EXMO. SR.
JUIZ DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DO FORO REGIONAL DE PINHEIROS
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO
ESTADO DE SÃO PAULO, por
seus Promotores de Justiça com atribuições para a defesa dos interesses difusos
e coletivos da infância e da juventude da Capital, com fundamento no disposto
no artigo 129, inciso III da Constituição Federal, artigo 25, inciso IV, a, da Lei 8.625/93, art. 103, VIII da
Lei Complementar Estadual n º 734/93, art. 5º da Lei 7.347/85 e arts. 208 e ss. da Lei 8.069/90, vem respeitosamente ajuizar a
presente AÇÃO
CIVIL PÚBLICA PARA CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER COM PEDIDO DE TUTELA
ANTECIPADA em
face da FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, representada conforme
dispõe o inciso I, do art. 12, do Código de Processo Civil, pelo Procurador
Geral do Estado, com endereço no Pátio do Colégio, s/nº, prédio da Procuradoria
Geral do Estado, nesta Capital, e, ainda, da FAZENDA PÚBLICA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, representada por força
do art. 12, II, do Código de Processo Civil, por seu Prefeito Municipal, DR. CELSO ROBERTO PITTA DO NASCIMENTO,
domiciliado no Palácio das Indústrias - Parque D. Pedro II, nesta Capital,
tendo em consideração os atos praticados pelas respectivas Secretarias de
Educação e pelos motivos de fato e de direito a seguir exposto.
I. DOS FATOS
É
de conhecimento geral a conduta freqüente da Secretaria Estadual de Educação de
- ao fazer publicar Resolução com o escopo de normatizar o acesso de crianças à
primeira série do ensino fundamental - estabelecer aleatória e arbitrariamente
data limite vinculada à data do sétimo aniversário das crianças como requisito
essencial e inafastável para viabilizar a matrícula das mesmas no ensino
básico.
Em
1996, com a edição da Resolução nº 169, em 1997, com a edição da Resolução nº
164 e em 1998, com a edição da Resolução nº 125, adotando critérios que não se
fundamentam em qualquer aspecto pedagógico, estabeleceu a citada Secretaria
limitações relacionadas à data em que a criança completaria 07 (sete) anos de
idade para o acesso à primeira série do ensino fundamental.
Estabelecidas
as regras para disciplinar as matrículas para o ano letivo de 2.000, a
Secretaria Estadual de Educação - inovando na manobra cujo escopo é apenas o de
limitar o número de vagas para o acesso ao ensino fundamental - editou a
Resolução nº 154, de 1999 e assim fazendo procedeu de modo a mais uma vez
desrespeitar o direito fundamental de milhares de crianças, consistente no
acesso à educação.
Não
obstante tenha procurado transferir ao poder público municipal a
responsabilidade exclusiva pela arbitrariedade cometida nos anos anteriores,
não pode a Fazenda do Estado ser eximida da obrigação que continua detendo
quando a questão diz respeito ao ensino fundamental.
Assim,
prelecionando em seu texto a necessidade
de efetuar um planejamento conjunto e antecipado para atendimento adequando de
toda a demanda do ensino fundamental, estabeleceu na citada Resolução nº
S.E. 154/99, publicada no D.O.E. de 04 de setembro de 1999, que:
Art. 2. - O processo de matrícula antecipada para o
ensino fundamental será realizado em conjunto com as redes municipais de ensino,
utilizando-se o Sistema de Cadastro de alunos do Estado de São Paulo.
E,
elucidando a sistemática do processo de matrícula referido dispôs:
Art. 3 - O processo de matrícula antecipada
contemplará:
I - o cadastramento dos alunos;
II - a coleta de vagas das escolas estaduais e
municipais;
III - a compatibilização entre a demanda e as vagas
existentes;
IV - a efetivação da matrícula dos alunos.
