AS MENINAS E O UNIVERSO DO TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL: ASPECTOS HISTÓRICOS, CULTURAIS E TENDÊNCIAS ATUAIS

 

 

Irene Rizzini
Psicóloga, Assistente Social e Socióloga.

 

Claudia Fonseca

Antropóloga.

 

 

SUMÁRIO EXECUTIVO

Projeto Regional OIT: Prevención y Eliminación del Trabajo Infantil Doméstico en Hogares de Terceros en Sudamérica.

Tema: Estudo sobre as práticas e relações culturais referentes ao trabalho infantil doméstico.

Palavras chaves: Trabalho infantil e juvenil doméstico, meninas, trabalho em casas de  terceiros, aspectos históricos e culturais.

 

Rio de Janeiro, Abril de 2002

 

Introdução

 

Em determinados momentos históricos e diversos contextos sócio-culturais, o trabalho de crianças adquiriu diferentes feições e conotações valorativas. Alguns exemplos no Brasil são o trabalho da criança escrava, iniciada desde pequenina, por herança, no trabalho forçado; a disciplinarização dos menores abandonados e delinqüentes, percebidos como viciosos, nas fazendas e fábricas no século XIX e início do XX; a educação pelo trabalho, tão popular em programas destinados às crianças pobres, seguindo a lógica de que o trabalho é o melhor antídoto à vagabundagem e à criminalidade.

Em tempos atuais, à luz do debate sobre direitos humanos e em meio às profundas transformações globais das relações de trabalho, condena-se o trabalho infantil à erradicação. Isso se dá em clima de controvérsia, uma vez que a lógica da educação pelo trabalho ainda vigora  diante da brutal realidade de pobreza e desigualdade que leva muitas famílias a dependerem do trabalho de suas crianças para a sua subsistência.

O fato é que hoje há menos tolerância ao trabalho imposto à criança, percebido como exploração e abuso, portanto uma violação ao seu direito de se desenvolver integralmente. Muito mais controvertido é o trabalho executado por adolescentes, que desejam ter renda própria, e, particularmente por meninas,  por razões que analisaremos neste texto. Cabe lembrar que o trabalho infantil e juvenil constitui uma prática em pleno vigor para muitos que, por lei, não deveriam trabalhar. E, ainda que, mesmo proibido, é visto por muitos como importante para a formação e a educação da criança. Trata-se de uma questão  complexa e delicada, na qual estão em jogo múltiplos valores e significados humanos, éticos, políticos e pedagógicos.

A despeito das controvérsias, há uma mudança significativa de mentalidade e atitudes em curso. Algumas das mais recentes manifestações desse movimento são expressas por meio de uma preocupação renovada com as crianças e os adolescentes trabalhadores, registrada em praticamente todos os países. Como exemplo, pode-se citar o Programa de Erradicação do trabalho Infantil (IPEC)[1], implantado no Brasil em 1992; a Marcha Global Contra o Trabalho Infantil, realizada em Genebra em 1998, com a participação de 53 entidades brasileiras - religiosas, empresariais, sindicais e sociais; a criação da Rede Nacional de Combate ao Trabalho de Crianças e Adolescentes, em 1999, e o intenso trabalho de articulação do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (Fórum, 2000).

'Como parte deste movimento, observa-se uma preocupação especial nos últimos anos com a situação das meninas trabalhadoras em várias partes do mundo. Ela nasce de várias constatações ligadas à percepção de gênero, entre elas a de que um grande número de meninas trabalha muitas horas por dia na invisibilidade da esfera doméstica e do reconhecimento de que o investimento no desenvolvimento da menina tem repercussões importantes a nível de capital humano e social.

Identifica-se, pois, na década de 1990, a necessidade de se conhecer melhor a dimensão do problema do trabalho infantil e juvenil feminino, em particular, o doméstico e de se desenhar ações capazes de atingir estas meninas. Para fins de definição, neste texto referimo-nos a trabalho doméstico como aquele que é realizado por crianças e adolescentes fora de suas casas. Estaremos nos concentrando no trabalho feminino, pois dados produzidos até o presente apontam que apenas cerca de 1% dos meninos executam trabalhos domésticos.

