O SISTEMA DE GARANTIA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE
Olympio de Sá Sotto Maior
Neto
Procurador
de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná.
No quadro
real de marginalidade em que se encontra a grande maioria da população
brasileira (integrante do país que se transformou em campeão mundial das
desigualdades sociais, decorrência da extraordinária concentração de riquezas
em mãos de poucas pessoas), padecem especialmente as crianças e adolescentes,
vítimas frágeis e vulneradas pela omissão da família, da sociedade e,
principalmente, do Estado, no que tange ao asseguramento
dos seus direitos elementares. Diante de um contexto de desassistência
e abandono experimentado pela grande maioria das crianças e adolescentes
brasileiros (calcula-se a existência de cerca de 40 milhões de carentes e
abandonados), pretende-se que as regras
de cidadania contempladas no ordenamento jurídico em prol da população
infanto-juvenil não permaneçam meras declarações retóricas, exortações morais,
singelos conselhos ao administrador e, porque assim tomadas, postergadas na sua
efetivação ou relegadas ao abandono. As crianças e adolescentes vítimas do
holocausto permanente ditado pelas absurdas taxas de mortalidade, aquelas que
apresentam lesões cerebrais irreversíveis decorrentes da subnutrição, as que se
encontram nas ruas sobrevivendo através da esmola degradante, bem como as que
não têm acesso à educação ou à saúde (enfim, as sem oportunidade de vida digna),
não podem mais aguardar que a “natureza das coisas” ou o “processo histórico”
venham a intervir para a materialização daquilo que lhes foi prometido como
direitos fundamentais (até porque entre nós já comparece concreta - e
produzindo seus efeitos nocivos) a proposta da hipocrisia neoliberal travestida
de globalização econômica, tendente a transferir os foros das decisões
políticas, sociais e econômicas dos espaços da soberania nacional para os
escritórios acarpetados das empresas multinacionais ou transacionais, com
significativos prejuízos às questões sociais (afinal, não é por acaso que o
governo brasileiro se vangloria do pagamento da dívida externa e não se
envergonha com a sua crescente dívida social), sendo que “a mão invisível do
mercado”, por certo, não tem olhos (nem coração) para enxergar nossas crianças
entregues à miséria social e conseqüente subcidadania).
Daí a
importância – e absoluta necessidade – da interferência positiva do denominado sistema
de garantia dos direitos das crianças e adolescentes, vale dizer: a) no
aparelho de Justiça - o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria
Pública; b) na política de atendimento - os Conselhos de Direito e os Conselhos
Tutelares, máxime considerando que o legislador do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), regulamentando a regra magna do art. 227, da Constituição
Federal e absorvendo os ditames da doutrina da proteção integral, materializou
proposta de dar atenção diferenciada à população infanto-juvenil e, como
fórmula para estabelecer igualdade material, entendeu-se indispensável que as
crianças e adolescentes perseguidos, vitimizados,
excluídos, marginalizados na realidade social (vale dizer, à margem dos
benefícios produzidos pela sociedade) viessem a receber, pela lei, um
tratamento desigual (porque desiguais na realidade social), necessariamente
privilegiado. Assim, pela nova legislação, as crianças e adolescentes não podem
mais ser tratados como meros objetos de intervenção do Estado, devendo-se agora
reconhecê-los sujeito dos direitos elementares
da pessoa humana, de maneira a propiciar o surgimento de verdadeira “ponte de
ouro” entre a marginalidade e a cidadania plena. Alertado pela realidade social
e alentado pelo propósito de justiça (com a ocorrência de absoluta sintonia à
idéia de que o enfrentamento ao subdesenvolvimento – bem como à subcidadania – dá-se mediante a efetivação de direitos),
restou estabelecido um conjunto de normas pertinente ao direitos fundamentais
da população infanto-juvenil (objetivando pormenorizar o que se encontra
genericamente indicado no texto constitucional, além de capítulo próprio para
tratar da proteção judicial dos interesses individuais, coletivos e difusos
relacionados à infância e juventude) e, ainda, formulou-se diretrizes de uma
nova política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente,
contemplando a criação dos Conselhos de Direitos e dos Conselhos Tutelares.
