Uniões homoafetivas: uma
realidade que o Brasil insiste em não ver
Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS.
Sumário: 1.
No Âmbito Constitucional; 2. No Âmbito Legal; 3. No Âmbito Judicial; 3.1.
Competência; 3.2. Alimentos; 3.3. Partilha de Bens; 3.4. Direito Sucessório;
3.5. Condição de Dependência; 4. Adoção; 5. Inserção como Direitos Humanos; 6.
O Novo Código Civil; 7. Uniões Homoafetivas
As questões que dizem com a sexualidade sempre foram e ainda são cercadas de mitos e tabus, e os chamados “desvios sexuais” – tidos como uma afronta à moral e aos bons costumes – permanecem alvo da mais profunda rejeição social. Tudo que se situa fora do modelo estabelecido acaba por ser rotulado de “anormal”, ou seja, fora da normalidade, o que não se encaixa nos padrões, visão essa polarizada e extremamente limitante.
No Brasil, como em praticamente todos os países do mundo, há uma nítida tentativa de negar a existência dos vínculos afetivos homossexuais, o que gera um sistema de exclusão permeado de preconceito. Tal postura da maioria da sociedade acaba por inibir o legislador de normar situações que fogem dos estereótipos de moralidade, por temor de afrontar segmentos conservadorismo social e gerar uma estigmatização que não combina com fins políticos e eleitoreiros.
Essa
atitude acaba se refletindo também na esfera jurídica. Além da omissão do legislador, o Poder Judiciário, extremamente acanhado e conservador, se nega
a emprestar visibilidade aos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. Sob o
fundamento de falta de previsão legal, os magistrados se sentem
impedidos de conceder direitos ou reconhecer obrigações quando as
demandas têm por base a existência de vínculos homossexuais.
Mas fechar
os olhos não faz desaparecer a realidade. A omissão legal e o temor judicial
acabam tão-só fomentando a discriminação e se tornando fonte de injustiças,
possibilitando o enriquecimento sem causa e a exacerbação de preconceitos.
1. No Âmbito Constitucional
A Constituição Federal, que data de 1988, consagra a existência de um
estado democrático de direito. O núcleo do atual sistema jurídico
brasileiro é o respeito à dignidade humana, baseado nos princípios da liberdade
e da igualdade.
De forma
enfática, a Carta Magna assegura como objetivo fundamental da República
Federativa do Brasil: promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação (inc. IV do art. 3º). Ainda que seja imperioso reconhecer
que proibição da discriminação sexual alcança a vedação à discriminação da
homossexualidade, as diretrizes traçadas
e os princípios insculpidos na Lei Maior não são suficientes para assegurar o
respeito à livre orientação sexual. Em face disso, antiga é a luta dos
movimentos ligados aos direitos humanos buscando inserir no elenco da Carta
Política a expressão “orientação sexual”. No entanto, o Projeto de Emenda
Constitucional que data de 1995 até agora não logrou obter aprovação.
2. No Âmbito Legal
O único
Projeto de Lei – entre os vários já apresentados – que se encontra em
tramitação é o de nº 1.151/95, sendo que teve seu nome trocado de união civil
para parceria civil registrada, segundo o substitutivo aprovado, para não haver
a possibilidade de ser confundida com casamento.
Visa tão-só
a autorizar a elaboração de um contrato escrito, a ser registrado em livro
próprio no Cartório do Registro Civil das Pessoas Naturais. Conforme diz a
própria justificativa do Projeto, não se propõe dar às parcerias homossexuais
status igual ao casamento. Busca
conceder amparo às pessoas que o firmam, priorizando a garantia dos direitos de
cidadania.
Essa
tentativa de regulamentação assegura às pessoas do mesmo sexo terem sua
parceria civil reconhecida. Ainda que não pressuponha a existência de uma relação
afetiva entre os parceiros, o projeto nitidamente visa a proteger as relações
homossexuais, criando um vínculo jurídico gerador de efeitos não só
patrimoniais mas também pessoais, não podendo ser enquadrado exclusivamente no
âmbito dos direitos obrigacionais.
