TODA CRIANÇA E ADOLESCENTE TÊM DIREITO A UM CONSELHO!
Rosângela Martins de Alcântara Zagaglia
Coordenadora de Pós-Graduação em Direito Especial da Criança e do Adolescente da UERJ.
Conselhos de Direitos
Na década de 80 emerge a necessidade de serem criados e instituídos mecanismos de controle dos atos do Poder Público. A sociedade não se contentava mais em participar politicamente só através do voto para expressar sua cidadania. Os novos tempos estavam a exigir uma forma moderna de exercício de direitos num processo de reconstrução da identidade social.
A sociedade, clamando por uma atuação mais direta na formulação e na execução das políticas sociais, exigiu e reivindicou uma forma nova de participação política. De outra parte, o próprio Estado, diante da complexidade das graves questões sociais da atualidade, reconhece que, na forma de sua organização, é grande demais para pequenos problemas e pequeno para os graves problemas. A convergência natural dessas duas vertentes levou, de um lado, a sociedade a se organizar civilmente e, de outro, o Estado a repartir o monopólio do poder.
No que diz respeito à revisão da atuação estatal na questão da infância e da adolescência, toda essa agitação social tem como finalidade reverter a crise econômica, a má distribuição de renda, a minimização da situação sociojurídica das crianças e adolescentes pobres, o estabelecimento de políticas públicas voltadas ao interesse e à realidade da população e coibir o avanço da violência contra as crianças e os adolescentes.
Associado ao movimento de participação social, no processo de
decisão do Poder Público, estava um conjunto de normas internacionais visando
ao rompimento definitivo da doutrina da situação irregular que inspirava o
então vigente Código de Menores de 1979. A lei penalizava a infância pelos
desajustes da conjuntura socioeconômica e chegava ao extremo de que a pobreza
era motivo para punir a criança, quer pela privação da liberdade através da
institucionalização, quer pela destituição do pátrio poder (terminologia
legal da época).
A questão da criança era tratada pelo enfoque policial ou pelo paternalismo exacerbado e ainda pela "BONDADE" judicial.
A legislação menorista não considerava os direitos fundamentais inerentes a todos os seres humanos, as condições de risco pessoal e social e suas violações. Muitas vezes a criança recebia a privação da liberdade, através das intermináveis internações, por ser vítima das violações ou até mesmo pelo risco de sofrê-las.
Na verdade, pretendia-se proteger a sociedade, colocando-se por trás de muros os excluídos desde a tenra infância e não proteger os infanto-juvenis dos abusos, omissões e violações dos direitos das Crianças e dos Adolescentes.
Todavia, uma parcela social considerável foi absorvendo a nova concepção sociojurídica e a normativa internacional de proteção integral, a qual teve grande influência, como exemplo a Declaração Universal dos Direitos da Criança - 1959, embora o vasto tempo decorrido.
Assim é que a Constituição Federativa do Brasil no art. 1º constitui-se em ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. Como esse artigo, o 2º, o 3º e o 4º fazem parte do Capítulo dos princípios fundamentais.
Pela sistemática legislativa, os demais dispositivos são desdobramento analítico dos 4 (quatro) primeiros artigos. E, nesse desdobramento, vemos os arts. 133 e 134 - Funções essenciais à justiça - a Advocacia e a Defensoria Pública. Estas funções não só estão a desempenhar a essencialidade da justiça, mas a garantir o ESTADO de Direito, a agir conforme a lei.
A Constituição vai além e assegura a igualdade de todos perante a lei (art. 5º da CF), o acesso à justiça, à assistência jurídica integral e gratuita (art. 5º, LXXIV, da CF), nesse momento, passa a garantir o ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.
Dessa forma, não basta só agir conforme a lei. É preciso o controle desse agir e com a participação social no processo de tomada de decisões estabelecendo políticas públicas imprime-se, além das outras formas de controle previstas na lei, o controle social direto. Esta assertiva torna imprescindível a igualdade de oportunidade a todos.