Entretanto, levando-se em conta que a lei, por si só (e por melhor que seja),
não tem o condão de alterar a realidade social, sendo que o exercício dos
direitos nela estabelecidos é que vai produzir as transformações desejadas
(especialmente no que tange ao anseio da instalação de uma sociedade
progressivamente passem a se melhor e mais justa), o empenho de todos - e do
sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente em especial - deve
se dar, então, na linha de que as previsões do ECA constituir instrumentos de
materialização das promessas de cidadania contidas no ordenamento jurídico,
principalmente de molde a obrigar o Estado a cumprir seu papel institucional e
indelegável de atuar concretamente no campo da promoção social, efetivando
políticas sociais básicas, políticas sociais assistenciais em caráter supletivo
e programas de proteção especial destinados a crianças e adolescentes em
situação de risco pessoal e/ou social.
Como
interveniente obrigatório e fundamental nesse processo se encontra a Justiça da
Infância e Juventude, que agora, em razão da Lei nº 8.069/90, assume função
(diga-se, elevada em dignidade) de ser espaço destinado à garantia dos direitos
da população infanto-juvenil. A nova postura da Justiça frente aos temas
relativos a crianças e adolescentes encontra base no fato de que o legislador
do ECA fez por inscrever capítulo próprio para tratar da proteção judicial dos
interesses individuais, coletivos e difusos relacionados à infância e
juventude. A idéia central é a de que as regras enunciadas na lei se constituem
comandos obrigatórios à família, à sociedade e ao Estado, aguardando-se,
especialmente por parte do poder público, o cumprimento das normas
estabelecidas. Todavia - e exemplificando - se o administrador,
espontaneamente, não tornar concreto o que lhe foi determinado pela lei,
comparece disponível ao interessado um conjunto de medidas judiciais
especificamente destinadas à satisfação, via prestação da tutela jurisdicional,
dos direitos violados (dentre as medidas judiciais elencadas
vale anotar, pela importância, a ação civil pública, destinada à proteção dos
interesses individuais, coletivos e difusos próprios da infância e da
adolescência, e que corresponde à extensão para esta seara das previsões
contidas na Lei nº 7.347/85). Também é digna de registro a utilização da ação
mandamental contra atos ilegais ou abusivos - emanados de autoridade pública ou
agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público - que
lesem direito líquido e certo estabelecido no ECA). Em outro aspecto, embora
fosse o Juiz de Menores apresentado pela lei então em vigor (o Código de
Menores) com contornos de onipotência, no atendimento aos casos concretos
acabava ele tomado pela angústia da impotência no tocante a contribuir
decisivamente para o estabelecimento de um novo projeto de vida para a sua
clientela marginalizada, já que não podia legalmente exigir do Estado o
cumprimento do seu dever de promoção social das crianças e adolescentes (e
respectivas famílias). Agora, diante da inscrição – e detalhamento – dos
direitos fundamentais relativos à infância e juventude (estabelecidos na sua
maioria como direitos subjetivos e, portanto, dever do Estado), a autoridade
judiciária desfruta da especial condição de poder prestar a tutela
jurisdicional prolatando decisões que apresentem o condão de transformar
positivamente a realidade social. O Juiz de Infância e Juventude tem a
possibilidade de – quando devidamente provocado (face ao princípio da inércia
da jurisdição) – decidir sobre as questões sociais mais significativas, seja no
plano individual ou nas esferas coletivas ou difusas. Uma sentença do Juiz da
Infância e Juventude pode implicar na garantia do exercício de direitos como o
da educação (determinando, por exemplo, a construção de creches ou
estabelecimentos educacionais), da saúde (determinando, por exemplo, a
construção de um posto de saúde ou as vacinações obrigatórias recomendadas
pelas autoridades sanitárias), da profissionalização (determinando, por
exemplo, a instituição de programas pertinentes à iniciação profissional), e
assim por diante. Ou seja, o Juiz da Infância e Juventude pode transformar a
Justiça em espaço significativo de luta para a instalação de uma sociedade que
trate com mais eqüidade e isonomia as crianças e adolescentes, propiciando a
todos a concretização dos direitos elementares da pessoa humana. Se antigamente
acabou-se difundindo o mito de que “entregar a criança ao Juiz” representava a
pronta solução de questões de qualquer conteúdo, hoje tal raciocínio encontra
foro de realidade, já que as crianças e adolescentes passam a contar com a
atividade jurisdicional para a efetivação dos seus
interesses juridicamente tutelados.
