Este é
um Ensaio sobre a Defesa Criminal da criança e do adolescente no Brasil
OS
JOVENS: NÃO PUNIR SEM DIZER QUE
Edson Seda
Consultor Jurídico, educador.
"Os jovens: não punir sem dizer que punindo está, p'ra corrigir desvios..."(103º
e 104º Decassílabos da Cyclopaedia Terreal d'Avatares) "Per
me si va ne la città dolente..."(Commedia Dante Alighieri)
Sumário
1. você quer fazer alguma coisa?
3.
sobre o direito à liberdade
4.
sobre a cidadania da criança e do adolescente
5.
a reação da sociedade quando crianças e adolescentes praticam crime ou
contravenção
9.
a prisão da criança e do adolescente
11.
o que deve fazer a família e as comunidades quando da prisão do adolescente
12.
como garantir o advogado para quem é pobre
13.
poderes do advogado pra bem defender seu constituinte
14.
os primeiros problemas enfrentados na defesa
15.
os agentes e a autoridade pública da repressão criminal
16.
a prisão e os primeiros problemas da defesa
17.
o ajuste da conduta de delega dos, promotores e juízes ao estatuto
18.
o delegado, o acusado, o advogado e a apuração da infração criminal
19.
as medidas aplicáveis pelo juiz ao final do processo
20.
responder ao processo preso ou em liberdade?
21.
a função da assistência social no procedimento
22.
a crucial intervenção do promotor e o cuidadoso controle pelo advogado
23.
a fase judicial do processo de apuração
24.
a defesa dos adolescentes e as medidas socio-educativas
25. o terceiro imparcial e o direito de defesa
26. a iatrogenia jurídica,
burocrática e social
27. apelo às seções locais da OAB
1. Você
quer fazer alguma coisa?
Se você tem filho, vizinho, conhecido ou, mesmo não tendo,
quer fazer alguma coisa para defender adolescentes acusados de praticar crimes
(que pessoas muito complicadas dizem acusados
de praticar atos infracionais à lei criminal ), leia
este texto e procure nele as informações conceituais e operacionais que ajudem
a resolver o problema.
2. Conceito
de cidadania
Fique desde logo sabendo e adote firme atitude de fazer valer
o conceito de que, no Brasil, toda pessoa é livre para pensar, querer e fazer
tudo que lhe pareça melhor, desde que não prejudique a terceiros e aja de tal
forma que cada conduta sua possa servir de regra geral para a construção do bem
comum. Isso é cidadania (é uma das infinitas formas de definir a cidadania).
3. Sobre
o direito à liberdade
A partir do conceito de cidadania, assuma, leitor, o critério
de que todas as pessoas têm pleno direito à liberdade e que somente podem ser
punidas, presas (privadas ou constrangidas em sua liberdade), quando iniciam a
prática, estão praticando ou acabaram de praticar um ato que a lei descreva
detalhadamente como sendo um crime, também chamado delito, ou uma contravenção
penal ou, segundo os pernósticos: um ato infracional à lei criminal.
Ou, quando o tempo já tenha passado, muito depois da prática
do ato atribuído, acusado, imputado (no dia seguinte, por
exemplo, ou daí a uma semana) só podem ser presas ou constrangidas em
sua liberdade, quando uma investigação exponha provas de que o crime ou a
contravenção (ou dizendo de maneira complicada: de que o ato definido na lei
como crime ou contravenção) hajam sido praticados pela pessoa. Exemplo: Matar
alguém (prática delituosa denominada homicídio e descrita no artigo 121 do
Código Penal); Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante
grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio,
reduzido à impossibilidade de resistência (prática delituosa denominada roubo e
descrita no artigo 157 do Código Penal); Perturbar alguém o trabalho ou sossego
alheios: I - com gritaria ou algazarra; II - exercendo profissão incômoda ou
ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; III - abusando de instrumentos
sonoros ou sinais acústicos; IV - provocando ou não procurando impedir barulho
produzido por animal de que tem a guarda (prática definida como contravenção
contra a paz pública no artigo 42 da Lei das Contravenções Penais).
4. Sobre
a cidadania da criança e do adolescente
Saiba que com a Constituição de 1988 introduzimos toda
criança e todo adolescente no mundo da cidadania (fizemos das crianças e dos
adolescentes cidadãos brasileiros) em
sua plenitude. Antes, crianças e adolescentes eram considerados cidadãos do futuro. Com a Constituição,
proclamamos princípios e regras para que sejam respeitados como plenos cidadãos
do presente, com todos os direitos e deveres da cidadania (embora com
restrições, por razões de maturidade, como por exemplo: Menores de 35 anos não
podem ser senadores nem presidente da República; menores de 30 não podem ser
governadores; menores de 21 anos não podem livremente alienar seus bens sem
assistência dos pais; menores de 16 anos não podem votar, se quiserem, para
senador ou presidente; menores de 12 anos não podem ser punidos com medidas
sócio-educativas).
Todos somos maiores ou menores de idade para alguma coisa.
Mas todos, leitor, desde que possamos formular juízo próprio sobre um assunto,
podemos manifestar livremente esse juízo e nossa opinião deve ser levada em
conta. Quem não pode formular juízo próprio e agir segundo esse juízo é... irresponsável, é inculpável. Mas isso, quando há dúvida, se mede individualmente,
através de perícia pedagógica, psicológica, psiquiátrica (para definir se aquele sujeito tem condições de formular
juízo próprio, entender as coisas, e se determinar segundo esse entendimento).
Não tenha dúvidas quanto a isso: Veja o que diz a Convenção Internacional dos Direitos da Criança de
1989, de que o Brasil é signatário (tendo portanto exigibilidade
constitucional. Exigibilidade constitucional quer dizer: se você quiser fazer valer esse princípio, o Estado
brasileiro dispõe de mecanismos sociais, administrativos e judiciais para lhe
garantir isso):
Artigo 12: Os Estados Partes assegurarão à criança que
estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas
opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança,
levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e da
maturidade da criança.
A ciência do finado Século XX nos demonstrou que as pessoas
amadurecem progressivamente (não há amadurecimento instantâneo, seja aos
quatorze, dezoito ou trinta e cinco anos). O bebê, que grita para exigir seu
direito à alimentação e à vida, amadurece para hábitos, usos e costumes à
medida que vai sendo exigido progressivamente em seus direitos e em seus
deveres (a prática da vida mostra que, no que não for exigido, não aprende). Aprende a andar, andando,
a falar, falando, a nadar, nadando, a participar, participando, a respeitar,
respeitando, a ser responsável se responsabilizando.
Se somente for chamado a responsabilizar-se depois dos dezesseis, dezoito ou trinta e cinco anos,
não aprende (entre zero e dezesseis, dezoito ou trinta e cinco anos) a se
responsabilizar. O bebê aprende a entrar no mundo dos direitos e deveres...
entrando progressivamente no mundo dos direitos e deveres.
A criança aprende a formular juízos e a expressá-los, no
mundo da cidadania (ou no mundo da anticidadania: em
bandos, quadrilhas, tráfico), em seu processo de amadurecimento. Aprende a
respeitar e se responsabilizar, enfrentando reações do meio em que vive, que
limitam sua liberdade, sendo exigido em sua responsabilidade (Para aprender a
respeitar e a se responsabilizar, não pode fazer... o que quer, mas sim fazer o que respeita os direitos dos demais.
Não se pode dizer a uma criança ou a um jovem que ele é... di menor. Quando eles dizem isso é porque nós os adultos assim os
induzimos).
A prática nos ensina também que as pessoas amadurecem
desigualmente para situações desiguais na sociedade onde vivem de maneira
desigual... Daí serem exigidas de maneira desigual para serem punidas num
âmbito (família, pelos pais) ou em outros (escola, pelos professores ou
publicamente, pelo Estado) de uma forma (pena) ou de outra (medida socio-educativa); ou serem exigidas de maneira desigual
para votar; para firmar contratos; para ser... senador ou presidente. Veja,
leitor, o que diz o artigo 227 da Constituição de 1988:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão .
Veja o que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente:
Artigo 3º - A criança e o adolescente gozam de todos os
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção
integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes,
por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de
lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade .
Para que não haja dúvida sobre como interpretar esse artigo,
veja, leitor, o que diz o artigo sexto do mesmo Estatuto:
Art.6º - Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os
fins sociais e a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e
deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do
adolescente como pessoas em desenvolvimento .
Esses direitos e deveres individuais e coletivos mencionados
no artigo sexto são de todos: idosos, adultos, adolescentes e crianças,
levando-se em conta as peculiaridades de cada um. Ou seja, levando-se em conta
seu... amadurecimento. Mas o amadurecimento não é... instantâneo. Ele ocorre com as pessoas formulando juízos próprios e
expressando-os através de sua conduta e enfrentando reações, muitas vezes injustas, chamadas punições, quando agem ameaçando ou violando interesses de outras
pessoas (reações na família, na escola, nas organizações privadas comunitárias,
na grande organização social pública que é o ...Estado).
Bebês e crianças não expostas a microorganismos não criam anticorpos.
Não expostos às reações sociais que impõem limites, sem maltrato, não adquirem
as normas que vem de dentro de cada
um e geram cidadania e bem comum. Mas
com maltrato, enfrentando reações (punições) injustas o que adquirem são as normas que vem de dentro (endógenas) da anticidadania e da violência.
Não confundir punição com maltrato é portanto essencial. Pode-se restringir direitos, punindo, quando inevitável, sem
maltratar (seja em família, seja na escola, seja na convivência comunitária,
seja em âmbito público, por agentes do Estado). O ideal, claro, seria que
nenhuma punição existisse ou fosse necessária. Mas não vivemos no mundo dos
querubins e dos serafins. Vivemos no nosso mundo de
seres humanos. Erramos. Praticamos desvios de conduta. Devemos corrigir-nos
permanentemente. Na dinâmica instável das correções, as justas e as injustas,
construímos ou não o bem comum (de
que fala o artigo 6º do Estatuto).
Não se deve então punir, quando inevitavelmente se pune, sem
dizer que... se está punindo. Muitos fazem isso, não
tendo coragem de ser justo e pedagogicamente claro: - Puno-te por um ato reprovável e danoso. Ou de considerar que quando
se pune muito é porque se preparou pouco para a cidadania. E que talvez não se
haja demonstrado o suficiente a razão pela qual certos
atos são reprováveis. E não se ajudou a identificar danos para que, formando o
juízo próprio a que se refere com muita propriedade o artigo 12 da Convenção
mencionada, o aprendiz da cidadania construa seu caráter na dialética da vida.
Esse, leitor, possivelmente seja um resumo do que nos diz a
experiência histórica colhida na construção do conflitante estar social ao longo do finado Século XX, um século que talvez
tenha punido muito porque preparou pouco para a cidadania.
5. A
reação da sociedade quando crianças e adolescentes praticam crime ou
contravenção
Quando um cidadão é acusado da pratica de um ato que a lei
define como crime ou contravenção, a sociedade reage (através da ação do
Estado) prendendo o acusado, levando-o a julgamento, dando-lhe total, pleno e
irrestrito direito de defender-se. Isso é feito, primeiro para se apurar a certeza
de que realmente praticou danos com sua conduta. Se o dano ocorreu, na
desagradável tragédia da condição humana, para aplicar-lhe uma punição. De que
serve a punição?
Em geral (variando muito as preferências
pessoais) se diz que serve:
1. para
que o acusado, refletindo, não mais repita o dano praticado;
2. seja
exemplar para dissuadir que outros também o façam;
3. contribua
para defender a sociedade de práticas semelhantes;
4. sirva
como compensação ética na balança do sentimento social de justiça.
Mas não esquecer: Se uma pessoa, qualquer pessoa, de qualquer
idade (como consta da Convenção citada que tem, no Brasil, exigibilidade
constitucional) , não é capaz de formular juízo
próprio nem se determinar segundo esse juízo, ela não pode, quer dizer, não deve
ser punida. Isso porque o formular juízo, o querer e o agir integram a conduta
das pessoas e condicionam a responsabilidade que têm ou deixam de ter quando
agem ou deixam de agir.
No caso dos adultos, a polícia (que prende), o advogado (que
defende), o promotor de justiça (que acusa) e o juiz (que julga) seguem as
regras do Código Criminal (chamado no Brasil Código Penal) e no Código de
Processo Penal brasileiros. No caso das crianças e dos adolescentes, seguem as
regras do Estatuto da Criança e do Adolescente (com base em princípios de ambos
os Códigos citados, que existem para
defender a cidadania das arbitrariedades de quem quer punir) que detalharei
mais à frente.
Mas que fique claro: Tanto o Código Penal quanto o Código de
Processo Penal existem para defender o acusado de arbitrariedades, quando o
Estado quer punir alguém. Para que crianças e adolescentes tenham direito a
esses benefícios (e não sofram arbitrariedades), o Estatuto só aceita punições
para atos definidos no Código Penal (e suas leis irmãs) e determina que o
Código de Processo Penal seja usado subsidiariamente sempre que as normas
gerais do Estatuto - o Estatuto é um conjunto de normas gerais - forem
insuficientes.
6. O
que é uma punição?
Punição, castigo, emenda, correção é uma reação que alguém,
investido de autoridade, aplica a outra pessoa que infringe alguma regra de
conduta, obrigando o punido a se submeter a restrições em sua liberdade, como
compensação por um ato que o punido haja praticado em violação a regra de
conduta. Deixo isso bem claro aqui, leitor, porque em muitos casos estamos
punindo os meninos, rapazes, meninas e moças, mas douramos a pílula, negando
que o que praticamos seja punição. Expliquemos bem pois, para termos condição
de, conceituando com clareza, podermos encontrar formas de impor um paradeiro
nessa falsidade. A punição, na prática da vida, tem sido:
1. uma
restrição que pai ou mãe – usando,
mas às vezes, indevidamente, abusando
do pátrio poder - impõe ao filho;
2. um
castigo - previsto para uso, não para abuso, no regulamento da escola - quando
o aluno viola regra da sala de aula;
3. um
castigo ou penitência religiosa, quando o fiel viola regra de seu credo;
4. uma
restrição a algum grau de liberdade que o Estado, através de algum de seus
agentes, (autorizado a usar, não a abusar,
nem se omitir) impõe, quando o
cidadão viola regras legais.
No mundo dos crimes e das contravenções, há portanto reações
da sociedade a atos infracionais (atos que infringem
- olha aí leitor como entram na matéria - as regras criminais e
contravencionais), através das autoridades do Poder Público (autoridades do
Estado), que restringem o direito à liberdade garantido a crianças e
adolescentes no artigo 227 da Constituição.
Esse direito à liberdade é repetido no artigo terceiro do Estatuto quando diz
que "crianças e adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana", o mais fundamental dos quais, depois do
direito a não ser ameaçado em sua vida, é o direito
à liberdade.
