A ARTE DE SONHAR COMO FORMA DE EVITAR PESADELOS SOCIAIS

 

 

Ruth Duarte

 Promotora de Justiça de Goiás.

 

 

Introdução

 

Leo Gilson Ribeiro nos conta que, em um núcleo de ensino de música da Febem, os adolescentes infratores fizeram uma rebelião, onde no decorrer do processo de revolta, destruíram todos os setores da unidade de recuperação, salvo o local onde eram guardados os instrumentos musicais.

 

Ora, em meio à rebeldia, algo deveria ser incontestavelmente preservado. Os adolescentes optaram por preservar os instrumentos musicais, cientes que, uma vez quebrados, não seriam repostos, o que inviabilizaria o contato com a música, bem como a convivência musical.

 

Aludido fato deixa claro o fracasso da concepção sancionadora das medidas sócio-educativas, não constituindo meio eficaz de ressocialização.

 

Ao contrário, a arte é instrumento eficiente de ressocialização, na medida em que possibilita o sonho, não degenerando o ser humano, proporcionando, seja pela pintura, pela música ou pela dança, o desenvolvimento das potencialidades.

 

A verdade é que as formas usuais de integração social não deram certo, reproduzindo discriminação e exclusão social, haja vista que associaram de modo quase causal o ilícito ao castigo (dogma da punição).

 

Aí então surge a necessidade de redefinir o âmbito de atuação do “direito penal juvenil” como última ratio.

 

 

Conceito de direitos humanos fundamentais

 

Na nossa Constituição Federal os direitos fundamentais do homem precedem a própria organização do Estado.

 

Mencionada circunstância denota o significado, a importância, sobremais a jurídica, na medida em que tais direitos estão positivados na Constituição.

 

Portanto, a natureza dos direitos fundamentais é constitucional, possuindo grau máximo de eficácia. Nesse sentido, José Afonso da Silva salienta que:

 

 “...desde que, no plano interno, assumiram o caráter concreto de normas jurídicas constitucionais, não tem cabimento retornar a velha disputa sobre seu valor jurídico...”[1].

 

A expressão “fundamental” diz respeito à imprescindibilidade da realização efetiva na convivência da pessoa humana, sem a qual a mesma não sobrevive.

 

O dicionário Aurélio define a aludida palavra como essencial, necessário, básico, indispensável. Muitos conceitos estão presentes nessa definição.

 

Existe grande divergência para se descobrir o traço característico dos direitos fundamentais. É comum indagar: de que forma se chega à conclusão que determinado direito faz parte do rol dos direitos fundamentais?

 

Vieira Andrade leciona que, o ponto característico para definir um direito como fundamental, seria a intenção de explicitar, de consubstanciar, de dar corpo ao princípio da dignidade da pessoa humana. Todavia, há autores que se insurgem contra essa idéia, lembrando-nos que há direitos elencados no artigo 5º (incisos XXI, XXV, XXVIII e XXIX), da Constituição Federal, respeitantes a pessoas coletivas, denotando a idéia de que a dignidade humana não seria sempre o vetor definidor dos direitos fundamentais.[2]

Contudo, Paulo Gustavo Gonet Branco muito bem esclarece:

 

De toda forma, embora haja direitos formalmente consagrados como fundamentais que não apresentam ligação direta com o princípio da dignidade humana, é esse tópico que inspira os típicos direitos fundamentais, atendendo à exigência de respeito à vida, à integridade física e íntima de cada ser humano e à segurança. É o princípio da dignidade humana que justifica o postulado da isonomia e que demanda fórmulas de limitação do poder, prevenindo o arbítrio e a injustiça.[3]

 

Sinteticamente, os direitos fundamentais devem ser considerados, embora não exclusivamente, concretizações das exigências do princípio da dignidade humana,[4] consubstanciando-se em pretensões, descobertas a cada momento histórico, “a partir do valor da dignidade humana”[5].

