RETÓRICA
E REALIDADE DOS DIREITOS DA CRIANÇA NO BRASIL
Sinara
Porto Fajardo
Dirigida pelo Prof. Dr. Manuel Calvo García Zaragoza, 1999.
Universidade de Zaragoza, programa de doutorado em
"Direitos humanos e liberdades fundamentais".
Introdução
O propósito deste trabalho é realizar uma aproximação ao tema
dos direitos das crianças e dos adolescentes e as políticas para a infância no
Brasil, especialmente a relação entre retórica e realidade, desde uma
perspectiva de investigação crítica de aspectos históricos, normativos,
políticos e sociais.
A tensão entre retórica e realidade, no Brasil, situa-se num
contexto legal coerente com a normativa internacional dos direitos das
crianças, num contexto político conflitivo entre
defensores e contrários à nova lei - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
- e num contexto concreto de imensa desigualdade sócio-econômica, que vulnera
particularmente grande parte da população infanto-juvenil, com a insatisfação
de suas necessidades básicas e de suas condições de autonomia.
A polêmica que se estabelece em nível político, evidencia
posições contrárias ou em defesa da nova normativa jurídica, mas também
expressa conflitos mais básicos sobre representações sociais de infância e de
Estado. Por isso, não se esgota em manifestações nostálgicas em relação ao
Código de Menores, nem alarmistas em
relação ao ECA, como se tratasse de um processo evolutivo entre
legislações que se sucedem.
Tentamos fugir da obviedade da relação crítica/elogio
do ECA e do maniqueísmo entre lei e realidade, Estado
e sociedade e, ainda, do evolucionismo entre passado, presente e futuro,
através de algumas suposições básicas, que passamos a apresentar:
Há um processo histórico das representações de infância que
dá suporte às elaborações normativas e às ações públicas e privadas em relação
ao tema. As representações hegemônicas, em cada momento, expressam-se no
ordenamento jurídico, mas isso não significa que as demais não sigam influindo
no conjunto da institucionalidade e da sociedade em
geral. Disso tratamos no primeiro capítulo deste
trabalho, um resumo histórico das políticas para a infância desamparada no
Brasil, que termina com uma breve descrição da legislação atualmente vigente. É
possível identificar uma relação entre as políticas para a infância em cada
momento histórico, com a razão de Estado hegemônica no mesmo contexto.
Entretanto, não podemos absolutizar esta relação,
pois há muito mais razões na sociedade que convivem com a do Estado, todas
influentes e influídas pelas representações de infância.
Podemos construir um nexo entre diversos elementos das
políticas para a infância, que possibilita organizar uma visão de suas
possibilidades e limites. Observando os sujeitos, as estratégias, os meios e as
práticas concretas que dão vida às políticas para a infância como um todo
complexo e contraditório, de acordo com as representações de infância e de
Estado em cada contexto, poderão surgir dados para a compreensão mais concreta
do tema. Disso tratamos no segundo capítulo, uma aproximação
teórica a alguns dos principais conceitos integrantes da temática das políticas
para a infância, donde destacam-se o protagonismo da
família, enquanto sujeito protegido e protetor da infância, e a relação cada
vez mais complexa entre o público e o privado enquanto agentes de proteção,
incluídos o Estado e as diversas dimensões da sociedade civil, desde as mais
íntimas às mais coletivas, organizadas ou não. As estratégias e as práticas que
dão corpo à intervenção, a partir desta análise, são vistas de forma
articulada, embora não atribuamo-lhes um caráter
necessariamente premeditado.
As normas, como as relações sociais, expressam ambigüidades,
cuja existência ilumina o enfoque segundo o qual a lei constitui-se em reflexos
e alavancas das contradições na sociedade e no Estado; expressa o resultado,
num contexto histórico dado, da correlação de forças entre distintas
representações do papel de Estado (ou de direito) em relação ao objeto da
norma. O Estado apresenta-se principalmente através de suas caras normativa e
política, em sua relação com a sociedade. De acordo com as representações
sociais sobre seu papel em relação aos direitos da criança, a normatividade vai-se configurar de forma mais ou menos
intervencionista, promocional, garantista, tutelar,
autonomista, etc.. Disso se trata no terceiro capítulo, uma análise
sócio-jurídica do ECA. Enfocamos, em princípio, as
mudanças gerais que implicaram a nova legislação em relação à anterior e sua
situação em relação à normativa internacional dos direitos da criança. Em
seguida, identificamos quatro ambigüidades do discurso e da prática decorrente
da implementação do ECA, que podem ser condicionadas
por este processo histórico de disputa de representações de infância e,
principalmente, do papel do Estado em relação aos direitos das crianças.
Podemos resumir as quatro ambigüidades como entre teorias de Estado subjacentes
à lei, entre finalidades mais protetoras ou mais controladoras, entre elementos
internos do conceito de proteção integral e entre concepções inerentes ao
modelo de justiça juvenil. Tratando da eficácia instrumental, julgamos
necessário apresentar um quadro sucinto da realidade de violação dos direitos
das crianças e adolescentes brasileiros, contextualizado brevemente no panorama
de desigualdade sócio-econômica que caracteriza a questão social no Brasil
hoje. Tentamos identificar limites legais e políticos a esta eficácia
instrumental não para justificar, e sim para compreender e contribuir para
superar obstáculos à plena realização dos direitos da criança e do adolescente.
Finalmente, analisamos a eficácia simbólica do ECA
enquanto negativa e em seu caráter positivo, pois por um lado, contribui para
reforçar o paradigma internacionalmente aceito de criança como sujeito de
direitos mas, por outro, ao não ser implementada de forma satisfatória, termina
por legitimar o Estado brasileiro por havê-la promulgado, sem que se preocupe
com a efetiva garantia e promoção destes direitos.
A sociedade institucionaliza de acordo com o que
hegemonicamente representa, e não de acordo com o que hegemonicamente aspira.
Essa afirmativa, com os devidos matizes dados pelo caráter contraditório e de
disputas sociais tanto das representações como das aspirações da sociedade,
assim como pelas dimensões pública e privada da realidade social, pode em parte
elucidar as razões da incongruência entre o que podemos sintetizar como
"retórica-realidade". Assim, por exemplo, a institucionalidade
referente aos direitos da criança corresponde mais às representações
hegemônicas no plano político que às aspirações hegemônicas expressas no plano
normativo, o ECA. Isso indica que pode existir, também
uma relação contraditória entre retórica (política) e retórica (jurídica). Ou
ainda, uma contradição entre retórica e realidade política, pois o discurso
político, necessário para a legitimação do Estado, nem sempre coincide com as
práticas, as vezes institucionalizadas justamente para
que funcionem em direção contrária ao discurso.
Não há vácuos no processo histórico. O fato do ECA não estar sendo ainda completamente implementado, não
quer dizer que as crianças e os adolescentes estejam fora da tutela ou proteção
do Estado e da sociedade. Algo está sendo implementado. Algo de cada
representação de infância, mas sobretudo algo de cada representação do papel do
Estado em relação aos direitos fundamentais. A coexistência de representações
conforma umas mesclas que, como toda a realidade, extrapolam a normatividade formal. As bases legais, institucionais e
sociais, em termos de respaldo ou legitimação, as condições objetivas para que
determinadas estratégias e práticas implementem-se de forma paralela ou
contrária a outras, são objetos de investigação importantes, que merecem mais
que o tratamento dado no presente trabalho. Ao identificarem-se empiricamente
as condições de implementação de medidas de uma ou outra vertente teórica,
ideológica ou política, poderemos contribuir para construir as condições de
implementação do ECA.
A realidade da infância no Brasil não corresponde à retórica
legal e, em boa medida, política, e sim ao conjunto de condições estruturais e
conjunturais que compõe as bases concretas das garantias de seus direitos. A
injustiça do modelo econômico concentrador de terra e de renda, excludente de
grande parte da população de qualquer oportunidade de satisfação de suas
necessidades básicas e de construção de autonomia, já é, em si mesma, uma causa
desta discrepância. Importantes setores da institucionalidade
que sobrevivem, oriundos do sistema autoritário dos anos 60 e 70, são
obstáculos evidentes à plena realização dos direitos da criança, como de toda a
população. A desigual distribuição de recursos entre interesses públicos e
privados e entre distintas áreas de responsabilidade do Estado, também
inviabiliza a melhor implementação do ECA,
prejudicando as condições de realização do paradigma da proteção integral.
O Brasil é sempre ativo sujeito no processo de positivação
dos Direitos Humanos em nível internacional e regional, mas é também sempre reticente
ou omisso quando trata-se de seus compromissos
decorrentes da mesma legislação que ajuda a elaborar. Esta aparente contradição
pode ser entendida como estratégia em direção a uma eficácia simbólica destas
iniciativas. Até hoje, por exemplo, não enviou nenhum informe sobre a situação
dos direitos da criança ao Comitê criado em função da Convenção sobre os
Direitos da Criança da ONU, e isso após participar ativamente nos trabalhos
preparatórios deste documento. Além disso, promulgou o ECA,
de acordo com tal Convenção, mas nunca chega a empreender todos os esforços e
despender todos os recursos possíveis para sua implementação, descumprindo
tanto a legislação internacional como seu próprio ordenamento constitucional,
que define a prioridade absoluta para a infância e a juventude.
Ao analisar a eficácia instrumental da lei, tentamos
identificar limites legais e políticos não para justificar, e sim para
compreender e contribuir para superar obstáculos à plena realização dos
direitos da criança e do adolescente. A defesa dos direitos da criança dá-se em
diversas esferas, de forma inter-relacionada. Uma das esferas possíveis e úteis
é a científica, desde que de uma perspectiva crítica. A
investigação empírica, que embasa um esforço por desmascarar obviedades,
desvelar conteúdos latentes, identificar ambigüidades, ressaltar elementos
simbólicos, são ações que contribuem para reforçar as conquistas alcançadas e
alargar os horizontes de direitos ainda não garantidos.
Analisar o ECA contribui para sua
implementação, desde que com olhos críticos de seus limites mas atentos a suas
virtudes e possibilidades. As virtudes do ECA estão em
representar a normatividade internacional dos
direitos da criança, e disso não podemos retroceder nem sequer um milímetro. Já basta o que há
que andar para a frente. O ECA
é alavanca desta jornada.
O debate atual que surge a partir de posturas contrárias e
defensores do ECA é o cenário no qual situa-se este
estudo. Dentro deste debate, posicionamo-nos ao lado da defesa intransigente do ECA, como expressão e alavanca para a garantia dos
direitos das crianças e adolescentes no plano internacional, acolhidos na
legislação nacional. A prioridade absoluta, neste caso, é para a defesa do
texto legal, e a aposta é para sua mais completa e imediata implementação.
Neste sentido, cada proposição deste trabalho é direcionada a
contribuir para qualificar o debate e superar o silêncio prudente dos
defensores do ECA, que justifica-se como se fosse
necessário calar para não ceder. Ao contrário, é necessária a
investigação empírica e a ruptura com as falácias argumentativas dos
alarmistas contra a nova condição das crianças e adolescentes como sujeitos de
direitos. Para isso, entretanto, importa a determinação de encarar e enfrentar
ambigüidades internas, conteúdos latentes em conflito que condicionam as
possibilidades de sua implementação e, principalmente, lacunas e
potencialidades do ECA ainda não desenvolvidas.
Nada aportaria este trabalho se somente evidenciasse a
contradição entre a retórica e a realidade, como se uma e outra tivessem uma
única possibilidade de coexistência: coincidir ou não. Este estudo tenta
demonstrar que retórica e realidade convivem numa relação muito mais complexa
que a simples ineficácia instrumental da lei em termos absolutos, incluindo
elementos de análise extraídos do reconhecimento de uma correlação de forças
presente desde a elaboração até o processo de sua implementação.
Além de defender a letra da lei, é imprescindível defender
que se construam as bases concretas, econômicas e institucionais, para sua
implementação. E isso só é possível a partir do conhecimento desta realidade,
composta tanto por sua dimensão discursiva, simbólica, como concreta, objetiva.
Supomos que um conhecimento científico crítico, tanto da lei como da realidade,
contribuirá para a aproximação desejada, no caso do ECA,
entre a retórica e a realidade.
Este trabalho é uma primeira aproximação ao tema, apesar de
ser autônomo e não um estudo meramente exploratório. Isso porque apresenta uma lógica
em si mesmo, com começo, meio e fim, embora o nível de conclusões ainda seja
limitado ao alcance do aprofundamento bibliográfico e empírico. Mas já
tentamos, a partir dos dados disponíveis, destacar algumas idéias ou indícios
para a continuidade desta investigação, que será realizada tendo em vista a
elaboração da tese doutoral. Relacionamos teoricamente alguns dados e
construímos algumas proposições que cremos contribuirão para a compreensão do
tema estudado. Os principais resultados, em termos de aproveitamento do estudo
feito, foram a sistematização de informações obtidas a
partir de investigação secundária, tanto bibliográfica quanto documental e de
legislação, e a abertura de possibilidades teóricas e empíricas de investigação
sobre o tema. O panorama geral construído servirá de base e contexto para a
ampliação e aprofundamento da investigação tanto teórica como empírica.
Por último, além dos dados secundários, também nossa própria
participação enquanto sujeito no processo desde 1990, ainda que de forma
indireta, foi fonte de informações, oriundas tanto da observação como de
apontamentos e relatórios de trabalho (CCDH 1993-1997); (CCDH 1995, 1996,1997).
CAPÍTULO I
Aproximação histórica
A tentativa de compreender o surgimento das políticas públicas
não se deve limitar às descrições históricas, nem se deve deixar fascinar pelos
momentos normativos como determinantes. Tampouco se pode compreender a gênesis
das políticas públicas como resultado de causas externas, tão amplas como
distantes do objeto de estudo. Meny e Thoenig (1992, cap. IV) denunciam
três clichês que impedem uma visão real do nascimento das políticas públicas: O
primeiro é chamado ascenso democrático
representativo, que o situa a partir de demandas isoladas das bases, atendidas
pela ação pública, e representa uma visão ingênua de democracia consensual e
transparente. A tirania da oferta, por outra parte, atribui às autoridades
públicas a ação de modelar as necessidades para logo atendê-las. Por fim, a ilusão fatalista, que define um momento fixo, um eixo
inicial que impulsiona uma seqüência de ações e interações, a partir das quais
surge uma política pública. Esta última visão exclui a possibilidade de outros
cenários, outras circunstâncias que contextualizam o surgimento de uma política
pública.
Todas essas limitações conduzem a uma visão parcial ou
distorcida da realidade, mas, provavelmente, toda visão da realidade é parcial
e distorcida. Portanto, cada tentativa de compreensão importa um risco de
simplificação ou de desnecessária complexificação dos
processos estudados. As saídas para este problema podem ser várias, desde um
esforço para contemplar a maior parte possível da totalidade (se é que existe),
até optar por aprofundar um ou alguns de seus momentos. Em suma, o que importa
é não se deixar cair nem nos determinismos de qualquer tipo, nem numa visão espontaneísta dos fatos históricos.
O presente capítulo apresenta uma primeira aproximação às
políticas sobre a infância "desamparada" no Brasil em termos gerais,
com o objetivo de construir um panorama descritivo que sustente uma compreensão
futura mais aprofundada de algumas dimensões atuais e perspectivas de
investigação e ação. Estrutura-se em algumas relações entre as conjunturas em
cada momento histórico e as correspondentes representações sociais sobre a
infância desamparada e as políticas de enfrentamento da questão.
Em primeiro lugar, desenvolveremos alguns pontos sobre os
quais se poderão marcar o desenvolvimento dos momentos normativos e as
políticas públicas que afetam as crianças. Em particular, nos centraremos nos
aspectos políticos das práticas referidas às crianças "desamparadas"
no Brasil.
Numa segunda parte, descreveremos os aspectos gerais e as
mudanças que pressupõem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei n.
8.069/1990, de 13 de julho, a atual legislação para a infância no Brasil.
1. Processo histórico
Muitos séculos antes do Brasil ser conquistado por Portugal,
os povos indígenas ocupavam todo o território hoje pertencente ao Estado brasileiro.
Entretanto, diferente do que ocorreu com os povos do chamado
velho mundo e de outras partes da América Latina, nossos antepassados
não escreviam nem construíam edifícios de pedra que pudessem contar-nos um
pouco de seus costumes e leis. Pelo fato de serem nômades, coletores, caçadores
e pescadores, os povos indígenas brasileiros não desenvolveram uma civilização
fixa e, assim, não se inscreveram na história escrita e hoje em dia reconhecida
como história oficial. Não tanto por não haverem desenvolvido uma linguagem
escrita, mas principalmente porque, no processo histórico desde o início da
conquista, estes povos tiveram que resistir, muito mais que criar; que
sobreviver, muito mais que viver.
Fragmentos da história viva, contada hoje em dia por
indivíduos pertencentes a alguns dos raros povos sobreviventes do massacre
histórico no sul do país, informam que as crianças, em suas comunidades, não
eram nunca "desamparadas", porque a categoria "assistência"
era tão desconhecida como a pobreza, a carência ou a desagregação familiar.
Tudo isso, dizem, foi trazido pelos "brancos", e nunca mais as
crianças, nem os adultos, foram livres como antes.
Assim, nossa "idade média" foi muito diferente da
idade média européia e, portanto, as categorias com as quais explicamos a
situação da criança nesta época não podem ser as mesmas que as hoje em dia
hegemônicas nos meios acadêmicos oficiais.
Nossas histórias encontram um ponto em comum em 1500, quando
os portugueses conquistaram o Brasil e, ao mesmo tempo, o Brasil descobriu a
civilização branca ocidental da Europa.
A pobreza e a carência foram conhecidas a partir da expulsão
dos povos indígenas de seus territórios tradicionais, como por exemplo do
litoral (onde pescavam) para o interior (onde, em muitas regiões, não chovia e
faltava comida). A desagregação familiar começou com as violações de mulheres
nativas por europeus invasores, e com as separações forçadas de famílias devido
à escravidão para trabalhos forçados nas lavouras e nas casas dos senhores. As crianças
das comunidades deslocadas, as crianças caboclas, filhos de índias com brancos
(bastardos) e os perdidos de seus pais, quando capturados por brancos foram,
assim, as primeiras vítimas da chamada infância desamparada.
O processo de colonização, caracterizado por um constante
deslocamento de famílias pobres e aventureiros para o novo mundo, incrementou o
contigente de problemas relativos tanto à miséria
quanto à desagregação familiar. Além disso, conflitos culturais de toda ordem e
uma política de extermínio de população excedente à necessária para a
escravidão contribuíram para complementar um quadro de violência e orfandade
infantil.
Silva (1997, p. 34-49) resume o pensamento e as práticas
assistenciais brasileiras desde 1500, de acordo com o contexto filosófico,
ideológico e pedagógico que determinaram leis e políticas de tratamento à
infância desamparada. Salienta o autor o reflexo sistemático da consciência
humanística e decorrente evolução legislativa a partir da Europa no processo
brasileiro. Utilizando como referência a cronologia proposta por este autor,
trataremos de contextualizar esse processo no marco geral da história
brasileira.
Uma primeira fase deste processo histórico poderia ser fixada
entre 1500 e alguns anos antes da abolição da escravatura no Brasil, que
ocorreu um 1888. O símbolo maior deste período seriam
as Rodas dos Expostos, instaladas nas Santas Casas de Misericórdia, que eram o
centro do modelo português. Nesta fase, as crianças, em geral, não permaneciam
internadas por muito tempo, sendo encaminhadas a famílias beneméritas que as
mantinham como agregadas. Até 1817, 45 mil crianças foram expostas e 90% delas
morreram. As rodas foram um mecanismo alternativo às práticas comuns de expor
crianças nas ruas, lugares públicos, etc..
Em 1822, o Brasil se torna independente de Portugal e, a
partir da Assembléia Constituinte de 1823, surge no cenário da construção do
Estado a preocupação com a difusão da instrução a todos os habitantes livres do
império. Através do funcionamento das primeiras instituições educacionais de
nível superior no Brasil, a temática da infância começa a tomar força,
principalmente no campo da medicina. (Abreu e Martinez 1997, p. 20-1).
Em 1871, a Lei do Ventre Livre declara livres os descendentes
de escravos nascidos a partir daquela data, o que impulsionou ainda mais as
discussões sobre a proteção, educação e amparo aos filhos de escravos nascidos
em liberdade e, consequentemente, de todos os meninos
e meninas desamparados da ex-colônia. Para Abreu e Martinez (1997, p. 23-4),
esta lei foi um marco a partir do qual a infância surge como um problema
social. Esta fase poderia ser chamada filantrópica, pois predominaram práticas
desta natureza em atenção à criança desamparada.
A introdução de práticas higienistas,
que coexistiram e preponderaram sobre a continuidade da filantropia de corte
mais caritativo, caracteriza o que se pode identificar como uma segunda fase no
processo histórico das políticas para a infância, que se poderia localizar até
o início da década de 20, com o surgimento das primeiras leis de infância na
Europa, América e, em 1924, no Brasil.
Alguns anos antes da abolição da escravatura negra (1888),
começaram a chegar imigrantes europeus - em primeiro lugar italianos, logo, de
vários outros países. O incremento da imigração estrangeira suscitou a criação
de diversas sociedades científicas que trabalhavam, principalmente, no controle
de doenças epidêmicas e no ordenamento dos espaços públicos e coletivos,
inclusive escolas, internatos e prisões (Silva, 1997, p. 34-5).
A ênfase sanitária sobre a jurídica e sobre a benemérita
determinou a criação de programas de atenção à saúde caracterizados pela
contratação de amas de leite que viviam na Casa dos
Expostos, para cuidar das crianças até que outras famílias as acolhessem ou até
sua morte. (Melo, 1986, p. 332).
Em 1889 se proclama a República e começa o Estado a prestar
uma maior atenção às crianças abandonadas. Abreu e Martinez (1997, p. 26) afirmam
que, a partir desta época, a criança é vista como base para a construção da
nova nação. Entretanto, os discursos e propostas desta primeira república
denotam um projeto mais repressivo que assistencial. Em 1899 se cria o primeiro
Tribunal de Menores em Illinois (EUA) e de 1905 a
1921 se criam tribunais de menores em toda a Europa.
Na América Latina, a primeira lei de menores surge na
Argentina em 1919. No Brasil, já em 1900, surgem críticas ao
internamento de menores infratores na penitenciária do Estado e um projeto de
lei que cria o Instituto Disciplinar, depois chamado Instituto Modelo de
Menores e Colônia Correcional. Em 1909 o Estado assina convênios com
instituições particulares para assistência de menores.
Nota-se, nesta fase, uma mescla de filantropia, higienismo e já a gestação de uma futura hegemonia do
conhecimento jurídico na área da assistência à infância. Para Rizzini (1997-c, p. 42-3) a noção de higiene inaugura, no
Brasil, a preocupação científica com a infância. Para esta autora, a higiene
assumiu duas caras: a pública, adentrando todos os aspectos da vida social
(principalmente os setores potencialmente ameaçadores para a sociedade) e a
privada, remetida às regras de viver individualmente (alimentação, habitação,
educação, etc.).
Uma terceira fase histórica, caracterizada
como predominantemente assistencial, pode ser fixada entre as décadas de 20 e
50, até o golpe de Estado que deu início à ditadura militar em 1964.
A década de 20 significou um período de grandes mudanças na
sociedade brasileira, muito bem exemplificados pelo conteúdo das comemorações
do centenário da independência do país ou pela Semana de Arte Moderna de 1922.
Foi, também, uma fase de crise econômica e política da República Liberal, o que
levou a um questionamento sobre o papel do Estado nas questões sociais. Neste
período se inauguraram várias instituições para educação, repressão e
assistência a crianças, conforme indicam Abreu e Martinez (1997, p. 28-9).
Nesta fase foi aprovado o primeiro Código de Menores do
Brasil e a Casa dos Expostos foi desativada. O Poder Judiciário cria e
regulamenta o Juizado de Menores e todas suas instituições auxiliares. O Estado
assume o protagonismo como responsável legal pela
tutela da criança órfã e abandonada. A criança desamparada, nesta fase, fica
institucionalizada, e recebe orientação e oportunidade para trabalhar.
Neste período, se criam os primeiros tratados e convênios
internacionais dos direitos das crianças, que indicam uma distinção entre
menores desamparados e infratores. Em 1924, surge a Declaração dos Direitos da
Criança, aprovada pela Sociedade das Nações, um quarto de século antes da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Em 1939, o Comitê
Internacional da Cruz Vermelha e a União Internacional para a Proteção da
Infância elaboraram um projeto de convênio para a proteção das crianças nos
conflitos armados, mas a guerra impediu a iniciativa de seguir adiante.
Finalmente, em 1959, a ONU aprova a segunda Declaração dos Direitos da Criança,
base principal da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de
1989.
