O
NOVO CÓDIGO CIVIL E A APLICAÇÃO EXCEPCIONAL DE MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA AO MAIOR
DE 18 ANOS[1]
Rafael de Araújo Gomes
Assessor Jurídico do CAO-IJ do MP/RS.
A entrada em vigor do novo Código Civil (Lei n° 10.406/02)
tem exigido, de Promotores de Justiça, Magistrados e demais profissionais dos
mais diversos setores, a revisão de inúmeras convicções e certezas. De fato,
como o novo diploma afastou-se sensivelmente do que estabelecia o Código
anterior, prevê-se que algum tempo precisará transcorrer até que todas as
inovações sejam bem compreendidas.
Na área específica da infância e juventude, o surgimento do
novo Código suscita uma reflexão acerca do alcance de suas possíveis
repercussões sobre a legislação especial de proteção da criança e do
adolescente. Desde logo constata-se que o ECA foi
submetido a diversas alterações pontuais pelo novo Código, como por exemplo a
idade do tutor (art. 36) e do adotante (art. 42), as situações de representação
e assistência em juízo (art. 142) e a mudança da designação "pátrio
poder" para "poder familiar". Outras mudanças, menos óbvias,
serão com certeza reveladas e discutidas pela doutrina e jurisprudência em
breve.
Nesta primeira hora de vigência do Código Civil, entretanto,
o que tem se observado é o aparecimento de uma polêmica até certo ponto
insólita, pertinente à suposta revogação dos dispositivos do
ECA (arts.2°, parágrafo único, 104 e 121, §
5°) que, combinados, autorizam a aplicação excepcional de medida
sócio-educativa ao maior de 18 e menor de 21 anos.
Nesse sentido, o periódico Folha de
São Paulo noticiou, em sua edição de 21/02/2003, a pretensão da Defensoria
Pública do Rio de Janeiro de interpor habeas corpus em
favor de adolescentes internados, maiores de 18 anos, sob o fundamento de que "não há sentido na aplicação de medida
sócio-educativa (considerada uma sanção para pessoas ainda em desenvolvimento)
para quem já alcançou a maioridade civil".
O insólito de tal situação reside no fato de que, até o
aparecimento do novo Código, nunca se supôs ou se sustentou que a maioridade
civil, ao invés da penal, estivesse relacionada com a aplicação de medidas
sócio-educativas. Conforme veremos, tal tese não merece prosperar.
Sabe-se que o ECA, em consonância
com a Constituição Federal (art. 228) e o Código Penal (art. 27), estabelece
que os adolescentes (maiores de 12 e menores de 18 anos) são penalmente
inimputáveis, respondendo pelos delitos praticados (denominados atos infracionais) através de procedimento definido no próprio
Estatuto, e sujeitando-se ao cumprimento de medidas sócio-educativas[2].
Excepcionalmente, na forma do art. 2°, parágrafo único, do
ECA, a medida sócio-educativa poderá ser aplicada ao maior de 18 anos
que praticou ato infracional quando ainda era
inimputável, cessando de forma obrigatória quando o jovem completar 21 anos.
A Constituição Federal, o Código Penal e o
ECA atuam, portanto, em sintonia no sentido de excluir de pena, por
razões de política criminal, o menor de dezoito anos autor de um delito. Tem-se
o cuidado, no entanto, de que a prática do ilícito penal não reste livre de
sanção, sendo a pena substituída por uma medida de cunho educativo.
Estabelecem os diplomas uma relação direta entre a maioridade
penal e a responsabilidade do adolescente pelo ato infracional:
onde começa a maioridade, em razão do afastamento da causa etária da
inimputabilidade, desaparece a responsabilidade juvenil prescrita no ECA.
O novo Código Civil, por óbvio, não alterou a maioridade
criminal, que permanece, conforme determina a Constituição Federal, fixada em 18
anos. A inovação introduzida pela Lei n° 10.406/02 diz respeito à capacidade
civil dita de fato, vale dizer, a capacidade para o exercício por conta própria
dos atos da vida civil.
No Código revogado, o menor de dezesseis anos era
absolutamente incapaz para tais atos, devendo ser substituído por seus
responsáveis, ao passo que o menor de vinte um anos
era relativamente incapaz, recebendo assistência para os mesmos atos. Com o
novo Código, o menor de dezesseis anos continua a ser absolutamente incapaz, mas
a capacidade civil plena é obtida aos 18 anos.
Observa-se na tese da revogação do ECA
uma mistificação em torno da mera coincidência de idades. O raciocínio parece
ser: a capacidade civil plena era obtida aos 21 anos, e o ECA
preconiza a aplicação excepcional de medidas sócio-educativas também até 21
anos, "portanto", se a
capacidade civil é reduzida para os 18 anos, a aplicação da medida
sócio-educativa também passa a ter como limite os 18 anos de idade.
O raciocínio, percebe-se com facilidade, é quase mágico (ou
seja, uma falácia lógica), pois confunde coincidência com causalidade, não
levando em conta que a fixação de limites etários em ramos diferentes do
Direito é determinada por motivos diferentes.