 

Prieto Sanchis, abordando o tema do ponto de vista histórico, advoga que:

 

Os direitos humanos têm a ver com a vida, a dignidade, a liberdade, a igualdade e a participação política e, por conseguinte, somente estaremos em presença de um direito fundamental quando se possa razoavelmente sustentar que o direito ou instituição serve a algum desses valores. [6]

 

Por derradeiro, corroborando esse entendimento, José Afonso da Silva leciona que os direitos fundamentais designam:

 

No nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantia de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo de direitos fundamentais, acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive. [7]

 

 Direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes

 

As crianças e os adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais assegurados à pessoa humana, em que pese a evidente constatação de que adultos e jovens são pessoas desiguais.

João Batista relata que:

 

[...]o Estatuto da Criança e do Adolescente parte do pressuposto de que todos os direitos da criança e do adolescente devem ser reconhecidos. Direitos esses especiais e específicos, pela condição que ostentam de pessoas em desenvolvimento.[8]

 

Decerto, no homem a infância demora maior período do que em outro animal qualquer, justamente visando possibilitar a fixação de aprendizagem e aquisição de hábitos.

 

Como decorrência, haja vista que a vida é o mais fundamental de todos os direitos, François  Rémy, presidente do Comitê Francês para a Unicef, observou que se deve assegurar as crianças e aos adolescentes não somente a vida, mas a qualidade de vida.[9]

 

A qualidade de vida possibilita a dignidade da criança e do adolescente, posto que, cria expectativa de futuro, tornando-os cidadãos livres.

 

Para ilustrar vale a pena transcrever o poema dos meninos de rua da cidade de Curitiba-PR:

Nós também queremos viver,

Nós também amamos a vida.

Para vocês escola – para nós pedir esmola.

Para vocês academia – para nós delegacia.

Para vocês forró – para nós mocó.

Para vocês coca-cola. para nós cheirar cola.

Para vocês avião – para nós camburão.

Para vocês vida bela – para nós morar na favela.

Para vocês televisão – para nós valetão.

Para vocês piscina – para nós chacina.

Para vocês emoção – para nós catar papelão.

Para vocês conhecer a lua – para nós morar na rua.

Para vocês, está bom, felicidade – mas, para nós, igualdade.

Nós também queremos viver,

Nós também amamos a vida.

 

Num simples poema, garotos manifestam indignação, revolta e anseio por novas conquistas, ou seja, pela arte comunicam o desejo de viver, de sonhar.

 

O interessante é que meninos indignaram-se pela arte, como se esta representasse um canal de comunicação com o ambiente social de intensa discriminação e exclusão.

 

Justifica-se.

De acordo com César Coll e Ana Teberosky a arte apresenta diversas nuanças como a música, a dança, o teatro, a pintura, a escultura, o desenho, a gravura, o cinema, a fotografia e outras.[10]

 

Seja qual for a modalidade, o dom, a arte modifica a realidade do viver, na medida em que, por exemplo, pode-se conhecer lugares onde nunca se esteve pela pintura, pelo cinema, pelas fotografias.

 

Ora, pelo exposto nota-se que a arte possibilita o sonho, o desligamento de uma realidade vivenciada, que não raras vezes traduz miséria e dor, estirpando emoções e integrando a pessoa no ambiente social.

 

Na medida em que por intermédio da arte posso vivenciar situações diferenciadas da minha realidade, bem como expressar tensões e preocupações cotidianas equilibrando emoções, tal recurso afigura-se fundamental de toda pessoa humana.

 

Como já dito a noção material de direito fundamental gira em torno da dignidade. Pois bem, a arte promove a dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual convém enumerar algumas das suas contribuições através de exemplos. Senão vejamos.

No início do século XX, uma dançarina norte-americana revolucionou o mundo da dança com suas idéias e modo de dançar. Ela se chamava Isadora Duncan e acreditava que a dança existia para que os seres humanos pudessem expressar seus sentimentos e emoções mais profundos, como a angústia, o prazer, a paixão, a tristeza.

 

No mesmo sentido, César Coll e Ana Teberosky asseveram que [...]a dança é também uma das maneiras que o ser humano usa para poder se comunicar de um jeito diferente, com os outros e com o mundo[11].

