AUTORIA E AUTORIZAÇÃO: QUESTÕES ÉTICAS NA
PESQUISA COM CRIANÇAS
Sonia Kramer
Departamento de Educação da PUC-Rio.
Resumo: O
texto analisa questões éticas enfrentadas na pesquisa com crianças de diferentes
idades, grupos e contextos. Trata da concepção de infância subjacente às
pesquisas em debate e analisa três questões. A primeira focaliza os nomes
(verdadeiros ou fictícios) de crianças observadas ou entrevistadas e analisa se
devem ou não ser explicitados na apresentação da pesquisa. A segunda discute a
utilização de imagens de crianças — seus rostos — em especial a autorização do
uso de imagens (em fotografias, vídeos ou filmes). A terceira trata das
implicações ou do impacto social de resultados de trabalhos científicos e
pergunta se é possível contribuir e devolver os achados, evitando que as
crianças ou jovens sofram com as repercussões desse retorno, no interior das
instituições educacionais que freqüentam e que foram estudadas na pesquisa. Tais
questões emergiram na orientação de monografias, dissertações e teses.
Palavras-Chave:
Criança-Infância-Pesquisa de campo- Ética
“...eu desejo ser astronauta
porque me dá emoção de ver as estrelas.” (Daniel, 8 anos) Algebaile,1996, p. 131.
Este texto
visa a discutir questões de caráter ético que tenho enfrentado na pesquisa com
crianças de diferentes idades, grupos e contextos. São questões comuns,
presentes em procedimentos usuais, que pareceriam de início exigir apenas uma
decisão arbitrária do pesquisador e uma explicitação dessa decisão no corpo de
seu relatório ou texto. Vejamos algumas: os nomes verdadeiros das crianças —
observadas ou entrevistadas — devem ou não ser explicitados na apresentação da
pesquisa? No caso de serem usadas e produzidas imagens das crianças
(fotografias, vídeos ou filmes), a autorização dada pelos adultos, em geral
seus pais, é suficiente, do ponto de vista ético, para a sua divulgação? Que
implicações ou impacto social têm os resultados de trabalhos científicos? Ou, dizendo
de outra forma, é possível contribuir e devolver os achados, evitando que as
crianças ou jovens sofram com as repercussões desse retorno no interior das
instituições educacionais que freqüentam e que foram estudadas na pesquisa?
Essas
questões me preocupam há anos e têm estado presentes na orientação de
monografias, dissertações e teses. Ao orientar, acompanhamos o desenvolvimento
de investigações com uma interessante combinação de proximidade e afastamento,
necessários para a pesquisa nas áreas das ciências humanas e sociais, que nunca
é objetiva, consistindo sempre num movimento de objetivação e subjetivação. Ao
refletir sobre tais questões, trago o diálogo que venho travando com autores de
pesquisas que orientei ou examinei.
Aparentemente,
pareceria simples responder a cada uma das indagações. No entanto, aspectos
polêmicos emergem. Quando trabalhamos com um referencial teórico que concebe a
infância como categoria social e entende as crianças como cidadãos, sujeitos da
história, pessoas que produzem cultura, a idéia central é a de que as crianças
são autoras, mas sabemos que precisam de cuidado e atenção. Elas gostam de
aparecer, de ser reconhecidas, mas é correto expô-las? Queremos que a pesquisa
dê retorno para a intervenção, porém isso pode ter conseqüências e colocar as
crianças em risco. Outras vezes, elas já estão em risco e não denunciar as
instituições ou os profissionais pelo sofrimento imposto às crianças nos torna
cúmplices! Nesse sentido, as respostas ou decisões do pesquisador podem não ser tão fáceis como a
pareceria à primeira vista.
O texto
começa apresentando a concepção de infância subjacente às pesquisas em debate.
Analisa, a partir daí, três questões: os nomes (verdadeiros ou fictícios),
relacionando este tema à autoria das ações e produções; os rostos, discutindo a
autorização do uso de imagens de crianças em teses, livros, internet; a
devolução de achados, falando de pesquisa, compromisso e cumplicidade. Ao longo
de todo o texto, minha intenção é compartilhar perguntas mais do que oferecer
respostas.
Criança e Sujeito da História e da Cultura: uma
Concepção em Processo
Temos feito
no Brasil, nos últimos vinte anos, um sério esforço para consolidar uma visão da
criança como cidadã, sujeito criativo, indivíduo social, produtora da cultura e
da história, ao mesmo tempo em que é produzida na história e na cultura que lhe
são contemporâneas. As pesquisas discutidas neste texto são também fruto desse
esforço.
A construção
desse referencial ocorre desde o aparecimento do trabalho de ARIÉS (1978), no
final dos anos 70, quando começa a pesquisa sobre a história da infância
brasileira, considerando aspectos sociais, culturais e políticos que
interferiam na nossa formação: a presença da população indígena e seus
costumes; o longo período de escravidão e a opressão a que foi submetida
expressiva parte da população brasileira; as migrações; o colonialismo e o
imperialismo, inicialmente europeu e mais tarde americano, forjaram condições
que deixaram marcas no processo de socialização de adultos e crianças. Com
ARIÉS ficou evidenciada a natureza histórica e social da criança.
Outra
influência foi a de CHARLOT (1977). Discutindo a idéia de infância,
questionando a significação ideológica da idéia de infância, CHARLOT permitiu a
compreensão de que "a visão de criança baseada numa suposta natureza
infantil, e não na condição infantil, mascara a significação social da
infância" (KRAMER, 1982, p. 20). A dependência da criança perante o adulto
é um fato social e não natural e o sentido dessa dependência varia de acordo
com a classe social: as relações entre crianças e adultos são heterogêneas, e é
diverso o valor dado às crianças. Tratar das populações infantis em abstrato,
sem levar em conta condições de vida, é dissimular a significação social da
infância. Ao fazer essa dissimulação, despreza-se a desigualdade social real
existente entre as populações, inclusive as infantis. Se ARIÉS, articulando
infância, história e sociedade, fundamentou uma posição contrária à
miniaturização da criança, CHARLOT favoreceu a crítica à naturalização da
criança e consolidou a análise de caráter histórico, ideológico e cultural.
