20-1.

 

[129] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 997.

 

[130] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 10.

 

[131] MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 198-99, que vem aprofundando a questão da dupla revisão, não deixa de reconhecer que a sua tese, em sendo atingido pela dupla revisão um princípio nuclear – passível de modificação na sua posição – pode levar à transposição da reforma para a transição constitucional. E essa pode ser meio de mudança de direcionamento da ordem constitucional conformadora de um Estado, mas que desborda o campo da reforma constitucional. Para uma idéia do fenômeno da chamada transição constitucional, ver o tópico 2.1.3 deste capítulo.

 

[132] SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 352-3.

 

[133] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 38.

 

[134] MOREIRA, Vital. Op. cit., p. 105, manifestando-se em defesa da imodificabilidade de qualquer dispositivo protegido por cláusula de intangibilidade da Constituição de Portugal, antes da revisão de 1982, opunha-se a qualquer interpretação visualizadora de alguma possibilidade de alteração, não entendendo ser possível uma modificação que preservasse os princípios: “(...) o artigo 290º não se limita a garantir apenas princípios – como por vezes se ouve dizer - de tal modo que a revisão constitucional ficaria com a liberdade de alterar ou restringir os regimes e as soluções constitucionais, se entendesse que o ‘princípio’ ainda ficaria com sentido útil. Tal interpretação poderia conduzir à inutilização de tal artigo, deixando os princípios reduzidos, na prática, a pouco mais que nada”.

 

[135] CARVALHO, Salo de. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil, p. 15.

 

[136] Paradigma, aliás, que representa fielmente o pensamento enraizado no imaginário simbólico de grande parte da sociedade. Talvez, aí, a razão da maior dificuldade na aceitação da mudança de paradigma e o forte apoio social para um retornar paradigmático, em que se inicia ou pretende consolidar uma tendência com a diminuição da idade de imputabilidade penal fixada constitucionalmente em 18 anos.

 

[137] Há proposta de Emenda Constitucional, de autoria do Deputado Alberto Fraga (PMDB/DF), em tramitação na Câmara dos Deputados, para reduzir a idade de imputabilidade penal para onze anos de idade! De acordo com o artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n.º 8069, de 13.07.1990, considera-se criança a pessoa até doze anos de idade incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.

 

[138] O discurso de criminalização do agir adolescente, antes como agora, sempre foi o de preservar a “sociedade e famílias sadias” do convívio com a infância delinqüente - filha da pobreza – e permitir a sua “regeneração” ou não-ingresso na criminalidade através da segregação. Tal retórica, representativa do pensamento de uma elite desinteressada em atacar as causas da existência de uma infância e juventude desprovida de qualquer política pública séria de socialização, mascara uma grande preocupação: proteger o patrimônio desses “elementos nocivos”.

 

[139] MÉNDEZ, Emilio García. Infância e cidadania na América Latina, p. 45. O autor chama atenção, ainda, na mesma página, para a circunstância de que a confusão no uso dos termos criança-jovem é quase sistemática, com a característica de que, quando se fala em proteção, essa se refere, de regra, à criança, e “a delinqüência é quase sempre juvenil”.

 

[140] MÉNDEZ, Emilio García. Op. cit., p. 46.

 

[141] ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família, p. 10: A duração da infância era reduzida ao seu período mais frágil, enquanto o filhote do homem ainda não conseguia bastar-se; a criança então, mal adquiria algum desembaraço físico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades evoluídas de hoje. A transmissão dos valores e dos conhecimentos, e de modo mais geral, a socialização da criança, não eram, portanto, nem asseguradas nem controladas pela família. A criança se afastava logo de seus pais, e pode-se dizer que durante séculos, a educação foi garantida pela aprendizagem graças à convivência da criança ou do jovem com os adultos. A criança aprendia as coisas que devia saber ajudando os adultos a fazê-las. A passagem da criança pela família e pela sociedade era muito breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar a sensibilidade.

 

[142] ARIÈS, Philippe. Op. cit., p. 11.

 

[143] MÉNDEZ, Emilio García. Op. cit., p. 46.

