EM PAZ COM A LEI
... Naquele momento estava
comparecendo a irmã porque a mãe se encontra em tratamento quimioterápico com
câncer no cérebro, e não pode caminhar, e o pai é hipertenso, quando recebeu o
telefonema da escola avisando que o adolescente estava sendo encaminhado à
Delegacia, ficou muito nervoso e teve uma crise hipertensiva, ficando
impossibilitado de comparecer. (...) vendo o irmão algemado, com esse quadro
familiar instalado, não teve suficientes orientações nem condições de
compreender os encaminhamentos que foram dados (...) Também lhe pareceu
excessivo o recurso à Força Policial por parte da escola, pois o incidente
poderia ser resolvido com sanção disciplinar ou chamado o Conselho Tutelar.
Consta também, segundo os meninos, que os demais professores eram contrários à
providência, e apenas a Diretora quis chamar a Brigada. Quando se encontraram
no DECA a irmã pediu para ela esclarecer o que ocorrera, limitando-se a dizer
que o adolescente cometera ato infracional e iria pagar, e que ela tinha
orientação do Delegado do DECA para conduzir assim os incidentes que ocorressem
na escola. (Processo de Execução
de Medida de Prestação de Serviços à Comunidade – 3ª Vara da
Infância e Juventude – extrato de termo de audiência realizada em 07.05.2003).
Em Paz com a Lei é um esforço de discussão de pressupostos e metodologias que vêm sendo surtidos no cotidiano da atuação dos operadores do Sistema de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional em Porto Alegre, e é produto da aprendizagem adquirida na atuação funcional na resolução de problemas surgidos no atendimento desses adolescentes, suas famílias e instituições que freqüentam – com destaque à escola.
Trata-se de idéias que emergem na perspectiva concreta e cotidiana de diversos interlocutores ligados às instituições da Justiça, da Assistência Social, da Saúde e da Educação.
Antes de pretender-se como um projeto, seu surgimento representou um esforço desses profissionais e suas instituições no sentido de buscarem um alinhamento e compartilhamento de perspectivas, em busca de maior sinergia e resolutividade no exercício de suas atribuições funcionais.
O próprio
título Em
Paz com a Lei emerge espontaneamente desse contexto de atuação
interinstitucional que tem seu nexo de incidência – e, portanto, o seu ponto de
partida - delimitado pela
responsabilização do adolescente pela prática infracional e por isso submetido
à jurisdição da 3ª Vara do Juizado da Infância e da Juventude,
competente para o processo de execução das medidas sócio-educativas na Capital.
Reconhecendo
a natureza complexa do fenômeno de produção dessas manifestações
comportamentais conflitivas, sujeitas aos rigores da jurisdição penal juvenil,
esses operadores vêm se dedicando a melhor auscultar as implicações de suas
ações, de modo a atuar de forma sempre integrada e integradora – o que leva
invariavelmente ao sentido da interdependência de suas funções e, pois, da
necessidade da atuação em rede.
Da expressa
adesão a um coletivo de trabalho sucede um regime de co-responsabilidade diante
dos problemas e de co-autoria na construção das soluções, a exigir maior
pertinência e eficácia de todos os procedimentos operacionais compartilhados
relacionados ao atendimento, e também de se investir sistematicamente na
reflexão critica quanto à eficácia técnica e qualidade ética dos diversos
serviços envolvidos no atendimento – não só na área sócio-educativa, mas também
nos demais campos de políticas do ECA, cujas atribuições são convocadas
conforme as necessidades caso a caso.
Nesse
ambiente de rede teve-se sempre presente e consensual o reconhecimento de que a
escola é o espaço privilegiado de inserção e manutenção do jovem no contexto
das políticas de garantias de direitos. E assim a eleição da escola como
parceiro merecedor da maior concentração dos esforços da coletividade desses
operadores. As constatações que seguem são produto da observação empírica
acumulada desde esse exercício de trabalho.