Assim,
contra a idéia de criança-ser-da-natureza, foi possível delinear uma visão das
crianças a partir de suas condições concretas de existência. Porém, a aparente
contradição entre a singularidade (focalizada por ARIÉS) e a totalidade
(enfatizada então por CHATLOT) só seria enfrentada dez anos depois, ao
encontrar, com Walter Benjamin, as pistas de uma antropologia filosófica capaz
de compreender o ser humano e, portanto, a infância, na sua microdimensão,
sem abdicar da totalidade[1].
Para além
dessas influências, vários campos teóricos têm tido papel relevante na
constituição da infância como categoria social no Brasil. A sociologia de
tradição francesa originou uma reflexão que permitiu a crítica à ação
reprodutora da escola, ampliou o questionamento quanto ao caráter ideológico do
conceito de infância presente na pedagogia, em especial na sociedade
capitalista. Esse processo foi também marcado pela ruptura que se manifestou no
âmbito da psicologia, seja a provocada pela psicanálise, seja a que foi gerada
por uma psicologia fundamentada na história e na sociologia. Da psicologia a
que a pedagogia se curvara e se submetia, operou-se um rompimento conceitual
importante. A visão idealizada de infância, com a qual a pedagogia lidara até
então, não poderia ficar incólume. Assim, a releitura da psicanálise, por um
lado, e o referencial sócio-histórico, por outro, tornaram possível compreender
que o sujeito é constituído com o outro e no contexto, sendo ao mesmo tempo
ativo e criativo neste processo. Enfim, permitiram entender como os signos da
cultura — a linguagem — não só marcam, mas constituem a consciência e o
inconsciente.
Em que
pesem as seduções exercidas pela psicanálise e o reducionismo de sua dimensão
epistemológica à prática terapêutica, e apesar da difusão aligeirada da
perspectiva sócio-histórica e a absorção quase mágica feita pelos sistemas de
ensino, no Brasil, esses dois campos dão grande contribuição para a concepção
de infância historicamente situada; geram, em decorrência, inúmeras
possibilidades férteis de investigação. Esboça-se, aos poucos um campo teórico,
em que o conhecimento provisório, dinâmico, flexível, em
processo de constituição, ocupa o lugar de certezas positiva e
instrumentalmente formuladas. Um conhecimento que não apenas evolui, mas reevolui, que indaga de seu próprio processo de construção,
e que foi delineando uma concepção de infância que não é só natureza biológica,
etapa idealizada de desenvolvimento psicológico ou germe de uma ambígua
sociedade futura.
A
antropologia fornece também elementos importantes: enfatizando a dimensão da
cultura, a necessidade de pesquisar a diversidade, de estranhar o familiar e de
compreender o outro nos seus próprios termos, a antropologia muda radicalmente a reflexão sobre a educação e os estudos da infância em
particular. Por outro lado, a pesquisa etnográfica fornece estratégias e
procedimentos metodológicos, influenciando estudos do cotidiano escolar, da
prática pedagógica e das interações entre as crianças e os adultos. Aliadas à
Sociologia e à História, à Antropologia e a pesquisa etnográfica — exercício de
encontro com o outro e, portanto, consigo mesmo — combinam um cuidadoso
mergulho crítico no trabalho de campo com um severo questionamento quanto ao
processo de pesquisar. Indagando-se sobre o que torna humano o ser humano, a
Antropologia traz a diversidade à ordem do dia e mostra como diversidade e
pluralidade constituem a singularidade dos seres humanos, embora até hoje
continuem sendo engendradas formas sutis ou explícitas de tentar eliminar as
diferenças.
Todos esses
campos reforçaram a necessidade de pesquisas que permitissem conhecer as
crianças. Diante dessa multiplicidade de áreas do conhecimento e diante da
diversidade de linhas teóricas dentro de cada área, a infância é hoje um campo
temático de natureza interdisciplinar, e essa visão se difunde cada vez mais
entre aqueles que pensam a criança, atuam com ela, desenvolvem pesquisa e
implementam políticas públicas. O campo não é uniforme nem unânime, felizmente.
Diversos são os modos de ler e se apropriar das teorias; diversas são as portas
de entrada, as abordagens, as posições, temas de interesse, estratégias. Aquele
ser paparicado ou moralizado, miniatura do homem, sementinha a desabrochar
cresceu como estatuto teórico. Nesse contexto, muitos são os pesquisadores que
têm buscado conhecer a infância, e as crianças com um conceito de infância e
uma prática de pesquisa que podem ter enfoques teórico-metodológicos diversos,
mas com os quais as crianças jamais são vistas ou tratadas como objeto.
Além disso,
a epistemologia das ciências humanas e sua análise crítica das relações entre
saber e poder colocam em destaque a centralidade da linguagem para a
compreensão da condição e da dimensão humanas. No nosso caso, as teorias de
Benjamin, Bakhtin e VYGTSKI têm-se constituído em referências fundamentais para
estudar a sociedade contemporânea e a infância nas suas várias facetas (ver
Souza, 1994; Freitas, 1994; KRAMER, 1993). Especialmente Benjamin, porque, na
sua obra, a criança, filhote do homem, ser em maturação, cidadão do futuro,
esperança de uma humanidade que não tem mais esperança, é desalojada por uma
criança parte da humanidade, fruto da sua tradição cultural, que é também capaz
de recriá-la, refundá-la; criança que reconta e ressignifica uma história de barbárie, refazendo essa
história a partir dos despojos de sua mixórdia cultural, do lixo, dos detritos,
trapos, farrapos, da ruína. E aqui, a arte, em geral, e o cinema e a
literatura, em particular, ajudam a constituir esse outro modo de olhar a
infância, revelando o seu próprio olhar e como ela pensa, sente e imagina o
mundo e também a encontrar outra maneira de falar da infância e de ouvir as
crianças. História, sociedade e cultura vão se delineando como categorias
importantes para se reconceber a infância, e a
própria infância passa a ocupar esse outro lugar em uma concepção de história
que se vê e se quer crítica. Fica instaurada uma nova ruptura conceitual, no
entendimento da infância, que tem nítidas repercussões para a prática de
pesquisa. Nessa ruptura, a linguagem irá desempenhar papel central.
