"NORMA" E "DESVIO" NO COMPORTAMENTO DELINQÜENTE

 

 

Sara Cristina Martins Lopes

Mestre em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra

 

 

Quando foi solicitado o meu contributo para o Simpósio "Os Novos Caminhos da(s) Dependência(s) com o objetivo de participar na mesa redonda - "Norma" e "Desvio" em épocas de mudança - novos significados para conceitos tradicionais", senti muitas dúvidas não só quanto à vastidão do tema mas também no que se prende com o conteúdo e forma de apresentação deste trabalho.

 

Embora me sinta confortada, mais que confrontada pela companhia dos ilustres palestrantes que honram a minha presença nesta mesa redonda não posso deixar de pedir a vossa compreensão para a exposição que se segue e que intitulei "Norma" e "Desvio" no comportamento delinqüente.

 

Não sou especialista na matéria, e também não posso afirmar que a experiência acumulada neste domínio seja muita, por isso, a breve reflexão que vos vou transmitir é quando muito a prova que, também a nível acadêmico e cientifico, novos significados se anunciam e se impõem aos tradicionais.

 

Não será precisamente por isso que esta primeira mesa é constituída por especialistas de diversos domínios? Questiono-me no sentido de saber como poderá ser analisada a temática subjacente a esta mesa redonda, por cada um dos seus participantes.

 

Nesta sociedade de fim de século, novos paradigmas e significados se anunciam enquanto os tradicionais se equacionam e necessariamente têm que ser refletidos e reformulados numa ótica multidisciplinar.

 

É que, nesta área, talvez mais do que em qualquer outra, se tem muita importância o que cada um pensa mais importante parece ser definir em que qualidade e a que nível se pode intervir. Espero, então, que a minha intervenção seja tudo menos uma "torrente" de conceitos ou, muito menos, assuma um cariz dogmático e que se constitua, antes, numa exposição pragmática das dúvidas e reflexões que a elaboração da minha Tese de Mestrado me suscitou.

 

Assim, em relação à temática em causa a primeira constatação que posso apresentar é que desde os tempos mais remotos o que pode ser considerado "norma" e "desvio", ou mesmo "normal" e "patológico", é visto quase como um "mistério", dado que é difícil de limitar ou delinear.

 

Os critérios de "norma" ou "desvio" que uma determinada sociedade considera como adquiridos podem, de fato, acompanhar a cultura dominante numa determinada época histórica. A valorização dos próprios "sintomas" varia habitualmente, de continente para continente negando a sua uniformidade e muitas concepções do que pode ser considerado "normal" ou "desviante", vistas à luz do século passado, são diferentes das que atualmente norteiam o pensamento médico ou jurídico.

 

Neste sentido, o que muitos estudos antropológicos revelam é que no decurso dos séculos, e de civilização para civilização, tem havido alterações consideráveis nas fronteiras do que é designado delito, desvio, ou doença. O mesmo se verifica, aliás, com a fronteira do que pode ser considerado moral ou não já que algumas culturas permitem e encorajam formas de comportamento que outras condenam severamente.

 

Assim, o homicídio, especialmente por vingança, era freqüente em algumas sociedades antigas sem que se impusessem restrições penais a essa prática e o infanticídio era um acontecimento freqüente em alguns povos da Melanésia, da Índia e em várias tribos da África, América e Austrália, sendo mesmo em algumas culturas considerado um ato santificado pela religião.

 

Tal como sucede com o homicídio, também os atentados à propriedade alheia eram lícitos em algumas civilizações. Para o homem primitivo (por exemplo, entre algumas tribos da América, África ou Austrália) a noção de propriedade não existe. Por isso, o furto é considerado como um negócio legítimo, punindo-se somente aqueles que não o realizem com destreza.

 

Noutras culturas em que o papel da autoridade judicial é colocado em prática, mesmo sem códigos judiciais escritos, existem regulamentos e normas de conduta legais que se relacionam com a inviolabilidade dos direitos de propriedade e de vida humana.