Basta
observar que somente pessoas solteiras, viúvas ou divorciadas têm a
possibilidade de firmarem o contrato, mediante público instrumento a ser
submetido a registro cartorário. Há o impedimento de
alteração do estado civil dos parceiros durante sua vigência, e é reconhecida a nulidade de pleno direito do
contrato firmado com mais de uma pessoa. Em ambas as hipóteses a infração
configura o delito de falsidade ideológica, sujeito a
pena de um a cinco anos de reclusão.
Não é
autorizada a mudança de sobrenome em decorrência da assinação do pacto.
É livre a
possibilidade de estipulações de ordem patrimonial, inclusive com efeito
retroativo. Cabível é a imposição de deveres, impedimentos e obrigações mútuas,
mas é expressamente vedada qualquer disposição sobre adoção, tutela ou guarda
de crianças ou adolescentes em conjunto, mesmo que sejam filhos de um dos
parceiros.
Aos
contratantes são garantidos direitos previdenciários e sucessórios com algumas
restrições. O direito ao usufruto –
instituto de nítido caráter protetivo – tem
finalidade alimentar e evidencia, às claras, o caráter familiar do instituto.
Assim, não se justifica a falta de previsão de alimentos, pois é assegurado
amparo por morte, mas não para o caso de rompimento da relação. Porém, não há
qualquer impedimento de se prever obrigação alimentar entre as cláusulas do
pacto.
O projeto
de lei assegura o direito à meação se os bens deixados pelo autor da herança
resultarem de atividade em que haja a colaboração do parceiro. Este dispositivo
é pouco claro, pois exige a prova do esforço comum, mas determina a divisão paritária do patrimônio. Ao depois, o direito do parceiro
prevalece ao direito dos descendentes e ascendentes, pois subtrai destes o
direito ao uso dos bens. Enquanto não firme o parceiro sobrevivente novo pacto,
lhe é assegurado o direito ao usufruto de um quarto dos bens, se houver filhos
do de cujus, e da metade, embora não sobrevivam
ascendentes. Tal dispositivo igualmente se ressente de clareza, uma vez que, em
outro artigo, é garantido ao sobrevivente o direito à totalidade da herança na
inexistência de descendentes ou ascendentes.
Tem o parceiro preferência aos familiares para o exercício da
curatela. São assegurados a impenhorabilidade da residência comum e o direito
de nacionalidade em caso de estrangeiros. Também há a possibilidade de
indicação do par na declaração do imposto de renda, sendo que os rendimentos de
ambos podem participar na composição para compra ou aluguel de imóvel.
A extinção
da parceria ocorre por morte ou por decreto judicial face à ocorrência de
infração contratual ou mediante simples alegação de desinteresse de um dos
contratantes. Mesmo havendo consenso entre os parceiros,
necessária é a homologação do distrato em juízo. Dita exigência que não
tem qualquer justificativa nessa espécie de vínculo jurídico, pois quando se
trata de relações extramatrimoniais – chamadas de
uniões estáveis – dispensável a intervenção judicial
para sua extinção. Somente para dissolver-se o casamento é que as partes devem
obter a chancela do Poder Judiciário.
O Projeto,
mesmo já sendo considerado acanhado, em face dos avanços legislativos de outros
países, por uma dezena de vezes, foi
pautado para votação, mas nunca chegou a ser apreciado. De qualquer forma, tem
poucas chances de merecer imediata aprovação. Apesar de os movimentos chamados
GLS – gays, lésbicas e simpatizantes – serem muito articulados e ativos, as
forças conservadoras do Congresso Nacional, as quais congregam todos os segmentos religiosas, formam uma barreira quase
inviolável. Afigura-se, assim, remota a possibilidade de o Brasil dispor de
alguma legislação que regule tais relacionamentos tidos ainda como “marginais”.
O que tem
proliferado são leis em nível municipal, buscando a repressão de atos
discriminatórios, bem como algumas Constituições dos Estados vêm inserindo em
seus textos a livre orientação sexual no rol dos direitos fundamentais.
3. No Âmbito Judicial
Ainda
quando o direito se encontra envolto em uma auréola de preconceito, o juiz não
pode ter medo de fazer justiça. A função judicial é assegurar
direitos, e não bani-los pelo simples fato de determinadas posturas se
afastarem do que se convencionou chamar de “corretas”. Vivenciar uma situação
não prevista na legislação não significa viver à margem da lei e muito menos
quer dizer que tal omissão deixa alguém desprovido de direito. Nada justifica a
vedação de acesso à Justiça e a busca da tutela jurídica para regular
situações, pelo simples fatos de falta de previsão legal.
