O TRABALHO QUE EMPOBRECE
Alicia
Irena Hernández Walcher
Acadêmica do
Curso de Direito do Centro Universitário Ritter dos
Reis, Canoas/RS.
Resumo 2.231.974. Esse é o número de crianças de 5 a 14 anos
que trabalhavam no Brasil em 2001[1].
No mundo, são 250 milhões, segundo a Organização Internacional do Trabalho
(OIT). Ao compararmos estas últimas pesquisas com as anteriores, já seria
possível verificar algum avanço. Porém, pesquisas parciais do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) referentes aos nove primeiros
meses do ano de 2002, divulgadas recentemente, indicam, por exemplo, que o
número de crianças de 10 a 14 anos que estão trabalhando aumentou em 50% de
janeiro a setembro daquele ano. Logo, ainda estamos longe de um panorama que
possibilite vislumbrar a erradicação do trabalho infantil e fica evidente que a
busca de soluções requer uma análise acurada das causas que geram essa
situação, pois são elas que devem ser combatidas para evitar que os números
cresçam. Por outro lado, ações drásticas também são necessárias para reverter a condição das crianças que já estão privadas de sua
infância: o futuro pede socorro.
Palavras-chave Trabalho Infantil; Direitos da
Criança; Exploração da Infância.
Ao iniciar uma reflexão sobre trabalho infantil, torna-se necessário estabelecer algumas definições. Primeiramente, é imprescindível delimitar o que se considera infância, já que tal conceito difere de um país para outro, estando ora relacionado com a idade cronológica, ora sendo influenciado por fatores sociais e culturais.
A Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Criança considera criança todo o ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser quando a legislação do país determina que a maioridade seja alcançada antes. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 2º, estabelece que criança é a pessoa com até doze anos de idade incompletos, enquanto o adolescente tem entre doze e dezoito anos. Já a Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera criança alguém com menos de quinze anos, limite internacionalmente estabelecido para o ingresso no mercado de trabalho.
Outra abordagem imprescindível é em relação ao termo trabalho, onde existem controvérsias, principalmente no que se refere à criança. Alguns autores preferem inclusive utilizar a expressão “exploração da mão-de-obra da criança”, em substituição a trabalho infantil, porque aquela retrata mais fielmente a condição da criança que trabalha de forma mais ou menos regular, para sustento próprio ou da família. Assim, não englobaria certas atividades desenvolvidas por elas em caráter educativo, impostas pelos pais no exercício do poder familiar, conforme expressamente autoriza o inciso VI do artigo 1.634 do Código Civil e que influenciam positivamente na sua formação.
Aqui já é
possível, então, que surjam dúvidas para estabelecer quando a atividade perde o
caráter educativo e passa a ser considerada uma ilegalidade. A OIT preconiza
que “quando o trabalho da criança é parte real do processo de socialização e
constitui um meio de transmissão de conhecimentos e experiências de pai para
filho, faz pouco sentido falar em trabalho infantil”[2].
Porém, muitas vezes, trabalhando com seus familiares, principalmente na agricultura, onde o comum é a contratação do chefe da família ou de adultos, a criança acaba fazendo parte da produção. Esse trabalho realizado pela criança é considerado “ajuda” e não trabalho propriamente dito. O mesmo acontece quando realiza trabalho de caráter doméstico para poupar os adultos da família que já trabalharam o dia inteiro.
Também, por diversas vezes, essa tarefa é considerada mera “ajuda”, mesmo que realizado em detrimento da freqüência da criança à escola ou de outras atividades socioculturais e de lazer.
É preciso ter cuidado. Estudos realizados sobre a situação do trabalho infantil no Brasil têm indicado a seguinte definição:
“trabalho infantil é aquele
realizado por crianças menores de catorze anos de idade; de modo regular; por
mais de 20 horas semanais; com vinculação formal ou não de trabalho; com
definição de remuneração ou não e, principalmente, quando a ocupação não
permite a freqüência regular à escola e o desenvolvimento de atividades
extra-escolares (lazer, esportes, artes), além da convivência familiar e comunitária”[3].
Complementando, há que verificar, também, se as tarefas desenvolvidas são necessárias para a sobrevivência pessoal ou da família e se afetam o desenvolvimento físico ou psicológico da criança. Assim teremos uma definição abrangente e que facilita a constatação do tipo de trabalho que empobrece e rouba o futuro das crianças e, portanto, deve ser largamente combatido.