É
certo que da atente leitura da Resolução em consideração evitou a Secretaria de
Estado da Educação estabelecer critério expresso de limitação de acesso
atrelado à data de aquisição dos 07 (sete) anos completos, chegando mesmo a
prever que a terceira fase do processo de cadastramento dos alunos envolveria
as crianças com 07 (sete) anos completos ou a completar no ano 2.000 (art. 4º,
inciso III, Resolução SE nº 154/99).
Não
obstante a manobra, permaneceu o poder público estadual inegavelmente com sua
parcela de responsabilidade, estabelecendo no âmbito deste Município
parceira com o poder público local que, como adiante se demonstrará,
prestou-se a contribuir, colaborar e efetivamente desrespeitar aos direitos
inerentes à educação.
Com
efeito, dispôs o artigo 6º da Resolução 154/99:
a compatibilização entre a demanda
e as vagas existentes será realizada regionalmente, obedecidos
os critérios definidos conjuntamente pelo Estado e Municípios e
em conformidade com o parágrafo único do artigo 1º desta Resolução.
Vê-se,
em conseqüência, que a Secretaria Municipal da Educação inicialmente expediu a
Portaria nº 3.758/99 publicada no D.O.M., de 02 de setembro de 1999 que
expressamente dispôs no artigo 2º que:
o processo de atendimento à demanda escolar do
ensino fundamental será realizado em conjunto com a rede estadual de
ensino, utilizando-se os Sistemas Informatizados e em relação à qual não se fez
expressa referência à limitação de data para aquisição da idade de 07 (sete)
anos completos.
Ocorre
que, após ampla divulgação na imprensa da sistemática conjunta de organização
da demanda escolar do ensino fundamental e de elucidação da forma pela qual se
daria a efetivação das matrículas, a Secretaria
Municipal da Educação, às vésperas do encerramento da última fase de
cadastramento dos alunos, faz publicar a Portaria nº 4.130, de 29 de setembro
de 1999, que traz em seu texto escancarada violação dos direitos de crianças
que completarão sete anos de idade após 30 de junho de 2.000.
Assim,
dispôs que:
Art. 4 - A matrícula no Ensino Fundamental obedecerá as seguintes diretrizes:
Os alunos do 3º estágio das EMEIS serão atendidos,
em continuidade, no 1º ano/série do Ensino Fundamental, em uma escola da rede
pública.
Serão matriculados no 1º ano/série do Ensino
Fundamental da rede pública, crianças com mais de 7 anos de idade ou com
sete anos a completar até 30/06 do ano letivo a ser cursado.
As crianças que completam 7 anos de idade no 2º
semestre do ano letivo a ser cursado, poderão ser matriculadas no 3º estágio da
Educação Infantil da rede municipal ou, no 1º ano do Ciclo I das escolas
municipais que ofereçam o Programa de Ensino Fundamental com a duração de 9
(nove) anos ou, havendo vaga, no 1º ano/série do
Ensino Fundamental da rede pública.
Não
resta dúvida de que a limitação de idade estabelecida, desta feita através de ato conjunto das Secretarias de Educação
Municipal e Estadual, não apresenta justificativa de caráter pedagógico e
tem como único objetivo reduzir o número de vagas para a 1ª série do ensino
fundamental, configurando conduta violadora do sagrado direito de crianças ao
acesso à educação, ignorando, ainda, a condição de igualdade que todas elas
ostentam - completem a idade de sete anos em que dia for do calendário letivo
de 2.000.
A
Resolução da Secretaria Estadual da Educação e as Portarias da Secretaria
Municipal da Educação, interpretadas conjuntamente, impedem que crianças em
idade escolar matriculem-se regularmente na primeira série do Ensino
Fundamental, pelo motivo de completarem a idade de 7 anos após o dia
arbitrariamente estabelecido por ambos os poderes públicos, criando inaceitável
fator de discriminação e violando o princípio constitucional da isonomia.