Para acelerar este processo de atingir as meninas trabalhadoras, o seminário realizado pela OIT no ano de 2000[2] considerou indispensável dispor do depoimento de meninas para focalizar adequadamente o público-alvo e o conteúdo de uma campanha nacional, que se pretende acionar. A campanha é uma das estratégias para atingir o trabalho infantil doméstico - um problema que, em certas regiões do globo, tal como Haiti, com a tradição de  restavek[3] , condena um vasto contigente de crianças e adolescentes ao regime de semi-escravidão.

Conhecer a realidade do trabalho das meninas não é uma tarefa simples. Como apontamos, trata-se de um assunto de difícil acesso. Até recentemente, essa atividade foi ignorada na maioria de pesquisas, devido, entre outras coisas, à naturalização da participação de crianças nos afazeres domésticos – seja em suas próprias casas, seja  nas de terceiros. Assim, por exemplo, no Brasil, o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Trabalho Infantil (1998) consistiu quase inteiramente de denúncias e relatos sobre crianças que trabalhavam na agricultura, na indústria carvoeira, etc, deixando para o trabalho doméstico apenas dois parágrafos. Não fica claro, em estatísticas recentes, se o pequeno número de jovens trabalhando no emprego doméstico relevado pelas pesquisas - pouco mais de 10% do total de jovens empregados - é devido à natureza oculta desta atividade ou se reflete fielmente a realidade. 

Sabe-se, no entanto, que grande parte deste tipo de trabalho é realizado pelas meninas em suas próprias casas, incluindo, a responsabilidade pelo cuidado dos irmãos menores. Trata-se de atividades que nem sequer são reconhecidas como trabalho; além de que, geralmente escapam à fiscalização.

Ressaltamos algumas tendências indicadas em várias pesquisas. Ao se analisar os dados da PNAD/IBGE de 1993 e 1998, chama atenção o fato de a categoria de empregadas domésticas, que ocupa 19% das mulheres trabalhadoras[4], ainda ser a maior ocupação feminina no Brasil. Apontam-se, no entanto, certas mudanças no quadro recente: um forte decréscimo da proporção que reside no lugar de trabalho, o envelhecimento da categoria como um todo, assim como uma maior escolaridade, maior formalização dos vínculos empregatícios e assalariamento. Observa-se que as mais jovens (de 10-16 anos) são especialmente destacadas na ocupação de babá em que freqüentemente, servem como uma segunda trabalhadora na residência. Porém, o número total de jovens trabalhando como domésticas, assim como a proporção de meninas de 10 a 16 anos[5] em relação a todas as mulheres que trabalham como domésticas, estão em constante declínio.

Sobre este texto

Na primeira parte deste texto, focalizaremos os valores tradicionais ligados ao trabalho infantil e juvenil doméstico, bem como os valores familiares e, em particular, a educação feminina. Na segunda parte, discutiremos as recentes mudanças e as tendências atuais no cenário brasileiro. Nosso intuito é fornecer subsídios para o aprofundamento de algumas questões e a identificação de desafios a serem enfrentados, com ênfase nas relações e práticas sócio-culturais que contribuem para a persistência do problema.   

Optamos por utilizar fontes predominantemente históricas, sociológicas e antropológicas para uma análise critica do tema, abordando aspectos históricos e tendências atuais. No intuito de confrontar o tema, conforme apresentado nas estatísticas e na literatura em geral, com a realidade de vida das meninas empregadas no trabalho doméstico, coletamos depoimentos contidos em pesquisas realizadas nas cidades do Rio de Janeiro, Salvador, Belém, Campo Grande, Goiânia, São Paulo e Porto Alegre. As vozes das meninas foram também destacadas através de entrevistas realizadas por esta equipe em Brasília, São Luís (Maranhão), Rio de Janeiro, Florianópolis (Santa Catarina) e Porto Alegre (Rio Grande do Sul), de dezembro 2001 a fevereiro 2002.