 

Para estas sociedades a prática do crime corresponde, quase sempre, a um conflito de valores: por um lado, a vontade individual, por outro a vontade coletiva subordinada à lei, aos costumes; mas o que essencialmente caracteriza este gesto é o facto de lhe estar associada uma punição. Contudo, mesmo para esta punição não se pode considerar que haja um padrão universal que permita avaliar com que severidade é encarada a conduta em causa pelas diferentes culturas.

 

O termo "crime" não determina fatos definidos por uma lei absoluta e invariável, antes é um conceito social que tem evoluído no espaço e no tempo; a sua variabilidade encontra uma demonstração exemplar na evolução da legislação penal portuguesa em épocas sucessivas.

 

Na verdade, podemos afirmar que os conceitos sociais de criminalidade variam com o tempo e o lugar, pelo que a prática de um ato num determinado país e época histórica definida pode corresponder a uma certa repressão penal, enquanto noutras pode ser punido de uma forma diferente, ou mesmo nem sequer o ser.

 

Se os limites sociais, culturais e jurídicos do que pode ser visto como um ato desviante, criminal e delituoso são variáveis e evoluem de acordo com o próprio desenvolvimento cultural, também, numa perspectiva psicológica, se tem assistido à progressão conceptual do fenômeno desviante, que só por extensão se pode aplicar ao âmbito da Psicopatologia.

 

Focando somente a delinqüência juvenil verificamos que, pelo menos ao nível da conceptualização teórica esta poderá assumir um significado de relevo, a partir do momento em que for definida com clareza, não só em relação aos atos como também às motivações e organização psicológica do indivíduo que comete o ato delinqüente. No entanto, o que se verifica é que ao longo das gerações este conceito, apesar de valorizado, continua a permanecer ligado a noções de caráter estritamente jurídico, social e mesmo moral, deixando de lado, no essencial, a sua constituição como objeto de análise psicológica.

 

Se juridicamente a delinqüência é, tal como afirma S. RUBIN (cit. Ajuriaguerra, 1977), "o que a lei diz que ela é" e, numa perspectiva moral, um conceito variável que é influenciado por noções religiosas e sociais, na perspectiva sociológica relaciona-se com as normas sociais que permitem um determinado equilíbrio que é necessário manter no quadro da sociedade.

 

Neste sentido, podem ser considerados delinqüentes os indivíduos que transgridem regras e tabus, hábitos e costumes aceites, normalmente, sem contestação, pela maioria das pessoas e que variam segundo as sociedades e a evolução que lhes é inerente.

 

Uma das preocupações constantes dos criminologistas e de outros investigadores da área das Ciências Sociais foi e continua a ser a formulação de uma imagem que permita visualizar e categorizar a delinqüência.

 

Com base nos dois campos de referência subjacentes às definições que normalmente são utilizadas nos estudos sobre delinqüência, isto é, o quadro jurídico-legal e o do comportamento desviante ou antinormativo, é freqüente distinguir-se delinqüência feminina e masculina, os verdadeiros e os falsos delinqüentes e, ainda, a delinqüência "oficial" por oposição aquela que é designada por latente e real.

 

A delinqüência começa por ser analisada como uma ruptura das estruturas relacionais do indivíduo com o meio, o que leva o delinqüente, primeiro na família depois já durante o período escolar, a apresentar prova das suas tendências anti-sociais que parecem ter como único objetivo, nesta fase, chamar a atenção dos pais e dos professores e como tal, são o sinal de uma perturbação profunda da afetividade.

 

Este fenômeno que começa a manifestar-se com maior acuidade na idade escolar, não é mais do que o eclodir de um comportamento que evoluiu a partir da infância e que se manifesta inicialmente por mentiras, roubo, procura de objetos para destruir onde aparece sob a forma da desordem, da violência e das condutas destrutivas e evolui com freqüência para a expressão da mesma tendência no grupo de pares.