A legislação brasileira, através da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), elege a criança e o adolescente como credores de proteção integral e assegura-lhes prioridade absoluta na efetivação de seus direitos, em consonância à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Logo, a proteção ao trabalho infantil encontra-se em três dispositivos: na Constituição Federal, na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e no ECA.
A CLT de 1943 definiu como quatorze anos a idade mínima para ingresso no mercado de trabalho, o que foi mantido pela Constituição de 1988. Dez anos depois, a Emenda Constitucional 20 alterou o inciso XXXIII do artigo 7º, que trata dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, dando-lhe a seguinte redação: “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 (dezoito) e de qualquer trabalho a menores de 16 (dezesseis) anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 (quatorze) anos.”
O ECA,
promulgado em julho de 1990, permitia o trabalho de aprendiz[4] para adolescentes de doze a quatorze anos, o que foi
automaticamente modificado com a edição da referida Emenda.
Além dessa
legislação, o Brasil já ratificou normas internacionais da OIT sobre o assunto:
a Convenção de 138 e a Recomendação 146, sobre a idade mínima para admissão em
emprego e a Convenção de 182, sobre as piores formas de trabalho infantil,
sendo que esses tratados internacionais implicam um compromisso com a adaptação
das leis. Existe ainda um projeto de lei que tramita no Congresso Nacional e recentemente foi aprovado pela Câmara dos
Deputados, estabelecendo uma pena de reclusão que varia de 2 a até 10 anos e
oito meses para quem contratar para fins econômicos, direta ou indiretamente, o
trabalho de crianças com até quatorze anos.
Logo, pelo
que se pode perceber, não é a falta de proibição legal que faz com que aumentem
os números constatados nas pesquisas. Aliás, cabe registrar que a primeira lei
brasileira de proteção à infância referente ao direito do trabalho é de 1891.
Mesmo assim, a questão só passou a ser objeto de preocupação e discussão quase
um século depois. Até então o assunto era praticamente ignorado ou aparecia em
meio a outras questões sobre a infância. Tal descaso talvez seja melhor compreendido ao traçarmos uma linha da evolução
histórica da exploração da mão-de-obra infantil, que na verdade sempre existiu,
porém, passou a ficar mais evidente a partir da Revolução Industrial.
Com o
advento das máquinas, que permitiram empregar menor esforço físico na
realização das tarefas, o ingresso de crianças no chão de fábrica foi
facilitado e tornou-se altamente rentável aos donos do capital, visto que a
remuneração paga era menor do que a dos homens e mulheres adultos e a produção
praticamente a mesma. E não raro até hoje termos aqueles que se insurgem a
favor do trabalho infantil, credores, com certeza, do lucro que ele traz e
interessados em perpetuar a submissão de milhares de brasileiros miseráveis ao
poder de seu capital, já que pesquisas comprovam que a baixa escolaridade dos
pais e suas histórias de trabalho influenciam a trajetória dos filhos, que
passam também a trabalhar mais cedo e abandonar os estudos, criando um ciclo
repetitivo que alcança, portanto, dimensões intergeracionais.
Apesar do
evidente contra-senso, tais posições acabaram por desenvolver uma série de
conclusões equivocadas e que, infelizmente, enraizaram-se na cultura
brasileira, principalmente naquelas regiões onde ocorre a maior concentração de
casos de exploração da mão-de-obra das crianças. Em uma pesquisa realizada pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro[5], 97% dos
entrevistados apoiou o trabalho infantil, sendo que, entre os pais, 88% acred ita que o trabalho ajuda na educação. Tal conclusão é
falsa e faz parte de uma série de mitos criados acerca do trabalho da criança.
Os mais citados querem fazer crer que o trabalho é a solução para a retirada
das crianças das ruas e do envolvimento com drogas; que a formação profissional
precoce facilita a inserção no mercado de trabalho; que é necessário para que
haja a complementação da renda familiar; que torna a criança mais esperta e
apta a lutar pela sua sobrevivência, dentre outros. Nenhum deles é verdadeiro.
É claro que
lugar de criança não é na rua, mas também não é no chão de fábrica ou na
plantação de cana, trabalhando, muitas vezes, em condições desumanas e
degradantes, expostas a todo tipo de risco para a saúde e a própria vida. Lugar
de criança é no banco da escola, onde possa receber educação e formação
adequada que lhe permita desenvolver sua potencialidade e, no tempo certo, inserir-se
no mercado de trabalho com oportunidade de ascender socialmente. Lugar de
criança é também em atividades culturais e de lazer, onde pode exercer a sua
liberdade e garantir a sua cidadania.