Ao
contrário dos animais, o homem tem uma infância, não foi sempre falante, e
precisa, para falar, constituir-se em sujeito da linguagem. A linguagem é,
pois, condição da humanidade do homem, já que só o ser humano pode ser in-fans (aquele que não fala) e, nessa descontinuidade é
que se funda a historicidade do ser humano. Se há uma história, se o homem é um
ser histórico, é só porque existe uma infância do homem, é porque ele deve se
apropriar da linguagem. Se assim não fosse, o homem seria natureza e não
história, e se confundiria com a besta[2]. Pesquisar a
infância com este olhar significa pesquisar a própria condição humana, a
história do homem. Desvelando o real, subvertendo a aparente ordem natural das
coisas, as crianças, para Benjamin, falam não só do seu mundo e da sua ótica;
falam também do mundo adulto, da sociedade contemporânea. Imbuir-se desse olhar
infantil crítico é aprender com as crianças e não se deixar infantilizar.
Conhecer a infância passa a significar uma das possibilidades para que o ser
humano continue sendo sujeito crítico da história que o produz.
Hoje,
dispondo de um referencial teórico que questiona a prática da pesquisa e a
forma de olhar a infância, temos procurado conhecer as crianças. Dessa
experiência, muitas indagações emergem. Neste texto, como disse anteriormente,
focalizo três: os nomes, os rostos (item apenas insinuado e que acaba se
configurando como sugestão de pesquisa que precisa ser desenvolvida) e a
difícil e necessária devolução dos dados, às crianças, à escola e a outras
instâncias da vida política e social.
Os Nomes: Autoria ou Anonimato?
Acompanhei
várias dissertações de mestrado, teses de doutorado e monografias que
apresentam pesquisas feitas com crianças numa abordagem qualitativa, em que a
questão dos nomes se tornou uma dificuldade. Desde o trabalho de campo e no
momento de elaboração dos primeiros relatórios, emergiu a necessidade de uma
narrativa direta, na qual os sujeitos aparecessem nomeados. De antemão
recusamos alternativas tais como usar números, mencionar as crianças pelas
iniciais ou as primeiras letras do seu nome, pois isso negava a sua condição de
sujeitos, desconsiderava a sua identidade, simplesmente apagava quem eram e as
relegava a um anonimato incoerente com o referencial teórico que orientava a
pesquisa. Por outro lado, aquelas alternativas comprometeriam a forma da
escrita do trabalho, por prejudicar a narração das histórias e interferir na
transcrição e força dos diálogos entre as crianças. Com a preocupação, no
entanto, de não revelar a identidade das crianças, seja porque estudavam na
única escola da região, cujos seus depoimentos traziam muitas críticas à escola
e às professoras, seja porque denunciavam problemas graves vividos por elas
mesmas e por suas famílias e, nesse caso, a revelação dos nomes se constituía
em risco real, tornou-se necessário, em muitas situações, usar nomes fictícios.
Em alguns contextos, diante do grande envolvimento e da integração entre
pesquisador e crianças, decidimos pedir para as crianças escolherem os nomes
com que queriam aparecer na versão oficial do trabalho. Os estudos de ALGEBAILE
(1995), LEITE (1995), EARP (1996) e FERRIRA (1998) permitem-me discutir essa
alternativa metodológica e analisar algumas de suas implicações ou
decorrências.
ALGEBAILE (1995)
pesquisou crianças entre 6 e 11 anos que freqüentavam uma escola pública de um
bairro situado no centro do município do Rio de Janeiro. Das suas falas,
emergiram depoimentos sobre trabalho, brincadeira, ser criança, ser menino ou menina, violência. Confrontada com o dilema de
como se referir às crianças, depois de dois anos em pesquisa de campo numa
escola em que havia trabalhado muito tempo como professora, ALGEBAILE decidiu
omitir o nome da escola e tratar as crianças pelo primeiro nome apenas, sem
revelar o sobrenome. Na medida em que existem mais de mil escolas públicas
municipais na cidade do Rio de Janeiro, a identidade das crianças ficava
protegida, mas, ao mesmo tempo, elas poderiam depois se ler, se ver, o que nos
pareceu um princípio ético coerente com a concepção de infância do estudo. Ou
seja, a autora optou por trazer os nomes verdadeiros das crianças.
LEITE
(1995) estudou crianças de uma área rural, com a finalidade de ouvir o que
falavam sobre escola e saber. Observou suas brincadeiras, fotografou,
entrevistou as crianças, brincou com elas, desenharam juntos. Sobre esse
processo diz Leite que sua relação com as crianças
...se construiu
na base da confiança, do respeito e da afetividade... trabalhava com sujeitos,
ressaltando a importância da criança-cidadã, sinalizando a relevância da voz,
da autoria, ainda tinha um desafio metodológico: como resolver a questão dos
nomes das crianças? Usar nomes verdadeiros? (1996, p. 94)
Ela relata
sua opção por resguardar a integridade das crianças, omitindo seus nomes e o da
localidade estudada, e a iniciativa de pedir que cada uma escolhesse o nome com
que gostaria de aparecer no texto: "discutir com eles os nomes que
desejariam ter foi momento rico. Alguns animaram-se a
escolher heróis ou ídolos (Bruce Lee, Van Damme, Daniela Mercury[3], Angélica[4])". A região em estudo é muito
pobre e as casas em que moram as crianças sequer têm luz elétrica, não tendo
acesso direto a programas de televisão. Contudo, isso não impediu que nomes de
artistas (brasileiros ou estrangeiros) e jogadores de futebol circulassem e
tivessem significados de identificação e pertencimento. O conceito de circularidade da cultura (GINZBURG, 1987) ajudaria a
compreender como esses nomes divulgados pela televisão se tornam conhecidos por
pessoas que não são espectadores usuais de TV. Além disso, a questão delicada e
complicada é que a pesquisa precisou apagar os nomes para circular
academicamente!
O estudo de
Sá Earp (1996) traz também esse impasse. Ela
pesquisou crianças de 7 a 14 anos internas ou semi-internas em uma escola
pública que mantinha um projeto de alunos residentes, numa vertente de atuação
da assistência social que era a tônica da política educacional implementada no
estado do Rio de Janeiro naquele momento (bastante criticada por sinal).