Em 1927 é promulgado o Código de Menores, no qual a criança
merecedora de tutela do Estado era o "menor em situação irregular".
Silveira (1984, p. 57) entende que este conceito vem a superar, naquele momento
histórico, a dicotomia entre menor abandonado e menor delinqüente, numa
tentativa de ampliar e melhor explicar as situações que dependiam da
intervenção do Estado.
No período de 1930 a 1945, em meio a problemas de incremento
de urbanização e industrialização, cresce o centralismo do Estado
assistencialista - agora denominado Estado Novo, especialmente a organização
dos serviços públicos de atendimento, fazendo frente à evidente fragilidade das
iniciativas privadas até então hegemônicas. A revolução de 1930 inaugura
politicamente o chamado "Estado social" brasileiro,
que atende a muitas reivindicações históricas dos trabalhadores e da população
em geral como legislação trabalhista, ensino básico obrigatório e seguridade
social, apesar de que de forma a tentar cooptar movimentos sociais importantes
num projeto político centralizador e paternalista.
Nesse contexto, as décadas de 30 e 40 foram caracterizadas
pela ênfase na assistência, não obstante, de acordo com Abreu e Martinez (1997,
p. 30), a presença sempre forte nos discursos jurídicos de tentativas de criminalização da infância pobre. A assistência,
entretanto, desde o final do século XIX, como vimos, se realizava
prioritariamente em instituições fechadas. As críticas a este modelo seguiram
toda sua trajetória e propuseram várias mudanças até a década de 50, quando as
denúncias de superlotação, maus tratos, corrupção, etc., se fizeram mais fortes
(Rizzini, 1997-c, p. 44-5). Surgem daí as primeiras
iniciativas de assistência asilar, de corte mais preventivo. Este confronto
entre discursos e práticas assistenciais de tipo asilar e preventivo, a partir
de posturas ora jurídicas, ora médicas ou educativas, expressou o movimento
mais geral de busca de uma ordem política, econômica e social coerente com a
construção da república.
Até 1935, os menores abandonados e infratores eram,
indistintamente, apreendidos nas ruas e levados a abrigos de triagem. Em 1940,
se edita o atual Código Penal Brasileiro, onde a idade para a imputabilidade penal
se define aos 18 anos. Em 1942 se cria o SAM (Serviço de Assistência ao Menor),
órgão do Ministério da Justiça, de orientação correcional-repressiva. O SAM se
estruturou sob a forma de reformatórios e casas de correção para adolescentes
infratores e de patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios
urbanos para menores carentes e abandonados. O SAM é reconhecido por muitos
autores como a primeira política pública estruturada para a infância e
adolescência no Brasil. Surgem, também, nesta época, diversas casas de
atendimento sob as ordens da primeira dama, ou seja, diretamente ligadas ao
poder central. O Estado e, especialmente, o Poder Judiciário assume, neste
período, uma hegemonia em relação aos demais sujeitos anteriormente mencionados
como a Igreja, os médicos e os filantropos.
Em 1964 os militares tomam o poder num golpe de Estado e
começam uma ditadura que se prolonga até a primeira metade da década de
oitenta. Em relação às políticas e práticas sobre a infância desamparada, este
fato supõe um marco que justifica a identificação do início de uma nova fase
histórica, que se estende até o final da década de 80.
Esta fase se inicia com a extinção do SAM e a criação da Funabem (Fundação Nacional do Bem-estar do Menor) e das Febems (Fundação Estadual do Bem-estar do Menor) em cada
estado da Federação. A Funabem foi criada a partir
das lutas de organismos não governamentais contra a ineficácia do SAM, e
conforme as diretrizes oriundas da Declaração da ONU dos Direitos da Criança.
Mas o sistema concreto institucional foi criado no espírito da Doutrina da
Segurança Nacional, que militarizou a disciplina dentro dos internatos que, a
partir de agora, já encerram definitivamente suas portas para a sociedade. A
trajetória da criança ia da polícia diretamente até as unidades de recepção da
Febem.
Na década de 70 algumas iniciativas começaram a ser tomadas para superar a ineficácia dos modelos do Estado
de atenção à criança, tanto por parte da Igreja Católica como do próprio
Parlamento. Pouco a pouco, estas iniciativas, associadas ao incremento de
grandes problemas sociais como o aumento da violência, analfabetismo e
exploração sexual infanto-juvenil, foram minando a legitimidade do caráter
autoritário e excludente das políticas para a infância que predominaram nas
décadas de 60 e 70. Neste período, surgem novos agentes sociais como movimentos
populares de defesa dos direitos das crianças, e outros.
Como contraponto de todo este movimento, em 1972 ocorre uma Semana
de Estudos de Problemas de Menores, na qual se recomendou todo um aparato de
segurança baseado em agentes fortes e em contenção arquitetônica e física,
reforçando as políticas repressivas já imperantes no
sistema vigente.
No Brasil, as legislações sempre propugnaram a proteção total
da infância, proibindo castigos físicos e direcionando a assistência para
caminhos mais abertos que fechados. As práticas, entretanto, sempre
privilegiaram o modelo asilar. Mas, nesta fase, se reforça uma política de contenção
institucionalizada de corte militarista que, legitimada como política de
Promoção Social, logrou sobreviver sob um novo Código de Menores editado em
1979. Este Código já contém a doutrina da proteção integral, mas baseada no
mesmo paradigma do menor em situação irregular da legislação anterior.
O Código de Menores de 1979 traz um dispositivo de
intervenção do Estado sobre a família, que abriu caminho para o avanço da
política de internatos-prisão. O princípio de destituição do
pátrio poder baseado no estado de abandono, através da sentença de
abandono, possibilitou ao Estado recolher crianças e jovens em situação
irregular e condená-los ao internato até a maioridade. Aos 18 anos, os
"ex-menores" eram encaminhados, preferencialmente, ao serviço militar
ou aos serviços públicos. Sobre os adolescentes autores de ato infracional, o Código de 1979 previa umas medidas de
advertência, entrega aos pais ou responsáveis ou à pessoa idônea, através de
termo de responsabilidade, colocação em lar substituto, regime de liberdade
assistida, semiliberdade, internação em
estabelecimento educacional, ocupacional, psicopedagógico,
hospitalar, psiquiátrico ou outro adequado, levando em conta estudo de
especialistas. Além disso, a lei previa a preferência pela reintegração
sócio-familiar, e a excepcionalidade das medidas de
internação. Entretanto, na prática, muitos jovens foram internados em
instituições precárias e contrárias aos próprios dispositivos legais.
Nesta fase, as instituições passam a ter maior importância que
os próprios menores, no sentido em que a disciplina interna e a segurança
externa aos muros eram os principais critérios de eficácia dos programas de
assistência aos menores.
Os movimentos críticos das políticas para a infância até
então vigentes, da década de 70, chegam à década de 80 já apontando para o
esgotamento da legislação recém imposta do Código de Menores e da Política
Nacional do Bem-estar do Menor.
O início do processo de transição democrática do país foi o
cenário de uma mobilização popular por uma assembléia constituinte, que foi
instalada em 1987. A própria convocação da Assembléia Nacional Constituinte
obrigou a sociedade a organizar-se para o alcance de suas metas através da
elaboração de propostas e de emendas de iniciativa popular articuladas por
entidades legalmente constituídas e subscritas por um mínimo de 30 mil
eleitores. A oportunidade aberta para emendas populares criou espaço tanto para
os grandes "lobbies" do poder econômico como para a atividade de
diversas minorias, e formou o contexto sobre o qual se construiu a chamada
"Constituição Cidadã".
Já em 1986, organizações não governamentais de defesa dos
direitos das crianças e dos adolescentes, influenciadas e influentes no projeto
da Convenção dos Direitos da Criança da ONU, iniciaram um movimento em direção
a introdução do conteúdo do documento das Nações Unidas na Constituição
Federativa do Brasil (CF).
Nesta época, os meninos e meninas de rua se consolidam como
símbolo da situação da infância e adolescência desamparadas no Brasil, tanto
pela sua importância em termos quantitativos como pela sua crescente
organização e conseqüente intervenção no panorama político nacional, com apoios
internacionais. O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, em conjunto
com grupos comunitários, setores da Igreja Católica, universidades, ONGs de estudos, investigações e atendimento direto e defesa de crianças e adolescentes, liderou a campanha para
recolher assinaturas para as emendas populares referentes aos direitos das
crianças na nova Constituição.
Em 1989, assim, se promulga a Constituição Federativa do
Brasil (CF), após um longo período chamado de Transição Democrática, a partir
de uma abertura "lenta, gradual e pacifica", promovido pelos últimos
governos da ditadura militar e consolidado num processo de articulações entre
setores das oposições dentro e fora do Estado com apoios de movimentos sociais
e populares. Elabora-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e
inicia-se o conseqüente reordenamento institucional,
com a criação da Fundação Centro Brasileiro para a Infância e a Adolescência,
em substituição à Funabem,
mas com a tarefa peculiar e transitória de fomentar a organização nacional,
estadual e municipal dos Conselhos de Direitos e dos Conselhos Tutelares. Não há
nome atual para uma política nacional correlata ao Eca,
como houve nas legislações anteriores, pois por sua própria força legal as
políticas devem ser descentralizadas.
A promulgação da Constituição Federeativa
do Brasil, em 1989 e do ECA, em 1999, marcam o início
de uma nova fase, que pode ser chamada de desinstitucionalizadora,
caracterizada pela implementação de uma nova política que se baseia numa
legislação que rompeu com paradigmas anteriores de atenção à criança
desamparada. É a fase atual.
2. O Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA)
A Constituição Federal situa as políticas sociais como
instrumentos de garantia dos direitos sociais, que por sua vez integram o rol
dos direitos e garantias fundamentais. Positiva, também, as normas relativas à organização
da seguridade social que engloba a saúde, a previdência e a assistência social,
assim como a educação, além de normatizar a família,
a criança e o adolescente e o idoso, entre outros. O artigo 227 trata dos
deveres da família, da sociedade e do Estado de assegurar, com prioridade
absoluta, os direitos das crianças e dos adolescentes.
O artigo 227 CF deu origem ao ECA e
o 228 define a idade de imputabilidade penal aos dezoito anos, lançando as
bases, de acordo com a Convenção dos Direitos da Criança da ONU e documentos
afins, do conteúdo dos direitos das crianças e adolescentes brasileiros.
O ECA é a lei federal que dispõe
sobre os direitos de todas as crianças e adolescentes do Brasil. Não é uma lei
somente dirigida às crianças desamparadas, mas a todos os meninos e meninas,
enquanto sujeitos de direitos fundamentais e da garantia da prioridade absoluta
em sua defesa. O ECA se define como lei de proteção
integral da criança e do adolescente, e situa a criança como a pessoa até 12
anos de idade e o adolescente entre 12 e 18 anos, sendo aplicável,
excepcionalmente, na faixa dos 18 aos 21 anos. Além de positivar os direitos e
garantias individuais e regular a proteção judicial dos interesses individuais,
difusos e coletivos, define e regula as políticas de atendimento desses
direitos. Normatiza tanto a proteção como a sócio-educação, mas não está estruturado como para demarcar
esta dualidade.
Nogueira (1996, p.715-6) resume o conteúdo do
ECA, destacando algumas linhas gerais. A proteção e a garantia dos
direitos das crianças e adolescentes se faz, no ECA,
através de uma linha de promoção de direitos (artigos 7 a 69), uma linha de
efetivação de políticas públicas estatais e comunitárias (artigos 86 a 97) e,
finalmente, determinando o processo de reordenamento
institucional em função de sua implementação. O ECA
sistematiza, ainda, uma linha de defesa de direitos através da instituição de
medidas de proteção (artigos 98 a 102), a explicitação do devido processo legal
para apuração de atos infracionais praticados por
adolescentes (artigos 103 a 128) e a instituição de um elenco de medidas
jurídicas, administrativas e judiciais, de proteção desses direitos (artigos
129-1130 e 208 a 258).
O ECA se subdivide em duas partes. A
primeira, chamada Parte Geral (Livro I) é uma declaração dos direitos das
crianças e dos adolescentes, detalhando o artigo 227 CF. Define como o
intérprete e o aplicador da lei deverão compreender a natureza e o alcance dos
direitos elencados na norma constitucional. A segundo, chamada Parte Especial (Livro II), é composta dos
mecanismos de viabilização destes direitos, ou seja, de suas garantias.
Regulamenta as normas gerais a que se refere o artigo 204 CF, conforme o artigo
227 CF.
Para efeitos meramente descritivos, destacaremos alguns
pontos do ECA, para demarcar a ênfase deste trabalho,
quando da análise sócio-jurídica da lei.
A importância da institucionalidade
no processo de implementação do ECA é marcada em toda
a parte referente às políticas de atendimento, além da parte específica
dirigida ao Conselho Tutelar. O artigo 87 define as linhas de ação da política
de atendimento da infância, as quais se podem resumir como quatro: básicas,
assistenciais, de proteção integral e de garantia de direitos. As políticas
básicas são aquelas destinadas a todas as crianças e adolescentes como de
saúde, educação, profissionalização, etc. As assistenciais têm como público
alvo os que dela necessitam, conforme o artigo 204 CF e se regem pelas diretrizes
de descentralização e participação. As de proteção integral se destinam a
vítimas de ameaça ou violação de direitos. Finalmente, as políticas de garantia
de direitos englobam os Conselhos de Direitos e Tutelares, a ação do Ministério
Público e da Defensoria Pública.
As possibilidades e os limites de ação são regidos pelas
diretrizes da política de atendimento, invocadas no artigo 88, que trata da
iniciativa dos poderes públicos para formular políticas de atendimento e
proteção da maternidade, infância e adolescência, através da figura da
participação, sublinhando o princípio constitucional constante no artigo 1º,
parágrafo único CF: "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente nos termos da Constituição."
De acordo com Sêda (1996, p. 281),
o artigo 98 marca a ruptura com a doutrina da situação irregular e adota a
doutrina da proteção integral. A união entre proteção e sócio-educação
numa mesma lei é coerente com o atual paradigma. Todos os meninos e meninas têm
direito às medidas de proteção, sempre que os direitos reconhecidos na lei
sejam ameaçados ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, por
falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis ou em razão de sua conduta
(ECA, artigo 98).
Algumas das medidas de proteção podem e devem, de acordo com o ECA, acumular-se às medidas sócio-educativas, pois os
adolescentes infratores não perdem seu direito à proteção integral. As medidas
de proteção de I a VI são incluídas no rol de medidas aplicáveis aos
adolescentes autores de atos infracionais, além das
medidas sócio-educativas.
O Título III da Parte Especial "Da prática do ato infracional" acolhe o conceito de ato infracional, os direitos e garantias individuais e
processuais, e cuida das medidas sócio-educativas. Finalmente, no último
capítulo, trata da remissão, como forma de exclusão ou, ainda, de suspensão ou
extinção do processo.
Veronese (1996) destaca o caráter
inovador do ECA na parte referente ao acesso à
justiça, que é a proteção judicial dos interesses individuais, difusos e
coletivos referentes às crianças e adolescentes. É o que garante, ao menos
formalmente, o acesso à educação e à serviços de
saúde, por exemplo, a grande parte da população infantil e, também, aos
adolescentes privados de liberdade.
A responsabilidade da família e da comunidade em garantir os
direitos das crianças aparece, de forma declarativa, na parte geral e, de forma
prescritiva, na parte especial, quando se normatizam
as medidas pertinentes aos pais ou responsáveis e os crimes e infrações
administrativas.
Até aqui, fizemos uma análise breve dos principais momentos
que contextualizaram mudanças políticas e normativas em relação ao atendimento
da infância desamparada no Brasil, assim como um resumo dos pontos fundamentais
da atual legislação. No próximo capítulo, pretendemos percorrer teoricamente
alguns elementos destacados deste recorrido histórico, numa tentativa de
sistematização de conceitos que facilite a compreensão das políticas para a
infância e adolescência.
CAPÍTULO II
As políticas para a infância
Revisando alguns dos elementos da história política, dos
pensamentos e das práticas de assistência às crianças desamparadas no Brasil,
destacaremos alguns conceitos-chave, cuja análise poderá contribuir para uma
compreensão da atual legislação e de seu processo de implementação. O exame
destes conceitos só é possível a partir da construção de um panorama
esquemático de uma porção de racionalidade que se pode inferir da observação do
processo histórico.
Trata-se de uma hipótese descritiva de condições objetivas e
subjetivas, construídas historicamente, para as representações atuais das
políticas sociais para a infância desamparada no Brasil.
O esquema que propomos para organizar esta análise é composto
de dois elementos principais, que integram as políticas públicas sobre a
infância: os agentes (protegidos e protetores) e a intervenção (composta de
estratégias, meios e práticas).
1. Os
sujeitos
Os sujeitos das políticas sociais para a infância são, por um
lado, os receptores ou usuários, em última análise, os protegidos em sentido
amplo e, por outro, os autores, gestores ou executores, ou seja, os protetores,
por dize-lo da mesma
maneira. Os primeiros se identificam empiricamente com as crianças e
adolescentes desamparados, em perigo ou perigosos, e com as famílias
genericamente taxadas de estruturadas ou carentes. Os segundos podem ser
visualizados a partir das relações entre o público e o privado no contexto do
Estado social.
1.1. Os protegidos
1.1.1. A
criança desamparada
O conceito e as representações de criança desamparada mudaram
no decorrer da história do Brasil pós conquista desde o bastardo (branco ou
mestiço, abandonado na rua ou acolhido por famílias beneméritas), até o sujeito
de direitos, passando pelo exposto (objeto de ações sanitárias das entidades
médicas e de amas de leite), pelo assistido (destinatário da promotoria social,
junto com sua família) e pelo menor (objeto de políticas públicas centradas nas
instituições totais).
Um dos paradigmas do menor desamparado, no Brasil, são os
meninos nas ruas. Desde o século XIX há
registros de meninos nas ruas, mas é a partir da década de 80 deste século,
após 20 anos de ditadura militar, internando o problema dentro dos muros dos
internatos, que este fenômeno logrou maior visibilidade nos meios políticos e
acadêmicos.
Para as crianças mais pobres as ruas, além de espaços de ócio
e convivência, são também o espaço próprio de sobrevivência, onde todas as
atividades cotidianas que as classes médias e altas costumam realizar em casa,
na escola ou no trabalho, são vivenciadas de modo peculiar. Para os modelos
ideais impostos, esta peculiaridade se apresenta basicamente sob a forma de pequenos
delitos ou simplesmente de situações incômodas ou agressivas. Assim, por
exemplo, dormir, ir "ao banheiro" ou lavar a roupa no parque público,
pedir comida nos restaurantes ou mesmo furtar frutas ou pão de pequenos
estabelecimentos comerciais ou supermercados, etc., são atividades delitivas ou
incômodas, mas sem dúvida definidoras da própria condição de vida destas
pessoas, nas ruas.
Com ou sem família, as crianças que andam pelas ruas são o
protótipo do "vagabundo", figura clássica
que absorveu, desde há muito tempo, políticas de toda ordem em busca de seu
encaixe nos modelos impostos de convivência social.
O vagabundo, alvo permanente da intervenção através de
políticas de proteção, expressa um elemento de vulnerabilidade e, de acordo com
Donzelot (1979, p. 81), pelo menos três componentes:
o abandono (degradação física), a apropriação (exploração) e a periculosidade.
O autor sintetiza estes três componentes num só, que é a corrupção, em três
dimensões: a sexual, a econômica e a política. Salvo as distinções de época e
lugar a que se refere Donzelot (1979), é certo que
esta descrição da representação social do vagabundo encaixa perfeitamente nos
fundamentos discursivos que informam os objetivos latentes das políticas atuais
para a infância desamparada no Brasil. A progressiva ampliação da noção de
vagabundo acompanha a ampliação dos supostos de intervenção preventiva, protetiva e repressiva.
Mesmo dentro do âmbito da infância desamparada, não se pode
falar de uma única categoria informadora das políticas sociais. Apesar de,
historicamente, abandonados e infratores terem sido tratados de forma conjunta
por um longo período, conformaram-se, no Brasil, simbólica e concretamente,
duas representações distintas - criança e menor - da infância desamparada, que eqüivaleriam às noções espanholas de "criança sujeito
de direitos", por um lado, e em "proteção", ou em
"reforma" (transgressores ou em conflito com a norma) por outro.
Olhando a história das legislações, políticas e instituições para
a infância no Brasil, se comprova a divisão conceitual que se consolida entre
as duas categorias. A primeira é alvo de políticas de assistência social,
educação e saúde, enquanto o segundo é alvo de políticas repressivas, protetivas ou reeducativas. A
assistência à criança e ao menor tem histórias paralelas, onde as relações
institucionais nunca foram tranqüilas. Conforme sintetiza Rizzini
(1995, p. 289-90), as políticas de proteção e de repressão, de caráter mais
terapêutico, tiveram como alvo o menor, e as de prevenção ao abandono e ao
delito, tiveram como alvo as famílias desagregadas ou em risco.
Esta divisão, vista como expressão de uma representação do
conceito de infância como duas categorias distintas, de acordo com as condições
objetivas de sua existência, também pode ser evidenciada através da constatação
de que o menor foi sempre "auto-referido", ou seja, definido em
conformidade com sua própria conduta ou condições, enquanto a criança foi
sempre referida à sua família, à sua mãe, vistas ou como vítimas de
circunstâncias ou como causadoras dos males da criança. Um exemplo é a divisão
entre políticas de educação pública (para as crianças) separadas das de sócio-educação (para os adolescentes autores de ato infracional) informadas pelo ECA.
As crianças foram, pelo menos desde que existem como questão
social, em menor ou maior medida, objetos de saberes e de poderes adultos e de
práticas mais ou menos estruturadas de proteção ou repressão. Pode-se
considerar que hoje em dia, em nível normativo, o que se outorga às crianças
são as mesmas garantias e liberdades formais de que gozam os
adultos, acrescidas da proteção contra ameaças em função de sua
vulnerabilidade própria da idade. A mudança conceitual desloca, pois, a criança
dentro de um mesmo campo de controle social e de intervenção estatal sobre a
sociedade em geral. A condição de sujeito de direitos não lhes isenta da
condição de objeto de proteção.
1.1.2.
A família em risco
A infância desamparada é representada dentro de famílias em
situação de risco vistas, construídas e enfrentadas pelo Estado através de suas
facetas normativa e de ação pública que, no Brasil, se apoiam
num princípio de co-responsabilidade entre Estado, sociedade e família.
A família é constantemente redefinida socialmente enquanto
distintas formas de relações íntimas e reaproveitada politicamente enquanto
apoio para políticas mistas entre o Estado e a sociedade para dar conta do
risco crescente de exclusão social dos indivíduos, decorrente de um processo de
dolorosas transformações no mundo do trabalho e suas conseqüências no Estado de
Bem-estar social.
Enquanto fator de risco social, a família é caracterizada
como um cenário de enfrentamentos entre crianças e adultos, e pela
inacessibilidade a sua faceta privada, onde prospera o risco de destruição da
ordem social, como por exemplo através do aumento da taxa de natalidade ou das
novas formas de organização íntima das relações interpessoais.
As famílias pobres foram, quase sempre, associadas à
ignorância, negligência, incapacidade, vícios, abandono, promiscuidade,
imoralidade e, definitivamente, foram locus privilegiado das políticas de proteção, pelo menos, no
Brasil, desde a chamada fase higienista até a
atualidade. De qualquer forma, a mulher/mãe de todas
as classes sociais foi sempre o principal objeto dos projetos médico-higienistas, enquanto a família desestruturada foi
sempre o objeto dos projetos assistenciais de corte asilar
provindos do campo jurídico.
Donzelot (1979, p. 45-6) identifica
no nascimento da família moderna uma orientação à primazia do educativo, apesar
de não se expressar de forma igual em cada classe social. Enquanto as famílias
ricas dirigiam sua preocupação às influências dos empregados domésticos, as
famílias pobres se protegiam do exterior: da rua, do bar, etc. A criança rica
era educada a uma liberação protegida, enquanto o pobre sofria uma liberdade
vigiada. Fala da transição da família desde uma rede de relações de dependência
e de posse, até transformar-se em terminações nervosas de aparatos que lhes são
exteriores. A família, assim, é duplamente perpassada pelas normas direta ou indiretamente organizadoras de sua estrutura e dinâmica
(Donzelot 1979, p. 92).
Definitivamente, o paradigma da família nuclear urbana,
presente nas classes médias e altas, conformou o modelo sob o qual
produziram-se as principais políticas públicas para a infância e adolescência,
no período estudado. Como único espaço vital legítimo, a família modelo acaba
criando as subversões representadas por alternativas de convivência interpessoal.
