O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E AS PORTARIAS JUDICIAIS
Murillo
José Digiácomo
Promotor de Justiça com atribuições junto ao Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Estado do Paraná.
Portarias judiciais expedidas pelos Juizados da Infância e Juventude visando regulamentar situações que envolvem crianças e adolescentes são extremamente comuns, sendo difícil encontrar uma comarca que não as possua.
Infelizmente, no entanto, também é difícil encontrar uma portaria judicial que, quer em seu processo de elaboração, quer em seu conteúdo, não apresente vícios de forma e/ou fundo que acarretam sua nulidade.
Sem incursionar mais profundamente nas origens "históricas" das portarias judiciais, para fins da presente exposição, entendemos suficiente mencionar que, sob a égide do famigerado Código de Menores, o Juiz da Infância e Juventude (então chamado de "Juiz de Menores") possuía um "poder regulamentador" bastante amplo, que lhe permitia, a seu "prudente arbítrio", fazer as vezes de verdadeiro legislador, "suprindo lacunas" e "adaptando" a lei àquilo que entendia mais adequado à realidade local.
Com efeito, dizia o art. 8º da Lei nº 6.697/79 que "a autoridade judiciária, além das medidas especiais previstas nesta Lei, poderá, através de portaria ou provimento, determinar outras de ordem geral, que, ao seu prudente arbítrio, se demonstrarem necessárias à assistência, proteção e vigilância ao menor, respondendo por abuso ou desvio de poder" (verbis).
Usando desse permissivo legal, a autoridade judiciária expedia portarias sobre os mais variados temas, não raro mais voltados à restrição do que ao asseguramento de direitos de crianças e adolescentes.
O ato dispensava maiores formalidades, critérios ou justificativas, sobre ele praticamente inexistindo qualquer controle, até mesmo em função das limitadas atribuições que a legislação revogada deferia ao Ministério Público[1], que então possuía um perfil constitucional muito diferente daquele alçado após a Constituição Federal de 1988.
E foi justamente o advento da "Constituição Cidadã" que deu início à transfiguração do instituto da portaria judicial regulamentadora, notadamente através da mudança do paradigma da "situação irregular do menor" para o da "proteção integral à criança e ao adolescente", que fez com que crianças e adolescentes fossem considerados sujeitos de direitos, e não mais meros objetos da intervenção do Estado (lato sensu)[2], e, ainda, da regra que estabeleceu a obrigatoriedade de que todas as decisões judiciais fossem devidamente fundamentadas[3].
Diante de tais disposições constitucionais, bem como de outras estabelecidas pela Lei Maior justamente para evitar o cometimento de abusos por parte dos Poderes constituídos, não mais se concebia pudesse a autoridade judiciária, agindo apenas com base em seu "prudente arbítrio", pudesse tolher direitos de cidadãos, máxime quando estes fossem crianças e/ou adolescentes.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, que substituiu o Código de Menores, ao optar pela manutenção em seu texto do instituto da portaria judicial regulamentadora (ou disciplinadora, segundo seu enunciado), teve de conciliá-lo com a nova orientação constitucional, acabando por dar-lhe uma "roupagem" totalmente diversa da que até então se conhecia, de modo a torná-lo verdadeiro produto do Poder Jurisdicional (e não "legiferante") da autoridade judiciária competente.
Nesse sentido, o art. 149 da Lei nº 8.069/90, que passou a regular a matéria, em seus incisos I e II, procurou primeiramente limitar as hipóteses em que era possível, à autoridade judiciária, expedir portarias ou alvarás, tendo efetuado uma enumeração de casos absolutamente taxativa, numerus clausus (e não meramente exemplificativa), sendo que, mais especificamente no que se refere às portarias disciplinadoras (inciso I), houve ainda o cuidado de restringir esse "poder disciplinador" às situações em que a criança e/ou o adolescente estiverem desacompanhados de seus pais ou responsável.
