O SERVIÇO DE EDUCAÇÃO SOCIAL DE RUA  ENQUANTO CATEGORIA DE MEDIAÇÃO ENTRE O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO DESEJO DE SAÍDA DE RUA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DO MUNICÍPIO

 

 

Lisete da Rosa*

Marizete Veloso*

Samanta Franskoviak*

Soraia Nicolaidis*

Magda Martins Costa**

 

 

Introdução

 

Um expressivo número de crianças e adolescentes fazem da rua espaço de moradia ou sobrevivência. Refletem a face desse nosso Brasil REAL, onde a concentração de renda agrava a pobreza absoluta produzindo uma maior exclusão social.

 

Exploradas pelo trabalho precoce, crianças e adolescentes trabalham, crescem e convivem com todo o tipo de violência a que estão expostos. Suas falas são reveladoras da dor gerada pela discriminação, pela humilhação e até mesmo por posturas de piedade e assistencialismo, fruto do senso comum da população.

 

Outras convivem com a dor da sobrevivência, construindo na rua seu espaço de moradia. Passam a criar e recriar estratégias de ação, para através do sentimento de “compaixão” obterem o direito básico de todo o cidadão: o direito de poder ao menos sobreviver.

 

A proposta desse trabalho representa um esforço de reflexão teórica da Equipe Técnica do Serviço de Educação Social de Rua sobre a Prática cotidiana de seus profissionais. Busca reconhecer o Serviço de Educação Social de Rua (SESRUA) enquanto categoria de mediação entre: a construção do desejo de saída da rua de crianças e adolescentes que fazem das ruas de Porto Alegre espaço de moradia e/ou sobrevivência, e o processo de inclusão nas Políticas Públicas do município.

 

Os textos que compõem este artigo passam por uma construção conjunta entre profissionais do Serviço Social e da Psicologia, tendo entre si o enfoque principal da reflexão do Serviço enquanto Categoria de Mediação. A temática abordada procura destacar, embora de maneira muito sintética quatro itens importantes em nossa reflexão: a construção do vínculo, a categoria da mediação, o SESRUA e as Políticas Públicas e o Processo de Inclusão nas Políticas Públicas como instrumento de construção da saída da rua.

 

 

Processo de Vinculação - A Construção do desejo de saída da rua

 

A práxis da equipe do SESRUA encontra-se calcada, nas abordagens, nos acompanhamentos realizados, principalmente na construção do vínculo com a criança ou adolescente em situação de rua. Vínculo esse que se procura construir e estabelecer não só com a criança, o adolescente abordado, atendido, mas, também com sua família, com as instituições que o atendem como a escola, os centros comunitários, o conselho tutelar entre outros. E que ao ser estabelecido poderá proporcionar uma maior interação nos encaminhamentos propostos.

 

Vínculo possui em sua origem latina a idéia de laço, proporciona que o sujeito entre em relação consigo mesmo - vínculos internos; e, em relação com o meio, com os outros -vínculos externos. Pichon-Rivière [1]  entende o vínculo como uma estrutura dinâmica em contínuo movimento, que funciona acionada por motivações psicológicas, da qual resulta determinada conduta, que tende a se repetir tanto na relação interna como na relação externa com o objeto. Para esse autor, a aprendizagem da realidade, anteriormente ocorrida, da realidade interna estabelecida entre o sujeito e seus objetos internos. Desta forma os vínculos internos e externos encontram-se em um contínuo processo de integração, podendo se considerar que o vínculo interno é o que condiciona muito dos aspectos externos visíveis da conduta do sujeito. Pois, em cada ação, em tudo o que comunica, qualquer relação que ele possa a vir estabelecer vai sempre estar marcada por sua história.

 

Desta forma, a conduta não depende somente do organismo e do meio, mas da interação entre ambos. Por meio da interação leva-se em conta a ação do meio sobre o sujeito, bem como a ação desse sujeito sobre o meio, em uma contínua espiral dialética.