A noção de família desestruturada remete a um modelo calcado
em variáveis sociais, econômicas e culturais, mas principalmente relacionadas,
na prática, ao sustento financeiro das crianças. Mas no interior das famílias
ditas estruturadas também se abrigam práticas de sociabilidade autoritária que
comprometem a sociabilidade primária livre e democrática,
produzindo situações-problema tão ou mais graves que nas famílias
desestruturadas.
A família pode ser vista, ainda, com uma dupla face entre o
público e o privado, o que pode dar margem à legitimação de um amplo
intervencionismo estatal no âmbito antes visto como fechado da intimidade
familiar. Visualizar a família como espaço fechado com expressão pública, ou
como espaço semi-público de relações privadas, traz
como conseqüência a possibilidade de maior garantia dos direitos individuais
dos indivíduos membros da família, assim como os direitos sociais de seu
conjunto e de seus membros mais vulneráveis. Ferrajoli
(1997, p. 934) identifica, a partir dessa visão, o que chama de "micropoderes selvagens", extrajurídicos,
que se estabelecem entre membros de instituições como a família (pai/filho, marido/mulher), a
fábrica ou o escritório (patrão/empregado), a escola
(professor/aluno, direção/funcionário),
o hospital (médico/doente), etc.. Estas relações de
poder são a base de desigualdades entre as pessoas e
as condições de sociabilidade autoritária, de violência moral ou física entre
os indivíduos. Ao distinguir liberdades de poderes, e atribuir às primeiras a necessidade de preservar e aos segundos a de
regular, tanto na esfera pública como na privada, o autor encontra
vulnerabilidade de direitos fundamentais e justifica a necessidade de mais
garantias, o que pressupõe mais intervenção.
A família é e sempre foi o lugar de proteção, escudo contra a
violência da adversidade, manancial de solidariedade alternativa a do Estado,
tecidos de laços sociais elementares. Assim considerada, a família representa,
ao mesmo tempo, risco e um potencial de recursos de regulação dos problemas
sociais. Agora, entretanto, é um novo modelo de família o que concentra a
atenção das políticas públicas. O aumento da expectativa média de vida, a
instabilidade e desinstitucionalização dos laços
familiares, o ascenso do desemprego feminino e geral,
a reestruturação das formas de organização do trabalho, a terceirização do
emprego, etc., são mudanças que demandam uma nova forma de encarar a família,
como elemento híbrido entre o público e o privado.
1.2. Os protetores
1.2.1. O público e o privado
As categorias público e privado são
básicas no pensamento moderno sobre o espaço social. Uma das conotações
contemporâneas mais comuns de público, que é a relação com o estatal, se
consolida na medida em que a sociedade civil vai-se diferenciando do Estado. Rabotnikov (1993, p. 78) localiza, aí, a separação do
público em relação ao privado.
Público e privado não podem ser vistos como exclusivos, pois
historicamente nunca se apresentaram de forma pura. Processos históricos como
absorção de espaços privados pelo público, ou de privatização de organismos
predominantemente estatais, são exemplos do caráter misto destes conceitos.
Habermas (1998, p. 432-4) faz uma
distinção entre as esferas da realidade que atribui ao paradigma sistêmico - a
economia capitalista e a administração pública - e dois âmbitos gerais do mundo
da vida: um de caráter mais privado, que corresponde à esfera mais íntima e
protegida da publicidade, e outro mais público, que
compreende seu componente mais social, formado pela totalidade das relações
interpessoais como coletivos, associações,
organizações, etc. Distingue, ainda, o poder político articulado em termos de
Estado de direito entre um âmbito de poder administrativo e outro de poder
comunicativo. Afinal, define o mundo da vida como uma totalidade que,
considerada em conjunto, se caracteriza como "una red
de acciones comunicativas" e, além disso, afirma
a interconexão entre todas as esferas da realidade social.
García-Pelayo
(1995, p. 112-3) salienta que o processo
de
"desdibujamiento
de límites entre el Estado y su ambiente, entre lo público y lo privado
(...)"
hace
con que eses límites ya
"no se configuren como
fronteras, sino más bien como 'marcas' o como 'zonas' de intersección e interferéncia entre el Estado y otras organizaciones(....)".
A tradicional separação entre público e privado, dada pela
fixação dos limites da ação do Estado, se associa, de acordo com este autor,
com uma série de outras dicotomias próprias da teoria e da práxis política desde o século XIX, ou seja, entre homem e cidadão,
entre público e privado, entre político e econômico e entre Estado e sociedade.
As conjunturas políticas contribuíram para conformar as
relações entre o público e o privado na história das políticas para a infância
no Brasil. O predomínio da ação privada e a omissão do Estado se fizeram
possíveis no início da "República Velha", sob domínio do poder oligárquico/liberal, que defendia a não intervenção do
Estado no social. A ditadura Vargas e o período populista
nacionalista que se segue ao Estado Novo contextualizou e condicionou as
políticas de controle social dos anos 30, compostas de setores assistenciais, jurídico/policiais e de saúde. O período
democrático-populista do pós guerra traz as políticas clientelistas, com ênfase nas ações preventivas de doenças
infantis e nas lutas pelo ensino público. As políticas repressivas contra a
juventude "delinqüente", que acompanha toda a história revista, se
intensificam praticamente a partir da ditadura militar dos anos 60 e 70. Neste
período, o discurso de integração para a segurança nacional justificou o
desenvolvimento de uma tecnologia de repressão da juventude marginalizada sob a
doutrina da situação irregular.
A transição para a democracia foi um período de conflitos
entre os setores públicos e privados em torno de propostas de
políticas clientelistas e repressivas, por um
lado, e descentralizadas e participativas, por outro. Atualmente a consolidação
formal do Estado democrático de direito, a partir da Constituição de 1988 e do ECA, expressa um processo de democratização das políticas
para a infância, através da parceria entre Estado e sociedade, a redução da
atuação federal e a maior descentralização, até a municipalização das ações.
A intervenção sobre a pobreza, o abandono e o desamparo
infantil passa historicamente, portanto, da sociedade (famílias beneméritas,
igrejas, organizações caritativas) para o Estado (filantropia higienista, políticas promocionais, assistenciais, institucionalização
pública fechada) e volta para a sociedade, agora numa síntese amalgamada por um
sistema descentralizado e participativo representado pelos Conselhos de
Direitos e Tutelares, baseados no ECA, coerente com
uma nova representação de relações difusas entre público e privado.
A relação público/privado
adquire maior importância teórica na discussão sobre o Estado social enquanto
configuração de Estado que intervém de forma crescente na sociedade.
As políticas sociais contemporâneas são estratégias de
proteção social compartilhadas entre o Estado, as iniciativas privadas, os
"welfare states" locais (Carvalho 1997, p.
21) y a revalorização das micro-solidariedades, com ênfase nas minorias, cujo
objeto seria algo resultante da associação entre mecanismos de redistribuição
de renda e de revalorização de vínculos relacionais em diversos níveis públicos
e privados. No Brasil, é fácil ver esta mescla porque as sociabilidades
sócio-familiares nunca foram descartadas como estratégias de sobrevivência,
frente a um Estado de Bem-estar que nunca foi suficiente. Carvalho (1997, p.
19) afirma que no Brasil nunca se formou um "Welfare
State" forte. Caracteriza o processo brasileiro
como de um débil Estado providência associado a uma
forte sociedade providência, fluída e organizada.
1.2.2. O Estado social
O Estado social pode ser analisado a partir de dois de seus
componentes fundamentais, que são seu caráter redistributivo
e seu caráter interventor. Para explicar o primeiro nos apoiaremos em García Pelayo (1995) e para o segundo, principalmente em Habermas (1988 e 1998). Após uma breve descrição destas
duas características, trataremos, dentro de questão da chamada crise do Estado
social, a idéia de diminuição da primeira e aprofundamento da segunda. Ao
final, relacionaremos este processo com a realidade brasileira atual.
García-Pelayo (1995, p. 30-4) situa
no caráter distribuidor o próprio fundamento do Estado. Define o Estado social como
"la forma histórica superior
de la función distribuidora que siempre ha sido una de las características
esenciales del Estado",
e
como um
"Estado de prestaciones que
asume la responsabilidad de la distribución y redistribución de bienes y
servicios económicos" (Idem, p. 35).
O que diferencia o Estado social do Estado de bem estar,
assistencial ou providência, segundo este autor, é que o primeiro alude a uma
configuração global do Estado, enquanto os demais se referem mais a uma função.
A partir desse caráter distributivo, pode-se definir o Estado
social de direito como o que acolhe os direitos fundamentais e promove ações propositivas para os direitos econômicos, sociais e
culturais, como por exemplo prestações sociais e os diversos tipos de serviços
sociais. Estas ações, realizadas pelas políticas sociais, concretizam o caráter
de crescente intervencionismo do Estado social.
O intervencionismo estatal sobre parcelas crescentes da vida
social se realiza através das políticas sociais, mas se sustenta no incremento
normativo. Habermas (1988, p. 511-3), explica como a juridificação do mundo, da vida, é uma forma de incremento
do intervencionismo estatal, mas anterior ao Estado social. Para esse autor, o
processo histórico de juridização começou com uma
primeira fornada, que deu consistência à sociedade civil, com a instituição do
Estado de direito pós revolução francesa,
caracterizada por regulações das relações
capital-trabalho. Logo vieram os processos de constitucionalização (no início, absolutistas), e de democratização da dominação
burocrática. Finalmente, o desenvolvimento do Estado social no marco do Estado
democrático de direitos, traz consigo um processo de juridificação
garantidora de liberdade, o que constitui um paradoxo de garantia jurídica da
liberdade transformada em perda de liberdade.
Como conseqüências do processo de juridificação Habermas (1988, p.
513) aponta a abstração da vida concreta individual e a homogeneização
da sociedade civil, também destacadas por Picontó
(1996, p. 78). Entretanto, há autores que chamam a atenção para um outro
aspecto negativo que, aparentemente, se contradiz com a crítica de Habermas. É que as políticas sociais, como expressões do
caráter distributivo e interventor do Estado social, individualizam o enfoque
de problemas sociais estruturais.
Picontó (1996, p. 78-80) aponta, ao
lado da juridificação do espaço vital espontâneo por
parte do Estado social, um processo de administrativização
das competências em matéria de políticas sociais, o que implica uma burocratização
do tratamento dos problemas, necessidades e interesses. Além disso, a autora
identifica uma cientifização dos processos de decisão
administrativa, que serve de discurso legitimador das políticas
intervencionistas.
Em suma, a chamada crise do Estado social, que tem como pano
de fundo a onda neo-liberal, pode ser caracterizada,
com base nesta breve descrição, como uma crise do seu aspecto distributivo, mas
não do seu aspecto interventor. De acordo com Calvo (1998-a, p. 110):
"En la actualidad las normas
jurídicas y las actividades de los poderes públicos que regulan sirven a fines
intervencionistas muy variados y cada vez más extensos: asistenciales, redistributivos, control e integración social, estabilidad
y racionalidad económica, 'juridificación' de las
relaciones sociales, etc. Todo ello nos sitúa ante la tesitura de un modelo de
intervención complejo, muy alejado de los anhelos de autonomía protegida y
estado mínimo que caracterizaron las ideologías jurídicas imperantes en épocas
pasadas".
Os recortes nos gastos com os direitos
econômicos, sociais e culturais por parte dos Estados expressa a
diminuição do caráter distributivo, ao menos de tipo mais democrático (se é que
se entende aí a participação e a autonomia) deste modelo de Estado. O caráter
intervencionista do Estado social não acompanha este movimento de descenso de sua cara distributivista.
Logicamente, ao corte dos direitos sociais da agenda estatal, deve-se seguir um
reforço de formas de controle social que garantam a legitimação de um Estado
que não realiza seu lado distributivo.
O processo histórico de construção social
da infância e as correspondentes intervenções pode ser caracterizado
como coerente com a lógica do Estado em cada momento histórico, político e
econômico. Por sua vez, esta lógica acompanha um movimento mais geral de
desenvolvimento do pensamento ocidental contemporâneo.
No Brasil, o Estado se constituiu como um Estado social de
fato desde a década de 30, mas sempre com uma forte ênfase na sua faceta intervencionista
e assistencialista. O caráter distributivo só se manifestou como função
subordinada, pontual, e não como elemento constituinte do modelo.
Hoje em dia, cada vez mais, o Estado brasileiro se retrai em
suas funções redistributivas, através de um movimento
geral de privatização. Ao mesmo tempo, convive com um ordenamento
constitucional e legal que acolhe de forma importante, apesar de meramente
formal, os direitos sociais.
Esta aparente contradição pode ser explicada pelo fato de que
a Constituição Federal do Brasil é resultado de uma correlação de forças que,
atualmente, segue viva através das disputas em torno da sua reforma. A reforma
constitucional tem como objetivo a formalização do Estado neo-liberal,
através da retirada dos direitos sociais. Neste jogo de forças, se incrementam
programas estatais assistencialistas e aparentemente participativos, como para
manter a aparência de preocupação do Estado com os direitos sociais. Exemplo é
o programa Comunidade Solidária do governo federal, que convive com recortes
importantes nos orçamentos federais para os processos de descentralização e
municipalização das ações na área das políticas sociais.
Em resumo, no Brasil convive um ordenamento jurídico que
acolhe os direitos sociais com um projeto político de desresponsabilização
do Estado em relação a seu caráter redistributivo.
Além disso, compõe este quadro um processo de incremento do caráter
intervencionista, através da juridificação de um
leque cada vez maior da situações da vida social, como
por exemplo a vida familiar e comunitária. O ECA é
exemplo de juridificação de parcelas importantes das
relações íntimas familiares, antes menos normatizadas.
2. A intervenção
O segundo elemento do panorama temático escolhido é o próprio
conteúdo das políticas sociais, a intervenção, constituída pelas estratégias
(repressão, prevenção e proteção), meios (principalmente administração e
famílias) e práticas (orientadas a situações de pobreza, de violência e a
vulnerabilidades e potencialidades coletivas).
2.1.
As estratégias
As principais estratégias de intervenção sobre a infância
desamparada têm sido, historicamente, a repressão, a prevenção e a proteção.
Apesar de que as três possam ser vistas como momentos ou expressões de um mesmo
movimento de controle social, é importante destacar, ainda que muito
brevemente, algumas peculiaridades de cada uma.
2.1.1. Repressão
A repressão, enquanto estratégia de intervenção na questão da
infância perigosa ou em perigo, nem sempre esteve ligada ao âmbito judicial. A
diversificação de práticas repressivas de controle social da infância adquire
uma importância teórica na medida em que expressa o dilema entre seu caráter
penal e pedagógico. Para elucidar os termos deste dilema, trataremos de revisar
brevemente as teorias e ideologias sobre as funções das penas e seus efeitos no
chamado direito penal da infância. Os aparatos repressivos a serviço de
estratégias punitivas do desvio eram alguns dos principais instrumentos
funcionais à ideologia liberal, mas imperaram em todas as lógicas de Estado,
cada vez de forma mais ampla e profunda. O castigo foi originalmente orientado
a neutralizar a ação transgressora ou a prevenir novos delitos através da
ameaça que ou dissuadia os potenciais transgressores, ou restaurava a confiança
dos cidadãos no sistema social.
As teorias utilitaristas, que buscam o critério da justiça
das penas na idéia de fim, podem ser classificadas em quatro modelos de autolegitimação do sistema mediante a declaração de seus
fins úteis como propõe Baratta (1986, p. 82-4), quer
dizer, de acordo com seu destinatário.
A prevenção especial, cujo alvo é o
transgressor, se subdivide em negativa, quando visa sua neutralização ou
positiva, quando, através do tratamento penal, visa sua reeducação e
readaptação à normalidade da vida social. A prevenção geral, direcionada aos
sujeitos em geral, pode ser negativa, quanto enfatiza um conteúdo dissuasivo,
ou positiva, quando evidencia um conteúdo expressivo, ou seja, de
restabelecimento da confiança institucional. As teorias justificadoras das
penas costumam acolher mais de um destes modelos, sugerindo um esquema
alternativo de classificação baseado em dois tipos
fundamentais: um modelo de saber ideológico, que se apoia
em funções não empiricamente demonstradas (a função de prevenção especial
positiva e as de prevenção geral do esquema anterior), e um modelo de saber
tecnocrático, que se apoia em funções empiricamente
provadas ou prováveis (de prevenção especial negativa). Baratta
(1986, p. 89-90) chama a atenção para a dupla mensagem do modelo de saber
tecnocrático, quer dizer, uma mensagem tecnológica,
relacionada com os mecanismos e efeitos reais da pena, e uma mensagem
ideológica, que apresenta a realidade como normal, legitimando de uma só vez a
repressão e o sistema social.
Ferrajoli (1986, p. 36) defende:
"la forma jurídica de la pena
como técnica institucional de minimización de la reacción violenta contra la
desviación socialmente intolerada".
A
pena, neste sentido, tem a dupla função de prevenir injustos delitos e injustos
castigos. De qualquer forma, o autor chama a atenção para o fato de que falar
de função da pena - retributiva, reeducativa
ou preventiva - é, hoje em dia, bastante irreal, pois
"Los sistemas punitivos
modernos - gracias a sus contaminaciones policíacas y a las rupturas más o
menos excepcionales de sus formas garantistas - se
dirigen hacia una transformación en sistemas de control siempre más informales
y siempre menos penales". (Ferrajoli 1986, p. 44).
Baratta (1991, p. 48-52) afirma que
as funções de prevenção especial negativa e geral negativa não se demonstraram
empiricamente, em termos estatísticos, eficazes, e põe em dúvida a
possibilidade de alcance de sua finalidade imediata, ou seja, a tutela dos bens
jurídicos e a defesa social. Critica a pena justificada pela teoria
utilitarista, pois utiliza o indivíduo, instrumentalizando
sua liberdade em função de algo que está longe de seus interesses ou direitos.
Por outro lado, considera a teoria da pena justa como mais simbólica e mais
cínica, na medida em que justifica a pena que se dirige a todos os cidadãos já
fiéis à lei. O autor propõe um direito penal alternativo, que
ponha
"una técnica rigurosa de
limitación de lo que tal vez en un tiempo parecía una función útil y que hoy,
cada vez más, aparece como la violencia inútil de las penas. Esto presupone un
uso instrumental del derecho penal liberado de la ilusión de la instrumentalidad de la pena." (Baratta
1991, p. 55).
É impensável que o Estado abra mão de um dos mecanismos mais
poderosos, em termos de eficácia simbólica, de controle social e de garantia de
legitimidade do uso da força contra os membros da sociedade que se desviam dos
parâmetros gerais de sociabilidade impostos. Mais além dos fins instrumentais,
se impõe como prioritária a função simbólica da repressão sob a forma de
justiça penal.
Calvo (1992, p. 104) diz que:
"El derecho penal para ser efizaz como medio de integración social, se dice, debe
tener otras funciones además de las meramente retributivas o disuasorias. Mas
allá de su trascendencia aflictiva individual, las sanciones penales tendrían
una función simbólica importante: expresar el punto de vista del sistema social
frente a los comportamientos desviados y restaurar la confianza institucional
de los 'no' transgresores."
Desde
um ponto de vista do sujeito penalizado judicialmente, se coloca a questão das
garantias frente a um processo de crescente abertura do direito penal a novas
demandas sociais relacionadas com a segurança cidadã.
O fato de situar-se no âmbito penal não eqüivale,
necessariamente, a garantismo, principalmente porque
o direito penal está passando, como todo o direito, por uma transição em
direção a um "Estado de prevenção", onde a segurança dos bens jurídicos
tende a prevalecer sobre a segurança da certeza do direito. O Estado preventivo
é o Estado da segurança, e corresponde à sociedade de risco de que fala Beck (1998). É o Estado onde:
"la producción normativa y los
mecanismos decisionales también tienden a
reorganizarse permanentemente como respuesta a una situación de 'emergéncia estructural'." (Baratta
1991, p. 45).
Esta lógica implica a extensão e uma administratização
do direito penal. O direito penal passa a acolher formas de controle não só das
condutas, mas também da lealdade do sujeito ao ordenamento e ao Estado, como é
o caso dos mecanismos de perdão a testemunhas arrependidas que delatam antigos
companheiros de ações delitivas. A administrativização
é concretizada, por exemplo, pela inclusão de saberes científicos e técnicos
junto ao jurídico.
Transportando toda essa discussão para o âmbito da repressão
aos menores, impõe-se a questão do garantismo dos
modelos penais e pedagógicos de justiça juvenil.
A resposta mais fácil seria dizer que não precisa ser penal
para ser garantista, e que se poderia aplicar todos
os princípios garantistas aos modelos pedagógicos de
justiça juvenil. Ou ainda que, por outro lado, o direito penal adulto, a par de
toda sua técnica garantista, não abandona um importante
conteúdo de pretensa atividade ressocializadora ou reeducadora. São elementos de ideologias
tutelares de corte mais ou menos terapêutico no direito penal.
O Estatuto da Criança e do Adolescente do Brasil é um exemplo
de que esta resposta não é tão fácil. Em se tratando de uma legislação que
tenta garantir os direitos individuais dos adolescentes em conflito com as
normas, deixa em aberto lacunas por conta desse dilema
entre rigor garantista e flexibilidade pedagógica.
Por exemplo, a duração indeterminada das medidas sócio-educativas e as decisões
judiciais com base nas condições e capacidade de cumprimento das medidas pelos
jovens. A legislação espanhola já resolveu de forma mais coerente com a
Convenção sobre os direitos da criança da ONU a questão da duração das medidas,
estabelecendo um prazo máximo individual, dado por ocasião da
decisão firme. O ECA prevê um prazo máximo de
três anos, mas não determina a duração da medida individual. Quanto à
capacidade de cumprimento, entendemos ser parte da questão da execução das
medidas, e não de seu tipo, que se deveria relacionar mais com o delito, para
não ferir os princípios de proporcionalidade e igualdade.
No Brasil, a repressão da infância e juventude esteve sempre
à margem dos princípios garantistas, até a
promulgação do ECA. Quando estava em vigor o Código de
Menores, de corte tutelar, imperava a discrecionalidade
absoluta do juiz de menores. A doutrina de proteção integral, que vige
atualmente, traz dispositivos de intervenção que também põem em dúvida seu
caráter garantista, pelo menos em alguns importantes
direitos individuais.
Para compreender o dilema entre pena/garantismo
e medida/discrecionalidade é necessário, ainda, fazer
referência ao conteúdo substancialista nas diferentes
escolas de direito penal e sua influência na justiça juvenil.
Na escola clássica era totalmente irrelevante para o direito
penal qualquer dado relativo à personalidade do agente, pois não se atribuía à
pena nenhuma função reabilitadora ou ressocializadora.
A chamada escola neo-clássica,
dentro de um mesmo horizonte teórico, vai determinando as penas, cada vez mais,
de acordo com seu valor reabilitador, o que abriu as portas para a figura dos
especialistas das ciências sociais no âmbito judicial. O delinqüente, aqui, é
visto como necessitado de ajuda, a qual será dada mediante restrição de
liberdade, através de uma ampla margem de discrecionalidade
do juiz ao ditar sentenças indeterminadas.
A escola positivista define o delito como um fato humano, com
dimensões individual e social, e postula a necessidade de estudar o autor junto
com seu meio. A determinação biológica e social do comportamento humano
justifica reações defensivas, como medidas de segurança, dado o componente de
risco e possível periculosidade social dos agentes. De acordo com Andrés (1986,
p. 212-3), são conseqüências desta representação a perda do sentido do
princípio de legalidade, a ampliação da margem de discrecionalidade
do juiz e a centralidade na personalidade mais que no delito como referência
básica do direito penal. O autor cita Ferri (1928), que resume os efeitos da
escola positivista no âmbito do direito de menores como a adoção de:
"una serie de medidas
defensivas, educadoras y curativas adaptadas (...) a la diversa peligrosidad y readaptabilidad social de estos sujetos conscientes, pero
con voluntad no madura." (Ferri 1928 apud. Andrés 1986, p. 212).
A repressão à infância, a partir dos supostos teóricos
firmados pela escola positivista, se expressa no direito penal de menores
através de uma séria de características que Andrés (1986, p. 214-5) identifica
no que chama "ideologia tutelar", que passamos a enumerar: um paradigma etiológico, que impulsiona a busca das causas
imediatas e medidas que levaram o menor a cometer o fato anti-social; a
representação da criança como doente, mais que como culpada a castigar; a visão
de conduta reprovável como anomalia da personalidade do agente; a transgressão
da fronteira entre a moral e o direito, justificada pelo fundo de perversão
moral latente ou manifesto; a possibilidade e legitimidade para atuar sobre a
consciência, para condicionar comportamento futuro; o caráter medicinal ou
terapêutico da intervenção judicial, que fundamenta o caráter indeterminado e
aberto das decisões dos tribunais tutelares de menores; e, finalmente, a não
necessidade de garantias jurídicas, pois supérfluas e, inclusive, obstaculizadoras da terapia psicossocial.
