MODO
DE VIDA DE CRIANÇAS SEM CASA, SEDENTÁRIAS: SUAS CASA, SUAS FAMÍLIAS, SUAS VIDAS[1]
Palavras-chave: crianças sem casa; contexto desenvolvimental; modo de vida infantil; família sem casa; casa dos sem casa.
Esta pesquisa faz parte de um conjunto de projetos de estudos etnográficos sobre o modo de vida de grupos sócio-culturais brasileiros (RABINOVICH, 1992, 1993, 1994), onde se considera que desenvolvimento e contexto formam um todo integrado do qual resulta a manifestação concreta que é a criança em desenvolvimento. O desenvolvimento infantil está sendo pensado como um sistema co-gestado, co-regulado e co-construído, onde casa e família, a rede material e relacional, confluem com o meio onde e através do qual ocorre a rede de significações que informará o próprio desenvolvimento.
O presente estudo tem como objetivo descrever alguns aspectos de modo de vida de um grupo de crianças e de suas famílias cujas casas estavam localizadas sob um viaduto em São Paulo.
No Brasil não existem estudos conclusivos sobre o número de pessoas que moram nas ruas (TASCHNER e RABINOVICH, 1994). Se tomarmos a definição de homeless da ONU – aquelas pessoas que não possuem domicílio estável ou que moram em habitações precárias que não atendem aos padrões mínimos de habitabilidade – certamente o número seria muito elevado, já que incluiria habitantes de favela, cortiço e outros tipos de habitação precária.
O município de São Paulo tinha 9,48 milhões de habitantes, pelo Censo Demográfico de 1991. Em 1992, as estimativas da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Humano (São Paulo, 1992) indicavam para a capital 1805 favelas, onde residiam mais de um milhão de pessoas, cerca de 10,7% da população municipal.
Foram feitas no município duas investigações para a caracterização da população de rua, em 1991 e em 1993, pela Secretaria do Bem Estar Social, concluindo-se haver entre 4000 a 10.000 pessoas. Porém, a população total de rua ou na rua acrescida dos demais moradores de loteamentos clandestinos pode estar na casa das 600 mil pessoas (O Estado de São Paulo, 14/02/1993).
Muitas dessas pessoas constituem famílias onde crianças crescem e se desenvolvem. Nos Estados Unidos, por exemplo, crianças e suas famílias compreendem 38% de toda a população de rua do país (MOLNAR et al., 1990). Apenas recentemente, pesquisadores começaram a considerar que tipo de impacto essas condições têm sobre crianças, considerando os problemas de saúde, a fome e má nutrição, os atrasos no desenvolvimento, os problemas psicológicos e a não aquisição educacional.
As crianças sem casa teriam riscos gestacionais e de parto, baixo peso ao nascer e grande mortalidade pós-natal. Tenderiam a ter uma alimentação inadequada, com deficiência de ferro, vitaminas e minerais; seriam sub ou não imunizadas e expostas a um amplo espectro de ações ambientais danosas, com repercussão sobre o aparelho respiratório superior, diarréia e problemas na pele. Más condições sanitárias e superpovoamento facilitariam o aparecimento de doenças infecciosas e comunicáveis, de modo que tenderiam a ter mais doenças, em geral, que crianças apenas pobres, ao mesmo tempo em que diminuiria o acesso aos cuidados à saúde quer preventivo, quer curativo. Estariam mais expostas a ter fome (RAFFERTY, 1991). Teriam dificuldades na linguagem, capacidades sociais e desenvolvimento motor (BASSUK, citado em MOLNAR et al., 1990) problemas de sono, timidez e agressão, déficits da atenção, interação imatura com crianças e inadequada com adultos. Estudos mais recentes, contudo, não mostram problemas de desenvolvimento tão graves (RAFFERTY, 1991), sendo possivelmente a pobreza o fator mediador para tais problemas. MOLNAR et al. (1990) sugerem que são os infortúnios dos pais e seus efeitos sobre os comportamentos parentais os mediadores do desenvolvimento e funcionamento psicológicos infantis. Considerando-se a necessidade de uma base segura estabelecida a partir de uma relação íntima, confiável e duradoura para o desenvolvimento adequado ocorrer, (BOWLBY, 1984), a falta de segurança se refletiu nas relações da criança com sigo própria e com o ambiente, gerando sentimentos de inadequação, desconfiança, falta de autonomia. A ausência de casa pode produzir um sentimento psicológico de isolamento ou desconfiança tanto quanto a ruptura de elos sociais (GOODMAN, 1991). No adulto a perda de controle sobre o seu meio e suas vidas propicia um risco maior para o desamparo aprendido e a depressão através de uma passividade generalizada, aumentando o risco de aparecimento, na criança, de desordens depressivas, ansiedade, problemas na atenção, apego inseguro e incompetência social (RAFFERTY E SHINN, 1991). Ambientes superpovoados, caóticos, criaram condições propícias para o conflito e interações potencialmente violentas entre pais e crianças, com práticas de abuso de crianças (MOLNAR et al., 1990).