Quando alguém - reagindo a algum ato da criança e do
adolescente que infringe uma regra de conduta - impõe a restrição ou a privação
da liberdade a essa criança ou a esse adolescente, está aplicando uma punição,
ou um castigo. Você vai encontrar pessoas, leitor, que fazem isso: reagem com
autoridade a uma conduta, impondo restrições à liberdade, mas negam que estejam
aplicando punição. Não gostam da palavra punir mas punem com sua conduta, dando outro nome. Esse é um dos problemas
das pessoas que querem se defender de arbitrariedades. Direi, em seguida, como
será o processo para apurar a acusação feita pelo Poder Público às crianças e
aos adolescentes; como pode ser feita a defesa do acusado; e quais as
conseqüências possíveis de tudo isso.
7. O
direito de defender-se
Veja, leitor, o que dizem o artigo 227, parágrafo terceiro e
o 228 da Constituição Brasileira de 1988:
Art. 227, § 3º - O direito (da criança e do adolescente) à
proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de
ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser
a legislação tutelar específica;
V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa
em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da
liberdade;
Art.228 . São penalmente inimputáveis os menores de dezoito
anos, sujeitos às normas da legislação especial .
Que quer dizer tudo isso? Procurarei explicar de forma bem
simples: Quer dizer que, na proteção especial à criança e ao adolescente, seis
princípios - entre outros - devem ser obedecidos:
I - Ter o direito de ser informado plena e formalmente de
qual é a acusação que lhe fazem quando for preso por alguma autoridade;
II - Ter o direito de não ser punido sem um processo que
apure e prove que realmente cometeu a ato que lhe atribuem (atribuir quer dizer
imputar, quer dizer acusar).
III - Ter o direito de ser defendido por um profissional
técnico habilitado (o advogado) em igualdade de condições com quem lhe atribui,
imputa, acusa de delito ou contravenção.
IV - Ter o direito de, quando lhe prenderem, essa prisão ser
breve, aplicada apenas excepcionalmente e respeitar sua condição de criança ou
de adolescente.
V - Ter o direito de dispor de um conjunto de regras
escritas, que tutelam direitos, baseadas nesses princípios, numa legislação específica
(que é o Estatuto da Criança e do Adolescente).
VI - Ter o direito de, com menos de dezoito anos, não receber
as penas atribuídas aos adultos quando punidos, sujeitando-se às punições
previstas na legislação especial, que é o Estatuto.
8. Ato
infracional
Já vimos que o direito à liberdade é universal, no mundo da
cidadania, ou seja, é um direito de todos: idosos, adultos, adolescentes e
crianças. Esse direito à liberdade só pode sofrer restrições por meio do
exercício legítimo da autoridade, por exemplo:
1.em casa pelos pais ou responsável, nos limites do pátrio
poder;
2.na escola pelo diretor ou professores, nos limites do
regulamento de ensino;
3.nas relações sociais em geral, nos limites da autoridade
pública que tenha competência para isso.
Essa competência é definida através das leis. Portanto, no
mundo social (em casa, na escola, nas ruas), há duas forças que se opõem: a
força da liberdade através da qual cada indivíduo, pensando e querendo por si
mesmo (com juízo próprio) age também
livremente por iniciativa própria; e a força da autoridade através da qual
alguém impõe a outra pessoa uma forma de ação que limita sua liberdade de agir.
Se você quiser usar a força da sua liberdade, leitor, e alguém, à força, quiser
impedi-lo, restringindo sua liberdade, esse alguém está praticando conta você
um constrangimento. Se essa forma de restringir a liberdade estiver autorizada
em lei, o constrangimento é legal, pois visa ao bem comum. Se não estiver
legalmente autorizada, será um crime praticado contra você, crime de
constrangimento ilegal.
Se você praticou um ato qualquer, leitor, usando a força da
sua liberdade e alguém quiser restringir sua liberdade, obrigando-o a fazer
coisas que você não quer, como compensação pela sua conduta, essa pessoa estará
lhe aplicando uma punição, um castigo, que pode ser ou não legal, conforme seu
autor aja de acordo ou em desacordo com a lei. Ou seja, a lei existe para que
tenhamos parâmetros exigíveis seja do uso da liberdade, seja do uso da
autoridade, em busca de um estar social
que possa ser entendido como o bem comum.
Nas democracias modernas e no Estado de Direito (em que se
vive com regras claras que definem o bem comum), as autoridades públicas só
podem restringir a liberdade dos cidadãos, prendendo, se eles praticam atos infracionais descritos nas leis criminais (ou
contravencionais, porque a contravenção é um crime pequeno, um crime anão).
No Brasil, idosos, adultos, adolescentes e crianças não podem
ser presos (restringidos, constrangidos, limitados em sua liberdade) senão por
atos infracionais às leis criminais.
Não se pode aqui, restringir liberdade, prendendo:
1. por
atos infracionais às regras de etiqueta;
2. infracionais às regras do Estatuto de um Clube;
3. infracionais às regras religiosas;
4. infracionais às regras inventadas ou criadas por alguém
fora das formalidades legais.
Daí, dizer o Estatuto:
Art.103 - Considera-se ato infracional
a conduta descrita como crime ou contravenção penal .
9. A prisão da criança e do
adolescente
Como em qualquer outro campo especializado, o mundo jurídico
(quer dizer o mundo dos direitos e dos deveres, ou o mundo do Direito) também
tem seus termos técnicos. O Estatuto da Criança e do Adolescente é um conjunto
de regras técnico-jurídicas para resolvermos problemas relacionados com
crianças e adolescentes respeitando os direitos dos adultos e da população
infanto-juvenil no mundo da cidadania aqui e agora. Isso está no artigo 6º do Estatuto que comanda as exigências do bem
comum através, sempre, da garantia dos direitos e dos deveres individuais e
coletivos de todos: idosos, adultos, adolescentes e crianças, em cada aplicação
das suas regras. Quando, para garantir o bem
comum, se autoriza o constrangimento do direito à liberdade de crianças e
adolescentes, o termo técnico para prender
no Estatuto é apreender. Apreender
criança ou adolescente quer dizer prender
criança ou adolescente.
10. A prisão da criança
Se alguma criança (0 a 12 anos) for flagrada praticando um
ato infracional da lei criminal (Código Penal ou
Contravenção Penal) ela será apreendida
e conduzida aos seus pais ou responsável civil (guardião ou tutor. Em regime de
abrigo, o responsável pelo programa é "guardião", segundo o parágrafo
único do artigo 92 do Estatuto) e o fato será comunicado ao Conselho Tutelar do
Município para que aplique as medidas previstas no artigo 101 do Estatuto. Notar, leitor, que
não há um só artigo do Estatuto que mande enviar criança ou adolescente ao
Conselho Tutelar. Ao longo deste texto se verá que se tomam as
providências corretas e devidas e se comunica ao Conselho Tutelar para que ele
zele pelos direitos em jogo. Leiamos o Estatuto:
Art.105 - Ao ato infracional (à lei
criminal segundo o artigo 103) praticado por criança corresponderão as medidas previstas no art101 .
Essas medidas possíveis, aplicadas pela autoridade
administrativa que é o Conselho Tutelar são as seguintes:
I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de
responsabilidade;
II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III - matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento
oficial de ensino fundamental;
IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxilio à família, à criança e ao adolescente;
V - requisição de tratamento médico, psicológico ou
psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;
VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio,
orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;
VII - abrigo em entidade;
VIII - colocação em família substituta.
PARÁGRAFO ÚNICO - O abrigo é medida provisória
e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em
família substituta, não implicando privação de liberdade.
Claro, que se a criança já foi encaminhada aos pais, depois
de atendida pelo Assistente Social, Psicólogo ou Pedagogo, ou auxiliar de
programa em regime de apoio sócio-educativo em meio aberto ou em regime de
orientação e apoio sócio-familiar (comunicando-se incontinente ao Conselho
Tutelar), este não vai mais aplicar a primeira dessas medidas aí mencionadas,
porque ela já se esgotou. Ninguém precisa de Conselho Tutelar para encaminhar
criança aos seus legítimos pais. Mas se ninguém encaminhou, ele encaminha.
Para a eventual colocação
em família substituta, o Conselho Tutelar, zelando pelos direitos em jogo,
enviará o caso ao Poder Judiciário (ver art. 148, par. único, a e b) para que se
abra o devido processo legal com amplo direito de defesa dos pais, através de
advogado constituído que trabalhará para evitar qualquer presunção de culpa. Essa presunção de culpa vem ocorrendo por falta
de advogado e defesa competente, como bem nos demonstrou o famoso escândalo de
Jundiaí de exportação de crianças para a Europa pelo Poder Judiciário, quando
por meras denúncias sem a devida apuração, mães foram liminarmente consideradas
culpadas. E punidas com a perda do pátrio poder. Para os estudos técnicos
necessários à execução de suas providências, o Conselho Tutelar poderá
requisitar serviços especializados, como prevê o artigo 136 do Estatuto: São
atribuições do Conselho Tutelar:
III - promover a execução de suas decisões, podendo para
tanto:
a) requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação,
serviço social, previdência, trabalho e segurança;
b) representar junto à autoridade judiciária nos casos de
descumprimento injustificado de suas deliberações .
Notar que quando a equipe interdisciplinar da área de serviço
social - em programa em regime de orientação e apoio sócio-familiar e em regime
de apoio educativo em meio aberto - não conta com bom advogado para orientar a
estratégia jurídica dos casos, a criança, o adolescente e sua família ficam sem defesa contra possíveis arbitrariedades.
Verificamos desse conjunto de normas que no Brasil, criança
(cidadão entre zero e doze anos) que pratica (ou é acusado de praticar) atos infracionais às leis criminais (Código Penal e Lei das
Contravenções Penais) pode ser presa para condução à sua residência ou a um
programa em regime de abrigo (por se tratar de situação excepcional e de
urgência, usar a norma do artigo 93. A autoridade a que se refere o artigo 93 é o Conselho Tutelar). A criança
acusada terá seu caso estudado por assistente social, psicólogo, pedagogo, etc.
etc., usando-se a integração operacional (polícia e assistência social) a que
se refere o artigo 88, V do Estatuto,
sob o zelo do Conselho Tutelar. Ver os artigos 93 e 131 do Estatuto:
Art.93 - As entidades que mantenham programa de abrigo
poderão, em caráter excepcional e de urgência, abrigar crianças e adolescentes
sem prévia determinação da autoridade competente, fazendo comunicação do fato
até o 2º dia útil imediato.
Art.131 - O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo,
não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos
direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei .
Notar que o Conselho Tutelar zela por direitos, mas não
usurpa (o que é crime) funções do assistente social, do pedagogo, do psicólogo,
nem tem poderes para constranger (o que é crime) a liberdade, ou privar a
liberdade de qualquer criança. O Conselho Tutelar não é um órgão repressor. O
órgão repressor é a Polícia. Escolas que querem punir alunos, estão enviando os
infratores de suas regras (as regras do regulamento da escola) ao Conselho
Tutelar. Não existe um só artigo do Estatuto que diga que deva ser assim ou se
aceite isso. Conselho Tutelar não substitui a polícia nem a faculdade da escola
de punir seus alunos segundo seu regulamento. Ele zela para que cada um faça o
que é da sua competência. Devemos portanto corrigir os desvios do Conselho
Tutelar que aceite esse papel repressor, cabendo ao advogado adotar medidas
administrativas e se for o caso judiciais, para repor as
coisas nos devidos lugares. A apuração dos aspectos policiais é da
polícia. Dos aspectos sociais é do profissional competente para isso, o
assistente social.
As famílias ou os programas das comunidades devem ficar
atentos, pois qualquer tentativa do Conselho Tutelar de constranger (crime
previsto no artigo 146 do Código Penal)
crianças ou seus familiares implica no imediato direito à defesa técnica por
profissional habilitado, que é o advogado. Cabe também ao advogado orientar
para que se tomem providências quando conselheiros queiram, em prejuízo da
criança, usurpar funções públicas (artigo 328 do Código Penal) ou praticar o
exercício ilegal de qualquer profissão (artigo 47 da Lei de Contravenções).
Cabe ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente como órgão máximo para isso, no município, deliberar e controlar
essas coisas, definindo como existirão programas públicos, com advogado, em
regime de "orientação e apoio socio-familiar"
e em regime de "apoio socio-educativo em meio
aberto" (previstos no artigo 90 do Estatuto). E como tais
programas terão (além de advogado, que é o especialista no mundo jurídico)
assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, auxiliares (ou voluntários
supervisionados, onde inexistam os profissionais) que serão acionados
imediatamente para atender a criança acusada da prática de ato infracional à lei criminal (da mesma forma que o advogado é
acionado para a hipótese do acusado ser adolescente).
Se houver abuso, cabe ao advogado do programa colocar freios
e contrapesos aos possíveis excessos ou omissões do Conselho Tutelar (seja em
nível social, administrativo ou judicial). As famílias de comunidades pobres
que participam de programas comunitários na organização social devem insistir
para que os profissionais existam, os programas existam, e o atendimento à
criança seja feito de forma adequada (nos municípios onde inexistam
profissionais, repito, preparam-se voluntários sob supervisão de um técnico,
por exemplo, de município, vizinho ou não, melhor dotado).
O Estatuto prevê um Fundo Público (artigo 88, IV) para financiar esses
programas "de proteção". Essas famílias precisam ter acesso a esse
conhecimento. Para tanto, alguém deve criar programas que orientem nesse
sentido as famílias e as comunidades. Não há que ficar esperando a burocracia
agir. A burocracia (toda burocracia) é burra. Inteligentes são as pessoas. Há
que criar os programas e levá-los ao Conselho Municipal para que sejam
oficializados, garantida a autonomia de ação prevista no:
Art.90 - As entidades de atendimento são responsáveis pela
manutenção das próprias unidades, assim como pelo planejamento e execução de
programas de proteção e sócio-educativos destinados a crianças e adolescentes,
em regime de:
I - orientação e apoio sócio-familiar;
II - apoio sócio-educativo em meio aberto;
III - colocação familiar;
IV - abrigo;
V - liberdade assistida;
VI - semiliberdade;
VII – internação.
PARÁGRAFO ÚNICO - As entidades governamentais e
não-Governamentais deverão proceder a inscrição de
seus programas, especificando os regimes de atendimento, na forma definida
neste artigo, junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente, o qual manterá registro das inscrições e de suas alterações, do
que fará comunicação ao Conselho Tutelar e à autoridade judiciária .
11. O que deve fazer a
família e as comunidades quando da prisão do adolescente
Todo cidadão preso, de tudo que foi dito acima, tem direito
amplo, total e irrestrito de ser assistido por um advogado. No caso do
adolescente, vejamos quais os cuidados a serem adotados: O Estatuto diz que ele
deve ser imediatamente encaminhado ao Delegado de Polícia, quando preso em
flagrante. Esse Delegado pode ser especializado. Isso se dá quando existe uma
Delegacia Especializada para Adolescentes acusados da prática criminal,
separada das que recebem os acusados adultos. Quando não há a Delegacia
Especializada, atenderá o mesmo delegado que atende os adultos. As famílias e
as comunidades interessadas devem saber a que advogado vão recorrer para a
defesa de seus jovens.
Quando a família tem recursos, ela procura imediatamente o
advogado de sua confiança. Mas as famílias muito pobres não sabem a quem
recorrer, do que decorre o perigo de o adolescente acusado ficar sem defesa.
