CONSIDERAÇÕES
SOBRE A ILEGITIMIDADE DE PARTE ATIVA DO CURADOR ESPECIAL NAS AÇÕES DE
DESTITUIÇÃO DO PÁTRIO PODER E DA ILEGALIDADE DE SUA NOMEAÇÃO POR PARTE DO JUIZ
DA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Aparecida Maria Valadares da Costa Gonçalves
Promotora
de Justiça Cível do Jabaquara-SP.
Alcides Malossi Junior
Promotor de Justiça
Cível do Ipiranga-SP.
Causa preocupação, hoje,
a questão sobre ser, ou não, o curador especial parte legítima para figurar no
pólo ativo das ações de destituição do pátrio poder, bastante comum nas causas
afetas ao Direito da Infância e da Juventude, em face da existência de casos
concretos na Comarca de São Paulo, em que referidos curadores são nomeados
através do Juízo da Infância e da Juventude para tal desiderato. Trata-se de
questão de cunho prático, a exigir solução adequada, no dia a dia forense e que,
de certa maneira, também guarda relação direta com as atribuições da Promotoria
de Justiça da Infância e da Juventude.
A nossa posição é que,
em tais hipóteses, deverá o curador especial ser considerado carecedor de ação,
com o reconhecimento da ilegitimidade de parte ativa, sendo patente a
ilegalidade de dita nomeação por Juiz de Direito.
Como aqui se fala em Vara da Infância e da Juventude, é
certo que a criança/adolescente, cujos pais se pretenda destituir do pátrio
poder, deve estar em situação de desrespeito ou mesmo ameaça aos seus direitos,
causados por aquelas expressas condições indicadas no artigo 98, incisos I a
III da Lei Federal nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Caso diverso é o do pai
ou mãe que venha assistindo devidamente o filho, e pretenda eventual
propositura de ação contra o outro, que deverá correr, então, em Vara de
Família e Sucessões, consoante expressamente dispõe o artigo 148, parágrafo
único, letra “b”, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Embora a discussão
do tema sirva para ambas as hipóteses, nestas breves notas iremos nos ater à
nossa área de atuação da Infância e Juventude.
Existindo procedimento
da esfera da Infância e da Juventude, é obrigatória a intervenção do Ministério
Público, sob pena de nulidade, conforme expressa determinação de Lei Federal
(Artigos 202 e 204 do Estatuto da Criança e do Adolescente).
É importante essa
indicação sobre a obrigatória intervenção do Ministério Público, porque o
Promotor de Justiça é um dos legitimados para a propositura da ação de
destituição do pátrio poder, como se vê da legislação:
“o procedimento para a
perda ou a suspensão do pátrio poder terá início por provocação do ministério
público ou de quem tenha legítimo interesse” (artigo 155 do Estatuto da criança e do
adolescente).
A lei é clara no que
tange a questão da legitimidade: - quem poderá dar início ao procedimento com o
fim de promover ação para a perda ou suspensão do pátrio poder é o Ministério
Público e “quem tenha legítimo interesse”.
Ninguém mais pode provocar o início dessa ação.
Assim é que, além do
Ministério Público, possibilitou o legislador federal que terceiro, detentor de
legítimo interesse, pudesse dar início ao procedimento contraditório,
exigindo-se, para tanto, um interesse qualificado que, certamente, na hipótese
ora analisada, não pode ser alcançado por curador, especialmente nomeado para
tal fim.
Nesse sentido, é a orientação doutrinária do culto Promotor de Justiça, José Luiz Mônaco da Silva, que, ao comentar o citado dispositivo legal, de forma elucidativa esclarece:
“... É preciso
interpretar a expressão legítimo interesse com bastante parcimônia, dentro de
seu real significado jurídico, sempre levando em conta que o Estatuto não quis
entregar o exercício da ação a qualquer pessoa, mas apenas à que detiver
interesse jurídico, moral ou econômico, nos termos do art. 76 do CC e art. 3 do
C.P C.. Não basta um mero interesse em ver a situação de determinado menor
regularizada, porque, em última análise, essa é a aspiração de toda pessoa de
bem. A prevalecer tal raciocínio, qualquer membro da sociedade poderia dar
início ao procedimento de perda ou suspensão do pátrio poder”. (Cf - Estatuto da
Criança e do Adolescente. Comentários, José Luiz Mônaco da Silva, Editora
Revista dos Tribunais, Capítulo III, Seção II, págs. 264 e 265).
Por outro lado, a
nomeação de curador especial fundada no artigo 142, parágrafo único, do
Estatuto da Criança e do Adolescente, só se justificaria na hipótese de
colidência de interesses da criança ou do adolescente com o de seus pais ou
responsável, sendo certo, ainda, que tal colidência deverá ser necessariamente
demonstrada de modo manifesto para, em nome da criança ou adolescente,
ingressar com a medida judicial cabível, como, por exemplo, no caso de má gestão
da administração de bens dos filhos.