 

Na origem de uma compreensão global desta problemática está a necessidade de um entendimento, também global, das explicações:

 

- por um lado, a sociologia aponta a influência nefasta do meio. As teorias sociológicas da criminalidade descrevem o delinqüente como um ser individual, uma pessoa que tem uma hereditariedade, uma educação, e que vive num meio cujas condições o orientam para o agir de tendências hereditárias ou adquiridas e onde as circunstâncias possibilitam a ocasião de "passagem ao ato".

 

- por outro lado, a psicologia baseia-se em fatores relacionados com a qualidade da relação maternal estabelecida na primeira infância. Só assim será possível apreciar e reconhecer, na criança e no adolescente, os sintomas constatados, o que é importante, porque eles vão determinar a qualidade da "passagem ao ato" e podem conduzir ao risco da reincidência.

 

Os estudos psicanalíticos demonstram a importância do papel da mãe junto do recém-nascido e valorizam as conseqüências, muitas vezes longínquas, de uma carência maternal durante a primeira infância. A ausência ou carência da mãe é tida como causa remota das perturbações de comportamento do adolescente. Quanto aos estudos que colocam em destaque o papel do pai, estes valorizam a sua opinião, ou constrangimento, aos movimentos de autonomização do jovem em busca da sua própria autonomia.

 

Mas o que é a Delinqüência? O que é ser Delinqüente?

 

Por definição jurídica, delinqüente é o indivíduo que delinqüiu, ou seja, que é culpado por uma infração à lei penal, um delito, um crime que pode assumir, entre outros, a forma de roubo, homicídio ou de um ato violento.

 

Delinqüir, derivado etimologicamente do verbo latino Delinquere, significa originalmente "cometer falta, pecar, errar", o vocábulo delinqüência deriva também do latim Delinquentia que significa "delito" (Machado, 1977).

 

"Delinqüência" e "delinqüir" apresentam-se, então, com um duplo significado, o jurídico-legal e o psicológico.

 

Assim, numa perspectiva jurídica e técnica, só é considerado delinqüente o indivíduo que infringiu a lei, isto é, que cometeu um delito. As leis que definem a delinqüência, bem como a apreciação do delito são, como referimos acima, específicas de cada país e o modo como se rege o seu sistema judiciário reflete-se não só na avaliação das infrações, como na sua penalização.

 

A concretização do delito, como é óbvio, faz ascender à lei ao domínio da sua aplicabilidade prática e visível, na punição de quem o cometeu.

 

Numa perspectiva psicológica, transgredir a lei, é segundo R. Paixão:

 

"em certo sentido uma tarefa de crescimento, normativa e que se consubstancia nos processos mentais criativos e, por isso, na maturidade positiva dos indivíduos e dos grupos" (cit. Paixão, 1991).

 

Podemos, então, concluir que o termo delinqüência dever ser entendido como sinônimo da existência de duas vias diferentes embora complementares.

 

Esta perspectiva influencia a discussão do conceito de delinqüência e influência as práticas propostas para a sua abordagem psicossocial.

 

Assim, a utilização jurídica do termo delito contribui para que, na perspectiva psicológica, se empreenda uma análise dos comportamentos desviantes, enquanto que a perspectiva sociopsicológica, ao abordar o indivíduo e o meio social, possibilita que juridicamente se abandone uma visão estritamente penal, repressiva e punitiva, em detrimento da abordagem preventiva e reeducativa.

 

A dificuldade reside, tal como refere PAIXÃO (1991), no modo de "operacionalizar numa perspectiva psicológica o delito com o significado de desvio, ou ainda, como se poderá falar em psicologia da delinqüência juvenil sem pervertermos a especificidade do seu discurso", uma vez que o comportamento adolescente é muitas vezes visto como um comportamento preenchido por pequenos delitos.

 

Deste modo, a delinqüência refere-se a comportamentos desviados, "comportamentos problemáticos" (Debuyst, 1983), ou seja, antinormativos em relação à norma estabelecida pelo grupo e, como tal, considerados ameaçadores para esse mesmo grupo.