Ao se tratar do trabalho doméstico infantil e juvenil no Brasil, é de suma importância atentar para as especificidades do lugar e da época. Não somente constataremos que o Brasil não é o Haiti, mas veremos, também, que a época atual não pode ser analisada puramente em termos de tradições brasileiras”. É verdade que muitas das atitudes que descrevemos como tradicionais , cujas raízes procuramos em circunstâncias históricas, ainda estão altamente operantes. Porém, com o término da ditadura militar, a reabertura democrática dos anos 80, a promulgação da  Constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) houve uma penetração ampla de certos conceitos do ideário moderno ligados em particular à criança e ao adolescente. Assim, legisladores e planejadores de políticas devem incorporar as múltiplas vozes dos diferentes atores envolvidos e levar em consideração a mistura particular de velhas e novas sensibilidades.

Já foi apontada por outros pesquisadores (Stephens 1995, Geertz 1999) a necessidade de conhecer os valores morais de determinado grupo quando se propõe intervir para modificá-los. Neste artigo, propomos ir além. Esperamos que, através do exame aprofundado dos valores concernentes ao debate sobre trabalho doméstico infantil e juvenil, estabeleça-se, no espírito da sociedade democrática, um diálogo entre os diferentes setores da sociedade, culminando numa política que seja efetivamente vivida pelos atores envolvidos como uma contribuição importante para uma sociedade mais justa. Velhas e novas sensibilidades

Considerando que, atualmente, a quase totalidade de meninas empregadas no trabalho doméstico vem de famílias muito pobres, é fundamental compreender os valores que subjazem suas práticas. Situamo-nos, neste texto, dentro da linha de análise que aponta para a especificidade de sensibilidades familiares e de gênero em grupos populares brasileiros. Coerente com boa parte das recentes pesquisas em ciências sociais, partimos da premissa que as etapas de vida – infância e adolescência – não devem ser consideradas apenas em função de processos biológicos universais. Trata-se de uma construção social que determina não somente práticas, mas também noções diferentes de infância, conforme o contexto sócio-histórico de que estamos falando. Seguindo esse raciocínio, devemos reconhecer a possibilidade de que, numa sociedade de radical desigualdade como a brasileira,  existem diversas visões de infância.  

Sem levar em consideração essas diferenças, as campanhas internacionais em prol de crianças tornam-se vulneráveis à crítica de que representam uma imposição “de cima para baixo”, focadas em valores eurocêntricos. Apesar de compartilhar das preocupações básicas dessas campanhas, certos pesquisadores sugerem que elas tendem a ser calcadas em termos culturalmente carregados que só surtem efeito quando aplicadas à populações que possuem atitudes (perante à lei, ao Estado, à família e à criança) semelhantes às da elite européia e norte-americana. Alegam que, em certos casos, as campanhas internacionais podem até reforçar o preconceito contra pobres.

Sem a “auto-vigilância epistemológica” recomendada por pesquisadores de nossa época (ver, por exemplo, Bourdieu 1989), o analista corre o risco de chegar à conclusões tendenciosas. Em primeiro lugar, arrisca pressupor que o trabalho doméstico é, em si, algo de aviltante, reproduzindo o viés sexista. Tal atitude não somente ignora a perspectiva analítica que reconhece no trabalho doméstico um dos eixos fundamentais da economia, mas tende a subestimar a complexidade das tarefas envolvidas na administração de uma casa. Certamente, não queremos sugerir que o trabalho doméstico propicie uma educação igual em sofisticação à escolar; no entanto, seria igualmente absurdo negar a possibilidade dessa atividade representar uma etapa positiva do desenvolvimento social e intelectual, sobretudo dos adolescentes.