Isso é grave. É muito grave. Não podemos aceitar o princípio de que para os
ricos, todos os direitos garantidos, para os pobres... a burocracia. O Estatuto
diz que o município (princípio da municipalização) deve garantir às famílias
pobres o advogado e a proteção social que os ricos pagam com o vil metal.
A presença do advogado é fundamental. Ver o que diz o
Estatuto:
Art.206 - A criança ou o adolescente, seus pais ou
responsável, e qualquer pessoa que tenha legítimo interesse na solução da lide
poderão intervir nos procedimentos de que trata esta Lei, através de advogado,
o qual será intimado para todos os atos, pessoalmente ou por publicação
oficial, respeitado o segredo de justiça.
PARÁGRAFO ÚNICO - Será prestada
assistência judiciária integral e gratuita àqueles que dela necessitarem .
Art.207 - Nenhum adolescente a quem se atribua a prática de ato infracional,
ainda que ausente ou foragido, será processado sem defensor .
§ 1º - Se o adolescente não tiver defensor, ser-lhes-á
nomeado pelo juiz, ressalvado o direito de, a todo tempo, constituir outro de
sua preferência .
§ 2º - A ausência do defensor não determinará o adiamento de
nenhum ato do processo, devendo o juiz nomear substituto, ainda que
provisoriamente, ou para o só efeito do ato .
§ 3º - Será dispensada a outorga de mandato, quando se tratar
de defensor nomeado ou, sido constituído, tiver sido indicado por ocasião de
ato formal com a presença da autoridade judiciária .
Art.88 - São diretrizes da política de atendimento:
I - municipalização do atendimento;
12. Como garantir o advogado
para quem é pobre
O problema que estamos enfrentando é o seguinte: O Estado,
através de autoridades públicas quer punir o adolescente. Tem a pretensão de
punir o adolescente. A Constituição e o Estatuto garantem que o adolescente tem
o direito de resistir a eventuais punições injustas, defendendo-se no processo.
Para que o Estado obtenha a punição que pretende, e para se aquilatar se ela é
justa, o ato objeto da acusação (quer dizer, da imputação, da atribuição) feita
ao adolescente deve ser inicialmente apurado em procedimentos que envolvem a
autoridade policial, depois o promotor e em seguida o juiz. Quem presta
assistência técnica para controlar que o policial, o promotor e o juiz fiquem
nos limites do que diz a lei (a lei é o conjunto de regras do processo de
apuração) é o advogado do adolescente.
O advogado é aquele que vai ajudar o adolescente a por freios no exercício da autoridade dos três (delegado,
promotor e juiz). O advogado é aquele que vai, na balança da justiça, fazer o
contrapeso a todo possível abuso de autoridade dos três (delegado, promotor e
juiz) e a toda possível omissão dos mesmos, no processo que apura se o
adolescente foi mesmo o autor da prática imputada, atribuída,
acusada primeiro pelo delegado, depois pelo promotor e finalmente
julgada pelo juiz.
As famílias ricas telefonam para seu advogado e ele vai
imediatamente cumprir seu dever na defesa do adolescente acusado da prática de
ato infracional à lei criminal. Verifiquemos de novo
o que diz o Estatuto:
Art.103 - Considera-se ato infracional
a conduta descrita como crime ou contravenção penal .
As famílias pobres devem, na organização comunitária de que
participam, fazer com que os programas em regime de "orientação e apoio
sócio-familiar" e em regime de "apoio socio-educativo
em meio aberto" tenham sempre um advogado a quem possam recorrer (a quem
possam telefonar, como fazem os ricos) nessas circunstâncias emergenciais.
Famílias que não participam de organizações comunitárias, e
organizações comunitárias que não organizam programas em regime de
"orientação e apoio sócio-familiar" e em regime de "apoio socio-educativo em meio aberto" que
tenham advogado ou advogados a quem possam recorrer nas emergências,
ficam sem defesa. Portanto sem advogado seus filhos, seus jovens, quando
acusados, não têm como, atendidas suas próprias peculiaridades, impor os freios
e os contrapesos legais ao exercício das autoridades públicas que os acusam de
haver praticado atos que a lei diz ser crime ou contravenção.
Só as próprias comunidades e suas famílias
sabem dos horrores por que passam quando autoridades do município, omitindo-se,
furtam-se ao dever de ali manter programas (obrigatórios) de orientação e apoio
sócio-familiar e apoio sócio-educativo em meio aberto, para ajudá-las (com
eficácia) a retirar ou não permitir a submissão de seus jovens aos bandos, ao
tráfico e às quadrilhas. Essa falha condiciona a conduta dos jovens. O
princípio da municipalização torna as omissas autoridades municipais
verdadeiras co-responsáveis, por omissão, da prática, pelos jovens, de atos que
são crimes ou contravenções. Tudo isso compõe a estratégia da defesa dos
adolescentes acusados...
Notar que o Estatuto diz que o juiz pode nomear um
substituto, mas nem sempre, ou quase nunca, esse substituto (principalmente
quando burocratizado, quando institucionalizado) faz a defesa com garra, com
determinação, com compromisso profissional do mais alto rigor, por um ângulo de
enfoque das próprias comunidades negligenciadas, ameaçadas e violadas em seus
direitos difusos (direitos públicos exigíveis, mas cujos titulares ou sujeitos,
difusamente distribuídos, não se pode desde logo individualizar).
Corre-se o perigo, que não é infreqüente,
de se estabelecer "um conchavo" entre delegado, promotor, juiz e
advogado, e o menino, a menina, o rapaz, a moça, acabam ficando sem a defesa
técnica adequada. Sem levarmos em conta que o Código de ética do advogado não
aceita que ele ajude juiz e promotor a praticar atos do procedimento de
apuração sem profundo conhecimento dos autos e da condição peculiar do acusado;
e sem aquilatar integralmente das conseqüências potencialmente danosas ao
acusado dessa intervenção.
O bom advogado é sempre insuportável para delegados,
promotores e juizes, quando estes querem praticar ou efetivamente praticam
abusos ou omissões danosas aos acusados (daí a praxe brasileira de delegados e
promotores evitarem advogados, quando as famílias, por pobreza, não podem ou
não sabem ter acesso a um). Da mesma forma, os bons delegados, promotores e
juizes são insuportáveis para os que querem se beneficiar do mundo do crime ou
da contravenção. Na garantia do bem comum
é insuportável que o crime e a contravenção produzam benefícios para
alguém.
Mas como seres humanos, todos eles podem cometer erros. O
principal erro aí é fazer do processo de apuração uma ação entre amigos por
parte de delegado, advogado, promotor e juiz. O mundo da apuração criminal é o
mundo das mais sórdidas mazelas do ser humano (é o mundo dos danos, da
violência, dos ardis, das simulações, da agressão à verdade). O processo é
(deve ser) rigorosamente contraditório, com todos os choques, discordâncias e
instabilidades próprias da condição humana. Mas sempre com lealdade, respeito mútuo e ética. O que nunca, em lugar algum, é fácil. Daí a
tentação dos eufemistas de enfeitá-lo quando os
envolvidos são crianças e adolescentes. Desse enfeite, o que resulta, é a falta
de defesa plena do acusado...
13. Poderes do advogado para
bem defender seu constituinte
Vejamos, leitor, algumas das coisas que diz a lei 8.906 de 4
de julho de 1994 que aprova o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do
Brasil:
Art.1º. São atividades privativas de advocacia:
I - a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais.
Art.2º - O advogado é indispensável à administração da
justiça.
§ 1º - No seu ministério privado, o advogado presta serviço
público e exerce função social.
§ 2º - No processo judicial o advogado contribui, na
postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do
julgador, e seus atos constituem múnus público.
Art.6 º - Não há hierarquia nem subordinação entre advogados,
magistrados e membros do Ministério Público, devendo-se todos consideração e
respeito recíprocos.
Parágrafo único - As autoridades, os servidores públicos e os
serventuários da justiça devem dispensar ao advogado, no exercício da
profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições
adequadas a seu desempenho.
Art.7º. São direitos do advogado:
I - exercer, com liberdade, a profissão em todo o território
nacional;
III - comunicar-se com seus constituintes, pessoal e
reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos
ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados
incomunicáveis;
VI - ingressar livremente: nas salas de sessões dos
tribunais, mesmo além dos cancelos que separem a parte reservada aos
magistrados; nas salas e dependência de audiências, secretarias, cartórios,
ofícios de justiça, serviços notariais e de registro, e, no caso de delegacias
e prisões, mesmo fora da hora de expediente e independentemente da presença de
seus titulares;- em qualquer edifício ou recinto em que funcione repartição
judicial ou outro serviço público onde o advogado deva praticar ato ou colher
prova ou informação útil ao exercício da atividade profissional, dentro do
expediente ou fora dele, e ser atendido, desde que se ache presente qualquer
servidor ou empregado; em qualquer assembléia ou reunião de que participe ou
possa participar o seu cliente, ou perante a qual este deva comparecer, desde
que munido de poderes especiais;
VII - permanecer sentado ou em pé e retirar-se de quaisquer
locais indicados no inciso anterior, independentemente de licença;
VIII - dirigir-se diretamente aos magistrados nas salas e
gabinetes de trabalho, independentemente de horário previamente marcado ou
outra condição, observando-se a ordem de chegada;
IX - sustentar oralmente as razões de qualquer recurso ou
processo, nas sessões de julgamento, após o voto do relator, em instância
judicial ou administrativa, pelo prazo de quinze minutos, salvo se prazo maior
for concedido;
X - usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou
tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida
surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento,
bem como para replicar acusação ou censura que lhe forem feitas;
XI - reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer
juízo, tribunal ou autoridade, contra inobservância de preceito de lei,
regulamento ou regimento;
XII - falar, sentado ou em pé, em juízo, tribunal ou órgão de
deliberação coletiva da Administração Pública ou do Poder Legislativo;
§ 2º - O advogado tem imunidade profissional, não
constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de
sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo
das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer.
§ 4º - O Poder Judiciário e o Poder Executivo devem instalar,
em todos os juizados, fóruns, tribunais, delegacias de polícia e presídios,
salas especiais permanentes para os advogados, com uso e controle assegurados à
OAB.
14. Os primeiros problemas
enfrentados na defesa
Os primeiros problemas que o adolescente vem enfrentando no
Brasil, para defender-se das acusações, das imputações, das atribuições que lhe
fazem de que cometeu um ato que é delito são os seguintes:
1. O
agente do Estado prende mas nega que o adolescente esteja preso; (não, dizem, ele está só
apreendido; ou: ele está sendo... protegido).
2. Acusa-o
de haver praticado crime, mas nega que esteja acusado da prática de crime;
(não, dizem, adolescente não pratica crime. Só
pratica... ato infracional).
3. 3.
Submete-o a processo criminal, mas nega que esteja submetido a processo
criminal; (não, como disse a Dra. S.R. do Ministério Público de São Paulo à TV
Cultura em 16 de setembro de 1999: o Estatuto é lei civil).
4. Imputa-lhe
uma culpa, mas nega que o que esteja em jogo seja a culpa; (não, dizem,
adolescente não tem culpa. Culpados, só os maiores de 18 anos).
5. Quer
aplicar-lhe uma punição, mas nega que o que quer aplicar seja... punição; (não,
dizem, o Estatuto não prevê punição, prevê... medida socio-educativa).
6. Aceita
que o adolescente tem direito à defesa, mas nega, na prática, o direito à
defesa; (não, dizem: segundo o Estatuto, o adolescente não tem o direito a
defender-se dos abusos do delegado, nem do promotor. O advogado deve intervir
apenas perante o juiz).
Complicado, não? É por isso que, se não preparamos bons
advogados para defender pessoas pobres, os adolescentes pobres continuarão a
ser massacrados pelo Estado inquisidor, interventor, violador
dos direitos humanos. Para cada um dos problemas acima apresentarei, ao longo
deste texto, o modo de enfrentá-lo. Siga, leitor, o conjunto de argumentos que
se seguem:
15. Os agentes e a
autoridade pública da repressão criminal
Afora a hipótese em que o juiz expede ordem de prisão
fundamentada em provas obtidas numa investigação prévia, só se pode prender em
flagrante. Ou seja, quando o adolescente iniciou a prática, está praticando, ou
acabou de praticar o ato que a lei descreve como delito (Código Penal ou leis
ditas extravagantes) ou contravenção
(Lei das Contravenções Penais). No Brasil, qualquer cidadão pode dar ordem de
prisão nessas circunstâncias. Mas pode ser perigoso.
O agente público hoje (até que se unifiquem as polícias) que
tem o dever de até arriscar a vida para isso é o Policial
Militar, que faz a ronda ostensiva e exerce a prevenção e a repressão
(autorizado a fazer o uso da
repressão, não o abuso) ao crime
(pode ser o policial civil também, mas a função da Polícia Civil é
investigante). A autoridade pública que vai apreciar se dá ou não inicio ao
processo, para apurar se a acusação é correta ou não em cada caso, é o Delegado
de Polícia.
Notar que estamos no campo da repressão criminal (os eufemistas fazem um tremendo contorcionismo
conceitual e social para evitar a palavra repressão
e a palavra criminal). O Policial
Militar é legitimado para reprimir (conter, imobilizar, impedir, fazer cessar)
os atos praticados por idosos, adultos, adolescentes e crianças que a lei diga
serem infracionais da lei criminal. Não é portanto
correto dizer que crianças e adolescentes não podem ser reprimidos, presos,
quando cometem atos que, por definição, são crimes.
Evidentemente que o policial militar ou o delegado vão fazer o uso não sendo autorizados a praticar o abuso da repressão ao crime (o que vale,
como já disse nos capítulos anteriores, para idosos, adultos, adolescentes e
crianças). Os órgãos policiais devem fazer tudo o que for possível para
prevenir e para reprimir a prática de crimes ou contravenções. Sem omissões e
sem abusos. Veja também, leitor, o que diz a Constituição Federal de 1988:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e
responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
"..."
16. A prisão e os primeiros
problemas da defesa
Problemas da defesa relacionados à
prisão: O primeiro deles se dá, por incrível que pareça, quando o delegado
(apoiado pelo promotor e incrivelmente, vou repetir, incrivelmente, por muitos
juizes) diz que o advogado, segundo o Estatuto, só pode atuar, quando o caso
chega às mãos do juiz. Isso vem acontecendo (de 1990 até o ano 2000). Essa
prática significa simplesmente: denegação de defesa. Que razões misteriosas são essas, leitor, que fizeram perdurarem por dez anos as
velhas práticas do Código de Menores, em violação às normas da Constituição e
do Estatuto?
Tudo indica que, por um lado, devemos esses desvios à
resistência dos autocratas ao ar fresco da cidadania, eles que antes haviam se
acostumado ao ar viciado e malsão dos porões. Por outro, aí ainda está a
resistência das burocracias corporativas aos autênticos programas que estimulam
a participação cidadã e orientam as populações para as práticas democráticas,
livres da peia burocrática. Para espancarmos esses males, veja, leitor, que o
parágrafo terceiro do artigo 227 da Constituição (citado no
capítulo 7 deste) diz que crianças e adolescentes têm direito à "igualdade
na relação processual".