A questão educacional aparece como um grande desafio, desde a ida das crianças à escola até a sua permanência nela, passando por elevados índices de retenção e pobre performance acadêmica. Apontam RAFERTY e SHINN (1991) que a escola é especialmente crucial para as crianças sem casa, porque ela pode instalar um sentido de estabilidade que lhes falta.
RIVLIN (1990) aponta para as possíveis conseqüências do modo de vida dos sem casa sobre a identidade em desenvolvimento da criança. Para ela, o meio circundante da criança modela suas vidas, suas personalidades, seu desenvolvimento cognitivo, social e afetivo, estando todas as experiências assentadas sobre lugares. Dois componentes deste processo seriam o espaço pessoal e o lugar pessoal. O primeiro seria necessário para controlar a apropriada distância interpessoal e grau de estimulação do exterior, sendo afetado quer por privação quer por superestimulação (crowding). O segundo seria necessário para a construção da identidade a partir da identidade espacial, a “subestrutura de auto-identidade que consiste das cognições sobre o mundo físico no qual o indivíduo vive”, para a qual o grau de estabilidade estaria ligado à possibilidade de formar elos positivos, apegar-se ao lugar. O lugar é, pois, para esta autora parte do contexto de onde se forma a identidade. A perda do lar afetaria o sentido de si própria devido a ausência de lugares pessoais quer no espaço quer no tempo, gerando insegurança devido à dificuldade de controlar o espaço, ou seja, ter um lugar próprio para se refugiar e se apegar.
RIVLIN (1990) descreveu quatro tipos de modos de morar na rua, ressaltando a importância da dimensão temporal nesta classificação: crônicos, periódicos, temporários e total. Nesta mesma direção, RABINOVICH (1993) pesquisou a casa dos “sem casa” concluindo haver quatro tipos de “moradias” na rua – assentado, caverna, nômade e selvagem – que variaram segundo o nível de estabilidade tempo-espacial e segundo o tipo de organização do grupo: enquanto assentados e caverna eram mais estáveis, nômades e selvagens eram principalmente adultos masculinos, sem crianças. Prosseguindo estes estudos, e dentro da concepção teórica sobre desenvolvimento infantil exposta inicialmente, propusemo-nos estudar um grupo de crianças “assentadas”.
O objetivo do presente estudo foi descrever casas, famílias e alguns aspectos do desenvolvimento infantil de crianças “sem casa” de um agrupamento de “assentados”. Foi uma pesquisa exploratória que, ao descrever as condições do modo de vida, pretendeu levantar hipóteses sobre como, a partir dele, as crianças se desenvolvem.
Consideramos “casa” como o conjunto dos elementos materiais que constituem o quadro no qual se desenvolvem as atividades do morador (BERNARD, 1992). “Assentamento” é uma categoria descritiva de um modo de morar na rua em que as “casas” possuem portas com trancas. Assemelham-se a casas de favelados, mas diferem destas por serem provisórias dado a sua localização na via pública (RABINIVICH, 1993).
Utilizamos uma metodologia descritiva a partir de instrumentos desenvolvidos em pesquisas anteriores (RABINOVICH, 1992, 1993, SIQUEIRA et al., 1992). Esta abordagem metodológica situa-se no cruzamento entre a etologia com a etnografia, concebendo os fatos sociais como realizações práticas (GUCHT, 1991), isto é, entendendo que os fatos sociais realizam-se nas interações entre os interagentes. Conseqüentemente, o método primeiro é a observação do terreno, dos atores em situação e do contexto matéria, relacional e social em que a interação ocorre.