De modo a deixar claro que a expedição de portarias e alvarás judiciais não mais está sujeita ao "prudente arbítrio" do magistrado, mas sim deve estar calcada em elementos concretos, o art. 149, § 1º, da Lei nº 8.069/90 estabeleceu a obrigatoriedade de o ato judicial levar em conta, dentre outros, diversos fatores expressamente relacionados[4], alguns dos quais, como a "existência de instalações adequadas" (alínea "c") e o "tipo de freqüência habitual ao local" (alínea "d"), somente passíveis de obtenção através da realização de vistorias e sindicâncias prévias.
No mesmo diapasão, o art. 149, § 2º, do citado Diploma Legal, em consonância com o art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, estabeleceu a obrigatoriedade da fundamentação da medida caso a caso, vedando as determinações de caráter geral, que abrangiam um número indeterminado de locais e estabelecimentos, outrora permitidas.
A título de ilustração, vale colacionar o comentário de WILSON DONIZETI LIBERATI sobre a matéria: "a portaria expedida pelo Juiz da Infância e Juventude não poderá regulamentar medidas de caráter geral não previstas em lei, como previa o art. 8º do Código de Menores revogado. Elas deverão ser claras e precisas, com determinação singular dos casos que pretendem regular, não autorizando o juiz a suprir eventuais lacunas existentes na lei. Tem-se, pois, que a relação apresentada pelo art. 149 é exaustiva, não sendo possível a interpretação ampliativa de outros casos" (In Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 4ª Edição. Malheiros Editores. São Paulo, 1995. p. 127).
As disposições acima relacionadas, somadas à previsão contida no art. 199 da Lei nº 8.069/90 de que "contra as DECISÕES proferidas com base no art. 149 caberá recurso de APELAÇÃO" (verbis - grifei), consagram a idéia de que a expedição de portarias e alvarás judiciais somente pode ocorrer como resultado de um procedimento especificamente instaurado para tal finalidade, direcionado a um ou mais locais/estabelecimentos previamente determinados e perfeitamente identificados, no qual será obrigatória a intervenção do Ministério Público.
Mas que procedimento?
Embora a Lei nº 8.069/90 não tenha previsto de maneira expressa um procedimento próprio para a expedição de portarias e alvarás judiciais, é perfeitamente possível enquadrá-lo na disposição genérica contida no art. 153 do citado Diploma Legal, segundo o qual "SE A MEDIDA JUDICIAL a ser adotada NÃO CORRESPONDER A PROCEDIMENTO PREVISTO NESTA OU EM OUTRA LEI, a autoridade judiciária poderá investigar os fatos e ordenar de ofício as providências necessárias, OUVIDO O MINISTÉRIO PÚBLICO" (verbis - grifei).[5]
Em que pese o acima exposto, poucas são as portarias disciplinadoras[6] expedidas de forma regular, em procedimento próprio, com a prévia realização de sindicâncias e vistorias, fundamentação adequada e efetiva intervenção do Ministério Público.
A regra, lamentavelmente, ainda tem sido a utilização da sistemática do revogado Código de Menores, com portarias expedidas de forma aleatória e genérica, sem qualquer critério ou fundamentação, com a simples cientificação do órgão do Ministério Público, após sua publicação.
Desnecessário dizer que portarias assim expedidas padecem do vício insanável da NULIDADE ABSOLUTA, como, aliás, tem decidido, de forma reiterada, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, como bem exemplifica o aresto a seguir transcrito:
"INFÂNCIA E JUVENTUDE - INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA - PORTARIA QUE ESTABELECE PROIBIÇÃO SEM FUNDAMENTAÇÃO - NULIDADE.
- O arbítrio judicial legitima-se na fundamentação de seus atos, devendo o juiz dar as razões, caso a caso, ao estabelecer o disciplinamento previsto no artigo 149, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
- Nulidade do processo, por falta de fundamentação da portaria disciplinadora" (Apelação nº 055-0, de Ponta Grossa. Acórdão nº 8041. Rel. Des. Dilmar Kessler. j. e, 18/05/98. In Revista Igualdade 19/205).