 

Ainda, no que concerne à arte de pintar "acredita-se que os primeiros homens e mulheres desenhavam e pintavam para proteger-se durante a caça, para fazer pedidos aos deuses, para ensinar os mais jovens e também como forma de se expressar artisticamente"[12].

 

Por fim, os mencionados autores prosseguem enfatizando que relativamente ao sentido da música "o prazer físico e emocional é a reação mais natural diante da música e, talvez, a mais poderosa"[13].

 

Daí chega-se à conclusão que as várias modalidades de arte, seja o poema, a dança, a pintura ou a música contribuem na construção da identidade do ser humano, principalmente durante a infância e juventude, canal de acesso e assimilação de novas informações. Decerto por criar condições de desligamento, a arte relaciona-se intrinsecamente com o sonho, com a imaginação, possibilitando que crianças e adolescentes vivam dignamente, assim como se tornem adultos pacíficos, honestos e livres.

 

Portanto, neste contexto a arte surge como direito fundamental da pessoa humana, sem a qual a mesma não sobrevive dignamente.

 

 

 

Democracia de classes e espaço de convivência

 

Em Aristóteles, bem como na prática do regime na antiguidade, a democracia era classista.

No dizer de Pinto Ferreira “a democracia é a forma constitucional de governo da maioria, que, sobre a base da liberdade e igualdade, assegura às minorias no parlamento o direito de representação, fiscalização e crítica”[14].

 

Para o citado autor, a igualdade “é a essência da democracia, porém se refere a igualdade substancial, inclusive na economia”[15].

 

Ocorre que a maioria, em verdade, reflete uma minoria de homens e via de conseqüência um governo de classes, desvirtuando-se, portanto, dos valores iniciais da democracia, quais sejam o princípio da maioria e o princípio da igualdade.

Sérgio Salomão Shecaira relata que:

 

[...] em recente levantamento da Prefeitura de São Paulo, através da Secretaria Municipal do Trabalho, que calculou o Índice de Desenvolvimento Humano dos 96 distritos que compõem a cidade, verificou-se que 55 ,38% dos paulistanos têm um padrão “africano de vida”(contra 3,46%. que tem um padrão “europeu”). Se associarmos os “africanos” (muito baixo índice de IDH) aos indianos, que perfazem 31,10% (baixo índice de IDH), teremos mais de 86% de pessoas que vivem com índices próximos da pobreza ou mesmo da miséria. Entenda-se bem: muito mais da metade da população passa necessidade. Muito são famintos, esquálidos, não possuem ocupação lícita e vivem de bicos. Moram amontoados em favelas ou cortiços (muitos deles com menos do que 6 metros quadrados que são estabelecidos como limite mínimo cabível a cada preso em suas celas individuais). Vivem em meio a miséria e violência. Associados à falta de acesso aos recursos materiais, à desigualdade social, à corrupção policial e ao péssimo exemplo de impunidade dado pelos chamados criminosos de colarinho branco...[16]

 

 

Nesse quadro de desigualdade social dilui-se os direitos humanos fundamentais, anteriormente tratados, na medida em que a democracia deveria existir justamente a fim de concretizar justiça social.

 

Objetivando promover o bem social dos marginalizados, busca-se formas de socialização, como a institucionalização da criança carente, a oferta de trabalho ao adolescente, programas de apoio a lares miseráveis, chegando-se inclusive a propor-se o encarceramento dos infratores em nome da integração social.

 

Ocorre que tais meios restaram fracassados, na medida em que não contribuíram para a formação da cidadania, conforme esperado. Ao contrário, reproduziram marginalização, ausência de reais oportunidades.

 

Nem mesmo as formas cotidianas de convivência como as escolas tradicionais conseguiram promover cidadania, na medida em que igualmente reproduziram a dura realidade, isto é, escassez de recursos, professores mal remunerados e despreparo das diretorias.