Mas além de
explicitar os direitos genericamente prometidos na Constituição Federal, de
estabelecer um conjunto de medidas judiciais para a garantia de tais direitos e
de ameaçar com sanções penais e administrativas os que não cumprirem os seus
imperativos proibitivos, o ECA apresenta também um importante mecanismo
destinado a fazer valer os ditames que assenta. Trata-se o de incumbir uma
instituição, integrante da estrutura organizacional do Estado, da defesa dos
interesses e direitos pertinentes à infância e juventude. Como se sabe, os
Promotores e Procuradores de Justiça passaram a ter o dever funcional de
atuarem no sentido de garantir a efetivação das normas estabelecidas em favor
das crianças e adolescentes. Num país onde a maioria da população não tem acesso
à Justiça (seja por falta de condições econômicas ou pela inexistência da
Defensoria Pública na grande maioria das comarcas), andou bem o legislador do
ECA quando atribuiu ao Ministério Público tão magnânima missão. Aliás, é de se
abrir parênteses para dizer que os elaboradores do ECA alcançaram compreender
corretamente os novos contornos institucionais do Ministério Público,
alinhavados especialmente pela Constituição Federal de 1988. Absorveu-se a
idéia de que o Ministério Público, rompendo com antiga postura de estrita
burocracia legal, deve agora atuar como verdadeiro agente político,
interferindo de maneira positiva na realidade social e, mediante exame do
conteúdo ideológico das normas jurídicas, dar prevalência para a materialização
daquelas que signifiquem proposta de libertação do povo, internalizando – na
esfera administrativa ou no espaço oficial do judiciário – as reivindicações
sociais na forma de conflitos coletivos, politizados e valorados pela ótica dos
interesses das classes populares. Em outro aspecto, considerada a infeliz praxe
forjada no sentido de que quando surgem leis a favor dos excluídos e
marginalizados sociais ainda assim de nada servem, porquanto não são aplicadas
(as leis que “não pegam”, segundo dizem), convém ressaltar que o Ministério
Público - assumindo através de seus agentes a responsabilidade profissional,
política e ética da construção de uma ordem social mais justa - poderá fazer do
ECA seu instrumento fundamental de luta em favor da sociedade. O desejo é de
que o Promotor de Justiça da Infância e Juventude dê especial contribuição à
esperada conformação de um novo Ministério Público, que deixe definitivamente
para trás suas raízes de patrocinador dos interesses dos reis e dos poderosos,
reconhecendo-se como legítimo defensor dos interesses da sociedade, com a visão
clara de que tal mister implica defender prioritariamente as suas camadas
marginalizadas e afastadas das propostas de cidadania contidas na legislação
constitucional e infraconstitucional.