Entrevistou crianças com o objetivo de conhecer suas histórias, a visão que
elas tinham da própria instituição (escola), das famílias e o projeto em que
estavam inseridas. Ao propor que as crianças escolhessem nomes para figurar na
pesquisa, ouviu, de quase todas, apelidos e nomes de jogadores de futebol
famosos naquela época: Sávio, Romário, Ronaldinho,
Túlio. De um lado, essa escolha mais uma vez aponta para o valor social e de
prestígio bem como a carga de desejo de ser conhecido, de ser querido, de ter
fama. A significação dos nomes e aquilo que está presente também no imaginário
infantil mereceriam uma análise mais detalhada e aprofundada do que o espaço
deste texto permite.
O fato é
que diante do impasse, a pesquisadora optou por utilizar as três primeiras
letras dos nomes escolhidos (Sav, Tul,
Ron): fazer menção aos nomes verdadeiros (ainda que
fosse às primeiras letras ou às iniciais) revelaria a identidade dos meninos e
os exporia à ação da instituição. Nesse caso, além da dimensão ética,
colocava-se um aspecto jurídico: os meninos estão protegidos pela lei[5], especialmente por se encontrarem sob proteção e tutela
do Estado, em uma instituição pública. Ao contrário, trazer, na íntegra, nomes
que evocam sentidos institucionalizados socialmente, tornava o texto estranho,
deslocava os sentidos, mudava o foco da leitura, dispersava o leitor.
Exatamente
o mesmo problema se manifestou no estudo de FERREIRA (1998). Em pesquisa
realizada com crianças de 8 a 13 anos, a autora, procurando conhecer crianças
que moram em uma favela no município do Rio de Janeiro, provocou — em relação
aos nomes das crianças — a mesma situação das três pesquisas citadas, pedindo
às crianças que escolhessem os nomes com que gostariam de aparecer no texto. Os
nomes escolhidos foram também Romário, Túlio, Ronaldinho,
Sávio, jogadores de futebol. Trazendo os discursos das crianças, explicitando
as condições de produção dos discursos, revelando como as crianças conhecem o
contexto em que são inseridas, Ferreira mostrou as contradições e a diversidade
presentes entre as crianças e suas relações com o trabalho, a brincadeira, o
ser menino, menina, criança ou adulto. No entanto, são seus relatos sobre
violência e escola os que melhor elucidam por que não puderam revelar os nomes
verdadeiros das crianças.
ADULTO:
Você gosta de morar aqui?
ROBERTA:
Gosto. Porque é legal, é muito bom de brincar. O ruim é que tem uns bandidos
que fica soltando tiro, bala perdida.
ADULTO:
Isso atrapalha a vida das pessoas aqui?
ROBERTA: Por
que os filhos tão na rua, aí vai começar a soltar
tiro, as pessoas fica nervosa procurando os filhos que tão sumido... Os filhos
não tá perto da mãe. Aí a mãe fica igual maluca
procurando.
Em quase
todas as falas das crianças, a violência emergiu com muita força.
Principalmente a violência provocada pela polícia.
ANA
CAROLINA: Tem um tempo que tava um montão de gente, de bandido lá no meu beco,
em frente da minha casa. Aí cagüetaram eles, só tava
eu e minha mãe em casa, a polícia veio, cercaram eles, veio pelo beco da ... Aí
um montão pulou para minha casa, passaram pelo telhado, a polícia cercou
tudo... Mataram três e minha mãe queria sair para fora
para falar com a polícia que se chegasse dois garotos pra não fazer nada com
eles... Minha mãe chorando falou, mas a polícia não deixou... por que já tinha
matado e não deixaram nem minha mãe passar. Minha mãe gritou lá de casa: moço!
moço! minha mãe gritou lá de dentro de casa... se aparecesse
dois garotos um atrás do outro... não faz nada com meus filhos não! que
eles são meus filhos... Aí ele falou: tá moça, agora
entra, agora entra. Foi puxando minha mãe... E começou aquele tiroteio\bala pra
todo lado. Aí minha mãe me pegou, me puxou e levou prá
dentro do banheiro, ficamos abaixadas dentro do banheiro. Meus irmãos chegaram,
iam prender eles, aí minha mãe viu e foi gritando não! solta os meus filhos! e
começou a chorar, foi e soltou e mandou correr. Eles
rapidinho pularam o portão, nem esperaram minha mãe abrir pra eles. Aí
começou o tiroteio: bá! bá!
bá!
Dentre os
aspectos mais complexos da pesquisa de campo de Ferreira, alguns acabaram nem
sendo incluídos na versão final da dissertação: várias crianças (de 6, 7 ou 8
anos) relataram que os traficantes costumam dar armas de brinquedo para
iniciá-las no crime. Idênticas às verdadeiras, essas armas são usadas por
crianças em assaltos comandados por jovens e adultos. Outras crianças contaram
da exploração sexual de meninas e a verdadeira produção dos
"soldados", filhos de traficantes com moças muito jovens, geograficamente
espalhadas pela favela. Pergunto, no fim do texto, mas já adianto aqui: como
ouvir, saber, proteger as crianças, não denunciar?
Na forma
final dos trabalhos de ALGIBAILE, LEITE, EARP e FERREIRA,
observamos o mesmo problema: o anonimato das crianças. Se isso parece
positivo por um lado (o lado que os protegia), o anonimato impediu que esses
meninos, expropriados de bens materiais e culturais primários, cujo nome é
machucado como eles mesmos o são, tivessem uma identidade na pesquisa, na mesma
pesquisa que os considerou como sujeitos e supostamente pretendeu ouvir sua
voz. Eles contaram suas histórias, riram e se emocionaram com elas, revelaram
segredos, fizeram denúncias, mas embora considerados autores pelo marco
referencial que orientou a pesquisa, tiveram sua autoria negada e, no lugar
desta importante autoria, mais uma vez foram mantidos anônimos. Anônimos como
vivem nas ruas ou nas instituições totais que os recolhem, fruto de uma
situação econômica tão desigual e que impõe tanto sofrimento à população.