 

[144] ARIÈS, Philippe. Op. cit., p. 17: “O infanticídio era um crime severamente punido. No entanto, era praticado em segredo, correntemente, talvez, camuflado, sob a forma de um acidente: as crianças morriam asfixiadas naturalmente na cama dos pais, onde dormiam. Não se fazia nada para conservá-las ou para salvá-las. (...) a diminuição da mortalidade infantil observada no século XVIII não pode ser explicada por razões médicas e higiênicas: simplesmente, as pessoas pararam de deixar morrer ou de ajudar a morrer as crianças que não queriam conservar. (...) O fato de ajudar a natureza a fazer desaparecer criaturas tão pouco dotadas de um ser suficiente não era confessado, mas tampouco era considerado com vergonha. Fazia parte das coisas moralmente neutras, condenadas pela ética da Igreja e do Estado, mas praticadas em segredo, numa semiconsciência, no limite da vontade, do esquecimento e da falta de jeito”.

 

[145] E aqui se há de entender a palavra marginalizada não como uma conotação ou característica de uma conduta pessoal ou com um conteúdo moral. A marginalização em referência é a que diz respeito a um processo de relação social, gerador e reprodutor de desigualdades.

 

[146] MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito penal da emoção: a inimputabilidade do menor, p. 25.

 

[147] MONCORVO FILHO, Arthur. Histórico da proteção à infância no Brasil: 1500 – 1922, p. 32. Noticia o autor, ainda, que a determinação real foi desconsiderada, pois a situação de descaso com os expostos permaneceu a mesma na Capitania do Rio de Janeiro. Só em 1738, por iniciativa de um particular - Romão de Mattos Duarte – é que se construiu a “Casa dos Expostos”, popularmente denominada Roda. A esse tempo, a cidade do Rio de Janeiro já contava com cerca de 200.000 habitantes. Idem, p. 33.

 

[148] Isto é, fixou-se a idade da responsabilização penal em 14 anos.

 

[149] MOTTA, Candido N. Nogueira da. Os menores delinqüentes e o seu tratamento no Estado de S. Paulo, p. 31-2: “É preciso alêm de tudo, não esquecer que a conservação da ordem social é uma das essenciaes missões do Estado. Essa missão elle realisa por meio da prevenção, da coação e da repressão. E assim como é prudência, particular e publica, no dizer de Puglia, prevenir lesões ao direito, assim o poder social tem o dever de impedir, tanto quanto lhe fôr possivel, as lesões áquelles direitos que tem obrigação de tutellar, independentemente da vontade do particular. Isto elle faz, exercendo a funcção de prevenção, que suppõe o emprego de todos os meios necessarios para impedir a violação das leis juridicas, que perturba profundamente a ordem social. Ora, é innegavel que, protegendo a infancia abandonada, guiando os seus passos, encaminhando-a para o trabalho honesto, capaz de assegurar o seu futuro, o Estado, se por um lado preserva essa infancia das más tendencias, por outro previne a sociedade contra os máus elementos”.

 

[150] SANTOS, Marco Antonio Cabral dos; PRIORE, Maria Del (org.). Criança e criminalidade no início do século. In: História das crianças no Brasil, p. 217.

 

[151] No Brasil atual, a fixação da idade da responsabilidade penal aos 18 anos é decisão política, tomada livre e soberanamente pelo Poder Constituinte. A opção foi claramente de natureza política, fugindo-se da subjetividade que sempre acompanha a adoção do critério do discernimento para a imputabilidade penal. E foi sábio o Constituinte, pois a condição subjetiva – quer caiba a decisão ao juiz, exclusivamente, ou a este com o auxílio de técnicos (psiquiatras, por exemplo) – nesta situação é perigosa, pois sempre – ou quase sempre - vai depender da visão ideológica do mundo do apreciador da condição de imputabilidade. E em sede de preservação do direito de liberdade, há que se ter uma normatização clara, objetiva e de aplicação geral. A afirmação mais ou menos corrente – pelo menos entre aqueles que advogam o retorno do critério do discernimento para a verificação da imputabilidade - de que exames psiquiátricos podem medir, com precisão, o grau de responsabilidade do indivíduo sobre um fato delituoso praticado, é uma falácia. Nenhum teste psicológico ou psiquiátrico para apuração de “grau de discernimento de responsabilidade” é isento de subjetividade, pois inúmeras são as variáveis para consideração, desde as que se referem ao examinando como em relação aos critérios de apreciação do resultado adotados pelo examinador. Não se trata de uma ciência exata, logo não se pode falar em resultado certo e absoluto. Sem embargo de que retornar ao critério do discernimento representa um retrocesso em termos de garantia de direito, que não se afina com o Estado Democrático de Direito.