No que
tange à Defensoria Pública, o registro é de que, não obstante a regra
constitucional estabelecendo ser direito individual a “assistência jurídica
integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”(art. 5º,
LXXIV) e a previsão, também de índole constitucional, da Defensoria Pública
como instituição essencial à função jurisdicional, incumbida da orientação
jurídica e defesa, em todos os graus, dos necessitados (art. 134), sua
organização e funcionamento apresenta absoluto descompasso com o propósito de acesso
e igualdade na Justiça, inclusive a da Infância e Juventude. A falta de
estruturação e deficiências alarmantes propicia que a grande clientela de
crianças e adolescentes (assim como suas respectivas famílias) carentes de
efetivação dos direitos continuem desassistidos ou
mal assistidos, vale dizer, sem acesso à Justiça ou sem igualdade de forças na
relação processual, com negativa repercussão no direito de ação e de defesa
assegurado na Constituição. Seja para a efetivação dos interesses individuais relacionados
à área ou para a efetiva defesa técnica habilitada quando da atribuição da
prática de ato infracional, a Defensoria Pública se
constitui importante proposta - também para os litigantes na Justiça da
Infância e Juventude - de democratização das oportunidades de êxito quanto à
prestação da tutela jurisdicional.
Ainda nesse
aspecto, convém registrar que para a propositura de ações civis fundadas em
interesses coletivos ou difusos pertinentes à infância e juventude estão
legitimadas todas “as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano
e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos
protegidos por esta Lei, dispensada a autorização da assembléia, se houver
prévia autorização estatutária” (art. 210, inc. III, do ECA), representando
verdadeiro batalhão de proteção dos direitos da criança e do adolescente, que,
todavia, precisa se fazer mais presente na liça cotidiana dos embates
judiciais.
Já na banda
da política de atendimento, apresentando como componentes mais significativos a
descentralização político-administrativa, a
municipalização do atendimento e a participação obrigatória da sociedade civil,
temos que as diretrizes estabelecidas pela Lei nº 8.069/90 contemplam a criação
dos Conselhos dos Direitos das Crianças e Adolescentes, bem como dos Conselhos
Tutelares; pretendendo-se, nessa nova linha, seja o município o espaço adequado
para a reflexão acerca dos problemas existentes na área e também para a equação
dos mesmos, apresentando e efetivando programas e ações capazes de superar as
dificuldades detectadas.
Os
Conselhos dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, previstos no art. 88,
inc. II, do ECA, são órgãos com caráter deliberativo (portanto, definidores da
política pública de atendimento à infância e juventude nas esferas municipais,
estaduais e nacional), incumbidos de proceder o controle das ações
governamentais em todos os níveis e que não podem prescindir da participação
popular (diga-se paritária, ou seja, apresentando
igual número entre os representantes dos órgãos governamentais e os indicados
pelas entidades que atuam na defesa - ou no atendimento - dos direitos das
crianças). Na conjugação das disposições dos art. 1º, par. único,
204 e 227, § 7º, todos da Constituição Federal, regulamentadas
posteriormente pelo ECA, conclui-se ter havido determinação no sentido de se
inaugurar nova fase na política de atendimento à infância e juventude, cuja
marca esteja delineada no surgimento de espaços para a democracia participativa,
garantindo-se à sociedade civil voz e vez na formulação das políticas sociais
públicas relacionadas a crianças e adolescentes. O comando é para que se
implante um regime de co-gestão nesse campo de atuação governamental, o que
representa extraordinário progresso ao tempo em que, até então, a forma de
“participação” da sociedade na área se restringia a atividades de cunho
eminentemente assistencialista (as campanhas beneficentes para arrecadar
alimentação, agasalhos, etc.) ou consistia em mão-de-obra graciosa para
efetivação de programas e ações previamente decididos pelo poder público
(adesão aos mutirões para construção de creches, praças, etc.), enquanto que os
conselhos comunitários apresentavam caráter meramente consultivo (e, assim
sendo, apenas davam “palpites” nas atividades governamentais). A democracia
participativa (pela primeira vez expressa em nossa Carta Constitucional no
enunciado de que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” – cf.
art. 1º, par. único) pressupõe o Executivo compartilhando parcela do
seu poder, propiciando integração do povo no processo decisório estatal e
garantindo concretamente importante predicado da cidadania, além de marcá-lo
com o signo da legitimidade (equivocada e infelizmente, a maioria dos
governantes entende que a representatividade do voto, não raras vezes obtida
através do abuso do poder econômico no campo eleitoral, seria suficiente para
dar surgimento à legitimidade do poder e, assim, tratam com descaso as
possibilidades do seu exercício efetivamente democrático).