O que é tratado no direito penal juvenil não é o ato
reprovável, mas todo o indivíduo menor, sua personalidade fora da norma (Andrés
1986, p. 223-4), o que intensifica muito as conseqüências estigmatizadoras
e excludentes da estada em instituições totais, principalmente na faixa etária
da adolescência. As críticas ao caráter penal da justiça juvenil põe força em
seu caráter pedagógico, recuperando elementos da ideologia tutelar da escola
positivista. Assim é que a retórica educativista
ocupa grande parte das justificativas de medidas de restrição de liberdade e,
também, do caráter indeterminado em tempo e conteúdo de ditas medidas.
No Brasil, as legislações e políticas para a infância nunca
propugnaram explicitamente pela repressão, apesar de que, na prática, todas as
ações tenham sido de extrema dureza repressiva, tanto sobre as crianças
perigosas como em perigo. A institucionalização de menores
através da sentença de abandono, a permanência nos internatos e a prisão
de adolescentes, atualmente, em entidades em tudo similares aos presídios, é
prova da ineficácia instrumental das leis, em detrimento do logro dos objetivos
latentes de controle social da delinqüência juvenil.
Aparte a normatividade, nos
discursos e práticas políticas, houve um deslocamento da estratégia repressiva
em direção a formas protetivas e preventivas de
tratamento da questão. Na realidade, à repressão foram-se acrescentando outras
formas de tratamento do delito, a par de uma transformação no
discursos legitimador da própria repressão, com eufemismos provindos da
pedagogia, do trabalho social, etc..
A ampliação de alternativas de estratégias de controle social
sobre o delito acompanha o movimento mais geral apontado por Calvo (1998-b, p.
161), que demonstra a complexidade e amplitude do sistema de controle e
integração social próprio da atualidade:
"las políticas de seguridad
actuales siguen conservando, o mejor dicho, amplían los presupuestos del
sistema de control tradicional, pero también avanzan considerablemente en el
despliegue de nuevos instrumentos regulativos de control, positivo y negativo,
vinculados a una lógica de intervención preventiva que se articula sobre
definiciones difusas de situaciones de 'riesgo' para el orden social y la
seguridad ciudadana".
2.1.2. Prevenção
A prevenção pode ser vista, em princípio, como estratégia de
intervenção frente à infância , em perigo, demarcando uma distinção didática em
relação à repressão como estratégia de controle da infância perigosa.
A questão que surge de imediato ao tentarmos definir um
conceito de prevenção, é que é quase impossível separá-lo de seu objeto. Em
relação à infância e juventude, está quase sempre presente o
binômio prevenção da delinqüência.
Johnson (1987, p. 13-25) identifica quatro racionalidades às
que atendem os mecanismos de prevenção da delinqüência: o
controle social, que visa a manutenção da ordem pública; uma
racionalidade ambiental, que trata de reduzir as possibilidades de vitimização da pobreza, centrada nas características
urbanísticas; uma racionalidade terapêutica, que se opõe a de controle social,
visando objetivos mais humanistas; e a racionalidade comunitária, que reforça
mecanismos primários de controle social e delega responsabilidades à
comunidade.
A prevenção é um conceito que acolhe todo um leque de
intervenções que vão desde ações no sentido de prevenir propriamente dito,
passa por ações de proteção e chega à repressão em seu caráter preventivo
especial positivo e geral. Daí surge uma classificação de graus de prevenção
que, no caso da delinqüência, se apresenta em três níveis.
A prevenção primária, que se identifica com
a proteção da infância em situações de risco pessoal e social, onde se
dá a intervenção preventiva mais abstrata e precoce. Representa, dado seu
escasso determinismo das causas da delinqüência, a forma mais intervencionista
das políticas sociais para a infância, pois atua nos
supostos mais distantes da concretização do ato delitivo.
A prevenção secundária, ainda no âmbito da proteção da
infância, atinge situações de desamparo já configuradas e se justifica como
ação preventiva de corte curativo, aproximando-se de uma
delimitação mais apurada das causas da marginalização que levam à delinqüência.
A prevenção de terceiro grau constitui-se de ações sobre o
indivíduo concreto ante a iminência da infração, por instâncias já judiciais, e
se caracteriza por seu aspecto corretor. Costuma buscar evitar a reincidência
de atos delitivos, através da dissuasão, expressando forte caráter repressivo.
A prevenção pode ser também classificada de acordo com o
critério do objetivo, entre social, que busca atuar sobre as causas gerais,
distantes do delito, e a ambiental, que atua sobre os obstáculos ao delito. A
segunda costuma ser majoritária nos discursos justificadores da intervenção
preventiva. A prevenção social planifica mecanismos que tendem a realizar o
princípio da igualdade, enquanto a situacional visa a
prevenção do delito ou da vitimização. Bernuz (1998, p. 111).
Podem-se sistematizar níveis de prevenção, ainda, desde um
ponto de vista da proteção, desde a prevenção primária, que
atua sobre o meio da criança e da família, até a quaternária, que incide
diretamente sobre a criança em termos de separação da família de origem,
passando por níveis intermediários de atenção à criança em seu meio social
próximo. Esta sistematização é acolhida pela legislação espanhola, e confirma
teorias que relacionam os níveis de prevenção a estratégias de controle sobre a
delinqüência juvenil. Definitivamente, a prevenção se confunde com a proteção
na medida em que se aproxima da criança em si, como indivíduo portador de
direitos, mais especificamente, em situação de risco que justifique a
intervenção (Picontó, 1996).
A comunidade costuma ser invocada como partícipe das
estratégias preventivas da delinqüência juvenil, a partir de demandas de
segurança cidadã e de apelos humanísticos ou solidários. As críticas que se podem fazer a esta aliança entre comunidade e Estado em
torno do controle social da infância vão desde a inoperância prática até
argumentos éticos e políticos relacionados com o processo de privatização da
justiça, expansão da intervenção pública mediatizada
pela própria sociedade e, é claro, incremento quantitativo e qualitativo de
intervenção sobre toda a população.
A prevenção pode ser associada à noção de "risco"
que, por sua vez, oportuniza e legitima as práticas que dão corpo a esta
estratégia de intervenção. A idéia de risco informa, por exemplo, a legislação
espanhola de proteção de menores, que acolhe em seu artigo 17 da Lei Orgânica
1/96 de 15 de janeiro, de Proteção Jurídica do Menor, a noção de situações de
risco como supostos de intervenção em casos de desproteção
da criança. Este conceito de risco também aparece nas legislações das
comunidades autônomas competentes nessa matéria, dando lugar a uma
possibilidade maior de intervenção, dada sua amplitude e ambigüidade ainda
maior que do conceito de "desamparo".
A utilização do conceito de risco supõe alguns problemas que
se fazem necessário analisar, ainda que brevemente. O
risco é uma categoria que comporta uma série de significados, de acordo com o
contexto a que se refere ou com o ponto de vista do investigador social. Bernuz (1998, p. 41-50) faz um resumo das diferentes
perspectivas do conceito. Desde uma perspectiva objetivista,
pode ser definido como uma propriedade ou característica de algo, ou como
resultado de um conjunto de dados gerais ou fatores causais. As respostas que
se costumam dar são políticas de gestão, com base em cálculos de
probabilidades, traduzidas em medidas preventivas, independente da
concretização do risco ou não. Desde um ponto de vista subjetivista,
é um conceito construído social ou culturalmente, a partir da percepção do
perigo. As respostas adequadas, de acordo com este ponto de vista, são as
políticas voltadas para os riscos escolhidos para se prevenir, conforme as
circunstâncias ou valores a potencializar.
Entre as duas perspectivas, pode-se
ver o risco como composto de duas variáveis: o perigo real e a construção ou
seleção política do mesmo, cuja intensificação ou redução resultam de processos
de comunicação. De acordo com este ponto de vista, os riscos realmente existem,
mas se podem realçar uns ou outros, conforme interesses políticos, morais ou
religiosos.
Beck (1998), por sua vez, sustenta
que:
las causas
de los riesgos son acuerdos sociales, pues el riesgo presupone incerteza y, por lo tanto, incerteza
sobre sus conexiones causales y sus múltiplos factores.
O risco supõe sempre uma possibilidade futura ou uma
referência ao passado. Como o momento presente, é uma abstração, algo
construído racionalmente, que na realidade nunca ocorre, pois ao chegar
imediatamente se torna passado. Pois o risco, ao se realizar, já não é mais
risco, mas o fato mesmo. Portanto, é óbvio que qualquer
intervenção sobre a realidade será sempre ou preventiva (em função de
algo que poderá ocorrer) ou curativa (atuará sobre os efeitos do passado). O
risco como estratégia para controlar o futuro encontra, por sua vez, as
probabilidades como ferramentas para fazer o nexo entre as duas pontas desta
construção racional. Para cada situação, há várias alternativas de
continuidade, portanto há várias possibilidades de decisão para evitar o risco
de que ocorram fatos indesejáveis ou para reforçar os desejáveis. Quanto mais
abertas as perspectivas ou possibilidades de
explicações causais, menos deterministas e mais amplamente intervencionistas
serão as respostas aos riscos. Por outro lado, quanto mais fechadas as explicações causais, mais determinista é a perspectiva e,
portanto, a intervenção será mais pontual e não tanto capilar.
As contrafaces da sociedade, frente
aos riscos, olham para o Estado, com suas políticas preventivas e para si
mesma, como sociedade ou individualista ou solidária, com suas estratégias de
sobrevivência diante de um Estado impotente, omisso ou interessado na produção
e reprodução do risco.
Os conceitos indeterminados a partir dos quais se articula a
prevenção dão grande margem de flexibilidade para as políticas sociais em cada
contexto e momento concreto.
O conceito de prevenção, associado ao de risco, embasa e
legitima as políticas de extensão e aprofundamento da intervenção cada vez mais
capilar do Estado no tecido social. Associada à previsão da delinqüência,
implicou historicamente uma generalização da psiquiatria, que passou a
introduzir seus princípios e métodos de diagnóstico, prevenção e internação,
principalmente sobre os vagabundos e, em decorrência, sobre as crianças (Bernuz 1998, p. 128-31).
2.1.3.
Proteção
A proteção é uma estratégia de tratamento da infância
desamparada, que inclui aspectos repressivos e preventivos. Enquanto repressão,
atua sobre o comportamento, independentemente da existência de delito, e sobre
as famílias, para que se adeqüem aos padrões de
normalidade que se estabelecem como metas da proteção. Enquanto prevenção,
funciona antecipando riscos de males maiores, protegendo a criança de seu
ambiente hostil.
O reconhecimento da necessidade de prestar proteção especial
às crianças tem suas bases no ordenamento jurídico internacional desde a
Convenção de Genebra de 1924, que determinava:
"la necessidad
de proporcionar al niño una proteción especial",
e na
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948, quando apelava ao
"derecho a cuidados y
asistencia especiales".
No mesmo sentido, a Convenção americana sobre os Direitos Humanos
(Pacto de São José, 1969), define que:
"todo niño tiene derecho a las
medidas de protección que en su condición de menor requiere, por parte de la família, de la sociedad y del Estado".
A proteção integral tem suas bases mais próximas na Convenção
Sobre os Direitos da Criança de 1989, que é parte do ordenamento jurídico
brasileiro (Silva, 1996, p. 12).
Picontó (1996, p. 191-2) destaca
dois valores político-sociais que um Estado que assinou a Convenção sobre os
direitos da criança de 1989 deve realizar. Em primeiro lugar, deve regular os
espaços de necessidade econômica ou terapêutica das famílias, e em segundo,
desenvolver o princípio da proteção integral da criança. O grau de
intervencionismo que isso supõe pode variar conforme os interesses e a
violência com que atuam os operadores jurídicos e sociais. Ao sistema estatal
compete compatibilizar o princípio de autonomia com a correta socialização das
famílias.
O conceito de proteção costuma ser utilizado de forma ora
mais, ora menos, geral, desde medidas amplas dirigidas a todas as crianças e
adolescentes, até medidas mais concretas de substituição familiar.
Ao criticar o conteúdo repressivo ou intervencionista da
proteção, o que fazemos não é criticar a estratégia em si, pois seria absurdo
prescindir de qualquer intervenção para proteger a infância em perigo. O que
queremos é explicitar seus limites e possibilidades, levando em conta as
condições de vulnerabilidade em que podem viver ou estar as crianças que não
estão no pleno gozo de seus direitos.
A proteção sempre supõe uma desigualdade de condições entre
protetor e protegido. Esta desigualdade se reforça a partir da ideologia da
incapacidade ou se tenta superar a partir de uma racionalidade que se pode
chamar de autonomia, sem que se prescinda das ações necessárias para sanar a
violação de direitos. Ao apoiar-se na ideologia da incapacidade, a proteção
incorre na violação do direito à autonomia ou auto-determinação.
A incapacidade infantil se expressa, às vezes, através do conceito
de discernimento associado à idade, como um critério para restrição de
direitos. A este conceito se pode contrapor a noção de plena realização do
potencial da criança, como critério para o alargamento máximo das
possibilidades de exercício de direitos. O primeiro justifica medidas de
proteção tutelar, enquanto o segundo justifica medidas de facilitação e de
incentivo à autonomia.
A capacidade de discernimento como critério para definir
medidas de proteção pode, entretanto, se utilizada com base no paradigma do
interesse superior da criança, contribuir para o respeito aos direitos das
crianças menores, dotadas de uma racionalidade e afetividade
específicas e de formas de expressão nem sempre inteligíveis para os
adultos. Tanto a representação de criança como despossuída
de racionalidade como de adulto como proprietário deste atributo se desmancham
no ar na medida em que se considera, por um lado, a especificidade da
racionalidade infantil e, por outro, a relatividade da racionalidade adulta.
A criança, como agente social, é ao mesmo
tempo receptor e produtor de conceitos, valores e práticas que, em
conjunto, formam uma racionalidade específica que lhe constitui como pessoa em
desenvolvimento. O adulto, nessa perspectiva, também recebe e produz elementos
de sua própria trajetória social. Assim, ambos são agentes em estágios
diferentes de desenvolvimento, diferenciados genericamente por especificidades
decorrentes e estruturantes de diferentes posições e
momentos num mesmo processo de convivência e de crescimento. Isso dilui
significativamente a ideologia da incapacidade infantil (da qual decorre o
paradigma da proteção tutelar) e da onipotência adulta (que fundamenta atitudes
tanto autoritárias como paternalistas).
No outro extremo da ideologia da incapacidade infantil está a
noção de criança adulta, que informa medidas responsabilizadoras
que vão além da capacidade da criança de suportar situações difíceis. É uma
distorção da noção de autonomia, e alimenta iniciativas no sentido de redução
da idade para a imputabilidade penal.
Em qualquer caso, os discursos de corte terapêutico e
pedagógico estão presentes como justificadores da intervenção protetiva. O primeiro, com ênfase no
tratamento da personalidade ou da conduta, atualiza a noção de criança doente
e pode legitimar tanto ações de apoio psicológico, como em situações de maus
tratos, até limites (não raros) como medicalização de
comportamentos rebeldes. O segundo, expressa tanto o conteúdo central das
medidas de proteção (e de sócio-educação) que já há
autores que lhe chamam "obseción educativa"
(Rangugni, 1998, p. 184). Os limites desta obsessão
refletem a idéia de potencial transformador da educação em relação à vida da
criança protegida e, consequentemente, de toda a
sociedade.
Não é de estranhar a relação íntima entre a proteção e o
discurso educativista, pois a própria estratégia protetiva
de intervenção teve sua origem no período histórico em que coincide com a
invenção da escola, e foi direcionada às crianças que não se adaptaram a esta forma
de socialização, via educação formal. García Méndez
(1994, p. 16) resume esta afirmativa:
"Se
o século XVIII 'descobre' a escola como o lugar de produção da ordem e homogenização da categoria criança, o século XIX se
encarrega da tarefa de conceber e por em prática os mecanismos que recolhem e
'protegem' aquelas que foram expulsas ou não tiveram acesso ao sistema
escolar".
Tanto o discurso terapêutico quanto o pedagógico podem
reduzir o potencial autonomista da proteção mas, por outro lado, podem informar
práticas garantistas do princípio de autonomia. A
chave da legitimidade da proteção enquanto estratégia interventiva
na infância desamparada é a representação de criança sujeito de direitos em
situação de ameaça ou violação, incluído aí o direito a desenvolver plenamente
sua autonomia.
2.2.
Os meios
As estratégias de intervenção acima descritas se concretizam
através de movimentos que articulam os agentes (protegidos e protetores) em
alianças, compromissos ou conflitos, que se podem caracterizar como meios, num
sentido que englobe tanto a noção de métodos como a de intermediários.
A administração e a família são os principais intermediários
entre o Estado e a criança desamparada, enquanto a sociedade se aproxima
através de ONGs e formas próprias de organizações
locais, principalmente de tipo religioso.
2.2.1. A
administração
Calvo (1999, p. 57) atribui à lógica promocional dos direitos
das crianças o deslocamento da intervenção nesse campo, desde a órbita judicial
até a órbita da administração. Afirma que:
"la intervención activa de los
poderes públicos con el fin de asegurar la realización efectiva de los derechos
y el bienestar del menor va a producir un claro desplazamiento en la dinámica jurídica,
desde la articulación de garantías judiciales y pseudojudiciales
hacia la utilización del derecho para la realización de programas y políticas
públicas."
Picontó (1996) vê outro motivo para
este processo de mediação crescente entre o poder jurídico e a sociedade, via
administração. Afirma que o Estado busca, cada vez mais, um
controle indireto da população, em cuja estratégia os operadores sociais são os
mediadores. Sua função, nessa visão, seria dar uma aparência de relação
pessoal, humanista, a uma relação profissional e repressora. A justiça muda de
ritual, sua referência cultural se deixa contagiar pela linguagem social das
ciências humanas. Se introduz um tipo de justiça mais
flexível. Assim, o principal meio de intervenção na infância desamparada é a
administração pública.
O processo de desjudicialização das
primeiras etapas da proteção da infância desamparada, que no Brasil se dá
através da atuação do organismo não jurisdicional que é o Conselho Tutelar,
supõe um processo simultâneo de administrativização
destas mesmas etapas. Isso traz como conseqüências principais a ampliação do espaço de atuação dos especialistas sociais
(que implica também numa cientifização do processo) e
a ampliação da margem de discrecionalidade destes
aparatos administrativos de intervenção. A presença dos especialistas se vê
necessária para preencher de conteúdo os conceitos indeterminados que costumam
incluir as normas próprias do direito regulativo,
como, no caso da infância, é o desamparo, a situação de risco, ameaça, conduta,
etc..
O processo de administrativização
não é incoerente com a chamada juridificação das
relações sociais a que se refere Habermas (1988),
pois toda ação administrativa tem suas linhas reguladas juridicamente. Picontó (1996, p. 238-9) utiliza o termo
para designar a transmissão dos poderes do juiz da infância, antes muito mais
amplas, para a esfera administrativa, e explica que somente a execução é
de responsabilidade dos operadores sociais. Entretanto, na legislação
brasileira, mais que a execução é atribuída aos Conselhos Tutelares, o que tem
efeitos contraditórios em termos do garantismo
jurídico.
Alguns dos principais problemas que se podem apontar em
relação ao protagonismo da administração pública na
intervenção junto à infância desamparada são também tratados por Picontó (1996, p. 338-67): burocracia excessiva, demoras em
decisões que demandam urgência, conflitos interinstitucionais,
carência de meios para implementação de medidas, indecisões ou decisões tomadas
com base em racionalidades alheias ao interesse superior da criança, formalismo
e insensibilidade do direito em relação às situações que demandam proteção às
crianças ou às famílias, etc.. A autora chama a atenção especialmente para o
perigo de arbitrariedade e de ineficácia no uso da discrecionalidade
que pressupõe a tarefa dos especialistas, e propõe regular procedimentos e
garantias, mas deixando em aberto a resolução para critérios técnicos e para as
circunstâncias caso a caso. A discrecionalidade de
decisão leva à discrecionalidade
de ação. Se impõe a necessidade de um controle
judicial sobre a discrecionalidade administrativa
para evitar o arbítrio, abusos, etc. A autora identifica, ainda, como riscos da
administrativização do processo de proteção da
criança, a dependência dos estados de emergência social, mudanças nos cargos
políticos, preferência pessoais de quem decide, influência dos meios de
comunicação de massa e falta de planificação política global. A administração
baseia suas decisões numa racionalidade científica, o que supõe uma abertura às
ciências sociais, e numa racionalidade política, que pressupõe a busca de um
consenso em grupos sociais próximos ou resistentes.
2.2.2. A
família
Em termos gerais, a família pode ser considerada ao mesmo
tempo como alvo e meio da intervenção pública e privada em relação à infância
desamparada. Como alvo, já examinamos em item anterior deste estudo. Como meio,
se caracteriza por representar um elo entre a criança, a sociedade e o Estado.
A família passou, historicamente, de alvo próprio de
intervenção, antes da infância ser descoberta enquanto
questão social, para mero meio de chegar à criança, tanto como intermediária
quanto como vítima, ou como responsável pela sua situação, para outra vez
voltar a um lugar central nas preocupações com a infância desamparada.
Apesar de a família ter sido sempre encarregada de assumir
uma atitude mediadora entre o indivíduo e a sociedade, promovendo a proteção de
seus membros mais vulneráveis, as questões familiares não foram sempre
componentes da questão social. Uma razão para esta alienação pode ser que o
Estado e, mais concretamente, o Estado social, historicamente, se construiu a
partir da noção de indivíduos portadores de direitos como seu elemento central,
usuários de políticas individualizadoras e
fragmentadas, de acordo com suas demandas individuais (Carvalho, 1998, p. 94).
A decadência do Estado social, com a crise das condições estruturais que lhe
davam sustentação, contribuiu para o que algum autor
chama "regresso al familismo", que sustenta
propostas de responsabilizar a família por encargos antes já assumidos como
despesas públicas.
De acordo com Picontó (1996, p.
202), a intervenção familiar se move entre dois pólos opostos: de um lado,
privilegiar totalmente a família (familiarismo) e, de
outro, neutralizá-la. Os riscos de um novo familismo
seria o de encarregar a família com responsabilidades que talvez não possa
suportar, além de reproduzir de forma ainda mais acentuada as desigualdades
sociais. Os risco de novas desigualdades é óbvio, mediante a exclusão das
decisões das pessoas menos aptas para intervir e com menos condições para
investir na reciprocidade.
Encarar a família como elemento híbrido entre público e
privado propicia novas propostas de políticas públicas que formam o que já se
chama de modelo "welfare mix".
Este modelo articula recursos do Estado com os do mercado, de parentes ou
amigos, de instituições privadas com ou sem fins lucrativos, mediante
experiências sociais baseadas na solidariedade. É claro que o mercado não segue
esta lógica, sendo por isso um obstáculo real à chamada economia solidária.
Outro possível limite seria o das condições das famílias para suportar tais
encargos.
A solidariedade familiar só seria sustentável através da complementariedade com equipamentos coletivos como suporte,
formando uma rede de solidariedade privada com a pública. Assim, a família
poderia assumir o papel de proteção contra os problemas sociais e as
dificuldades econômicas que a sociedade contemporânea impõe, ao largo de todo o
ciclo de vida de seus membros (desde a infância até a velhice, incluindo
situações de risco intermediárias como separações, desemprego, problemas de
saúde, etc.).
À falta de um dos principais elementos de integração social
que representa o mercado de trabalho formal, a família surge como espaço de
relações sociais que propiciam inserção e proteção contra os riscos de exclusão
social. Dentre as diversas opções políticas de enfrentamento do risco
contemporâneo de ausência de trabalho para todos, como precarização
do trabalho, redução das jornadas, substituição do pleno emprego pela plena
atividade, se situam as ações de reforço das sociabilidades sócio-familiares
como forma de alcançar maior inclusão social. A crítica que se faz é que estas
políticas, por sua vez, incorrem no risco de produzir um fechamento do
indivíduo na esfera privada, que não necessariamente importa uma inclusão
social.
Por outro lado, a divisão entre as representações de criança e
menor segue condicionando um afastamento da família frente às estratégias de
políticas públicas para a infância. Os meninos e meninas nas ruas, por exemplo,
costumam ser abordados longe de suas famílias, em seu
próprio espaço de convivência. Os repetentes, ausentes ou incompetentes na
escola, são protegidos através de articulações com professores e centros
psicológicos ou psicopedagógicos. Os maltratados são
procurados nos hospitais, através de alianças entre setores de atenção à saúde.
Os infratores, entram na esfera de proteção e repressão através de aparatos
policiais e judiciais. Na prática, a família tem sido, até hoje, meio para
localizar a criança, mais que para participar em seu processo de autonomização.
Tanto a administração quanto a família se constituem, assim,
como meios e intermediários com as crianças desamparadas, e atuam através de
práticas que concretizam as estratégias de intervenção.
