ABRIGAGEM NECESSÁRIA – PREJUÍZOS INEVITÁVEIS
Assistentes Sociais.
Suely Silva
Santos
Assistentes
Sociais.
Ana Paula Melchiors Stahlschmidt
Psicóloga.
O trabalho desenvolvido na Casa de Passagem para Crianças Vítimas de Violência na Família, vem nos demandando esforços no sentido de problematizar e discutir a questão do desenvolvimento psíquico, social e educacional da criança, quando em uma situação de abrigagem, bem como os efeitos da quebra de laços familiares, ou mesmo o afastamento com revinculação prevista. Que contribuições ou prejuízos a institucionalização pode trazer a estas crianças?
Em primeiro
lugar, cabe ressaltar que o abrigo é medida protetiva, provisória e
excepcional, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente, visto ser
esta uma situação não natural, em que a criança é retirada de seu ambiente e
passa a ser cuidada por pessoas a quem até então não conhecia, e cujos
referenciais, muitas vezes, se encontram completamente desvinculados aos de seu
contexto social e familiar. É pois, uma medida que exige da criança um grande despêndio de energia psíquica, na dura tarefa de
organizar-se neste novo espaço institucional, com suas normas, valores,
características, bem como aos diversos relacionamentos que se exigirá nesse,
tanto com os educadores quanto com as demais crianças. Além, dos desdobramentos
de sua abrigagem com as demais instituições, tais
como o Conselho Tutelar, o Juizado da Infância e da Juventude e outros.
Apesar de
difícil para a criança, a medida de abrigagem muitas
vezes pode, justamente pelas características que apresenta, ser imprescindível
para seu desenvolvimento integral. Tomemos, por exemplo, o caso de uma criança
vítima de maus-tratos, que ao ingressar na Casa de Passagem, pode sentir-se
inicialmente confusa, e mesmo assustada. Nesse novo ambiente, tenderá a
reproduzir com os adultos a sua volta, o tipo de relação a que está habituada,
chegando mesmo a provocar seus educadores à agredi-la,
ou a tentar estabelecer contatos sexualizados com
esses ou com outras crianças. Percebendo que esses adultos não se comportam em
relação a ela da mesma forma, ou seja, não reproduzem suas vivências
anteriores, mas conseguem, ao contrário, criar relações em que possa se sentir
cuidada e protegida, geralmente a criança tranqüiliza-se e passa a sentir o
abrigo como um local de proteção e promoção de direitos.
Por outro
lado, para que o trabalho deste abrigo possa ser feito sem o risco da
intervenção nociva ou ameaçadora dos maltratantes, é
necessário que possa existir o sigilo em relação a seu endereço. Tal sigilo é
fundamental não apenas pelo risco que o conhecimento do local, por parte de
seus violadores, representaria para a criança, mas também para que se obtenha
sua confiança, oferecendo um local onde possa sentir-se protegida e segura.
Diante disso, os contatos com os familiares das crianças são feitos em espaços
que garantam a segurança dessa, como por exemplo, conselhos tutelares e centros
de assistência social locais.
Objetivando,
ainda, a garantia dessa proteção, são rompidos temporariamente seus laços
familiares e comunitários originais e estabelecidos outros, quando possível,
aos quais pode dirigir-se somente com o acompanhamento de um educador. Por
outro lado, tal medida, mesmo que imprescindível, gera na criança um decréscimo
de sua autonomia e, muitas vezes,
insegurança ao se deparar com a necessidade de circulação em espaços
comunitários.
Como
salientado anteriormente, embora os prejuízos de uma abrigagem
sejam evidentes e inevitáveis, em muitos
casos, tal medida é fundamental, não apenas para o desenvolvimento e segurança
da criança, mas para que não seja novamente exposta aos riscos anteriormente
vividos. Torna-se, portanto, indispensável a
existência de um espaço como este, a fim de que, apesar das dificuldades e
prejuízos que gera, possamos minimizar os riscos infligidos a essas
crianças.
Se tal
necessidade é inquestionável no caso da família em que existe a presença de
maus-tratos, com risco de os transgressores virem a procurar pela criança ou
mesmo ameaçá-la de formas diversas, se torna problemática a abrigagem de crianças encaminhadas em função de
negligência, abandono, ou mesmo maus-tratos gerados por desinformação
dos pais ou responsáveis, e não por sadismo. Nesses casos, vemos o rompimento
desnecessário dos laços sociais da criança, sua perda de autonomia e o
afastamento forçado de sua comunidade, sem motivos que justifiquem tal medida.
Afinal, ainda que tais pais se mostrem insuficientes, negligentes ou mesmo
incapazes, não são ameaçadores, do ponto de vista da criança.
Observa-se
nos casos mencionados, que uma família, muitas vezes desestruturada,
desinformada e com dificuldades em relação a sua auto-estima e a autorizar-se a
agir como “cuidadora” de seu filho, é subitamente informada de que seu filho se
encontra afastado, em espaço sigiloso, que não podem freqüentar, e do qual a
criança só sai acompanhada por outros responsáveis. É como reafirmar a essa
família sua inadequação e sua insuficiência em relação a este filho, levando-a
não a reaproximar-se ou buscar seu lugar mas, ao invés
disso, gerando um afastamento e um abandono ainda maior. Afinal, “se meu filho
está em um lugar sobre o qual não posso saber, é por que realmente sou uma
péssima mãe, e é melhor que ele fique mesmo lá, onde está sendo cuidado”. Por
diversas vezes, nos deparamos com argumentos desta ordem. Diante desses, a abrigagem acaba sendo nociva à criança e sua família, visto
romper bruscamente com laços fragilizados.
Desta
forma, buscamos garantir que seja mantido o perfil de atendimento deste abrigo,
indicando-o realmente a casos que demandem sigilo e justifiquem as
características que apresenta, e minimizando os efeitos prejudiciais de uma abrigagem inadequada. O argumento de que, de qualquer forma
“a criança estará melhor na Casa de Passagem do que na rua” evidencia uma forma simplista de pensar a
criança em um contexto específico, como um abrigo com características
específicas, como este e, portanto, carece de respaldo técnico.
Por outro
lado, é preciso refletir sobre toda a complexidade que envolve um processo de abrigagem, e as múltiplas conseqüências deste para a
criança, buscando a cada caso, se a medida for inevitável, o encaminhamento
adequado para o seu acolhimento. Com isso, reafirmamos a necessidade de que se
priorize o atendimento mais qualificado à criança em todas as esferas com a
ampliação dos programas destinados à família, assim como a definição dos papéis
desenvolvidos pelos diferentes agentes sociais implicados neste contexto.
Tendo em
vista os aspectos abordados, propomos que seja considerada a seguinte fórmula,
como parâmetro de avaliação sistemática das abrigagens
a serem realizadas, a fim de favorecer o desenvolvimento integral da criança,
realizando os encaminhamentos adequados e superando a perpetuação das práticas
de resolução das questões sociais envolvendo a infância pobre, que,
historicamente, promovem a institucionalização e a conseqüente desintegração
familiar e segregação social.
Concluímos
que sempre deve-se levar em consideração os
benefícios, os prejuízos e a proporção entre ambos, quando cogitamos a abrigagem de uma criança ou adolescente. Ou seja, a abrigagem deve ser necessária à criança e não a quem a está
solicitando.