Assim, o Estado de Direito, com a ampla defesa, a igualdade na relação processual, o contraditório, o acesso à justiça por profissional técnico habilitado, o formal e pleno conhecimento da atribuição do Ato Infracional, transmuta-se em Estado Democrático de Direito, com a assistência jurídica integral e gratuita aos que têm insuficiência de recursos (arts. 1º e 5º, LXXIV, da Constituição Federal). Em suma, a participação social levou a viabilizar os direitos das crianças e adolescentes, por intermédio do exercício dos direitos fundamentais da pessoa humana, e o revestimento de decisões, que muitas vezes decorriam de políticas perversas em decisões do Poder Público, originou a inserção na Constituição Federal dos arts. 227 e 204 e o sancionamento da lei nº 8069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente, que lhe dá efetividade. Textos esses onde se assenta a gênese do Conselho de Direitos.
Fundamento Jurídico dos Conselhos de Direitos
Os Conselhos de Direitos encontram suporte jurídico nos arts. 227, § 7º, e 204, II, da Constituição Federal. Veja-se, a propósito a congregação desses textos:
As ações governamentais (art. 204 da CF) que visem ao
atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente (art. 227, § 7º, da CF)
levarão em consideração (art. 227, § 7º, da CF) a diretriz da participação
popular por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e
no controle das ações em todos os níveis (art. 204, II, da CF). "Uma
das diretrizes de política de atendimento (art. 88, caput - ECA) é a criação de
Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional dos direitos da
Criança e do Adolescente, órgãos deliberativos e controladores das
ações, em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio
de organizações representativas segundo leis Federais, Estaduais e Municipais
(art. 88, III, ECA)".
Com essas congregações e dispositivos legais, teremos a Declaração dos Direitos e Garantias dos Infanto-Juvenis. E, assim, nas questões afetas às crianças e aos adolescentes, deixa de existir uma política governamental para surgir a política pública para o atendimento com responsabilidade paritária entre governo e sociedade civil.
Não obstante as cores modernas impressas nos textos legais brasileiros quanto à participação social, com o clamor cívico da década de 80, já no Código de Mello Mattos, de 1927, previa-se a criação do Conselho de Assistência e Proteção aos Menores, inclusive com um fundo de participação (art. 222 e segs. do Decreto Federal 17.943A), o que infelizmente ficou em estado embrionário.
Natureza Jurídica
Os Conselhos de Direitos são órgãos colegiados cuja composição é paritária entre entidade governamentais e não governamentais, isto é, terá na composição igual número de representantes, seja do poder público seja da sociedade civil. Integra ao Poder Público Executivo em suas três esferas de abrangência: Federal, Estadual e Municipal. Nas três esferas administrativas, será sempre observada a descentralização político-administrativa dos programas específicos (art. 88, III, ECA), com a aplicação de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos Conselhos de Direitos (art. 88, IV, do ECA), visando à municipalização do atendimento (art. 88, I, ECA).
Finalidade
Os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente têm dupla finalidade legal: 1) – elaboração de políticas para a infância e adolescência que visem ao atendimento (arts. 86 e 87 do ECA), o que decorre do caráter deliberativo, onde se discute, aprova e delibera sobre a política e a aplicação dos recursos públicos, dos fundos a ele ligados. Os critérios a serem utilizados na elaboração dessas políticas são a prioridade, a conveniência e a oportunidade, tanto dos representantes do governo como os da sociedade; 2) – controle da execução da política de atendimento. Isso significa que não as executa e sim acompanha, verifica e examina como as deliberações estão sendo implementadas, seja na aplicação dos recursos dos fundos destinados aos programas governamentais ou dos desenvolvidos por entidades não-governamentais, seja na verificação da atuação de todas as instituições de atendimento à criança e ao adolescente, direitos e garantias legais e princípios pedagógicos no atuar.