Não
bastasse o cerceamento imposto criam os poderes públicos
estadual e municipal situação de flagrante desrespeito aos direitos de
crianças que - embora já tenham atingido a idade escolar (sete anos a completar
em qualquer dia do ano 2.000) - deverão se contentar em permanecer freqüentando
o terceiro estágio da educação infantil, o que significa que não terão qualquer
estímulo do ponto de vista educacional, já que estarão sujeitas à repetição das
informações já recebidas. Outras, que se estima sejam em número ainda maior,
estarão condenadas a permanecer fora das escolas, longe de qualquer processo de
escolarização - no qual possuem direito inquestionável de serem inseridas.
Impõe
considerar que a conduta do poder público estadual - desta feita com a
colaboração do Município - ensejou nos anos anteriores a atuação do Ministério
Público em defesa do direito de matrícula de milhares de crianças, que puderam
ter viabilizado seu acesso ao ensino fundamental graças à imediata resposta do Poder Judiciário, consubstanciada na antecipação da tutela
jurisdicional buscada nas ações ajuizadas.
II. DA LEGALIDADE DOS ATOS
DOS PODERES PÚBLICO ESTADUAL E MUNICIPAL
A
Constituição Federal traçou um rigoroso conjunto normativo em defesa da
educação.
Há,
em primeiro lugar, fixação de finalidade da educação (art. 205); elenco de
princípios norteadores da educação (arts. 206 e 207); fixação dos deveres do
Estado (art. 208); liberdade à iniciativa privada (art. 209); fixação de
conteúdo mínimo (art. 210); organização dos sistemas de ensino (art. 211);
aplicação de recursos (arts. 212 e 213); plano nacional de educação (art. 214).
Consagrando
a educação como direito social fundamental a Constituição Federal dispõe que:
Art. 6º. São direitos sociais a
educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição.
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do
Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício
da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
A Constituição de São Paulo, tratando do
Sistema Estadual de Ensino e regrando o acesso ao ensino fundamental,
estabelece:
Art. 249 - O ensino fundamental, com oito anos de
duração, é obrigatório para todas as crianças, a partir dos sete anos de
idade, visando a propiciar formação básica e comum indispensável a todos.
§ 1º - É dever do Poder Público o provimento, em todo o território paulista, de vagas em número suficiente para atender à demanda do ensino fundamental obrigatório e gratuito.
§ 2º - A atuação da administração pública estadual
no ensino público fundamental dar-se-á
por meio de rede própria ou em cooperação técnica e financeira
com os Municípios, nos termos do inciso VI artigo 30, da Constituição
Federal, assegurando a existência de escolas com corpo técnico qualificado e
elevado padrão de qualidade.
§ 3º - O ensino fundamental público e gratuito será
também garantido aos jovens e adultos que, na idade própria, a ele não tiveram
acesso, e terá organização adequada às características dos alunos.
§ 4º - Caberá
ao Poder Público prover o ensino fundamental diurno e
noturno, regular e supletivo, adequado às condições de vida do educando
que já tenha ingressado no mercado de
trabalho.
§ 5º - É permitida a matrícula no ensino
fundamental, a partir dos seis anos de idade, desde que plenamente atendida a
demanda das crianças de sete anos de idade.
A
Lei Federal nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional), disciplina a sistemática de oferecimento da Educação,
reforçando no artigo 5º que:
Art. 5º - O acesso ao ensino fundamental é direito
público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação
comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente
constituída, e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para
exigi-lo.
§ 1º - Compete aos Estados e aos Municípios, em regime de colaboração, e com a assistência da União:
I - recensear a população em idade escolar para o
ensino fundamental, e os jovens e adultos que a ele não tiveram acesso;
II - zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela
freqüência a escola.
§ 2º - Em todas as esferas administrativas, o Poder
Público assegurará em primeiro lugar o acesso ao ensino obrigatório, nos termos
deste artigo, contemplando em seguida os demais níveis e modalidades de ensino,
conforme as prioridades constitucionais e legais.