 

[152] “O maior de nove anos e menor de 14, que procurou ocultar o crime e destruir-lhe os vestígios, prova que obrou com discernimento e, portanto, é responsável” (Ac. do Trib. de Justiça de São Paulo, de 12.05.1893. In: Gazeta Jurídica, v. 3, p. 301). Ainda: “obra sem discernimento a criança de dez anos, que em um jardim público, e em companhia de outros menores, atira uma pedra em um indivíduo, produzindo neste um ferimento de natureza grave” (Ac. do Trib. de Justiça de São Paulo, de 13.07.1904. In: São Paulo Judiciário, v. 5, p. 181). Apud SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Op. cit., p. 217.

 

[153] E realmente ocorreram progressos com o advento do Código de Mello Matos. Exemplificativamente: aboliu formalmente a roda dos expostos; trouxe a possibilidade de perda ou suspensão do pátrio poder pelo cometimento de faltas pelos pais; os abandonados passam a ter a possibilidade de serem dados em guarda; os menores de 14 anos não podem mais ser submetidos a processo penal, terminando com a confusa questão do discernimento; há proibição de trabalho do menor de 12 anos; é vedado o trabalho insalubre e noturno aos menores de 18 anos.

 

[154] PEREIRA JÚNIOR, Almir; BEZERRA, Jaerson Lucas; HERING, Rosana (org.). Um país que mascara o seu rosto. In: Os impasses da cidadania: infância e adolescência no Brasil, p. 19. No mesmo sentido, PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da criança e do adolescente: uma proposta interdisciplinar, p. 18: “O SAM ficou marcado por seus métodos inadequados e pela repressão institucional à criança e ao jovem”.

 

[155] PEREIRA JÚNIOR, Almir. Op. cit., p. 19.

 

[156] MÉNDEZ, Emilio García. Op. cit., p. 26.

 

[157] MACHADO, Antonio Luiz Ribeiro. Código de menores comentado, p. 10: “O juiz de menores, portanto, não pode ser apenas um técnico aplicador da lei, mas também um conselheiro compreensivo e profundamente humano. Dentro dessa linha de orientação é que o Código não se prende a formalismos sacramentais e regimentais, visando a propiciar ao juiz que o aplica grande maleabilidade e iniciativa nos procedimentos para que possa assegurar, acima de tudo, os reais interesses do menor”.

 

[158] Como já visto, não mais subsiste a classificação de normas constitucionais meramente programáticas.

 

[159] MÉNDEZ, Emilio García. Op. cit., p. 91.

 

[160] Planilha montada com base em quadro apresentado por SARAIVA, João Batista da Costa, em Curso de Atualização para Magistrados; MÉNDEZ, Emilio García, BELOFF, Mary (compiladores). Infancia, ley y democracia en América Latina. Análisis crítico del panorama legislativo en el marco de la Convención Internacional sobre los derechos del niño (1990-1999), t. I, II;SARAIVA, João Batista da Costa. Adolescente e ato infracional: garantias processuais e medidas socioeducativas, p. 119-20; e Estudo comparativo da legislação que trata do menor delinqüente, elaborado pela Consultoria Legislativa do Senado Federal.

 

[161] Fala-se em modo especial, em vista do que dispõe o artigo 227 da Constituição Federal, pois todos os direitos fundamentais garantidos pelo texto constitucional são também garantidos aos cidadãos menores de 18 anos. Na verdade, por se reconhecer que infância e juventude implicam momentos especiais do desenvolvimento do ser humano, estabeleceu-se uma prioridade absoluta no atendimento de suas necessidades essenciais, sem qualquer possibilidade de exclusão de outros direitos fundamentais.

 

[162] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, p. 289.

 

[163] Importante esclarecer que as referências que se fizer à dogmática jurídica dizem respeito à dogmática positivista (ou neopositivista), que não vislumbra problemas ou possibilidade de questionamento em relação ao sistema jurídico. Até porque se entende que uma dogmática crítica, aprofundadora das possibilidades teóricas do Estado Democrático de Direito, mostra-se útil para encaminhar construtivamente o conhecimento jurídico, ao fornecer ferramental para as pré-compreensões dos que operam com o Direito.

 

[164] A expressão “senso (ou sentido) comum teórico dos juristas” foi criada por Luiz Alberto Warat, que usa em algumas obras o termo senso e em outras sentido, sem mudança do conteúdo da expressão.

 

[165] STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do júri: símbolos e rituais, p. 46.

 

[166] WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito I, p. 13.