A
perspectiva conjunta e esse foco priorizado permitiram sistematizar a
observação dos fenômenos relacionados à jurisdição sócio-educativa, de modo que
o cotidiano dos debates travados na sala de audiências da 3ª Vara –
judicialmente nos autos de cada processo, ou administrativamente em reuniões
mais informais de avaliação de incidentes neles verificados – foi evidenciando
algumas percepções que, malgrado primárias, nem sempre são compreensíveis de
forma homogênea entre os operadores dessa rede:
-
A responsabilização de adolescentes perante o Sistema
de Justiça Infracional mobiliza mecanismos legais de grande poder constritivo,
cuja utilização corresponderá ao exercício do conceito clássico do “monopólio
da violência estatal”, e assim deve ser quanto possível evitado, porque por
definição violentador;
-
Quando inevitável, o recurso ao Sistema de Justiça
Infracional deve ser antecedido da análise e ponderação das conseqüências
implicadas, visto que essa opção revestirá constrangimentos severos ao jovem e
seus familiares, podendo implicar até mesmo na privação da liberdade;
-
No âmbito do sistema de ensino, a decisão de atribuir
às transgressões juvenis o status jurídico de conflito com a lei nem sempre
expressa uma decisão pedagógica serena e amadurecida, promovendo-se o trânsito
“per saltum” entre a esfera da pedagogia escolar para a esfera da pedagogia
penal com base em circunstâncias nem sempre pré-definidas e justificadoras.
Inspirados
pelo pressuposto de violência do sistema e conseqüente exigência de preservar a
clientela da sua utilização abusiva foram pautados questionamentos sobre o modo
como se dão determinados funcionamentos da instituição escolar – vistos aqui em
seus desdobramentos amplificados pelas graves conseqüências de algumas dessas
decisões na esfera pessoal - dos direitos pessoais e da afetividade - do adolescente e de sua família. E essa ordem
de indagações trouxe à evidência a necessidade de rigorosa contrapartida da
escola, expressa em termos do senso de responsabilidade e autoconsciência no
cumprimento de seus deveres e atribuições legais.
Passando-se
assim às indagações sobre o ambiente de produção do conflito do adolescente com
a lei, passou-se a contatar que muitas vezes os encaminhamentos mais
precipitados denunciavam também um
ambiente escolar igualmente em conflito com a lei – no caso, alimentando uma
relação hostil e conflitiva com o principal instrumento legal que incide em
garantia dos direitos da população em idade escolar, que é o Estatuto da
Criança e do Adolescente.
Indo-se
adiante se constata também defasagens importantes no cumprimento da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação. E, embora nesse terreno possa alegar-se que a
responsabilidade seja de instâncias políticas alheias à alçada da escola (o que
é correto e que leva ainda mais adiante o debate sobre esse quadro de
conflituosidade em que produz a transgressão penal juvenil), a própria
comunidade escolar muitas vezes também apresenta sua contrapartida de
responsabilidade ao conviver com a negação de preceitos como o estrito
cumprimento das jornadas ou de princípios como a gestão democrática.
Penetrando
no microuniverso de cada escola tratou-se de passar a indagar sobre os seus
procedimentos disciplinares, perguntando de que modo tais decisões foram
tomadas, onde foram fundamentadas, que procedimento foi seguido antes da
decisão – visto que a, ao exercer função pública, todo estabelecimento de
ensino tem o dever jurídico de portar-se segundo os princípios e procedimentos
do Direito Administrativo. O que se viu com mais freqüência é que também na
regulação do seu cotidiano a realidade escolar é marcada por conflituosidade e
anomias, não havendo regras claras e procedimentos definidos para embasar a
tomada de decisões em situações limite. Conseqüentemente corre-se o risco de
adotar-se procedimentos discricionários e incorrer-se em abusos de autoridade,
com a adoção de normas de ocasião e julgamentos arbitrários ao sabor do
momento.