 

Ao considerarmos, porém, os comportamentos desviantes é necessário levar sempre em linha de conta que na perspectiva jurídica, nem todo o ato desviante é delito. Assim como no âmbito psicológico nem todo o delito é um ato desviante. Assim, a transgressão da norma não define de per si o crime nem o desvio, porque os atos nunca são percebidos do mesmo modo e porque nem todos os atos antinormativos são ilegais ou desviantes. Dado que estamos inseridos numa realidade social é compreensível que não descuremos as noções socio-jurídicas e não nos limitemos à simples constatação do ato, mas antes, estejamos atentos para as motivações e ao contexto psicossocial em que o mesmo se desenvolveu.

 

De um ponto de vista psicopatológico a compreensão do comportamento delinqüente, quer em termos de normalidade quer de patologia, remete-nos, em primeiro lugar, para a compreensão da adolescência, com a reflexão conseqüente e o presente que subjazem ao projeto de futuro.

 

Esta concepção permite elaborar uma imagem da adolescência que se caracteriza por perturbações e inadaptações transitórias, mas necessárias ao desenvolvimento. A sua ausência que então é entendida como sinal de consolidação prematura do Eu, ou é considerada como sinônimo de um prognóstico desfavorável para o equilíbrio futuro da personalidade.

 

Verifica-se que à adolescência não só está subjacente a idéia de ruptura, mudança brusca e súbita no desenvolvimento que pode conduzir o indivíduo a modificações comportamentais, no modo de pensar e nas representações de si, como também lhe está associada um caráter patologizante. A noção de perturbação do funcionamento psicológico implica mal-estar, sofrimento, angústia, ou seja, uma série de dificuldades que provocam incapacidades na vida quotidiana semelhantes às perturbações neuróticas.

 

Se é certo que não existe nenhum argumento que permita relacionar o processo maturativo da adolescência com "doença", estamos convictos que existem situações psicopatológicas que estão mais relacionadas com fenômenos psicossociológicos, isto é, são mais determinadas por acontecimentos de ordem social, que se vão refletir no indivíduo a nível psicológico, do que, propriamente, com o tipo de organização/ estrutura da personalidade.

 

Recordamos que às formas de inadaptação psicossocial, descritas após a sua manifestação como um ato inadequado no quadro de uma determinada socialização, é atribuído um valor patogênico diferente, de acordo com as classificações existentes e com o modo como os diversos autores as abordam.

 

Por outro lado, se para a generalidade dos autores os distúrbios da personalidade do adulto têm a sua origem na infância, sabemos que é difícil aplicar às crianças as mesmas normas que ao adulto. De fato, a noção de inadaptação comportamental tem um sentido diferente se se tratar de uma criança ou de um adulto, uma vez que a descrição de certos distúrbios do modelo de personalidade impõe que o seu diagnóstico só seja elaborado com a aproximação da idade adulta.

 

Por tudo isto, torna-se oportuno estabelecer a distinção entre modo de funcionamento psicopatológico na infância e na adolescência e estrutura patológica na idade adulta: a primeira refere-se a condições de crescimento biopsicossocial que possibilitem o desenvolvimento da personalidade; a segunda relaciona-se com o culminar da construção da personalidade adulta propriamente dita.

 

Se é certo que alguns comportamentos na adolescência podem estar relacionados com uma patologia específica, também há outros que surgem subitamente. Certas "anomalias" da personalidade reúnem, em dimensões variáveis, um sujeito a outro pelos sintomas que apresentam: inadaptação à vida social, instabilidade comportamental, facilidade na "passagem ao ato" associada eventualmente, a perturbações diversas (depressão, comportamento toxicodependente).

 

Este grupo de "casos difíceis" levantam problemas consideráveis não só do ponto de vista médico-legal, como também da compreensão psiquiátrica. Os problemas que se colocam na fronteira entre a Psiquiatria e a Criminologia devem ser abordados com a descrição das perturbações observadas de modo a compreender a sua natureza e detectar em que medida se distinguem das estruturas neuróticas ou psicóticas mais habituais.

 

A dificuldade em determinar critérios de definição para esse conjunto de casos reflete-se, ainda, na inexatidão da terminologia utilizada.