 

[167] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 46. No mesmo sentido WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito II, p. 75-6: “Entendo por racionalidade subjacente o modo de funcionamento social do discurso jurídico, guiado por efeitos pré-compreensivos de sentido, que vão transformando o sentido comum teórico em um princípio de controle da validade e da verdade do discurso jurídico. O sentido comum teórico notifica, desta forma, ‘o lugar secreto’ das verdades jurídicas”.

 

[168] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 47.

 

[169] Há que se esclarecer – e talvez já devesse ter sido feito antes – que, ao se falar na introdução de um novo paradigma, não se pretende com isso cristalizar uma idéia, tornando-a um dogma, abandonando-se o ideal científico de questionar, de pensar o impensado, de refletir sobre certezas para que possam ser aprimoradas ou modificadas. Pretende-se que haja o reconhecimento da existência de um novo paradigma no momento atual e que o mesmo se torne hegemônico por ter fundamento para tanto (representa a concepção integradora da infância estabelecida pelo Estado Democrático de Direito). Se a evolução da compreensão principiológica do Estado Democrático de Direito levar a novos caminhos, a outro paradigma ou ao aprimoramento do que se apresenta, deverá ser acolhido.

 

[170] E tanto é assim, que os motins e rebeliões em estabelecimentos de internação de adolescentes infratores revelam que, na realidade, pouca ou quase nenhuma modificação aconteceu nas condições de cumprimento das medidas de privação de liberdade. A superlotação, maus-tratos, humilhações, enfim, desrespeito à dignidade dos adolescentes internados continua a acontecer, como se nada tivesse mudado. Ou melhor, e alguma coisa mudou?

 

[171] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito, p. 282.

 

[172] Impõe-se reconhecer que parte do Poder Judiciário tem parcela de responsabilidade em relação a isso. Talvez por dificuldade em ver a nova ordem como algo que deveria ser encarado “com novos olhos” - ou por comodidade ou por convicção ideológica - continuou a aplicar o direito da forma que fazia antes, centrado na legislação infraconstitucional. Não houve um esforço geral para que o novo texto constitucional viesse a permear/impregnar toda a aplicação do direito no momento da prestação jurisdicional. E a efetividade de uma Constituição é um processo aberto, de participação, de garimpagem de sua adequação social, com base nos princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito. Não havendo a abertura necessária para a compreensão da nova ordem instituída, corre-se o risco da morte inercial do texto constitucional, decorrente do descrédito da sociedade em sua aplicabilidade, abrindo-se uma porta larga para uma interpretação puramente de manutenção de um status quo preexistente. O próprio legislador constituinte, de certa forma, contribuiu para que a CF/88, no Judiciário como um todo, não fosse recepcionada como um novo paradigma de aplicação do direito. Isso porque, ao manter o Supremo Tribunal Federal – a Corte Constitucional – com a mesma composição que tinha na época da promulgação da Constituição, acabou por determinar que a nova ordem jurídica fosse interpretada por juízes que não tinham um compromisso com as novidades introduzidas no ordenamento constitucional. E a falta de um compromisso maior do STF com a efetivação da nova ordem constitucional, sem a menor dúvida, em decorrência da organização judiciária hierarquizada – cortes superiores e inferiores – em muito colaborou para que a Constituição não ganhasse a efetividade que deveria ter e era desejada pela sociedade. No mesmo sentido, BARROSO. Luís Roberto. O poder judiciário, os direitos fundamentais e a concretização da justiça: balanço e perspectivas. In: Anais do seminário democracia e justiça: o poder judiciário na construção do estado de direito, p. 326-27: O constituinte de 1988 tomou, sem maior debate, a decisão grave de manter o Supremo Tribunal Federal com a composição que tinha, na época da promulgação da Carta de 1988. Não é desimportante este fato, porque a Constituição de 1988, a nova ordem constitucional brasileira, que sucedeu à da ditadura militar – um modelo fracassado - teve como principais intérpretes um conjunto de juízes que, por maior que fosse a sua probidade pessoal e o seu conhecimento técnico, tinham o seu título de investidura ligado ao regime anterior, ligados ao regime militar. E ainda que isto não importe em depreciá-los, por natural, significa que a Constituição de 1988 foi interpretada por homens que não tinham compromisso com a nova ordem, mas sim por homens que tinham compromisso com a velha ordem. E disto resultou que o Supremo Tribunal Federal, em matéria de interpretação da Constituição: 1) reeditou, burocraticamente, grande parte da jurisprudência que produzira anteriormente; 2) alimentou espantosa má vontade contra inúmeras inovações introduzidas pelo Texto Constitucional de 1988.

 

[173] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 273.