Em um primeiro momento,
voltamos nossa especial atenção para a legitimidade do Ministério Público, ou,
no caso, do Promotor com atribuições perante a respectiva Vara da Infância e da
Juventude, sendo dispensável maiores considerações, em face de expressa
disposição legal, apenas acrescentando que tal legitimidade é reforçada pelo artigo
201, inciso III do mesmo Diploma legal mencionado, quando se fala que a ele
compete “promover e acompanhar as ações
de alimentos e os procedimentos de suspensão ou destituição do pátrio poder,
nomeação e remoção de tutores, curadores e guardiães, bem como oficiar em todos
os demais procedimentos da competência da justiça da Infância e da Juventude”.
Os demais interessados, de forma genérica, são aqueles que,
de alguma maneira, estão protegendo os direitos da criança ou do adolescente,
violados o ameaçados de lesão, ou seja, todos os que, como já ressaltamos,
tenham um interesse moral diretamente ligado àquela criança ou adolescente.
Pretendentes à tutela ou
adoção, ou mesmo os que obtiveram a guarda, de modo especial, para atender a
situações peculiares, sem finalidade de tutelar ou adotar, têm legitimidade.
Evidentemente, é de
extrema importância deixarmos claro que não, se em mero “interesse processual”,
que efetivamente existe, já que a perda ou suspensão do pátrio poder só pode
ser obtida através de procedimento contraditório, mas daquele interesse
substancial ou de direito material, ou seja, o interesse de proteção de
direitos de crianças ou adolescentes diretamente ligados a eles de alguma forma
e até para possibilitar a obtenção de uma medida futura, como a tutela ou
adoção.
A legitimidade refere-se
às partes.
Como, entretanto, os
direitos aqui discutidos não são de ordem privada, ou seja, são indisponíveis,
o legislador optou por especificar, de modo imperativo, o elenco de pessoas
legitimadas a demandar em defesa dos interesses das crianças e adolescentes.
Trata-se, portanto, de
hipótese de “legitimação extraordinária”,
também denominada de “substituição
processual”, ou seja, na condição de autor proporá a ação em nome próprio,
na defesa do direito de outrem, que é o substituído.
Referida legitimação
extraordinária, nessa hipótese, é exclusiva, ou seja, “quando a lei, atribuindo legitimidade a um terceiro, elimina a do
sujeito da relação jurídica que seria o legitimado ordinário” (DIREITO
PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO – Vicente Greco Filho, ed. Saraiva, 1 volume, ano
1, página 1988, página 70).
O artigo 6º do Código de
Processo Civil é expresso: - “Ninguém poderá
pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado em lei”.
Efetivamente, dentre
esses legitimados, como se estabeleceria a atuação do curador especial?
A resposta é clara, ante
aquela expressa disposição legal: - não está o curador especial incluído no rol
taxativo dos que detêm a legitimidade para a ação, já que, obviamente, não é o
substituto do Promotor de Justiça e tampouco tem qualquer relação com a criança
ou adolescente, faltando-lhe aquela ligação moral com o principal interessado.
O curador especial,
dentro das hipóteses legais, é mero “representante judicial”, notadamente
considerando que seu interesse se define como representação de caráter
processual, concedida de forma absolutamente excepcional, cuja limitada atuação
circunscreve-se à garantia do direito de defesa.
Vale lembrar que se
busca, em ações que visam a perda ou suspensão do pátrio poder, medidas essas
de cunho extremamente gravoso aos pais, o resultado mais benéfico à criança ou ao
adolescente, por mais das vezes com o fim de colocação em lar substituto, e não
como forma única de penalização aos pais faltosos, em atendimento ao princípio
menorista que é da proteção integral aos seus direitos.
Nessa linha de
raciocínio, concluímos que não pode o Juiz de Direito nomear curador especial
para as hipóteses de eventual propositura da ação de destituição do pátrio
poder, uma vez configurada a situação descrita no artigo 98, incisos I e II do
Estatuto da Criança Adolescente, dada a obrigatória intervenção do Ministério
Público, legitimado legalmente para tanto, sob pena de nulidade do
procedimento, como já realçado anteriormente.
Com a intervenção
ministerial, forçosamente o Promotor de Justiça deverá pronunciar-se sobre a
medida adotada, sempre considerando os postulados básicos do Estatuto Menorista
que asseguram os interesses da criança ou adolescente, nas hipóteses de
violação aos seus direitos. Nessas condições, em procedimento onde se discuta a
conduta dos pais, o Promotor de Justiça, na falta de outro interessado, deverá,
se assim entender cabível, dentro de sua convicção, e no interesse dos direitos
daquela criança ou adolescente, promover a ação devida, ou entendendo de forma
diferente, fundamentá-la, propondo outras medidas cabíveis.
Diante da letra da lei,
a ninguém mais poderá ser autorizada a propositura dessa ação, sendo que, não
aceitando o Juiz de Direito o posicionamento lançado pelo Promotor de Justiça,
caberá a ele, por analogia, a aplicação do disposto no artigo 181, parágrafo
segundo do Estatuto da Criança e do Adolescente, com a remessa dos autos ao
Procurador Geral de Justiça, a quem competirá analisar as circunstâncias em
cada caso concreto e designar, eventualmente, um outro Promotor de Justiça para
atuar no feito.