Com igual
importância comparecem os Conselhos Tutelares, órgãos permanentes e autônomos,
encarregados pela sociedade de zelar no pertinente ao efetivo cumprimento dos
direitos das crianças e adolescentes. São eles fiscalizadores de todo o sistema
de atendimento à infância e juventude, bem como - enquanto proposta de desjurisdicionalização de determinadas matérias - fruto
desse anseio de abrir espaços para a sociedade civil na gestão conjunta dos
interesses relacionados à população infanto-juvenil, demonstrado especialmente
pelo fato de que os conselheiros são pessoas da comunidade e por ela escolhidas
(espera-se, democraticamente, através de sufrágio universal, com voto direto e
facultativo) para o exercício de tão relevante função. Aos Conselhos Tutelares
restam estabelecidas importantes atividades de caráter genérico (tais como
subsidiar os Conselhos de Direito para a formulação de uma política de
atendimento à infância e juventude que se mostre integralmente vinculada à
realidade de cada município ou “assessorar o Poder Executivo local na
elaboração de propostas orçamentárias para planos e programas de atendimento
dos direitos da criança e do adolescente” – cf. art. 136, inc. IX, do ECA) e,
identicamente, o atendimento de casos concretos de crianças e adolescentes que
se encontrem em situação de risco (cf. art. 136, inc. I, do ECA), inclusive no
setor educacional (cf. art. 56). Guardadas as devidas proporções, a lei confere
ao Conselheiro Tutelar poderes assemelhados aqueles estabelecidos para os
Juizes da Infância e Juventude, incluindo a aplicação das chamadas medidas de
proteção e também as pertinentes aos pais e responsáveis (cf. art. 101 e 129,
ambos do ECA); a expedição de notificações (com obrigatoriedade de
comparecimento); a requisição dos serviços públicos nas áreas de saúde,
educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança (que significa determinar
o atendimento pelo poder público, nos termos do art. 136, III, a, do ECA). De lembrar também que o
legislador do ECA – buscando garantir aos Conselhos Tutelares o alcance de suas
relevantes atribuições – estabeleceu ser crime impedir ou embaraçar a atuação
de Conselheiro Tutelar no exercício de suas funções (cf. art. 236) e infração
administrativa o comportamento de descumprir determinação do Conselho Tutelar
(cf. art. 249).
Nesse
passo, em que se quer ver o efetivo funcionamento do sistema de garantia dos
direitos da criança e do adolescente, convém relembrar que, quando da
Assembléia Nacional Constituinte, mediante emenda popular com mais de dois
milhões de assinaturas e buscando traduzir a máxima do “superior interesse do
menor” contida nos documentos internacionais, inscreveu o legislador constituinte
pátrio princípio constitucional no sentido de que o atendimento aos interesses
da infância e juventude deve ocorrer com absoluta prioridade (art. 227, da CF),
traduzindo-se a regra - além dos deveres da família e sociedade - na obrigatoriedade
para o Estado em, de maneira preferencial, formular e executar políticas
públicas capazes de garantir às crianças e adolescentes proteção integral (isto
é, a possibilidade do exercício dos direitos fundamentais da pessoa humana e,
também, daqueles especiais e inerentes à condição de pessoas em peculiar fase
de desenvolvimento), bem como, identicamente de forma privilegiada, destinar os
recursos necessários à consecução dos programas e ações estabelecidos em favor
de tal população (art. 4º, do ECA).