2.3.
As práticas
A intervenção se traduz em práticas concretas, atividades que
põem, cara à cara, protegidos e protetores, mediante
as quais se realizam as estratégias de enfrentamento da questão da infância
desamparada.
Propomos uma enumeração das práticas com base numa
classificação bem geral, a partir do critério da orientação ao objetivo,
independente da estratégia em que se inscreve e dependente do tipo de protegido
a que se destina. Não é demais esclarecer que todas as práticas são, em maior
ou menor grau, parte de todas as estratégias de intervenção e, principalmente,
são contemporâneas entre si, formando um quadro de atividades que,
aparentemente, gira em torno a objetivos díspares mas que têm em comum o fato
de se constituirem em ações concretas, que unem as
pontas soltas entre protetores e protegidos, de forma mais ou menos organizada,
planejada, normatizada e controlada.
Além disso, costumam ser viabilizadas
através de atividades mais ou menos profissionais ou técnicas de apoio, tais
como entrevistas, pesquisas sociais, (que servem tanto para informar
estratégias como para justificá-las), estudos sociais de casos específicos,
laudos dos especialistas, exames, diagnósticos, fiscalização de entidades de
atendimento, visitas domiciliares, controle de locais de risco para a infância,
etc..
A partir deste enfoque, classificamos as práticas em três tipos
básicos: orientadas a intervir em situações de pobreza, orientadas a intervir
em situações de violência e orientadas a vulnerabilidades e potencialidades
coletivas. As práticas assistenciais seriam as que se referem à questão da
pobreza e exclusão social. As protetivas, seriam mais
relacionadas com a questão da violência ou violação de direitos. As últimas
diriam respeito à promoção de condições objetivas e subjetivas de exercício
destes direitos. Todas seriam concretizadas através de atividades de apoio, que
adquirem um status importante na
medida em que se constituem em acesso privilegiado entre assistentes e
assistidos ou protetores e protegidos, ou
melhor dito, em importante elo de dominação com base no saber.
2.3.1. Práticas
orientadas a situações de pobreza
Essas práticas se caracterizam por seu forte componente
assistencial, e podem ser descritas em três grandes grupos, cada qual com, pelo
menos, duas variáveis diferenciadoras: a caridade, a filantropia e a
assistência social.
A caridade tradicional é uma prática que se concretiza dentro
da esfera privada. O altruísmo (religioso ou laico) é seu fundamento básico, e
o reforço e legitimação da desigualdade (tanto a interindividual
como a estrutural) é sua principal conseqüência negativa. Hoje em dia, costuma
ser justificada através do discurso da solidariedade, atualizando atividades
individuais (esmola) ou coletivas (campanhas de doações) de atenção aos pobres.
Um dos principais apelos éticos que impulsionam essa prática é a figura da
criança pobre, mas um dos principais limites é seu caráter pontual, muito mais
determinado pela disposição do caridosos que pela
necessidade do beneficiário. A caridade moderna é tudo isto, mas mediatizada institucionalmente e, o que é mais importante,
associada à noção de contrapartida, através da figura da poupança e controlada
pela tutela fechada sobre o comportamento de seus beneficiários. Para isso,
tende a ser mais contínua e contém um componente mais sistemático de controle.
A caridade nunca visa solucionar as causas da pobreza, e sim os efeitos
imediatos de uma situação concreta.
A filantropia segue a mesma linha da caridade, mas amplia seu
espectro de atuação para além da situação concreta mais evidente, olhando
adiante com um olho na qualidade de vida e desenvolvimento das crianças em seu
ambiente familiar e comunitário, de forma mais integral. Em sua faceta
assistencial, a filantropia assume uma postura mais controladora e tutelar dos
comportamentos das famílias assistidas, e em sua faceta higienista,
utiliza ajudas materiais com fins preventivos relacionados com a saúde pública.
Em qualquer caso, costuma ser organizada e fortemente incentivada pelo Estado,
mediante programas oficiais de atendimento a famílias pobre e a crianças
desamparadas.
A assistência social propriamente dita, é uma
prática profissional, que utiliza técnicas de aproximação às famílias e
às crianças para concretizar diferentes objetivos relacionados tanto com as
necessidades básicas como com as relações sociais, especialmente marcadas por
situações de conflito. Aqui não se trata da disposição dos caridosos nem das
boas intenções dos filantropos, mas sim dos critérios técnicos estipulados
cientificamente por profissionais, tendo em vista a superação das condições
causadoras imediatas e mediatas das situações que demandaram assistência. O
fato de ser profissional não evita a possibilidade de se concretizar como
prática tutelar, assimétrica, controladora e assistemática, pois depende em grande medida de critérios
políticos que lhes informam as grandes linhas de atuação, assim como das
posturas profissionais de cada assistente social individual ou em equipe. Em
sua faceta tradicional, a assistência social enfatiza o
individual (plantões de emergência e casos continuados), os grupos
(terapêuticos, operativos e voltados para ação social) e o desenvolvimento
de comunidade como grandes eixos programáticos, aplicáveis em qualquer campo de
atuação como hospitais, escolas, instituições de atenção à criança, fábricas,
postos de saúde, etc., e se estrutura basicamente em fases de estudo,
diagnóstico e tratamento de casos sociais. Reconceitualizada,
a assistência social se apresenta como uma prática de atendimento de direitos
econômicos, sociais e culturais com ênfase na autonomia dos usuários enquanto
cidadãos e sujeitos de direitos. A reconceitualização
da assistência social se limita, como diz o termo, a uma reformulação
conceitual, ainda em busca de reformulação prática. Assim, seguem predominantes
as mesmas práticas, mas fundamentadas em novos discursos e, melhor, numa nova
racionalidade a partir de novas representações de pobreza, necessidades,
conflitos e direitos. As possibilidades destas novas práticas assistenciais
estão, em grande parte, na capacidade dos profissionais para abrir caminhos
dentro dos jogos de força que se configuram entre velhas e novas representações
que convivem de forma contraditória.
2.3.2. Práticas
orientadas a situações de violência
São aquelas que se dirigem a situações de violação de direitos
ou violência que extrapolam a questão da pobreza. Se
caracterizam como terapêuticas, protetoras em sentido estrito (medidas
de proteção específicas) e sócio-educativas, conforme se dirigem,
respectivamente, a crianças fisica ou emocionalmetne traumatizados, desamparados ou em conflito
com as normas jurídicas. Todas, na realidade, podem andar juntas ou separadas,
conforme o caso específico de violação de direito que se apresenta.
As práticas terapêuticas são aquelas que visam atender
diretamente às situações ou seqüelas de violação de direitos, como por exemplo
acompanhamento pedagógico a crianças com dificuldades escolares, tratamentos
médicos ou psiquiátricos a crianças mal tratadas ou violadas sexualmente,
usuários de drogas, ou portadores de deficiência física,
emocional ou de sofrimento psíquico que não tiveram oportunidade de
desenvolver integralmente suas potencialidades.
As práticas protetoras em sentido estrito são a realização
das medidas de proteção previstas legalmente, dirigidas a crianças em situação
de ameaça ou violação de direitos, que aqui chamamos desamparadas. Nelas se
incluem, é claro, ações assistenciais e terapêuticas,
assim como técnicas de apoio desenvolvidas por especialistas sociais, mas
consistem basicamente na execução de determinações administrativas ou judiciais
em função de problemas familiares como abandono, maus tratos, e em soluções
como guarda, tutela, abrigo ou adoção.
As práticas sócio-educativas também estão normatizadas
especificamente, e se caracterizam por seu discurso
pedagógico legitimador de sua realidade sancionadora. Nelas, o
adolescente se coloca cara à cara com os aparatos
institucionalizados de reprovação social ao delito juvenil, enquanto se expõe a
um tratamento de sua personalidade que visa a reforma de seu comportamento
social. Proteção e sócio-educação são as práticas de
intervenção mais diretas, mais intrusivas na vida das crianças em perigo ou
perigosas.
2.3.3. Práticas
orientadas a vulnerabilidades e potencialidades coletivas
O terceiro tipo de práticas que compõe nossa proposta de
classificação são as que visam atingir grande parte da população em risco ou em
situação de vulnerabilidade física, emocional ou social. Visam tanto potenciar
suas possibilidades de autonomia quanto garantir recursos para o exercício dos
direitos sociais, através do atendimento de necessidades e da formação de
agentes.
Estas práticas estão de acordo com as grandes diretrizes e
metas estipuladas por organismos internacionais para o alcance de um nível de
qualidade de vida para as crianças e adolescentes compatível
com os documentos declarativos e convênios firmados.
O principal instrumento internacional de referência para esse
tipo de prática é a Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, a Proteção e o
Desenvolvimento da Criança nos anos 90 e o Plano de Ação para sua
Implementação.
Calvo (1999, p. 59) salienta os três níveis de ação que
integram este documento: internacional, governamental e da sociedade em geral,
incluindo desde a família até os meios de difusão de informações. As metas
estipuladas dizem respeito à sobrevivência, desenvolvimento e proteção da
criança, à saúde e educação da mulher, à nutrição e saúde infantil, à educação
básica e a situações especialmente difíceis para as crianças. De acordo com este
autor, a importância deste documento está no fato de haver fixado objetivos
realistas e articulado parâmetros específicos para sua
medição.
Fernández Sola (1994, p. 44) chama a atenção para a
Declaração de Lima, onde se afirma as dificuldades de
implementação da Convenção sobre os direitos da criança, devido às
rigorosas políticas nacionais de ajuste econômico, ao aumento da pobreza e à
falta de vontade política concreta e efetiva dos governos para cumprir os
compromissos assumidos.
Apesar destas dificuldades, presentes no Brasil até hoje,
podemos mencionar algumas iniciativas para assegurar direitos positivados na
Constituição e no ECA. Acompanhamento pré natal, vacinação em massa, controle de peso e altura da
população infantil, programas de conscientização sobre gravidez na
adolescência, violência no trânsito, uso de drogas na juventude, campanhas de
divulgação do ECA nas escolas são exemplos desse tipo de ações, levadas a cabo
por organismos governamentais e não governamentais de defesa dos direitos das
crianças e adolescentes.
Em resumo, neste capítulo tentamos identificar alguns
elementos conceituais que sustentam teoricamente as políticas
sociais para a infância, a partir de um recorrido histórico e conectado com a
realidade atual. Enfocamos as políticas para a infância como relações sociais entre protetores e protegidos, que se
realizam através de estratégias (repressão, proteção e prevenção) que se
instalam mediante meios (principalmente a administração e as famílias),
concretizando-se em práticas sobre a pobreza, a violência e outras
vulnerabilidades sociais que contextualizam a infância desamparada no Brasil. Todas essas estratégias e práticas, é claro, pressupõem
objetivos contraditórios entre a realização dos direitos e o controle social
sobre a infância.
CAPÍTULO III
Análise sócio-jurídica do
Estatuto da Criança e do Adolescente
1. Contexto
político da análise
Desde antes de sua entrada em vigor, o ECA
concentra interesses contraditórios e, quase sempre, antagônicos que se
expressam de forma ora mais, ora menos, visíveis no processo de implementação.
Para além dos debates políticos, mas coerente com a
totalidade da luta ideológica sobre a nova normativa e suas conseqüências, os
trabalhos científicos atuais situam-se em torno a duas grandes tendências: os
críticos ao ECA, que ressaltam seus problemas de forma
mais ou menos global ou pontual, e os defensores, que comentam e reforçam seu
caráter inovador, garantista e participativo.
A literatura sobre o ECA informa
sobre alguns elementos que impulsionam ou obstam sua implementação. De um lado,
as forças político-sociais representadas por segmentos profissionais, técnicos
e políticos que defendem e tentam levar a lei à prática. De outro, segmentos
sociais que expressam e reproduzem o paradigma anterior ao
ECA, da situação irregular como suposto de intervenção tutelar e
repressiva. Este último setor vem alimentado por alguns meios de comunicação de
massa que, por sua vez, expressam posições contrárias aos direitos humanos no
Brasil.
O ECA ampliou o leque da tutela do
Estado para todas as pessoas em idade de desenvolvimento físico e emocional.
Duas importantes conseqüências vêm com este novo paradigma: em primeiro lugar,
o protagonismo do Poder Judiciário nas políticas de
assistência à criança deu lugar a uma divisão de responsabilidades entre o
Estado e a sociedade, através dos Conselhos de Direitos e dos Conselhos
Tutelares. Em segundo lugar, o estigma da criança desamparada, em perigo ou
perigosa tende a dar lugar a um reconhecimento de toda criança como sujeito de
direitos, independentemente de sua situação pessoal e social.
A correlação de forças na sociedade brasileira atual demanda
uma postura política de fortalecimento incondicional do texto legal, contra
toda forma de resistência e ataques provindos do conservadorismo mais ou menos
esclarecido. Está claro o perigo de retrocesso numa conjuntura instável como
costuma ser o cenário político e legislativo no Brasil. O rebaixamento da idade
mínima para a imputabilidade penal de 18 para 16 anos é, atualmente, uma
bandeira disputada por todos os segmentos conservadores e contrários aos
direitos humanos de adolescentes em conflito com a lei.
Cada artigo e a totalidade do ECA
têm sido sistematicamente questionados por juristas, técnicos e políticos, com
o intuito de retroceder à antiga doutrina da situação irregular. Por outro
lado, há uma espécie de pacto implícito entre profissionais, técnicos,
políticos, ONGs, militantes de defesa dos direitos
humanos, etc., de não enfrentar as debilidades, ambigüidades ou lacunas do ECA, com o objetivo de não vulnerar a própria existência
da lei e de não apresentar entraves à sua implementação.
A esta postura conjunturalmente correta, seria oportuno
acrescentar uma postura cientificamente crítica, ou seja, que levante e
enfrente dúvidas e busque respostas a partir da referência da defesa dos
direitos humanos das crianças e adolescentes. Em tal panorama, situamos uma
proposta de estudo crítico do ECA dentro do marco da
Convenção Sobre os Direitos da Criança da ONU e da Constituição Federativa do
Brasil.
2. Luzes e sombras do ECA
2.1. Mudanças no
ordenamento jurídico e institucional
O ECA expressa mudanças importantes
em termos conceituais, metodológicos e políticos em relação ao ordenamento
anterior. Costa (1994, p. 140 e seg.) aponta três tipos de inovação na política
de promoção e defesa de direitos a partir da nova lei da infância. Uma mudança
de conteúdo, proveniente das fontes internacionais de direitos da criança; uma
mudança de método, caracterizada principalmente pela substituição do
assistencialismo pela sócio-educação
e da discrecionalidade da doutrina da situação
irregular pela concepção garantista; e uma mudança de
gestão, que implica na descentralização das ações e requer a participação
popular.
A mudança de conteúdo vem inspirada pelas fontes
internacionais de direitos da criança e do adolescente. Apesar da Constituição
Brasileira ser anterior à Convenção sobre os direitos da criança da ONU, já
contém, no artigo 227, um resumo do texto internacional, que se desdobra nos
267 artigos do ECA .
O ECA atende, também, os principais
itens de diversas Declarações e Convenções da ONU sobre o tema: A Convenção
Sobre os Direitos da Criança; As Regras Mínimas para a Administração da Justiça
da Infância e da Juventude (Regras de Beijing); as
Regras Mínimas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade; as Diretrizes
para a Prevenção da Delinqüência Juvenil (Diretrizes de Riad);
a Declaração Mundial Sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento da
Criança e Plano de Ação para sua implementação .
Do conjunto de documentos internacionais que inspiraram a
elaboração do ECA, destacam-se a Convenção Sobre os
Direitos da Criança e as Regras de Beijing.
García Méndez (1994, p. 74-5)
sistematiza num quadro (III.1.) uma comparação entre as disposições normativas
da Convenção sobre os direitos da criança, as Regras de Beijing
e o ECA, destacando coincidências nos textos legais
nos seguintes princípios jurídicos básicos substanciais e processuais:
humanidade, legalidade, jurisdicionalidade,
contraditório, inviolabilidade da defesa, impugnação, legalidade do
procedimento e publicidade do processo.
Quadro III.1. Princípios jurídicos básicos
substanciais e processuais na Convenção Sobre os Direitos da Criança da ONU,
nas Regras de Beijing e no ECA
PRINCÍPIOS
JURÍDICOS BÁSICOS SUBSTANCIAIS E PROCESSUAIS |
CONVENÇÃO |
REGRAS
DE BEIJING |
ECA |
PRINCÍPIO DE HUMANIDADE:
Baseia-se no princípio da responsabilidade social do Estado e na obrigação de
assistência para o processo de ressocialização.
Deriva-se daqui a proibição de penas cruéis e degradantes. |
Art. 37 incisos a e
c |
Art. 1 1.4. |
Arts.15,
16, 17, 18, 126 |
PRINCÍPIO DE LEGALIDADE: Traduzida
na proibição de existência de delito e pena sem a pré-existência de lei
anterior (nullum crimen, nulla poena sine
lege) |
Art. 37 inciso b Art. 40 inciso 2.a |
Art. 2 2.2.b Art. 17, 17 1.b |
Arts.110,
108, 103 |
PRINCÍPIO DE JURISDICIONALIDADE:
Pressupõe a existência dos requisitos essenciais da jurisdição: juiz natural,
independência e imparcialidade do órgão. |
Art. 37 inciso d Art. 40 incisos 2.III, 2, 3.b |
Art. 14, 14.1 |
Art. 111 |
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO:
Pressupõe uma clara definição dos papéis processuais (Juiz, defensor,
Ministério Público) |
Art. 40 incisos 2.b.II, 2.b.III, 2.b.IV e 2.b VI |
Art. 7, 7.1 |
Arts. 110 e 111 |
PRINCÍPIO DA INVIOLABILIDADE DA
DEFESA: Pressupõe a presença de defensor técnico em todos os atos processuais
desde o momento em que se imputa o cometimento de uma infração. |
Art. 37 inciso d Art. 40 inciso 3 |
Art. 7, 7.1 Art. 15, 15.1 |
Arts. 111 III 124 III e 206 |
PRINCÍPIO DE IMPUGNAÇÃO:
Pressupõe a existência de possibilidade de se recorrer perante um órgão
superior. |
Art. 37 inciso d Art. 40 inciso 2.b.V |
Art. 7, 7.1 |
Arts. 198 e 137 |
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE DO
PROCEDIMENTO: Pressupõe que o tipo de procedimento deve estar fixado por lei
e não pode ficar sujeito à discrecionalidade
do órgão jurisdicional. |
Art. 40 inciso 2.b.III |
Art. 17, 17.4 |
Art. 110 |
PRINCÍPIO DE PUBLICIDADE DO
PROCESSO: Faz referência à possibilidade que os sujeitos processuais devem
possuir, de ter acesso às atas do processo. Ao mesmo tempo, refere-se à
conveniência de se proteger a identidade da criança e do adolescente como
forma de evitar a estigmatização. |
Art. 40 inciso 2.b.VII |
Art. 8, 8.1 e 8.2 |
Art. 143 |
Fonte: García Méndez (1994, p.
74-5).
Apesar
deste quadro referir-se mais à parte de jurisdição que de administração, é útil
para informar mudanças importantes no paradigma de infância, no qual baseia-se a legislação brasileira, coerente com a legislação internacional.
A mudança de método vem baseada em novos conceitos
incorporados pela mudança de conteúdo antes descrita. Assim, por exemplo, a
intervenção pública (seja administração ou jurisdição - disso se trata na
mudança de gestão) dá-se a partir de uma violação de direito, apoiada na
concepção de criança e adolescente como sujeitos de direitos e não mais como
pessoas carentes, necessitadas ou em situação irregular. O método de
intervenção inverte a lógica da criança objeto de proteção para criança sujeito
de direitos, sob a doutrina da proteção integral.
O método de intervenção protetiva
subdivide-se a partir da constatação de violação de direitos por três motivos:
a ação ou omissão da sociedade ou do Estado; a falta, omissão ou abuso dos pais
ou responsáveis e a conduta da criança ou do adolescente. Para todos os casos,
podem ser aplicadas as medidas de proteção e para o terceiro, sendo o autor
adolescente, também as medidas sócio-educativas . A pobreza já não é motivo de
privação de liberdade, nem o abandono justifica sentenças de internação
indeterminadas ou até a maioridade. Entretanto, a pobreza é, ainda, na prática,
o principal contexto familiar e comunitário que envolve as crianças e
adolescentes com seus direitos violados. A diferença de método está em que o
ato infracional requer a instauração do devido
processo legal, assim como as medidas de proteção devem ser controladas jurisdicionalmente.
O ECA define as situações que
justificam as medidas de proteção como de ameaça ou violação de direitos das
crianças. Com isso, contempla as noções de risco ao mesmo
tempo que de sua realização, como justificadores da intervenção estatal.
Quanto às medidas sócio-educativas, o ECA define seu
suposto de intervenção a partir do ato infracional,
análogo ao delito, ou seja, algo já perfeitamente positivado no Código Penal.
Além disso, neste caso, aponta como desencadeador da intervenção um fato já
ocorrido, e não um risco. Disso podemos concluir que o
ECA é amplamente intervencionista, legitimado pela doutrina da proteção
integral que, por sua vez, apoia-se nas noções de
risco ou ameaça de violação dos direitos da criança. Mas, por outro lado, o
leque de supostos de intervenção define-se melhor porque refere-se
aos direitos das crianças, já positivados na Constituição e na própria lei.
Isso supõe um avanço em relação a legislações anteriores .
Em certa medida, o ECA não se apoiou
na noção de risco para legitimar uma intervenção ampliada. O
conceito de situação de risco não está explicitada no texto legal, que se
limita a apontar a ameaça ou violação dos direitos definidos na própria
lei como supostos de intervenção. Entretanto, é óbvio que a idéia de ameaça já
é suficientemente aberta como para acolher a noção de risco, mesmo delimitada
em relação aos direitos definidos na lei.
A mudança de gestão implica, de forma sintética, três formas
de divisão de trabalho entre os sujeitos das políticas públicas para a
infância: uma desconcentração entre a União, os estados e os municípios, que
aparece como descentralização político - administrativa, enquanto diretriz das
políticas de atendimento (art. 88 ECA); uma divisão de responsabilidades entre
os poderes públicos e a sociedade civil, que aparece como participação popular,
no mesmo artigo; e uma distribuição de deveres entre a família, a comunidade e
o Estado, que aparece principalmente no artigo 4°, que distribui as
responsabilidades pela efetividade dos direitos das crianças.
Em primeiro lugar, está a divisão de trabalho entre a União,
os estados e os municípios . A legislação anterior normatizava
as políticas públicas de atendimento à criança de forma totalmente
centralizada, desconhecendo por completo as diferenças regionais e locais. Além
de centralizadas na esfera federal, as políticas públicas normatizadas
pelo Código de Menores eram de exclusiva competência do governo e do Poder
Judiciário, sem nenhuma participação popular.
O ECA normatiza
a descentralização das políticas desde sua elaboração, deliberação, controle e
execução, definindo papéis para cada instância de poder. Trata-se de uma
mudança dentro da própria esfera pública, de desconcentração de poder dentro do
próprio Estado.
De acordo com Jovchelovitch (1998,
p. 37-9), a descentralização pode ser vista sob dois enfoques: intragovernamental, no sentido nacional para esferas subnacionais (estadualização ou municipalização
), e do Estado para a sociedade, que reflete a democratização do país. O
segundo processo representa um reparto de poder e auto-gestão local, e
diferencia a descentralização da desconcentração físico-territorial das
instituições. A flexibilidade, o gradualismo, a
progressividade, a transparência e a existência de mecanismos de controle sobre
o poder público são os princípios e diretrizes do processo de descentralização
de políticas.
O ECA introduz, em segundo lugar, a
divisão de trabalho entre poderes públicos e sociedade civil, através dos
Conselhos de Direitos em todos os níveis, paritários,
deliberativos e gestores dos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente e
dos Conselhos Tutelares, compostos por pessoas eleitas diretamente nos
municípios para executar as políticas de proteção e atuar em conjunto com os
demais responsáveis pelas políticas de atendimento. É uma mudança de gestão
entre o público e o privado, ou seja, descentraliza o poder entre o Estado e a
sociedade. O principal meio normatizado para efetivar
essa mudança é a participação popular (ECA, artigo 88).
A articulação entre Estado, sociedade e família constitui-se,
no ordenamento jurídico e político do Brasil, através do princípio de
participação como diretriz de políticas de atendimento em diversas áreas como saúde,
educação, assistência social e proteção da infância . Esta opção pelo protagonismo da sociedade nos processos de deliberação,
gestão e controle das políticas públicas, via participação, inscrita na
Constituição e positivada no ordenamento legal, põe o Estado num lugar
compartilhado e não exclusivo de responsabilidade pela realização dos direitos
fundamentais, que é, ao lado da participação, o outro pilar da democracia. A participação ampliada, que extrapole as formas representativas
clássicas, evidentemente não é condição indispensável para a democracia.
