A
INTERDISCIPLINARIEDADE COMO INSTRUMENTO DE INCLUSÃO SOCIAL: DESVELANDO
REALIDADES VIOLENTAS [1]
Mari Nilza
Ferrari de Barros
Docente do
Departamento de Psicologia Social e Institucional.
Vera Lúcia Tieko
Suguihiro
Docente do
Departamento de Serviço Social.
Resumo: A
violência contra crianças e adolescentes é um fenômeno social que atravessa as
fronteiras de classe, credo, raça ou cultura e tem sido objeto de estudo de
vários profissionais e instituições que trabalham com esta temática. A
Universidade Estadual de Londrina, através dos Departamentos de Serviço Social,
Direito, Comunicação Social e Psicologia Social e Institucional, vem realizando
um trabalho em parceria com os três Conselhos Tutelares do município a fim de
atender os casos de violência praticada contra a criança e o adolescente. A
violência não é um mero retrato de uma realidade externa, isolada e impenetrável,
mas revela uma relação que atinge violentador e violentado, explicitando as
conseqüências de tais práticas. As ações envolvendo diferentes áreas do
conhecimento permite ampliar a compreensão do fenômeno, bem como o delineamento
de estratégias de intervenção no âmbito da prevenção, disseminando informações
que sensibilizem os diferentes segmentos da sociedade civil organizada. A
integração de saberes na forma de Grupo de Trabalho Interdisciplinar
redimensiona o fenômeno da violência na sua extensão e complexidade instalando
o compromisso político e a responsabilidade social em todos os seus
integrantes.
Abstract: The
violence against children and adolescents is a social phenomenon that crosses
the borders of economical and social position, faith, race or culture, and it
has been the object of study of several professionals and institutions that
work with this subject. Through the departments of Social Work, Law, Social
Communication and Social and Institutional Psychology, Londrina’s
State University is accomplishing a work in partnership with the three Guardian
Counsel of the city in order to assist the cases of violence committed against
the child and the adolescent. The violence is not a mere picture of an external
reality, isolated and impenetrable, but it reveals a relation that reaches
violator and violated, explicating the consequences of such practice. The
actions involving different areas of knowledge allows an
amplification the comprehension of this phenomenon, as well as the
drawing of the strategies of intervention for prevention, spreading information
to touch different segments of the organized civil society. The integration of
knowledge in the way of the Group of Inter-Science Work resizes the phenomenon
of the violence in its extension and complexion, installing the political
commitment and social responsibility in all its participants.
Palavras-chave: violência,
interdisciplinariedade, inclusão social, criança e
adolescente e direitos humanos
O
tema da violência se confunde com a história dos homens desde os seus
primórdios e atinge a todos, independentemente da classe social, cultura, raça
e religião a que o sujeito pertence. É de fundamental importância entender o
fenômeno da violência em sua perspectiva transversal, de modo a enriquecer seu
conteúdo (social, econômico, político, ético, cultural, jurídico) para melhor
decifrá-lo, na medida em que se expressa de modo multifacetado.
O
desvelamento dessa realidade, no entanto, não se faz
de maneira imediata. Exige, ao contrário, uma investigação permanente e um
olhar crítico dos profissionais comprometidos com a compreensão e intervenção
sobre as situações de violência vivenciadas pelos diferentes segmentos da
sociedade.
Quando
a problemática da violência envolve o cotidiano da criança e do adolescente, o
desconforto coletivo torna-se inaceitável.
As
práticas violentas contra crianças e adolescentes, na esfera familiar, vêm
perdendo a delimitação de espaço privado. Contextualizada, até então, no âmbito
privado, vem adquirindo maior visibilidade na esfera pública, à medida que as
crianças são assumidas, pela sociedade e pelo Estado como sujeitos portadores
de direitos.
A violência intrafamiliar
resulta, em parte, da violência social que se manifesta no interior da
sociedade, expondo na intimidade questões que afetam diferentes indivíduos e
grupos sociais e que, via de regra, são ocultadas enquanto fenômeno social. O
surgimento da violência no interior da família transfere o problema e a
responsabilidade para esse grupo, eximindo as pessoas de se debruçarem sobre a
questão. Diante da violência, a insegurança e o medo tomam conta dos cidadãos.