Vale repetir que uma portaria disciplinadora não é um ato de mera liberalidade da autoridade judiciária, mas, sim, deve ter sua expedição justificada e fundamentada em elementos suficientes a permitir o controle de sua legalidade pelas instâncias superiores.
Tais elementos devem ser colhidos dentro de um procedimento judicial específico, instaurado de ofício ou a requerimento do Ministério Público, Conselho Tutelar ou outro órgão ou mesmo pessoa interessada, onde, apesar de a autoridade judiciária ter maiores poderes de investigação, será imprescindível a tomada de algumas providências e cautelas básicas:
1 - a autuação formal do ato ou requerimento que deflagra o procedimento, de modo a torná-lo oficial;
2 - a perfeita identificação, qualificação e individualização de cada um dos locais e estabelecimentos que serão atingidos pela norma (inclusive com a indicação de seus responsáveis legais);
3 - a realização de vistorias e sindicâncias nos locais e estabelecimentos que serão atingidos pela norma (devendo para tanto contar com o concurso dos "comissários de vigilância" ou "agentes de proteção da infância e juventude"[7], representantes da vigilância sanitária, corpo de bombeiros, polícias civil e militar etc.), sem embargo da coleta de outras provas que entender necessárias;
4 - a intimação do órgão do Ministério Público para acompanhar e fiscalizar todo o trâmite procedimental, culminando com a emissão de parecer de mérito a seu término;
5 - a obrigatoriedade que a decisão final tenha a forma de sentença, contendo relatório, fundamentação adequada (em que serão levados em conta, dentre outros fatores, os itens relacionados no art. 149, § 1º, alíneas "a" a "f", da Lei nº 8.069/90) e dispositivo;
6 - a publicação do ato, com a cientificação formal de todos os responsáveis pelos locais e estabelecimentos atingidos pela portaria, para que possam, no prazo de 10 (dez) dias[8], interpor recurso de apelação contra tal decisão (devendo tal advertência constar do mandado respectivo).
Vale também o registro de que, embora o ideal seja a instauração de um procedimento específico para cada local ou estabelecimento a ser atingido pela medida judicial, por razões de ordem prática, é admissível englobar vários num único feito, desde que cada qual apresente características semelhantes, seja devidamente nominado quando de sua deflagração, individualmente vistoriado e sindicado ao longo de sua instrução e, ao final, tenha sua situação em particular devidamente analisada pela autoridade judiciária quando da fundamentação, sendo contemplado por item próprio na decisão que opta pela expedição da portaria disciplinadora respectiva.
Nesse contexto, não é difícil perceber que a "portaria" propriamente dita não passará de um dos elementos da decisão, o ponto culminante de todo um procedimento judicial de natureza pública, deflagrado e/ou fiscalizado pelo Ministério Público, sujeito a regras e princípios próprios, onde não mais há lugar para o arbítrio da autoridade judiciária.
Apesar de a sistemática introduzida pela Lei nº 8.069/90 ser muito mais complexa do que a anterior, é ela, sem dúvida, muito mais correta e acima de tudo democrática, e, uma vez fielmente observada, dará pouca ou nenhuma margem para os abusos outrora verificados e que, em última análise, foram justamente a razão dessa nova regulamentação, fazendo com que a portaria judicial deixe de ser um mecanismo de opressão de "menores"[9] para se tornar mais um instrumento de proteção de direitos de crianças e adolescentes.
Para que seus objetivos sejam cumpridos, no entanto, é evidente que não bastam a expedição, publicação e sempre salutar divulgação[10] da portaria disciplinadora; fundamental é a permanente fiscalização de seu cumprimento, com a deflagração de procedimentos (arts. 194 usque 197 da Lei nº 8.069/90) e a aplicação de sanções administrativas (art. 258 do mesmo Diploma Legal), toda vez que for detectada sua violação pelos locais e estabelecimentos por ela atingidos[11].