A hipótese de nomeação
de curador especial, quando configurado o conflito de interesses, está
disciplinada no artigo 142, parágrafo único do Estatuto da Criança e do
Adolescente, bem como no artigo 9º, inciso I do Código de Processo Civil.
Como já frisamos, esses
interesses, todavia, são de ordem privada, cingindo-se às questões de natureza
patrimonial.
É o que se vê no artigo
387 do Código Civil, que está inserido na Seção III do Capítulo IV, que trata
do pátrio poder, no caso, “quanto aos
bens dos filhos”.
Não há conflito de interesses de pai com filho civilmente
incapaz quando exista a prática de ato ilícito, civil ou criminal, de um para
com o outro.
Trata-se, sim, de
interesse de ordem pública, onde não há sequer falar-se em nomear terceiros
para agir pelo menor.
Diga-se que referida
distinção ocorre até mesmo na área penal, como, por exemplo, nos crimes de
estupro, originariamente de ação penal pública condicionada a representação,
onde o responsável avaliaria o melhor para a filha. Quando o autor do crime é o
pai, a ação se torna pública incondicionada.
Não se fala, nessa
hipótese, em nomeação de curador especial, mas sim em autorizar o titular da
ação penal a providenciar as medidas pertinentes.
O próprio Código Civil é
claro quando fala em “suspensão e extinção do pátrio poder”, em seu artigo 394,
determinando que: “se o pai ou mãe abusar
de seu poder, faltando aos deveres paternos, ou arruinando os bens dos filhos,
cabe ao juiz, REQUERENDO ALGUM PARENTE OU O MINISTÉRIO PÚBLICO, adotar a
medida...” (grifos nossos).
Destarte, ainda mais em
se tratando de questão disciplinada no Estatuto Menorista, resulta induvidosa a
pretensão do legislador em dar caráter público às questões discutidas no âmbito
da Infância e Juventude, a exemplo do Direito Português, notadamente quando se
fala em medidas de colocação em família substituta, não sendo possível falar-se
em intervenção de terceiros não autorizados a tanto.
Vale lembrar que as
normas de direito público são aquelas “cuja
observância se torna mais necessária ao interesse geral e portanto NÃO PODEM
SER MODIFICADAS PELOS PARTICULARES, também pelo exposto são denominadas
cogentes” (CURSO DE DIREITO CIVIL – Parte Geral – Ed. RT Roberto Grassi
Neto – ano 1997, pág. 30).
Outro aspecto
interessante é que a intervenção do Juiz de Direito, ao nomear curador especial
para a propositura da ação de destituição do pátrio poder, é incompatível com
sua atuação, vez que a ele não é dado agir de ofício, podendo, ainda, incidir
na possibilidade de realizar um prejulgamento, com a conseqüente perda da
imparcialidade que lhe é obrigatória.
O Juiz de Direito,
sujeito que é de uma relação processual, deve ter “capacidade processual” para
o exercício de suas funções. Dentre a capacidade genérica (como condições de
investidura, p. ex.), deve o Juiz ter a capacidade especial para o exercício
“hic et nunc” do poder jurisdicional.
“Essa capacidade pode ser objetiva ou
subjetiva. A primeira diz respeito à competência do órgão judiciário. A segunda
à imparcialidade do juiz.
Os vícios e os defeitos
pertinentes à capacidade especial impedem a entrega da prestação jurisdicional
pelo órgão judiciário, pelo que a capacidade especial figura entre os
pressupostos processuais.
O desatendimento a esses
pressupostos pode tornar nula a relação processual até mesmo depois de passada
em julgado a sentença, tanto que contra esta cabe ação rescisória, em casos nos
quais certas condições de capacidade processual fiquem violadas (Código de
Processo Civil, artigo 485, incisos I a III).” (Manual de Direito Processual
Civil – José Frederico Marques – atualizado por Vilson Rodrigues Alves – Vol.
I, ed. Bookseller, ano 1977, pág.259).
Por todo o exposto,
podemos afirmar que o Juiz de Direito não pode nomear curador especial para a
propositura de ação de suspensão ou destituição do pátrio poder, sob pena de
desrespeito às normas de DIREITO PÚBLICO, QUE ESTABELECEM LEGITIMAÇÃO
EXTRAORDINÁRIA LEGAL, A EXCLUIR A LEGITIMAÇÃO ORDINÁRIA DA CRIANÇA OU
ADOLESCENTE QUE, PORTANTO, NÃO PODERÃO SER REPRESENTADOS NO PÓLO ATIVO DA AÇÃO
POR SUBSTITUTO PROCESSUAL, E, TAMBÉM, POR IMPLICAR EM VÍCIO DA CAPACIDADE
SUBJETIVA DO JUIZ, INFLUINDO EM SUA IMPARCIALIDADE.