Perplexa, a sociedade ora age com indignação, ora com conformismo.
De
forma equivocada as pessoas associam a violência com a ausência da educação
familiar. É como se a família fosse a única responsável pelo contexto histórico
no qual a criança e o adolescente estão inseridos. No entanto, a sociedade é um
produto humano e a realidade só pode ser compreendida a partir da dinâmica das
relações humanas. O homem concreto se constitui inserido em sua realidade
social e histórica, sendo esta anterior e exterior à história singular e
condição para o desenvolvimento da subjetividade. O sujeito é, portanto,
produto e produtor da sociedade.
(BERGER, 1985)
A
representação da família como instituição responsável pela socialização
primária e local privado para o exercício da intimidade faz com que as normas
constituídas adquiram uma independência em relação ao contexto social, de modo
que os adultos sintam-se protegidos para exercer a violência interpretada como
prática pedagógica.
Esta
prática educativa institui a pedagogia da violência quando os pais argumentam
que o “castigo” é um instrumento de correção. Os limites do que é pedagógico e
do que é excessivo torna-se de difícil diferenciação na nossa sociedade.
O
autoritarismo do adulto sobre as crianças legitima a hierarquia e reforça a
imagem de que a criança é um ser que necessita ser “moldado” para atender as
expectativas sociais. Impor limites é uma meta perseguida por familiares,
educadores, e, por isso, qualquer meio empregado justifica essa finalidade.
A pedagogia da “palmada” e a preservação da intimidade da
família reduz as possibilidades de intervenção precoce, o que auxilia
na subnotificação dos casos de violência.
Essa
atitude ”educativa” associada à ideologia que sustenta ser a família um grupo
inviolável faz com que a sociedade se sinta distanciada e descompromissada
para com a violência que ocorre no ambiente doméstico.
Assim,
para compreender a lógica da presença da violência no âmbito familiar é preciso
entender que esta não é um mero retrato
de uma realidade externa, destacada, isolada e impenetrável, pois integra em
seu ciclo todas as pessoas que praticam e sofrem seus
efeitos, um acontecimento do qual fazem parte todos os setores sociais, não
sendo exclusivo de uma só classe.
O
desconhecimento da população em geral, e de profissionais em particular, quanto
às formas de violência contribui para ocultar uma realidade, uma vez que
somente a violência física tem uma materialidade, cuja visibilidade é fácil e
objetiva. Segundo Chesnais (1981) a violência física
é a mais visível e a única que pode ser quantificada. As práticas familiares
empregadas para a socialização das crianças, construídas socialmente, e
transformadas em formas “naturais” de uma “ética educativa”, impedem muitas
vezes que sejam representadas como violência contra as crianças e adolescentes.
A
negligência no cuidado de crianças, os maus tratos e o abuso sexual constituem
fenômenos, os quais são geralmente tratados como tabu. O fato de a pessoa que
pratica tais atos vincular-se diretamente àqueles sobre quem a violência recai,
obrigando-a a manter o convívio diário com o violentador, provavelmente seja o
motivo pelo qual essas atrocidades continuem secretas e impunes. Segundo
Azevedo (2000), devido ao caráter sagrado dirigido à família, a sociedade tende
a discriminar aqueles que revelam suas mazelas.
A
violência e o abuso sexual quando acontecem no contexto intrafamiliar
são revelados tardiamente, uma vez que a cumplicidade dos adultos envolvidos na
relação cria um clima favorável para a ocultação. Via de regra, uma criança ou
adolescente que sofre violência sexual convive com o problema por longo período
de tempo antes que possa ser revelado. As ameaças reiteradamente exercidas pelo
violentador fragilizam a criança e/ou
adolescente, pois se sentem incapazes de responder ao poder físico e emocional
do adulto. No contexto da relação conjugal, a mulher resiste aos sinais
explícitos e implícitos de abuso, procurando, com isso, manter o casamento e a
relação afetiva com o parceiro. Desamparados, amedrontados e despreparados para
lidar com estas situações, os violentados convivem solitariamente com o problema.
Muitas vezes, quando decidem revelar o abuso ou a violência sexual as crianças
e adolescentes são desacreditados, instalando uma suspeita de que os relatos
são fantasiosos e visam desestabilizar a relação entre o casal.