Necessário
interferir no sentido da existência de políticas públicas capazes de fazer das
crianças e adolescentes efetivamente sujeitos de direito, garantindo-se, entre
outros e guardadas as peculiaridades locais, os relacionados à vida
(identificando a taxa e os fatores responsáveis pela mortalidade infantil nos
municípios da Comarca), à saúde (verificando a cobertura integral das
vacinações recomendadas pelas autoridades sanitárias, a realização pelos
hospitais dos exames visando ao diagnóstico e terapêutica de anormalidades do
metabolismo; a existência de programas destinados à nutrição, à assistência
médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente
afetam a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais,
educadores e alunos), à convivência familiar (providenciando a materialização
dos programas oficiais de auxílio e orientação a famílias carentes, bem assim
os de desinstitucionalização de crianças e
adolescentes abrigados e também os destinados à adequada aproximação e retirada
das crianças e adolescentes das ruas), à educação (realizando atividades
direcionadas à garantia de educação infantil, também de ingresso, permanência e
sucesso no ensino fundamental; conferindo a existência dos conselhos de
acompanhamento e controle social Fundef, assim como
dos planos de cargos, salários e valorização do magistério e, ainda, dos
programas suplementares de material didático-escolar, transporte alimentação e
assistência à saúde), à profissionalização (providenciando o desenvolvimento de
programas de iniciação profissional, bem como de proteção no trabalho,
impedindo atividades insalubres, penosas e perigosas ou que impossibilitem a
regular escolaridade) e às medidas sócio-educativas (promovendo a instituição
de programa para a prestação de serviços à comunidade e, principalmente, à
execução de liberdade assistida). Anote-se que, dos temas emergenciais aqui elencados (quase sempre, reflexos da situação familiar
determinada pela inexistência de política de pleno emprego, de salário justo,
de programas de renda mínima ou, ao menos, de efetiva assistência social para
quem dela necessite) e afora, obviamente, o combate à tragédia da mortalidade
infantil, destaque-se a necessidade da implementação dos projetos
governamentais destinados ao auxilio a famílias carentes, já que, na maioria
absoluta das vezes, a promoção social de uma criança ou adolescente implicará
resgatar para a cidadania também os seus familiares. Uma vez atendidas as
condições materiais indispensáveis à subsistência, o caminho seguinte a ser
trilhado se traduz no encaminhamento de todas as crianças e adolescente para o
sistema educacional, pois, como sempre se diz - e isto exsurge
indisputável em relação aos nossos filhos - lugar de criança é na escola.
Dentre os direitos fundamentais consagrados à infância e juventude, sem dúvida
avulta em significado o pertinente à educação, observado também que o sistema
educacional se constitui - juntamente com a família - em extraordinária agência
de socialização do ser humano (isso sem contar com a possibilidade de
importante interferência, enquanto aparelho ideológico do Estado, na formação
do pensamento acerca da sociedade em que se vive e do papel que cada um pode
nela desempenhar). A educação, devidamente entendida como direito de todos e dever
do Estado, destina-se, conforme prevê a regra constitucional, ao pleno
desenvolvimento da pessoa, sua qualificação para o trabalho e, principalmente,
ao preparo para o exercício da cidadania (art. 205, da CF). O direito de
acesso, permanência e sucesso no sistema educacional comparecem como antídoto à
marginalização social que encaminha crianças e adolescentes à mendicância, ao
trabalho precoce, à prostituição e à delinqüência. Não é por acaso que, na
verificação dos adolescentes sujeitos às medidas sócio-educativas
(especialmente as privativas de liberdade), alcança-se índices elevadíssimos no
referente ao afastamento (muitas vezes por exclusão imposta indevidamente pela
própria escola) do direito à educação. A luta por novos e melhores dias para a
infância e juventude brasileiras só pode estar embandeirada - e ter como ponto
de partida - a efetivação do direito à educação. Por isso, o legislador do ECA,
ao mesmo tempo em que arrola os seus princípios informadores (art. 53) e as
formas de sua materialização (art. 54), assevera que “o acesso ao ensino
obrigatório gratuito é direito público subjetivo”, e que “o não oferecimento do
ensino obrigatório pelo Poder Público, assim como a sua oferta irregular,
importa responsabilidade da autoridade competente” (art. 54, §§ 1º e
2º). Então, na perspectiva da formação de verdadeiros cidadãos, o
processo educativo deve atender a propósitos de valorização do ser humano, de
seu enriquecimento no campo das relações interpessoais,
de respeito ao semelhante e, igualmente, de desenvolvimento do senso crítico,
da responsabilidade social, do sentimento participativo, da expressão franca e
livre do pensamento, enfim, constituindo-se a escola em espaço democrático
propício ao desenvolvimento harmônico do educando. Ainda em tal aspecto, convém
anotar a importância de restar concretizado, para todas as crianças de 0 a 6
anos, o direito a creche e pré-escola, capaz de atendê-los quanto à saúde e
alimentação (eliminando-se, principalmente, os riscos das lesões cerebrais
irreversíveis decorrentes da subnutrição), bem como a oportuna introjeção de valores ético-sociais, além do preparo para o
ingresso no ensino fundamental, caminho para uma cidadania que se quer ver
atingindo por todas as nossas crianças e adolescentes.