Por outro
lado, vimos, no início deste item, a opção de ALGEBAILE pelos nomes
verdadeiros. Parece ideal a forma sensata com que resolveu a questão: revelou
os primeiros nomes das crianças; omitiu o nome da escola. Qual não foi minha surpresa,
no dia da sua defesa, ao ouvir uma das examinadoras da banca (uma ativa e
conhecida militante de movimento de direitos humanos) dirigir uma feroz crítica
à maneira como ALGEBAILE teria exposto as crianças, ficando ela mesma em
posição frágil diante do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ocorre que, nos
agradecimentos, ALGEBAILE mencionara de forma sutil e carinhosa a escola em que
foi realizada a pesquisa. Como, ela perguntou à examinadora, nada falar sobre a
escola que a recebeu, lhes abriu as portas, incentivou e acolheu a pesquisa?
Como? Indago aqui.
Segundo o
referencial teórico-metodológico que nos tem orientado nesses e em outros
estudos, a criança é sujeito da cultura, da história e do conhecimento.
Pergunto: é sujeito da pesquisa? Embora os estudos transcrevam seus relatos,
elas permanecem ausentes, não podem se reconhecer no texto que é escrito sobre
elas e suas histórias, não podem ler a escrita feita com base e a partir dos
seus depoimentos. As crianças não aparecem como autoras dessas falas, ações ou
produções. Permanecem ausentes.
Os Rostos e Autorização? A Criança é o sujeito da pesquisa?
A segunda
questão que proponho ao debate será abordada de modo breve: como um flash, um
instantâneo, uma fulguração, como diz Benjamin (1987a) a propósito do
conhecimento: trata-se da fotografia como metodologia de pesquisa qualitativa.
Gostaria de aproveitar esse fórum e a presença de pesquisadores que mais
respeito, pela solidez teórico-metodológica da sua abordagem no campo relativo
à infância e imagem[6] , para trazer um problema que
tem me preocupado muito.
Buscando
conhecer experiências de leitura e escrita de professores, entrevistamos alguns
de várias gerações (KRAMER; SOUZA, 1996). Ao lembrar, as professoras começaram
a trazer objetos e fotografias de fatos da infância e situações marcantes de
sua vida pessoal e profissional. A fotografia foi processo deflagrador,
ampliando a possibilidade de resgate da história de vida desses professores.
Mais que documento ou prova do acontecido, a imagem foi tratada como objeto de
cultura, intermediado pelo equipamento (aparato técnico de registro e
revelação), pelo fotógrafo (sujeito que retrata) e, quando revelada, pela
interferência do contemplador. Cada fotografia está impregnada da realidade à mostra
e suas influências ideológicas, da possibilidade técnica (que muda a cada vez
que é reproduzida, ampliada, copiada, reduzida) e do entrelaçamento das
subjetividades de fotógrafo e contempladores, independentemente de seus tempos
ou espaços. Segundo Lopes (1996), a foto mostra sempre o passado lido aos olhos
do presente, já não é o mesmo passado, mas sua leitura ressignificada
[7].
Abordando
ângulos diversos de um mesmo objeto de pesquisa, a fotografia ensinou a equipe
a dirigir um outro olhar à realidade; mudou o modo de observar, atuou como
desvio metodológico, por trazer a possibilidade de compreender o tempo de
maneira não linear (BENJAMIM, 1987). A fotografia é, na verdade, um constante
convite à releitura, a uma forma diversa de ordenar o texto imagético. Pode ser
olhada muitas vezes, em diferentes ordens e momentos, pode ter outras
interpretações: ela é sempre uma outra foto ali presente, pois uma foto se
transforma cada vez que é contemplada, revive a cada olhar. Para Miriam Moreira
Leite, é "uma narrativa interrompida, imobilizada num quadro único"
(1993, p.28). Cada história, fragmento,
foto repete o movimento de fotografar as imagens já capturadas pela lente.
Resgatar a memória e recontar a história é ressignificar
o olhar. No caso daquela pesquisa, a fotografia favoreceu o conhecimento de
experiências de leitura e escrita de professores em suas histórias de vida. No
caso da pesquisa com crianças, a fotografia é também um vigoroso e potente
instrumento de resguardar a memória e de constituir a subjetividade, por
permitir que crianças e jovens possam se ver, ver o outro e a situação em que
vivem.
Pois bem.
Em que medida a análise dessa questão se relaciona ao nosso debate? Em que se
configura sua dimensão ética? À medida que o uso, na pesquisa, de imagens de
crianças apresenta problemas. Como os nomes, os rostos e as ações constituem o
sujeito: somos sujeitos da cultura visto que marcamos a história, mudamos a
natureza, agimos sobre as coisas. Essas marcas têm nome, rosto, sentidos. Um procedimento ético fundamental tem sido o de consultar as
pessoas fotografadas ou filmadas, solicitando sua autorização e
indagando às pessoas que mostram seu rosto e o deixam fixar, na imagem, se essa
imagem pode ser impressa, projetada, vista como texto. No entanto, dois
aspectos controversos, que estão subjacentes a esse processo, merecem atenção.
No caso de
pesquisas com adultos, uma assinatura aposta a um documento assegura
aparentemente que o pesquisador está autorizado a usar a imagem e o protege na
sua divulgação. Mesmo assim, isso não o isenta de problemas e, por vezes,
impede a publicação de seus trabalhos. Ouso citar a questão sem explicitar
(também por cuidados éticos) estudos em que constatei algumas dificuldades
sérias que isso acarreta: muitas vezes, ainda que dispondo da autorização para
usar a imagem, ao analisar as fotos e discutir as situações observadas, o
pesquisador dá, com seus comentários, outros sentidos às imagens; além disso,
tanto a prática da instituição quanto os profissionais ficam expostos também. A
leitura de um texto, composto de palavras e imagens, que explicita problemas,
revela e identifica rostos, provoca reações de surpresa e constrangimento. As
imagens falam e, ainda que autorizadas, dizem coisas que soam diferentes das
que foram ditas, aos ouvidos de quem as pronunciou.
No caso das
fotografias de crianças, há que se perguntar: quem autoriza a participação, o
nome, a gravação? Quem autoriza a utilização de
fotografias? Sabemos que é o adulto, e concordamos que é necessário que assim
seja, mais uma vez para proteger as crianças, para evitar que suas imagens
sejam exploradas, mal-usadas. Mas, se a autorização quem dá é o adulto, e não a
criança, cabe indagar mais uma vez: ela é sujeito da pesquisa? Autoria se
relaciona à autorização, à autoridade e à autonomia. Pergunto: como proteger e
ao mesmo tempo garantir autorização? Como resolver esse impasse?