Outro
tipo de violência que é praticada, e não denunciada, está relacionada à questão
de gênero, caracterizada como formas sutis de violência. (DAZA&ZULETA,
1997). A representação da criança/adolescente como um
ser inferior, com atributos pontuados negativamente no interior do grupo
familiar, vem sendo transmitida de uma geração para outra, como sendo própria
da cultura familiar ou da cultura do grupo. A transformação desse processo
social e educativo em condição “natural” do grupo familiar impede o questionamento
desse modelo, assegurando sua reprodução contínua.
Estas
diferentes formas de expressão da violência praticada contra
crianças e adolescentes adquire uma face mais cruel uma vez que os
violentados, do ponto de vista físico e emocional, estão numa condição bem
diferenciada: encontram-se em processo de desenvolvimento físico e psicológico,
expressando uma assimetria em relação ao adulto, além de carregarem
experiências afetivas escassas, o que dá pouca inteligibilidade à violência
vivida por eles.
A
superação da violência exige um compromisso de todos, desde aqueles que estão
diretamente envolvidos na relação, até os que compõem a realidade social, pois
a indignação para com o sofrimento deve se transformar em práticas sociais que
possam transformar essa realidade.
Para
instituir uma prática voltada para a (re) construção da vida
destas crianças e adolescentes é
necessário à apropriação de um conceito capaz de caracterizar a situação de
violência, a partir da condição de violentados e do contexto que a produz,
ultrapassando as discussões que denominam aqueles sobre os quais a violência
recai, como vítimas.
Azevedo
(2000) e Passeti (1999) são dois autores que
desqualificam o termo “vítima” para designar crianças e adolescentes em
situação de violência. Azevedo (2000) lança mão do termo “vitimizados”,
enquanto Passeti (1999) utiliza
“violentados” e, ambos argumentam que o termo vítima é inadequado para
designar a violência cometida contra crianças.
Azevedo (2000) faz distinção entre o processo de vitimação e o de vitimização,
entendendo que o primeiro é resultante de um mal estar causado pelas
atrocidades cometidas contra milhares de crianças abandonadas, onde a
responsabilidade recai sobre entidades abstratas como a sociedade ou o governo,
não havendo o reconhecimento de um agente preciso. O significado de vitimação atinge exclusivamente crianças onde as famílias
são economicamente desfavorecidas, resultando em uma representação equivocada,
pois sugere uma relação contingente entre pobreza e violência, acentuando os
processos de estereótipos e preconceitos relacionados a esse segmento. Já no
processo de vitimização não há fronteiras entre
classes sociais, pois, este obedece a um sistema de dominação e exploração.
O segundo alcança uma
dimensão mais concreta, abrangendo as relações proximais da realidade da
criança, detectadas principalmente em suas casas e escolas. A semelhança entre
esses dois processos está na origem de ordem social onde as relações são
permeadas pelo poder.
O termo adotado por Azevedo
-vitimizado- incorre no erro de aludir a uma falsa
noção de estabilidade, pois o cristaliza, empregando o verbo no particípio, uma
condição estanque, remetendo ao passado, sobre o qual não é possível interferência. Vitimizado,
aparentemente, parece ser o termo mais adequado quando se analisa a violência
não como um processo de desajuste, mas como um processo de caráter transferencial de violência que resulta em um violentador
que antes fora violentado. Aqui, privilegia-se a passividade do homem quanto
aos acontecimentos de sua história pregressa, impedindo-o, nessa perspectiva,
de intervir no seu presente e devir. Alimenta-se ainda uma imagem em que o
sofrimento vivido pelo “outro” suscita o sentimento de piedade e fomenta ações
assistencialistas.
