A ADOÇÃO PÓSTUMA E A PRÉVIA EXISTÊNCIA DE PROCEDIMENTO JUDICIAL
José Luiz Mônaco da Silva
Promotor de Justiça Cível.
A adoção póstuma está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, em dispositivo legal assim redigido: "A adoção poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença" (art. 42, § 5º).
Os diplomas anteriores, ao
tratarem da adoção, não previam a possibilidade de a adoção ser deferida a quem
não estivesse vivo. Foi a partir de 1990, graças à promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente, que o ordenamento jurídico passou a consagrar a
denominada adoção póstuma.
Quanto aos efeitos dessa adoção, o art. 47, § 6º, do ECA se encarrega de dizer que "A adoção produz seus efeitos a partir do trânsito em julgado da sentença, exceto na hipótese prevista no art. 42, § 5º, caso em que terá força retroativa à data do óbito". Isso significa dizer que, ainda que a sentença de adoção seja proferida um ano após o falecimento do adotante, seus efeitos ganharão conseqüências no mundo jurídico a partir da data do óbito. No entanto, a retroação só se efetivará após o trânsito em julgado da sentença, como bem advertem Cury, Garrido e Marçura (Estatuto da Criança e do Adolescente Anotado, Ed. Revista dos Tribunais, 1991, p. 33). Vale dizer, os efeitos da sentença, a contar da data do óbito, somente serão postos em prática depois de transitada em julgado a sentença concessiva da adoção.
A adoção póstuma, de acordo com o disposto no art. 42, § 5º, do ECA, reclama a presença de 2 (duas) condições, a saber: a) inequívoca manifestação de vontade do adotante; b) existência de procedimento instaurado.
Quanto à primeira condição, o legislador agiu corretamente ao exigir a manifestação de vontade do adotante. Com efeito, o juiz só poderá deferir a adoção se houver prova – inequívoca – de que o adotante manifestou em vida a intenção de adotar um menor. Sem essa prova, a sentença de adoção não só irá de encontro aos postulados do Estatuto da Criança e do Adolescente como também ofenderá a memória do morto.
No tocante à segunda condição (existência de procedimento instaurado), o Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo pensamos, suscita duas perguntas: 1) A qual procedimento o ECA se refere? 2) Inexistindo procedimento instaurado, a adoção póstuma poderá ser deferida pelo juiz?
Cury, Garrido & Marçura respondem à primeira indagação, dizendo que o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao fazer menção ao vocábulo procedimento, refere-se a "qualquer procedimento de colocação em família substituta" (ob. cit., p. 31). Assim, tanto faz que o procedimento instaurado seja concernente à guarda, tutela ou adoção. O importante é que o interessado tenha manifestado, em vida – no bojo do procedimento – a vontade livre de adotar determinada criança ou adolescente.
No que tange à segunda indagação, entendemos possível o deferimento da adoção póstuma, mesmo à falta de procedimento instaurado perante a Vara da Infância e da Juventude. É certo que o ECA faz menção, expressa, à prévia existência de procedimento instaurado, só admitindo o deferimento da adoção se o adotante tiver manifestado – no curso do procedimento – o desejo de adotar um menor.
A doutrina, de maneira uniforme,
condiciona o acolhimento da adoção à existência de procedimento instaurado
(Arnado Marmitt, Adoção,
Aide Editora, 1ª edição, 1993, p. 118; Paulo
Lúcio Nogueira, Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Ed. Saraiva, 2ª
ed., 1993, p. 60; José de Farias Tavares, Comentários
ao Estatuto da Criança e do Adolescente, Ed. Forense, 2ª ed., 1995, p. 47; Nazir David Milano Filho e
Rodolfo Cesar Milano, Estatuto da Criança e do Adolescente
Comentado e Interpretado, Livraria e Editora Universitária de Direito, 1996,
p. 55; Roberto João Elias, Comentários ao
Estatuto da Criança e do Adolescente, Ed. Saraiva, 1994, p. 27; Antonio
Chaves, Estatuto da Criança e do
Adolescente Comentado, coordenadores: Munir Cury, Antônio Fernando do
Amaral e Silva e Emílio García Mendez, Malheiros
Editores, 1992, p. 145; Wilson Donizeti Liberati, O Estatuto da Criança e do Adolescente – Comentários,
Marques Saraiva Gráficos e Editores, 1991, p. 14; Valdir Sznick, Adoção, Ed. Leud, 3ª ed., 1999, p. 327; Omar Gama Bem Kauss,
A Adoção, Ed. Lumen Juris, 2ª ed., p. 51).