É por isto mesmo que membros do Poder Legislativo e do Judiciário não devem integrá-lo. O sistema de controle da atividade administrativa no Brasil dota os demais poderes de mecanismos próprios para o chamado controle externo da legalidade dos atos da administração pública.
Essa circunstância, porém, ao invés de inibir uma atuação política dos membros do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público, acaba por fomentá-la, na medida em que estes, se lá tiverem assento, provavelmente, na atuação política, restringir-se-ia a própria participação dos representantes no Conselho, o que descaracteriza uma atuação política institucional desses poderes.
Vale dizer que a atuação política está na ação e no conteúdo dessa ação e não na forma ou formalidade jurídica de que se reveste.
Os membros do Legislativo e do Judiciário, obviamente, não necessitam de assento nos Conselhos de Direitos para que atuem institucionalmente nessa questão, muito pelo contrário. Que há de fazer em um conselho paritário de formulação de política, quem tem o poder de legislar ou de julgar?
No caso específico da magistratura, cabe ainda lembrar que o Estatuto da Criança e do Adolescente lhe reserva uma série de atribuições tipicamente administrativas e de jurisdição voluntária, o que oferece um campo propício para uma atuação política, fora das amarras dos rígidos princípios, que regem a função jurisdicional. Note-se, por exemplo, que, ao regulamentar atividades, ingresso e permanência em locais públicos, por intermédio da expedição de portarias, pode o magistrado exercer uma atuação política muito mais direta e eficaz do que a política do Conselho.
Por outro lado, há uma lacuna ainda não preenchida e na qual poderão os membros do Legislativo, Magistratura e Ministério Público influir diretamente nas políticas para a infância e adolescência. Essa atuação será de caráter didático e até de induzimento à implantação dos Conselhos dos Direitos e seu fortalecimento no meio social.
Atribuições
Cabe aos Conselhos de Direitos as atribuições:
a) CONSCIENTIZADORA
a1) divulgação dos direitos e garantias às crianças e adolescentes visando implantar a proteção integral a eles conferida por Lei;
a2) promoção de intercâmbio entre órgãos governamentais e não-governamentais que executam política de atendimento à criança e ao adolescente;
a3) acompanhamento de casos de violação de direitos a crianças e adolescentes, como forma de cumprir a finalidade estabelecida em Lei (arts. 86 e 87 do ECA);
a4) visitação a instituições com o fito de cumprir a finalidade estabelecida em Lei (arts. 86 e 87 do ECA). É importante assinalar que só terá cunho de fiscalização se a Lei que criou o Conselho de Direitos assim expressamente o atribuir.
b) MODIFICADORA
b1) estabelecimento de normas de inscrição e registro de entidades de atendimento (art. 90, parágrafo único, do ECA). Aqui cabe ressaltar que só os Conselhos MUNICIPAIS de Direitos terão essa atribuição, por determinação legal.
A razão é absolutamente lógica, haja vista que os programas que as entidades desenvolvem, o fazem na base territorial dos municípios e quem tem o dever legal de execução do atendimento é a municipalidade (art. 88, I, do ECA).
Dessa forma, como o Estatuto da Criança e do Adolescente contém um sistema encadeado, só os Conselhos Municipais de Direitos podem desempenhar essa atribuição específica. Vale lembrar que cabe aos Conselhos de Direitos comunicar à Autoridade Judiciária e aos Conselhos Tutelares os programas inscritos na sua base territorial, isso porque esses são órgãos que aplicam as medidas às crianças e aos adolescentes (art. 101 do ECA) e aos pais ou responsável (art. 129 do ECA), no limite que a Lei estabelece, bem como fiscalizam as entidades (art. 95 do ECA). Outra razão que se alinha a essas, numa visão sistêmica da Lei, é o artigo 261 do ECA, que diz:
À falta dos Conselhos Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente, os registros, inscrições e alterações a que se referem os Artigos 90, parágrafo único, e 91 desta Lei, serão efetuados perante a autoridade judiciária da comarca a que pertencem.