Confrontando-se essas
duas classificações, pode-se notar que a de Passeti
se mostra mais apropriada, porque o sentido do termo invoca o dinamismo da
violência enquanto processo. Violentador, conjugado no infinitivo só pode ser
utilizado no cerne da relação que se instaura entre aquele que emprega a
violência e sobre aquele ao qual ela incide, abarcando uma concepção que
articula o homem como ser ativo, social e histórico e a intervenção possível. O
violentador adota a prática de violência em função das condições objetivas de
vida, desamparado pela sociedade e familiares, sente e se ressente das
asperezas do cotidiano, enfrenta diariamente dificuldades, precariedades e
desigualdades sociais
O fenômeno da acumulação
capitalista, bem como o da má
distribuição de renda vem favorecendo o aumento do abandono material de
crianças, portanto há, em nível social, a produção de diferentes formas de
exclusão social. O contexto da exclusão se manifesta por meio de crianças
excluídas pela fome, pela falta de abrigo ou habitação precária, por falta de
escola, pela desfiliação entre pais e filhos, pelo
desamor familiar, além de outras situações como a exposição de crianças às
doenças infecto-contagiosas, a exploração do trabalho e prostituição infantil.
Esses aspectos compõem o quadro de vulnerabilidade social de
crianças e adolescentes.
Passeti reitera que o termo vítima não abrange a vasta dimensão que
constitui a violência que atinge uma criança. Para ele, a família que vivencia
conflitos, os quais se materializam pelas práticas violentas de pais contra
filhos é, antes, conseqüência direta da violência cometida pelo Estado. Logo, a
criança está exposta a mais de um agente soberano e autoritário, além dos encontrados na família.
O Estado pode ser
entendido como violentador a partir do momento em que não preenche as lacunas
deixadas pela situação de desemprego, carência, abandono e falta de
escolaridade. Deste modo, não cumpre a responsabilidade que atribui a si como
tutor de todos os pais, permitindo ou legitimando as práticas de maus tratos em
vez de suprimi-las.
O Estado não tem
instrumentos adequados para garantir à família meios para oferecer aos filhos
educação, saúde, respeito, moradia adequada, enfim, um
existência digna. A legitimação da violência, cometida tanto pelo
Estado, como pela família resultará, na formação de um adulto que tem
impregnado em si a violência legitimada, de modo a reproduzir esta situação,
criando-se um ciclo interminável.
A
perspectiva apontada pelos autores tem, em comum, a necessidade de detectar a
violência em um âmbito maior, onde se considera a realidade social como
objetivação e internalização, na qual se encontra uma
violência que se reproduz ao longo das gerações.
Vale
lembrar ainda a discussão desenvolvida por Arendt
(1994) acerca da violência quando destaca o caráter instrumental da mesma.
Nesse sentido, o significado do ato violento é uma metalinguagem que exige
decifração. O desvelamento dos sentidos contidos nos
gestos violentos deve, portanto, ser buscado na finalidade de tais atos. Nietszche (19) contribui, acrescentando ao debate o
ressentimento presente naquele que pratica a violência. Ao fazer uma comparação
com a relação credor-devedor, esse autor compreende que
o homem pode, em uma ação reativa, produzir o sofrimento no outro como maneira
de se ressarcir de uma promessa não cumprida. Essa perspectiva adotada por Nietszche auxilia a compreender o fenômeno da violência na
perspectiva do violentador. Os sentimentos presentes no ato violento, enquanto processo relacional devem ser analisados a partir da
discussão realizada por Espinosa (19) quando trata das afecções. Para Espinosa
há 3 afecções básicas: o desejo, a alegria e a tristeza, das quais derivam as
demais afeções como o medo, a esperança, a felicidade
ou o ressentimento. A esperança, para Espinosa “[...] é uma alegria instável,
nascida da idéia de um acontecimento passado ou futuro, de cujo desenlace
duvidamos em certa medida”. Já o medo é
uma tristeza instável, nascida da idéia de um acontecimento passado ou futuro,
de cujo desenlace duvidamos em certa medida”. Daí que
não há esperança sem medo, nem medo sem esperança. Esses são os sentimentos
mais presentes em uma relação marcada pela violência. Compreender esse processo
exige investigação.