 

Na prática diária do SESRUA, na abordagem, nos acompanhamentos realizados a determinada criança ou adolescente, na medida em que o educador social vai aproximando-se, vai observando, desde os primeiros contatos estabelecidos, como estão se configurando as relações daquele sujeito com seu meio, consigo mesmo. Ele está em grupo ou isolado; fala de si, da família ou não; quais as condições dos cuidados consigo, nas roupas, de seu corpo; se está agitado ou não; se faz uso de substâncias psicoativas ou não, enfim, como se manifesta, como ele se comunica, como ele se relaciona. Pois, através do vínculo toda a personalidade do sujeito se comunica, sendo fundamental que seja considerado no processo interacional tanto a comunicação verbal, como a linguagem pré-verbal, através dos gestos e das atitudes.

 

O educador social pode abordar uma criança ou adolescente de diversas maneiras, no entanto, essa aproximação possui um contexto determinado, que será dado não só pelo meio externo, pela situação atual, mas também pelo contexto interno, que tem sua própria história, que traz a marca das experiências vividas. Assim, procura-se levar em conta, nas abordagens e acompanhamentos realizados, a relação estabelecida entre os sujeitos nela envolvidos, que por meio da comunicação e interação, verbal ou não verbal, poderá modificar o campo de atuação, levar a que se pense neste ou naquele encaminhamento.

 

Partindo do pressuposto de que todo observador é sempre participante e modificado do campo de observação, pode-se pensar que o educador social participa e com isto abre possibilidade de modificar o campo no qual atua, na medida em que é criada uma situação de interação, entre ele e a criança ou adolescente que está sendo abordado.

 

Este espaço incipiente, em que o educador afeta e é afetado pelo que está ocorrendo naquele momento, com aquele determinado sujeito, por vezes possibilita que ao ser olhado, escutado, aquela criança ou adolescente também se escute, se “reconheça”, e que retome algumas ligações consigo e com os outros. Proporciona-se, desta forma, que possam ser conhecidos e quem sabe retomados estes vínculos anteriores, com melhor possibilidade de resolução quando o sujeito participa mais ativamente do processo. A construção do desejo passa pelo reconhecimento de si e do outro, por uma interação interna e externa.

 

 

SESRUA - Categoria de Mediação

 

Com a implantação do ECA, as instituições foram chamadas a um reordenamento para adequá-las à proposta de atenção integral às crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Desse modo, percebemos que o SESRUA – Serviço de Educação Social de Rua tem como atribuição mediar o processo de saída da rua de criança e adolescente e a sua inclusão em todas as políticas públicas, que garantam esses direitos.

Mediação[2]  pode ser descrita como um processo no qual uma terceira pessoa, o mediador, auxilia os participantes na resolução de uma disputa ou conflito e para isso existem muitos passos até que se atinja o objetivo final. Martinelli[3]  aponta que as mediações são categorias instrumentais do modo dialético, através das quais se processa a operacionalização da ação profissional. É a passagem da teoria para a prática e se processa através do conjunto de instrumentos, recursos, técnicas e estratégias pelos quais a ação profissional ganha operacionalidade e concretude.

 

Pontes[4]  percebe a categoria de mediação como central da articulação entre as partes de uma totalidade complexa, sendo responsável pela possibilidade da passagem entre o imediato e o mediato. Faleiros[5] afirma que, intervenção consiste na articulação combinada de trajetórias e estratégias de ação de diferentes atores que se entrecruzam num conjunto de saberes e poderes. São estratégias de fortalecimento dos sujeitos da ação e são mediações de relações complexas, gerais e particulares, que implicam tanto os sujeitos quanto os espaços em que vivem. Desse modo, operamos no fortalecimento da cidadania, mediando as relações entre o Estado e a sociedade. Isto se percebe no processo de intervenção enquanto busca de acessibilidade, apoio, proteção e inclusão das crianças e adolescentes em todos os processos de defesa de seus direitos. Também trabalhamos no fortalecimento de sua identidade, na superação das discriminações, na construção da auto-estima.

 

Nosso fazer diário consiste em uma práxis, onde as ações são permanentemente avaliadas e refletidas para tornar a prática cada vez mais resolutiva e compromissada com nossos objetivos. Isto denota constante empenho e integração de todos na equipe, na medida em que é preciso um trabalho coletivo e maduro, calcado no vínculo, na atenção e no cuidado com nossas crianças e adolescentes.