Entretanto, compõe o que se poderia chamar democracia boa, além de correta ou,
com as palavras de Bobbio (1987, p. 52), uma
"democracia integral". Quanto mais amplas as possibilidades de
participação popular nas decisões públicas, mais garantidos e
realizados estarão, teoricamente, os direitos que dão forma e conteúdo à
democracia.
Entretanto, nas práticas políticas e econômicas,
condicionadas e condicionantes de relações internacionais globalizadas, os
espaços de participação, auto-gestão ou auto-organização da sociedade são
limitados, distorcidos e cooptados em função de interesses externos tanto ao
governo quanto à própria sociedade. Convém falar de um processo de transição de
um modelo centralizado no Estado para um modelo descentralizado e participativo
em termos normativos, mais que
sociológicos. Podemos falar, no Brasil, de transição democrática que apoiou sua
legitimidade na dimensão participativa mais que na dimensão garantista,
como uma armadilha que joga sobre a sociedade a responsabilidade pela eficácia
do governo mas que, por outro lado,
amplia a possibilidade de garantir a dimensão ética, no sentido de que quanto
maior a visibilidade e controle da sociedade sobre o Estado, mais efetiva será
a luta pela transparência, contra a corrupção. Mais do que isso, Santos (1998,
p. 60-4) visualiza um processo de resistência à intensificação da exclusão e da
marginalização sociais produzidos e reforçados pela globalização, através dos
espaços criados pela participação popular.
O ordenamento constitucional brasileiro contempla tanto os
direitos fundamentais como a participação popular, mas enfatiza positiva e
politicamente a segunda em detrimento dos primeiros. Uma hipótese para explicar
esse desequilíbrio é que seja instrumental ou funcional a um
sistema não garantizador de direitos, na
medida em que substitui, simbolicamente, um elemento do Estado democrático de
direito (as garantias e liberdades fundamentais) por outro (a participação). O
que se nos apresenta, assim, é uma ilusão de que está-se
construindo a democracia através da participação popular, mas sem base sólida
em termos de garantias de direitos fundamentais. A sociedade faz a sua parte,
enquanto o Estado omite-se em sua responsabilidade. Entretanto, convém
sustentar a ênfase nas formas constitucionalizadas de participação como um
valioso instrumento para a conquista da realização do outro pilar do Estado
democrático de direito e, talvez, do conteúdo social de um modelo nunca
efetivado no Brasil.
As condições para superar esta ilusão de democracia a partir
da participação popular são de duas ordens. Da parte do Estado, as garantia dos
direitos econômicos, sociais e culturais, especialmente o direito à educação e
uma distribuição de renda e terra que possibilite um mínimo de autonomia real e
a descentralização dos meios de comunicação de massa. Da parte da sociedade, um
esforço de articulação e valorização de organizações não governamentais que
atuam em educação popular, que amplie e aprofunde o conhecimento do povo sobre
seus direitos; um investimento mais forte das universidades em pesquisa e
produção de conhecimentos e de tecnologias; e abertura à pluralidade como base
desta democracia.
Avaliar processos de participação popular
exigiriam, entretanto, a definição de dimensões alternativas às de
legitimidade, eficácia ou ética, aplicáveis em análises do Estado. Talvez a
criatividade, a solidariedade ou a capacidade de auto-organização de micro
espaços sociais sejam mais úteis para entender a participação enquanto um
processo efetivo e conseqüente na construção da democracia, entendida em sua
dimensão de realização dos direitos humanos. Um estudo das estruturas e
processos de implementação das normas referentes à descentralização e participação
popular seria vital para contribuir para a definição de um conceito ou de uma
dúvida sobre a democracia que estamos construindo.
A terceira divisão de trabalho que implica a implementação do ECA é entre e a família, a comunidade e o Estado. Esta
divisão de responsabilidades está constitucionalizada no caput do artigo 227 CF e é positivada, por exemplo, nos artigos 4°
e 70 do ECA. Trata-se de um aprofundamento da
descentralização de poderes - e, ao mesmo tempo, de deveres - entre as esferas
pública e privada, pois distingue, na segunda, a família da comunidade,
aludindo a âmbitos mais ou menos íntimos do mundo da vida .
A família descumpre sua obrigação estatutária quando omite-se ou abusa na tarefa de cuidar e educar as crianças.
Quando isso ocorre, o Conselho Tutelar deve atender e, conforme o caso, atua
diretamente, aplicando medidas de proteção de sua alçada e/ou
encaminha ao juiz para as providências judiciais, como por exemplo
encaminhamento à família substituta . Quando o adolescente ameaça seus próprios
direitos ou os de outros cidadãos, cabem duas iniciativas: O Conselho Tutelar
aplica medidas de proteção e o Poder Judiciário aplica as medidas
sócio-educativas, a serem executadas obrigatoriamente pelo Poder Executivo e
facultativamente por organizações não governamentais (Sêda
1993, p. 101-2). Quando a sociedade ameaça os direitos das crianças e dos
adolescentes, cabe ao Poder Judiciário corrigir a situação, como por exemplo em
relação à entrada e permanência em locais públicos de ócio, espetáculos,
etc., ou em relação ao atendimento de
entidades de proteção ou sócio-educação . Nestes
casos o juiz é, ao lado do promotor e do Conselho Tutelar, o fiscal das
entidades (Sêda, 1993, p. 106). De todos estes
procedimentos, concluímos que trata-se de uma rede de
controles mútuos entre as esferas pública e privadas, o que possibilita,
teoricamente, o caráter democrático do processo. Tudo isso tem como base o
princípio da prioridade absoluta para o interesse primordial da criança e do
adolescente.
2.2. Ambigüidades
no discurso e na prática
Os conceitos ambíguos são os que contêm duas ou mais
representações sociais em si mesmos, opostas ou não, dando margem a distintas
interpretações e práticas. Levando em conta que as normas são ou expressam
relações sociais que, por definição, são contraditórias, óbvio que apresentem
ambigüidades mais ou menos complexas. O ECA expressa,
em seu conteúdo global, as relações sociais concretas a que se refere, e
constitui-se como a síntese historicamente possível entre distintas
representações sociais sobre infância, Estado, sociedade, família, etc..
Podemos identificar quatro grandes ambigüidades no conteúdo do ECA. Cada uma refere-se a um elemento conceitual e traz
conseqüências tanto em sua interpretação como em sua implementação. A primeira
refere-se às representações do papel do Estado em relação aos direitos
fundamentais. A segunda, às finalidades da lei. A terceira, ao conteúdo interno
do conceito de proteção integral e a quarta, ao conteúdo interno do modelo de justiça
juvenil.
2.2.1. Representações
de Estado e direitos fundamentais
Em primeiro lugar, está a ambigüidade de representações de
Estado quanto a seu papel em relação aos direitos fundamentais das crianças e
dos adolescentes.
O ECA pode ser examinado à luz de algumas
teorias sobre o papel do Estado em relação aos direitos fundamentais,
pois sempre o direito influi e é influenciado pelas representações de Estado e
sociedade que o contextualiza. Esta lei expressa elementos da teoria clássica
ou liberal, ao positivar as liberdades e direitos individuais; da teoria
institucional, ao criar instituições para influenciar ou transformar a
realidade social; da teoria dos valores, ao decorrer da Constituição Federal,
que fundamenta-se no princípio da dignidade humana, apesar
do ECA, especificamente, declarar ou definir direitos, ao invés de
fundamentar-se neles; da teoria da função democrática, também em decorrência do
ordenamento constitucional, que define como objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil princípios de uma sociedade democrática; e, finalmente, da
teoria do Estado de bem estar social, ao responsabilizar, ainda que não
exclusivamente, o Estado pela garantia da liberdade e igualdade reais entre os
cidadãos .
Em síntese, o ECA reúne elementos teóricos
de várias vertentes, o que expressa seu caráter de resultante de uma correlação
de forças em torno a distintas representações não somente de infância, mas
também de Estado e de seu papel em relação aos direitos humanos. Se uma
representação hegemônica de infância foi contemplada na lei, apesar de ainda
não totalmente nas práticas concretas, o mesmo não se pode dizer das
representações de Estado ou, melhor dito, de poder. Esse caráter múltiplo deixa
margem às polêmicas interpretativas de corte ideológico e, além disso, a um
leque bastante amplo de alternativas de aplicação das normas e implementação
das políticas delas decorrentes.
A partir do pressuposto de que as representações de Estado
são mais determinantes que as de infância na eficácia instrumental do ECA, podemos facilmente intuir um objetivo latente de
priorizar a eficácia simbólica, legitimando através de uma visão democrática de
infância, umas práticas autoritárias de poder público.
Assim é que, conforme o ponto de vista e os interesses políticos,
enfatiza-se uma ou outra vertente teórica do ECA e,
ainda, justificam-se umas ou outras práticas que dão consistência à lei.
O Estado neo-liberal enfatiza a
descentralização das ações invocando a participação popular, mas não a
descentralização dos poderes de decisão (dois incisos do mesmo artigo 88 ECA).
A sociedade reivindica mais aportes do Estado para a implementação da lei,
invocando a responsabilidade pública prevista nos artigos 9°, 11, 54-59 ECA,
por exemplo. Os menoristas criticam o caráter
eminentemente garantista do ECA,
para combatê-lo em defesa do paradigma anterior, enquanto os defensores desta
lei invocam a dignidade de todas as crianças e adolescentes como fundamento dos
direitos positivados. E assim, sucessivamente, as polêmicas apoiam-se
nas distintas representações das relações entre o Estado e a sociedade, que dão
conteúdo ao ECA.
2.2.2. Finalidades
da lei
Em segundo lugar, está a ambigüidade entre a proteção da
infância e o controle social enquanto finalidades do ECA,
que traz conseqüências importantes no processo de sua implementação.
Esta ambigüidade pode ser caracterizada através de alguns
aspectos que informam sobre o modelo de intervenção próprio do direito regulativo ou, dito de outra forma, do direito orientado a
fins promocionais e penetrado por critérios e determinantes de índole material
(Calvo 1998-a, p. 103).
Os próprios fins protetores da lei são realizados através de
maior controle social, na medida em que legalizam-se
ou juridificam-se, de forma mais profunda, as
relações sociais, ampliando e complexificando as
formas de dominação ou de intervenção. Por exemplo, o aparato institucional
proposto no ECA abrange toda uma gama de instâncias
sociais que vão desde o poder público em nível federal, até a responsabilidade
individual de cada cidadão em velar pela garantia dos direitos fundamentais das
crianças e dos adolescentes, num complexo público/privado
que penetra cada família, entidade de atendimento, escola, hospital,
vizinhança, organização não governamental, etc..
Uma reflexão mínima sobre os motivos pelos quais o Estado
promove a proteção indicaria, pelo menos, duas razões principais: para
compensar ou paliar os efeitos excludentes do modelo econômico e político adotado
em relação a parcelas importantes da população e, consequentemente,
do mercado; e para integrar estas mesmas parcelas num projeto de convivência
social que não ponha em risco a ordem estabelecida como "normal".
Nessa lógica, as políticas sociais jogam um papel vital e ambíguo entre o que pode-se chamar de garantias de direitos econômicos, sociais
e culturais e, por outro lado, o controle social baseado na busca de
legitimidade do Estado ou, pura e simplesmente, na legalização das relações
sociais (García e Susín 1998).
Legalizando as relações sociais, contribui para o
aprofundamento do controle sobre os comportamentos que põem em risco não só os
direitos das crianças e dos adolescentes, mas também a ordem e a segurança
cidadã. Normatizando a prevenção e a proteção, não
necessita positivar a repressão de forma explícita, pois contempla seus
conteúdos negativos de forma muito mais sutil e eficaz. Reunindo, num só texto,
alternativas de intervenção com objetivos tão complexos como contraditórios
como são, por exemplo, os de proteção e os de sócio-educação,
expressa a ambigüidade mais geral entre proteger/assistir
e integrar/controlar.
O ponto de partida é o elemento que mais evidentemente
expressa esta ambigüidade: são os supostos de intervenção, tal como se
positivam no ECA. As medidas de proteção
desencadeiam-se a partir da ameaça ou violação de um valor protegido
constitucionalmente, que é a infância, enquanto as medidas sócio-educativas
desencadeiam-se a partir da violação de outro valor, que é a segurança, também
protegido constitucionalmente , violado através do ato infracional,
análogo ao crime ou contravenção penal. Neste caso, formalmente, a ambigüidade
tem seu ponto de equilíbrio indicado na própria Constituição, ou seja, a
prioridade absoluta é um princípio dirigido à infância (artigo 27 CF).
Portanto, qualquer que seja o valor violado, a prioridade absoluta de proteção,
em qualquer circunstância, deve ser dirigida à criança ou adolescente autor de
ato infracional (artigo 4°, parágrafo único ECA).
Na prática, o equilíbrio é inverso, deixando clara a
tendência patrimonialista e a lógica de segurança
cidadã como hegemônicas entre as finalidades do ECA. A
representação de criança perigosa prepondera, assim, sobre a de criança em
perigo. A ausência de conteúdo pedagógico das medidas sócio-educativas é
indicador empírico claro desta tendência, confirmando a finalidade controladora
como preponderante sobre a protetora dos adolescentes em conflito com a lei.
Equívoco seria considerar, nessa ambigüidade, dois pólos
opostos de forma maniqueísta, pois o controle social, desde que num espaço garantista, atende a necessidades de convivência social
pacífica e de garantia dos direitos das crianças em situação de ameaça ou
violação, enquanto a proteção e a assistência proporcionam, contraditoriamente,
tanto a possibilidade e a qualidade de vida para muitas
crianças e adolescentes desamparados, como uma forma de integração numa
sociedade reforçada, simbolicamente, como boa em si mesma.
2.2.3. O
conceito de proteção integral
Em terceiro lugar, encontra-se a ambigüidade interna ao
conceito de proteção integral absorvido pelo ECA a
partir da normativa internacional sobre os direitos das crianças.
A doutrina da proteção integral é clara em relação ao seu
destinatário, mas não ao seu método nem aos seus objetivos. A ambigüidade no ECA está entre um enfoque intervencionista, tutelar, que
sobrepõe-se a uma ênfase autonomista, mais coerente com o conceito de criança e
adolescente como sujeitos de direitos. A noção de sujeito de direitos (artigo
3° ECA) contrapõe-se à idéia de incapacidade, de criança objeto de intervenção,
de tutela ou de repressão. Mas, também, pressupõe a oposição entre as
representações de criança como protagonista e criança como vítima, que contribuem
para reforçar os estereótipos da criança adulta e da criança incapaz. O artigo
15 do ECA define a criança e o adolescente como
sujeitos de direitos, o que sugere negar concepções como menor incapaz, objeto
de intervenção, vítima, irresponsável. Sujeito de direitos pressupõe protagonismo, responsabilidade, mas, por outro lado, não
pode significar adulto, culpado, protagonista exclusivo de sua situação. Todas
estas contradições aparecem na prática de aplicação das normas legais,
principalmente com respeito às medidas de proteção e sócio-educativas.
Por outro lado, está o equilíbrio entre a prevenção e o
controle (de comportamento das crianças e das famílias), como conteúdos do
conceito de proteção integral. Se o único caminho da prevenção é a previsão, e
a única forma de prever cientificamente é identificando fatores, populações e
comportamentos de risco, o passo seguinte - efetivamente preventivo - seria,
logicamente, a tentativa de evitar o mal previsto: evitar os fatores, controlar
as populações ou modificar os comportamentos de risco. Todas estas ações
consistem, em última análise, em estratégias de intervenção preventivas com um
forte acento repressivo e protetivo, pois sempre
pressupõem um menor ou maior grau de intervenção seja tutelar, seja controladora
de comportamentos.
O ECA expressa, em seu conteúdo
híbrido entre penal e promocional, o caráter misto que resulta da transição de
umas estratégias de controle social "negativo" ao
"positivo", ou seja, da repressão à ênfase na prevenção e proteção
integral, o que traz como conseqüências a necessidade de implementação de
políticas e, para isso, a normatização de uns
critérios de comportamento social e de aportes do Estado .
Finalmente, está a relação entre a natureza dos supostos de
intervenção (amplos, genéricos) e as medidas concretas de proteção, que
pressupõem uma potência de medidas individuais para solucionar problemas
sociais. Essa ambigüidade é tratada, mas não superada, na própria lei, através
de distintas esferas de intervenção normatizadas de
acordo com uma classificação de violação de direitos. Para os direitos
econômicos, sociais e culturais, o ECA prevê a
proteção dos interesses individuais, difusos e coletivos, principalmente a
educação (artigos 208 a 224 ECA). Para os direitos individuais, prevê medidas
pertinentes aos pais ou responsáveis (artigos 129 e 130 ECA), fiscalização de
entidades de atendimento (artigos 95 a 97 ECA) e
garantias constitucionais (artigo 5° CF) e estatutárias (artigos 106 a 111 e
124 ECA).
A proteção integral contrapõe-se ao antigo paradigma de
regularização da situação irregular do menor, o que, por um lado, reduz a estigmatização da criança desamparada mas, por outro, abre
as portas ou justifica um intervencionismo ampliado, mais capilar, apesar de
menos discriminador, que a doutrina anterior.
2.2.4. O
modelo de justiça juvenil
A quarta ambigüidade do conteúdo do ECA
está no modelo de intervenção na parte dedicada ao ato infracional.
O problema básico é a indefinição teórica e prática do modelo de justiça
juvenil adotado . As decorrências são confusões, ao menos entre um caráter mais
pedagógico, mais terapêutico ou mais penal do tratamento dos adolescentes em
conflito com as normas jurídicas.
O ECA expressa a ambigüidade, ainda
não solucionada em quase nenhum ordenamento jurídico sobre a infância e a
adolescência, entre o caráter pedagógico e o penal do tratamento da
delinqüência infanto-juvenil. Isso porque, apesar de garantir direitos
individuais coerentes com a normativa internacional, incorre em vicissitudes
decorrentes da concepção pedagógica que, em si mesma, é anti-garantista,
ao mesmo tempo em que acolhe princípios garantistas
questionáveis quanto ao seu caráter pedagógico. Exemplo da primeira contradição
é a duração indeterminada das medidas sócio-educativas, que atende a critérios
pedagógicos mas viola o direito de segurança jurídica. Da segunda, é exemplo o
direito de não falar nada que possa comprometer o processo de ampla defesa, que
atende a critérios garantistas mas interfere no
processo pedagógico, através do direito de mentir ou omitir a verdade, ou de
não assumir responsabilidades pela própria conduta.
Giménez-Salinas (1998) apresentou
um quadro comparativo de modelos de justiça, como material facilitador em
palestra sobre o tema de justiça juvenil , resumindo cinco sistemas principais,
nos quais podemos identificar aspectos conceituais do ECA.
Quadro III.2. Aspectos conceituais de cinco modelos de justiça juvenil
|
Sistema
protector |
Sistema
bien-estar/educativo |
Sistema
normalizado no intervencionista |
Sistema
de justicia |
Sistema
reparador/responsabilizante |
Objeto |
El
menor |
Menor y família |
Reacción social |
El delicto |
Daño/dolor |
El delicto es una
expresión de: |
Patológica |
De necesidad educativa |
De normalidad |
De libre elección |
De conflicto |
La intervención consiste en: |
Tratar |
Educar |
Evitar la estigmatización |
Castigar |
Reparar el daño |
Personal |
Psico/social |
Psico/educativo |
Comunitário |
Judicial |
Mediadores |
Finalidad |
Protectora -moralizante |
Educativa |
Integradora |
Respecto a la ley y al orden |
Responsabilizar |
Fonte: Giménez-Salinas (1998). Jornadas sobre Justiça Juvenil: Teruel.
Analisando o ECA a partir deste
quadro, podemos observar que, no discurso explícito e latente do texto legal, o
objeto de intervenção é a criança (menores de 18 anos) e a família (objeto de
medidas próprias), característicos do sistema de bem-estar/educativo.
O delito é o ponto de partida, mas não se apresenta como objeto de intervenção,
apesar de ser expressão de necessidade educativa, também
oriundo do modelo de bem-estar/educativo. A
intervenção consiste em educar, outro elemento do mesmo modelo. O pessoal pode
ser psicossocial, psico-educativo
ou judicial, contemplando os modelos protetor, de bem-estar/educativo e de justiça. O
ECA dispõe, ainda, sobre pessoal comunitário, mas quando refere-se mais
às medidas de proteção de crianças e adolescentes autores de ato infracional. A finalidade da intervenção, de acordo com o ECA, é educativa, também ressaltando o modelo de bem-estar/educativo.
Na prática, costumam-se implementar as
medidas sócio-educativas, de acordo com o ECA, seguindo um modelo
híbrido entre os sistemas protetor e de justiça. O objeto de intervenção
prática é a criança, conforme o modelo protetor, assim como a visão do delito
como uma expressão patológica, que fundamenta práticas
baseadas em conhecimentos oriundos da psiquiatria, psicologia e
farmacologia. Essa tendência, entretanto, costuma ser distorcida e manipulada,
reforçando umas práticas mais repressivas que terapêuticas. A intervenção
consiste em tratar, conforme o modelo protetor, mas também em castigar, o que
coincide com o sistema de justiça. O pessoal judicial, na prática, é também
encarado de forma distorcida em relação ao modelo de justiça original, pois
além dos juristas, advogados, juizes, etc., tratam-se de agentes de segurança
no manejo direto com os adolescentes. A finalidade prática do
ECA é protetora/moralizante (mais moralizante
que protetora), de acordo com um sistema protetor, mas também visa o respeito à
lei e à ordem, conforme um sistema de justiça.
Em síntese, identifica-se uma ambigüidade teórica entre
elementos do modelo de bem-estar/educativo e o modelo
protetor, com ênfase no primeiro. E uma ambigüidade prática entre elementos dos
modelos protetor e de justiça. Supõe-se que a
ambigüidade prática seja, em parte, decorrente da indefinição teórica e da remanescência do modelo anterior, normatizado
pelo Código de Menores de 1979, ainda presente na formação e na mentalidade de
uma grande parte do pessoal que hoje em dia implementa a atual legislação.
O ECA, assim, apresenta-se como
síntese dos modelos protetor e educativo e implementa-se como síntese dos
modelos protetor e de justiça. Em termos gerais, o adolescente infrator é visto
ao mesmo tempo como sujeito de direitos e como vítima/objeto
de proteção e educação.
Os riscos deste caráter ambíguo do ECA
são, basicamente, três: que o protecionismo com ênfase terapêutica reforça a estigmatização do adolescente autor de ato infracional, como se o delito fosse uma questão patológica,
com origem claramente funcionalista e conseqüências totalmente anti-garantistas; que o educativismo
retórico reforça a falácia pedagógica do ECA - segundo a qual a sócio-educação (indeterminada) é instrumento de
transformação ou, pior, de reintegração num sistema social em si mesmo
aceitável e bom; finalmente, que uma visão penalista
estreita da justiça juvenil restringe possibilidades de resolução de conflitos
com as normas desde fora do sistema judicial, tendo em conta realmente a
condição de pessoa em desenvolvimento.
As vantagens desse ecletismo expresso no
ECA são, evidentemente, importantes, pois pode-se aproveitar o melhor de
cada modelo. Assim, ao garantismo, que nunca é
exagerado, soma-se a proteção que sempre é necessária, desde que num sentido autonomizador, mais que tutelar. A uma visão global do
adolescente como pessoa em desenvolvimento físico, intelectual e emocional,
soma-se a possibilidade de construir formas alternativas de educação para a
liberdade e convivência ao mesmo tempo pacífica e crítica. Às medidas de
proteção ao adolescente, somam-se as dedicadas aos pais ou responsáveis,
superando tanto a infantilização quanto a culpabilização da criança, ao mesmo tempo em que supera um familiarismo exagerado de corte paternalista ou repressor.
Na justiça juvenil brasileira a ambigüidade principal, em
resumo, que aparece tanto no texto quanto em sua aplicação, é entre o caráter
pedagógico e o penal, enquanto que a secundária, mas que aparece com força na
prática, é entre os anteriores e o terapêutico/repressivo.
Em nível de discurso, o argumento hegemônico sustenta o caráter pedagógico das
medidas sócio-educativas (o próprio termo demonstra), mas em nível das
práticas, as características principais são a ausência do caráter pedagógico e
a violação do caráter garantista próprio do modelo
penal .