A
circunstância de inexistir legislação que contemple os direitos emergentes das
relações homossexuais, no entanto, não tem impedido que algumas questões
aportem no Judiciário.
A
dificuldade de se reconhecer a existência de um
vínculo afetivo como fundamento das pretensões deduzidas em juízo tem levado à
concessão de restritos direitos e ao deferimento de bem poucos benefícios, e
isso em um espectro muito limitado.
Cabe trazer
a posição da jurisprudência brasileira sobre algumas questões ligadas ao tema.
3.1. Competência
Independentemente
de quais sejam os direitos reclamados em juízo, as ações
fundadas na existência de um vínculo afetivo homossexual apontam tal
circunstância como causa de pedir. Porém, a quase unanimidade dos julgados
reconhece no máximo a presença de uma sociedade de fato, confinando-a no
Direito Obrigacional, sem visualizar a presença de uma entidade familiar, à
semelhança da união estável heterossexual. Dita diferenciação impede extrair
dos relacionamentos toda a gama de efeitos jurídicos que existem exclusivamente
no âmbito do Direito de Família.
A
resistência em identificar os vínculos entre pessoas do mesmo sexo como uma
entidade familiar sempre levava as
demandas afetas a ditos relacionamentos a serem distribuídas às Varas Cíveis, e
não às Varas de Família. Decisão pioneira da Justiça do Rio Grande do Sul,
datada de junho de 1999, fixou a competência das Varas de Família para julgar
ação decorrente de relacionamento homossexual (AI nº 599.075.496), dando o
primeiro passo para se conceder à união homossexual status de família.
A partir de
tal posicionamento jurisprudencial, ao menos nesse Estado da Federação, todas
as ações envolvendo os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo foram
transferidas das Varas Cíveis para as Varas de Família. Igualmente restou
atribuída às Câmaras de Família do Tribunal de Justiça a
competência para o julgamento dos respectivos recursos. Merece registro que
esse é o único Estado cujas Câmaras recursais são especializadas, tendo a
competência definida por matéria. Esse motivo certamente é que tem levado a
Justiça gaúcha a ser considerada a que mais avanços vem
introduzindo, principalmente no
âmbito do Direito de Família de um modo geral e particularmente nas questões
que envolvem os pares do mesmo sexo.
3.2. Alimentos
Ainda que
tramitando as ações nos Juizados de Família, permanecem as uniões homossexuais
sendo consideradas fora do âmbito do Direito de Família, o que inibe inclusive
o ingresso de ações buscando alimentos.
O único
julgamento de que se tem notícia foi o do Agravo de Instrumento nº 70000535542,
Relator o Des. Antonio Carlos Stangler Pereira, da 8ª
Câmara Cível do TJRS, que, por maioria, rejeitou o pedido de alimentos
provisórios formulado em decorrência do fim de relação que perdurou por 8 anos.
3.3. Partilha de Bens
Finda a relação pelo rompimento do vínculo afetivo, o pedido que com mais freqüência vem a juízo é o de partilha do patrimônio amealhado durante o período de vida em comum.
Nos
julgamentos que envolvem o fim das relações de pessoas do mesmo sexo, no dilema
entre praticar uma injustiça e afrontar tabus e preconceitos, de forma tímida,
a tendência da jurisprudência é de, no máximo, reconhecer o direito à divisão
proporcional do patrimônio.
Não
emprestando qualquer relevo ou significado à natureza do relacionamento das
partes, invoca-se o art. 1.363 do Código Civil, que regula a
sociedade de fato: celebram contrato de sociedade as pessoas que
mutuamente se obrigam a combinar seus esforços ou recursos, para lograr fins
comuns. Portanto, o fundamento para o deferimento da partilha de bens não é o
reconhecimento de um estado condominial decorrente da vida em comum, mas a mera
repulsa à possibilidade de enriquecimento injustificável.