Ao escrevermos sobre o assunto,
perfilhamos, em nosso A Família
Substituta no Estatuto da Criança e do Adolescente, Ed. Saraiva, 1995, p.
110, a mesma tese: "Para que se possa falar em adoção póstuma, é preciso, antes de mais nada, que exista procedimento judicial
previamente instaurado, plenamente apto a emprestar validade ao mencionado
instituto. Isso porque o § 5º do art. 42 fala em procedimento...".
Todavia, após reflexão mais profunda, passamos a entender que a inexistência de procedimento instaurado não constitui óbice ao deferimento da adoção póstuma. A nosso sentir, mesmo à falta de procedimento em curso perante a Vara da Infância e da Juventude, a adoção poderá ser acolitada pelo Poder Judiciário, desde que o adotante tenha manifestado, em vida – e de maneira absolutamente clara, cristalina, inequívoca – o desejo de adotar determinada criança ou adolescente.
Imaginemos, por hipótese, a seguinte situação: A e B, casados entre si há mais de 25 anos, ele com 47 anos, ela com 46, têm a guarda, apenas de fato, de um garoto de 7 anos, órfão de pai e mãe. O menino é tratado como se fosse filho do casal; por diversas vezes, em conversas com parentes e vizinhos, os guardiães manifestaram – de forma inequívoca – o desejo de adotá-lo. O varão, aliás, contratou seguro de vida e instituiu como beneficiários a mulher e o menor; ademais, inscreveu o infante como seu dependente perante o órgão previdenciário; os filhos biológicos do casal, já maiores, têm pleno conhecimento da pretensão dos pais. Entretanto, quando o casal se encontra na iminência de formalizar o pedido de adoção, o varão vem a falecer em acidente automobilístico. A viúva, então, ingressa com pedido de adoção em nome dela, pleiteando, quanto ao falecido, a aplicação do disposto no art. 42, § 2º, do ECA.
Ora, seria justo indeferir essa adoção, acalentada há anos pelo casal, só porque o varão não chegou a formalizar o pedido em juízo? Responde-se com um sonoro não.
Com efeito, uma terrível injustiça seria praticada caso a adoção, na hipótese aventada, não pudesse contar com o amparo do Poder Judiciário. Apenas a viúva teria seu nome grafado do novo assento de nascimento do menor (art. 47, § 1º, do ECA), em substituição ao assento cancelado, como se o adotado fosse filho de mãe solteira.
Mais injusta seria a situação, por outro lado, se o falecido, solteiro, não contasse com nenhum herdeiro na linha sucessível (descendentes, ascendentes, cônjuge ou companheira e colaterais). Seu patrimônio iria para as mãos do Município, do Distrito Federal ou da União, nos termos do art. 1603, inc. V, do Código Civil. O menor ficaria privado de receber os bens do falecido. É certo que, em se tratando de adoção pleiteada por pessoas solteiras, viúvas, divorciadas ou separadas, não seria possível, segundo o entendimento de Valdir Sznick, a aplicação do art. 42, § 5º, do ECA, porque, para o ilustre jurista, a norma dirige-se tão-somente a casais (ob. cit., p. 327). Mas não foi essa, a nosso ver, a intenção da lei ao editar tal norma. O § 5º é um desdobramento do caput do art. 42. E o art. 42 apenas consigna que podem adotar os maiores de vinte e um anos, independentemente de seu estado civil. Tanto faz, assim, se o postulante é casado, solteiro, separado, viúvo ou divorciado. Basta que preencha os requisitos legais.
Voltando ao âmago da questão, não custa lembrar que o projeto de revisão do Código de Menores, em matéria de adoção, apresentava a seguinte redação: "admitir-se-á a adoção nuncupativa quando houver prova de que era intenção do de cujus adotar o menor". Embora o projeto não tenha se transformado em lei, teve o nobre propósito de se preocupar com questão de inequívoco interesse social.