 

[174] GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiése do Direito na sociedade pós-moderna: introdução a uma teoria social sistêmica, p. 36: “(...) o centro de decisões politicamente relevantes, no Estado Democrático contemporâneo, sofre um sensível deslocamento do Legislativo e Executivo em direção ao Judiciário. O processo judicial que se instaura mediante a propositura de determinadas ações, especialmente aquelas de natureza coletiva e/ou de dimensão constitucional – ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, etc. – torna-se um instrumento privilegiado de participação política e exercício permanente da cidadania”.

 

[175] Claro que não se está vendo o agir do Judiciário como a solução para todos os problemas do país. Sustenta-se que uma atuação mais corajosa e efetiva do Judiciário em muito contribuiria para a implementação do Estado Democrático de Direito. A respeito, didática e esclarecedora a manifestação de STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 44-5: “O Estado Democrático de Direito depende(ria) muito mais de uma ação concreta do Judiciário do que de procedimentos legislativos e administrativos. Claro que tal assertiva pode e deve ser relativizada, mormente porque não se pode esperar que o Judiciário seja a solução (mágica) dos problemas sociais. O que ocorre é que, se no processo constituinte optou-se por um Estado intervencionista, visando a uma sociedade mais justa, com erradicação da pobreza etc., dever-se-ia esperar que o Poder Executivo e o Legislativo cumprissem tais programas especificados na Constituição. Acontece que a Constituição não está sendo cumprida. As normas-programa da Lei Maior não estão sendo implementadas. Por isso, na falta de políticas públicas cumpridoras dos ditames do Estado Democrático de Direito, surge o Judiciário como instrumento para o resgate dos direitos não realizados. Por isso a inexorabilidade desse ‘sensível deslocamento’ antes especificado”.

 

[176] As crianças e adolescentes, na doutrina da proteção integral, são sujeitos de direitos. Se estiverem sendo negligenciados pelo Estado ou abandonados pelos pais, jamais estarão numa situação irregular, de ilegalidade. Na irregularidade, na ilegalidade estarão o Estado, a família e a sociedade que não cumprem a sua obrigação constitucional. E aos mais refratários em ver isso, recorda-se a regra processual – artigo 335, do CPC – que determina a observação do que ordinariamente acontece.

 

[177] FARIA, José Eduardo. Justiça e conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais. p. 42.

 

[178] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 276.

 

[179] A “sensação de impunidade”, sentida pela sociedade, decorre de uma má percepção da realidade, no que diz respeito aos adolescentes em conflito com a lei. Mudou o sistema, como já explicitado. Antes, o jovem infrator não tinha nenhum direito assegurado, era objeto de medidas “protetivas”, que iriam tirá-lo da “situação irregular” em que se encontrava. Agora, com a doutrina da proteção integral, inclusive na esfera penal, aos adolescentes são assegurados todos os direitos inerentes à ampla defesa, pois o que norteia o sistema é o garantismo, que vem transposto do Direito Penal para a seara da infância e juventude. Não há impunidade do ponto de vista legal, há asseguração de direitos processuais, pois só poderá ocorrer a imposição de alguma medida sócio-educativa após a comprovação da responsabilidade do infrator.

 

[180] Busca-se a preservação do aparelho estatal para o atendimento dos mais favorecidos, afastando o Estado de suas obrigações sociais para com os marginalizados. O cunho ideológico dessa postura é evidente, pois representa um retorno ao Estado mínimo, que, na atualidade, tem a forma do neoliberalismo.

 

[181] É de falar-se em reforço, pois, como já assentado, todas as normas constitucionais devem ser concretizadas, obtendo-se de sua aplicação a máxima efetividade possível.

 

[182] Conforme SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 77.

 

[183] PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral. Op. cit., p. 145.

 

[184] A circunstância de negar-se uma fundamentação puramente metafísica e transcendente dos direitos fundamentais, optando-se pelo reconhecimento de sua historicidade, não tem o condão de afastar sua condição de patrimônio comum da humanidade. Ao contrário, pois o reconhecimento de direitos comuns na história de várias e distintas sociedades é que vai gerando uma identidade que acaba universalizando-se. E isso também vale para o aperfeiçoamento de direitos já reconhecidos e para o surgimento de novos direitos, pois são aprimorados ou criados/construídos em uma sociedade e daí irradiam-se para as outras, até que, pela universalização, também se integram (os aperfeiçoamentos e/ou novos direitos) ao patrimônio comum de toda a humanidade.