Realmente, a aplicação excepcional de medida sócio-educativa
jamais teve por causa a circunstância de não possuir o jovem
entre dezoito e vinte e um anos plena capacidade para praticar, por si,
os atos da vida civil. Não importa, para a incidência da medida
sócio-educativa, se o adolescente pode adquirir direitos ou contrair obrigações
por conta própria, ou se pode ou não celebrar contratos, emitindo validamente
sua vontade sem a necessidade de assistência. Afinal, a medida sócio-educativa é aplicada à revelia
da vontade do infrator, e normalmente em oposição à vontade deste. Não há um
ato próprio da vida civil, mas a sujeição a uma imposição judicial.
A causa do limite de 21 anos no ECA
na verdade é outra: a aplicação excepcional se justifica na medida em que há o
interesse de evitar que não venham a ser sancionados delitos graves (que
justificam, nos termos do art. 122 do ECA, a imposição da medida de internação[3])
praticados pelo jovem em vias de adquirir a maioridade criminal. Não fosse a regra
da aplicação excepcional, um homicídio praticado por alguém na véspera de
completar dezoito anos permaneceria isento de resposta no ordenamento jurídico,
não recebendo o seu agente qualquer sanção.
E por que exatamente 21 anos? A explicação está no fato de
que o ECA estabelece em três anos o prazo máximo de internação (art. 121, § 3°)[4]. O termo inicial é 18 anos, pois pelos atos posteriores
o jovem responderá criminalmente; somando-se três anos chega-se à idade de 21
anos. Percebe-se, então, que, se o prazo máximo de internação fosse outro, a
aplicação excepcional da medida precisaria acompanhar a mudança. Não por acaso,
no projeto de lei n° 6.923/2002, atualmente em tramitação na Câmara, ao mesmo
tempo em que se propõe o aumento do prazo de internação máximo para seis anos[5], o limite etário para a perpetuação da medida passa a
ser vinte e quatro anos.
Há de ser considerado, também, que, no que diz respeito a
atos infracionais[6], o ECA
constitui lei especial. Como tal é reconhecido pela própria Constituição
Federal: "São penalmente
inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação
especial" (art. 228, grifo nosso). Há de
se levar em conta, então, o disposto no art. 2°, § 2°, do Decreto-lei n°
4.657/42 (Lei de Introdução ao Código Civil), segundo o qual: "A lei nova, que
estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não
revoga nem modifica a lei anterior".
Sobre o tema, a lição de Maria Helena Diniz é:
"Para
que haja revogação é preciso que a disposição nova, geral ou
especial, modifique expressamente ou insitamente
a antiga, dispondo sobre a mesma matéria diversamente. Logo, lei nova geral
revoga a geral anterior, se com ela conflitar. A norma geral não revoga a
especial, nem a nova especial revoga a geral, podendo com ela coexistir (...),
exceto se disciplinar de modo diverso a matéria normada,
ou se a revogar expressamente"[7].
Diante disso, sabendo-se que o novo Código Civil nada
disciplinou sobre o ato infracional, e muito menos
sobre a aplicação de medidas sócio-educativas, não se poderia concluir que as
disposições especiais e específicas do ECA estariam
revogadas.
O problema mais grave que se detecta na referida tese não
está tanto na confusão entre maioridade civil e maioridade para fins penais,
mas sim na forma temerária com que se interpreta o novo Código Civil, com uma
busca por derrogações no ECA sendo empreendida
aparentemente sem atenção às repercussões do que está sendo proposto.
Sobre a tarefa do hermeneuta, cabe sempre recordar a lição de
Carlos Maximiliano[8]:
"Deve o direito ser interpretado
inteligentemente e não de modo a que a ordem legal envolva um absurdo,
prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou
impossíveis."
Ora, com certeza há de repugnar a qualquer consciência que
crimes como o homicídio, o estupro e o latrocínio possam ser praticados em
qualquer sociedade sem nenhum tipo de sanção. Propor que adolescentes autores
de delitos desse tipo permaneçam livres de qualquer espécie de reprimenda é
certamente absurdo e despropositado. Afinal, leis não são brinquedos para que
possam ser manipuladas sem que se leve em conta as
conseqüências. Sugerir que não existe no ordenamento jurídico norma vedando que
adolescentes matem ou estuprem é obviamente impossível, e revela pouca
consideração para com o Direito enquanto sistema que precisa preservar sua
coesão lógica e função social[9].
Conclusões semelhantes já foram rejeitadas pela
jurisprudência:
"A
prevalecer a orientação do magistrado, o menor não
sofrerá qualquer corretivo: nem a nível da lei menorista
(visto que, segundo o primeiro, estaria ela imune à jurisdição de menores), nem
a nível de lei penal, quando não praticou a infração na condição de imputável.