Em segundo lugar, sem uma atitude crítica, o analista tende a confirmar noções de senso comum, vendo relações de causa e efeito onde não há nada mais do que correlações. Considerando, por exemplo, a relação entre trabalho infantil e desempenho escolar, constatamos um consenso entre pesquisadores que crianças pobres, de pais pobres e pouco escolarizados, entram mais cedo no mercado de trabalho, aproveitam menos e desistem mais facilmente da escola. No entanto, deduzir dessa configuração, como é comum afirmar hoje, que o trabalho doméstico necessariamente reduz o nível de escolaridade das meninas é, no mínimo, arriscado.

Cabe ressaltar que fatores como a discriminação racial e a pouca atratividade da escola podem ser determinantes na questão do abandono escolar, antes mesmo que o trabalho doméstico. É sabido que a baixa qualidade do ensino e a inadequação do sistema educacional, em todas as regiões do país, dificultam a permanência da criança na escola. No âmbito internacional, alguns autores têm sugerido a urgência de se rever posições unilateriais e culturalmente descontextualizadas sobre o impacto do trabalho sobre a escolaridade. Afirmam, inclusive, que, em alguns casos, a escola pode ter um efeito negativo sobre o desenvolvimento infantil e contribuir para o envolvimento precoce da criança no trabalho.

Mais preocupante ainda é a tendência de procurar a causa do atraso escolar dos filhos nas “atitudes” e “decisões” dos pais. Tal análise, muito comum durante os anos 1960-70, já foi amplamente comentada pelos pesquisadores que criticam a chamada escola “cultura da pobreza”. Apesar de ter o mérito de focar fatores culturais, essa escola de pensamento, inspirada no trabalho de Oscar Lewis (1966), padecia de uma perspectiva culturalista. Voltado principalmente para os “problemas sociais” que se apresentavam entre as populações minoritárias nos EUA (negros e hispânicos), tendia a “culpar as vítimas” (suas atitudes “apáticas”, suas famílias “desorganizadas” ou “desestruturadas”, etc.) pelo seu próprio estado de pobreza. A reconsideração de casos concretos (inclusive no Brasil) demonstraram que, muito antes das mentalidades tradicionais, eram mecanismos discriminatórios inscritos nas próprias estruturas do mercado de emprego e da escola os responsáveis pela pobreza.

Finalmente, apesar de se reconhecer universalmente a correlação entre nível de educação e nível de renda, há amplo debate quanto às causas e às conseqüências desta relação: se a educação serve realmente para propiciar uma ascensão socio-econômica ou se simplesmente legitima a desigualdade social que já existe....

Se essas críticas são controvertidas, ainda permanece uma inquietude compartilhada por muitos e que justifica a investigação aprofundada dos valores dos sujeitos em cada novo contexto: o perigo de que, sem levar em consideração os pontos de vista dos atores envolvidos (no caso, das crianças e dos adolescentes), políticas cunhadas para promover o seu bem-estar possam ter efeito contrário, piorando a situação daqueles que almejam apoiar. Pior, ao não se prestar a devida atenção às perspectivas locais, deixa-se de escutar os próprios jovens, tornando-os sujeitos passivos de uma política paternalista. O intuito de nossas reflexões aqui é de pensar o “problema” do trabalho doméstico associado a este grupo, atentando para os variados significados – históricos e contemporâneos – atribuídos a essa prática, dando ouvidos às diferentes vozes envolvidas no processo e, assim abrindo caminho para uma política dialógica de ação.

A dimensão histórica - Porto Alegre, 1926.

Trata-se de um olhar sobre a história do trabalho infantil doméstico no Brasil com o exemplo da história de Mosquito, uma menina com dez anos de idade, e os valores ligados ao trabalho infantil doméstico.