Finalmente,
alcançando-se a reflexão o campo das relações interpessoais e das manifestações de poder no âmbito interno da
comunidade escolar e na sua relação com as instituições com que interage em
interfaces sistemáticas, especialmente família e conselho tutelar, igualmente
pôde-se perceber ambientes turbados por predisposições autoritárias e posturas
rivalizantes e adversativas, inevitavelmente conduzido a relações conflituais.
Esse quadro sacrifica qualquer possibilidade de instalarem-se, ainda que
informalmente, instâncias de composição dialogal de conflitos.
Mesmo antes
disso, num ambiente marcado pela expressão de atitudes intelectualmente
refratárias e marcadas pela omissão ou pela rigidez afetiva, o mundo adulto em
regra produz antes a amplificação dos quadros conflitivos, mostrando-se
reiteradamente ausente até intervir em caráter extremo, ou seja, criando um
ambiente em que a acumulação da permissividade dá lugar a reações violentas de
todos os envolvidos – violência que só faz é deslegitimar, pela desproporção e
destempero abusivo, a intenção interditória, eminentemente pedagógica, que
deveria estar sendo exercida.
Vale também
anotar que, via de regra, ambiente semelhante ao descrito na escola era o
vivenciado pelo adolescente no âmbito familiar.
Noutras
palavras, a par da negação da lei jurídica, o papel representativo da lei
simbólica por parte das figuras parentais (ou suas figuras substitutivas, no
caso, representadas pelos educadores) vinha igualmente renegado pelo mundo
adulto.
Retomando a
valoração da conduta infracional, e malgrado essas considerações não devam
implicar necessariamente num fundamento de exculpação legal, o que se pode
constatar é que sua emergência nesse contexto conflitivo, proporcionado pelo
mundo adulto, não lhe deixa outra alternativa que não a identificação
transgressora (onde o uso da droga se apresenta como linguagem de
reconhecimento) com referências que, malgrado de negação da lei oficial, lhe oferecem
maior grau de reciprocidade, ainda que esta seja a estimativa de valor
atribuída, por exemplo, à infalibilidade das represálias físicas pelo
traficante que não foi pago.
Embora esse
percurso reflexivo tenha sido descrito na perspectiva do atendimento a
adolescentes em conflito com a lei, pareceu revelador de ensinamentos de
utilidade prática, mais ampliada, visto que, se vinham embasando a compreensão
e intervenção no atendimento de adolescentes com atuação delitiva já
conflagrada, muito melhor poderiam contribuir para a prevenção de
comportamentos desviantes e de seus extremos caracterizadores da infração
penal.
Assim,
embora focalizando a partir do cotidiano
do Juizado e de seus parceiros no trato do ato infracional praticado no
ambiente escolar, a amostragem empiricamente recolhida inspirou constatações
que permitiram passassem a ser esboçadas algumas hipóteses interventivas cuja
validade agora se quer investigar cientificamente.
Parte-se da
hipótese de que, se o percurso descrito é o percurso da produção do conflito
com a lei, o seu inverso poderia ser cogitado como o percurso de promoção da
paz – e daí a adoção do título antitético, que antes expressa uma provocação, “em
paz com a lei”.
Assim,
percorrendo agora retrospectivamente essa trajetória, podemos deter-nos nalguns
dos principais passos desse caminho de volta à paz para propor alguns
“antídotos ao conflito”, com os quais se
passa a compor uma “matriz de hipóteses interventivas” que, por suas
vez, dará lugar à construção de estratégias e metodologias de ação:
1) Educação em Valores Humanos e promoção da Cultura de
Paz
-
Refere a exploração de propostas pedagógicas e a
difusão de conhecimentos relacionados à formação ética, através da vivência de
valores e virtudes.
-
O objetivo é promover iniciativas que possibilitem
atitudes pessoais de maior desprendimento e cooperação, com ações dirigidas a
públicos de alunos, educadores e famílias, bem como a parceiros institucionais
da escola.
-
A
identificação e a prática dos valores humanos fundamentais são a base ética que
fundamenta o bem estar do indivíduo-humano consigo mesmo, indispensável para o
convívio social harmonioso.