É por isso que Maria Inês leciona que:

 

[...] a exclusão social presente em nosso país, por outro lado, cria ampla discriminação. Em decorrência dela, não se permite a um número cada vez maior de indivíduos que tenham garantido o seu direito mais básico: o direito à vida. Se esse direito é negado a um adulto, que em tese tem mais possibilidade de se defender, o que se dirá da transgressão aos direitos das crianças? Vivem elas, neste país, em favelas; nas ruas; exploradas, muitas vezes, pelos seus próprios genitores; sexualmente seviciadas e, em alguns casos (poucos, diga-se), em entidades governamentais ou filantrópicas, que, conquanto possam lhes permitir o abrigo das intempéries e alguma alimentação, negam-lhe atenção, carinho, afeto, essenciais para o desenvolvimento das potencialidades de qualquer ser em formação.[17]

 

Oliveira relata que a prática, especialmente na área da infância e da juventude reproduz o abandono e a negligência já sofridos pela família, mesmo em tempos de uma legislação avançada e garantia legal de direitos sociais.[18]

 

Enfim, os modos convencionais de viabilização da convivência social não deram certo, razão pela qual a arte, especialmente numa sociedade tão desigual, afigura-se o caminho de viabilização social.

 

Para que crianças e adolescentes convivam harmoniosamente no meio social, superando a discriminação, bem como as suas próprias tendências, a arte representa campo fértil de desenvolvimento da pessoa humana.

 

Revisão de valores

 

É cediço que a discriminação permeia nossa vida.

Sobre esse tema, é imperioso citar a lição de Maria Inês:

 

Discrimina-se o pobre, quando não se permite a ele o acesso ao mínimo para uma vida digna; o índio, impingindo-lhe uma cultura da qual não precisa, pois tem a sua, a ser respeitada e preservada; o negro, como se a cor da pele pudesse representar algum diferencial; a mulher, por questões culturais, enfim, a discriminação permeia nossa vida, fazendo dela arremedo dos princípios que deveriam efetivamente validá-la.[19]

 

 

Disso resulta a negação da cidadania.

Considerando que os meios usuais de integração não deram certo, bem como tendo em vista a relatividade do conceito “verdade”, surge a necessidade de novos caminhos objetivando viabilizar a convivência social, principalmente numa sociedade pluralista.

 

Assim, o conjunto de valores na atualidade sedimentado como fator de comunicação, a exemplo da “cultura” do falar inglês, do saber tão-somente matemática, da religiosidade exacerbada mostrou-se fracassado.

 

E tudo isso parece ser simples, mas não é.      

No âmbito escolar o princípio da universalização é ideologicamente ressaltado, como uma das nuances da igualdade constitucional. Todavia, a escola acabou reproduzindo a sociedade.

 

Com efeito, a sociedade acabou determinando o tipo de escola, corroborando a perspectiva de que a sociedade é organizado com fulcro nos interesses dominantes.

 

Ademais, o simples fato da inclusão dentro de uma sala de aula não conduz à inclusão social, uma vez que nem sempre conduz a perspectiva de mudança.

 

Na medida em que se tem uma sociedade calcada nos interesses dominantes, a marca fundamental de tal organização acaba sendo o autoritarismo.

 

Afora o Estado Autoritário, a própria Igreja concentra parcela de poder, especialmente ideológica, concentrando a capacidade de decidir e conseqüentemente de subordinação.

 

Deixando de lado as razões do crime que são extremamente complexas, o exercício da arte desde os primórdios da humanidade contribui para a regeneração do homem.