 

[185] Como exemplo clássico, pode-se citar o direito de propriedade, que, de um direito absoluto e pleno, hoje tem o seu exercício condicionado à função social. Em área mais diretamente relacionada ao trabalho, tem-se a modificação do pátrio poder: de uma concepção que o entendia como poder absoluto do pai, evoluiu até o que hoje se tem chamado de “pátrio dever”, que deve ser exercido em conformidade com o previsto no artigo 227, caput, da Carta Magna. A norma constitucional estabelece responsabilidades para a família, Estado e sociedade, ampliando o conceito de responsabilidade paterna, podendo qualquer um dos co-responsáveis pelo desenvolvimento sadio da infância e adolescência exigir dos demais o cumprimento de suas obrigações. Logo, pode ocorrer a primazia do Estado ou da sociedade em relação ao pátrio poder que não for exercido na forma do Texto Maior.

 

[186] “Art. 5º (...) § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

 

[187] Muito embora não se possa esquecer do momento histórico que vivia o país quando da criação da vigente Carta Política, que acabou tendo reflexos na formulação do texto constitucional. Saía-se de um período de exceção, em que as liberdades estavam sufocadas e dominava a sociedade um desejo de que isso nunca mais voltasse a acontecer. Além disso, foi um processo que teve ampla participação, em que os atores sociais procuraram assegurar a preservação de seus interesses ou direitos na Constituição, de modo a resguardá-los de ataques mais diretos de seus antagonistas. Isso porque, tendo havido uma transição constitucional pacífica, não ocorreu uma hegemonia de grupos ou interesses a direcionar o trabalho constituinte.

 

[188] “Art. 5º - inc. XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.

 

[189] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Direitos fundamentais, IV, p. 10.

 

[190] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 101.

 

[191] Idem, p. 101.

 

[192] SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 102. Anota, ainda, o doutrinador: “que o princípio da dignidade da pessoa humana, em relação aos direitos fundamentais, pode assumir, mas apenas em certo sentido, a feição de lex generalis, já que, sendo suficiente o recurso a determinado direito fundamental (por sua vez já impregnado de dignidade), inexiste, em princípio, razão para invocar-se autonomamente a dignidade da pessoa humana, que, no entanto, não pode ser considerada como sendo de aplicação meramente subsidiária, até mesmo pelo fato de que uma agressão a determinado direito fundamental simultaneamente poderá constituir ofensa ao seu conteúdo em dignidade”. Op. cit., p. 103.

 

[193] LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Los derechos fundamentales, p. 25: “En el horizonte del constitucionalismo actual los derechos fundamentales desempeñan, por tanto, una doble función: en el plano subjetivo siguen actuando como garantías de la libertad individual, si bien a este papel clásico se aúna ahora la defensa de los aspectos sociales y colectivos de la subjetividad, mientras que en el objetivo han asumido una dimensión institucional a partir de la cual su contenido debe funcionalizarse para la consecución de los fines y valores constitucionalmente proclamados”.

 

[194] As noções que se traz sobre as classificações dos direitos fundamentais foram desenvolvidas com base nas lições de SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Os Direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988. In: O direito público em tempos de crise, p. 140-9.

 

[195] HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, p. 235: “Em uma ordem liberal constitucional são necessários tais direitos de defesa, porque também a democracia é domínio de pessoas sobre pessoas, que está sujeito às tentações do abuso de poder, e porque poderes estatais, também no estado de direito, podem fazer injustiça. Asseguramento eficaz da liberdade e igualdade do particular torna, por conseguinte, mais além da configuração das ordens objetivas da democracia e do estado de direito, necessária à garantia de direitos subjetivos à liberdade e igualdade”.

 

[196] CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Op. cit., p. 383.

 

[197] Para um exame da eficácia privada dos direitos fundamentais: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In: A Constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado.

 

[198] SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Os Direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988. In: O direito público em tempos de crise, p. 143.

 

[199] ALEXY, Robert. Op. cit., p. 427.

 

[200] Idem. p., 435-6.

 

[201] MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 44.

 

[202] A EC, no que interessa para o exame, foi assim redigida: “(...) Art. 2º - A União poderá instituir, nos termos de lei complementar, com vigência até 31 de dezembro de 1994, imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira. (...) § 2º Ao imposto que trata este artigo não se aplica o art. 150, III, b, e VI, nem o disposto no § 5º do art. 153 da Constituição”.