Destarte, a Autoridade Judiciária, à falta de Conselho Municipal - e somente esse faz-lhe as vezes - na atribuição delegada, e como tal específica, de inscrever, registrar ou alterar o programa de entidade de atendimento, seja governamental ou não governamental. Assim, só essa atribuição, dentre as determinadas em Lei para o Conselho de Direitos, é conferida à Autoridade Judiciária;
b2) incentivar e promover o reordenamento institucional dos órgãos do Poder Público afetos ao atendimento a crianças e adolescentes. Depreende-se de tal atribuição a finalidade de controle das ações em todos os níveis, pois não seria lógico que o legislador determinasse expressamente essa finalidade se não houvesse objetivo vinculado;
b3) sugerir e opinar sobre proposta orçamentária indicando, inclusive, percentual para as políticas de atendimento e para o Fundo da Infância e Adolescência;
b4) elaborar proposta de alteração na legislação em vigor para o atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente em todo os níveis.
c) ADMINISTRATIVA
c1) gerir o Fundo da Infância e da Adolescência, para que os recursos orçamentários e de doação sejam aplicados de conformidade com a política de atendimento; mas, se estivermos diante de Fundo Municipal de Direitos, este também recebe o valor das multas aplicadas pela Autoridade Judiciária. O FIA, o qual é criado por lei, art. 167, IX, da CF, cujos objetivos e receitas que o constituem hão de estar inseridos na norma legal (arts. 88, V e 260, ambos do ECA). Essa despesa de custeio há de estar inserida na Lei Orçamentária. Assim é que a lei orçamentária (União, Estados e Municípios) terá de fixar verba compatível para garantir o funcionamento condigno dos Conselhos de Direito.
Os fundos especiais e, principalmente, o FIA não deverão ser os garantidores do pagamento de pessoal, isto porque, do ponto de vista legal, é um fundo com previsão específica na lei federal 8069/90, e a própria natureza é absolutamente contrária a essa utilização.
O gasto com pessoal é despesa típica de custeio, a qual evidentemente há de ser orçamentada. As verbas de fundos especiais devem ser utilizadas no financiamento de projetos, com início e fim previstos, além do que a aplicação dos recursos do FIA, cuja destinação é vinculada, fica a critério técnico e administrativo dos conselheiros dos Conselhos de Direitos, que apresentam contas da utilização do FIA aos Tribunais de Contas e também são fiscalizadas pelo Ministério Público;
c2) elaborar regimento interno dos Conselhos de Direitos;
c3) presidir o procedimento de escolha dos membros do Conselho Tutelar;[1]
c4) elaborar o regimento interno dos Conselhos Tutelares e, ainda, prevendo de maneira uniforme a emissão das deliberações quanto à forma - elemento essencial dos atos administrativos, privativos dos Conselhos Tutelares;
c5) inscrever e registrar os programas das entidades de atendimento e, inclusive, baixar Resolução a respeito dos programas.
Por derradeiro, mas não menos importante, é que a função dos Conselheiros de Direitos da Criança e do Adolescente não pode ser remunerada (art. 89 do ECA). A razão é cristalina, pois os representantes governamentais já recebem em decorrência dos cargos ou funções gratificadas que exercem nos governos. E, quanto aos representantes da sociedade civil, a entidade para a qual desempenham sua atividade deve custeá-los, pois, se recebessem qualquer valor dos cofres públicos, a representatividade da sociedade civil organizada tornar-se-ia viciada.
A função de membro do Conselho de Direitos é de interesse público relevante e sujeito aos princípios da administração pública.
Notas:
[1]
Obs: As atribuições administrativas c3, c4 e c5 somente correspondem aos
Conselhos Municipais de Direitos.