Investigar
uma realidade social é sempre um desafio que exige uma disposição do
profissional e habilidade para lidar com os imprevistos e adversidades. Quando
a metodologia é de pesquisa-ação os cuidados devem ser redobrados. Toda
realidade social deve ser compreendida como uma totalidade que envolve
múltiplas dimensões e facetas. Investigar a vida cotidiana de um bairro ou de
famílias requer sensibilidade do profissional, capacidade para desenvolver
vínculos por meio dos quais as relações se darão, e competência para
discriminar o aparente do essencial. Por outro lado, a investigação de
fenômenos da realidade social, numa perspectiva da metodologia-ação, considera
os integrantes da realidade a ser investigada, sujeitos e atores sociais,
fundamentais para a captação do fenômeno a ser investigado. Toda pesquisa de
campo demanda tempo e, considerando a temática da violência, o tempo deve ser
redimensionado. De um lado sabe-se que tratar da violência na vida cotidiana é
uma questão que constrange e humilha os violentados. Expressar essa violência
para um estranho (profissional) é mais difícil ainda. Por outro lado, o medo e
a ameaça criam o pacto do silêncio, dificultando muitas vezes o levantamento de
dados. Além disso, é preciso considerar que a família e a comunidade têm uma
dinâmica própria e a inserção nessa realidade social deve ser feita sem pressa,
respeitando-se o movimento peculiar da comunidade. Um outro aspecto merece ser lembrado, a desconfiança que muitas pessoas tem do
profissional que busca interferir neste contexto de privacidade familiar.
Conhecer
a situação de violência vai exigir dos profissionais a fotografia particular e
instantânea da vida social da população em situação de violência, de modo a
contribuir na constituição de sua realidade cotidiana.
“Essa foto pode ser ampliada ou reduzida,
colorida ou esmaecida, com efeitos de animação ou paralisada, dependendo do
preparo teórico-metodológico do profissional e, principalmente, da compreensão ético-política que tem de sua prática”. (PAVEZ &
OLIVEIRA, 2002, p. 88)
Isto
significa ir além do fato constituído; superar práticas mecanicamente
conduzidas, repetitivas e burocráticas, com a única preocupação de preencher
prontuário; sem que [...] nenhuma inquietação intelectual se apresente e
permaneça (PAVEZ & OLIVEIRA, 2002,
p. 88). Na relação do profissional com a população, a entrevista “[...] tem por objetivo produzir
novos conhecimentos sobre a questão, motivo a mais para que a escuta seja
atenta e cuidadosa, pouco apressada, de forma que o próprio entrevistado também
possa ouvir sua própria fala, desencadeando um processo reflexivo, este sim
produtor de conhecimentos” (PAVEZ & OLIVEIRA, 2002, p. 88).
Assim,
o profissional que não for capaz de
captar essa realidade, como uma
realidade que expressa a dimensão totalizante da vida
social dos sujeitos e permanecer insensível ao seu sofrimento, está fadado a
trabalhar com os fatos caóticos da
realidade, sem qualquer possibilidade de intervir na reconstrução de vidas
destruídas.
É
preciso assegurar um treinamento intenso e consistente para que os
representantes de diferentes áreas de conhecimento tenham uma
postura adequada, inserindo-os na comunidade de maneira a alcançar os objetivos
pretendidos. Aliado a isso, a intervenção tem a responsabilidade de evitar
pré-conceitos ou juízos de valor por parte de uma equipe interdisciplinar, de
modo a assegurar ao mesmo tempo o envolvimento e o distanciamento necessário.
Uma postura ética deve integrar o
processo de capacitação dos profissionais, articulando conteúdo, direcionalidade e finalidade da intervenção.
Existe uma realidade cruel em
que crianças e jovens do mundo inteiro são objetos de violência dos adultos,
independentemente de classe social, condição econômica, escolaridade,
religiosidade, raça e, quando se trata da violência infanto-juvenil os
registros revelam-se ainda mais frágeis uma vez que a denúncia, na maior parte
dos casos, depende do adulto. Por isso mesmo a violência é oculta e sub-notificada.
Com a preocupação de levantar dados sobre a questão da violência cometida contra crianças e adolescentes na cidade de Londrina – Estado do Paraná, foram pesquisados os casos de violência denunciados no Conselho Tutelar e no Instituto Médico Legal (IML). Dos laudos investigados no IML, no período de 1999 e 2000, totalizando 3013, 19% eram referentes a crianças e adolescentes. A violência mais encontrada foi a lesão corporal: dos 573 casos de violência, 326 eram referentes a essa prática. A conjunção carnal foi registrada em 20% dos casos, enquanto o ato libidinoso e a necropsia estão presentes em 12% deles, respectivamente.