Instrumentos
e procedimento.
Foram utilizados quatro procedimentos para a coleta de dados: roteiro para a observação da casa; roteiro sobre a organização familiar; roteiro de anamnese infantil e roteiro para observação da criança. Foram realizadas oito visitas ao agrupamento em período de seis meses. Em uma primeira fase, entrevistamos os moradores e observamos as crianças dentro das casas. Em uma segunda fase, foram observadas as crianças fora de suas casas. Nesta fase, foram pedidos desenhos (HTP e livre) às crianças.
A escolha das casas foi aleatória, desde que houvesse crianças de até 6 anos de idade.
Resultados.
1. O local.
A pesquisa foi realizada em um agrupamento de “casas” localizado sob um viaduto em uma avenida marginal de São Paulo, sendo uma zona de tráfego pesado, urbanizada e povoada. O agrupamento possuía cerca de 180 casa, não sendo regulamentado, constituído por moradias improvisadas, feitas a partir de material sucateado.
Ao lado do assentamento ficava uma transportadora que empregava muitos dos moradores e que tem um pátio de manobras onde as crianças brincam.
A luz elétrica, retirada clandestinamente de postes de iluminação, estava presente em todas as casas. A água era retirada também clandestinamente e servia a algumas casas que tinham uma torneira. As demais usavam mangueiras, ou tanques coletivos, ou a água de bar próximo. Havia um sistema de esgotos precário. Segundo uma moradora, “antes de ter os barracos passaram (a prefeitura) umas manilhas com uns bueiros. O pessoal dos barracos percebeu e fez a ligação (do esgoto) com os bueiros. Por isso tem toda esta terra levantada (removida para dar acesso aos bueiros)”.Observamos também esgotos sendo lançados às guias da estrada diretamente, donde eram capturados pela rede de água pluvial. Além disso, havia valas a céu aberto por onde fluía uma água pretensamente “limpa”, oriunda dos tanques localizados fora das “casas” onde eram lavadas louças e roupas.
2. Quem são
Foram entrevistadas 20 famílias de moradores, geralmente apenas a mãe, de 20 casas com um total de 98 moradores, cerca de 5 pessoas por casa. Metade dos moradores eram crianças e os adultos dividiam-se entre homens (26,5%) e mulheres (24,5%).
A amostra estudada revelou um grupo de famílias migrantes de origem nordestina, chegadas há um ano em São Paulo, basicamente formada por famílias nucleares, porém freqüentemente acrescidas de outros parentes ou com parentes morando no agrupamento. Tratou-se de casais jovens entre 20 e 30 anos, com uma média de 2,5 crianças e 5 pessoas por casa. Possuíam nível educacional baixo, apenas a metade das crianças freqüentava a escola. 65% das crianças já nasceram em São Paulo. O motivo para morarem no local era a possibilidade de trabalho, realizado pelos homens quer em uma transportadora próxima quer em trabalhos eventuais. Os homens tenderam a administrar o dinheiro parecendo seguir o padrão “tradicional” de atribuição de poder. Desejariam retornar a terra natal e/ou mudar para imóvel próprio. Alimentavam-se basicamente de arroz, feijão, geralmente com três refeições por dia.
3. Como
moram.
3.1. as casa.
Eram casas de compensado de madeira, escuras e não ventiladas, de cerca de 30 metros quadrados, geminadas, com divisórias de compensado e/ou cortinas, sem portas exceto a da entrada. Consistiam em locais designados a ser quarto e cozinha, a sala combinando-se quer com um quer com outro. Algumas tinham banheiros, precários, já que não dispunham de água corrente. Apesar dessa precariedade, possuíam móveis – cama e mesa, fogão e TV. Dormiam 2 a 3 pessoas por cama e cada pessoa tinha 5 metros quadrados para si. As casas eram ornamentadas com tecidos – almofadas, cortinas, tapetes, toalhinhas – e com motivos infantis, o que as tornavam acolhedoras. Eram arrumadas, e as crianças dispunham de brinquedos. Havia pouco espaço interior para brincar, mas havia espaço na “rua”.