 

Cabe, neste contexto, frisar a diferença entre a delinqüência juvenil, como entidade mórbida, e as perturbações de comportamento, uma vez que a confusão entre ambas pode acarretar conseqüências nefastas para o desenvolvimento dos jovens.

 

Torna-se, pois, imprescindível o conhecimento do patológico para penetrar nos mecanismos psicológicos normais, uma vez que é pelo estudo da estruturação do funcionamento mental que se pode avançar no estudo da mente saudável.

 

Assim sendo, delinqüência e criminalidade não deverão ser considerados radicalmente atos diferentes dos outros atos humanos, mas devem, outrossim, conduzir a um estudo aprofundado, no quadro de outras perturbações da conduta que a Justiça não conhece que interferem, de modo passageiro ou prolongado, com mecanismos de adaptação da criança ou adolescente ao seu meio.

 

E isto, mesmo quando englobamos estas condutas no quadro da "personalidade anti-social" que, no nosso ponto de vista, se encontra na charneira entre a marginalidade, a imaturidade e a instabilidade psicoafetiva, o que deverá fazer imperar uma compreensão sóciopsicológica, psiquiátrica e mesmo psicanalítica do mal-estar existencial que a elas subjaz.

 

Torna-se assim, em nosso entender, útil realizar uma sinopse rápida do que sobre esta temática é conhecida, a partir da pesquisa por nós efetuada no quadro do trabalho de Mestrado.

 

Assim:

 

1º a análise do problema da Delinqüência Juvenil privilegia estudos que abrangem o exame psicossociológico, numa visão dinâmica e multifacetada;

 

2º Pensar em delinqüência exige, cada vez mais, a capacidade de operacionalizar as diferentes conceptualizações que lhe estão subjacentes, por isso, preferimos utilizar o termo Delinqüências em vez de Delinqüência;

 

3º A(s) Delinqüência(s), nas suas diferentes formas, podem conduzir-nos à elaboração de um pensamento que conceba a existência de um "continuum" patológico (que pode constituir-se entre dois pólos: a psicopatia e a neurose) que vai introduzindo, nestas condutas variações diferentes em grau e qualidade;

 

4º A Delinqüência Juvenil como forma de ruptura das estruturas relacionais do indivíduo com o meio social e familiar pode apresentar-se sob várias formas de inadaptação, consoante o quadro sócio-cultural e a perturbação do funcionamento mental que lhe subjaz;

 

Esta inadaptação não depende somente das características internas do indivíduo (desenvolvimento/organização psicológica), mas também da influência do exterior, podendo admitir-se a existência de situações psicopatológicas relacionadas e determinadas por fenômenos psicossociológicos;

 

5º Se é através das diferentes formas de manifestação da conduta delinqüente que o indivíduo se exprime, pensamos que esta não deve ser separada de outras perturbações que, de modo passageiro ou não, conduzem a inadaptações da criança ou adolescente ao seu meio (familiar e social).

 

Salientamos, em particular, os estudos que abordam o papel da interação precoce, das dificuldades de interiorização de um bom objeto interno e da perturbação dos processos identificatórios (principalmente os secundários).

 

6º Na dinâmica da Delinqüência Juvenil, como de todas as perturbações do comportamento, está subjacente uma ansiedade, um sofrimento profundo resultante de um conflito afetivo, não só do sujeito consigo próprio como também com o meio familiar e sócio envolvente. Assim, a análise psicossocial da Delinqüência Juvenil deverá orientar-se para a leitura das realidades e ambientes que a envolvem, sem esquecer o afeto depressivo que normalmente lhe subjaz e que estas condutas podem ser a expressão visível (exteriorizada),

 

7º Quanto às diferentes formas de expressão das perturbações do comportamento, elas evidenciam-se, na maior parte das vezes, após o início do período escolar, em manifestações como a mentira, o roubo, as fugas, que persistem na adolescência no seio do grupo de iguais sob a forma de comportamentos desordenados, da violência, agressão, furtos de maior envergadura, tráfico e/ou consumo de estupefacientes.