No Conselho Tutelar, os casos de violência somaram 1735 apurados, referentes ao ano de 1999. Os laudos do Conselho apontaram para diversas formas de violência, sendo a mais praticada o crime de maus-tratos – presente em 12% dos casos – seguido dos casos de abandono, em 4,5% dos laudos, e abuso sexual em 1% deles. No primeiro semestre de 2000, foram encontrados 1197 boletins de atendimento, dos quais 330 são referentes à violência contra crianças e adolescentes. Segundo o relatório, maus tratos (físico e abandono) continua sendo a violência que mais ocorre em Londrina com um total de 131 casos. Os pais são os principais agentes dos atos violentos (58,48%), seguidos pela Polícia Militar (7,57%).
Dos laudos de 1999 do IML, 17% confirmam que o violentador encontra-se dentro de casa e no Conselho Tutelar esse número chega a 63%. Já no primeiro semestre de 2000, foram pesquisados 1668 laudos no IML, sendo que 388 (23%) são referentes a crianças e adolescentes violentados. Esses dados confirmam que a violência praticada contra a criança não é claramente exposta, pois fica camuflada em razão de ser praticada pelos próprios pais. O silêncio acaba sendo uma arma na defesa do “bem estar da família”. De posse desses dados tornou-se evidente que a violência é uma prática que integra o cotidiano de muitas crianças.
A
pesquisa ainda revelou sobre a deficiência do trabalho do Conselho Tutelar no
que se referia à organização e preservação de informações, através de registros
e arquivos dos casos de violência. A ausência de registro minucioso, fidedigno
e padronizado das ocorrências comprometia o adequado procedimento dos
conselheiros no trato desses casos. Tal quadro contribuía para que a violência
não fosse desvelada e discutida, reforçando em torno dela um circuito de
segredo, silêncio e displicência, promovendo o ocultamento
e distorção desse fenômeno na sociedade.
A partir dos resultados obtidos na pesquisa, a equipe criou o Projeto Ação Interdisciplinar no Combate à Violência praticada contra Crianças e Adolescentes, aprovado pelo CNPq e pela Coordenadoria de Pesquisa e Pós-Graduação e Coordenadoria de Extensão à Comunidade da Universidade Estadual de Londrina, integrando, em suas ações, o ensino, a pesquisa e a extensão.
A equipe é formada pelas áreas de Serviço Social, Psicologia Social, Direito, Jornalismo e Relações Públicas, garantindo o princípio da interdisciplinaridade. O projeto conta com participação de 8 professores e 40 estudantes, com apoio do Escritório de Aplicação de Assuntos Jurídicos – EAAJ da Universidade, e a ações se realizam em parceria com os Conselhos Tutelares do município de Londrina. São três Conselhos Tutelares em funcionamento, cada qual com 5 membros, atuando nas diferentes regiões da cidade.
A opção pela metodologia da investigação-ação se deu pelo fato da mesma constituir em uma abordagem que permite o acúmulo de conhecimento, tanto de caráter da produção intelectual, quanto de intervenção técnica, política e ética, com a participação social dos segmentos envolvidos com a problemática da criança e adolescente da região norte do Paraná.
A investigação-ação busca compreender e explicitar o fenômeno da violência, por aproximações sucessivas, fundamentada em um conhecimento teórico, capaz de interpretar os dados e os fatos apreendidos no contexto imediato da intervenção.
Para
atender a este desafio, ocorre a análise dos casos de violência praticada
contra a criança e adolescente, a partir das demandas e necessidades cotidianas
apresentadas pelos conselhos tutelares, mediante documento oficial, contendo
algumas informações sobre o histórico de violência da criança e/ou adolescente.
Os
casos são discutidos no Grupo de Trabalho Interdisciplinar - GTI, com o
objetivo de estudar e levantar, coletivamente, os procedimentos necessários
para intervenção do problema, sem perder de vista a especificidade de cada área
de atuação.
A
passagem da situação singular para as questões mais complexas da totalidade
social não se dá de forma imediata. É por meio da reflexão coletiva que se
busca compreender as mediações necessárias para elucidar as situações
concretas, tanto em seu movimento contraditório, quanto à viabilidade potencial
de superação.