2) Participação, convívio e gestão democráticos
-
Refere a progressiva horizontalização dos processos
decisórios, de planejamento e de gestão do cotidiano escolar em suas diferentes
instâncias e alçadas.
-
O objetivo é superar os métodos de gestão
departamental e de hierarquias verticais e promover, culturalmente, o hábito da
circularidade como regra de inclusão de todos os envolvidos nos diferentes
processos, trazendo com a riqueza dos seus diferentes pontos de vista maior
riqueza e complexidade na solução das rotinas escolares, familiares, e na
interação entre os parceiros institucionais.
-
Conforme Relatório Dellors, da Unesco, refere a
“educação para o conviver”.
-
A gestão
democrática é a expressão do acúmulo social resultante da prática dos valores
humanos fundamentais pelos membros da comunidade.
3) Mediação de conflitos
- Refere qualificação de pessoal para a adoção de recursos metodológicos específicos para a composição amistosa e consensual de conflitos na rotina.
- Objetiva a incorporação, pela comunidade, de estratégias não violentas de resolução de conflitos, os quais, na medida em que deixam de ser elementos tensionadores, podem ser melhor explorados pedagogicamente como oportunidades de crescimento afetivo dos envolvidos.
-
A mediação de
conflitos é a aplicação prática dos valores humanos e da gestão democrática
fazendo da diversidade, das diferenças e das divergências uma oportunidade de
crescimento.
4) Restauração da autoridade pedagógica mediante o
exercício das funções de Lei e Justiça no ambiente escolar.
-
Refere a explicitação dos padrões comportamentais
esperados e exigíveis no ambiente escolar com base na produção normativa
interna como expressão dos valores éticos e do ambiente democrático alimentados
pela comunidade escolar, bem como a pré-determinação quanto às alternativas
sancionatários e legitimação das referências de investidas, por delegação da
comunidade, do poder de fazer cumprir
esses ordenamentos de forma vertical quando insuficientes para tal fim os
mecanismos de composição dialogal.
-
Objetiva explicitar e discutir os regimentos internos
e códigos disciplinares, bem como os procedimentos adotados na aplicação dessa
normativa, para adequá-los às normas legais e, em especial, aos princípios
gerais do direito que podem ser pedagogicamente pelo exercício da autoridade
pedagógica.
-
A discussão perpassa o próprio conceito de autoridade
e sua legitimação, o poder sancionatório da escola e seus modos de exercício
num ambiente democrático.
-
Associado à
mediação de conflitos, o debate sobre as funções e legitimação da autoridade
pedagógica dá lugar à introdução dos conceitos da Justiça Restaurativa como
alternativa para referenciar o exercício do poder sancionatório no ambiente
escolar.
5) O Estatuto da Criança e do Adolescente na articulação
da retaguarda da escola.
-
Refere a atuação da escola como integrante da rede de
políticas públicas, programas e serviços de atendimento projetados pelo ECA, e
já disponível na respectiva comunidade, de forma a facilitar a articulação de
ações integradas especialmente quando envolvendo competências não específicas
da escola, como dificuldades sócio-afetivas e transgressões penais que exijam
intervenção do Conselho Tutelar, com os programas protetivos, ou da Justiça
Infracional, com os programas sócio-educativos.
-
Objetiva reverter
o quadro de rejeição e conflito do ambiente escolar com o ECA, de modo a
permitir que a escola passe a ocupar o lugar privilegiado que lhe é destinado
no sistema de atendimento à criança e ao adolescente, e assim permitindo
reordenar-se todas as demais políticas públicas no setor, de forma a assegurar
a permanência e o sucesso escolar com todos os programas previstos no ECA
funcionando como retaguarda da escola – que passa a ser o eixo central do
sistema a partir do qual se dá a garantia dos direitos fundamentais.
-
As
instituições de ensino são o centro de uma sociedade do conhecimento, e todo o
seu sistema institucional deve estar direcionado para colocar a escola nesse
lugar.