Essa história revela diversos aspectos importantes do tema que discutimos.  Em primeiro lugar, não é por acaso que a família de Mosquito era “parda”.  Historiadores, pesquisando em diferentes regiões do Brasil, notam que, durante a segunda metade do século XIX, havia, no Brasil, um número relativamente alto de pessoas solicitando aos Juizados  a tutela de um menino órfão, ou filho de mãe considerada “indigna” ou “incapaz” de criar seus filhos. Sugerem que tal processo era visto como desejável, respondendo às necessidades tanto do Estado - que visava a sobrevivência dos jovens e sua educação condizente à ordem social - quanto das famílias substitutas que, depois da Lei do Ventre Livre (1871), procuravam nesse trabalho infantil uma maneira para suprir a falta de mão-de-obra escrava.

No caso específico de Mosquito, aqui retratado, era natural e mesmo saudável que trabalhasse desde cedo. É claro que a mãe de Mosquito tinha um interesse  particular na situação de sua filha, pois era, sem dúvida, ela quem recebia qualquer salário que a menina viesse a ganhar. De uma forma ou outra, o trabalho da criança, a partir de cinco ou seis anos, era, antes de tudo, considerado um elemento natural e necessário da economia familiar.

Valores familiares: (a) o mundo hierarquizado de pais e filhos - Irai, fronteira entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina, 1966; Recife, 1997 e Rio de Janeiro, 2002.

Para adentrar os valores tradicionais nas famílias pobres que têm, nos últimos cinqüenta anos, fornecido a quase totalidade de meninas trabalhando em casas de terceiros, voltamos nossa atenção para as histórias de vida, registradas em recentes pesquisas.

Educação condizente à natureza feminina

O tipo de trabalho desempenhado pela criança foi, tradicionalmente, ditado por representações associadas ao comportamento adequado de homens e mulheres. Neste sentido, o conjunto de valores na família popular contemporânea, tal como descrito por alguns pesquisadores (Sarti 1996, Duarte 1986), ostenta certas semelhanças com a família patriarcal - modelo corrente em todas as classes até a segunda metade do século XX.

Como prática cultural, entendemos que os filhos, não somente deviam obediência aos  pais - numa relação hierárquica já amplamente comentada da família patriarcal, mas  patriarcal, muitas vezes eles experimentavam um sentimento de satisfação no bom desempenhar desse papel. Sublinha-se a centralidade da noção de reciprocidade na organização doméstica e na estruturação da relação hierárquica entre sexos e categorias de idade.

O trabalho infantil como estratégia: da sobrevivência para a ascensão socio-econômica: Da Bahia a Brasília, 1986.

Ao debruçar-se sobre o trabalho infantil em grupos populares, não há como esquecer a extrema penúria de muitas famílias, causa principal de uma altíssima taxa de mortalidade infantil que acompanhou essas famílias até data recente. A história de Alaide, uma menina negra, nascida no interior de Bahia no início da década de 80, exemplifica alguns processos típicos da infância pobre até pouco tempo atrás.

O que pensam os empregadores

Há um silêncio na literatura científica sobre as famílias que, hoje, empregam meninas como domésticas. É evidente que mulheres de maior poder aquisitivo, especialmente as que trabalham fora, costumam contratar uma empregada para realizar as tarefas domésticas antes de cobrar essas tarefas dos seus filhos ou demais membros da família. No entanto, por não especificar a idade dessas trabalhadoras, a maioria das pesquisas sobre empregadas domésticas deixa subentender que se referem a trabalhadoras adultas.

As meninas e o universo do trabalho doméstico: mudanças recentes - Pará, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, 2002.

Mesmo considerando que boa parte das atitudes descritas aqui como tradicionais ainda tem peso importante nos comportamentos, não podemos ignorar as profundas mudanças que revolucionaram o cenário brasileiro nos últimos trinta anos. O processo inusitado de urbanização e o tremendo crescimento da população escolar são mudanças macro-estruturais que colocaram a esmagadora maioria de brasileiros em contato com o ideário moderno de infância. Foram também importantes vetores desta mudança pesquisadores que, nos anos de 1970-80, passaram a estudar práticas familiares e escutar histórias de vida nos bairros populares da cidade. Neste item, abordam-se as mudanças recentes e em curso no que se refere ao trabalho doméstico infantil.

Em busca de alternativas...