Em outras palavras, permanecerá impune pela simples circunstância de haver
atingido 18 anos após a prática de ato anti-social, mas antes do julgamento da
sindicância, ou seja, não será alcançada por qualquer das 'jurisdições'
mencionadas. Justamente para obviar essa situação é que o legislador menorista insculpiu no texto
codificado a regra do § 1° do art. 99 (atual art. 2°, parágrafo único, do
ECA)"[10].
"Lembra-se,
a propósito, que jurisprudência desta Câmara Especial é no sentido de que a
simples aquisição da maioridade, em momento posterior à prática da infração,
não justifica o arquivamento da sindicância. A orientação contrária conduziria
à ampla e indesejável impunidade de qualquer menor que praticasse infração
tipificada como crime às vésperas de completar a maioridade". [11]
A adoção da tese de revogação do ECA
conduz, ainda, a outras situações contraditórias. Se a aquisição da capacidade
civil plena isenta o jovem maior de 18 anos de medida sócio-educativa, então
pelo mesmo motivo o emancipado maior de 16 e menor de 18 deveria usufruir do mesmo benefício[12]. A emancipação tornar-se-ia,
então, uma forma de adquirir o "direito" de praticar delitos
impunemente. Aliás, por coerência os defensores da tese deveriam ter sustentado
tal ponto de vista ainda sob a égide do Código Civil revogado, procurando
livrar de internação o menor de vinte e um anos emancipado.
Ainda por coerência, deveriam os defensores da tese enunciar
que também o Código Penal está derrogado. Se o que importasse para fins de
aplicação de sanção decorrente da prática de delito fosse a capacidade civil
plena, teria desaparecido a circunstância atenuante de possuir o agente menos
de vinte e um anos (art. 65, I, do CP).
Cabe mencionar, por fim, que além das incorreções já
discutidas, a tese de impossibilidade de internação do maior de 18 anos
contribui para o fortalecimento dos argumentos favoráveis à diminuição da
maioridade penal. Atualmente, sabe-se que a opinião pública é seduzida pela
falsa idéia de que o adolescente infrator, autor de delitos graves, permanece impune,
omitindo-se nesse discurso, entre outras coisas, o fato de que ao adolescente
são aplicadas medidas que também possuem cunho sancionador. A prevalecer a mencionada tese, no entanto, tal impunidade tornar-se-ia
real, o que conduziria fatalmente à aprovação da redução da imputabilidade
penal, com todos os prejuízos daí decorrentes.
Notas
[1] Parecer elaborado a partir de consulta formulada ao
CAO-IJ e homologado pela Dra. Simone Mariano da Rocha, Procuradora de Justiça Coordenadora.
[2] Eventualmente, também a medidas protetivas
(art. 112, VII).
[3] A internação é a única medida sócio-educativa com relação
à qual há disposição expressa no ECA a respeito de sua
aplicação ao maior de 18 anos (satisfazendo o requisito previsto no 2°,
parágrafo único).
[4] No mesmo sentido a lição de
Wilson Donizeti Liberati: "Isso vem
provar que o adolescente, com 17 anos e 11 meses, considerado autor de ato infracional poderá, em cumprimento a
medida de internação aplicada pelo juiz, permanecer privado de sua liberdade
até completar 21 anos, vencendo o triênio estipulado pelo § 3° acima
citado" (Em Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, 4ª
ed., Malheiros Editores, p. 96).
[5] O que nos parece um exagero,
transparecendo uma intenção apenas punitiva e não educativa, não podendo ser
dito que seis anos de internação seriam compatíveis com os princípios da
brevidade e excepcionalidade previstos no art. 121 do ECA.
[6] É claro que não apenas com
relação a esse tema o ECA apresenta-se como lei
especial, mas todos os aspectos relacionados à proteção integral da criança e
do adolescente.
[7] Em Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro
interpretada, 4ª ed. , Saraiva, p. 75.
[8] Em
Hermenêutica e Aplicação do Direito, 2º ed. ED. Livraria do Globo, 1933, p.
183.
[9] O argumento da Defensoria Pública
do Rio de Janeiro tendente a evitar tal absurdo, conforme publicado no
periódico antes referido, dispensa maiores comentários: "Por uma questão de bem-estar da sociedade, quando se tratar de
jovem que cometeu crime bárbaro, e a Defensoria entender que o melhor para ele
é continuar na unidade, a gente não vai pedir o habeas
corpus".
[10] Decisão do
TJSP, transcrita por Alberto Silva Franco em Código Penal e sua interpretação
jurisprudencial, v. 2, 6ª ed., RT, p. 390.
[11] Decisão do TJSP, transcrita por Válter
Kenji Ishida em Estatuto da
Criança e do Adolescente, 2ª ed., Atlas, p. 194.
[12] Corrigindo tal conclusão, José
de Farias Tavares afirma que: "A
doutrina penal, em harmonia com a civilista, ensina que, mesmo tendo o menor de
18 anos obtido emancipação por uma das modalidades previstas no Código Civil,
não passa à maioridade penal por antecipação, permanecendo, portanto, na
condição de inimputável". (Em Direito da Infância e da Juventude, Del Rey, p. 166).