A questão segurança “social”, ou seja, o perigo atribuído ao ser humano era grande, quer devido à via de trânsito rápido que a brigas e discussões. As “casas” eram verdadeiros lares. Havia pouca possibilidade de privacidade e intimidade. Ao invés, um modo coletivo de vida emergiu das observações, originando a hipótese de um “espaço pessoal coletivizado” próprio a uma sociedade relacional ou interdependente. (DAMATTA, 1985) Além disto, duas questões apareceram: as rotinas não estavam baseadas em lugares especiais para atividades especiais e os arranjos espaciais das casas estavam em contínua mudança. Pudemos reconhecer aí o que HALL (1983) chamou de tempo policrônico. O tempo policrônico significa que muitas coisas são feitas ao mesmo tempo e é oposto ao tempo monocrônico, privatizado. É um conceito complexo que incluí um sistema total de crenças, valores e ações. Conforme HALL (1983), a temporalidade é um sistema de classificação que ordena a vida.
4. As
crianças.
4.1. as crianças segundo os dados colhidos na anamnese.
A partir do relato materno, pudemos traçar um quadro de crianças desejadas (55%), embora não planejadas (90%), gravidez e partos normais (90%), aleitadas até 3 meses (58%), 7 meses (21%), e outras ainda sendo aleitadas; alimentando-se e dormindo bem, sem cama própria (80%). Somente 30% tinham rotinas diárias. Metade das crianças andou cedo, antes dos 12 meses, e 20% muito tarde, após 19 meses. Aparente atraso na aquisição da linguagem.
Afora uma criança desnutrida, as doenças relatadas foram: nunca doente (25%); desidratação (15%); pneumonia (20%); diarréia (15%); anemia (5%). Contudo, foram observados 3 casos de desidratação e muitos problemas alérgicos e respiratórios.
A reação materna ao choro infantil era o acalanto (58%) ou aleitar (5%), mas algumas mães (21%) responderam nada fazer, “nunca chora” (18%) e bater (5%). Destas respostas pudemos depreender que os cuidados maternos poderiam ser inadequados nestes casos.
A reação das mães à autonomia infantil foi: sempre ao seu lado (45%), preocupada se a criança se afasta (30%). Somente 10% das mães disseram permitir a autonomia infantil.
4.2. As
crianças segundo dados de observação dentro das casas.
Vinte e oito crianças de até 6 anos de idade foram observadas dentro de suas casas a respeito de: a) Cuidados, definindo como a responsividade às demandas e necessidades infantis; limpeza; modo de vestir; interações físicas e verbais; b) Autonomia, definida como a possibilidade de a criança explorar objetos, espaço e pessoas fora de casa. Foram feitas também observações sobre o que a criança estava fazendo, onde, com quem e com quais conseqüências. Quem estava com a criança, fazendo o que e como, em uma distância de 3 metros foi também observado.
Estas observações mostraram que, com relação aos cuidados, 53,6% das crianças foram consideradas como recebendo um cuidado adequado, 32,4% como recebendo cuidados inadequados e 14,3% como recebendo “supercuidados”. Com relação à autonomia, 20 crianças foram observadas. 50% delas tinham pouca ou nenhuma autonomia e 45% tinham uma autonomia limitada. Uma criança cujos irmãos eram pedintes tinha autonomia total.
Destas observações, pudemos verificar a ocorrência de padrões diferentes de cuidados e interações afetivos neste mesmo contexto social.
Referentes a cuidados inadequados, três condições emergiram. Quando bebês, algumas crianças não eram estimuladas talvez por crenças culturais. A maioria dos pais pesquisados eram de origem nordestina, região onde há um alto índice de mortalidade infantil. Pode haver um padrão cultural em que se espera “vingar” a criança para então os pais, mais assegurados se sua sobrevivência, investirem nela, o que ocorreria com cerca de um ano de idade, com a locomoção. Esta é uma das hipóteses de porque em algumas crianças houve um atraso de desenvolvimento motor ao mesmo tempo em que apareceu que a mãe pouco se dedicava a ela. Confirmando essa hipótese, uma mãe relatou que sua criança teve um intenso desenvolvimento motor quando chegou da Bahia, porque em São Paulo as mães estimulavam seus filhos muito mais do que lá. Outra indicação de que o que foi classificado como cuidado inadequado se prende a valores culturais, da pesquisadora e da pesquisa, ocorreu com uma mãe cujo filho estava deitado nu, cercado de moscas, sem receber nenhuma atenção, sendo categorizado como inadequadamente cuidado. Em uma visita posterior, contudo, a mãe orgulhosamente foi mostrá-lo à pesquisadora.
