UM NOVO MODELO DE JUSTIÇA CRIMINAL?

 

 

Renato Sócrates Gomes Pinto

Procurador de Justiça do Distrito Federal.

 

 

Nesse ensaio é proposto um debate sobre a idéia de Justiça Restaurativa, que se coloca como uma alternativa frente ao modelo tradicional de Justiça Distributiva na área criminal.

 

O modelo, em linhas gerais, é apresentado sob o ponto de vista do autor a partir da experiência do grupo de Procuradores e Promotores de Justiça que esteve no Canadá para ver de perto o sistema,  num programa de intercâmbio cultural, promovido pelo Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília.

 

Na América Latina, o programa está funcionando na Argentina, desde 28 de setembro de 1998, sendo inspirado no art. 38 e 45 da Lei do Ministério Público c.c. art. 86 e sgts do Código de Processo Penal da Província de Buenos Aires, tendo sido criados dois Centros – o Centro de Assistência às Vítimas de Delitos e o Centro de Mediação e Conciliação Penal.

A Justiça Restaurativa, preconizada pela Declaração de Viena, de 20 de abril de 2000, da ONU, lança um novo olhar no crime, visto mais como um mal à vítima do que uma violação de uma lei penal e uma ofensa à sociedade.

 

Uma síntese descritiva das características do modelo distributivo e restaurativo pode ser visualizado no quadro abaixo, extraído do ensaio Modelo de Justiça para o Século XXI, do Professor Pedro Scuro Neto, que trabalha com Câmaras Restaurativas no Rio Grande do Sul, através do Centro Talcott de Direito e Justiça.

 

 

Justiça Retributiva

Justiça Restaurativa

Crime: ato e responsabilidade exclusivamente individuais

Crime: ato contra pessoas e comunidades

Controle: Estado

Controle: comunidade

Pena eficaz: a ameaça de castigo altera condutas e coíbe a criminalidade

Compromisso do infrator: assume responsabilidades e faz algo para compensar o dano

Castigo somente não muda condutas, além de prejudicar a harmonia social e a qualidade dos relacionamentos

Vítima: elemento periférico no processo legal:

Vítima: vital para o encaminhamento do processo judicial e a solução de conflitos

Infrator: definido em termos de suas deficiências

Infrator: definido por sua capacidade de reparar danos

Preocupação principal: estabelecer culpa por eventos passados (Você fez ou não fez?)

Preocupação principal: resolver o conflito, enfatizando deveres e obrigações futuras. (Que precisa ser feito agora?)

Ênfase: relações formais, adversativas, adjucativas e dispositivas

Ênfase: diálogo e negociação

Impor sofrimento para punir e coibir

Restituir para compensar as partes e reconciliar

Comunidade: marginalizada, representada pelo Estado

Comunidade: viabiliza o processo restaurativo

 

 

No Canadá, membros do MPDFT tiveram oportunidade de participar de mesas redondas com autoridades/ especialistas canadenses, para discutir o Programa de Justiça Restaurativa daquele país, no Departamento de Justiça, no Instituto de Negociação Aplicada e no Instituto de Resolução de Conflitos, em Ottawa.

 

Pode-se dizer que o programa, que é definido como uma forma alternativa e diferente do sistema tradicional de Justiça Criminal, aborda a questão criminal a partir da perspectiva de que o crime é uma violação nas relações entre as pessoas, e não apenas um ato típico e antijurídico praticado contra o Estado, e que, por causar um mal à vítima, à comunidade e ao próprio autor do delito, todos esses protagonistas devem se envolver num processo de restauração de um trauma individual e social.

 

Todos os afetados pelo crime têm papéis e responsabilidades nesse processo e devem, por isso, trabalhar coletivamente em torno do impacto e das conseqüências do delito.

 

A restauração, a solução de problemas e a prevenção de males ulteriores devem ser enfatizados no programa.

 

A idéia é buscar restaurar os relacionamentos ao invés de simplesmente concentrar-se na determinação de culpa.

 

O programa baseia-se na premissa segundo a qual a vítima, o autor do crime e pessoas envolvidas com a vítima e/ou com o criminoso, bem assim lideranças comunitárias, devem compartilhar a busca de solução dos problemas causados pelo crime cometido, em geral com a assistência de uma terceira pessoa imparcial – um mediador ou um facilitador.

 

O sistema objetiva (1) a reparação dos danos à vítima, (2) a prestação de serviços à comunidade e (3) a solução dos problemas causados pelo fato-crime, tanto para a vítima como para a comunidade, e a reintegração tanto da vítima como do autor do crime.

 

O processo abrange procedimentos de mediação, audiências especiais e círculos de sentença (sentencing circles).

 

O programa pode ser acionado em qualquer fase do processo criminal, ou seja, antes do início da ação penal (ainda na investigação), depois de promovida a ação penal e, depois também da sentença condenatória.

 

O projeto pressupõe a concordância de ambas as partes (réu e vítima), concordância essa que pode ser revogada unilateralmente, sendo que os acordos devem ser razoáveis e as obrigações propostas nesses acordos devem atender ao princípio da proporcionalidade, e a aceitação do programa não deve, em nenhuma hipótese, ser usada como indício ou prova no processo penal, seja o original, seja em um outro.

 

Na área infanto-juvenil, a idéia é expandir, no Canadá, as alternativas para restringir o uso do sistema formal de Justiça, reduzindo medidas privativas da liberdade e promovendo a reintegração do jovem infrator na comunidade.

 

Tramita no parlamento um projeto de lei de reforma da Justiça Infanto-Juvenil (denominado Bill C-7), que objetiva adequar a legislação canadense à Convenção dos Direitos da Criança da ONU.

 

O projeto adota a Justiça Restaurativa para promover a reconciliação do menor infrator com a comunidade mediante sua conscientização sobre a responsabilidade acerca do mal causado pelo ato infracional, e mediante seu envolvimento na restauração da fratura operada pela ofensa, de sorte a comprometê-lo a reparar os danos causados à vítima e à comunidade.

 

A grande inovação do projeto é conferir poderes e legitimidade à Comunidade, afastando, em parte, o controle judicial e do executivo na gerência de medidas contra os menores infratores, de sorte que o sistema formal se converta numa alternativa no caso de a ação comunitária não se revelar suficiente.

 

Crítica conclusiva

 

A impressão que se tem é que, apesar da eficiência que pode ter o programa, ele revela-se, por outro lado, como uma descentralização exacerbada de funções essenciais do Estado, inclusive do monopólio estatal da jurisdição penal, em detrimento de direitos e garantias fundamentais construídos em séculos, abrindo caminho a desvios, arbitrariedades, etc..

 

Mas se consideradas essas ponderações e definidos criteriosamente os limites de aplicação desses novos paradigmas, um projeto brasileiro de Justiça Restaurativa pode funcionar bem, nos casos em que for possível sua utilização.

 

A pergunta que se faz é a seguinte: por quê não se tentar aqui esse modelo?

 

Dizia GUIMARÃES ROSA que viver é aprender, mas o que aprendemos mais é a fazer mais perguntas.