Talvez um
caminho que possa ajudar a encontrar alternativas de natureza ética,
condizentes com a concepção de infância que nos orienta, seja diferenciar os
tipos de imagens, se são de crianças, de profissionais e de instituições. Hoje,
parece que se lida com esses três níveis indistintamente. Porém, tal distinção
é mais fácil postular do que obter. Por outro lado, há iniciativas em curso que
merecem ser discutidas. Lopes (1998) enfatiza a
importância de as crianças tirarem fotos, porque a fotografia ajuda a
reconstruir o próprio olhar do observador. Também Brasileiro (2001), entre
outros, descreve o uso que faz da fotografia, dando a câmera para adultos
fotografarem seu cotidiano. Essas perspectivas podem se configurar em
estratégias viáveis para superar o impasse.
Outra
preocupação que justifica levantar essa questão tem origem no uso abusivo,
indiscriminado, generalizado de imagens de crianças. Parece, por vezes, que
também no espaço da pesquisa não se tem conseguido evitar ou impedir, barrar a
sedução que a imagem exerce sobre todos. Não estaremos contribuindo para essa
generalização gratuita da imagem? Não há uma contradição entre o cuidado
exagerado com os nomes das crianças e a exibição gratuita da sua imagem?
Pergunto: como enfrentar esse paradoxo?
Estaremos
agindo como se a pesquisa tivesse um patamar mais elevado que o cotidiano e não
devesse haver regulamentação dessa questão? Para além da dicotomia entre a
dimensão jurídica e a censura às imagens contraposta à exposição das crianças e
jovens em função da pesquisa, talvez seja preciso definir princípios éticos que
ajudem a enfrentar o uso indevido e leviano da imagem em práticas que por vezes
parecem movidas pela idéia de que o show deve continuar.
Pesquisa: Compromisso e Cumplicidade na Cumplicidade
dos Achados?
A terceira
questão diz respeito à devolução de pesquisas feitas com crianças. Sabemos que o
trabalho científico não precisa gerar resultados, suscitar ações nem ser
incorporado às políticas. O caráter desinteressado garante a fertilidade da
produção do conhecimento. Ocorre que, em países como o Brasil, a exploração do
trabalho, inclusive infantil, a expropriação de bens materiais e culturais, a
exclusão de serviços básicos de grande parte da população acaba por transformar
um pesquisador comprometido com a sociedade em intelectual crítico que, além de
produzir ciência, quer interferir. No mínimo, mesmo quando o pesquisador não se
considera como um militante ativo, mesmo quando não se interessa pela
apropriação crítica de suas idéias ou pelo delineamento de alternativas de ação
baseadas nos seus estudos. Só o fato de se deparar, na prática da pesquisa, com
certas situações exige uma tomada de posição. Nas ciências humanas e sociais, a
neutralidade é não só um equívoco teórico, mas também uma impossibilidade
prática; isto tem decorrências éticas que merecem a nossa atenção e cuidado.
Três exemplos de pesquisa qualitativa podem ajudar a enfrentar essa discussão:
Salgado (1998), Nunes (2000) e Ferreira (1998).
Focalizando
escrita e poder, Salgado realizou uma pesquisa etnográfica densa com meninos de
um internato. Analisou textos escolares, exigidos como tarefa escolar, e textos
escritos na escola e no internato a partir de situações planejadas, com o
objetivo de conhecer a escrita de crianças e jovens em situação de exclusão
social. A partir de referencial baseado em Bakhtin (1988), os textos foram tomados
como enunciados que se vinculam ao contexto social, cultural
e histórico, sendo a escrita concebida não como instrumento, mas como
ponto de encontro entre a subjetividade do autor e a sua cultura. Os textos
escritos pelos meninos descortinam sua história, uma sofrida crítica à situação
em que vivem, as tensões e conflitos com valores e práticas do internato, além
do bonito e inesperado papel desempenhado pela escola. Muitos meninos concebem
o internato como uma casa boa que livra muita gente da rua. Entretanto, para
muitos meninos o internato era ruim por causa dos castigos e dos serviços;
porque aprisiona, obriga a trabalhar e castiga, priva-os do lazer.
Os meninos
dizem que o internato, apesar de oferecer moradia e comida e se constituir como
alternativa à rua — lugar no qual, segundo eles, estariam passando fome,
dormindo nos bancos das praças, tomando droga, apanhando da polícia e
aprendendo e fazendo coisas erradas — não compensa a saudade de casa, da
família, da mãe, dos pais, dos avós e dos amigos. Eles vivem o dilema entre a
necessidade da instituição que os enclausura (mas garante o suprimento de
necessidades básicas) e o desejo do retorno à família e da liberdade. Muito foi
contado à pesquisadora. Os meninos falaram que é proibido brincar de tiroteio,
falar palavrão, dedurar o outro, sair do portão, "porque senão os
funcionários pensam que eles estão fugindo". Assim, é proibido fugir. Ora,
essas proibições presentes nas falas das crianças confirmam os fundamentos e
regras da instituição. Por outro lado, não é proibido jogar bola; brincar;
molhar área. Ou seja, é proibido não trabalhar, ficar no ócio, ter tempo livre,
como forma de prevenir "maus pensamentos" e "malfeitos",
conforme prescreve o discurso institucional.
Um dia, um
menino pediu o gravador durante a entrevista, foi para o banheiro e falou dos
castigos e maus-tratos sofridos no internato. A pesquisadora, embora tenha
relatado o fato, optou por não incluir detalhes na versão final do texto. Seu
medo era que as crianças ficassem em risco. Depois da defesa e a divulgação do
trabalho, a dissertação foi incluída no material usado em denúncias feitas ao
Conselho Tutelar, sobre o perigo que a instituição representava para as
crianças. A pesquisadora tinha feito severas críticas à instituição, mas temia
pela integridade das crianças. Seu compromisso com as crianças, seu respeito
por elas leva a indagar: como evitar que as crianças sofram represálias e, ao
mesmo tempo, garantir a denúncia de maus-tratos que lhes são impostos?