Que relação processual é essa? É a relação que se estabelece
entre as partes (acusação - também chamada imputação ou atribuição - e defesa),
sob a condução de um terceiro imparcial
que é o juiz, para apurar se o adolescente cometeu ou não cometeu o ato que lhe
é atribuído, imputado, de que é acusado. Igualdade aí quer dizer: a cada ato
praticado por uma parte há o correspondente controle da outra. A relação
processual (no caso, para apurar o ato infracional)
se faz sempre através de intervenções tópicas chamadas procedimentos. Veja, caro e paciente amigo, o que diz o Estatuto:
Capítulo III: Dos procedimentos
Seção V - Da Apuração de Ato Infracional
Atribuído a Adolescente
Art.171 - O adolescente por força de ordem judicial será,
desde logo, encaminhado à autoridade judiciária .
Art.172 - O adolescente apreendido em flagrante de ato infracional será, desde logo, encaminhado à autoridade
policial competente.
Art.206 - A criança ou o adolescente, seus pais ou
responsável, e qualquer pessoa que tenha legítimo interesse na solução da lide
poderão intervir nos procedimentos de que trata esta Lei, através de advogado,
o qual será intimado para todos os atos, pessoalmente ou por publicação
oficial, respeitado o segredo de justiça.
Notar, leitor, a palavra procedimentos no título do Capítulo
III e no texto do artigo 206 onde dizemos (através da lei) onde intervém o ...
advogado. O processo de apuração começa, no capítulo dos procedimentos..., com o delegado. Perante ele, desde logo, o
advogado impõe a relação contraditória. Através do artigo 206, o povo
brasileiro, autor do Estatuto, diz que o advogado intervém nos procedimentos,
ou seja, intervém em cada procedimento. Isso não é mero detalhe. É a própria
essência da defesa.
Tomemos uma arbitrariedade clássica, milhares
de vezes repetida pelo Brasil afora nesses dez anos: O delegado (ou
outro funcionário qualquer) prende o adolescente, ou mantém a prisão sem
respeitar as formalidades legais que existem para defender o acusado de
arbitrariedades. O advogado, impondo o que lhe faculta o artigo 206, intervém
interpondo habeas corpus e denunciando criminalmente o
delegado (ou o outro agente arbitrário) por violar os artigos 230, 231 e 232 do Estatuto e o artigo 146 do Código Penal. Um dos direitos
de quem é acusado é o de não ser obrigado a produzir provas contra si mesmo. As
provas devem ser produzidas pelo delegado e pelo promotor, que acusam. Sem o
advogado, rapazes e moças vêm sistematicamente sendo submetidos a
constrangimentos e à obrigação ilegal de produzir provas contra si mesmos
(obrigados a confessar, dizer ou deixar de dizer coisas que o delegado, o
promotor e em seguida o juiz usam contra eles, acusados...).
Como o advogado intervém logo no primeiro ato dos procedimentos de que falam o
capítulo III e o artigo 206? Leiamos o Estatuto da Advocacia já mencionado aqui
antes: Art.7º - São direitos do
advogado:
I - exercer, com liberdade, a profissão em todo o território
nacional;
III - comunicar-se com seus clientes, pessoal e
reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos
ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados
incomunicáveis;
§ 4º - O Poder Judiciário e o Poder Executivo devem instalar,
em todos os juizados, fóruns, tribunais, delegacias de polícia e presídios,
salas especiais permanentes para os advogados, com uso e controle assegurados à
OAB.
Como pode um delegado, um promotor, um juiz, defenderem o
argumento de que é vedado ao advogado exercer esse munus público de que fala a lei, em defesa de seu cliente? Observe,
leitor, que isso só tem sido possível porque delegados, promotores e juizes que
agem assim (há os que não o fazem) consideram os adolescentes como não cidadãos
e não detentores dos direitos a que se refere o Estatuto (da Criança e do
Adolescente, não o da advocacia) em seu...
Artigo 3º - A criança e o adolescente gozam de todos os
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção
integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes,
por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de
lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade .
Isso tem sido possível, também, quando os Conselhos
Municipais dos Direitos da Criança, nesses dez anos, negligentemente, vêm
deixando de forçar o ajuste da conduta de delegados, promotores e juizes aos
princípios do artigo 88, V do Estatuto, como direi logo mais e, consequentemente, de organizar o serviço social integrado à
delegacia, para que haja sempre um assistente social, ou outro profissional ou
voluntário dando a proteção de que fala a Constituição brasileira:
Art.203 . A assistência social será prestada a quem dela
necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por
objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à
adolescência e à velhice.
Quem acusa, quer punir e deve provar é o Estado. Para o
acusado há a presunção de inocência.
Inocência quer dizer ausência de culpa. Ausência de culpa pode ser a de não
haver praticado o ato imputado; ou, tendo praticado, não o ter feito por
vontade própria; ou tendo-o feito, não ser exigível em outra conduta por estar
em estado de necessidade; ou não ser
exigível em outra conduta por estar de alguma forma (inclusive por pressão do
meio) constrangido ou arraigadamente condicionado em sua liberdade de decidir,
ou desprotegido por programa (que é obrigatório, não pode deixar de existir) em
regime de orientação e apoio sócio-familiar ou em regime de apoio
sócio-educativo em meio aberto (notar bem: ambos programas não punitivos) etc.
etc..
Só um bom advogado conhece os meandros técnicos para resistir
às pretensões do Estado de punir e argumentar em defesa da liberdade de seu
cliente. Vamos reler outra vez o que diz um artigo do Estatuto dos Advogados do
Brasil:
Art. 2º. O advogado é indispensável à administração da
justiça.
§ 1º - No seu ministério privado, o advogado presta serviço
público e exerce função social.
§ 2º - O estagiário de advocacia, regularmente inscrito, pode
praticar os atos previstos no artigo 1º, na
forma do Regulamento Geral, em conjunto com advogado e sob a responsabilidade
deste.
Veja também mais uma vez, leitor, o que diz o Estatuto:
Art.152 - Aos procedimentos regulados nesta lei aplicam-se
subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação processual pertinente
.
Isso significa: Quando as regras dos procedimentos presentes
no processo de apuração do ato infracional criminal
do Estatuto forem insuficientes, aplicam-se, no caso, as regras do Código de
Processo Criminal (chamado no Brasil, Código de Processo Penal). Conseqüência
prática: O Código de Processo Penal é instrumento subsidiário de defesa ampla,
total e irrestrita a ser utilizado pelo advogado do adolescente acusado.
Qualquer possível jurisprudência em contrario deve ser levada à revogação,
utilizando o advogado os argumentos técnicos de última geração mais precisos e
competentes.
Um segundo problema inicial é o seguinte: Rapazes e moças vêm
sendo presos (constrangidos em sua liberdade) com a acusação de praticar atos que não são infracionais
à lei criminal. A infração de que trata a Constituição e o Estatuto é a
infração criminal. Não é qualquer infração. Não é qualquer ato infracional. Não. Trata-se de uma categoria específica de infração:
a infração criminal, gênero de que são espécies o crime (ou delito) e a
contravenção penal. Quando pratica uma delas, o adolescente pode ser acusado e
processado. Quando não as pratica, não pode ser constrangido em sua liberdade.
Por exemplo: Tenho em meus arquivos centenas de queixas
relacionadas a adolescentes que são constrangidos (pela polícia, por
comissários, por juizes) em sua liberdade por
beberem álcool (há até brigadas de conselheiros tutelares - coisa
inconcebível diante das normas do Estatuto - com colete tipo
policial, forçados por juizes - violando o artigo 110 - delegados e
promotores a arbitrariamente constranger adolescentes em sua liberdade, por beberem ou praticarem qualquer outra
conduta sem a tipicidade do ato criminal).
Beber álcool não é crime, nem contravenção. Criança e
adolescente só podem ser constrangidos em sua liberdade se estiverem praticando
crime ou contravenção. Crime comete quem
vende ou fornece, sem justa causa,
bebida alcoólica, cigarros e outras substâncias nocivas (artigo 243 do
Estatuto). Veja o que diz o Estatuto:
Art.106 - Nenhum adolescente será privado de sua liberdade
senão em flagrante de ato infracional ou por ordem
escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente .
Art.110- Nenhum adolescente será privado de sua liberdade sem
o devido processo legal
.
Art.108 - A internação, antes da sentença, pode ser
determinada pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias .
PARÁGRAFO ÚNICO - A decisão deverá ser fundamentada e
basear-se em indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a
necessidade imperiosa da medida .
Art.230 - Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade,
procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional
ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente: Pena -
detenção de seis meses a dois anos .
PARÁGRAFO ÚNICO - Incide na mesma pena aquele que procede à
apreensão sem observância das formalidades legais.
Art.231 - Deixar a autoridade policial responsável pela
apreensão de criança ou adolescente de fazer imediata comunicação à autoridade
judiciária competente e à família do aprendido ou à pessoa por ele indicada:
Pena - detenção de seis meses a dois anos .
Art.232 - Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade,
guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento: Pena - detenção de seis
meses a dois anos .
Veja o que diz o Código Penal:
Constrangimento ilegal – Art.146 . Constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por
qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei
permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1
(um) ano, ou multa .
O que anda acontecendo quando da prisão de rapazes e moças
pobres que não praticaram o ato infracional criminal?
Embora possam ter cometido outros atos infracionais
não criminais e portanto não puníveis. Por não disporem do
advogado desde o início do processo de apuração, ficam sem defesa e
acabam submetidos aos abusos de constrangimento e descumprimento das
formalidades legais. Vejamos as formalidades legais que não podem ser
desprezadas por delegado e promotor quando o adolescente é preso (artigo 111 do Estatuto):
1. Ser
o adolescente informado claramente sobre o crime ou contravenção de que é
acusado (que lhe é atribuído, que lhe é imputado);
2. Ser
avisado de que tem direito a defesa técnica por advogado;
3. Serem
avisados seus pais ou a pessoa pelo adolescente indicada, assim como o juiz,
acerca do local em que está preso;
4. Não
ser privado de liberdade sem o devido
processo legal.
E mais: os autores dos abusos, aí incluídos o delegado e o
promotor e muitas vezes - por incrível que pareça - o próprio juiz (expedindo
portaria como se fosse legislador violando o princípio do devido processo
legal), deixam de ser responsabilizados (nos termos dos referidos artigos 230, 231, 232 e 146. E principalmente o artigo 110: Nenhum adolescente será privado
de sua liberdade sem o devido processo legal), repetindo, deixam de ser
responsabilizados porque não há advogado que promova os freios e os contrapesos
mencionados no capítulo 12.
17. O ajuste da conduta de
delega dos, promotores e juizes ao Estatuto
Para que a cidadania disponha de serviços eficientes e eficazes
para fazer valer tudo isso, o Estatuto expõe alguns princípios básicos. Um
deles é o seguinte:
Art.88 - São diretrizes da política de atendimento:
V - integração operacional de órgãos do Judiciário,
Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social,
preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização do atendimento
inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional;
Nesses termos, é obrigatório que as pessoas de poucos recursos
ou parca informação sobre seus direitos tenham a possibilidade, quando o
adolescente é levado perante o delegado, de contar imediatamente com serviço de
defensoria e de assistência social. Há que haver pelo menos dois profissionais,
além do delegado (que inicia o processo de apuração do ato infracional
criminal e de sua autoria), que orientem o acusado adolescente, logo no inicio
dos procedimentos: um advogado (ou estagiário) e um assistente social (ou um
voluntário orientado e supervisionado, nos municípios em que não existem
assistentes sociais). Pelo menos. Claro que advogado e assistente social não
são burocratas a ficarem sentados num guichê como um estafermo. Não. Serão
chamados a atender o caso, onde estiverem, como ocorre em qualquer lugar (organizado)
do mundo. As regras do Estatuto existem exatamente para criar organização
social.
O que anda ocorrendo na prática? Os que dizem (eufemistas) que não há culpa a apurar, que o adolescente é
"menor" e portanto incapaz, que deve "obrigatoriamente"
fazer coisas para ser protegido (mesmo que não queira essa proteção), etc.
etc., metem o conselho tutelar nesse assunto. Querem que o conselho tutelar
pratique constrangimento ilegal (que como se viu acima é crime), mas negam que
seja constrangimento, obrigando o adolescente a fazer o que não quer (ir para
casa, ser abrigado, etc.)
Ninguém pode obrigar
alguém a abrigar-se porque abrigar não é privar de liberdade. Pode aconselhar, convidar,
convencer (usando técnicas de psicologia e de relações humanas). Daí a
necessidade de um assistente social, de um psicólogo ou outro profissional
tecnicamente capacitado para encaminhar esses casos limites, desde o inicio dos
procedimentos. Ou a necessidade, nos municípios sem esses profissionais, de que
existam voluntários de alguma forma treinados ou orientados (e supervisionados)
para enfrentar esse tipo de problemas. Tudo isso é função dos programas que
protegem não que punem.
Mesmo os países mais ricos do mundo (ou principalmente eles)
garantem cidadania através de voluntariado. Quanto aos países pobres, neles se
diz que não se faz isso ou aquilo, porque falta... dinheiro, ou porque o
município é muito pequeno, ou outra desculpa qualquer. Cidadania é uma questão
de... organização social. Organização social pressupõe cidadãos livres que
fazem coisas em benefício do bem comum sem
receber ordens ou serem constrangidos
por burocratas.
Já se viu acima que a medida de proteção em regime de abrigo não é privação de liberdade. O mais interessante é que querem obrigar não
o Conselho Tutelar, que é um ente colegiado (cinco pessoas decidindo, notar bem:
decidindo, não usurpando funções de terceiros), mas as pessoas físicas dos
conselheiros (cidadãos livres) a fazer coisas que a lei não determina. Isso
ocorre quando o juiz, o promotor e o delegado não ajustam sua conduta à regra (ao princípio) do artigo 88, V do
Estatuto: integrar-se operacionalmente, de preferência no mesmo local, aos
serviços do defensor (que deve - o defensor - dispor de uma sala independente
em toda delegacia) e do assistente social (ou de um serviço completo de
assistência social, em nível municipal, devido ao princípio da municipalização, com auxiliares e equipe interdisciplinar ou voluntários que se orientem para isso).
Vamos ler outra vez o Estatuto dos Advogados do Brasil em seu artigo 7º:
§ 4º - O Poder Judiciário e o Poder Executivo devem instalar,
em todos os juizados, fóruns, tribunais, delegacias de polícia e presídios,
salas especiais permanentes para os advogados, com uso e controle assegurados à
OAB.
Devem portanto, as famílias e as vizinhanças através de suas
organizações comunitárias, cobrar que haja essa integração, comunicando o fato
(para que cada órgão se ajuste às normas do Estatuto) às Corregedorias do
Judiciário, do Ministério Público e da Segurança Pública e ao Conselho
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, porque o artigo 88 também prevê em seu inciso I, o
referido princípio da municipalização do
atendimento.