 

 

O SESRUA e as  Políticas Públicas

 

Para decifrar um pouco mais a amplitude do Serviço de Educação Social de Rua é preciso reconhecê-lo dentro do amplo contexto da busca de consolidação dos direitos sociais, referenciando tanto a ampla mobilização consciente de romper com o ciclo de exclusão social, onde se fortalece a sociedade dos sem: sem casa, sem escola, sem família...como o desafio de mediar o pensar e repensar a Política de Assistência Pública de Assistência Social.

 

Temos vivido num cenário conjuntural e estrutural onde as Políticas Públicas têm sido muitas vezes entendidas e adotadas como mera concessão de escassos recursos sociais para melhoria do bem estar social da população, traduzindo-se assim em políticas de caráter compensatório e paliativo, com o objetivo exclusivo de corrigir desigualdades produzidas pelo mercado.

 

Surge neste cenário a necessidade de se situar a política de Assistência Social em um processo de totalidade onde se firma e se estabelece a relação com as demais políticas públicas: saúde, educação, habitação...onde a proposta de inclusão social supere a lógica de programas fragmentados institucionalmente.

 

“Além da dispersão e fragmentação que atingem os programas sociais do governo federal, eles operam com o princípio da focalização, como se a pobreza fosse residual. Para enfrentar a questão social no Brasil e reverter esse quadro, é necessário um movimento duplo: rever o modelo de desenvolvimento adotado e implementar uma nova geração de políticas públicas de inclusão social de caráter universal e sem fragmentação. É necessária, portanto, uma ação coordenada dos programas e das políticas, modificando a lógica setorializada e departamentalizada, que tem alto custo com os meios e baixo retorno nos fins. Para tanto, são imprescindíveis: a definição de uma nova concepção de gestão administrativa intersetorial, criando-se um Conselho de Desenvolvimento Social, e o estabelecimento de metas sociais que sejam acompanhadas, avaliadas e tenham um sistema de incentivos”. (Programa da Coligação Lula Presidente – Políticas Publicas – 2002).

 

 

Processo de Inclusão nas Políticas Públicas - Prática Cotidiana

 

Os educadores sociais deparam-se, no cotidiano da prática, com situações que denunciam a exclusão social e a violação de direitos de crianças e adolescentes. São situações que apontam a privação dos direitos mais básicos: alimentação, saúde, educação, lazer, condições de moradia dignas, e até mesmo o direito de desfrutar a vivência familiar. A busca da rua se dá enquanto estratégia de sobrevivência. São meninos e meninas que buscam uma forma de contribuírem para a renda familiar, mas mantêm vínculos comunitários, ou enquanto espaço de moradia quando os vínculos familiares apresentam-se extremamente frágeis.

 

Quando nos é solicitada a “retirada” das crianças e adolescentes dos locais públicos, quando a população fecha os vidros dos seus carros ignorando seres que se arriscam no trânsito para driblarem a miséria, fecham-se os olhos para uma sociedade injusta, onde crianças levadas a esmolar, trabalhar, buscar formas de acessar o que a mídia oferece, quando deveriam estar brincando, estudando, enfim, sendo crianças!

 

 Neste sentido, a prática do educador de rua implica em ir além da identificação de uma situação de violação de direitos, e do reconhecimento desses sujeitos a partir da construção de sua história de vida. O desafio da inclusão é entender sua linguagem, vê-lo de forma integral, traduzindo a realidade da rua, aproximando-se deste universo. Implica em estabelecer-se enquanto referência para este sujeito, mediar o resgate dos seus direitos básicos através da Inclusão nas Políticas Públicas e acesso aos serviços destinatários.

 

Nesta perspectiva, encaminha-se as famílias de crianças e adolescentes em situação de rua para avaliação de ingresso em Programa de Apoio e Proteção à Família. As famílias são acompanhadas dentro da região de origem, busca-se fortalecimento dos vínculos afetivos e comunitários. Porém, entende-se que a situação de rua é bastante complexa, e que o tempo e a forma de acompanhamento dos Programas muitas vezes são insuficientes, para incidir sobre a situação. São famílias com vínculos tênues, em situação marginal quanto ao acesso a bens e serviços a ao efetivo uso de seus direitos de cidadania.