§ 3º - Qualquer das partes
mencionadas no caput deste artigo têm legitimidade para peticionar no
Poder Judiciário, na hipótese do § 2º do art. 208 da Constituição Federal,
sendo gratuita e de rito sumário a ação judicial correspondente.
§ 4º - Comprovada a negligência da autoridade
competente para garantir o oferecimento do ensino obrigatório, poderá ela ser
imputada por crime de responsabilidade.
§ 5º - Para garantir o cumprimento da
obrigatoriedade de ensino, o Poder Público criará formas alternativas de acesso
aos diferentes níveis de ensino, independentemente da escolarização anterior.
A
Lei nº 8.069/90, que consubstancia o Estatuto da Criança e do Adolescente,
registra em diversos dispositivos o dever do Poder Público de assegurar com absoluta prioridade a efetivação,
dentre outros direitos, daqueles referentes à educação (art. 4º), assegurando a
igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola de todos (art.
53, I).
Assim,
de modo absolutamente inequívoco, a educação foi posta como o mais importante
dos direitos sociais. Sua precedência vê-se, também, pela repetição deste
direito em seção própria da Constituição da República, que trata da ordem
social (arts. 205 a 214).
Definida
como direito social, vale-lhe, por todos os argumentos teleológicos racionais e
possíveis, a regra de aplicação imediata segundo o teor do art. 5º, § 1º, da
Constituição Federal, que afirma ser tal atributo inerente a toda norma
definidora de direitos e garantias fundamentais - e os direitos sociais são
espécies de direitos fundamentais, como se vê da nomenclatura do Título II da
Constituição Federal. Aquele chama de direitos e garantias fundamentais não
apenas os direitos individuais e coletivos (art. 5º), mas também os direitos
sociais (arts. 6º a 11); os direitos à nacionalidade (arts. 12 e 13); os
direitos políticos (arts. 14 a 16) e de participação política (art. 17).
Nenhum
desses direitos pode ter a sua vigência postergada nem limitada no tempo -
tampouco restrita a sua eficácia por condições infraconstitucionais.
Disso
decorre a ilegalidade das Portarias e Resoluções dos Poderes Públicos,
Municipal e Estadual, à luz do regramento constitucional.
Analisando-se
as normas constitucionais se extrai que o acesso ao ensino público obrigatório
e gratuito é direito público subjetivo, não se podendo em relação a ele
impor-se a limitação escancarada na Portaria nº 4.130 da Secretaria Municipal
da Educação, elaborada com a colaboração da Secretaria Estadual da Educação.
A
Constituição Federal não veda o ingresso de crianças com sete anos incompletos
no ensino de primeiro grau, nem autoriza o poder público, seja ele estadual ou
municipal, a estabelecer ordinariamente este limite.
A
Constituição Estadual Paulista reafirma, como já destacado, no artigo 249, a
obrigatoriedade do ensino fundamental a
partir dos sete anos de idade.
Equivale
dizer que a criança que completar sete anos de idade num determinado ano,
recaia o respectivo aniversário em qualquer mês do calendário lunar, face ao
sistema seriado adotado em nosso sistema educacional, tem direito público
subjetivo de ingresso no ensino fundamental.
De
outro lado, se é dever do Estado prover as vagas necessárias ao atendimento de
todos quanto busquem matricular-se no ensino público, é absolutamente
incoerente estabelecer limitação de acesso à escola por carência de vagas.
A
sistemática conjunta de cadastramento e matrícula para atendimento da demanda
escolar do ensino fundamental estabelecida em parceria entre os Poderes
Públicos, estadual e municipal, ao fixar o limite de data já destacado para
regrar o ingresso no ensino fundamental, estabeleceu restrição que não tem
apoio no texto constitucional.
Manifesta
a ilegalidade, sobretudo da Portaria nº 4.130, que viola o texto
constitucional, criando limitação espúria ao direito das crianças de seis anos
de idade ao acesso à primeira série escolar.