Assim,
as reuniões semanais do Grupo de Trabalho Interdisciplinar são planejadas de
forma a garantir a discussão, análise e sistematização dos dados à luz de uma
perspectiva teórica adotada, bem como constituir-se no
espaço empírico para o levantamento de dados, conhecimento e problematização das diferentes situações de violência que
envolvem as crianças e adolescentes.
A
participação de conselheiros tutelares neste processo de(re)construção
e análise do problema tem possibilitado a ultrapassagem dos limites teóricos e
metodológicos impostos aos Conselhos Tutelares, transformando em realidade a
constituição de um espaço plural para o debate democrático dos objetos de
interesses coletivos: o combate à violência contra criança e adolescente.
Quanto mais abrangentes e ricos forem o conhecimento e domínio dos Conselhos
Tutelares, maior controle eles terão sobre a política de atuação e mais
efetividade terão sobre suas ações.
Entendendo que a família é uma instituição
social historicamente determinada e, dialeticamente organizada, deve-se pensar
a família numa perspectiva de mudança. As transformações societárias vêm
provocando uma fragilização dos vínculos familiares e
maior vulnerabilidade da família no contexto social, o que poderia revelar um
processo acentuado de desfiliação.
O
levantamento realizado no período de abril de 2001 a janeiro de 2003, sobre a
situação familiar dos casos encaminhados pelos Conselhos Tutelares de Londrina
ao projeto de Combate à violência contra a criança e o adolescente, registra
que das 137 crianças ou adolescentes atendidos pelo projeto, 38,2% são de
famílias provenientes da região norte de Londrina, 18,2% da região sul, 17,3%
da região oeste, 20% da região leste, e somente 5,4% da região central. Há predomínio de
famílias com 5 membros, representando 27,5%. Constatou-se que 48% das
famílias são modificadas, destas, 86,8%
foram recompostas pela figura do padrasto ou madrasta. Das 57 famílias
naturais, 31,5% são monoparentais, com predominância
da mãe como chefe da casa e responsável pelo processo de socialização de seus
filhos. Verificou-se que em 38,9% dos casos, a principal violentadora é a mãe.
Outro dado significativo é de que a violência física representa 80% dos casos.
A violência infantil atua na contramão das práticas de educação, e desenvolve
traumas, muitas vezes irreversíveis na criança e no adolescente. À família é um
grupo social ao qual se atribui a função de constituir-se em espaço da
sociabilidade, da afetividade e segurança, sobretudo durante o período da
infância e adolescência. Superar o modelo cristalizado de família implica em
compreender as mudanças que vêm ocorrendo nas relações familiares, assim como
analisar o processo de inserção da família na sociedade contemporânea.
A
família, um ambiente que deveria ser marcado pela segurança, proteção e afeto,
esconde no seu interior uma violência muitas vezes consentida pela conivência
de seus integrantes ou mesmo por parte daqueles que vivem diariamente as práticas
de coerção. Nesse sentido, a família torna-se um lugar em que as contradições
se explicitam: no seu interior pode se encontrar carinho, atenção, segurança,
mas também pode se encontrar medo, humilhação, desamparo, sofrimento,
desesperança, ou seja, as práticas mais diversas de violência.
Dos
137 casos atendidos, 61,3% são do sexo masculino. 27 crianças têm idade até 6
anos; 38 com idade entre 7 e 11 anos; 19 adolescentes de 12 a 17 anos. As
formas de violência mais encontradas foram: física, sexual e psicológica, sendo
que a primeira é o principal motivo das denúncias (46%), seguido da psicológica
(35,7%); e sexual (3,7%). Casos de abandono, negligência e transgressões
sociais representam 38,7% do total. Ao cometerem a violência
física, 64% dos pais alegaram que “bateram para educar, pois seus filhos
são desobedientes”.