Ana Miranda narra que:

Eu estava diante das três pinturas de Caravaggio, na igreja de S. Luigi dei Francesi, em Roma, quando um homem se aproximou com seu amigo e disse, com aquela ênfase bem italiana: “Caravaggio foi um delinqüente!Levantei os olhos para  A Vocação de São Mateus, seu Martírio, e Seu Encontro com o Anjo. Ali estava uma das maiores obras da arte de todos os tempos. Aqueles personagens, banhados por uma luz divina e refinada, eram a imagem da vida de Caravaggio. A luz de Caravaggio é trágica. Também sua composição, que obedece a um rigoroso equilíbrio, seus campos negros, seus elementos e sua alma. Pintou São Mateus com o aspecto de um lavrador rude e cujo analfabetismo é sugerido pela mão do anjo que o az escrever – o quadro foi rejeitado e substituído por um novo, no nicho da igreja. Pintou a decapitação de Holofernes, o sacrifício de Isaac, a cabeça da medusa, a crucificação de São Pedro, Davi com a cabeça de Golias ou Salomé com a de Batista, momentos dramáticos e nada edificantes da nossa história sagrada. Inquieto, nômade, Caravaggio era um inconformista. Quando conseguia um dinheiro, saía pela cidade vestido no maior luxo, seguido de um pajem a sustentar sua espada, procurando alguém que aceitasse provocações. Não conseguia dominar seu temperamento, e tinha um desejo descontrolado de ferir. Envolveu-se em episódios de violência com uma impressionante regularidade e agravamento progressivo, culminando num assassinato. Passou sua vida ou nas prisões ou fugindo. Como ele não tinha dinheiro para pagar modelos, olhava-se no espelho e pintava seu próprio moreno e lascivo rosto, o que deu à sua obra um caráter ainda mais autobiográfico. Nada em sua pintura induz à religiosidade nem se desvia da mais terrível condição humana.[20]

 

 

A referida autora objetivou com acerto demonstrar que a beleza pode redimir até os mais encarniçados assassinos.

 

Os casos de artistas criminosos não são raros na história. Jean Genet era mendigo, homossexual e foi diversas vezes condenado por crimes graves. Quando cumpria uma de suas penas, um dos muitos presos políticos que ali se encontravam deu-lhe um livro de Proust. Impressionado com a leitura, Genet passou a escrever, ali mesmo na cela, sendo considerado um dos maiores escultores e dramaturgos da literatura universal.

 

François Vellon, um dos maiores poetas franceses, levou uma vida desregrada de boêmio, chegando inclusive a matar um padre.

 

Deste modo, tais circunstâncias confluem no sentido de que a arte pode regenerar o homem, especialmente num momento histórico em que a mídia apregoa exacerbada punição.

 

Decerto, mesmo diante da falência do sistema prisional, bem como da concepção de ressocialização pelo encarceramento, a mídia ainda levanta a bandeira da punição com o agravamento das sanções, criação de novos delitos.

 

Trata-se do conhecido direito penal simbólico que tão somente reproduz a mencionada discriminação social.

 

Ocorre que o dogma da punição mostrou-se fracassado e tolo, desprovido de valor, nada acrescentando ao ser humano, a não ser revolta e mais exclusão.

 

Caravaggio, François Vellon e Jean Genet foram todos encarcerados, encontrando na arte, não na punição, a eficácia para a ressocialização.

 

De acordo com Adalgiza Campos Baliero noventa e oito por cento da constituição genética do homem é igual a dos chimpanzés.[21] E surge a indagação: o que os diferencia? Em seguida, aludida autora prossegue respondendo que o que diferencia os homens e os chimpanzés é a maneira de viver.

 

Portanto, se o homem perder a maneira de viver diferenciada se igualará aos animais, desfigurando a identidade humana.

 

Ora, tal situação é justamente o que acontece nos encarceramentos, tanto que a própria mídia que reclama punição, paradoxalmente, proclama a condição desumana dos presídios, dos centros de internação.

 

A eficácia da arte reside precisamente na circunstância de possibilitar o sonho, enquanto a punição pelo encarceramento degenera o ser humano, colocando-o numa situação de infindáveis conflitos, dando-lhe como castigo permanente a estigmatização pelo fato de ter sido recluso.

 

O dogma da punição

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente significou um avanço no dogma da punição, tanto que diante de um ato infracional pode-se impor ao adolescente medidas protetivas e não somente sócio-educativas.