Exige-se,
por conseqüência, a prova da efetiva participação de cada um na formação do
acervo patrimonial. Tenta-se identificar o aporte econômico de cada parceiro
para a aquisição dos bens, a fim de se estabelecer sua proporcional partição.
Tal solução, ainda que vise a impedir a ilicitude do proveito exclusivo do
titular do domínio, na grande maioria das vezes resta por perpetrar resultados
que em muito se distanciam de uma solução justa. Quer porque são
relacionamentos que guardam uma certa discrição – o que dificulta uma probação testemunhal – quer porque se empresta valia
somente à contribuição de cunho financeiro. Não se reconhece conteúdo econômico
no próprio cuidado e desvelo mútuo ou às atividades domésticas, quando são
desempenhadas por um do par, que não desempenha atividade laboral. Trata-se assim como uma sociedade de fato o
que nada mais é do que uma sociedade de afeto.
3.4. Direito
Sucessório
Quando da
morte de um dos parceiros – mas também em número muito acanhado – é buscada em
juízo, em regra, somente a partilha dos bens adquiridos durante o período de convívio,
e não a integralidade do acervo hereditário. Pretende-se a meação, sob o
fundamento da existência de uma sociedade de fato, e não o direito à herança,
tendo como pressuposto a existência de um núcleo familiar. Não é invocado o direito sucessório nem alegada a qualidade de herdeiro
ou sucessor, mesmo quando inexistam herdeiros necessários.
Díspares
são as decisões, mas é majoritária a tendência de rejeitar a demanda, pois
enorme a dificuldade até para o reconhecimento de uma sociedade de fato. Recusa-se
sistematicamente atribuir a condição de herdeiro ao parceiro, o que leva a
excluí-lo da ordem de vocação hereditária e a alijá-lo dos direitos
sucessórios.
O Superior
Tribunal de Justiça, ao julgar em grau de recurso especial, assim decidiu: o
parceiro tem o direito de receber a metade do patrimônio adquirido pelo esforço
comum, reconhecida a existência de sociedade de fato. (REsp 148897/MG).
Tais
soluções restam por gerar um descabido beneficiamento dos familiares distantes
que, normalmente, rejeitavam, rechaçavam e ridicularizavam a orientação sexual
do de cujus. De outro lado, na ausência de parentes,
acaba havendo o recolhimento da herança ao Estado pela declaração de vacância,
em prejuízo de quem deveria ser reconhecido como o titular dos direitos
hereditários.
Mais do que
isso, não evoluía a jurisprudência.
A pioneira
decisão que logrou visualizar em tais vínculos uma verdadeira entidade familiar
foi proferida também pela Justiça do Rio Grande do Sul em data de 14 de março
de 2001. Ainda que por maioria, a 7ª Câmara Cível – a qual tenho a honra de
presidir – no julgamento da Apelação Cível nº 70001388982, tendo como Relator o
Desembargador José Carlos Teixeira Georgis, assim se
manifestou:
UNIÃO
HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. CONTRIBUIÇÃO DOS
PARCEIROS. MEAÇÃO. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência
de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos
derivados destas relações homoafetivas. Embora
permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar,
mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem
conseqüências semelhantes as que vigoram
nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios
gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade
humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do
relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo
onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação provida, em parte, para
assegurar a divisão do acervo entre os parceiros. Voto vencido.
Em face da
omissão legal, analogicamente foi aplicada a legislação que regula as uniões extramatrimoniais. Buscando subsídios na legislação que
rege a união estável, que presume a mútua colaboração,
a gerar um estado condominial, foi determinada a divisão igualitária do acervo
patrimonial amealhado durante o período de convivência.
Depois
desta decisão já em mais três Estados foram reconhecidos a
mesma espécie de direitos. A Justiça, ao deferir ao parceiro o direito à meação, vem retirando a venda dos
olhos. No momento em que se consolidar essa orientação de ver ditas relações
como vínculos afetivos, ao certo, tal em muito contribuirá para amenizar a
aversão da sociedade. É que existe a tendência de se aceitar o que o Poder
Judiciário referenda como certo.