III - DO EXAME DO MÉRITO
DOS ATOS ADMINISTRATIVOS DOS PODERES PÚBLICOS ESTADUAL E
MUNICIPAL
Posto
que, segundo o art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, é dever do
Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos
tanto à educação - e que a garantia de prioridade compreende tanto a
preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas, quanto
à destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a
proteção à infância e à juventude - e considerado ainda que, na expressão do
art. 5º do mesmo diploma, nenhuma criança ou adolescente será objeto de
qualquer forma de negligência, discriminação, exploração ou crueldade, e que
será punido na forma da lei qualquer atentado por ação ou omissão aos seus
direitos fundamentais e, nesse ponto, considerado ainda que a Lei 9.394/96 (Lei
de Diretrizes e Bases da Educação) prevê a responsabilidade penal e
administrativa da autoridade que negligenciar o oferecimento de ensino
obrigatório, tem-se que o âmbito discricionário de atuação da Administração
quanto à educação é reduzidíssimo.
Mais
ainda por que a Constituição Federal determinou aplicação privilegiada de
recursos orçamentários em educação (art. 212) e elegeu a criança como
prioridade nacional (art. 227).
Há,
pois, acentuada redução do nível de discricionariedade que se tolera em tema de
políticas públicas direcionadas à infância e à adolescência, em especial quanto
à educação.
É
lição da doutrina que a Administração tem liberdade para decidir o que convém e
o que não convém ao interesse coletivo, devendo executar a lei vinculadamente,
quanto aos elementos que ela discrimina, e discricionariamente, quanto aos
aspectos em que ela admite opção (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo, p. 104). Mas o
fato de a lei conferir ao Poder Público certa margem de discrição significa que
lhe deferiu o encargo de adotar a providência mais adequada à espécie, podendo
examinar o momento e a forma de fazê-lo, mas não ficar inerte, pois os comandos
legais não se subordinam à vontade do administrador (Cf. SEABRA FAGUNDES, Responsabilidade
do Estado - Indenização por Retardada Decisão
Administrativa, em Revista de Direito
Público, 57-58/14).
De
fato, o dever de agir é um dos princípios da Administração, para quem a
execução, a continuidade e a eficácia dos serviços públicos constituem
imperativos absolutos. Por isso se diz que, sendo outorgado para satisfazer
interesses indisponíveis, todo poder administrativo tem para a autoridade um caráter impositivo, convertendo-se, assim, em verdadeiro
dever de agir (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, Direito
Administrativo Brasileiro, pp. 82-83 e 88-89; CARLOS MAXIMILIANO, ob. cit.,
pp. 336/337; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, Disciplina
Urbanística da Propriedade, Ed. revista dos Tribunais, São Paulo, 1980, pp.
7 e 15; CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Elementos
de Direito Administrativo, pp. 30 e 46-48, e Discricionariedade e Controle Jurisdicional, Malheiros Editores,
São Paulo, 1992, pp. 13 e 15).
Em
conhecida passagem, FLEINER adverte que, no exercício de um poder
discricionário, a autoridade administrativa está autorizada a escolher entre
as várias possibilidades de solução, aquela que melhor corresponda, no caso
concreto, ao desejo da lei (Instituciones
de Derecho Administrativo, 1ª ed., Madrid, p. 117, citado por HELY LOPES
MEIRELLES, Direito Administrativo
Brasileiro, p. 152).
Essa
característica fundamental do poder discricionário, associada
ao dever de eficiência que toca à Administração, evidencia que a
existência de norma autorizadora de um determinado ato, embora requisito
indispensável, não é suficiente para concluir pela sua legalidade em um caso
concreto.
CELSO
ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO
explica, a respeito, que, ao permitir alternativas de conduta, a lei não
autoriza o administrador a fazer o que bem entenda, antes o encarrega de adotar
o comportamento ideal: aquele que seja apto, no caso concreto, a atender com
perfeição a finalidade da norma (Cf. Elementos,
ed. cit., p. 144).