Exemplo da violação ao princípio da municipalização: Criar
defensorias ou assistência judiciária para esses casos no âmbito dos Estados e não dos municípios, o que vem gerando burocracia, ausência ou omissão,
distanciamento das comunidades, desconhecimento do problema pelo Conselho
Municipal e falta de adequação às peculiaridades locais.
Nesse contexto, o advogado (integrado operacionalmente -
mesmo que sentado em seu escritório particular - a um programa de proteção,
portanto programa não punitivo, de apoio sócio-educativo em meio aberto em nível municipal) cuidará dos aspectos
jurídicos do caso, e o assistente social cuidará dos aspectos sociais. Ninguém
deve ser punido por ato que praticou em razão da desproteção
a que ficou relegado por violação de seus direitos difusos. Esse, o grande
argumento do advogado em certas causas, em certas circunstâncias: Defesa
jurídica, integrada à proteção social. Mas atenção: Essa proteção através das
técnicas de assistência social não é
aquela do velho Código de Menores com assistente social da equipe (e portanto
subordinada) ao juiz. Não. Esse assistente social (como profissional liberal
individual) ou esse serviço de assistência social (com auxiliares e, se for o
caso, com equipe interdisciplinar) vai dar proteção social ao adolescente.
Vai proceder do ponto
de vista do adolescente, ou de seus pais, se não houver conflito entre pais
e filho. Vou repetir: do ponto de vista
do adolescente, não do ponto de vista do juiz. Esse é um serviço da
comunidade à disposição do adolescente, para ajudá-lo a defender-se de
possíveis arbitrariedades (no caso, do delegado, do promotor e do juiz) e
ajudá-lo em suas dificuldades. Veja, leitor um brocardo (juristas gostam de falar difícil) jurídico:
A todo direito
corresponde uma ação que o assegura. Essa ação que assegura direito pode
ser social, administrativa ou judicial. Pode ser jurídico-social,
jurídico-administrativa e jurídico-judicial.
Essa proteção, leitor, independe do que tenha a ver com os
procedimentos técnico-jurídicos (a relação do advogado com seu cliente) ou
técnico-judiciais (a relação do juiz com os acusados em sua jurisdição). Isso
porque o acusado é, como cidadão, um ser humano que tem o direito de receber
proteção, em tudo que não tenha a ver com o processo a que responde. Nesse
processo, o que lhe vai caber ao fim e ao cabo, ou será uma absolvição (porque
se reconhece que a acusação era infundada), ou uma sentença de punição com
medidas socio-educativas (para proteger a sociedade
do dano que ele, adolescente, causou com sua conduta).
A medida sócio-educativa quer proteger a sociedade (para
isso, restringe a liberdade do acusado, já então sentenciado. Não existe medida
sócio-educativa aplicada pelo juiz, sem restrição de liberdade). O que protege
o cidadão são os programas de proteção, que ajudam crianças, adolescentes, suas
famílias e vizinhanças a ser livres, praticando a
liberdade; a respeitar, respeitando; a serem respeitados, fazendo-se respeitar;
a não se envolverem com drogas, tráfico, bandos e quadrilhas, não se envolvendo
com drogas, tráfico, bandos e quadrilhas; a participarem do bem comum, dele
participando. Técnicas especiais já vem sendo
intensamente desenvolvidas para esses objetivos.
Mas, paradoxalmente, em função da iatrogenia,
de que falarei no capítulo 26, as medidas sócio-educativas, como vêm sendo
concebidas e executadas, na esmagadora maioria dos casos geram... desproteção à sociedade. A prática nos diz que isso ocorre
porque os programas que as executam vêm reciclando a criminalidade. O contágio
que os adolescentes sentenciados mantém com seus iguais (também sentenciados)
levam os menos experientes a ajustar sua conduta à escalada da violência. Os
bandos, tráfico e quadrilhas infelizmente são mais competentes em fazer gerar a norma que vem de dentro da anticidadania, que os programas ditos sócio-educativos -
punitivos - em fazer gerar a norma que vem de dentro da cidadania e do bem comum.
Somente pois os programas em regime de orientação e apoio
sócio-familiar e em regime de apoio sócio-educativo em meio aberto (repetindo,
não punitivos), por sua própria natureza, poderão permitir uma eficaz proteção
à cidadania em direitos individuais, coletivos e difusos. O advogado e o assistente
social (se for o caso com equipe interdisciplinar mais ampla com psicólogo,
pedagogo, etc.), integrados, vão batalhar pela influência desses programas na
escalada do bem comum. Contra a Iatrogenia.
Não se pode (sem ser eufemista)
usar o sistema de punir com medidas sócio-educativas para dizer que se está protegendo o acusado. Por isso, o
Estatuto prevê (art.90) programas de proteção não
punitivos. O advogado deve insistir que se respeite o direito do acusado a
esses programas. Em certos casos, se pode demonstrar - cabe ao advogado ficar
atento - que o ato de que o adolescente é acusado decorre da não existência ou da
existência irregular de programas em regime de orientação e apoio
sócio-familiar (inclusive com renda mínima) ou de programas em regime de apoio
sócio-educativo em meio aberto. Se eles não existirem, ou funcionarem mal, deve
o advogado requerer que o juiz use a norma do Estatuto:
Art. 221 - Se, no exercício de suas funções, os juizes e
tribunais tiverem conhecimento de fatos que possam ensejar a propositura de
ação civil, remeterão peças ao Ministério Público para as providências cabíveis
.
Assim fazendo, o advogado levará o Ministério Público, quando
for o caso. a enfocar a árvore sem perder a noção da floresta, porque poderá
mover a máquina administrativa, e se necessário a judicial, para a percepção
dos direitos difusos, com programas autênticos - não punitivos - de proteção,
nos bairros, nas vizinhanças das escolas, nas comunidades de famílias. Proteção
integral, como quer o artigo primeiro do Estatuto.
18. O delegado, o acusado, o
advogado e a apuração da infração criminal
Vivemos num país de grande energia, de grande vibração, de
grande sensibilidade humana. Mas temos o vezo de desconfiar das coisas da lei.
Com razão, porque em quinhentos anos de história, nossa experiência sempre foi
a da lei feita por colonizadores para oprimir os colonizados. Colonizados por
agentes de fora, através de potências estrangeiras, nos impondo limites em
nossa liberdade. Colonizados de dentro, por governos (sob o tacão de poderosas
corporações) que restringem, ou querem restringir, nossa liberdade de cidadãos.
Mas o Estatuto foi a lei mais
debatida pela cidadania e a que mais prevê mecanismos para preservar o
equilíbrio entre o exercício da autoridade e o exercício da liberdade. Se
alguém quer abusar para um lado (liberdade ou autoridade) em detrimento do
outro (autoridade ou liberdade), o próprio Estatuto aponta regras para o
equilíbrio na direção do bem comum. Coisa que se persegue como se fosse
encontrar, mas não se alcança nunca, senão indo perseguir sempre (a frase, ou o
que ela quer dizer, é de Santo Agostinho).
Isso quer dizer o seguinte: A polícia e a promotoria têm todo
o direito de lutar até o último esforço para garantir segurança pública à
cidadania em geral e o acusado, tem o mesmo direito de lutar até o derradeiro
esforço para ser livre. Esse é o processo contraditório dialético gerado pelas
tensões da natureza humana (seja lá o que se entenda por natureza humana...). O
que não se pode é fazer prevalecer a vontade pura e
simples da autoridade: Seria puro fascismo. Se queremos
democracia no Brasil, temos que repelir, liminarmente, toda possibilidade,
probabilidade, tentativa, manifestação de fascismo.
Temos portanto que nos valer das regras da lei para conduzir
o processo. Que diz a lei? Diz que o delegado inicia o processo de apuração
(que deve ser agilizado segundo o já citado princípio do artigo 88,V, mas não
tão agilizado, tão agilizado, repetindo, tão agilizado que seja... instantâneo,
porque o que é instantâneo não é processo.
Processo é uma seqüência de procedimentos que se fazem...
no tempo. Eu já vi no Brasil um processo dito instantâneo que não passava de um conchavo entre juiz, promotor e advogado. Eu já vi.).
No primeiro procedimento, o delegado verifica inicialmente se
a acusação é de grave ameaça ou violência a pessoa, na
prática do ato típico (típico, no caso, é o ato descrito detalhadamente no
texto legal, para que não se venha a prender ou punir alguém apenas pela
intenção subjetiva de quem acusa. Esse rigor da tipicidade da lei existe em defesa da cidadania, em defesa da
criança, do adolescente acusados).
Se a acusação é de que houve grave ameaça ou violência contra a pessoa, para ser típico o ato,
não vale grave ameaça ou violência contra coisas, como portas, janelas, móveis.
A lei fala de ameaça ou violência contra pessoas. Mais à
frente, vamos verificar que se houve essa violência, há em tese a
possibilidade de privação da liberdade, se não, o processo correrá com o
acusado em liberdade. Mas, primeiro,
deve o defensor verificar se o delegado cumpriu com as exigências dos artigos
106 e 107 do Estatuto:
CAPÍTULO II - DOS DIREITOS INDIVIDUAIS
Art.106 - Nenhum adolescente será privado de sua liberdade
senão em flagrante de ato infracional ou por ordem
escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente .
PARÁGRAFO ÚNICO - O adolescente tem direito à identificação
dos responsáveis pela sua apreensão, devendo ser informado acerca de seus
direitos.
Art.107 - A apreensão de qualquer adolescente e o local onde
se encontra recolhido serão incontinente comunicados à autoridade judiciária competente
e à família do apreendido ou à pessoa por ele indicada .
PARÁGRAFO ÚNICO - Examinar-se-á, desde logo e sob pena de
responsabilidade, a possibilidade de liberação imediata .
Aceitar a prisão, sem a obediência a essas formalidades é
crime (artigos 230, 231, 232 do Estatuto). Essas formalidades legais
existem para proteger o adolescente
de arbitrariedades e permitir-lhe ter o apoio humano e familiar de que
necessita. A liberação imediata se fará com o auxílio do assistente social (ou
do serviço de assistência social) integrado segundo o artigo 88, V, e nunca, vou repetir, nunca, nunca
através do Conselho Tutelar, porque o Conselho Tutelar é uma autoridade pública,
que zela por direitos recebendo informações de atos praticados, cujos
conselheiros não podem usurpar funções nem praticar o exercício ilegal de
qualquer profissão. Deve o advogado ficar atento a essas exigências. Porque o
delegado competente ficará atento, se realmente quer seguir os procedimentos em defesa da sociedade.
Em seguida deve o advogado verificar se o delegado, cumprindo
a regra do artigo 173:
I - Lavrou auto de apreensão, ouvindo testemunhas e o adolescente
(o advogado vai orientar seu cliente para que não seja levado a agir contra
seus próprios interesses);
II - Apreendeu o produto e os instrumentos da infração;
III- Requisitou os exames ou perícias
necessários à comprovação da materialidade e autoria da infração de que
o adolescente é acusado.
Para cumprir a exigência constitucional da igualdade na
relação processual, vai o advogado reunir, por sua vez, os elementos de que
necessita para fazer cumprir o que consta do artigo 186, parágrafo terceiro do processo
de apuração: oferecer defesa prévia e o rol de testemunhas que vai apresentar
ao juiz para que o adolescente não seja punido (artigo 189) segundo as exigências do artigo
189 (cujo comentário farei mais adiante):
Art.189 - A autoridade judiciária não aplicará qualquer
medida, desde que reconheça na sentença:
I - estar provada a inexistência do fato;
II - não haver prova da existência do fato;
III - não constituir o fato ato infracional
(criminal, segundo o artigo 103);
IV não existir prova de ter o adolescente concorrido para o
ato Infracional (criminal, segundo o artigo 103) .
PARÁGRAFO ÚNICO - Na hipótese deste artigo, estando o adolescente
internado, será imediatamente colocado em liberdade .
Se não há acusação de grave ameaça ou violência a pessoas
(notar bem, não a coisas, mas sim a pessoas) o advogado deve verificar se há o
boletim da ocorrência circunstanciada, cuja omissão impede o cumprimento dos
requisitos previstos no artigo 189 para eventual aplicação de qualquer medida.
19. As medidas aplicáveis
pelo juiz ao final do processo
Essas providências iniciais do defensor visam a evitar que ao
final do processo o juiz aplique qualquer medida (qualquer medida... qualquer
medida que o juiz aplique é, ao fim e ao cabo, punitiva). O promotor vai
batalhar pela aplicação de medida (punitiva) se não se convencer que deve
arquivar os autos ou aplicar a remissão. O advogado deve produzir argumentos
contrários. O juiz (terceiro imparcial, entre as partes que se chocam) deve
sentenciar num ou noutro sentido. Já verificamos no capítulo 6. que punição
(pouco importando o nome que lhe damos ou se lhe dê) é uma restrição a algum
grau de liberdade de alguém, em reação a uma conduta da pessoa punida. O
Estatuto tem dois conjuntos (artigos 101 e 112) do que chama de medidas a serem aplicadas por autoridade administrativa (o Conselho
Tutelar é autoridade administrativa) ou a autoridade judicial (o juiz é
autoridade judicial) em certas circunstâncias, segundo a competência de cada um
(o Tutelar, no artigo 136 e o juiz nos artigos 148 e 149).
Ao final do processo o juiz pode aplicar qualquer das medidas
do artigo 112 e algumas do artigo 101 (por exemplo, o juiz está
impedido de aplicar a medida de abrigo).
Não estando presentes os pressupostos previstos no artigo 189, o advogado
cuidará para que se cumpra a lei: O juiz não aplicará qualquer, notar bem, qualquer
desses dois conjuntos de medidas. A competência do promotor é estabelecida no artigo 201 do Estatuto. Nesse artigo, o
Estatuto não confere competência ao promotor para aplicar medidas ou seja, para punir. Mas há promotores fazendo isso
desde o ano de 1990 até o ano 2000, por falta de um defensor que ponha um freio
a esse abuso.
No tempo do Direito do Menor, o que se tinha era um anti
Direito porque a lei previa subjetividade no arbítrio do juiz, não continha
regras para o contraditório legal, não admitia possibilidade de freios ao
arbítrio e contrapesos amplos e irrestritos na relação processual, o que
significava clara denegação de defesa da
parte do acusado.
No tempo do Direito do Menor também não havia acusação, nem
se apurava culpa, o juiz aplicava livremente qualquer medida, todas elas tidas como proteção mesmo quando se
constrangia, restringia direitos e cerceava ou anulava a liberdade. Com as
regras do Estatuto, as autoridades podem fazer algumas coisas, mas outras
nunca. Vale aqui o princípio constante da Constituição de 1988 em seu ...
Art.5º . Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei;
O que anda ocorrendo, com desvio a essas regras da cidadania?
Delegados, promotores e juizes querem forçar a aplicação das medidas previstas
no artigo 101, como se elas fossem uma punição, (mas eufemisticamente
negando que seja... punição). Como se o adolescente fosse obrigado a aceitar
constrangimento em sua liberdade sem a clareza do ato punitivo. Que o advogado
e os agentes dos programas de proteção
(aqueles programas não que punem, mas que protegem. Vou repetir isso tantas
vezes quantas os cavalheiros vêm repetindo a punição com o que chamam, mas não
é... proteção), repetindo, que observem o que consta do artigo 12 da Convenção
Internacional dos Direitos da Criança de 1989, que a Constituição brasileira
incorpora através de seu Artigo 5º, § 2ºda Constituição de 1988:
Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte .
Artigo 12 da Convenção Internacional de 1989:
1 . Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver
capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões
livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se
devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e da maturidade
da criança .
2 . Com tal propósito, se proporcionará à criança, em
particular, a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou
administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um
representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da
legislação nacional.
Observação: Para essa Convenção Internacional, criança é o
ser humano até os dezoito anos (englobando o que nós brasileiros, dividimos em
criança - 0 a 12 anos - e adolescente - 12 a 18 anos).
Mais à frente, quando tratar das competências do promotor,
detalharei como essa obrigatoriedade de usar proteção como punição vêm
sendo aplicada sistematicamente de 1990 ao ano 2000. Por isso, cabe ao
advogado, defendendo seu constituinte, adotar as medidas técnico-jurídicas de
última geração adequadas para ajudá-lo e às famílias a por um paradeiro nesse
abuso. O Estatuto é de última geração, mas as pessoas mentalmente estão presas
aos arcaicos paradigmas do abolido Código de Menores.
20. Responder ao processo preso ou em
liberdade?
Reunidos os elementos que formam a convicção da autoridade
pública que pretende punir ou vai deixar de punir o acusado da prática de ato
infracional à lei criminal, o delegado deve adotar ou
evitar algumas atitudes. Quais?
Vamos ver o que diz o artigo 174 do Estatuto:
Art.174 - Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o
adolescente será prontamente liberado pela autoridade policial, sob termo de
compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao representante do
Ministério Público, no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil
imediato, exceto quando, pela gravidade do ato infracional
e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para
garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública .
O texto é claro: O adolescente será liberado para ser
apresentado ao promotor se comparecerem os pais ou o responsável (tutor ou
guardião, não esquecendo que dirigente de programa de abrigo é equiparado pelo
Estatuto ao guardião para todos os
efeitos de direito, segundo o parágrafo único do artigo 92. Ou seja, o Conselho Municipal
dos Direitos da Criança e do Adolescente deve indicar qual o programa em regime
de abrigo, cujo responsável será o guardião de adolescentes acusados, quando
por alguma razão os pais não possam recebê-los. Insisto: programa de abrigo não
é privação de liberdade).
Mas há um problema: Se o ato de que foi acusado for grave ele permanecerá preso. O que anda
ocorrendo na prática? Em muitos municípios, ou comarcas, esse termo grave anda
sendo interpretado fora dos critérios do artigo 122, e o advogado deve estar
atento a isso:
Art.122 - A medida de internação só poderá ser aplicada
quando:
I - tratar-se de ato infracional
cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa;
II - por reiteração no cometimento de outras infrações
graves;
III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida
anteriormente imposta .
§ 1º - O prazo de internação na hipótese do inciso III deste
artigo não poderá ser superior a três meses .
§ 2º - Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo
outra medida adequada .
Quanto à privação de liberdade para a segurança pessoal do adolescente a que alude o artigo 174, ela só tem sentido quando os
demais critérios houverem sido obedecidos, porque na ausência deles, o
adolescente, como qualquer cidadão, tem direito à sua incolumidade física sem privação de liberdade. Se estão ameaçando sua vida, tem o direito de ser
protegido... fora da prisão. Mas quando o acusado é pobre, o que vem ocorrendo
é que, para os pobres, tem sido muito natural privar de liberdade para proteger
o acusado. Um horror. Que o advogado não aceite esse absurdo. E interponha habeas corpus, e entre com recurso, inclusive
para mudar jurisprudência, se necessário. Consultemos mais uma vez o Estatuto:
Art.124 - São direitos do adolescente privado de liberdade,
entre outros os seguintes:
I - entrevistar-se pessoalmente com o representante do
Ministério Público;
II - peticionar diretamente a qualquer autoridade;
III - avistar-se reservadamente com seu defensor;
IV - ser informado de sua situação processual, sempre que
solicitada;
§ 1º - Em nenhum caso haverá incomunicabilidade .
Em seguida, a regra para a apuração da verdade diz que, em
caso de não liberação pelo delegado, o adolescente deve ser apresentado
imediatamente ao Ministério Público, mas, sendo impossível essa apresentação
imediata, a autoridade policial encaminhará o adolescente a
entidade de atendimento que fará
apresentação ao representante do Ministério Público no prazo de vinte e quatro
horas. Que entidade de atendimento é
essa? Vejamos o que diz o Estatuto:
Art.90 - As entidades de atendimento são responsáveis pela
manutenção das próprias unidades, assim como pelo planejamento e execução de
programas de proteção e sócio-educativos destinados a crianças e adolescentes,
em regime de:
I - orientação e apoio sócio-familiar;
II - apoio sócio-educativo em meio aberto;
III - colocação familiar;
IV - abrigo;
V - liberdade assistida;
VI - semi-liberdade;
VII - internação.
Se o delegado não liberou porque o adolescente deve ficar
provisoriamente internado até que o juiz decida se continua assim ou responderá
em liberdade, a entidade de atendimento é a que atende em regime de... internação.
Onde não houver entidade de atendimento, a apresentação será feita pelo próprio
delegado, ficando o adolescente em dependência da própria delegacia por não
mais de vinte e quatro horas, nunca na mesma dependência dos maiores de dezoito
anos.
Na prática, esse atendimento imediato ou nas próximas vinte e
quatro horas nem sempre ocorre, seja porque o promotor reside fora da comarca,
ou porque é negligente ou até mesmo pelo acúmulo de serviço. Em certas comarcas
a praxe é manter os adolescentes pobres presos com desprezo pelos prazos
previstos no Estatuto, exatamente porque o advogado só vem sendo chamado a
intervir, mesmo assim superficialmente, após a audiência de apresentação ao
juiz. Mais uma vez temos aí a necessidade de o
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente manifestar-se sobre
o assunto. Se o Conselho se negar a manifestar-se por negligência ou qualquer
outro motivo, qualquer pessoa do povo pode mover o Estado para por as coisas
nos devidos lugares, aplicando as regras dos artigos 208 e seguintes do
Estatuto.
Deve o advogado controlar os prazos, verificar as condições
em que eventualmente seu constituinte é mantido preso e adotar as medidas
judiciais para pronta liberação (através de habeas corpus, principalmente considerando as regras do parágrafo do
artigo 108 citado a seguir) quando as formalidades forem descumpridas. Por
falta de defesa, as piores coisas vem ocorrendo com os
acusados pobres (nunca com os ricos, com o advogado intervindo desde o primeiro
momento) exatamente nessa fase que medeia a primeira intervenção do delegado e
a do juiz, com a audiência do promotor no entremeio.
Estando o adolescente preso (internado, segundo o Estatuto) pelas razões apontadas pelo delegado,
o processo de apuração só continua após o juiz apreciar essas razões e decidir
ou não que assim continue por um prazo máximo de 45 dias, nem sempre obedecido
por falha ou inexistência da defesa adequada. A lei é clara:
Art.108 - A internação, antes da sentença, pode ser
determinada pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias .
PARÁGRAFO ÚNICO - A decisão deverá ser fundamentada e
basear-se em indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a
necessidade imperiosa da medida .
21. A função da assistência
social no procedimento
Comecemos com a Constituição Federal de 1988. Leia outra vez
leitor:
Art.203 . A assistência social será prestada a quem dela
necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por
objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à
adolescência e à velhice;
Todo o processo de apuração existe para que o juiz, como o
terceiro imparcial entre as partes que se chocam (O Estado que acusa através do
promotor e o acusado que se defende, através do advogado) decida o que consta
do artigo 189 do Estatuto:
I - Se está provada ou não a inexistência do fato (objeto da
acusação);
II - Se há ou não prova da existência do fato;
III - Se constitui ou não o fato ato infracional;
IV - Se existe ou não prova de ter o adolescente concorrido
para o ato infracional (da lei criminal) .
Por isso, o Estatuto dispõe o seguinte em seu artigo...
Art.186 - Comparecendo o adolescente, seus pais ou
responsável, a autoridade judiciária procederá à oitiva dos mesmos, podendo
solicitar opinião de profissional qualificado .
Qual seria a razão pela qual, leitor, após os procedimentos
em nível policial, autorizaria o Estatuto que o juiz ouça opinião de
profissional qualificado logo no início dos procedimentos em nível judicial?
Não seria para se manifestar sobre a existência ou a prova do fato, porque isso
se elucidará no conteúdo dos autos. Não seria tampouco para dizer se o fato
constitui ou não ato infracional criminal, pois basta
para isso ler o Código Penal e a Lei das Contravenções.
Leitor, esse profissional
qualificado é passível de intervir no processo para, elucidando o que diz o
inciso IV, ajudar a dizer se o adolescente concorreu ou não para a produção do
ato infracional à lei criminal. Como uma pessoa concorre para a produção de um ato infracional de alguma regra de conduta? Concorre com sua vontade. Leia outra vez, leitor,
o capítulo 4 deste texto. O que está em jogo aí é a vontade humana. É o querer
ou não querer. É o poder querer ou não poder querer. É o ter condição pessoal
de querer ou não querer. É o querer produzir o ato em questão... e produzi-lo
(dolo ou culpa latu sensu) ou não
querer... e produzi-lo (culpa strictu sensu). É o ser ou não obrigado a querer (pelo ambiente
em que vive, pelo estado de necessidade em que se encontre, pelos
constrangimentos que sofre, pela não exigibilidade de outra conduta, pela não
existência de programas de proteção que são não punitivos).
Em outras palavras, a audiência desse profissional qualificado tem a ver com perícia sobre condições
sociais, psicológicas ou psiquiátricas, para que o julgador possa aferir o grau
de responsabilidade, de culpabilidade do acusado em relação ao ato infracional à
lei criminal que lhe imputam. Os menoristas que têm o adolescente como objeto (ser inerte,
que não formula juízos próprios - violando o art. 12 da Convenção - incapaz, que não
sabe o que faz quando faz), não como sujeito (ser que pensa, é capaz, valoriza,
escolhe, decide, age por vontade própria) ficam arrepiados quando percebem que
o ser humano concorre para tais atos
quando é responsável e portanto culpável.
O advogado deve portanto estar atento para os argumentos que
vai usar para a defesa de seu constituinte. E impugnar a opinião técnica proferida
se ela se choca com o interesse de seu cliente (por exemplo, seu cliente se
envolveu com drogas por inexistência de programa de proteção em regime de apoio
sócio-educativo em meio aberto junto à escola onde há tempos fora matriculado,
e esse programa é obrigatório para formar cidadania). E requerer ou apresentar
nova perícia em favor do acusado. A Assistência Social prevista pelo Estatuto
em seu artigo 88, V, (que segundo
o art. 203 da Constituição deve dar proteção)
tem a ver com o apoio material de que o acusado necessita e com o apoio de que
a defesa necessita para argumentar em relação ao quarto inciso do artigo 189. O promotor
vai, evidentemente, argumentar em contrário. Estamos no âmbito de um processo
de apuração contraditório.
Levar em conta sempre que o assistente social, e os eventuais psicólogo, psiquiatra ou pedagogo que atuarem
no caso, em defesa do adolescente têm todas as prerrogativas do profissional
liberal, das quais decorre a absoluta liberdade de diagnóstico, em laudo ou perícia.
Nada disso exclui a equipe técnica do juiz que, quando existe, ali está para
ajudar o magistrado a julgar e não para interferir nos programas municipais,
que são programas de outro Poder da República, o Executivo e de outro âmbito da
União, o âmbito do Município. Vejamos o que diz a Constituição sobre isso:
Art.1º . A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: " ...
"
Art.2º . São Poderes da União, independentes e harmônicos
entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário .
Que fique portanto claro, que o Judiciário, Poder do âmbito
do Estado membro da Federação, deve respeitar a independência dos programas no
âmbito do Município. Quando o Judiciário não respeita os programas do âmbito
municipal e não quer ajustar sua conduta aos princípios do artigo 88, V do
Estatuto, notar que o Município é legitimado pelo Estatuto, lei Federal, a
provocar esse ajuste:
Art.210 - Para as ações cíveis fundadas em interesses
coletivos ou difusos, consideram-se legitimados concorrentemente:
I - o Ministério Público;
II - a União, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal e
os Territórios;
III - as associações legalmente constituídas há pelo menos um
ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e
direitos protegidos por esta Lei, dispensada a autorização da assembléia, se
houver prévia autorização estatutária;
§ 1º - Admitir-se-á litisconsórcio facultativo entre os
Ministérios Públicos da União e dos Estados na defesa dos interesses e direitos
de que cuida esta Lei .
§ 2º - Em caso de desistência ou abandono da ação por
associação legitimada, o Ministério Público ou outro intimado poderá assumir a
titularidade ativa .
Art.211 - Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos
interessados compromissos de ajustamento de sua conduta às exigências legais, o
qual terá eficácia de título executivo extrajudicial .
Continuando: Os técnicos dos programas em nível municipal
podem (devem) ser auxiliados por pessoas contratadas ou voluntárias (em
programa em regime de orientação e apoio socio-familiar
ou apoio socio-educativo em meio aberto) para se for
o caso, acompanhar o adolescente no que quiser ou precisar e garantir-lhe a
proteção social de que necessita (coisas que arbitrários andam impondo,
irregularmente, a conselheiros tutelares). Tudo obedecendo ao princípio da
municipalização (artigo 88, I do Estatuto) sob normas
deliberadas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança.
O Conselho não deve desprezar o poder de ajuste de conduta
que o município tem em relação à Polícia, ao Ministério Público e ao Judiciário,
quando estes violam os princípios do artigo 88, V do Estatuto. Portanto, a todo
laudo ou perícia livre e independente que (se chocando, agredindo) vá de
encontro aos interesses do acusado, deve o advogado fazer valer a regra do
Estatuto da OAB: Art.7º. São direitos do advogado:
X - usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou
tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida
surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento,
bem como para replicar acusação ou censura que lhe forem feitas;
XI - reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer
juízo, tribunal ou autoridade, contra inobservância de preceito de lei,
regulamento ou regimento.
22. A crucial intervenção do
promotor e o cuidadoso controle pelo advogado
Já vimos que o adolescente acusado será apresentado ao
promotor:
1. pelos
familiares ou responsável;
2. pelo
que o Estatuto chama entidade de atendimento;
3. Ou
pelo próprio delegado, tudo no prazo de vinte e quatro horas.
Para agilização de tudo isso, o Estatuto determina a
integração operacional de preferência no mesmo local das atuações de:
1. Delegado;
2. Advogado;
3. Serviço
social;
4. Promotor;
5. Juiz.
Art.179 - Apresentado o adolescente, o representante do
Ministério Público, no mesmo dia e à vista do auto de apreensão, boletim de
ocorrência ou relatório policial, devidamente autuados pelo cartório judicial e
com informação sobre os antecedentes do adolescente, procederá
imediata e informalmente à sua oitiva e, em sendo possível, de seus pais ou
responsável, vítima e testemunha.