Nessa
altura da reflexão, tratando-se da concretude das
promessas jurídicas, comparece conveniente o raciocínio de que - além da
escola, da família e de outros espaços adequados para o seu desenvolvimento - lugar
de criança é nos orçamentos públicos, cumprindo-se integralmente o princípio
constitucional da prioridade absoluta em prol da infância e juventude e propiciando a
consecução da política traçada pelos Conselhos dos Direitos da Criança e do
Adolescente. O acompanhamento - especialmente pelos integrantes do sistema de
garantia - da elaboração das leis orçamentárias (desde o plano plurianual, passando pela lei de diretrizes orçamentárias
até a lei orçamentária propriamente dita) e de sua execução, não se tenha
dúvida, comparece indispensável para a melhoria - sob todos os aspectos - das
condições de vida das nossas crianças e adolescentes. Interessante, inclusive,
seria comparar a evolução dos recursos destinados à efetivação de políticas
públicas pertinentes a crianças e adolescentes antes e depois de 1988 (de molde
a se conferir o cumprimento do novo comando constitucional), além de
compará-los com outras rubricas orçamentárias, legalmente consideradas sem
prevalência. Para o eventual embate jurídico, cabe registrar que o princípio
constitucional da prioridade absoluta (art. 227, da CF), somada ao da democracia
participativa (art. 1º, par. único, 204, II e 227, § 7º, todos da CF e
concretizados com a atuação dos Conselhos dos Direitos da Criança e do
Adolescente na formulação da política - municipal, estadual e nacional - de
atendimento aos interesses da população infanto-juvenil - art. 88, II, do ECA),
são limitadores e condicionantes do poder discricionário do administrador
público.
Enfim, ao
tempo em que as nossas crianças e adolescentes passam a ser tratados como bodes
expiatórios da caótica situação social (e de insegurança) vivida no país, com o
surgimento de levianas propostas para restabelecimento do Código de Menores ou
da diminuição da imputabilidade penal (na verdade, a sociedade brasileira tem o
direito de se indignar diante da tragédia que envolve nossas crianças e
adolescentes, entretanto, tal indignação deve ser canalizada a favor da
infância e da juventude e não contra ela, na correta perspectiva de que a
melhor forma para evitar violência e criminalidade é superar a marginalidade,
retirando-se aqueles que se encontram à margem dos benefícios produzidos pela
sociedade para conduzi-los à cidadania plena), urge intervenção objetivando a implementação
das regras da Constituição Federal e do ECA que contemplam a população
infanto-juvenil com a garantia prioritária do exercício de direitos, assim como
das diretrizes e programas de atendimento estabelecidos em favor da mesma na
Lei nº 8.069/90; com a certeza de que, em assim se fazendo, estaremos - pela
via das crianças e adolescente - dando passo decisivo para o alcance daquele
que é o objetivo fundamental da Republica Federativa do Brasil: o de instalar
uma sociedade livre, justa e solidária.