O
mesmo autor identifica em todas as normas (vinculadas ou discricionárias), o
dever de adotar a melhor solução, praticando os atos logicamente idôneos ao
atendimento das finalidades colimadas. Nas suas expressivas palavras, o
dever jurídico de praticar, não qualquer ato dentre os comportados pela regra,
mas, única e exclusivamente, aquele que atenda com absoluta perfeição à
finalidade da lei, para que sempre seja adotada a
decisão pertinente, adequada à fisionomia própria de cada situação
(Cf. Discricionariedade, pp. 32-33 e
36; no mesmo sentido, WEIDA ZANCANER, Da
Convalidação e da Invalidação dos Atos Administrativos, 2ª ed., Malheiros,
São Paulo, 1993, p. 54; JOSÉ AUGUSTO DELGADO, Princípio da Moralidade
Administrativa e a Constituição Federal de 1988, em Revista Trimestral de Direito Público, vol. 1/214-215).
Porque
existe um dever jurídico de boa administração, entende-se que o ordenamento só
quer a solução excelente e se não for esta a adotada, haverá pura e
simplesmente violação da norma de Direito, o que enseja correção jurisdicional,
dado que ter havido vício de legitimidade. Assim, em despeito da
discrição presumida na regra de direito, se o administrador houver praticado
ato discrepante do único cabível, ou se tiver eleito
algum sumamente impróprio ante o confronto com a finalidade da norma, o
Judiciário deverá prestar a adequada revisão jurisdicional (CELSO ANTÔNIO
BANDEIRA DE MELLO, Discricionariedade,
ed. cit., p. 37).
Portanto, o administrador só é livre,
verdadeiramente, para, no caso concreto, decidir entre duas ou mais soluções
igualmente aptas a atender a finalidade legal, na sua plenitude (Cf. CELSO
ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Discricionariedade,
ed. cit., p. 38).
Situação análoga já foi enfrentada em outro
Estado em data próxima, tendo o E. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul,
sobre esse tema, assim decidido:
REEXAME DE SENTENÇA. MATRÍCULA ASSEGURADA EM ESCOLA
PÚBLICA. EDUCAÇÃO. DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO. IMPROVIDO.
Aos filhos em idade escolar é assegurada a matrícula
nas escolas da rede estadual de ensino independentemente de qualquer forma
de seleção; além do que, a educação é direito de
todos e dever do Estado. (TJMS, Proc. 355.504, 01.12.93)
Recente decisão da E. Câmara Especial do Tribunal de Justiça deixou claro tratar-se a educação de direito público subjetivo do cidadão, amparado pelo mandado de segurança e, no mérito, assegurando-se a matrícula de criança com idade escolar a completar no curso do ano letivo. Naquele aresto decidiu-se que:
MENOR - Direito fundamental à educação. restrição à matrícula, no 1º ano do 1º grau ministrado por escola pública, em virtude de idade inferior ao permitido pela Resolução 169 da Secretaria da Educação. Inadmissibilidade. Pedido não prejudicado pelo fato de o ano letivo encontrar-se próximo de seu término. Segurança concedida. Recursos não providos.
Não
se pode ter os preceitos constitucionais espelhados
nos arts. 6º e 205 como meras peças de figuração. Mister que se lhes empreste a
eficácia de norma magna, conduzindo a interpretação do arcabouço legal
infraconstitucional de sorte a ser respeitada a teleologia dos artigos sob
comento.
A
própria Constituição Estadual admite a matrícula de crianças a partir de seis
anos no ensino fundamental (art. 249, § 5º), apenas estabelecendo preferência
às crianças de maior idade (sete anos).