Uma síntese das recomendações feitas nos últimos anos para combater o trabalho doméstico de crianças e adolescentes no Brasil nos mostra que, em geral, são apontados esforços nas áreas de legislação, advocacia (advocacy), mobilização, capacitação e, em menor escala, em questões macro estruturais e na esfera das políticas públicas.

No plano da legislação, são indicadas reformulações e medidas de fiscalização que visam coibir o trabalho doméstico (Oliveira, 2001). Nesta linha, discute-se também a regulamentação deste tipo de trabalho, na tentativa de proteger as meninas da exploração e de melhorar as condições de trabalho, tornando-o mais digno. São preocupações pertinentes, no entanto sabemos que isso não basta. Talvez um dos maiores desafios para o nosso país seja justamente conseguir implementar leis consideradas avançadas, como é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente.

No âmbito da advocacia (advocacy), sugere-se que os Conselhos Tutelares e de Direitos, de âmbito nacional, estadual e municipal, cumpram seu papel de fixar as diretrizes de planos de ação para que se acabe com a violação constante dos direitos das crianças e adolescentes. A recomendação é importante e vale para todas as situações adversas às quais as crianças estão expostas. O fortalecimento dos Conselhos é essencial para a implementação das medidas previstas no Estatuto. É parte de um conjunto de iniciativas que se fazem urgentes para ampliar as oportunidades de vida e promover o desenvolvimento integral das meninas que ainda hoje são iniciadas precocemente no mundo do trabalho, por total falta de opção.

A mobilização é a esfera em que predominam as recomendações. Ressalta-se a importância de se conscientizar a sociedade em geral, e todos aqueles envolvidos no cenário do trabalho doméstico, como forma de reduzir a exploração da mão-de-obra infantil e juvenil. Campanhas, assessoramento à imprensa, filmes, publicações etc. são algumas das modalidades sugeridas. É, sem dúvida, um ponto crucial, principalmente se levarmos em consideração os vários aspectos históricos e culturais, bem como as relações de gênero implicados na prática do trabalho doméstico, conforme discutimos neste texto. Reconhecemos se o fato de que a intensa mobilização empreendida pelo Programa de Erradicação do trabalho infantil, na última década, teve um impacto significativo na redução do trabalho infantil, conseguindo combater radicalmente em diversas partes do país o trabalho executado em condições de perigo e insalubridade para a criança, como os pequenos trabalhadores nas carvoarias, canaviais, pedreiras e zonas sisaleiras.

Na esfera que identificamos como capacitação, normalmente estão incluídos serviços oferecidos mais diretamente às meninas, procurando-se investir em seu fortalecimento ou empoderamento (empowerment). O incentivo a reforçar a escolaridade e a realização  de cursos diversos são indicados como meios importantes de ampliar ofertas de emprego, permitindo à menina outras opções além do trabalho doméstico.

Estas e outras medidas apontadas são, sem sombra de dúvida, recomendáveis e valiosas. E é importante reconhecer que é o esforço articulado de inúmeros segmentos da sociedade brasileira, observado nos últimos anos, que tem surtido um impacto positivo no combate ao trabalho infantil de um modo geral. No entanto, as medidas por si não respondem de todo ao desafio. Paralelamente às medidas acima relacionadas, é fundamental enfrentar as causas efetivas que levam as crianças e adolescentes ao subemprego e outras práticas danosas ao seu desenvolvimento para sobreviverem.

Nesta direção, é importante reconhecer que as meninas contempladas neste texto se extenuam no trabalho doméstico, ao invés de se dedicar à sua educação, porque são pobres e lhes faltam oportunidades. A maioria delas não deseja ser empregada doméstica ou babá para o resto de suas vidas – porém realisticamente poucas terão a chance de seguir por outros rumos.