Assim, de
forma corajosa, vem os juízes cumprindo sua função renovadora,
pois, através da jurisprudência acaba sendo estabelecidas pautas de conduta de
caráter geral. Mesmo apreciando o caso concreto, funciona o juiz como agente
transformador da própria sociedade. Ora, se duas pessoas têm uma vida em comum,
cumprindo deveres de mútua assistência, em um verdadeiro convívio caracterizado
por amor e respeito mútuo, não é a identidade meramente biológica de sexos do
par que impedirá de se extraírem direitos e imporem obrigações. Assim,
irreversível a tendência de se identificarem os relacionamentos afetivos,
independente do sexo dos parceiros, como uma entidade familiar merecedora de
respaldo legal e da tutela do Estado.
3.5. Condição de Dependência
Esparsas e
muito raras eram as decisões que reconheciam a condição de dependência aos
parceiros do mesmo sexo, assegurando-lhes a inclusão em planos previdenciários
e assistenciais.
Assim, de
enorme significado a demanda intentada pelo Ministério Público Federal, de
eficácia erga omnes.
Sob o fundamento de que viola o dogma constitucional de respeito à dignidade
humana e afronta o princípio da igualdade, que proíbe discriminação sexual, foi
liminarmente reconhecida a qualidade de dependente aos
companheiros de homossexuais junto ao órgão previdenciário federal, garantindo
auxílio-reclusão e a percepção da pensão por morte do beneficiário.
A liminar,
confirmada em todas as instâncias recursais, levou o Instituto Nacional do
Seguro Social a editar a Instrução Normativa n.º 25/2000, que estabelece, por
força de decisão judicial, procedimentos a serem adotados para a concessão de
benefícios previdenciários ao companheiro ou companheira homossexual.
Apesar do
caráter administrativo de tal regra, é a primeira normatização
que contempla as relações homossexuais, primeiro passo para enlaçar na esfera
da juridicidade tais relacionamentos.
Assim, ao
menos até o julgamento de mérito da ação, estão assegurados no Brasil – até
para os vínculos que se romperam antes da edição da medida normativa – os
direitos previdenciários.
4. Adoção
A mais
tormentosa questão que se coloca e que mais tem dividido as opiniões é quando
se fala no direito à adoção por parceiros do mesmo sexo. A grande dúvida sempre
suscitada como fundamento para não se aceitar a adoção, quer individualmente,
quer por um par homossexual, está centrada em preocupações quanto ao sadio
desenvolvimento da criança.
A enorme
resistência decorre da crença de haver um dano potencial à criança, por
ausência de parâmetros comportamentais, o que viria a ensejar, no futuro,
seqüelas de ordem psicológica. Questiona-se se a ausência de referenciais de
uma dupla postura sexual poderia eventualmente tornar confusa a própria
identidade de gênero, com o risco de tornar-se homossexual. Também causa
apreensão a possibilidade de ela ser alvo de repúdio no meio que freqüenta ou
vítima do escárnio por parte de colegas e vizinhos, o que, em tese, poderia-lhe acarretar perturbações de ordem psíquica. Também
existe uma tendência de ver tais relacionamentos como promíscuos
e amorais o que deixa revelar o temor de práticas sexuais na presença do
menor ou que seja este alvo de abuso sexual
de parte de um dos pais ou mães.
Essas
preocupações são afastadas com segurança por quem se debruça no estudo das
famílias com essa conformação. Essencialmente não foram detectadas diferenças
na identidade de gênero, no comportamento sexual ou na orientação sexual de
tais infantes. Diante desses resultados, não há como prevalecer o mito de que
conviver com pais do mesmo sexo pode comprometer a estabilidade emocional do
filho. Portanto, equivocada a assertiva de que o menor que vive em um lar
homossexual será socialmente estigmatizado e terá prejudicado seu
desenvolvimento, ou que a falta de um modelo heterossexual acarretará a perda
de referenciais ou tornará confusa a identidade de gênero.
Assim,
imperioso concluir serem preconceituosos os escrúpulos existentes. É necessário
revolver princípios, rever valores, abrir espaços para novas discussões e
afastar as objeções, para que sejam admitidas adoções por indivíduos ou casais
homossexuais. Dita resistência resta por excluir a possibilidade de um
expressivo número de crianças serem subtraídas da marginalidade, quando
poderiam ter uma vida cercada de afeto e atenção.