Outro
exemplo pode ser encontrado na tese de doutorado de Nunes (2000). Procurando
conciliar a abordagem macro, relativa a questões de natureza política e
econômica, com questões de ordem micro, relativas ao cotidiano das creches e ao
que dizem as profissionais sobre seu trabalho e as crianças, Nunes busca
conhecer a brincadeira infantil. Apresenta uma infância marcada pela
humilhação, na qual as crianças são saco de pancada, são tratadas como
moleques, vadias, delinqüentes ou abandonadas (p. 31, 48, 49), crianças não
reconhecidas como crianças. A autora trata da infância brasileira que não tem
direito à infância e procura recuperar, na história, as iniciativas de
assistência, tutela e educação.
A tese é
baseada em entrevistas a profissionais que atuam em creches comunitárias do
município do Rio de Janeiro. Mas a leitura da pesquisa de Nunes é inquietante:
nela, uma educadora de creche relata ter visto uma criança ser coagida,
maltratada, humilhada. Depois da página 215 (em que esta situação foi descrita)
tornou-se difícil prosseguir e continuar a leitura. Após ver o menino
humilhado, como continuar? Pergunto: como lidar com essas situações? Em
princípio acreditar ou desconfiar da sua veracidade? Ao trazer a descrição
feita pela entrevistada, a pesquisadora torna o fato material, como diz Bakhtin
(1988), e todos nós, a autora, a banca, os futuros leitores, vocês que me lêem
agora, nos tornamos cúmplices da moça. O que fazer? Calar? Denunciar? Como nos
mantermos simplesmente os mesmos? Não sou a mesma depois da leitura deste texto,
como não sou a mesma depois de ler em Salgado o trecho do menino que relata, ao
gravador, cenas de tortura. Esta é uma questão ética, política, e também
acadêmica. Quantas vezes não nos comportamos como muitas mulheres entrevistadas
por Nunes, que pedem para as crianças só falarem da parte boa, canalizarem os
assuntos para a parte boa "porque é muito complicado falar sobre essas
coisas" (p.194). Como ouvir e falar de situações que provocam indignação?
Como prosseguir na pesquisa, como relatar na escrita, como continuar a leitura
com compromisso e sem cumplicidade com o ato perpetrado contra a criança?
Ao tratar
dos nomes, vimos estes aspectos na pesquisa de Ferreira (1998). Entrevistando
crianças moradoras de favelas, a autora mostra como a relação
dessas crianças com os adultos é atravessada pela violência. A agressão
se naturaliza: há tensão permanente entre brigar e conversar, como formas de
conviver e enfrentar os problemas. A violência atravessa de modo perverso o
cotidiano das crianças, invade suas casas, espaços e momentos de brincadeiras.
Seu direito à infância plena e sadia é negado; os policiais são os primeiros a
não cumprir a lei. A ação coercitiva da polícia é apenas uma das formas da
negação da cidadania. Há outras mais perversas: os moradores dizem que sua
relação com os bandidos é amistosa, mas convivem com o medo: os bandidos impõem
sua presença pela força armada e por mecanismos de cooptação (ajudam famílias
em enterros etc.). Essa convivência produz sentimentos e opiniões conflitantes,
confusas, e leva os moradores — também crianças — a criar regras e códigos para
sobreviver em meio a um poder que, como dizem os relatos, não se pode
contestar, já que a ameaça de morte é real e, mesmo que não se concretize,
basta que paire no ar para amedrontar.
As crianças
percebem tudo; brincam de bandido e mocinho; aprendem expressões faladas pelos
bandidos. Com freqüência são alvo de bandidos que procuram de todas as maneiras
cooptá-las, confundi-las com atitudes ambíguas. Em decorrência disso, muitas crianças
oscilam entre ver bandidos como heróis ou como vilões, o que é preocupante. Por
sua vez, segundo os relatos, a polícia não é confiável, deixa a população à
mercê do crime, além de freqüentemente se aliar ao crime, em vez de zelar pela
segurança e integridade da vida dos cidadãos. Muitas vezes é a primeira a
violá-los. Diante de uma polícia ineficiente e violenta, diante de bandidos
que, por meio de mecanismos coercitivos e de cooptação, impõem sua presença,
não resta aos moradores outra alternativa senão calar,
conviver silenciosamente com essa realidade. A violência cotidiana não apenas
cala, mas marca a população, que passa a ser tratada como fonte de
marginalidade. A lógica que impera é que toda criança de favela pode ser, no
futuro, um marginal. De fato, o tráfico de droga ganha cada dia mais espaço
entre os jovens. Ferreira menciona (p. 138) o grande número de crianças cujas
famílias têm ou tiveram alguém envolvido com o tráfico: para muitos jovens da
favela, diz ela, o tráfico parece ser o único caminho possível para a sua
(breve) vida futura.
Diante de
uma população expropriada, excluída, mantida no silêncio, as vozes que esses
pesquisadores escutam e registram precisam ser ouvidas, divulgadas, sobre isso
não há dúvida. A pergunta que se faz é: como denunciar sem expor as populações?
Elas precisam falar, mas nossa indignação e a ousadia da escrita não podem
aumentar o risco de vida que correm. Essa questão e suas implicações éticas
merecem mais atenção do que lhes temos dado.
O
compromisso de devolver dados exige que o pesquisador e sua equipe discutam a
natureza dos relatórios, a forma da escrita, os modos de circulação de
informações. Surge, desse modo, a delicada necessidade de repensar modos de
abordar nomes, rostos e fontes. A devolução pode se restringir a dar, aos
entrevistados, cópias dos relatórios, artigos ou a apresentar, socializar
resultados e se expor à crítica. Mas quando se pesquisam instituições ou
políticas, a devolução direta se torna mais delicada. E tensa. As instituições têm
tempos diferentes aos da pesquisa e as situações de interação nem sempre são
bem resolvidas: há pesquisadores que divulgam resultados pela imprensa sem
qualquer cuidado ético, e há instituições que evitam divulgar resultados para
não expor problemas. Por outro lado, questões de natureza política precisam ser
levadas em conta: pesquisadores e profissionais não são neutros ou ingênuos; os
papéis que desempenham, as posições que ocupam, as idéias que defendem
influenciam essas relações. Muitos são os impasses e continua difícil a
interação da pesquisa e das políticas públicas. Nesse âmbito, as crianças
certamente têm sido ainda menos ouvidas que os adultos e a elas o retorno das
pesquisas quase não ocorre.
