OS FUNDOS ESPECIAIS

 

Ricardo Lobo Torres
Professor Titular de Direito Financeiro na UERJ.

 


Resumo:
O autor analisa os fundos criados  pela Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) vinculados aos respectivos Conselhos de Direitos a nível federal, estadual e municipal, enfocando-os dentro do panorama geral dos fundos especiais, tendo como pano de fundo o direito constitucional, administrativo, financeiro e tributário. Da mesma forma, disserta sobre o Fundo Nacional da Criança e do Adolescente (FNCA) criado pela Lei nº 8.242/91 e regulamentado pelo Decreto nº 1196/94, preocupando-se sempre em conceituá-los, esclarecendo acerca de sua natureza jurídica, objetivos, formas de utilização e controle.

 

Sumário
 

1. Introdução ao tema.

2. Conceito.

3. Fontes.
3.1. Os fundos constitucionais.

3.2. Os fundos legais.
3.3. A reserva de lei complementar.

4. Natureza jurídica.

5. Vedações constitucionais.

            

1         - Introdução ao Tema

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13.7.90) fixou, entre as diretrizes da política de atendimento, a manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do
adolescente (art. 88, IV). Estabeleceu ainda que os Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente fixarão critérios de utilização, através dos planos de aplicação, das doações subsidiadas e demais receitas,
aplicando necessariamente percentual para incentivo ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente, órfão ou abandonado. Compre examinar as principais características jurídicas do Fundo da Criança e do Adolescente, o que postula a visão geral da problemática dos fundos especiais.

 

2 - Conceito
 

Os fundos especiais são instrumentos de descentralização da administração financeira. Constituem uma universalidade de receitas vinculadas a despesas específicas. Administrados pelo órgão público indicado na lei, subordinam-se ao controle
externo do Tribunal de Contas.

 

A Lei nº 4.320, de 17.3.64, define: “constitui fundo especial o produto da receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação” (art. 71).

 

3 - Fontes
 

Os fundos podem ter fonte constitucional ou legal e as normas gerais que os regulam encontram-se sob reserva de lei complementar.

 

3.1. Os Fundos Constitucionais

 

A Constituição utiliza os fundos como instrumento de repartição de receitas tributárias. Os tributos são partilhados entre a União, os Estados e os Municípios segundo o critério estabelecido nos arts. 145 a 156 da CF. Além dessa discriminação originária de rendas, estabelece a CF a repartição do produto da arrecadação dos impostos alheios, isto é, com o objetivo de manter o equilíbrio financeiro vertical no federalismo estabelece participações sobre a arrecadação, que consistem no recebimento de parcelas de tributos da competência legislativa ou administrativa de outro ente público. Tais participações
podem ser incondicionadas e condicionadas, ou indiretas e diretas. O Brasil tem caminhado, nas últimas décadas, para o aperfeiçoamento do regime de participações, com apoio importante da doutrina, embora alguns juristas critiquem o sistema, por entendê-lo centralizador e ofensivo à autonomia municipal.  Nos Estados Unidos. as participações impositivas (revenue sharing, tax sharing) passaram também a ser largamente empregadas; caracterizam-se por ser quase sempre incondicionais, desvinculadas de programas específicos, servindo principalmente para a redistribuição de recursos dos Estados aos entes menores; discute-se a respeito de sua superioridade sobre as subvenções condicionadas (grants-in-aid).

 

As participações incondicionadas são entregues diretamente e independem de vinculação a despesa ou serviço, incumbindo ao próprio ente público beneficiário traçar as diretrizes para o gasto. Na CF aparecem nos arts. 157 e 158, e compreendem a participação dos Estados na arrecadação do imposto de renda e dos municípios na do imposto de renda, do imposto territorial rural e do ICMS.

 

As participações condicionadas vinculam-se a despesas específicas e são entregues indiretamente através dos Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios (art. 159), sendo calculadas sobre a arrecadação do imposto de renda e do imposto sobre produtos industrializados. O que caracteriza a partilha de recursos através de Fundos é que o numerário ingressa originariamente no Fundo e é repassado segundo o sistema de cotas calculadas de acordo com critérios estabelecidos em lei, ficando o emprego das importâncias transferidas sujeitas ao controle do Tribunal de Contas da União.

 
De uns tempos para cá, a tendência da CF é aumentar o valor das participações dos Estados e Municípios e afrouxar os controles sobre a administração dos recursos, que se achavam excessivamente centralizados na União, dentro da política que privilegiava o desenvolvimento econômico e visava a coibir a dispersão de dinheiro público ou o seu emprego com finalidades estritamente locais ou perdulárias. No sistema dos Fundos de Participação, portanto, a distribuição dos recursos aos entes beneficiados se faz indiretamente, servindo o Fundo de mecanismo contábil para o cálculo e a entrega.
Fundos de Participação constituem forma refinada e produtiva de redistribuição de receita, desde que assegurem a entrega do numerário dentro de prazos curtos e que estabeleçam o meio-termo entre o centralismo financeiro e a pulverização dos
recursos em finalidades afastadas do interesse público.