Posturas
pessoais ou convicções de ordem moral de caráter subjetivo não podem impedir
que se reconheça que uma criança sem pais e sem lar terá uma formação mais condizente
com as exigências da vida, se integrada a uma família, seja esta formada por
pessoas de sexos distintos ou não.
A lei que
trata de todas as questões envolvendo crianças e adolescentes, data de 1990.
Trata-se do Estatuto da Criança e do
Adolescente, com certeza uma das leis mais avançadas de proteção ao menor e não
traz qualquer restrição à possibilidade de adotar. Outorgado tal direito tanto
ao homem como à mulher, conjunta ou isoladamente, não fazendo qualquer
referência à orientação sexual do adotante.
No entanto,
raras são as decisões judiciais que deferem pedido de adoção formulado por
homossexuais, quando eles não ocultam sua condição. Praticamente solitária era
a postura do magistrado carioca Siro Darlan de Oliveira, tanto deferindo a adoção, como
habilitando um homossexual para adotar, tendo sido ambas confirmadas em sede
recursal pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (AC14.332/98 e AC
14.979/98). Agora este Estado está desenvolvendo uma campanha de incentivo para
que homossexuais adotem crianças que se encontram abandonadas em instituições.
No entanto, ainda assim, só se está deferindo adoção a uma pessoa, mesmo que
esta viva na companhia de outrem que vai conviver com a criança.
Esta
resistência não se justifica nem por razões registrais. A determinação legal de
que, no assento de nascimento, sejam os adotantes inscritos como pais,
ocorrendo simples substituição da filiação biológica, não pode servir de
justificativa para se sustentar a possibilidade de
adoção por duas pessoas do mesmo sexo. Não há nenhum empecilho de que
conste como pais no registro de
nascimento dois homens ou duas mulheres. Ainda que se presuma que a lei não
tenha cogitado a hipótese de ocorrer a adoção por um
par homossexual, não há justificativa para
sustentar a possibilidade de sua ocorrência.
Apesar de
nada respaldar a limitação, não se tem notícia de já ter sido requerida e muito
menos deferida a adoção a um casal homossexual, restrição que acaba por gerar
situações injustas, vindo exclusivamente em prejuízo do próprio menor.
A vivência
de crianças e adolescentes em lares homossexuais é uma realidade. E deferir-se
a adoção a um só dos parceiros assegura ao menor direito a alimentos e
benefícios de cunho previdenciário ou sucessório somente com relação ao adotante.
Quer pela separação do par, quer pela morte do que não tem legalmente um liame registral, dita limitação lhe acarreta injustificáveis
perdas, por não poder desfrutar de qualquer direito com relação àquele que
também tem como verdadeiramente seu pai ou sua mãe.
Imperioso
concluir que, de forma paradoxal, o intuito de resguardar e preservar a criança
resta por subtrair-lhe a possibilidade de usufruir direitos que de fato possui,
limitação que afronta a própria finalidade protetiva
decantada na Carta Constitucional e perseguida pela lei.
Empecilhos
de toda ordem – que existem ou são criados – fazem com que soluções outras
sejam buscadas por quem quer consolidar uma família por meio da prole. É usual lésbicas extraírem o óvulo de uma, fecundá-lo in vitro por espermatozóide de um doador, sendo o embrião
implantado no útero da outra, que leva a termo a gestação. Como a criança será
registrada somente em nome de quem deu à luz a criança, não tem a outra – que
na verdade é a mãe biológica – qualquer
vínculo, sequer obrigacional, com o filho que, afinal, é seu. Os prejuízos
decorrentes dessa limitação são previsíveis. Registrada somente em nome de uma
das mães, só dela pode buscar direitos e cobrar deveres.
Os casais
masculinos, por seu turno, socorrem-se das chamadas “barrigas de aluguel”. Por
meio de inseminação artificial, inclusive com utilização simultânea do sêmen de
ambos, para não identificar qual deles é o genitor. A criança é tida como filho
dos dois. Por igual, nesses casos, a impossibilidade de adoção conjunta subtrai
o direito de o menor usufruir qualquer benefício com referência a quem
igualmente considera como seu pai.