 

Ademais, as medidas sócio-educativas não se fundamentam na punição ou castigo, mas sim no caráter pedagógico, obrigando o diploma menorista o suporte escolar, psicológico e familiar. João Batista da Costa Saraiva destaca que as medidas sócio-educativas diferem das penas criminais no aspecto predominantemente pedagógico.[22]

 

Nesse diapasão, já decidiu o STJ:

A conclusão pelo caráter repressivo da medida sócio-educativa que, em última análise, seria equivalente à pena, implicaria na negativa de todo o espírito do estatuto menorista, que tem por objetivo maior evitar a estigmatização do menor infrator, tratando-o, assim, de forma diferenciada.[23]

 

Até mesmo o breve lapso temporal de privação de liberdade foi consagrado, assim como a progressividade das medidas. Ainda, estabeleceram-se inúmeros encargos aos juízes, promotores, educadores, pais, responsabilizado-os, até mesmo durante a execução da medida.

 

Tudo isso demonstra o compromisso do Estatuto da Criança e do Adolescente com a doutrina da proteção integral, erigindo a condição de sujeitos de direitos crianças e adolescentes.

 

Infelizmente, a prática revela o desvirtuamento do caráter pedagógico das medidas sócio-educativas, principalmente a de internação.

 

Portanto, em que pese haver certo consenso de que o aprisionamento seja a única medida possível diante de uma juventude violenta, não se pode desprezar o fracasso da resposta estatal  (ou seja, rompimento dos laços familiares, estabelecimento de laços marcantes com a criminalidade e reiteração da exclusão social).

 

Mas nesse contexto de desarmonia, aqueles adolescentes infratores, ditos desprovidos de valores, como que por instinto, sabem dar real significado à arte, especificamente à música. Leo Gilson nos conta, que um núcleo de ensino de música foi criado na Febem, no qual os adolescentes tomaram contato com esse tipo de arte, estabelecendo um espaço de convivência musical. Certo dia, ocorreu uma rebelião naquela unidade. No decorrer do processo de revolta, os adolescentes destruíram todos os setores da unidade de recuperação, salvo o local onde eram guardados os instrumentos musicais que se destinavam a propiciar sua educação musical, um quartinho onde estavam violinos, flauta e trumpetes.[24]

 

Depreende-se disso que, em meio àquela desordem, que se impregnava de rebeldia, revolta, possíveis reivindicações, algo deveria ser incontestavelmente preservado. Poderiam ter elegido suas camas, pois poderiam dormir no chão. A enfermaria, pois possivelmente depois da entrada da polícia, como de costume, precisariam de cuidados médicos. Não, optaram por preservar os instrumentos musicais, cientes que, uma vez quebrados, não seriam repostos, o que inviabilizaria o contato com a música e a continuidade de sua convivência musical.

 

O fato em questão deixa claro o fracasso da concepção sancionadora das medidas sócio-educativas, posto que ao contrário da arte, não possibilita a expansão de expressões, a busca de sentimentos ou de mudanças, conseguindo aumentar a auto-estima do adolescente.

Menuhin destaca que:

 

[...] a música cria ordem a partir do caos; pois o ritmo impõe unanimidade ao divergente, a melodia impõe continuidade ao descosido e a harmonia impõe compatibilidade ao incongruente. Destarte a confusão rende-se à ordem o ruído à música, e, à medida que nós, através da música, alcançamos a maior ordem universal, que repousa sobre as relações fundamentais de proporção geométrica e matemática, o tempo meramente recebe uma direção e é dado poder à multiplicação dos elementos e propósito à associação fortuita.[25].

 

 

 

Convivência artística

 

O “direito penal juvenil” não constitui instrumento de controle social eficaz, muito menos moralizante e ressocializante. Ao contrário, a arte é instrumento eficiente de ressocialização, contribuindo para o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana e, como exigido pelo Estado Democrático de Direito, para a promoção dos direitos humanos.

 

Decerto, surte maior efeito a atividade artística à construção desenfreada de cadeias.

Qual é a equação da punição a não ser o controle pelo medo? Medo é aquilo que contém, seja do ponto individual ou coletivo. E o pior é que o medo é sutil em todas as instâncias, inclusive nas escolas.