 

[203] Importante consignar que a posição adotada pelo Tribunal Maior espancou qualquer dúvida sobre a possibilidade de argüir a inconstitucionalidade de emenda que viole princípio ou garantia constitucional. Eis que tal questão era matéria controversa, pois parte da doutrina não admitia inconstitucionalidade de norma também formalmente constitucional, como a produzida por emenda à Constituição. O Acórdão, quanto a isso, está assim ementado:  “Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é de guarda da Constituição (art. 102, I, ‘a’, da C.F.)”.

 

[204] O chamado princípio da anterioridade, a rigor, é uma regra, pois visa a assegurar o princípio da segurança jurídica.

 

[205] O único questionamento pretérito foi em relação à reforma constitucional de 1926, que ocorreu na vigência de estado de sítio. Todavia, a Constituição então vigente (1891) não continha qualquer limite circunstancial ao poder de reforma.

 

[206] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADIn n.º 939-7. CNTC, Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Ministro Sydney Sanches. 15 de dez. de 1993. Avulso, p. 81-2.

 

[207] BRASIL. Ac. cit. p. 101-3. Interessante consignar que o Min. Marco Aurélio foi o único a acolher integralmente a ADIn, para reconhecer a inconstitucionalidade de toda EC 3/93 e da LC 77/93.

 

[208] BRASIL. AC. cit., p. 117-18.

 

[209] BRASIL. AC. cit., p. 124-5 e 136-8

 

[210] O argumento básico dos votos vencidos foi no sentido de que as limitações ao poder de reforma, cuja finalidade é dar estabilidade à Constituição, não podem servir para engessar qualquer possibilidade reformatória, sob pena de – ao invés da estabilidade pretendida – caminhar-se para um processo de ruptura da Constituição, pela ocorrência de descompasso com as necessidades históricas da comunidade. O Ministro Sepúlveda Pertence, seguindo esta mesma linha, introduziu a idéia de que, para a verificação de uma inclinação de mudança que tenda a abolir direitos e garantias individuais, é necessário um exame de cunho axiológico - no contexto da Lei Maior - dos direitos e garantias nela existentes. E, a partir dessa valoração, constatar a magnitude do direito ou garantia, para ver se é pertinente o reconhecimento de sua perenidade. No caso – segundo seu entendimento - não presente a condição de imutável, pois visaria, tão-somente, ao resguardo de um princípio de ordem administrativa e financeira.

 

[211] E sendo a lei manejada com um cunho emancipatório, haverá a valorização da dignidade humana e o Estado cumprirá a sua missão de promoção social.

 

[212] Essa é a lógica que se extrai do julgamento da ADIn nº 939, se houve o reconhecimento de que a existência de exceções ao princípio da anterioridade - fixadas pelo Constituinte - não autorizava a criação de novas restrições através de emenda. Logo, com muito mais razão, em situação em que nada foi ressalvado pelo Constituinte, não se poderá admitir modificação de uma posição jurídica vinculada ao núcleo essencial do direito de liberdade dos cidadãos menores de dezoito anos.

 

[213] CORRÊA, Márcia Milhomens Sirotheau. Caráter fundamental da inimputabilidade na Constituição, p. 245: “(...) tomando como ponto de partida a realidade do sistema carcerário brasileiro, defendemos a posição de que hoje o núcleo essencial do direito à inimputabilidade penal estende-se até o limite de dezoito anos de idade. Nada obsta, porém, que, uma vez modificada a realidade que serve de horizonte para nossa conclusão, esse limite possa ser reduzido”.

 

[214] Ainda que se sustente que a questão da idade da imputabilidade só possa ser estabelecida após uma ponderação entre os interesses envolvidos, no caso brasileiro a mudança se apresenta inviável. Na espécie, basicamente, a ponderação teria de ocorrer entre o interesse à segurança da sociedade e o interesse – até de natureza individual, pela garantia do direito de liberdade – dos menores de 18 anos. Tal ponderação,  entretanto, só seria possível depois que houvesse a plena implementação dos direitos fundamentais da adolescência, assegurados pelo art. 227 da Constituição. Não se pode pretender mudar – ou ponderar – em relação a posições jurídicas fundamentais que não tenham sido implementadas/efetivadas. Podem mudar as condições do sistema penitenciário, mas, se não houver asseguração dos direitos fundamentais dos menores de 18 anos, não há como se fazer qualquer ponderação. Aceitar-se a ponderação seria, na prática, a mais absoluta negação da teoria da proteção integral acolhida pela Lei Maior, pois se estaria tratando os menores de 18 anos como se estivessem numa situação irregular – delinqüindo – enquanto a irregularidade é do Estado que não promove(u), como lhe incumbe(ia), a dignidade humana da infância e adolescência. E num país onde cinqüenta milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza, muito se terá de fazer até que se possa pensar em ponderar em relação aos direitos fundamentais dos menores de 18 anos. Só é possível ponderação entre posições jurídicas fundamentais que se encontrem em situação de equilíbrio.