Recente decisão judicial, deferindo a guarda de um menino de 10 anos à parceira
da mãe, quando de seu falecimento,
causou grande repercussão. A mãe biológica, cantora muito prestigiada,
nunca escondeu seu relacionamento homossexual de muitos anos, sendo que em
entrevistas costumava revelar sua preocupação com a sorte de sua parceira.
Durante o período de convívio, que perdurou 16 anos, a popular cantora teve um
filho cujo pai faleceu antes do seu
nascimento, e ele foi registrado exclusivamente no nome da mãe. Mas desde
sempre conviveu com ambas, sendo que identificava como mãe a outra, que o cuidava
enquanto a genitora passava viajando e fazendo turnês. Após a morte o avô
paterno entrou com o pedido de guarda do neto, mas liminarmente, respeitando a
vontade expressa do menino, a guarda foi deferida a quem desempenhava as
funções maternas.
5. Inserção como Direitos Humanos
Indispensável
que se reconheça que a sexualidade integra a própria condição humana. Ninguém
pode realizar-se se não tiver assegurado o respeito à liberdade, conceito que
alberga a liberdade da livre orientação sexual.
Ao
visualizarem-se os direitos de forma desdobrada em gerações, mister reconhecer
que a sexualidade é um direito do primeiro grupo, pois cuida-se
de direito à liberdade sexual, bem como direito ao tratamento igualitário,
independente da tendência sexual. Trata-se, assim, de uma liberdade individual,
um direito do indivíduo, sendo, como todos os direitos de primeira geração,
inalienável e imprescritível. É um direito natural que acompanha o ser humano
desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria natureza.
Também não
se pode deixar de ter a livre orientação sexual como um direito de segunda
geração, fazendo parte de uma categoria social que deve ser protegida. A hipossuficiência não pode ser identificada somente sob um
viés econômico. A hipossuficiência é social, é
jurídica, trata-se de deficiência de normação
jurídica. Portanto, são hipossuficientes a mulher, o
idoso, o deficiente, o negro, o judeu, incluindo-se neste elenco, à evidência,
também os homossexuais, que, como os demais, sempre foram alvo da exclusão
social.
Igualmente
o direito à sexualidade avança para ser inserido como um direito de terceira
geração. São os direitos componentes da dignidade humana,
difusos quanto à titularidade subjetiva e direitos de solidariedade quanto ao
objeto. Esses direitos da humanidade são os direitos humanos por
natureza, em que se insere o respeito ao livre exercício da sexualidade. Não se
pode afrontar a liberdade fundamental a que faz jus todo ser humano no que diz
com sua orientação sexual, que integra a esfera de privacidade e não admite
restrições.
6. O Novo
Código Civil
Depois de
tramitar por 27 anos, apesar de muitas contestações, no presente ano foi
aprovado um novo Código Civil, que entrará em vigor no dia 10
de janeiro de 2003. Este estatuto, que já nasce superado pois foi
elaborado antes da aprovação da Lei do Divórcio, que é do ano de 1997 e da
Constituição Federal, promulgada em 1988, e que produziu uma verdadeira
revolução principalmente no âmbito do
Direito de Família.
Assim, é de
todo descabido ter o novo Código Civil silenciado sobre os vínculos que não se
definem pela diferença do sexo do par. Como há mais de cinco anos tramita
projeto de lei que busca inserir no âmbito jurídico a chamada “parceria civil
registrada”, não se justifica sua exclusão do estatuto codificado recém-aprovado.
Nenhum óbice constitucional existe – como sustenta a justificativa do novo Código – para identificar tais uniões como entidade familiar. Diz o art. 226, § 3º da Constituição Federal: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. No entanto, a Carta Constitucional não diz que não se considera entidade familiar o vínculo entre dois homens ou duas mulheres. No máximo se pode afirmar que não houve a determinação de que uma lei deva facilitar sua conversão em casamento. Ora, havendo uniões com as características de entidade familiar com distinta configuração, imperioso emprestar-lhes juridicidade.
O fato é
que durante o período da vacatio legis se está
buscando corrigir essa omissão nitidamente preconceituosa. Somente assim se
estará dando eficácia social à garantia constitucional de igualdade,
pressuposto da liberdade individual e base do estado democrático de direito.