Mas, mesmo à falta de dispositivo legal desse teor, entendemos, com base na doutrina da proteção integral, que o indeferimento da adoção atentaria contra o art. 1º do ECA. É deste teor o dispositivo em epígrafe: "Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente" (o destaque é nosso). Ora, se o Estatuto da Criança e do Adolescente quis dar integral proteção a crianças e adolescentes, não faria o menor sentido impedir o deferimento da adoção póstuma, sob o argumento de que o adotante, em vida, não manifestara perante os órgãos da Justiça o desejo de adotar uma criança ou um adolescente. O festejado Liborni Siqueira, uma das maiores autoridades na área da infância e da juventude, legou-nos a seguinte lição: "Certamente que haverá uma elasticidade interpretativa em face da doutrina da proteção integral. Acreditamos que uma prova inequívoca da manifestação da vontade, por documentos, testemunhas etc., valerá como fundamento para deferir-se o pedido" (Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, coordenador: Liborni Siqueira, Ed. Forense, 1ª edição, 1991, p. 23).
Pois bem, o ECA abraçou a doutrina da proteção integral, pondo o menor a salvo de qualquer situação prejudicial a seus interesses. Aliás, o art. 70, entre outros dispositivos, é uma extensão da doutrina da proteção integral, ao impor a todos, sem exceção, o dever de prevenir a ocorrência de ameaça ou violação a direitos da criança e do adolescente.
Negar a adoção póstuma só porque o interessado deixou de formalizar em juízo o pedido de adoção é violar, repetimos, a doutrina da proteção integral instituída pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Ao discorrer sobre a interpretação das normas legais, Carlos Maximiliano ensinava que "Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, ou este, juridicamente nulo (...) Desde que a interpretação pelos processos tradicionais conduz a injustiça flagrante, incoerências do legislador, contradição consigo mesmo, impossibilidades ou absurdos, deve-se presumir que foram usadas expressões impróprias, inadequadas, e busca um sentido eqüitativo, lógico e acorde com o sentir geral e o bem presente e futuro da comunidade" (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Ed. Forense, 9ª ed., 1979, p. 166).
Em face do sábio ensinamento de Maximiliano, a interpretação do art. 42, § 5º, deverá harmonizar-se com o art. 1º e também com o art. 6º do ECA. Estabelece o art. 6º o seguinte: "Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoa em desenvolvimento". É dizer, o interesse do menor sobrelevará qualquer outro interesse juridicamente tutelado. E, tanto isso é verdade que, não raro, em respeito à carga protecionista instituída pelo ECA, nossos tribunais têm violado a letra da lei, mas não o seu espírito, ao salvaguardar interesses de crianças e adolescentes discutidos em juízo.
O Tribunal de Justiça de Goiás, por exemplo, ao apreciar recurso de apelação interposto pelo Ministério Público contra sentença que deferiu a adoção de neto por avós, confirmou o decisório, sob o argumento de que, a despeito da clara proibição prevista no art. 42, § 1º, o Estatuto tinha – e tem – sempre em mente a proteção e o amparo a crianças e adolescentes (Apelação Cível n. 34.595-0/188, comarca de Formosa, Apelante: Ministério Público; Apelado: CM e sua mulher; Rel. Des. Gonçalo Teixeira e Silva – in Revista Jurídica, vol. 209, p. 77-81). Com base no mesmo argumento, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais passou por cima do requisito etário previsto no art. 42, § 3º, e deferiu a adoção à pessoa que não era 16 (dezesseis) anos mais velha que o adotando (Ap. Civ. n. 4.779/5 – 4ª Câm., rel. Des. Caetano Carelos, mesma revista, p. 91).
Cumpre não olvidar, por fim, que a Convenção sobre os Direitos da Criança (adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, subscrita pelo Governo brasileiro em 26 de janeiro de 1990 e aprovada pelo Senado Federal por meio do Decreto Legislativo n. 28, de 14 de setembro de 1990), lei entre nós, estabelece no art. 3º que: "Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança" (o destaque é nosso). E, nos termos da mesma convenção, "considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade". Como se vê, o interesse maior do menor deverá balizar todas as ações das autoridades integrantes dos três Poderes da República.
Em resumo, o deferimento da adoção póstuma será possível, ainda que o adotante, em vida, tenha deixado de manifestar, perante os órgãos do Poder Judiciário, o desejo de adotar um menor. O importante é que não paire dúvida sobre a intenção do falecido.