Na esfera política ampla e no âmbito das política públicas destinadas à população infantil e juvenil, a imposição de programas de ordem assistencial e compensatória, ignorando as especificidades locais e os direitos dos cidadãos, acaba por simplesmente manter o círculo infindável da pobreza (Sartor, 2001). Acaba, na verdade, por bloquear as oportunidades de crescimento comunitário e limitar ainda mais as perspectivas de mudança. Estas não são questões de cunho individual, portanto, não se pode em hipótese alguma responsabilizar e penalizar os indivíduos por não encontrarem caminhos. São questões de domínio público e devem ser tratadas no âmbito político, garantindo medidas de desenvolvimento econômico, de direito de todos os cidadãos; medidas que visem uma distribuição mais justa dos recursos e possibilite a ampliação de investimentos nas localidades onde reside a população de baixo poder aquisitivo.

Não faltam exemplos no mundo de países que aplicam formas mais justas e equitativas que as nossas, visando à crescente demanda de qualificação profissional, programas de incentivo, subsídio financeiro e outras modalidades de apoio às famílias no cuidado e educação de seus filhos. Não se pode negar que o sistema vigente, que permite que meninas trabalhem quase sem retorno financeiro para as famílias de classe média, na verdade subsidia essas famílias - viabilizando que saiam para trabalhar e deixem os filhos aos seus cuidados, por exemplo - e contribui para a perpetuação de baixos salários. Em suma, é preciso criar sistemas econômicos que ofereçam às famílias a opção de que seus filhos permaneçam em casa ou entrem no mercado de trabalho, a partir da idade permitida por lei.

Repetindo uma recomendação que já foi reiterada em muitas pesquisas sobre o trabalho infantil, não é suficiente, nem talvez desejável, simplesmente reprimir o trabalho. A prioridade política deve ser dirigida para a busca de alternativas que respeitem a lógica das meninas – oferecendo condições que lhes assegurem uma renda mínima e um complemento à formação básica e profissional capazes de expandir seus horizontes e abrir oportunidades futuras atraentes.

Inspirando-nos nos diversos depoimentos das meninas contempladas neste texto, concluímos que é crucial levar em consideração suas experiências e prioridades, refletindo os diferentes momentos de suas vidas, suas necessidades, anseios e competências. E que elas ambicionam e merecem muito mais do que nosso país lhes tem dado.

 

Notas:

 

[1] IPEC - International Program on the Elimination of Child Labor.

[2] Relatório final do Seminário nacional: Elaboração de uma estratégia nacional de combate ao trabalho infantil no serviço doméstico. Brasília, 8-9 de junho. OIT, 2000.

[3] No Haiti, o termo restavek refere-se a crianças e adolescentes que são confiados pelos seus pais, que vivem em condições de miserabilidade, a famílias menos pobres e famílias burguesas para trabalharem como domésticos. Muitas dessas crianças nunca vão à escola, perdem contato com suas famílias consangüíneas e são despejadas pelos patrões, sem preparo nenhum, quando se tornam adultos. Estima-se que, nesse pequeno país de 7 milhões de habitantes, existem até 500.000 restaveks.

[4] De acordo com a PNAD, em 1998, havia 363.512 meninas empregadas domésticas no país entre 10 e 16 anos. Este contingente representa 8% do total de 4.479.388 trabalhadoras domésticas encontradas no país naquele ano. Cerca de quatro de cada cinco meninas empregadas domésticas são encontradas nas regiões urbanas.

[5] Dados recentes do IBGE (2000), apontam que são 27% das crianças e adolescentes ocupadas na faixa de 10 a 14 anos, e 30% daquelas entre 15 e 17 anos. Trata-se ainda de uma ocupação em que as meninas trabalham em média entre 42 horas por semana (para as que não residem no trabalho) e 50 horas (para as residentes), apresentando uma jornada de trabalho maior do que em qualquer outra ocupação infanto-juvenil.

 

 

Obs: Contamos, para a elaboração deste texto, com a valiosa participação de Carla Daniel Sartor, mestre em Serviço Social e membro representante da CESPI/USU da Comissão Municipal do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil da cidade do RJ e Licia Rios, estagiária da área de Direito, ambas da CESPI/USU.