7. Uniões Homoafetivas
De forma
cômoda, o Judiciário busca não ver e nada deferir. No máximo busca subterfúgios
no campo do Direito das Obrigações, identificando como uma sociedade de fato o
que nada mais é do que uma sociedade de afeto. A exclusão de tais
relacionamentos da órbita do Direito de Família acaba impedindo a concessão dos
direitos que defluem das relações familiares, tais como direitos à meação, à
herança, ao usufruto, à habitação, a alimentos, a benefícios previdenciários,
entre tantos outros.
Relegar
tais questões ao âmbito obrigacional gera, no mínimo, um paradoxo, pois os
juízes de família acabavam se socorrendo de distinto ramo do Direito para cujo
julgamento não detinham competência.
Descabe
continuar pensando com preconceitos, isto é, com conceitos preestabelecidos e
que ainda se encontram encharcados de conservadorismo. É necessário
pensar com conceitos jurídicos, e para isso é necessário pensar novos
conceitos.
Daí a missão fundamental da jurisprudência, que necessita desempenhar seu papel de agente transformador dos estagnados conceitos da sociedade. Tal como ocorreu com a união estável heterossexual: a alteração do conceito social das chamadas relações concubinárias foi provocada pelos operadores do Direito, que, ao extraírem conseqüências jurídicas de ditos relacionamentos, fizeram-nos chegar à sede constitucional, sendo reconhecidos como entidade familiar.
Ao menos
até que o legislador siga a trilha da Justiça e flagre o descaso do Estado em
regulamentar tais relações, que merecem, no Brasil, como já dispõem na maioria
dos países do mundo, uma regulamentação própria, a responsabilidade é do Poder
Judiciário.
Ainda que
tenha vindo a Constituição, com ares de modernidade, outorgar a proteção do
Estado à família, independentemente da celebração do casamento, continuou a
ignorar a existência de entidades familiares formadas por pessoas do mesmo
sexo. Ora, não se diferencia mais a família pela ocorrência do casamento. A
existência de prole não é essencial para que a convivência mereça
reconhecimento, sendo que a proteção constitucional é outorgada também às
famílias monoparentais. Se prole ou capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de
duas pessoas mereça a proteção legal, descabe deixar fora do conceito de
família as relações homoafetivas.
Presentes
os requisitos de vida em comum, coabitação, laços afetivos, divisão de
despesas, é de se concederem os mesmos direitos deferidos às relações
heterossexuais que tenham idênticas características. Na lacuna da lei, na falta
de normatização, deve o julgador se socorrer do art.
4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que determina a aplicação da analogia,
dos costumes e princípios gerais de direito. Ora, analogia só pode ser feita
com as demais relações que têm o afeto por causa, ou seja, o casamento e as
uniões estáveis.
Enquanto a
lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança de mentalidade, a evolução
do conceito de moralidade, ninguém, muito menos os operadores
do Direito, podem, em nome de uma postura preconceituosa ou discriminatória,
fechar os olhos a essa nova realidade e se tornar fonte de grandes injustiças.
Descabe confundir questões jurídicas com questões morais ou religiosas.
A mesma
responsabilidade já assumiu a Justiça com referência às uniões extraconjugais.
Deve agora mostrar igual independência e coragem quanto às uniões homossexuais.
Ambas são relações afetivas, vínculos em que há comprometimento amoroso, e
imperioso é reconhecer a existência de um gênero de união estável que comporta mais de uma espécie, ou seja, relações hetero e homoafetivas. Ambas
fazem jus a mesma proteção, e, enquanto não surgir
legislação que a regule especificamente, é de aplicar-se a legislação
pertinente aos vínculos familiares.
Indispensável
que se reconheça que os vínculos homoafetivos – muito
mais do que relações homossexuais – configuram uma categoria social que não
pode mais ser discriminada ou marginalizada pelo preconceito. Está na hora de o
Estado, que se quer democrático e que consagra como princípio maior o respeito
à dignidade da pessoa humana, passar a reconhecer que todos os cidadãos dispõem
do direito individual à liberdade, do direito social de escolha e do direito
humano à felicidade.
(Artigo
publicado na Revista Justiça & História, vol. 2, n°3,
2002, Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul, pp. 399/414, e Boletim
ADCOAS, doutrina, n°11, nov/2002, pp. 390/395)