Além deste sistema cultural de crenças, as condições físicas da moradia implicavam em uma grande necessidade de organização; por exemplo, a ausência de água canalisada implicava em um grande esforço para obter e manter os cuidados higiênicos. A desorganização familiar, por sua vez, vista em associação com casas desarrumadas, afetava o desenvolvimento infantil aumentando a susceptibilidade a doenças. Em conseqüência, a desorganização familiar pode afetar a criança desde desnutrição à morte, passando por toda a gama de distúrbios emocionais. No entanto, é o estado “nutricional” afetivo da mãe ou responsável o indicador de possíveis danos ao desenvolvimento infantil. Por exemplo: a única família monoparental, uma mãe que voluntariamente se recusa a morar com a sogra por desejo de manter a sua identidade – mesmo morando sob a ponte – encontrava-se, no momento, perfeitamente estruturada.
A terceira condição, portanto, que pareceu afetar negativamente o desenvolvimento infantil foi a condição intra-subjetiva materna: mães “despossuídas”, elas próprias privadas de afeto, ânimo, esperança, pareceram não poder dispender um cuidado adequado a seus filhos.
Pela análise dos dados de anamnese e da observação, as crianças puderam ser divididas em dois grupos: bem desenvolvidas e subdesenvolvidas. Pareceu-nos que as condições radicais de vida dos pais também radicalizaram o desenvolvimento infantil, pois os pais não tinham meios de compensar qualquer tipo de distúrbio que desse aparecer.
Quanto às semelhanças entre os vários padrões de cuidados, o contexto coletivo do modo de vida influenciava a relação mãe-criança e, conseqüentemente, o desenvolvimento infantil. O arranjo espacial das moradias facilitava tanto o apego mãe-filho quanto relações com vários adultos e crianças, quanto a autonomia. Mães e crianças foram vistas continuamente cercadas por outros adultos e crianças, em interações permanentes. A criança foi vista sendo cuidada por outros adultos além da mãe, mas esta estava sempre acessível à criança. Como exemplo: uma menina de 4 anos estava deitada em uma rede armada na sala de visitas, com febre. Tinha um grande laço de fita cor de rosa nos cabelos e estava cercada pela sua preocupada mãe – que já a havia levado ao posto de saúde onde fora diagnosticado infecção na garganta – e várias meninas que se ressentiam de não poder brincar com ela. Crescendo, como pode ser visto no exemplo, as crianças tinham muitas oportunidades para o contato social com crianças e adultos. A ruela interna funcionava como um quintal coletivo. Mesmo se as mães declararam não permitir a autonomia dos filhos, isto era virtualmente impossível de ocorrer. As casas eram pequenas, geminadas, sem janelas, escuras, mal iluminadas, de modo que a porta frontal estava sempre aberta. As crianças eram naturalmente atraídas por outras crianças. As próprias mães permaneciam fora, conversando, lavando roupas e pratos ou mesmo cozinhando com seus filhos circulando ao seu redor. Por exemplo: uma menina de 3 anos de idade ai tomar banho quando os pesquisadores chegaram. Inicialmente a mãe a penteou enquanto respondia as perguntas. Um grupo de meninas entrou na casa e a menina saiu com elas e ficou brincando fora próxima a casa. Durante a longa entrevista, o grupo entrava e saía da casa para ver o que estava acontecendo, mas também atendendo ao chamado da mãe.