Concretamente, sete situações contrárias aos direitos dos
adolescentes em conflito com a lei surgem dessas ambigüidades: 1) As sentenças
baseadas nos antecedentes criminais, que compõem o quadro do comportamento e da
personalidade que fundamentam as decisões do juiz. 2) A duração indeterminada
das medidas sócio-educativas, que viola os princípios de proporcionalidade,
legalidade e segurança jurídica. 3) Os laudos técnicos que fundamentam as
mudanças de medidas, baseados nos comportamentos mais
que no alcance de objetivos definidos individualmente. 4) A medicalização
ou psicologização do conteúdo das medidas. 5) A coisificação ou vitimização do
adolescente infrator. 6) A desilusão sobre a eficácia instrumental da norma. 7)
O espaço aberto para o retorno de modelos superados, mediante alarmas sociais
sobre a ineficácia do atual.
Duas coisas mais sobre os modelos de justiça juvenil. A
intervenção tendente a evitar a estigmatização do
adolescente autor de ato infracional, a importância
do pessoal comunitário e a finalidade integradora, próprios do sistema
normalizado não intervencionista, são elementos presentes no conteúdo do ECA, mas de forma secundária e, de qualquer forma, com
escassa eficácia instrumental. Além disso, não se pode identificar nenhuma
marca do sistema chamado reparador/responsabilizante.
Talvez seja útil, oportunamente, examinar as vantagens e desvantagens deste
modelo, com vistas a contribuir para a implementação de alguns de seus
elementos, de forma compatível com o ECA. Isso porque trata-se de um modelo muito valorizado e discutido
atualmente, tanto em nível teórico quanto de experiências práticas com
resultados apreciáveis, ainda que incipientes.
A aparente confusão entre modelos expressa no
ECA não é alheia às contradições presentes nas representações em
conflito na própria sociedade, sobre infância, segurança cidadã, etc.. Supõe-se
que a sociedade brasileira normatizou o que aspira,
mas mantém institucionalizado o que realmente representa em relação à segurança
cidadã e à infância em perigo ou perigosa . Isso explicaria, em parte, a
defasagem entre a retórica e a realidade da proteção da infância e da sócio-educação dos adolescentes
infratores. A falácia de enfatizar retoricamente a legitimidade global do ECA está em tomar a parte pelo todo, pois não há
garantias dos direitos fundamentais nas sentenças nem na execução das medidas.
A ênfase garantista do processo contradiz-se com a
ênfase substancialista ou comportamentalista no
julgamento e repressiva na execução. Por outra parte, o discurso educativista garante, também simbolicamente, a legitimação
do modelo, enquanto a prática repressiva e terapêutica
garantem a eficácia de objetivos latentes de controle social.
A solução das ambigüidades apontadas não está mais no
discurso que na própria prática. A primeira, entre representações de Estado,
possibilita uma pluralidade de intervenções em direção à garantia dos direitos
da criança, apesar de também poder confundir sobre as condições concretas desta
garantia. A segunda, entre as finalidades da lei, pressupõe um conflito entre
racionalidades opostas e indica a possibilidade de solução mais política que
legal, entre uma retórica ligada aos direitos humanos e a lógica de mercado. A
terceira expressa o núcleo do conflito específico entre paradigmas de
intervenção e deverá, em qualquer caso, pender para o lado da representação
hegemônica na lei, que é a de criança sujeito de direitos e, portanto, para o
caráter autonomista da proteção integral. A quarta ambigüidade tem sua solução
incógnita, pois reflete um debate internacional ainda não resolvido e cheio de
possibilidades, apontando apenas para um modelo eclético que acolha elementos
compatíveis com a Convenção Sobre os Direitos da Criança.
Todas estas ambigüidades identificadas no
ECA não levam à necessidade de mudança da lei, e sim indicam a riqueza
de possibilidades de sua implementação. Pois se a lei expressa a convivência
tensa entre distintas forças sociais, sua implementação será a expressão
prática, a continuidade concreta dessa luta, e a história
informará as sínteses construídas a partir destas ambigüidades.
3. Eficácia instrumental
3.1. Realidade e
perspectivas
Uma das conseqüências práticas da mudança de paradigma que
implicou a substituição do Código de Menores de 1979 (situação irregular) pelo ECA (proteção integral) foi em relação aos supostos de
intervenção pública na vida das crianças e das famílias. O paradigma da
situação irregular, que atingia as crianças pobres em perigo ou perigosas,
supunha um direito e dever de intervenção do juiz da infância em situações que
hoje em dia, com o paradigma de proteção integral, já não justificam a
intervenção judicial. Entretanto, o paradigma atual permite uns supostos de
intervenção pública ainda mais indeterminados, pois a proteção integral supõe a
multiplicidade de situações de risco e a impossibilidade de traçar-se uma linha
única desde a causa até o delito. Isso supõe uns objetivos latentes do ECA relativos ao controle social da infração, ou seja,
relacionados com a segurança cidadã. A mudança de paradigma foi em relação à
natureza da intervenção, agora mais administrativa que judicial em todos os
supostos de risco ou violação de direitos das crianças, exceto quando referem-se a ato infracional.
A mudança de paradigma pode ser expressa, ainda, como de
menor em situação irregular para criança como sujeito de direitos. Isso porque o ECA positiva direitos de todas as pessoas até 18 anos de
idade e, em casos excepcionais expressos na lei, até os 21 anos. A eficácia
instrumental deste aspecto pode ser avaliada, principalmente, pela exigência do
devido processo legal, como direito à ampla defesa da criança em tudo o que diz
respeito a seus interesses e direitos. O paradigma anterior culpabilizava
a própria criança por sua situação irregular, enquanto o atual responsabiliza a
família, a sociedade e o próprio Estado pelas situações de ameaça ou de
violação de direitos das crianças, ainda que esta violação seja devido à sua
própria conduta . De qualquer forma, essa mudança supõe um avanço em termos garantistas e um incremento em termos intervencionistas.
Os direitos civis das crianças e dos adolescentes estão
positivados no ECA, principalmente nos artigos 15 a
18, onde definem-se os direitos à liberdade, respeito e dignidade. O ECA garante à criança e ao adolescente, em qualquer
circunstância, o direito à defesa técnica especializada, concretizando a figura
do defensor como correlato do sujeito de direitos no devido processo legal .
Podemos afirmar que o ECA garante todos os direitos
fundamentais no processo de apuração e julgamento do ato infracional,
mas não na decisão (análoga à sentença no direito penal adulto) nem na execução
.
Quanto aos direitos econômicos, sociais e culturais,
investigar elementos para analisar a eficácia instrumental do
ECA supõe confrontar a realidade da infância e juventude desamparada no
Brasil com os objetivos explícitos e implícitos da lei. Para isso, seria
necessário comparar a situação concreta desde antes de sua promulgação e,
progressivamente, até hoje, após dez anos de validez. Não é preciso muita
intuição para mencionar a possibilidade de que pouco mudaram as condições
concretas de vida das crianças e adolescentes no Brasil, ao menos no que diz
respeito aos direitos positivados no ECA.
A violência (violação de direitos) contra crianças e
adolescentes no Brasil pode ser observada em todas as áreas da vida privada e
pública como em casa, nas escolas, estabelecimentos de saúde, nas ruas e nas
instituições de abrigo, passagem e internação. É uma
violência física e moral, que vai desde as práticas de punição física e
psicológica dentro das famílias, passando por maus tratos, negligência,
abandono material, intelectual e afetivo, chegando a diversas formas de
violência sexual, repressão policial, exploração para o trabalho, torturas e
extermínio.
A negligência familiar, a omissão governamental e a própria
conduta da criança são os supostos de intervenção mencionados no ECA. Todos são agravados pela indiferença de grande parte
da sociedade em relação aos direitos humanos das crianças e adolescentes.
Antes de toda forma de violação de direitos individuais, as
crianças e adolescentes no Brasil têm seus direitos econômicos, sociais e
culturais amplamente ignorados. A realidade atual da infância desamparada no
Brasil pode ser constatada por alguns dados gerais, que passamos a apresentar.
Para a finalidade deste estudo, pensamos ser suficiente descrever a situação
dos principais direitos sociais e individuais universalmente reconhecidos,
acolhidos pela legislação brasileira mas, até hoje, pouco efetivados.
O Brasil tem uma população total de mais de cento e cinqüenta
milhões de pessoas, das quais 38,8% são crianças de zero a 17 anos de idade . A
renda familiar de 40% destas crianças é insuficiente para manter as condições
mínimas de alimentação, saúde e educação.
No Brasil, as contradições sociais apresentam-se nitidamente
em forma de desigualdades sociais, geográficas, econômicas, culturais, legais e
fundiárias, que configuram um quadro contrastante entre muitos miseráveis e
poucos ricos, entre regiões mais atrasadas e mais desenvolvidas, entre
analfabetismo e avanços tecnológicos, entre um alto PIB e uma reduzida
distribuição de renda. As desigualdades constituem, no Brasil, o conteúdo da
chamada questão social. Manifesta-se através de problemas como fome, falta de
acesso à saúde, educação, habitação, etc.; trabalho infantil, desemprego,
salário mínimo insuficiente, sistema de proteção social restrito, fragilidade
na estrutura e dinâmica familiar, desamparo na infância e velhice, etc..
Tudo isso conforma um panorama sócio-econômico onde 64% da população está excluída de qualquer possibilidade de
autonomia, o que eqüivale a aproximadamente 63,3
milhões de pessoas que vivem abaixo do nível de pobreza .
Em 1995, 28,8% dos domicílios brasileiros não tinham abastecimento adequado de água, 11,4% não possuía esgoto
sanitário e 38,8% não tinha serviço de coleta de lixo .
A taxa de mortalidade infantil é de 44 bebês para cada mil
nascidos vivos. Além disso, muitas crianças morrem sem sequer haver sido registradas, do que se conclui que a taxa pode
ser ainda maior.
A desnutrição crônica e aguda de crianças de até cinco anos
de idade atinge um total de 5,7% desta população . Entretanto, uma investigação
realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e Bemfam (Sociedade Bem Estar e Família) revelou
que, entre 1989 e 1996, houve significativa queda da taxa de desnutrição
infantil no Brasil, da ordem de 16,9% .
Quanto à educação, 10% das crianças entre 10 e 14 anos e 6,6%
de adolescentes entre 15 e 17 anos brasileiros são analfabetos . Num processo
de desescolarização crescente, somente 1% da
população chega à universidade, sendo que 11,4% dos matriculados abandonam a
escola durante o primeiro grau e 2,2% durante o segundo grau . Este processo
está intimamente relacionado com o trabalho infanto-juvenil. Seja prejudicada
pela incompatibilidade de horários ou por impossibilidade de aproveitamento
devido ao cansaço ou doenças laborais, a escolarização
é sempre o lado mais frágil do desenvolvimento das crianças trabalhadoras.
O ECA proíbe o trabalho até os 14
anos de idade (artigo 60), salvo na condição de aprendiz. Além disso, regula as
condições do trabalho educativo, limita tipos de atividades e horários das
jornadas (artigos 60 a 69). Entretanto, 2 milhões de crianças entre 10 e 13
anos e 7,5 milhões entre 14 e 18 anos trabalham, o que representa 11 % da
população economicamente ativa . No mundo, o Brasil só está atrás do Haiti e do
Paraguai, sem contar os pequenos trabalhadores de 5 a 9 anos de idade, que
representa aproximadamente 522 mil crianças trabalhadoras, justamente no
período de ensino básico obrigatório .
Outra violação grave de direitos das crianças e adolescentes
no Brasil é a exploração sexual, que costuma ocorrer em
quatro âmbitos da sociedade: o doméstico, o comercial, nas ruas e em
instituições educacionais, de abrigo ou de internação .
No Brasil, apesar de não existirem pesquisas oficiais
globais, supõe-se que 62% das situações de abuso sexual ocorrem dentro das
famílias. De um total de 2.700 denúncias recebidas, a cada ano, pela Justiça em
todo o país, 83% referem-se a vítimas jovens do sexo feminino. No Rio Grande do
Sul, há uma média de uma em cada cinco mulheres que sofrem abuso sexual antes
de cumprir 18 anos .
Outra forma de violação de direitos das crianças no Brasil é
a violência que sofrem nas ruas, cujo ápice são os assassinatos e o extermínio.
Na faixa etária de 10 a 14 anos, os acidentes
(atropelamentos, acidentes motores e afogamentos) são as principais causas de
mortes fora de casa, o que pode pressupor atitudes negligentes ou mesmo
abandono por parte dos adultos responsáveis por estas crianças. Já na faixa de
15 a 17 anos, a causa principal é, de longe, o homicídio, que representa uma
quarta parte do total de causas identificadas .
O extermínio é uma forma peculiar de violência de morte
contra alguns setores vulneráveis no Brasil, como é o caso das crianças e adolescentes
pobres, principalmente os que vivem nas ruas. Uma média de
10% dos assassinatos de crianças e adolescentes no Brasil são caracterizados
como extermínio, definido como:
"ação
individual ou de grupo, concebida e organizada com o fim da eliminação, por
qualquer meio, de criança ou adolescente considerado ou
suspeito de se encontrar em situação de risco pessoal ou social ou para
ocultar práticas delitivas."
Todos estes dados exemplificam muito bem a
realidade atual da infância desamparada no Brasil e a defasagem que
expressa em relação à retórica jurídica e política correspondente.
Evidentemente, a eficácia instrumental não é uma variável
absoluta, podendo ser avaliada em termos dinâmicos ou relativos, o que
leva a considerar a possibilidade de eficácia (ou ineficácia) parcial em
relação aos objetivos propostos, assim como à possibilidade de alcance
progressivo dos objetivos, no tempo.
A Convenção Sobre os Direitos da Criança da ONU aponta a
obrigação dos Estados-parte a destinar, progressivamente,
todos os recursos e meios possíveis para a efetivação dos direitos conveniados
(artigo 4°). Trata-se, aqui, da necessidade de investigar os gastos do Estado
brasileiro na promoção dos direitos da criança, no período estudado, mais do
que - ou ao lado da - própria evolução da qualidade de vida e das garantias
individuais dos direitos das crianças e adolescentes.
De acordo com Calvo (1999, p. 54-5), a Convenção sobre os
direitos da criança:
"sienta tajativamente
el princípio de responsabilidad e intervención activa
de los poderes públicos en la realización efectiva de los derechos del menor,
sancionando la necesidad de que los estados intervengan positivamente para
garantizar en última instancia su eficácia."
O caráter predominantemente positivo dos direitos das
crianças atinge também os chamados direitos negativos, ou seja, os que geram
obrigações de não fazer, como por exemplo o direito à vida, protegido não só
individual e negativamente como, principalmente, mediante dispositivos legais,
políticos e administrativos que dêem resposta às necessidades das crianças
devido à sua condição especial de pessoa em desenvolvimento, tais como
referentes à sobrevivência, saúde e desenvolvimento (Calvo
1999, p. 55-7).
Os Estados parte da Convenção Sobre os Direitos da Criança
assumem, ainda, obrigações subsidiárias em relação à família, quando da
necessidade de dar proteção integral à infância. Isso leva à necessidade de investigar também
o processo participativo e seus efeitos na implementação do
ECA, em termos de resultados concretos tendo em vista os direitos das
crianças.
3.2. Limites legais e
políticos à eficácia vertical
A mudança de conteúdo, método e gestão, que implicam uma
correlação de esforços intra e entre família, sociedade e Estado frente aos
direitos das crianças e adolescentes, evocam a questão da eficácia vertical e
horizontal destes direitos.
A eficácia vertical tem a ver com a relação entre os cidadãos
e o Estado, ou seja, com as garantias dos direitos frente ao Estado, enquanto a
horizontal diz respeito às garantias dos direitos entre particulares, no âmbito
privado.
Um primeiro limite à eficácia vertical dos direitos das
crianças no Brasil é a forma de seu reconhecimento formal. Há três níveis de
reconhecimento formal dos direitos fundamentais: Em primeiro lugar, está o reconhecimento constitucional, seguido da normativa internacional
que, por força do parágrafo 2° do artigo 5° CF, é válida no ordenamento
jurídico interno. Em terceiro lugar, há o reconhecimento formal em nível estatutário
ou legal.
Os direitos das crianças estão regulamentados em nível
estatutário, além de positivados constitucionalmente (artigo 227 CF) e
acolhidos da legislação internacional (principalmente Convenção Sobre os
Direitos da Criança da ONU). Como os demais direitos fundamentais, entretanto,
os direitos das crianças não gozam, no ordenamento jurídico brasileiro, de
recursos jurisdicionais de garantias individuais em nível constitucional, com o
que reduzem-se a quase zero suas possibilidades de
eficácia instrumental. As garantias dos direitos fundamentais são limitadas, no
Brasil, ao nível estatutário ou legal, não existindo figura análoga ao recurso
de amparo constitucional espanhol .
Mas, como não somente o reconhecimento formal é condição para
a eficácia vertical, especialmente tratando-se de direitos com forte caráter
positivo, pode-se buscar na implementação uma condição objetiva de seu alcance.
A implementação das leis, através das políticas e programas de ação, em sentido
amplo, é o que concretiza a garantia dos direitos econômicos, sociais e
culturais e, consequentemente, contribui para
possibilitar o exercício dos direitos individuais.
A implementação depende, por sua vez, de mecanismos institucionais
de defesa e de promoção de direitos. O ECA é pródigo
em positivar mecanismos de defesa de direitos como Defensoria Pública da
Infância e Adolescência, Ministério Público (Promotorias da Infância e
Juventude) e de proteção integral como Conselhos de Direitos e Tutelares mas,
como de resto todo o ordenamento jurídico brasileiro, é quase nulo em normatizar a institucionalidade
para promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais coerentes com o novo
paradigma que expressa.
São óbvios os limites do direito como protagonista no
processo de construção das condições materiais da eficácia dos direitos.
Entretanto, é certo que o direito atua, ao mesmo tempo em que é influenciado,
nas condições formais e simbólicas deste processo. A Constituição Federal de
1988 e o ECA deixam em aberto o principal espaço de
eficácia instrumental dos direitos econômicos, sociais e culturais, ao deixarem
intacta grande parte do aparato institucional que sustentou a estrutura
política e econômica da ditadura militar. Assim é como tanto o Tribunal
Constitucional como as Febens, por exemplo, são instituições que dão continuidade à lógica autoritária do
regime anterior, o que significa uma institucionalidade
defasada em relação aos direitos positivados. Aqui é evidente a
possibilidade da existência de objetivos latentes no novo ordenamento, que supõe-se ter sido promulgado para não ser implementado. O
grau de premeditação desta situação jurídica da institucionalidade,
como para impedir ou dificultar ao máximo a implementação dos direitos
constitucionalizados, é resultado da correlação de forças que se formou durante
o processo constituinte.
Evidente que a promulgação do ECA,
apesar de ter sido resultante de um processo de luta social ou, melhor dito,
entre distintas representações sociais, legitima o Estado frente a umas
demandas de regulamentação de direitos humanos das crianças, ao mesmo tempo em
que encobre, através do discurso jurídico, a realidade concreta de continuidade
da violação e de omissão frente a estes mesmos direitos. É o que Villegas (1993, p. 257-9) chama de "eficácia de
legitimação".
A manipulação dos mecanismos institucionais como obstáculo à
eficácia vertical dos direitos não esgota, ainda, os limites de sua garantia.
Antes das instituições, estão as condições estruturais ou materiais de sua
eficácia. A escassez de recursos é mais eficaz que a defasagem institucional na
garantia da ineficácia dos direitos, especialmente os econômicos, sociais e
culturais. Mais que a escassez, é a questão da distribuição de recursos o que
condiciona sua implementação. Peces Barba (1995, p.
588, 609-10) fala de limites de fato como preponderantes sobre os limites
jurídicos à eficácia dos direitos econômicos, sociais e culturais, tanto que
não haveria necessidade de limitá-los juridicamente - podem ser positivados sem
medo - pois nunca vão-se realizar num sistema desigual
como o vigente. González Amuchástegui (1994, p. 114)
vai mais longe, dizendo que:
"los derechos humanos no son
compatibles con cualquier tipo de modelo económico".
O ECA positiva como fundamentais
muitos direitos econômicos, sociais e culturais, sem a preocupação de normatizar as condições de fato para sua garantia material.
Aqui, outra vez, aparece o limite do direito para condicionar materialmente a eficácia
das normas. Portanto, supõe-se um objetivo latente de legitimação de uma
demanda social através de uma retórica garantista,
frente à ineficácia instrumental, talvez prevista, condicionada pela escassez e
concentração de recursos.
O ECA não dispõe sobre recursos
mínimos nem máximos, limitando-se a reconhecer direitos e distribuir
responsabilidades entre a família, a sociedade e o Estado. Portanto, não entra
na lógica do possível, e sim afirma a razão dos direitos da criança com
prioridade absoluta. Entretanto, delimita as possibilidades de sua
interpretação, no artigo 6°, apontando como critérios, entre outros, "os
fins sociais" e as "exigências do bem comum", ambos conceitos
indeterminados mas possivelmente relacionados com limites políticos ou econômicos
à eficácia instrumental da lei. Neste sentido, o ECA é
débil como ferramenta jurídica de restabelecimento da igualdade. Normatiza medidas de proteção individual, garantindo a
eficácia dos direitos individuais mas, ao mesmo tempo, tratando como se fossem
isolados problemas sociais. Também positiva a proteção judicial dos interesses
individuais, difusos e coletivos, que referem-se à
oferta de condições concretas, pelo Estado, para a eficácia dos direitos da
criança e do adolescente, tais como serviços de educação, saúde, etc. (Artigo
208 ECA).
O fato de igualar na lei o que é desigual na realidade tem
dois efeitos simbólicos importantes. O primeiro, relativo à aceitação social do
direito das crianças serem tratadas de forma igualmente
digna, independentemente de sua condição econômica ou social, o que na
legislação anterior não era garantido. O segundo, por outro lado,
relativo ao encobrimento, através do discurso jurídico, da real desigualdade
que conforma o quadro da infância e juventude brasileiro .
O critério da possibilidade aplicado à eficácia dos direitos
econômicos, sociais e culturais é conseqüência prática do discurso neo-liberal no direito. Ou seja, uma postura relativista que
condiciona a realização destes direitos aos recursos disponíveis e que busca
constantemente uma redefinição, redirecionamento e
delimitação destes direitos em função de objetivos múltiplos e, às vezes,
contraditórios relacionados, em última análise, com o desmantelamento do Estado
social em benefício da rearticulação do Estado liberal em moldes globalizados.
Uma segunda conseqüência é a busca
de alternativas ao papel do Estado na eficácia destes direitos. Uma das
principais mudanças trazidas com o ECA é a
descentralização e a participação popular como princípios básicos das políticas
públicas de atendimento. Em geral, o incremento do mercado informal, as
estratégias de sobrevivência comunitárias, o voluntariado, etc., foram formas
de enfrentamento da ausência do Estado desde sempre no Brasil. Hoje em dia, com
a diminuição cada vez maior do Estado no campo social, este movimento tende a
crescer, tanto que já é incorporado pelo próprio ordenamento jurídico.
Claro está que a diminuição do Estado aparece disfarçada de
democratização através do aumento do poder popular nas decisões que dizem
respeito à sociedade. Este processo, portanto, termina por legitimar a lógica neo-liberal do Estado mínimo. Calvo (1998-c, p. 13) defiende que:
"Los llamamientos a la
responsabilidad de los indivíduos y de la sociedad
civil en la realización de los valores de solidariedad, bienestar y cohesión
social son perfectamente legítimos y defendibles, siempre que no sean una mera
coartada para escamotear los derechos sociales de una parte de la sociedad en
beneficio del bienestar de otros sectores de la misma. Dicho de otra manera, no
es lo mismo patrocinar el papel de los movimientos sociales y de la sociedad
civil en la defensa y promoción de los derechos sociales, que utilizar la
retórica de la libertad y el argumento del retorno al protagonismo de la socidad civil frente al Estado para legitimar torcidamente
la sociedad de los tres tercios y justificar que al menos una parte de la
población viva bien."
Mas, por outro lado, esse processo de democratização, ainda
que limitado e condicionado a esta lógica de desresponsabilização
do Estado em relação aos problemas sociais, apresenta o potencial transformador
que se apoia na possibilidade de aproveitamento deste
espaço de participação, ampliado ao máximo na correlação de forças durante a
elaboração da Constituição Federal e do ECA, para
influenciar realmente nas decisões relativas à eficácia instrumental dos
direitos das crianças e adolescentes. Isso porque o âmbito de participação
legal começa na deliberação das políticas e vai até a gestão e controle de
orçamento para seu financiamento.
Levando em conta as funções negativas e positivas do direito,
isto é, por um lado, limitar o poder enquanto ameaça aos direitos fundamentais
e, por outro, potencializá-lo enquanto promotor da realização destes direitos,
conclui-se que o ECA desempenha as duas. A primeira,
através de dispositivos como o devido processo legal garantido para os
adolescentes autores de ato infracional, ou a
fiscalização de entidades de atendimento por parte do Ministério Público, entre
outros. A segunda, cumpre-se mediante a regulamentação dos Conselhos de
Direitos e Tutelares, diretamente influentes na deliberação, controle e
execução das políticas e medidas de proteção integral e através de serviços e
prestações, contemplando também a assistência social.