Nesta
esteira, a Resolução 169 da Secretaria de Estado da Educação, ao proibir a
matrícula de crianças com seis anos no ciclo fundamental, ainda que existentes
vagas e preenchidos os demais requisitos, afigura-se descompassada
relativamente aos princípios norteadores da espécie, causando um hiato no
processo educacional de tais crianças, que teriam de se submeter à espera da
idade administrativamente exigida, mesmo tendo ultrapassado a etapa do ensino
pré-escolar, com evidente prejuízo à respectiva formação.
Além das normas constitucionais mister aduzir,
ainda, como feito na inicial, ser dever do Estado assegurar o ensino
fundamental obrigatório e gratuito à criança (ECA, art. 54).
Como
bem anotado pela r. decisão: E não só as regras constitucionais foram
desatendidas. A partir do cumprimento da Resolução se feriu gravemente o
princípio do art. 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente. A regra
estabelece que a criança e o adolescente, além daqueles direitos fundamentais
que todo cidadão deve ter garantido, ainda devem ter outros que lhes assegurem
a proteção integral. Devem ter assegurado, por isso, seja através da lei ou de outros
meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de
liberdade e dignidade. Disso resulta que a Lei e os chamados outros meios
de que trata o dispositivo só poderão ampliar - nunca restringir - os
mecanismos de proteção integral, facilitando o desenvolvimento físico,
mental, moral, espiritual e social da criança e do adolescente. (f. 71). (Apel.
40.914-4, rel. Des. Luís de Macedo).
IV. DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Incumbe
ao Ministério Público, conforme disposto no artigo 127, caput, e 129 da Constituição Federal, promover a defesa da ordem
jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis.
O
Estatuto da Criança e do Adolescente confere ao Ministério Público os poderes
para promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos
interesses individuais, difusos e coletivos, relativos à infância e à
adolescência, inclusive os definidos no artigo 220, § 3º, inciso II, da
Constituição Federal.
Assim,
tem esta Promotoria de Justiça legitimidade para defender os direitos atingidos
com os atos administrativos atribuídos aos poderes públicos estadual e
municipal.
V. DA COMPETÊNCIA DA VARA
DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
As
reiteradas decisões afirmando a competência
absoluta das Varas da Infância e da Juventude da Capital para conhecer as
ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à
criança e ao adolescente encontram amparo no inciso IV, do artigo 148 do
Estatuto da Criança e do Adolescente e evidenciam a competência desse I. Juízo
para apreciar a questão posta à sua apreciação.
VI. DA CONCESSÃO LIMINAR DO
PROVIMENTO JURISDICIONAL
Indiscutível
o periculum in mora decorrente da
recusa de matrícula para as crianças que completarão 7 (sete) anos de idade
após o dia 30 de junho do ano 2.000.
Existem
milhares de crianças que completarão a idade de 7 (sete) anos no segundo
semestre do ano 2.000 e que aguardam rápida solução para garantir-lhes o acesso
à primeira série do ensino fundamental.
Não
resta qualquer dúvida de que a limitação imposta negará o acesso à primeira
série do primeiro grau a, pelo menos, 47.294
crianças que já se encontram inseridas no sistema de atendimento
pré-escolar do Poder Público Municipal (vide documento anexo) sem
computar-se aquelas que por deficiência das vagas oferecidas em pré-escola
encontram-se alijadas desse atendimento e permanecerão em suas casas, não
obstante o fato de que completarão 7 (sete) anos de idade no 2º semestre do ano
2.000.
A
demora do provimento jurisdicional ou sua obtenção apenas quando do julgamento final
da ação importará em negar-lhes a freqüência à escola no ano letivo de 2.000,
tornando letra morta os preceitos que lhes propiciam o acesso à escola em
igualdade de condições com as demais crianças com seis anos e, ainda, criando
dano irreparável a direitos fundamentais.