A vida na rua é um verdadeiro desafio para este modo de vida dado eles estarem, de fato, na rua. Os pais tentavam restringir este “inimigo” – a rua. As mães declararam não permitir a saída de suas crianças aparentemente porque cuidar significava ter sob as vistas, mas também, de um modo mais profundo, porque facilmente pudemos antever como os “valores” da rua podiam se impor sobre os “valores” da casa, da família da autoridade paterna.As mães tentavam manter seus filhos sob seu controle, mas com 6 anos de idade, estes estavam na rua. Além disso, crianças com 12 anos já deviam estar trabalhando desde que não foram vistas no local, ou foram vistas trabalhando. Como um resumo, podemos dizer que este modo de vida sem casa favorecia o apego, a socialização e o desenvolvimento infantil inicial a menos que a mãe estivesse “de-privada” ou as condições sanitárias levassem a morbidade ou mortalidade. Seu modo de vida radicaliza suas possibilidades de resolver dificuldades desenvolvimentais. A autonomia foi uma questão contraditória desde que as mães a negavam enquanto a observação direta a mostrava. A questão em aberto é o que significa estar na rua.
4.3. As
crianças segundo dados da observação na rua.
Segundo Francisco, um morador, haveria no local 1.350 crianças. Embora este número possivelmente tenha sido superestimado, pudemos observar inúmeras crianças, de variadas idades, brincando ou se movimentando na rua interna ou no pátio adjacente.
Enquanto os adultos permaneciam dentro das casas ou em seus arredores, sentados ou conversando, as crianças circulavam pela ruela central, pátio adjacente e interior das casas, em grupos de três ou quatro coetâneos. Mudavam constantemente de atividade. A composição do grupo também se alterava com freqüência, com a entrada ou saída de elementos sem aparentes conseqüências; sou seja, as crianças se agrupavam espontaneamente por atividade e por idade, com grande variabilidade intra e intergrupal. Esta variabilidade não pareceu interferir na dinâmica grupal: as atividades prosseguiam ou não, sem aparentes conseqüências. Não observamos nenhum conflito. As atividades tinham curta duração, sendo empreendidas pelas crianças sem participação dos adultos.
As crianças observadas brincando tinham entre 3 e 13 anos. As brincadeiras aparentemente visavam o inter-relacionamento, ou seja, o estar junto brincando, pois não observamos conflitos, nem competição. Por exemplo, um menino empurrava um outro menino em um carrinho e daí trocavam de posição; um espirrava água no outro através de uma pistola de brinquedo e intercambiavam posições, etc. Por outro lado, havia lideranças, aceitas aparentemente sem discussão pelo grupo. As crianças se dividiam, nas brincadeiras, por idade, por sexo e por parentesco (grupo de irmãos ou primos).
As brincadeiras observadas puderam ser categorizadas em: brincadeira de imitação de atividade adulta; brincadeira de imitação mútua; brincadeiras ativas; e jogos. Os jogos observados caracterizaram-se por regras muito simples (uma a três por jogo) que eram, contudo, respeitadas pelos jogadores.
Os objetos das brincadeiras e jogos – bicicletas, bolas, bolinhas de gude, pistola, carrinho, bonecas – eram partilhados por todos do grupo, embora realmente pertencessem a uma criança. Sua função parecia ser a de possibilitar a relação entre as crianças através da atividade por eles veiculada. Funcionavam, pois, como facilitadores da relação a ser partilhada por todos.
Os adultos não interferiram em nenhuma das atividades das crianças observadas na rua. Em um único caso, em que meninas de 3 e 5 anos brincavam de casinha na rua, a mãe de uma delas, a líder, interrompeu bruscamente a brincadeira retirando o pente, a esponja e a vassoura, objetos essenciais à brincadeira e dando fim a esta.
Foram observados meninos entre 10 e 13 anos trabalhando na construção e conserto de carretos de feira e auxiliando no ponto de venda dos catadores de lixo localizado no agrupamento. Os meninos construíam os carretos a partir de sucata e com eles transportavam compras da feira para a casa dos fregueses.
Da observação do modo de vida e das atividades livres das crianças pudemos ver que as relações com crianças eram fundamentais na socialização infantil. Além disso, a temporalidade observada na casa, pode estar ligada a: foco de atenção se alternando rapidamente; pequena permanência em um mesmo lugar; mudança constante de atividades e na formação do grupo. A organização coletiva da casa e do local pode estar ligada a: brincadeira mais dirigida ao pertencimento do grupo do que à competição e regras “objetivas”; atividades dirigidas ao grupo como um todo não almejando a diferenciação entre os membros; objetos pertencendo a todos durante a atividade e servindo como instrumentos intermediários para atingir o propósito de brincar e não de posse; não questionamento de lideranças; diferenciação não clara entre espaço privado e público; brincadeiras de imitação de adultos denotando um sistema de aprendizagem por imitação, por “enculturação” mais do que por “ensinagem”.