3.3. Eficácia horizontal
A desigualdade formal entre cidadãos e Estado justificou a
garantia dos chamados direitos fundamentais frente ao poder. Entre particulares,
entretanto, a igualdade formal não corresponde à igualdade real, o que levou ao
reconhecimento de garantias de direitos fundamentais também em nível
horizontal. Prieto Sanchís
(1990, p. 209) afirma que, a partir daí, postula-se a:
"formulación de unos derechos
resistentes que sirvan como barrera protectora de la libertad frente a los
sujetos privados. (...) En estas condiciones, los derechos humanos no sólo
tienen sentido y operatividad en las relaciones de Derecho privado, sino que
incluso algunos despliegan su eficácia principalmente
en este ámbito".
Portanto, podemos definir a horizontalidade dos direitos
fundamentais como as garantias de sua realização entre os particulares.
Pressupõe uma desigualdade real entre os cidadãos, que dá margem à violação de
direitos entre si, apesar da igualdade formal explícita na lei. Ou, ainda,
pressupõe a coexistência de direitos que concorrem, em termos de proteção, na
convivência social, o que dá lugar a limites entre os direitos fundamentais.
A existência, ou validez, da horizontalidade dos direitos é
um fato inquestionável. A questão que se coloca é a de sua eficácia. Para Peces-Barba (1995, p. 619-39), não se deve questionar a
validez das normas que garantem os direitos fundamentais entre os particulares,
e sim sua eficácia. E, para tanto, afirma a necessidade de examinar os
mecanismos que dão eficácia a estas normas. O autor diz que o recurso de amparo
não é a única garantia dos direitos fundamentais em caso de violação, pois
estão também as vias penal, administrativo-contenciosa, civil,
etc..
No Brasil, onde não existe a figura do recurso de amparo
junto ao Tribunal Constitucional, os limites da eficácia dos direitos fundamentais, tanto vertical como horizontal, estão no
próprio ordenamento legal. A inexistência do mecanismo constitucional induz a
uma produção crescente de normas de fundo estatutário e
legal, que regulamentam ao máximo estes direitos. Desde a promulgação da
Constituição Federal de 1988, somente em nível federal, já surgiram 38 normas
(entre leis, decretos, portarias e resoluções) que dispõem sobre os direitos
fundamentais das crianças e adolescentes. Além disso, seguem vigentes outras
vinte, anteriores à Constituição e, ainda, está toda a normatividade
de nível estadual e municipal, que visam dar eficácia aos
direitos fundamentais positivados na CF e ECA. Toda esta normatividade refere-se à eficácia vertical e horizontal
dos direitos das crianças.
Quanto à eficácia horizontal, um dos principais problemas que
se colocam são os conflitos ou limites entre direitos fundamentais. No Brasil,
este problema se complica devido a uma "banalização" do conceito de
direito fundamental, que faz com que todos possam invocá-los legalmente em
casos de conflitos, apesar de nenhum ser realmente garantido
constitucionalmente. Aparte tal complicação, é certo que surgem questões sérias
de conflitos de direitos entre distintos cidadãos, tanto entre crianças como
entre elas e adultos. Exemplos são episódios de violência sexual entre
adolescentes e crianças, quando coloca-se a
necessidade de proteção de ambos em seus direitos à vida, proteção integral,
liberdade, intimidade, etc. Ou quando uma criança furta comida de um pequeno
estabelecimento comercial, e recebe em troca uma bala do comerciante, que se
alega em seu direito de defesa de propriedade. Ou ainda, quando um adolescente
agride um educador e confrontam-se direitos à integridade física de ambos. Ou
quando um adolescente viola sistematicamente várias mulheres (meninas e
adultas), e tem seu direito à intimidade e imagem violado
pelos meios de comunicação de massa, que divulgam seus dados alegando o
direito à segurança de toda a comunidade. Todos estes exemplos referem-se ao
estereótipo de criança perigosa em conflito com a segurança cidadã, o que traz
à luz a ambigüidade entre as finalidades do ECA, antes
descrita.
Mas há casos nos quais a criança é vista como em perigo,
quando os conflitos de direitos não se encontram mais simples. Por exemplo, o
trabalho infantil num contexto cultural em que é visto como importante para o
desenvolvimento da personalidade e caráter, por parte de seus pais, que
prejudica seu direito ao tempo livre e, muitas vezes, a estudar. Ou a punição
física como elemento pedagógico em contextos familiares em que justifica-se socialmente, que vai de encontro ao direito da
criança à sua integridade física e emocional. Ou, ainda, casos nos quais o
direito de opinião das crianças é conflitante em relação ao direito de decisão
dos pais sobre seu desenvolvimento integral. Ou quando os meninos recebem
bebidas alcoólicas desde muito pequenos, em contextos culturais ou familiares
onde o álcool não está visto como prejudicial à saúde. Todos estes exemplos
referem-se a conflitos básicos entre direitos das crianças e dos adultos, onde
especialmente apresenta-se o confronto entre o pátrio poder e a liberdade ou
condições de autonomia das crianças.
Mais que discutir a eficácia dos direitos
fundamentais entre particulares e seus conflitos e limites é necessário,
ainda, examinar as condições formais e concretas para que seja garantida.
Afinal, a garantia da eficácia horizontal dos direitos depende, em grande
medida, da proteção jurídica e, em última análise, da atuação do poder público
para sua realização. Perez
Luño (1995, p. 23) afirma a necessidade
de:
"actuación de los poderes
públicos encaminada a 'promover las condiciones para que la libertad y la
igualdad del indivíduo y de los grupos en que se
integra sean reales y efectivas', así como a 'remover los obstáculos que
impidan o dificulten su plenitud' a tenor de cuanto expresamente postula el
artículo 9, 2 de nuestra Constitución".
Com isso o autor alude ao caráter positivo ou promocional das
normas para que se realizem os direitos fundamentais também entre os cidadãos.
O ECA normatiza
a defesa dos membros da sociedade civil entre si, como por exemplo coibindo a
violência institucional através de registros e fiscalização das entidades
privadas de atendimento, e reprimindo a violência familiar, através de medidas
pertinentes aos pais e responsáveis, responsabilização da comunidade e
atribuições dos Conselhos Tutelares. Com isso, cumpre sua função negativa em
relação à eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Mas não contribui com
a força necessária para a superação das desigualdades que existem na sociedade
civil, limitando-se a declarar os direitos fundamentais e os interesses
individuais, difusos e coletivos a serem protegidos para sua realização. Com
isso, segue a (i)lógica constitucional brasileira, de
positivar direitos sem as garantias de mesmo nível para sua realização.
4. Eficácia
simbólica
A eficácia simbólica em sentido genérico pressupõe, em seu
aspecto negativo, uma violência, na medida em que impõe, através da linguagem,
uma representação social da realidade, buscando um consenso apoiado no
desconhecimento da arbitrariedade e no reconhecimento de sua legitimidade.
Caracteriza-se pelo poder de impor como legítima uma mensagem cujo conteúdo
real ou latente é desconhecido do receptor, através de eufemismos e outras
técnicas de retórica legal ou política. Esta mesma violência pode, entretanto,
estar a serviço de objetivos contraditórios, como por exemplo o controle social
e a subversão de relações autoritárias de poder. Neste sentido, apesar de
sempre implicar a violência da linguagem implícita, a eficácia simbólica pode,
também, expressar um aspecto positivo, de construir ou
transformar aspectos subjetivos da realidade, o que pode contribuir para a reconfiguração concreta de relações de poder.
Quando o conteúdo simbólico da lei, isto é, quando a mensagem
que se busca transmitir através do discurso jurídico é, em si, ampliadora ou
garantidora de direitos, ou quando a lei representa um avanço em relação a
normas anteriores que restringiam direitos, etc., a eficácia simbólica se
apresenta em seu aspecto positivo. Quando esta mesma lei, entretanto, não é
implementada, quando supõe-se haver sido elaborada em
função exclusiva de sua eficácia simbólica em sentido específico, isto é,
deliberada no bojo de uma estratégia mais geral de legitimação da ordem social
vigente, surge seu aspecto negativo pois, ao mesmo tempo em que não realiza
suas finalidades concretas, termina por legitimar simbolicamente o poder a
partir de seu discurso jurídico.
Neste trabalho, referimo-nos à eficácia simbólica do ECA em sua cara positiva, construtora da realidade a
partir de mudanças nas representações sociais da infância, desde uma ótica
discriminadora e restritiva de direitos, até uma visão mais ampla e democrática
de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, suas conseqüências nas
políticas sociais e, especialmente, na realização destes direitos. Quanto ao
seu aspecto negativo decorrente de dificuldades em seu processo de
implementação, preferimos apostar que se trata mais de uma questão de trabalho
e de correlação de forças do que de um cálculo ou estratégia premeditada, como
se o ECA houvesse sido promulgado para não ser
implementado. A origem da lei informa a natureza contraditória de sua
elaboração, a partir de forças sociais representantes de, basicamente, duas
vertentes opostas.
Supomos que, na sua implementação, essa correlação continue
fazendo-se atuante. Podemos falar de omissão deliberada do governo em atender
os direitos econômicos, sociais e culturais das crianças e adolescentes,
constituindo-se aí uma eficácia simbólica negativa do ECA,
na medida em que credencia o Estado brasileiro como sujeito atuante no conjunto
do movimento internacional em defesa dos direitos humanos e, especialmente, das
crianças e adolescentes, quando na realidade, estes direitos são violados
sistematicamente. No que concerne à atuação de outros setores responsáveis pela
implementação do ECA, entretanto, é difícil ver uma
premeditação contra sua eficácia instrumental. Melhor seria investigar em que
medida as dificuldades de implementação do ECA são
causadas por políticas, deliberadas ou não, por parte de diferentes instâncias
do poder público/privado que se conforma a partir da
lei.
Assim, a eficácia simbólica do ECA,
em sentido genérico, constitutiva de discursos, é positiva em relação ao seu
conteúdo formal, mas negativa em relação ao fato de não ser implementada e,
assim, servir à legitimação de um projeto de restrição de direitos apoiado na
retórica de sua garantia.
4.1. A mudança de paradigma
No contexto brasileiro a substituição do termo menor (em
situação irregular) pelos termos criança e adolescente (sujeitos de direitos) é
a mudança com maior potencial simbólico do novo paradigma, pois representa a
síntese da superação de uma legislação e das políticas correspondentes de corte
repressivo e discriminador à uma legislação e
políticas universais e participativas de proteção integral da infância e da
adolescência . O caráter simbólico está em que tenta, mediante um novo discurso,
transformar as representações de infância e adolescência na sociedade e nos
poderes públicos . Hoje em dia, a correlação de forças entre defensores dos
direitos das crianças e menoristas (defensores do
Código de Menores) é quase equilibrada nos meios intelectuais, políticos,
ativistas, técnicos, profissionais e, principalmente, no espaço que se costuma
chamar de opinião pública. A disputa ideológica em torno a distintas
representações de infância e adolescência é visível nos meios de comunicação de
massa, debates acadêmicos e políticos e sua expressão prática é visível nas
políticas e programas de atendimento à infância desamparada, seja em
instituições de proteção, internamento, educação, saúde, recreação, etc..
A força do termo menor, como símbolo do paradigma anterior,
deve-se não somente a seu poder evocatório de uma representação social ligada a
uma lógica de sociedade e Estado profundamente arraigada na sociedade
brasileira (autoritarismo e clientelismo), como também ao fato de fazer parte de
uma estratégia de permanência e reforço no imaginário popular, através do
manejo de recursos de comunicação social.
Por outra parte, o potencial simbólico do conceito de criança
e adolescente vem reforçado por influência internacional (direitos humanos) e,
principalmente, por uma mudança de postura e discurso de importantes segmentos
da sociedade, como recursos de formação de opinião dentro e fora dos meios de
comunicação de massa, também com respaldo em amplos setores da chamada opinião
pública. Além disso, afinal, o paradigma atual é vencedor na disputa pela
verdade da forma jurídica, ou seja, conseguiu impor-se como parte do
ordenamento jurídico geral, situado na Constituição, o que confere-lhe
um status de confiabilidade como
legítima e oficial. Mas também é verdade que:
"la lucha por la determinación
del sentido de los textos jurídicos no termina con la promulgación"
(Villegas 1993, p. 83).
Sobrevivem, nesta correlação de forças, a par da legislação
atual, não só a eficácia simbólica do paradigma anterior, mas também uma
eficácia instrumental decorrente de posturas práticas remanescentes da
representação de infância em perigo e perigosa oriunda do antigo Código de
Menores.
Neste sentido, podemos afirmar que estão-se
construindo, historicamente, as condições sociais para o reconhecimento e, consequentemente, para o alcance de uma eficácia
instrumental e simbólica do ECA, e que estas condições sociais constituem-se em
aspectos objetivos e subjetivos dependentes da correlação de forças sociais
antagônicas que coincidem no tempo. Assim, não se pode falar de superação do
paradigma anterior, mas sim de uma simultaneidade tensionada
de representações de infância - e de Estado - na sociedade brasileira.
Todos estes questionamentos sugerem a questão da potência do
direito para construir representações ou práticas. O ECA
representa a tentativa de impor uma representação de infância na sociedade
brasileira mas, ao mesmo tempo, expressa ou sintetiza essa mesma representação,
já forte na sociedade, tentando impor-se mediante o discurso e os instrumentos
jurídicos. Ou seja,
"ni el derecho tiene el poder
de transformación social que dicen sus normas, ni sus normas se reducen a lo
que la sociedad quiere hacer de ellas" (Villegas 1993, p. 249).
Ambas alternativas são válidas para explicar a correlação
entre direito e representações sociais e, especificamente neste caso, entre o ECA e as representações sobre infância e adolescência no
Brasil. Em decorrência, não está demais afirmar que o ECA,
mais que uma representação de infância, expressa ou define uma visão de homem,
de sociedade e de Estado que se confronta com outras visões de mundo no mesmo
contexto histórico.
4.2. A prioridade absoluta
O conceito de prioridade absoluta é o correlato jurídico brasileiro
da centralidade que a infância assume, internacionalmente, no panorama dos
direitos humanos. Além de uma eficácia instrumental, definida no parágrafo
único do artigo 4° do ECA, este princípio pretende ter
o poder simbólico de propor uma representação de sociedade fundamentada nos
direitos humanos e, especialmente, nos direitos da criança e do adolescente. Os
limites de tal proposta são óbvios num sistema historicamente calcado por uma
visão adultocentrista ou, pior, patrimonialista,
no qual o ser humano é secundarizado por interesses
políticos e econômicos próprios da lógica mercantilista.
O conceito de prioridade absoluta aparece como critério
básico para a efetivação dos direitos das crianças e adolescentes pela família,
comunidade, sociedade em geral e poder público. Entretanto, o parágrafo único
do artigo 4° delimita a prioridade absoluta em quatro elementos: primazia de
receber proteção e socorro em qualquer circunstância; precedência do
atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; preferência na
formulação e na execução das políticas sociais públicas; destinação
privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção da
infância e juventude.
4.3. Os direitos fundamentais das crianças e
adolescentes
A importância de discutir os direitos fundamentais está, de
acordo com Ferrajoli (1997, p. 916) em que eles
sempre correspondem a valores vitais da pessoa histórica e culturalmente
determinada. Para este autor, é pela sua qualidade, quantidade e grau de
garantia que pode ser definida a qualidade de uma democracia e medir-se seu
progresso. Daqui podemos começar a pensar sobre que
tipo de democracia constitui-se no Brasil, a partir da realidade dos direitos
fundamentais.
Os direitos fundamentais positivados no ECA
são: direito à vida e à saúde, à liberdade, respeito e dignidade, à convivência
familiar e comunitária, à educação, à cultura, esporte e lazer, à
profissionalização e à proteção no trabalho (artigos 7° a 69 ECA).
Partimos do pressuposto de que somente podemos falar de
direitos quando, além de constitucionalizados e normatizados,
são passíveis de exigência e, principalmente, quando são real
e concretamente garantidos aos cidadãos. Assim, denominar as crianças e
adolescentes brasileiros como sujeitos de direitos tem um valor moral e
político considerável, mas na realidade não corresponde à situação concreta da
maioria da população infantil e jovem. Em outras palavras, tem uma eficácia
simbólica mas não instrumental.
A especificação dos direitos fundamentais das crianças e
adolescentes acompanha um processo mais geral que atinge também outras
parcialidades como idosos, mulheres, pessoas com vulnerabilidades específicas
expostas a restrições físicas e sociais (por exemplo, surdos, deficientes
físicos, etc.), povos indígenas, etc..
Não deixa de ser inovadora a
denominação de fundamentais a direitos legais e significa, sem dúvida, uma
intenção revolucionária com conteúdo simbólico, no sentido de atribuição de
direitos novos a novas parcelas da população, antes apartadas
da cidadania. De concreto, deixa esta intenção a
possibilidade de que se busquem mecanismos de exigibilidade destes direitos,
tanto como de todos os direitos fundamentais constitucionalizados.
Considerações finais
O Estatuto da Criança e do Adolescente é fruto de um processo
histórico de disputa entre distintas representações da infância desamparada. É
resultado de uma construção coletiva entre setores públicos e privados. Como
tal, é contraditório, pois reflexo e resultado desta correlação de forças.
Apresenta, como prova, ambigüidades de fundo que trazem implicações em seu
processo de implementação.
Se é verdade que o papel do Estado
em relação aos direitos fundamentais é muito mais determinante na efetivação
dos direitos da criança do que as representações de infância que os informam,
as perspectivas de implementação do ECA aparecem como múltiplas e
contraditórias, pois há uma ambigüidade de fundo entre diferentes visões de
Estado que aparecem no texto legal.
No movimento mais geral brasileiro de disputa pela realização
dos direitos humanos num contexto adverso moldado pelo projeto neo-liberal, o ECA apresenta uma eficácia simbólica
importante, tanto positiva, como bandeira de luta pela defesa dos direitos das
crianças e adolescentes, quanto negativa, ao não ser implementada e servir de
mecanismo de legitimação de um Estado que não cumpre seu papel de garantia
efetiva dos direitos fundamentais, frente à comunidade internacional.
Esta ineficácia instrumental do ECA
apresenta um caráter intencional evidente, no contexto atual de desmanche das
já escassas garantias constitucionais dos direitos fundamentais. Antes disso,
entretanto, já se observam os indícios da posição do Estado brasileiro em
buscar uma eficácia simbólica tanto em nível interno como internacional, como
demonstra a documentação sobre a participação do Brasil nos grupos de trabalho
e, principalmente, nas exposições de motivos de reservas e votos a instrumentos
internacionais e regionais sobre direitos humanos (Trindade 1998).
Apesar disso, grande parte do esforço em positivar direitos
fundamentais às crianças e adolescentes tem-se multiplicado em esforços cada
vez mais amplos e profundos em torno à sua implementação. A capacidade de
ampliação quantitativa e qualitativa da participação da sociedade na
elaboração, deliberação, gestão e controle das políticas para a infância, é a
chave política para a garantia da implementação da lei. A vontade política do
Estado, nesse sentido, poderia ser medida pelo grau de investimento na institucionalidade já legalmente instituída para esse fim,
e não necessariamente pela criação de novas e velhas políticas de assistência,
por mais democráticas que pareçam. Enquanto as instituições permanecerem
moldadas em matriz autoritária, pouco ou nada adiantarão retoques
administrativos ou técnicos mais ou menos criativos.
As finalidades do ECA aparecem
polarizadas principalmente em torno a duas lógicas coerentes com sua natureza
promocional, tendendo ora à proteção, ora ao controle social sobre a infância e
a adolescência e, consequentemente, as famílias e a
sociedade. Essa ambigüidade tende, na prática, a dar margem a
predominância do controle, ainda que inseridas em estratégias protetivas ou preventivas, o que demonstra a força da
representação social sobre a infância perigosa frente à infância em perigo.
A proteção integral da infância é um paradigma não totalmente
isento de ambigüidades e, desta forma, pode atender a diferentes projetos de
intervenção, de cunho mais ou menos tutelar ou autonomista. O fiel da balança
será seu correlato "sujeito de direitos", garantindo-se a
oportunidade de, protegida das ameaças e violações de seus direitos, a criança
poder desfrutar de toda a autonomia que sua condição de pessoa em
desenvolvimento físico, emocional e intelectual permitir.
A garantia dos direitos dos adolescentes em conflito com as
normas jurídicas não é violada apenas nas fases de execução das medidas
sócio-educativas, devido às péssimas condições das entidades de internação. Nem
tampouco pelo escasso empenho na implementação das medidas abertas e
semi-abertas. Há uma ambigüidade básica no próprio modelo de justiça juvenil
desenhado no ECA, que expõe uma questão tampouco
resolvida no plano internacional, que é entre um caráter mais penal e garantista e um caráter mais pedagógico e flexível. Ambos,
ainda, encontram-se contraditórios em relação com a realidade, onde não são
oferecidas nem garantias, nem educação ou proteção.
O direito é, ao mesmo tempo, instrumento e resultado de
transformações sociais. Não tem poder de, sozinho, transformar a realidade mas,
por outro lado, contribui tanto simbólica como instrumentalmente para essas
transformações. O ECA é exemplo disso, pois é
resultado de um processo histórico ao mesmo tempo em que implica em mudanças no
conteúdo, método e gestão das políticas para a infância e adolescência, tudo
pelo menos em nível formal. No movimento atual de defesa dos direitos da
criança no Brasil, adquire um caráter de bandeira de luta, simbolizando todo um
projeto de sociedade apoiado nos direitos humanos e no interesse primordial da
criança e do adolescente. Esse caráter, entretanto, favorece uma visão acrítica e fetichista da legislação que dificulta uma
análise mais profunda de seus limites enquanto mecanismo de transformação
social.
As políticas sociais, principais instrumentos de
implementação do ECA, apresentam-se de forma
aparentemente caótica, casual, pontual, enquanto iniciativas do poder público
de caráter assistencialista. De outro lado, aparecem como superficialmente
articuladas de forma lógica em função do discurso jurídico ou político que as
legitima. Entretanto, constituem-se em todos complexos e articulados de acordo
com razões globais mas determinadas pelas condições estruturais e conjunturais
em cada momento histórico.
Protetores e protegidos interagem a partir de situações
hegemonicamente definidas como de ameaça à ordem social. A intervenção provém
de estratégias repressivas, preventivas ou protetivas
para lidar com estas supostas demandas, através de meios cada vez mais
administrativos e informais, e menos judiciais e garantistas.
As práticas concretas que dão corpo a estas estratégias dirigem-se a remediar a
pobreza, compensar a violência ou promover os direitos individuais e
econômicos, sociais e culturais das crianças e adolescentes.
As perspectivas de implementação do ECA
se apresentam, à luz destas considerações, apoiadas na riqueza do texto legal e
no entusiasmo dos movimentos sociais de atendimento e defesa de direitos das
crianças e adolescentes. Têm sua via obstaculizada, entretanto, principalmente
pela determinação do governo em desresponsabilizar-se
da questão social, repassando à sociedade a sua parte do compromisso assumido
internacionalmente.
As perspectivas de investigação que surgem a partir deste
estudo são tão amplas que, seguramente, extrapolarão inclusive o projeto de
pesquisa para a elaboração da tese doutoral. Porque à riqueza de conceitos
inerentes à análise sócio-jurídica do texto do ECA
sobrepõe-se a riqueza de políticas, resultados, dificuldades, contradições,
obstáculos, potencialidades, etc. do contexto concreto de sua implementação,
que demandará um esforço considerável de trabalho de campo para uma aproximação
mais efetiva ao tema.
Numa avaliação breve, consideramos que o Brasil tem avançado
muito em nível normativo mas pouco em nível de efetiva garantia dos direitos
fundamentais, também no campo da infância e juventude. As expectativas mais
otimistas depositam justamente na sociedade, através de canais de participação
direta, suas esperanças de implementação do ECA, tanto
por pressão sobre o Estado como por sua própria iniciativa e criatividade.
Desde um ponto de vista pessimista, esta atitude termina por legitimar a meia
democracia institucionalizada no Brasil, ou seja, apoiada na participação mais
que na garantia dos direitos fundamentais.
Este trabalho situa-se como uma contribuição ao
enriquecimento do debate sobre os limites e possibilidades de implementação do ECA a partir de uma análise sócio jurídica do texto
legal, contextualizada no panorama histórico e atual das políticas para a
infância no Brasil. Não há primeiro e segundo passo. Há um único movimento
contraditório no qual o que importa é situar e buscar, com prioridade absoluta,
o interesse primordial da criança e do adolescente, nem fetichizando
a lei, nem justificando a realidade, senão criticando a primeira e tentando
constantemente transformar a segunda.
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