Privar uma
criança de freqüentar a escola e de viver a sua infância em condições de
liberdade e dignidade, impossibilitando-lhe o desenvolvimento
físico, mental, moral, espiritual e social adequado, contrariando o que
preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente, é roubar-lhe o futuro.
É selar-lhe o destino.
A pior das
afirmações, porém, é aquela que incentiva o trabalho infantil como forma de
complementação da renda familiar. Essa é a mais sórdida de todas e, por que não
dizer, irônica. Aliás, em recente entrevista à Folha de São Paulo[6], o Ministro da Secretaria Especial
dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, atribui o aumento de 50% no trabalho
infantil à política econômica, que teria aumentado o desemprego e diminuído a
renda da população, fazendo com que as famílias mais pobres introduzissem suas crianças
e adolescentes no mercado de trabalho precocemente.
Com
certeza, é exatamente aí que está o ponto crucial da questão e a principal
causa da perpetuação dessa chaga: a falta de oportunidades, a marginalização, a
baixa renda dos brasileiros: em virtude de sua má distribuição, faz com que os
pais, para tentar evitar que seus filhos passem fome, acabem submetendo-os à
exploração. E afirmo propositadamente que é uma tentativa de privá-los da fome,
o que isso certamente não ocorrerá, ao contrário, eles passarão fome pelo resto
da vida, assim como seus filhos e quiçá seus netos. É desvestir um santo para
malvestir outro.
Tudo isso
nos faz concluir que o trabalho infantil é um fenômeno social
complexo, determinado pelo modelo econômico seguido pelo país, condicionado
socialmente e influenciado, ainda, por fatores culturais.
Delimitando-se
as causas, tem-se o caminho aberto para a busca de soluções, pois de quase nada
adianta tratar o problema pelas suas conseqüências. Ao retirar dez crianças da situação
de exploração, há que se verificar se não estão entrando vinte pela porta dos
fundos, para submeter-se ao mesmo tratamento que as primeiras estavam sujeitas.
O Brasil é
considerado a décima economia do mundo, mas não consegue proporcionar à maioria
da sua população o acesso a condições mínimas de bem-estar e dignidade. Isso
porque o modelo econômico adotado prioriza a manutenção do status quo,
concentrando rendas e fazendo com que o rico torne-se cada vez mais rico e o
pobre cada vez mais pobre. Nosso salário mínimo é um dos mais baixos da América
Latina e mesmo assim um enorme número de pessoas
economicamente ativas não conseguem colocação no mercado de trabalho
formal. Tudo isso em nome da proteção aos grandes investidores, banqueiros e
donos de capital estrangeiro, que entram no país não para gerar renda aos
brasileiros, mas sim para especular, multiplicar-se e deixar um rastro de
miséria e dependência, impedindo a emancipação econômica do país
A partir do
momento em que o Estado passe a priorizar os brasileiros e disponha-se a
efetivar seus direitos sociais, viabilizando as conquistas do estado
democrático de direito, será possível iniciar um lento e gradual processo de
construção da cidadania. E nada mais óbvio do que iniciá-lo pela proteção da
infância, que é o futuro do país. O principal instrumento já existe: o ECA. Falta apenas vontade política para implementá-lo.
A partir do
momento em que o Estado passe a realmente garantir a proteção integral da
criança e dar-lhe preferência na execução das políticas públicas, estaremos
dando o primeiro grande passo para vislumbrar um futuro mais promissor para
elas e, conseqüentemente, para o país.
Com relação
ao trabalho infantil, especificamente, vários programas já foram implementados
em todo o país, muitos deles em parceria com a sociedade civil organizada, que
desempenha papel fundamental nesse processo.
Os pontos
principais para vencermos essa luta são a garantia de renda para as famílias
carentes, o oferecimento de escolas com ensino de qualidade, a ampla
conscientização da sociedade e também da família dos malefícios perpetuados
pelo trabalho infantil.
Vale
lembrar que nossa Carta Magna, em seu artigo 227, estabelece:
“É dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
O
legislador foi feliz. Cabe a nós fazermos a nossa
parte para que nossas crianças também sejam.
Notas:
[1] Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD/2001.
[2] O Trabalho Infantil: a Perspectiva da OIT. OIT: Brasil,
1993.
[3] Dos Santos e Pereira, 1997.
[4] Considera-se aprendiz o adolescente matriculado e vinculado
a um curso técnico que inclua um processo de profissionalização em ambiente
adequado.
[5] Jornal da AMENCAR, maio/2002.
[6] Folha de São Paulo, 19/11/2003.