4.4.
Desenhos.
Um total de 40 desenhos foram feitos por 23 crianças com idade variando de 6 e 13 anos. Os desenhos consistiam basicamente de casas, árvores e pessoas. Os desenhos denotam expansão com ausência de base onde se apoiar e construir. Aspectos característicos eram árvores “voadoras”, desenraizadas e com copas inexistentes, indicando sentimentos intensos de insegurança ligados à falta de enraizamento e dificuldade de encontrar um espaço social e imaginário para se desenvolver. O presente se tornou o único tempo possível com uma alta estimulação e desorganização interna pela ausência de pontos de referência exteriores.
Algumas características do contexto desenvolvimental deste agrupamento de sem casa sedentários foram: o contexto favorecendo não apenas o apego mãe-criança como outras relações múltiplas e simultâneas; forte influência do grupo das crianças; espaço pessoal coletivo ou “um sentido de self que incorpora outras pessoas” (TRONICK et al., 1992); “temporalidade policrônica”; autonomia percebida pelas mães como perigosa e as crianças estando na rua; falta de saneamento básico facilitando morbidez; diferenciação precoce entre crianças bem e mal desenvolvidas devido à falta de suporte social às dificuldades dos pais; escolarização atrasada; falta de permanência e enraizamento possivelmente associada à instabilidade.
Este estudo concluiu também ser inadequada a definição da ONU de “homeless” aplicada à população estudada, pois enquanto tal definição enfatiza a não estabilidade ou precariedade de moradia como a sua principal característica, no nosso estudo foi a presença da “casa” que os caracterizou: a criação de um espaço “estável” no espaço público, a “encenação” de uma casa simbólica na privação de uma casa real.
Contudo, a conclusão mais importante pode ser encontrada nas palavras de um morador para quem seu principal problema era, mais do que “as condições de moradia, de falta de alimento e de trabalho, o fato de nunca alguém ter se interessado em perguntar como viviam, nunca alguém ter se importado, e de ter de viver sempre como um pária”. Para Seno Cornely (Conferência Mundial sobre os Direitos Econômicos das Famílias) estamos perdendo a capacidade de indignar-nos ante fatos sociais graves como os das pessoas “sem casa” e tantos outros; para nós, é a perda dessa capacidade que torna indigna a vida outrossim tão digna dessas pessoas.
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Notas:
[1] RABINOVICH E.P. Modo De Vida De Crianças Sem Casa, Sedentárias: Suas Casa, Suas Famílias, Suas Vidas. Texto extraído da Revista Brasileira Crescimento Desenvolvimento Humano. São Paulo, IV (1) 1994. Pesquisa desenvolvida no Instituto de psicologia da Universidade de São Paulo, com alunos dos professores Dr. César Ades e Dra. Emma Otta.
[2] Elaine Pedreira Rabinovich – psicóloga clínica, mestre em psicologia experimental – USP e pesquisadora do Centro de Estudos do Crescimento e do Desenvolvimento do Ser Humano – CDH, Faculdade de Saúde Pública/USP. End: Av. Arnaldo, 715, subsolo – sala 21, São Paulo – SP, CEP 01246-904 – Fone/Fax: (0xx11) 851-3572.
[3] Agradecimentos especiais a Aparecida Norma Martins, Juliana Telles de Azevedo, Maria de Fátima Neves da Silva e Vanessa Bombardi pela coleta, discussão e apresentação em congressos na primeira e segunda fase da pesquisa. Participaram da primeira fase: Ana L. G. Bastos; Andréa Z. H. Silva; Cristina F. Sugano; Heloísa Hanada; Luciana Dadico; Luciana Saul; Luiz F.B. Ena e Roberta A. Celeste. Agradecimento à professora Maria Elizabeth Montagna pela colaboração na análise dos desenhos.