 

Algumas emendas constitucionais exóticas também cuidaram de fundos especiais. Assim a Emenda de Revisão nº 1, de 1.3.94, instituiu, nos exercícios de 1994 e 1995, o Fundo Social de Emergência, com o objetivo de saneamento financeiro da Fazenda Pública Federal e de estabilização econômica, cujos recursos seriam aplicados no custeio das ações dos sistemas de saúde e educação, benefícios previdenciários e auxílios assistenciais de prestação continuada, inclusive liquidação de passivo previdenciário, e outros programas de relevante interesse econômico e social; posteriormente, pela Emenda Constitucional nº 10, de 1996, o Fundo Social de Emergência foi revigorado para viger até 30.6.97, passando a se chamar Fundo de Estabilização Financeira. A Emenda Constitucional nº 12, de 1996, criou a contribuição provisória sobre movimentação financeira (CPMF) e a vinculou integralmente ao Fundo Nacional de Saúde para o financiamento das ações e serviços de saúde.

 

3.2. Os Fundos Legais

 

Outros fundos são criados por lei, na forma exigida pelo art. 167, item IX, da CF, que veda a instituição de fundos de qualquer natureza sem prévia autorização legislativa. Compõem-nos as receitas provenientes de contribuições ou taxas e das dotações orçamentárias específicas, além de doações e outros ingressos previstos na lei que os instituir. São inúmeros os fundos especiais existentes no Brasil, criados em decorrência da necessidade de descentralização da administração financeira e da garantia de recursos para os gastos em serviços e prestações relevantes.

 

Desse naipe é o Fundo Nacional da Criança e do Adolescente (FNCA), criado pela Lei nº 8.242/91, regulamentada pelo Decreto nº 1.196/94. Tem como receita: as doações de pessoas físicas e jurídicas dedutíveis do imposto de renda, nos termos de legislação específica; os recursos orçamentários; contribuições dos governos e organismos estrangeiros e internacionais; o resultado de aplicações do governo e organismos estrangeiros e internacionais; o resultado de aplicações no mercado financeiro (art. 6º da Lei 8.242/91). As diretrizes, critérios e prioridades para a aplicação das disponibilidades
financeiras existentes serão fixadas
pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA). Os recursos do FNCA serão movimentados através de conta específica em instituições financeiras federais, permitindo-se sua aplicação no mercado financeiro (art. 6º do Decreto 1.196/96).

 

3.3. A Reserva de Lei Complementar

 

As normas gerais sobre as condições para a instituição e funcionamento de fundos encontram-se sob a reserva de lei complementar (art. 165, § 9º, II, da Constituição). Não tendo sido editada até hoje a lei complementar financeira, continuam a prevalecer ar regras da Lei 4.320, de 17.3.64.

 

4 - Natureza Jurídica
 

Os fundos especiais são entes despersonalizados, não passando de uma universalidade de recursos vinculados a determinadas despesas. São instrumentos meramente contábeis para a consecução de objetivos administrativos e políticos do Estado. Na estrutura do governo, portanto, os fundos estão atrelados aos órgãos públicos que, indicados por lei, são incumbidos de sua administração. O Fundo Nacional da Criança e do Adolescente, por exemplo, vincula-se ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.242/91); os fundos estaduais e municipais vinculam-se aos conselhos estaduais e municipais dos direitos das crianças e dos adolescentes (Lei 8.069, de 13.7.90 - art. 88, II). Mas, ressalte-se, o órgão público não é o titular da receita pertencente ao fundo especial, senão que apenas tem o dever legal de zelar pela integridade do fundo e de utilizar as ações necessárias à manutenção dos seus objetivos. 

 

Outra característica importante dos fundos especiais é que os seus beneficiários também não têm a titularidade para exigir o pagamento dos recursos que os compõem. 

 

Uma terceira nota distintiva consiste em que o fundo especial não se subordina ao princípio da unidade de tesouraria (art. 56 da Lei 4.320/56), isto é, os seus recursos podem ser mantidos fora da “caixa única” do governo. Os fundos especiais criados por lei, da mesma forma que aqueles previstos na Constituição, ficam sob uma certa suspeita de serem prejudiciais à administração financeira, pela pulverização dos recursos que provocam e pela manutenção de contas bancárias à margem da caixa única. A sua legitimidade dependerá dos objetivos específicos e relevantes de suas despesas e da possibilidade de angariar receitas extra-orçamentárias, como é o caso dos fundos da criança e do adolescente.

 

5 - Vedações Constitucionais
 

A CF proíbe, no art. 167, IV, a vinculação da receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos referidos nos arts. 158 e 159, a destinação de recursos para manutenção e desenvolvimento do ensino, como determina o art. 212, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º. A Constituição anterior proibia a vinculação de qualquer tributo. A permissão para que se vinculem a fundos as receitas correspondente às contribuições justifica-se pelo fato de a CF 88 haver-lhes atribuído a
natureza tributária (art. 149), criando autênticos impostos com destinação especial (contribuição social sobre o lucro, COFINS, CPMF, etc.), inteiramente desvinculados da característica contraprestacional que as informa.