VII. DO PEDIDO
Assim,
requer, com fundamento no parágrafo 1º, do artigo 213 da Lei nº 8.069/90
- Estatuto da Criança e do Adolescente - a
antecipação da tutela, para o fim de que a FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, e a FAZENDA PÚBLICA DO
MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, sejam imediatamente compelidas, por suas
Secretarias de Educação, a aceitar a matrícula, na 1ª série do Ensino
Fundamental para o ano letivo de 2.000, das crianças que vierem a completar 7
(sete) anos de idade no período entre 30 de junho e 31 de dezembro de 2.000,
independentemente do mês de nascimento, compelindo-se
as Secretarias a reabrirem
imediatamente, e pelo prazo mínimo de 10 (dez) dias, as matrículas para
as crianças que se encontrem em mencionada situação.
Requer, ainda liminarmente, sejam as FAZENDAS PÚBLICAS DO ESTADO E DO MUNICÍPIO
DE SÃO PAULO compelidas a promover aviso público de recebimento de
matrícula pelos meios de comunicação (especialmente jornal, televisão e rádio),
e, horário de reconhecida penetração nos lares, no prazo de 24 (vinte e quatro)
horas e por pelo menos três dias, com o alerta de que o fazem em virtude de
decisão judicial em ação civil pública.
Requer,
supletivamente, caso não sejam realizadas as matrículas e/ou divulgado o aviso
público acima postulado no tempo e forma devidos, sejam as requeridas
condenadas solidariamente ao pagamento de mensalidades escolares em unidades
particulares aos alunos prejudicados em face da injustificável desídia, pelo
prazo correspondente à omissão dos poderes públicos em prestarem pessoalmente a
assistência devida à educação reclamada nesta ação civil pública.
Nos termos do
art. 213, § 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente, requer, ainda, o arbitramento de multa cominatória diária,
no valor correspondente a R$ 10.000,00 (dez mil reais) por menor em caso
de descumprimento do pedido formulado
nesta ação civil pública, se, notificadas, as requeridas não promoverem a
matrícula da criança ou deixarem de dar publicidade ao aviso de recebimento de
matrículas, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas.
Oportunamente
requer sejam citadas as requeridas, para responderem aos termos da
presente ação, assim como, querendo, contestá-la, no prazo legal, sob pena de
revelia.
Requer,
outrossim, sejam as intimações ao autor expedidas para a Promotoria de Justiça
de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude da
Capital, à Rua Major Quedinho, nº 90, 8º andar, tels. 257.2899, r. 214/215/216.
Pede e
aguarda seja a final proferida sentença que, em caráter definitivo e julgando o
mérito da ação, imponha às requeridas o cumprimento de obrigação de fazer
consistente em determinar às requeridas que aceitem a matrícula, na 1ª série do
Ensino Fundamental para o ano letivo de 2.000, das crianças que venham a
completar 7 (sete) anos de idade no período compreendido entre 30 de junho e 31
de dezembro de 2.000, independentemente do mês de nascimento.
Protesta
pela apresentação de todos os meios de provas admissíveis em direito.
Dá-se à causa o
valor simbólico de R$ 1.000,00 (um mil reais).
Termos em que
Pede deferimento.
São Paulo, 27 de novembro de 1998.
Promotora de
Justiça
Motauri
Ciochetti De Souza
Promotor de
Justiça
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Vistos.
Com
fundamento em referidas decisões deste Juízo, todas confirmadas pelo E.
Tribunal de Justiça do Estado, concedo a tutela antecipada para afastar a
restrição imposta na Portaria 4130, de 29/9/99, e eventualmente em outros atos
administrativos emanados pela administração estadual e municipal, para os fins
pleiteados pelo Ministério Público, a fl. 22/23 destes autos, a fim de que
sejam aceitas as matrículas das crianças a completarem sete (07) anos de idade
até 31/12/2000, sob pena de pagamento da pena pecuniária requerida.
Concedo
a tutela também para que seja dada ampla divulgação do afastamento da restrição
em referência nas escolas públicas estadual e municipais de ensino fundamental.
Citem-se
as Fazendas Públicas do Estado e do Município e notifiquem-se os respectivos
Secretários de Educação.
São
Paulo, 22 de dezembro de 1999.