Dentre
os delitos praticados, o de maior predominância foi o crime de maus tratos,
representando 50% das ocorrências, destes, 12,50% apresentam pedido de
investigação de paternidade, alimentos e assentamento de registro de
nascimento. As lesões corporais totalizam 16,74%, além das denúncias de
injúria, atentado violento ao pudor, abandono material e moral. A violência
doméstica ora constatada pode ser denunciada pelo Ministério Público, pelo
representante legal ou por qualquer pessoa que pretenda zelar pela segurança da
criança e do adolescente, requerendo-se a responsabilização penal e civil dos
infratores, podendo acarretar a prisão destes e a suspensão ou destituição do
pátrio poder. Assim, conferir maior agilidade e legalidade no atendimento dos
casos de violência, com a correspondente responsabilização e punição legal dos
violentadores, proporciona à criança e ao adolescente as garantias necessárias
para a concretização de seu status de sujeitos de direitos, prestando-lhes
proteção integral da Justiça e, principalmente, de seus familiares.
Ainda
com preocupação resgatar, no próprio movimento do atendimento dos casos de
violência, as categorias particulares, empíricas, que dão
significado ao fenômeno da violência, buscou-se superar a visão limitada
e o imediatismo da situação, reconstruindo o objeto de intervenção, dando- lhe
uma dimensão histórica.
O
Grupo de Trabalho Interdisciplinar, mediante a realização de seminários discute
temas de interesse coletivo para subsidiar a reflexão-ação da equipe. O
seminário é organizado de modo a desenvolver o domínio teórico e prático sobre
a questão da violência e a cada discussão é elaborada a síntese que,
distribuída aos participantes, serve de base para um novo ponto de partida.
A
relação entre os integrantes do Grupo de Trabalho Interdisciplinar é
necessariamente horizontal, sendo respeitado o direito de cada um trazer seu
“próprio passado e presente”, no sentido de não perder de vista a particularidade
de cada trajetória.
As
discussões colegiadas envolvendo os casos de violência buscam identificar
formas de intervenção, por meio das quais a violência possa ser combatida e a
prevenção se institua como prática do cotidiano. Nesse sentido, as ações
contemplam visitas domiciliares regulares para o monitoramento das situações de
violência; constituição de grupos de intervenção psicossocial,
congregando crianças, adolescentes e familiares adultos; reuniões
periódicas entre a equipe da Universidade e representantes dos poderes
públicos locais como Conselhos Tutelares e Promotoria da Infância e Juventude
para dar os encaminhamentos jurídicos necessários; intercâmbio permanente com
as instituições da rede pública e privada do município para articular ações e
estratégias de proteção às crianças e adolescentes, evitando a fragmentação e
sobreposição das intervenções.
As
experiências desenvolvidas pela equipe interdisciplinar e o conhecimento
construído nesse processo revelam uma realidade na qual a insegurança e o medo tomam conta dos
cidadãos. A sociedade transfere para o poder executivo, legislativo ou
judiciário as exigências de uma intervenção, reduzindo dessa forma a
responsabilidade que é de todos.
A
sensibilização dos diferentes setores da sociedade civil organizada é um
desafio que está posto, exigindo dos pesquisadores novas
estratégias para desenvolver o compromisso e a solidariedade como pressupostos
para a conquista da cidadania.
Para
isso, o processo de construção e reconstrução de conceitos e práticas na
perspectiva da investigação-ação é condição, e os resultados alcançados devem
ser sempre considerados provisórios, ou seja, a eles vão sendo incorporados novas reflexões, que permitem ampliar o horizonte do
conhecimento e a capacidade de interpretar a realidade, instituindo um
movimento permanente, no qual os conteúdos da vida cotidiana sejam o ponto de partida para um devir sem
violência.
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Notas:
[1] Este texto
foi elaborado com a participação dos alunos: Berenice de Fátima Martins Veiga,
Janaína Albuquerque de Camargo, Lívia Lumiko Suguihiro, Loren Pelik Kempe, Miriam Lumiko Hoshiba, Valdirene Campos e Vilma
A. de O. Torrezani (Serviço Social); Amanda Abreu
Silva, Heloisa P. Ortega, Luciana Ap. de Azevedo, Mariana Prioli
Cordeiro, Renata de Souza Scoponi e Roberta de Castro
Torres (Psicologia); Antenesca Demiciano
e Diego Molina Gianezi (Comunicação Social) e Luciana
Shimata Ghiraldi (Direito)