 

No âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente, a arte poderia ser aplicada de forma consensuada, oportunizando ao adolescente a construção de renovados valores, representando um método preventivo no combate ao ilícito, deixando as medidas sócio-educativas como ultima ratio. E via de conseqüência, posicionando devidamente o direito repressivo (subsidiariedade).

 

A arte beneficia pois não limita, não aprisiona, mas liberta, ajudando a resolver conflitos de enfrentamentos, possibilitando como destacado a prevenção da delinqüência juvenil, o que demonstra a sua eficácia.

 

Relativamente às medidas sócio-educativas é imperioso a aplicação da arte de forma paralela, como atividade de recuperação, contribuindo como meio eficiente para a ressocialização do infrator.

 

A iniciação artística possibilita a ressocialização, atuando como inibidor da violência e, favorecendo o nascimento de bons sentimentos.

 

Ora, o puro encarceramento contraria o caráter pedagógico exigido pelo diploma menorista, haja vista que incompatível com a condição do adolescente de peculiar pessoa em desenvolvimento.

 

Comentando a respeito do tema, João Gilberto proclama que a grande meta do Estatuto da Criança e do Adolescente é o desenvolvimento da pessoa humana, tanto no aspecto físico, mental e espiritual. [26]

 

E mencionada idéia não é nova, uma vez que Aristóteles, há tempos, salientou que a essência da vida reside na potencialidade humana. Somos seres em potencialidade, assim se bem conduzidos, podemos nos direcionar em prol do bem comum. E se mal conduzidos, seremos levados a caminhos perigosos, como o da criminalidade.

 

A arte possibilita a descoberta de aptidões e o adolescente acostumado a só ser repreendido, enfim, produzirá algo com sua marca pessoal aplaudido pela família, pela sociedade, tendo talvez, pela primeira vez na sua existência, a sensação de capacidade, reconhecimento, consideração e auto-estima, cujos efeitos benéficos são modernamente propalados como fatores de segurança nas relações pessoais, sociais e profissionais.

 

Por oportuno, cabe destacar que é cediço que a droga é má, traz conseqüências graves, mas dá um prazer, uma emoção passageira. Deste modo, a arte poderia substituir a droga, uma vez que proporciona emoção e entusiasmo.

 

Cite-se o comentário do autor Aristóteles que corrobora citada inferição a respeito das drogas:

 

[...] emoções de toda espécie são produzidas pela melodia e pelo ritmo; através de música, por conseguinte, o homem se acostuma a experimentar emoções; tem a música, portanto, o poder de formar o caráter, e os vários tipos de música, baseados nos vários modos, distinguem-se pelos seus efeitos sobre o caráter – um, por exemplo, operando a direção da melancolia, outra na da eliminação, um incentivando a renúncia, outro o domínio de si, um terceiro o entusiasmo, e assim por diante, através da série.[27]

 

 

Assim, a arte representa canal de oportunidades, concedendo uma visão transcendentes, atuando como meio de sustentação e equilíbrio.

 

Conclusão

 

A dignidade da pessoa humana reside, especialmente numa sociedade pluralista, no acesso ao sonho, na concessão de reais expectativas.

 

Na infância e juventude, o reconhecimento da dignidade afigura-se fundamental, pela condição que ostentam as crianças e os adolescentes de pessoas em desenvolvimento.

Ocorre que tamanha miséria e, conseqüente, exclusão social corrói o sonho, acentuando ainda mais a ausência de tudo.

 

Sobrevive-se em favelas ou cortiços, em meio à violência, corrupção, impunidade e extrema necessidade.

 

A cidadania é reduzida a toda sorte de transgressões aos direitos das crianças e dos adolescentes, marginalizando-os, reproduzindo o abandono já sofrido pela família.

A correção dessas violações deve efetivar-se por uma revisão de valores, principalmente da punição, que é tida como conseqüência inexorável da infração.

 

Justifica-se.