É inútil
continuar a pesquisa se não há retorno imediato? Não; publicações favorecem
retornos indiretos para outras equipes e professores que querem mudar. É
absurdo supor que pesquisadores são os maiores interessados em ver resultados
de seu trabalho incorporados. Devemos desconfiar de nós mesmos, se pensamos
assim. Mas quem paga a pesquisa é a população (os recursos são, em geral,
públicos) e é com a população que precisamos reafirmar nosso compromisso. Mais
uma vez, vale indagar: como tornar público sem expor nomes e rostos? Quando
dizemos população, incluímos as crianças? Elas têm sido os sujeitos da
pesquisa?
Notas:
[1].
Refiro-me à tese de doutorado sobre linguagem e educação, Por entre as pedras:
arma e sonho na escola, publicada pela Ática, São Paulo, 1993, em que tratei
dessas dicotomias.
[2]. Este
parágrafo traz uma reflexão de Agamben (1989, p.
67-68) com tradução, adaptando o texto, feita por mim.
[3].
Cantora de música popular brasileira de grande sucesso.
[4].
Apresentadora de programas infantis, também de grande sucesso, em uma rede de
televisão brasileira.
[5].
Trata-se do Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, uma conquista
importante da sociedade brasileira, que substituiu o Código de Menores anterior
e institui uma série de direitos de crianças e jovens.
[6].
Refiro-me especialmente a Lopes (1996) e Souza (2000).
[7]. Lopes
faz uma densa revisão bibliográfica sobre o tema; sobre a foto como passado,
cita Dubois (1994).
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, G.
Enfance et histoire: destruction de l'experience et origine de l'histoire. Paris: Payot, 1989.
ALGEBAILE,
M. A. Entrelaçamento de vozes infantis: uma pesquisa feita na escola pública.
In: KRAMER, S.; LEITE, M. I. Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas: Papirus, 1996. p. 121-147.
________. A
Polifonia de Bakhtin nas vozes infantis: o reatar dos laços. Rio de Janeiro,
1995. Dissert. (mestr.)
UERJ.
ARIÈS, P.
História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.
BAKHTIN, M.
Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,1992.
________.
Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec,
1988.
BENJAMIN,
W. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1987. v. I: Magia e técnica: arte
e política.
________.
Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus,
1984.
________.
Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1987a. v. II: Rua de mão única.
BRASILEIRO,
T. V. Pode entrar que a creche é sua: um estudo sobre a relação creche-família
numa instituição da baixada fluminense. Rio de Janeiro, 2001. Dissert. (mestr.) PUC.
CHARLOT, B.
La Mystication pédagogique. Paris: Payot, 1977.
DUBOIS, P.
O Ato fotográfico. Campinas: Papirus, 1994.
EARP, M. L.
S. Assistência ou educação: o projeto alunos-residentes de CIEPs.
Rio de Janeiro, 1996. Dissert. (mestr.)
PUC.
FERREIRA,
M. D. S. Vozes infantis, elos de coletividade: a criança da favela no seu
contexto sociocultural. Rio de Janeiro, 1998. Dissert.
(mestr.) UFF.
FREITAS, M.
T. O Pensamento de Vygotsky e Bakhtin no Brasil.
Campinas: Papirus, 1994.
GINZBURG,
C. O Queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
KRAMER, S.
A Política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982.
________.
Por entre as pedras: arma e sonho na escola. São Paulo: Ática, 1993.
KRAMER, S.;
LEITE, I. Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas: Papirus,
1996.
KRAMER, S.;
SOUZA, S. J. (org). Histórias de professores: leitura, escrita e pesquisa em
educação. São Paulo: Ática, 1996.
LEITE, M.
I. No campo da linguagem a linguagem no campo: o que falam de escola e saber as
crianças da área rural. Rio de Janeiro, 1995. Dissert.
(mestr.) PUC.
_________.
O Que falam de escola e saber as crianças da área rural? Um desafio da pesquisa
no campo. In: KRAMER, S.; LEITE, M. I. Infância: fios e desafios da pesquisa.
Campinas: Papirus, 1996. p. 73-96.
LEITE, M.
M. Retratos de família: análise da fotografia histórica. São Paulo: Edusp,
1993.
LIMA, A. B.
L.; FRANGELLA, R. C. P. Foto-grafias: (re)tratos da história de uma professora. In: KRAMER, S. et al. Leitura e escrita de professores em suas histórias
de vida e formação. Rio de Janeiro: PUC; CNPq, 1997. p. 127-138. Relatório II
da Pesquisa.
LOPES, A.
A. Foto-grafias: as artes plásticas no contexto da
escola especial. In: KRAMER, S.; LEITE, M. I. (org.) Infância e produção
cultural. Campinas: Papirus, 1998.
LOPES, A E.
R. C. Foto-grafando: sobre arte-educação e educação
especial. Rio de Janeiro, 1996. Dissert. (mestr.) UERJ — Faculdade de Educação.
NUNES, D.
G. Da Roda à creche : proteção e reconhecimento social da infância de 0 a 6
anos. Rio de Janeiro: 2000. Tese (dout.) UFRJ.
SALGADO, R. Entre as vozes da disciplina e os sonhos de liberdade: a
escrita de meninos de um internato. Rio de Janeiro, 1998. Dissert.
(mestr.). PUC.
SOUZA, S.
J. Infância e linguagem: Benjamin, Bakhtin e Vygotsky.
Campinas: Papirus, 1994.
_________.
(org). Mosaico: imagens do conhecimento. Rio de Janeiro: Marca D'água, 2000.
VYGOTSKY,
L. S. A Formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
________. La Imaginacion y el arte en la
infancia (ensayo psicologico). Madrid: Akal, 1990.
Como citar este artigo:
Formato ISO
KRAMER,
Sonia. Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças. Cad. Pesqui., jul. 2002, no.116, p.41-59. ISSN 0100-1574.
Formato Documento Eletrônico (ISO)
KRAMER,
Sonia. Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças. Cad. Pesqui. [online]. jul. 2002,
no.116 [citado 24 Junho 2003], p.41-59. Disponível na World
Wide Web:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742002000200003&lng=pt&nrm=iso>.
ISSN 0100-1574.