 

[215]  CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 327.

 

[216] MIRANDA, Jorge. Jurisprudência constitucional escolhida. v. I, p. 921.

 

[217] Idem, p. 922.

 

[218] ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos fundamentais e suas características, p. 156.

 

[219] Impõe-se um esclarecimento sobre o que se deve entender por tratado, a fim de que não ocorra uma discussão semântica de pouca relevância. Tratado é todo acordo formal concluído entre sujeitos de direito internacional público, destinado a produzir efeitos jurídicos e que dá cobertura legal ao seu próprio conteúdo, por força do efeito de compromisso e cogência que tem por finalidade produzir. O uso na Constituição dos termos tratados e convenções pode passar aos menos avisados a idéia que se trata de coisas diversas. Todavia, no uso atual, tanto uma como outra expressão tem o mesmo significado. São, também, “variantes terminológicas de tratado, concebíveis em português: acordo, ajuste, arranjo, ata, ato, carta, código, compromisso, constituição, contrato, convenção, convênio, declaração, estatuto, memorando, pacto, protocolo e regulamento”. Conforme REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar, p. 14-7.

 

[220] E isso tem recebido severas críticas dos juristas dedicados ao Direito Internacional. V.g., MELLO, Celso Albuquerque de. TORRES. Ricardo Lobo (org.). O § 2º do art. 5º da Constituição Federal. In: Teoria dos direitos fundamentais, p. 18: “O que se pode dizer é que os constitucionalistas brasileiros de um modo geral ignoram o Direito Internacional Público e não sabem aplicá-los (sic). Não há por parte deles nenhuma menção a questão das relações entre o DI e D. Interno. Ou, ainda, não se referem ao ‘status’ das normas dos tratados dos Direitos Humanos perante o D. Interno. Eles se esqueceram até de verificarem os Anais da Constituinte onde veriam que havia alguma novidade, vez que, como já afirmamos, é uma proposição do internacionalista Cançado Trindade”.

 

[221] MELLO, Celso Albuquerque de. Op. cit., p. 20.

 

[222] Importante esclarecer que a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança não faz qualquer distinção entre criança e adolescente, pois em seu artigo primeiro consigna: “... entende-se por criança todo ser humano menor de 18 anos, salvo se, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”.

 

[223] Muito embora a possibilidade de reserva em tratado de proteção de direitos humanos seja uma questão discutível. É, realmente, matéria complexa e que ainda não tem regulamentação internacional própria, aplicando-se o que estabelecem as Convenções de Viena sobre Direitos dos Tratados (1969 e 1986). Ocorre que nas duas Convenções sobre Tratados a possibilidade de reserva parte da premissa de um certo equilíbrio entre os Estados acordantes. O regramento é tipicamente voluntarista e contratualista. Quando se trata de direitos humanos, a relação não se dá entre Estados, mas entre estes e os seres humanos que vivem sob sua jurisdição. Logo, as premissas, necessariamente, devem ser diferentes. Conforme TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. v. II, p. 157.

 

[224] “Artigo 41 – Nada do estipulado na presente Convenção afetará as disposições que sejam mais convenientes para a realização dos direitos da criança e que podem constar: a) das leis de um Estado-parte; b) das normas de Direito Internacional vigente para esse Estado”.

 

[225] SARAIVA, João Batista da Costa. Op. cit., p. 24.

 

[226] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. p. 81: “Considerando o processo de elaboração dos tratados e reiterando a concepção de que apresentam força jurídica obrigatória e vinculante, resta concluir que a violação de um tratado implica em violação de obrigações assumidas no âmbito internacional. O descumprimento de tais deveres implica, portanto, em responsabilização internacional do Estado violador”. Sobre o modo de responsabilizar o Estado que não cumpra Tratado de Proteção de Direitos Humanos, ver: TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. v. I, p. 439.

 

[227] Para uma visão da hipótese em que ocorrer denúncia de tratado versando sobre direitos humanos do qual o Brasil seja parte, e proposta de mudança de interpretação do modo pela qual se opera a denúncia, ver: PIOVESAN, Flávia. Op. cit.  p. 99-100.

 

[228] “Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal (...) 7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.”