 

Estas condutas, então, revelam uma profunda perturbação das identificações e uma distorção grave dos laços familiares e sociais que dificultam os processos de aprendizagem.

 

É para estes indivíduos com uma sucessiva história de privações nos planos real e simbólico, que o Estabelecimento Prisional pode surgir numa fase precoce da sua trajetória pessoal. Para muitos será o "refúgio", ao qual certamente voltarão, como um filho que regressa ao lar, porque é do "lado de lá" que encontraram proteção. Para outros é a possibilidade de restabelecerem o contacto perdido com a família.

 

A atitude dos pais em face das sucessivas privações de liberdade dos seus filhos mostra indiretamente a má qualidade do seu investimento afetivo e a distorção das relações interpessoais no seio destas famílias. Por isso, o jovem num "último grito" de raiva apela, algumas vezes, ao Estabelecimento para que chame a si os progenitores que, de um modo real ou simbólico, estiveram ausentes das fases mais significativas do seu desenvolvimento.

 

(E para nós, que tivemos a percepção destas vivências, foi notório num grande número de casos em que, pelo menos, o reencontro físico com os progenitores ocorre todos os fins de semana (esperamos que o afetivo também). Aqueles passam a telefonar e visitar regularmente o filho (primeiro a mãe e só depois o pai e os irmãos). E estes vêm carregados não só de produtos alimentares suplementares para os filhos, mas também "sobrecarregados de esperanças" ou das palavras dos advogados ou do antigo patrão que ainda está disponível para aceitar o filho quando sair em liberdade).

 

Estes jovens "privados de liberdade" não se identificam a nenhum grupo formal (exceto em caso de ameaça) no interior do Estabelecimento Prisional, apesar da maior parte pertencer a um grupo de trabalho ou mesmo desportivo.

 

Quando chegam ao "regime aberto" a palavra de ordem é para estes jovens preparar o regresso ao meio familiar e social. É certo que as ocupações profissionais no Estabelecimento só têm como função "ocupar o tempo" e estão muitas vezes distante da realidade do meio em que vivem. Alguns adquirirão competências para ultrapassar os obstáculos, outros, talvez, a maior parte não! Tanto mais que as suas frágeis trajetórias de vida se inscrevem numa sociedade cuja norma é a obtenção do sucesso a todo o custo.

 

Desde bem cedo, marcados pela predominância de fenômenos constantes de mobilidade e precariedade na esfera familiar e sócio-profissional estes adolescentes ou jovens adultos partem numa posição desfavorável para esta nova etapa da sua vida.

 

Não podemos, assim, nem como profissionais vocacionados para o trabalho nesta área, nem como cidadãos, deixar de nos comprometer no esforço de intervenção nesta problemática humana e social tão exigente.

 

Pensamos, por isso, é necessário que se pugne pela elaboração, estruturação e implementação de uma política específica de prevenção da delinqüência em Portugal que permita romper este ciclo infernal da privação afetiva, violência e criminalidade.

 

Finalmente, se é certo que se tornar adulto, crescer numa sociedade em mutação é algo que "magoa" porque faz imperar a necessidade de refletir, pensar e sentir, não é menos certo que nos cabe a nós profissionais responsáveis e cidadãos conscientes do nosso papel na polis, contribuir para que os filhos da privação adquiram as competências para se tornarem capazes de ser, eles próprios, pais de filhos saudáveis e equilibrados do ponto de vista afetivo e social.

 

NOTA SOBRE O AUTOR:

Sara Cristina Martins Lopes, Mestre em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra - Tese «OS FILHOS DA PRIVAÇÃO» - Trabalho que focaliza as privações psicossociais na primeira e segunda infância e o evoluir para a patologia deliqüencial. Secretária da Vice-Presidência da Academia Internacional de Psicologia sediada no Instituto Superior Miguel Torga em Coimbra. Docente na Categoria de Assistente, exercendo as funções de Assessora para a Área de Formação Permanente do Instituto Superior Miguel Torga de Coimbra. Presidente do Centro de Estudos Psicossocias do Instituto Superior Miguel Torga de Coimbra.