PARÁGRAFO ÚNICO - Em caso de não apresentação, o
representante do Ministério Público notificará os pais ou responsável para
apresentação do adolescente, podendo requisitar o concurso das Polícias Civil e
Militar.
Art.180 - Adotadas as providências a que alude o artigo
anterior, o representante do Ministério Público poderá:
I - promover o arquivamento dos autos;
II - conceder a remissão;
III - representar à autoridade judiciária para aplicação de
medida sócio-educativa.
O Promotor de Justiça (que é o representante do Ministério
Público a que se refere esse artigo) pode, por convicção própria,
julgando estarem presentes os requisitos do artigo 189, promover o
arquivamento dos autos e dar por encerrado o processo de apuração. Se esse não
for caso, pode o advogado, com os elementos de que dispõe, ou com a
interpretação que lhe pareça a melhor, para defender o acusado, tentar levar o
promotor a esse arquivamento.
Remissão, para o Código Civil, é perdão: exemplo, perdão de
uma dívida. Para o Estatuto, veja, leitor, que remissão não é perdão. Podem ser
três coisas: exclusão, extinção ou suspensão do processo de apuração, processo
esse que envolve uma fase policial e uma fase judicial (dos artigos 171 a 190 do Estatuto):
Art.201 - Compete ao Ministério Público:
I - conceder a remissão como forma de exclusão do processo;
Art.188 - A remissão, como forma de extinção ou suspensão do processo,
poderá ser aplicada em qualquer fase do procedimento, antes da sentença .
O que havia ocorrido durante dez anos de aplicação do
Estatuto, antes do ano 2000, em relação a essa competência do promotor? Muitos,
dizendo aplicar a remissão, andaram impondo medidas aos acusados. Sem defesa,
estes ficaram submetidos a incríveis arbitrariedades. Vou repetir, o artigo 201
que atribui competências ao promotor, não inclui, entre elas, a de aplicar
medidas. Somente aplicam medidas, segundo as regras do Estatuto, o Conselho
Tutelar (para as do artigo 101, menos a colocação em família substituta; e o juiz, para as do 112 e, em certas circunstâncias, mas notar
que não todas, algumas do 101). O promotor, nunca. Nunca. Jamais.
Dizem os promotores que querem aplicá-las, que o fazem
baseados no...
Art.127 - A remissão não implica necessariamente o
reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de
antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas
previstas em lei, exceto a colocação em regime de semi-liberdade
e a internação.
Cabe ao advogado demonstrar, diante dessa pretensão, que se
pode eventualmente incluir a aplicação das medidas. Mas, como é lógico, apenas
e exclusivamente no momento próprio. E exclusivamente por quem tenha a
competência para isso (o juiz), o que não é o caso do promotor.
Vou dar um exemplo, leitor, do que anda acontecendo por aí,
como conseqüência desse grave desvio por parte dos promotores: digamos que você
tenha um filho de 16 anos que infelizmente haja adquirido compulsão pelo uso de
drogas. Compulsão é uma manifestação de enfermidade que deve ser tratada
medicamente. Jamais se resolve com punição. Pois bem: Seu filho foi preso com
porte de droga, é levado ao delegado e, sem advogado, conduzido ao promotor.
Este, na sua forma de pensar, diz: Não vou pedir-lhe uma medida socio-educativa. Vou aplicar-lhe remissão e uma medida de
submeter-se a tratamento (artigo 101, V).
O rapaz fica satisfeito e os pais seguros de que o promotor é
uma das sete ou oito maravilhas do mundo. Beijam-lhe as mãos. Porque o
promotor, segundo parece, vai respeitar a circunstância de que tal tipo de
problema se trata com proteção, com tratamento, e não com punição.
Veja as possíveis conseqüências dessa forma de agir: O juiz
homologa a remissão com a medida aplicada. O rapaz é compulsivo. Essa compulsão
o faz não ir ao tratamento e reiteradamente usar droga. O juiz o chama por haver descumprido a medida aplicada uma vez.
Chama outra vez. Na terceira, ordena busca e apreensão e manda internar seu
filho. Ele vai ficar preso junto com outros infratores (envolvidos, estes sim,
com quadrilhas, bandos e tráfico de drogas e armas. Lá seu filho corre o risco
de ser violentado e aprender tudo que não sabe do mundo do crime. Iatrogenia. Vou repetir: Iatrogenia.).
O juiz assim pode decidir com base no...
Art.122 - A medida de internação só poderá ser aplicada
quando:
III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida
anteriormente imposta . § 1 º- O prazo de internação na hipótese do inciso III
deste artigo não poderá ser superior a três meses .
O advogado portanto, leitor, é absolutamente indispensável
para evitar que o promotor aplique tal punição (dizendo que é proteção) com as
graves conseqüências que mencionei. É também o advogado que vai ter sempre em
mente que quando o juiz aplica essas medidas do artigo 101, dizendo que está protegendo o
adolescente, na verdade está gerando a punição que pode desembocar na privação
de liberdade. Iatrogenia. O advogado agirá como prevê
seu Estatuto (o Estatuto dos Advogados):
Art.2º. O advogado é indispensável à administração da
justiça.
§ 2º - No processo judicial o advogado contribui, na
postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do
julgador, e seus atos constituem múnus público.
A remissão, quando aplicada, supõe sempre algum tipo de
acordo com o adolescente e sua família. Por exemplo: considerando que o ato infracional à lei criminal de que é acusado o adolescente
não foi praticado mediante ameaça ou violência, que é primário, que ele se
arrepende, etc. etc., pode o promotor propor que o adolescente aceite concordar
em não mais faltar às aulas, ou submeter-se a algum tratamento médico ou
psicológico, ou procurar emprego, e assim por diante. Mas aí não estamos no
terreno da aplicação de medidas, no sentido que lhe dá o Estatuto: Conduta imposta, obrigatória, não facultativa.
Quando o Conselho Tutelar, por exemplo, aplica uma medida (de
proteção), não o faz porque os conselheiros arbitrariamente assim o decidiram.
Não. A medida é aplicada porque há uma obrigatoriedade legal prévia à medida de
sua efetivação. Trata-se de uma forma administrativa de fazer cumprir uma
obrigação legal. Quem descumpre injustificadamente a
determinação do Conselho de efetivá-la, paga multa. A multa é uma sanção
administrativa.
Esse não é o caso do Ministério Público. O máximo que o
promotor pode fazer é sugerir, propor, convencer, mas nunca obrigar. Se quiser
obrigar, que faça a representação e peça ao juiz que aplique a medida
correspondente, aí sim, obrigatória e sujeita a sanções de efetividade.
Arquivamento e remissão deverão ser, para efetivação, homologadas pelo juiz.
A terceira possibilidade é a de, diante das convicções que
lhe trazem os elementos reunidos pelo delegado, e confirmadas
após haver ouvido o acusado e seus familiares ou responsável (dirigente
de programa de abrigo é responsável), o promotor fazer representação ao juiz
propondo a aplicação da medida que lhe pareça a mais adequada. Diz o ...
Art.184 - Oferecida a representação,
a autoridade judiciária designará audiência de apresentação do adolescente,
decidindo, desde logo, sobre a decretação ou manutenção da internação,
observado o disposto no art. 108 e parágrafo .
§ 1º - O adolescente e seus pais ou responsável serão
cientificados do teor da representação, e notificados a comparecer à audiência,
acompanhados de advogado.
§ 2º - Se os pais ou responsável não forem localizados, a
autoridade judiciária dará curador especial ao adolescente.
Cabe ao advogado ouvidos o
adolescente e seus pais ou responsável, armar a estratégia da defesa (na
verdade essa estratégia já deve ter tido preliminares antes mesmo que o
adolescente seja interrogado pelo delegado, porque aquilo que o adolescente ou
seus responsáveis disserem ou deixarem de dizer poderá ser usado pelo delegado
contra ele, e depois pelo promotor, e depois pelo juiz...). Essa estratégia
será feita junto ao curador especial, nas hipóteses em que os pais não sejam
localizados ou não sejam revelados pelo acusado.
Uma das funções do programa em regime de apoio sócio-educativo em meio aberto previsto no artigo 90, a funcionar integradamente
com a defesa, segundo o artigo 88, V do Estatuto (junto ao programa
em regime de orientação e apoio
sócio-familiar) é selecionar, treinar, designar para apoiar os plantões de
trabalho, os agentes (profissionais ou leigos, remunerados ou voluntários) que
estarão à disposição e serão ofertados ao juiz para nomear curadores em
condições de bem cumprir ao seu munus (funções, encargo, dever) público.
23. A fase judicial do
processo de apuração
Apresentada a representação pelo promotor, o acusado poderá
estar preso ou em liberdade. Se estiver preso, deve o juiz decidir desde logo
se mantém ou suspende a privação de liberdade (provisória) até a conclusão dos
procedimentos de apuração (só possível por quarenta e cinco
dias, mas já conheci milhares de violações desse prazo, por falta de defesa, ou
de perseverança na defesa.
Num certo Estado brasileiro levei visitantes argentinos,
chilenos e uruguaios para conhecer o sistema de Justiça. Diante da insistência
de um desses visitantes estrangeiros, ouvi um juiz admitir, mesmo a contra
gosto - pois se trata de um magistrado exemplar - que, naquele Estado, o
Tribunal tem aceitado estender essa prisão provisória para além dos quarenta e
cinco dias. Isso só tem sido possível - violar a lei - por evidente ausência e
persistência... de defesa).
A maioria absoluta dos municípios
brasileiros não dispõem de local para essa internação (privação de
liberdade, prisão) provisória. O Estatuto só permite a permanência em
instalações policiais por cinco dias (185,§ 2 º ), enquanto se aguarda a
transferência para a entidade em município que mantém a internação mais
próxima.
Observar aqui, como sempre, o princípio da municipalização
constante do artigo 88, I e
regulamentado nos artigos 90 e 91 do Estatuto. O âmbito em que se deve
discutir a criação do programa que mantém o regime de internação é o Conselho
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. O advogado muito pode
contribuir para essa exigibilidade.
Não existindo o programa local e não podendo ou não convindo a transferência do adolescente (coisa a que o advogado deve
permanecer atento, pois sobre essa matéria tem muito a dizer em benefício de
seu constituinte), o acusado deve responder ao processo em liberdade.
Continuemos:
Art. 185.§ 1º - Se a autoridade judiciária entender adequada
a remissão, ouvirá o representante do Ministério Público, proferindo decisão .
Notar que a cada regra de intervenção prevista no
procedimento do Estatuto, numa interpretação sistêmica das regras jurídicas,
aplica-se o artigo 7º do Estatuto da OAB.
São direitos dos advogados:
X - usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal,
mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em
relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento, bem como
para replicar acusação ou censura que lhe forem feitas;
XI - reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer
juízo, tribunal ou autoridade, contra inobservância de preceito de lei,
regulamento ou regimento;
Então, em tudo aquilo que a remissão significar também
aplicar medidas obrigatórias, punitivas (mesmo e principalmente quando essas punições
se escondam sob o rótulo de proteção)
cabe intervenção do advogado em defesa
(aqui defesa real, contra limitações ao direito à liberdade) de seu
constituinte. Isso não quer dizer que o advogado não vá batalhar para que o
acusado, livre e desimpedido de qualquer peia do Poder Judiciário, busque
proteção, assuma compromissos consigo mesmo e com seus familiares, significando
cumprir com seus deveres de cidadania. Mas se a pretensão é de punir, que a
punição venha através do devido processo legal, com ampla defesa, nunca fora
dele.
A medida aplicada pelo juiz pode ser privativa de liberdade
ou restritiva de liberdade. A privativa de liberdade mais grave é a internação.
A menos grave é a semi-liberdade. As restritivas são a
reparação do dano, a prestação de serviços à comunidade e a liberdade
assistida. A advertência é uma restrição à liberdade muito peculiar: Aplicada
num único ato pelo juiz, ela restringe a liberdade que temos de não ouvir
certas coisas a nosso respeito. Mas, no devido processo legal, com amplo
direito a defesa, o Estado pode, na voz do juiz, restringir esse direito,
aplicando-se uma... repreensão.
Seja qual for a punição ela deve ser clara e pedagogicamente
explicada ao sentenciado para que este a incorpore em seu processo pessoal de
formar juízos próprios e se
determinar segundo esses juízos, como diz o artigo 12 da já mencionada Convenção.
Notar que não é pelo fato de poder ser privado de sua liberdade,
que o acusado ou o sentenciado devam sofrer condições degradantes em sua
submissão às autoridades do Estado. O advogado é aquele que vai adotar todas as
medidas possíveis e disponíveis em lei para evitar isso ou compensar da forma
mais ampla possível quando o infortúnio se abater sobre seu constituinte. O
advogado, em sua função social, vai combater todas as formas de... Iatrogenia. Persistem ainda por aí essas instituições do
tempo do Código de Menores, as febems, coisas para menores. Mas os adolescentes no Estatuto
são tratados não como menores, ou seja, não como incapazes, mas são sim tratados como capazes naquilo em que são
responsáveis: jamais praticar crimes ou, se se quiser
dizer de outra forma, jamais praticar atos que a lei define como crimes. Por
isso, quando praticam, respondem por seu ato perante o juiz. E são punidos, são
restringidos em sua liberdade, com medidas sócio-educativas, as quais devem ser
cumpridas com dignidade. Se impostas com desrespeito ao direito à dignidade,
caracteriza-se a eticamente inconcebível e inaceitável... Iatrogenia.
Pois bem, um dos direitos sagrados dos adolescentes metidos
nessas instituições degradantes é usar medidas extremas permitidas em lei para
receber sua punição em outro lugar, ou em outras condições. Outro direito
sagrado é acionar o Estado para se ressarcir dos danos morais a que foi
submetido dentro delas.
Parece evidente que quando os governos começarem a ter que
pagar vultosas indenizações pelo tratamento degradante a que submetem
os adolescentes sentenciados, alguma coisa começará a mudar neste país.
Sem isso, a experiência indica que o sistema da violação de direitos continuará
seu curso lépido e fagueiro. Um bom advogado sabe cobrar do Estado as
reparações devidas pelos danos que produz (por ação ou omissão), como sabe
recorrer das decisões.
24. A defesa dos
adolescentes e as medidas socio-educativas
Aplicada a medida sócio-educativa, seu
cumprimento, nos termos do Estatuto, será feito através de um programa aprovado, organizado e
controlado em nível municipal. Grande
número de juizes, promotores e advogados não entenderam o que isso quer dizer
nesses dez anos de 1990 a 2000. Ou, entendendo, não quiseram que fosse assim.
Ou querendo, não moveram vontade política
para que assim fosse. Mas também os Conselhos Municipais se desinteressaram
pelo assunto, desprezando o princípio da municipalização e lavando as mãos
solenemente. Por isso, continua, entrando pelo século XXI adentro, o sistema do
velho Código de Menores.