Uma vez observadas todas as regras e princípios acima relacionados, se estará enfim criando um instrumento eficaz no sentido da proteção integral de crianças e adolescentes, objetivo maior de toda e qualquer ação daqueles que militam na Justiça da Infância e Juventude e lutam pela plena efetivação da Lei nº 8.069/90.
Notas:
[1] Cujo representante junto ao Juízo especializado era chamado de
"Curador de Menores".
[2] Art. 227, caput.
[3] Art. 93, inciso X.
[4] Princípios que norteiam a Lei nº 8.069/90 (em especial os contidos
nos arts. 5º e 6º do referido Diploma), as peculiaridades
locais, a existência de instalações adequadas, o tipo de freqüência habitual ao
local, a adequação do ambiente a eventual participação ou freqüência de
crianças e adolescentes e a natureza do espetáculo.
[5]
Sendo certo que a obrigatória intervenção do Ministério Público em todos os
procedimentos que versam sobre matéria prevista na Lei nº 8.069/90, sob pena de
nulidade do provimento jurisdicional respectivo, é determinada pelos arts. 202 e 204 do mesmo Diploma Legal.
[6]
No que diz respeito aos alvarás, como, de regra, autoridade judicial é
provocada para sua expedição, a situação é um pouco
diversa.
[7] Antes chamados de "comissários de menores", que funcionam
como a longa manus do Juiz da Infância e
Juventude e, face ao contido no art. 194, caput, da Lei nº 8.069/90, no futuro
terão a incumbência de fiscalizar o próprio cumprimento da portaria expedida. De modo a agilizar a
realização das referidas sindicâncias, poderão ser nomeados voluntários apenas
para essa tarefa, imprescindível à validade do ato.
[8] Ex vi do disposto no art. 198, inciso II, c/c art. 199, ambos da Lei nº
8.069/90.
[9] O termo é aqui empregado apenas para fins de referência ao que
ocorria sob a égide do revogado Código de Menores, haja vista seu oportuno
banimento da nomenclatura utilizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
(e do próprio vocabulário daqueles que compreendem e estão comprometidos com a
plena efetivação de sua proposta).
[10]
De modo a facilitar sua compreensão pela população em geral, recomenda-se que,
no próprio dispositivo da decisão, haja a previsão da obrigatoriedade de que
seja afixado, nos locais e estabelecimentos atingidos pela portaria (que, como
dissemos, devem ser previamente identificados, individualizados, vistoriados e
sindicados), um "resumo" de seu conteúdo, cujo teor pode ser
fornecido em separado.
[11] A ação repressiva, é preciso que se diga, deve ser voltada apenas
contra os locais e estabelecimentos (bem como seus respectivos proprietários e
responsáveis) que descumprirem a portaria disciplinadora, e não contra crianças
e adolescentes que lá sejam encontrados em desacordo com a regulamentação
judicial. Estes
deverão ser identificados e convidados (jamais constrangidos) a deixar o local
ou estabelecimento, com a aplicação, pela autoridade competente (Conselho
Tutelar ou Juiz da Infância e Juventude), da medida prevista no art. 101 da Lei
nº 8.069/90. Num segundo momento, deverá a autoridade competente verificar a
presença de eventual situação de risco na forma do disposto no art. 98 da Lei
nº 8.069/90 e, em caso positivo, aplicar à criança ou adolescente as medidas de
proteção que se fizerem necessárias, sem embargo do aconselhamento (além de
outras providências previstas no art. 129 da Lei nº 8.069/90) também de seus
pais ou responsáveis acerca da necessidade de orientarem e cobrarem de seus
filhos ou pupilos o respeito às limitações legais e determinações judiciais
respectivas.