 

Desta forma, incidir sobre a situação de rua exige que se ultrapasse a visão de que a Assistência Social é capaz de dar conta, sozinha desta complexidade, e entendê-la enquanto travessia entre as demais Políticas Públicas. Pensar a inclusão destes sujeitos é pensar em planejamento familiar, é pensar educação de qualidade, é pensar em moradia digna, em tratamento para dependentes químicos, pensar em espaços de cultura e lazer dentro das comunidades que sejam mais atrativos que a rua.

 

“Para que as necessidades da criança e adolescente sejam de fato incorporadas como Políticas Públicas, é necessário que tanto o governo como a sociedade civil construa uma pauta de inclusão dessas necessidades. Enquanto o Estado conta com uma organização, um aparato técnico para analisar esta pauta, a sociedade civil precisa organizar-se para tal e ter uma competência e consistência que lhe dê estatuto de interlocutor. O desafio é fazer com que a sociedade civil construa este estatuto”. (SPOSATTI, p.104).

 

É necessário ultrapassar ações de caráter compensatório e fragmentado e investir em Políticas Públicas efetivas e de articulação permanente. Pensar a inclusão destes sujeitos significa,também, pensar o modelo de sociedade que aspira, e difundir a concepção de que a criança e adolescente são sujeitos de direitos, sendo tarefa de toda sociedade garantí-los.

 

 

Conclusão

 

O Serviço de Educação Social de Rua desde sua ampliação vem se constituindo categoria de mediação por sua atuação de interlocução articulada a outras secretarias do município, buscando o enfrentamento da situação de rua vivida por crianças e adolescente em busca de garantia de inclusão social nas Políticas Públicas.

 

Entretanto, deseja-se que a produção dessas Políticas Públicas se dê a partir da visão de crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direito, rompendo assim com aquela concepção historicamente construída, onde crianças e adolescentes eram vistas como necessitadas de ações tuteladas e fragmentadas do Estado.

 

Fica o desafio de avaliar os impactos e a eficiência dos programas de enfrentamento na situação de rua, adotados pela Política de Atendimento à criança e ao adolescente, tentando decifrar quais as alternativas cabíveis e viáveis para tornar crianças/adolescentes e suas famílias protagonistas de sua própria promoção e inclusão social.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

FALEIROS, Vicente de Paula. O paradigma de correlação de forças e estratégias de ação em serviço Social – In Cadernos Técnicos do SESI – n. º 2.

 

HAYNES, John M. Fundamentos da mediação familiar. John M. Haynes e Marilene Marodin. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

 

 MARINELLI, Maria Lúcia. Notas sobre mediações: alguns elementos para sistematização da reflexão sobre o tema. Revista Serviço Social e Sociedade n. º 43.

 

O ESTADÃO. Artigo: Programa de Governo da Coligação Lula Presidente-Presidente, Política Publicas, 2002.

 

PONTES, Reinaldo Pontes. A categoria de mediação em face do processo de intervenção do Serviço Social – In: Cadernos Técnicos SESI – n. º 23.

 

PICHON-RIVIÈRE, Enrique. Teoria do Vínculo. SP. Martins Fontes, 1991.

 

SPOSATTI, Aldaíza Sposati. Os desafios da municipalização do atendimento à criança e ao adolescente: o convívio entre LOAS e o ECA. In: Revista Serviço Social e Sociedade, n° 46, ano XV, dezembro 1994.

 

 

NOTAS

 

*Assistentes Sociais/ESR

 

**Psicóloga/ESR

 

[1] PICHON RIVIÈRE, Enrique. Teoria do Vínculo. SP. Martins Fontes, 1991.

 

[2] HAYNES, John M. Fundamentos da mediação familiar /John M. Haynes e Marilene Marodin. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

 

[3] MARINELLI, Maria Lúcia. Notas sobre mediações: alguns elementos para sistematização da reflexão sobre o tema. Revista Serviço Social e Sociedade nº 43.

 

[4] PONTES, Reinaldo Pontes. A categoria de mediação em face do processo de intervenção do Serviço Social – In Cadernos Técnicos SESI – nº 23.

 

[5] FALEIROS, Vicente de Paula. O paradigma de correlação de forças e estratégias de ação em serviço Social – In Cadernos Técnicos do SESI – nº 23.