Em que, então, consiste a municipalização e quais os
benefícios que ela representa? Falarei um pouco disso em seguida porque, de uma
forma ou outra, ela, a municipalização, contém a possibilidade ou a
impossibilidade de atender aos direitos e deveres da cidadania. E faz isso,
quer se trate dos acusados de serem vitimadores (como
neste texto), ou dos vitimados por ações individuais, coletivas ou difusas de
pessoas ou de autoridades públicas. Minha intenção não é aqui esgotar o
assunto, mesmo porque estou preparando outro texto que trata exclusivamente do
funcionamento dos programas.
O órgão máximo do município para decidir e controlar,
difusamente, direitos e deveres de crianças e adolescentes, é o Conselho
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Difusamente quer dizer: com
medidas gerais que adotadas beneficiam e omitidas prejudicam pessoas que não
podemos, uma a uma, desde logo, identificar.
Esse Conselho é paritário em sua
composição, metade de seus membros representa a Prefeitura Municipal (órgão
administrador do Município) e metade representa organizações representativas da
população. É um Conselho de Estado em
nível municipal. Conselho de Estado, não de Governo.
O Município é hoje, no Brasil, um ente federativo autônomo, que não se subordina ao Estado membro nem
à União, com eles mantendo harmonia através da aplicação das leis. O
Conselho é deliberativo (não é mais consultivo, como os conselhos
tradicionais). Delibera. Decide.
O Conselho cria obrigatoriedades naquilo que faz (desde que
naturalmente, nos limites de sua competência e cumprindo os preceitos do
Direito Administrativo que por sua vez incorpora os novos princípios
constitucionais da participação e do controle pela população e da prioridade
absoluta que limitam a velha discricionariedade administrativa. Vou repetir:
transformam, mudam, alteram a velha discricionariedade administrativa,
dando-lhe nova feição por submetê-la a critérios e controles - artigos 4 º e 88, II do Estatuto). O Conselho é
controlador (controla se as várias políticas - educação, saúde, esporte,
cultura, lazer, segurança pública, assistência social e finanças - contém normas
ou práticas que violam direitos difusos).
Esse poder de deliberar e controlar está na Constituição Federal (artigo 204). É um Conselho com poderes
constitucionais.
Esse Conselho tem outra função chave: Registrar e controlar
programas específicos para proteção
de crianças e adolescentes vítimas e punição
(quer dizer: restrição ou privação de
liberdade) a adolescentes vitimadores (julgados,
depois de ampla defesa, e sentenciados como infratores da lei criminal).
Os programas de proteção, organizados por entidades
governamentais (prefeitura, pelo princípio da municipalização) ou não
governamentais, registrados (aprovados) no Conselho Municipal para serem oficializados
e receberem recursos públicos (Fundo Municipal) funcionam em quatro regimes:
1. Orientação
e apoio sócio-familiar;
2. Apoio
sócio-educativo em meio aberto;
3. Colocação
familiar;
4. Abrigo.
Os programas sócio-educativos, também organizados por entidades
governamentais (prefeitura, pelo princípio da municipalização) e não
governamentais, funcionam em três regimes:
1. Liberdade
assistida;
2. Semi-liberdade;
3. Internação
(privação de liberdade).
O que anda ocorrendo é que não se municipaliza
a execução das medidas socio-educativas (e não se
organizam os programas de proteção corretamente, segundo o princípio da
municipalização) por interesses corporativos. É só procurar que se vão
encontrar interesses corporativos impedindo a mudança. Por exemplo: O Estatuto
diz que os programas de colocação familiar devem ser organizados (art.90 e 91) no município, por organizações
governamentais e não governamentais e aprovados e controlados no Conselho
Municipal. Os auxiliares da justiça e muitos juizes, querem isso? De jeito
nenhum.
O Estatuto diz que os três regimes de programas
sócio-educativos devem ser organizados por entidades governamentais e não
governamentais do município, aprovados e controlados no Conselho Municipal (art. 90 e 91). Os juizes, promotores e febems (com esse ou com outro nome) querem? Jamais. Há
pessoas, inclusive juizes, ganhando prêmios prestigiosos por violarem o
Estatuto: por exemplo, premiados por executarem, com sua equipe, programa socio-educativo que o Estatuto diz ser privativo de
programas municipais (princípio da municipalização) sob registro e controle do
Conselho Municipal.
Só dei dois exemplos. Existem muitos outros que detalho em
outros textos.
Comece-se, então, enfrentando a tudo e a todos, organizando
corretamente os programas em regime de orientação e apoio sócio-familiar e
apoio sócio-educativo em meio aberto em nível municipal. E que sejam
devidamente aprovados e controlados no Conselho Municipal, dotados de
voluntários (profissionais ou leigos) ou profissionais contratados que prestem
serviço em advocacia, serviço social, psicologia, pedagogia, ou apoio humano,
afetivo e facilitador de providências várias aos adolescentes e suas famílias.
Serviços que os ricos compram com o vil metal e que os que
não podem pagar consigam através da organização social municipal por iniciativa
das organizações não governamentais. Não há país nenhum, repetindo nenhum, em
todo o mundo, que conseguiu isso apenas com a ação dos burocratas corporativos.
O Estado só se mexe para o bem, principalmente para fazer justiça, quando os
cidadãos livres se organizam para se defender do Estado interventor, inquisidor
e violador.
25. O terceiro imparcial e o direito de
defesa
O devido processo legal pressupõe duas partes que se chocam e
um terceiro imparcial que julga. Se o julgador for parcial, perde as condições
de fazer justiça. Não pode julgar. A defesa (ou a acusação) pode impugnar-lhe a
faculdade de conduzir o devido processo
legal. Esse princípio básico de qualquer sistema de justiça moderno que
queira fazer jus ao nome, vem sendo desprezado no Brasil, durante a vigência do
Estatuto entre os anos de 1990 ao ano 2000. Vira e mexe e temos nos jornais, no
rádio, na televisão, juizes da infância e da juventude, que muitas vezes se
intitulam juiz de menores (o que já
mostra sua índole para aplicar o velho e abolido Código) dando declarações e
manifestando opiniões que claramente os marcam como tendo parcialidade em
muitas das causas que devem... julgar.
Outras vezes temos o juiz agindo administrativamente como se
fosse o chefe de um sistema de exclusão
social. Fazem reuniões, ou determinam que sua equipe as faça, determinando coisas
e interferindo nos programas, os quais, segundo a clareza das regras dos art.90 e 91 do Estatuto, são da competência dos
municípios. Ou seja, o juiz, autoridade do Poder Judicial interfere
administrativamente em programas de outro Poder o Executivo. Com isso, viola o
princípio constitucional de independência e harmonia entre os poderes, além de
tornar-se impedido de julgar feitos que de alguma foram tenham a ver com esse
sistema de programas.
Juizes há também que expedem portaria como se fossem
legisladores, no que são acompanhados em muitos lugares por
promotores que expedem recomendações
a programas e a autoridades (por exemplo, Conselho Tutelar) que são verdadeiras
leis autocráticas.
Devem os advogados, assistentes sociais e demais técnicos ou
voluntários ficar atentos a tais manifestações e adotar imediatas ações, em
nível social, administrativo ou mesmo judicial para por um paradeiro nessa
fonte, também ela, iatrogênica em relação ao sistema
dinâmico, democrático, de cidadania a que se refere o Estatuto em seu Livro
Segundo, onde trata da Política de Atendimento aos Direitos da Criança e do
Adolescente.
26. Iatrogenia
jurídica, burocrática e social
Iatrogenia é um termo médico.
Significa a condição em que a submissão ao tratamento de certos males gera
outros males não previstos. Exemplo: O sujeito vai se curar de apendicite e
adquire infecção hospitalar. Vai fazer transfusão de sangue e adquire hepatite.
Nas políticas públicas latino-americanas para crianças e adolescentes (quando
vítimas ou quando vitimadores) tenho notado que
ocorre coisa igual. As pessoas, ao intervir para resolver o problema, geram
problemas tão ou mais graves que o que gerou sua intervenção.
Certas palavras com um significado inicial preciso e único,
com o tempo acabam adquirindo nova significação. Como exemplo temos a palavra quarentena que inicialmente significava
um período de quarenta dias. Hoje,
por necessidade prática, é perfeitamente correto nos referirmos a uma
quarentena de trinta dias, ou
quinze... Furtando o termo da área médica, tenho feito o mesmo, quando uso a
expressão iatrogenia jurídica, ou burocrática, ou
social (furto relativo, porque saúde é um estado humano holístico de bem estar
físico, mental e social). Falemos dela, pois, para melhor aquilatarmos o âmbito
da defesa ao adolescente acusado de praticar crimes ou contravenções.
Primeira forma da iatrogenia
jurídica (acompanhada de efeitos burocráticos e sociais): Tradicionalmente, os
casos levados à Justiça entram num sistema institucionalizado
(digamos a privação da liberdade, também chamada internação, ou prisão,
detenção, reclusão, custódia ou o que se queira) e esse sistema opera forçando
o condenado, ou sentenciado, ou punido, ou o que o valha, a ajustar-se ao sistema que o prende,
detém, reclui, interna, custodia. Esse ajuste é feito exigindo bom comportamento. Resultado: ou o sujeito
se ajusta e sofre outros males que
não o que o fez chegar ali, ou então reage e cria desordem, o que, se feito em
massa, gera esses horrores que assistimos hoje nas febens
(com esse ou com outros nomes - fundac, fiac, etc. - da vida).
O sistema de ajuste pode ser também em meio aberto. Mas isso não lhe tira a característica de ser uma institucionalização forçada (mesmo que
não se esteja preso entre muros) que gera sempre algum tipo de... iatrogenia (efeitos nocivos e em princípio indesejados ou
indesejáveis). O problema central é sempre o mesmo nesses sistemas: restringir
ou privar de liberdade como meio para ensinar, induzir ou preparar para a...
liberdade. Daí as contradições: punir e não dizer que pune. Prender e não dizer
ou admitir que prende. Coisa muito comum nesses sistemas iatrogênicos
é, na privação de liberdade por pratica de delito, dizer-se que se trata o
adolescente sem levar em conta o delito que o sentenciado praticou. Coisa
típica da iatrogenia institucionalizada. Falsidade.
Usarei pela primeira vez aqui a palavra forte: hipocrisia.
A Iatrogenia também pode ocorrer
quando não se diferenciam os programas previstos pelo Estatuto em regime de proteção e em regime sócio-educativo. Ou quando não se criam os programas em nível
municipal. Ou quando se executam as medidas aplicadas pelo juiz, através da
própria equipe... do juiz, deixando assim a autoridade judiciária de ser...
imparcial (a imparcialidade é indispensável para fazer justiça quando o programa falha).
Os programas de proteção (aqueles que não implicam em punição), quando bem feitos, são
autênticos programas de cidadania, de integração social, podemos hoje dizer, de
inclusão social. Mas os programas
sócio-educativos são reativos a uma conduta danosa do adolescente, implicam
necessariamente em limitação à liberdade do sentenciado (sim, sentenciado,
porque as medidas sócio-educativas só podem ser aplicadas em conseqüência de
uma... sentença judicial). Os, digamos assim, iatrogenistas
recusam-se a encarar o fato: garotos e garotas desses programas neles estão
porque são sentenciados. É cômodo fazer de conta que não é assim. Daí que a ação das quadrilhas, do tráfico e dos bandos acabam sendo mais
eficazes (para a anticidadania) que (para a
cidadania) os programas sócio-educativos que não ousam admitir o que são...
A observação da prática nos tem dito que o Conselho Municipal
dos Direitos da Criança e do Adolescente deve estar atento, seja através de
comissões especiais, seja por outro meio, para identificar as diversas formas
de iatrogenia
na proposição, na formulação, na execução e no controle dos programas de
proteção para vítimas e sócio-educativos, ou seja, de punição para vitimadores. Não vou me aprofundar no tema aqui. Reservo-me
para tratar em detalhes no texto em preparo acerca dos programas previstos no
artigo 90 do Estatuto.
Mas é importante alertar para o fato de que o Conselho trata
dos desvios que se caracterizam como iatrogenia
jurídica no âmbito dos direitos difusos (âmbito em que não se podem
identificar, desde logo, cada vítima, embora fique claro que o sistema provoca
danos). Mas o advogado constituído deve identificar e buscar os remédios
pertinentes de caráter social, administrativo ou judicial, para os males que o
sistema iatrogênico gera para o seu cliente. Mas não
apenas ao advogado cabe esse cuidado. A mesma coisa deve estar permanente sob o
crivo do assistente social, do psicólogo, do pedagogo ou de qualquer outro
profissional, auxiliar ou voluntário que tenham condições de identificar o
problema.
Aí vão dois exemplos concretos. Deixo para a imaginação ou
acuidade do leitor a tarefa de rastrear (em informática, scannear) os males que
paradoxalmente geramos nessas intervenções feitas para resolver problemas
humanos.
O primeiro exemplo, clássico, tem a ver com vítimas. Crianças
vítimas de abuso sexual em família. Nesses casos, se o sistema de atenção ao
problema não é bem concebido e organizado, misturam-se as
pretensões de defender a vítima e punir o vitimador.
Submete-se a criança vitimada a uma série de procedimentos (exame de corpo de
delito, confrontações com pretensas testemunhas, interrogatórios, estressantes
audiências) que nada mais são que outras formas de vitimização
pelo sistema - que seria para defender a vítima - sem que assim agindo se
obtenha solução para o problema. Iatrogenia.
O segundo exemplo, também clássico, refere-se a vitimadores. Aplicam-se medidas de internação (ou até mesmo
a liberdade assistida quando mal concebida) e os jovens assim punidos, no
sistema que devia prevenir futuras transgressões, passam a reciclar seus
conhecimentos no mundo do crime, aprendendo coisas que não sabiam, conhecendo
marginais que antes desconheciam, introjetando
hábitos, usos e costumes que não faziam parte de seu mundo, e passando a
contribuir para aumentar a criminalidade. Iatrogenia.
27. Apelo às seções locais
da OAB
O
advogado, no seu ministério privado, presta serviço público e exerce função social. Isso é o que diz o
parágrafo primeiro do artigo segundo do Estatuto da Ordem dos Advogados do
Brasil. Que as comunidades e os municípios percebam pois o quanto a ausência de advogados nos programas vem impedindo a plena
proteção às famílias e a defesa de si mesmas e de seus filhos e tomem
providências. Que as seções locais da OAB assumam a parte que lhes cabe nesse munus público e
contribuam para a eficácia da defesa criminal dos adolescentes acusados.
Ao longo deste texto, mesmo de forma incompleta, estão muitas
das sugestões para essa defesa, mesmo nos municípios muito pequenos e de parcos
recursos. Já não se falando dos grandes, das megalópolis,
que por sua complexidade e por seus recursos, não podem prescindir da defesa
especializada.
A integração operacional prevista no artigo 88, V do Estatuto pode ser
providenciada desde logo, na convicção de que a cidadania pressupõe seres
humanos livres para pensar, querer e agir, com seus choques e contradições. Em
nossa conflitante civilização, o advogado é o profissional em condições de
garantir, perante as pretensões punitivas do Estado, que a cidadania seja
respeitada para idosos, adultos, adolescentes e crianças.
Rio de Janeiro, julho de
2000.
Edson Sêda