A punição não se mostrou eficaz como método de ressocialização. Se por um lado é certo que determinados ilícitos, pela gravidade e perversidade, impõe o encarceramento, igualmente é constatado que o castigo puramente não modifica o ser humano.

 

Pensar na sanção como método simplesmente punitivo, desprovido de sentido, é regredir, desacreditando no ser humano, conformando-se com um status social injusto, espelho de analfabetismo, desemprego e dor.

 

É esquecer que as pessoas não nascem nas mesmas circunstâncias, oportunidades, erigindo os homens em criminosos natos, na concepção tão criticada de Lombroso.

 

Ao contrário, acreditar na possibilidade de melhora, crescimento do se humano, especialmente pela concessão de oportunidades durante a infância e juventude, representa vislumbrar a existência de uma sociedade extremamente discriminatória, com pobres e ricos, bonitos e feios, saudáveis e aleijados.

 

Por acreditar na potencialidade do ser humano, é que a arte representa campo fértil de desenvolvimento das capacidades.

 

Exemplos relatam pessoas, como Caravaggio, François Vellon e Jean Genet, que encontraram na arte o caminho para não mais transgredir.

 

O fato é que a arte não limita, não reproduz discriminação, não conduz à perdas, mas sim constitui meio de descobertas de aptidões, sendo fator de segurança nas relações pessoais, sociais e profissionais.

 

Por derradeiro, insta destacar que a arte poderia contribuir até mesmo no combate às drogas, tendo em vista que também proporciona prazer e emoção.

 

Justamente pela intrincada e complexa composição do ser humano, produto das influências do meio, é que a sanção deve ser adequada, justa, buscando acrescentar valores ao ser humano.

 

Nesse sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente prima pela reeducação, mesmo nas medidas privativas de liberdade.

 

 

Notas

 

[1] DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 179.

[2] VIEIRA ANDRADE apud Mendes et al. ob. cit., p.115.

[3] MENDES et al. op. cit., p.116.

[4] SARLET apud  Mendes et al. op. cit., p.116.

[5] MENDES, et al. Op. Cit., p. 116. 

[6] SANCHIS apud  Mendes et al. op. cit., p.116/117.

[7] SILVA. op. cit., p.182.

[8] COSTA, João Batista da. Adolescente e ato infracional. Saraiva, 1999.

[9] CURY, Munir e outros. Estatuto da Criança e do Adolescente. 3ª ed., Malheiros, 2000.

[10] COLL, César; e TEBEROSKY, Ana. Ática, 2000.

[11] Ob.cit., p. 152.

[12] Idem, p. 22.

[13] Idem, p. 100.

[14] FERREIRA, Pinto. Princípios do direito constitucional moderno. T. I, p. 171. 

[15] Ob. cit., p. 181.

[16] SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Boletim do IBCCrim – Edição Comemorativa – outubro/2002.

[17] HOFMANN, Susy Gomes. Discriminação. www.google.com.br. 08.10.02. 

[18] OLIVEIRA, R.C.S. Filhos do (des)abrigo. http://www.google.com.br. 04.10.02.

[19] HOFFMANN, Ob. cit. 

[20] MIRANDA, Ana. Arte e Crime. Revista Caros Amigos. Ano VI,  nº 67,  p. 22, Outubro, 2002. 

[21] BALIERO, Adalgiza Campos. Ob., cit. 

[22] SARAIVA, João Batista da Costa. Adolescente e Ato Infracional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995.

[23] STJ no Recurso Ordinário em Hábeas Corpus nº 9.736-SP, em 11.02.2002. RT 800/552.

[24] Leo Gilson Ribeiro. Revista Caros Amigos. Ano VI, nº 67, p. 37, Outubro, 2002. 

[25] MENUHN, Ychudi apud  TAME, Davi. O poder oculto da música. 2ª ed., São Paulo: Cultrix, 1984. 

[26] COELHO,  João Gilberto Lucas apud Munir Cury e outros,  f. 21. 

[27] Aristóteles apud  Davi Tame. O poder oculto da música. 2ª ed., p. 19, São Paulo: Atrix, 1984.