PESQUISA MULTICULTURAL SOBRE SAÚDE DO ADOLESCENTE: UMA PERSPECTIVA EM SAÚDE PÚBLICA
Pierre-André Michaud
Unidade Multidisciplinar de Saúde do Adolescente.
Centro Hospitalar Universitário Vaudois, Lausanne, Suíça.
Resumo: Devido a um renovado interesse em questões transculturais, muitos estudos sobre adolescentes foram realizados nestes últimos anos e descritos como transculturais. Sejam eles regionais, nacionais ou internacionais, esses estudos geralmente incluem adolescentes de vários backgrounds étnicos e culturais, mas a eles falta uma verdadeira estrutura multicultural.
O objetivo desta apresentação foi investigar alguns dos desafios
enfrentados pela maioria dos estudos que têm por alvo comportamentos do
adolescente relacionados à saúde. Três questões principais foram desenvolvidas:
(a) a definição de cultura e sua incorporação na coleta de dados (estrutura
conceitual); (b) técnica de amostragem, análises e interpretação dos dados
sensíveis a efeitos e respostas culturais; e (c) disseminação dos resultados
que fazem justiça aos diferentes grupos culturais alvo.
Mais especificamente, as análises dos dados devem ser realizadas tanto através
como entre as distintas sub-amostras culturais e os
resultados também devem ser apresentados assim. Além disso, a interpretação e
divulgação dos resultados devem levar em conta as especificidades culturais das
amostras étnico-culturais envolvidas, com a ajuda de profissionais e leigos/adolescentes de cada ambiente. Em conclusão, as
abordagens descritas constituem não só um pré-requisito científico, mas também
representam uma necessidade ética.
Unitermos: adolescentes, adolescência, saúde, pesquisa, culturas, etnias.
Introdução
"Isso depende muito de aonde
você quer ir", disse o Gato.
"Não me interessa aonde",
respondeu Alice.
"Então, não interessa por que
lado você vai", disse o Gato.
"... desde que eu chegue em
algum lugar", acrescentou Alice.
As aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis
Carroll, cap. VI
Durante os dois últimos anos, Medline compilou cerca de 5.000 publicações vinculadas a questões étnicas; 2.000 dessas publicações são relacionadas diretamente com levantamentos de dados e 500 são diretamente relacionadas com levantamentos conduzidos entre adolescentes.
Esse renovado interesse aparece ligado a vários fatores:
§ Em primeiro lugar, um dos conceitos mais básicos de epidemiologia é a comparação entre grupos. Se a distribuição de doenças fosse parelha, não precisaríamos de nenhum levantamento de dados. Enquanto os primeiros levantamentos epidemiológicos enfocavam essencialmente espaço e geografia, eles agora vêm abrangendo cada vez mais outros fatores, tais como a situação sociodemográfica, o background econômico, o status político, o fator étnico e o ambiente cultural.
§ Em segundo lugar, a inclusão do fator étnico e do ambiente cultural corresponde ao surgimento das assim chamadas "novas morbidades"(1) e do estudo de seus fatores determinantes. Especialmente entre os adolescentes, que, pelo menos em países em desenvolvimento, exibem um bom estado de saúde física, os epidemiologistas têm se concentrado cada vez mais em atitudes, comportamento e estilos de vida que, a longo prazo, podem propiciar o surgimento de vários problemas de saúde ou doenças. As numerosas publicações em torno do tema "comportamento de risco" são apenas um exemplo dessa tendência em voga(2) – e passível de crítica.
§ A última razão por que cultura e fator étnico chamam atenção no campo da epidemiologia relaciona-se com a evolução na área de prevenção de doenças e promoção da saúde. Há alguns anos, as atividades preventivas concentravam-se em grande parte no comportamento do indivíduo, numa atitude algo paternalista, enquanto os programas de hoje são planejados muito mais numa base comunitária, o que implica na participação da população-alvo na concepção, implementação e avaliação das ações, o que leva à inclusão de critérios como background cultural.
A definição de conceitos como "grupo minoritário", "raça", "etnia" e "cultura" é tão controversa hoje(3-4) como foi em anos anteriores, e nenhuma definição única é universalmente aceita. O termo "grupo minoritário", usado essencialmente nos Estados Unidos, refere-se a um subconjunto da população imediatamente identificável e distinguível por sua herança racial, étnica ou cultural. Dentro dos Estados Unidos, esse conceito envolve subconjuntos da população como os afro-americanos, os hispânicos/latinos, os asiáticos/das ilhas do Pacífico. A etnicidade, num sentido menos amplo, diz respeito à raça e, portanto, é expressão de um conjunto comum de peculiaridades herdadas. Todavia, obviamente, mesmo que os indivíduos compartilhem alguns traços biológicos como a cor da pele, isto não significa necessariamente que eles compartilham as mesmas características em termos de hábitos, valores e estilo de vida. Assim, uma definição mais global de etnicidade abrange o compartilhamento de uma seleção comum de herança social específica, o que envolve práticas, valores e crenças transmitidas de uma geração para outra(5-7).
Essa definição está próxima à definição de "Cultura", que se refere a um conjunto de diretrizes explícitas e implícitas que um indivíduo herda como membro de um grupo específico e que determina como ele vê o mundo e como se comporta em relação a outras pessoas, a forças sobrenaturais ou deus e ao ambiente natural(7). A transmissão dessas diretrizes realiza-se através do uso de símbolos, idioma, artes e rituais(5-8).
Essa introdução conceitual não estaria completa sem três outros comentários importantes: primeiro, que os países têm e tiveram políticas várias com relação às pessoas migrantes de outros países e com relação a estrangeiros em geral(9-10). A França, por exemplo, favoreceu uma "atitude republicana" que, por temer os processos de discriminação e com a esperança de que cada indivíduo viesse integrar-se à cultura francesa o mais rápido possível, é uma atitude que tende a negar a especificidade das características étnicas individuais. Veja-se que a regulamentação francesa proíbe os pesquisadores de fazerem perguntas rotineiras aos sujeitos da pesquisa sobre sua origem ou religião, uma vez que essas perguntas podem ser vistas como tocando em questões sensíveis ou privadas. Num contraste, a Alemanha considera os indivíduos migrantes "Gastarbeiter", o que significa literalmente "trabalhadores convidados". E, embora eles se beneficiem de certos direitos sociais, eles não se tornam cidadãos alemães e ninguém espera deles que adotem a cultura e os hábitos locais. Finalmente, na América do Norte, bem como em vários países da região nórdica da Europa, tende-se a favorecer o multiculturalismo e a diversidade como a riqueza de uma nação. Por exemplo, P.E.Trudeau, como Primeiro Ministro do Canadá em 1971, disse: "Embora haja dois idiomas oficiais, não existe uma cultura oficial, nem qualquer grupo étnico tem precedência sobre qualquer outro"(10).
Qualquer estudo transcultural deve, então, levar em conta não só a origem étnica e cultural dos sujeitos, mas também suas histórias individuais e familiares(11). Os adolescentes constituem um grupo singular, cuja especificidade está vinculada ao fato de que eles expressam, mais que outros grupos, a natureza transitória de seu status. Eles estão em busca de sua identidade e têm de incorporar tanto os valores de seus pais e de sua cultura de origem, quanto acomodar, ao mesmo tempo, os valores com que se deparam em seu ambiente imediato(11-13). A natureza transitória da adolescência é sempre enfatizada entre aqueles que migraram recentemente e que, portanto, vivem em dois ambientes distintos. Esses adolescentes diferem bastante dos jovens que nasceram no país que os acolheu e, mais ainda, daqueles cujos pais ou avós nasceram no país que os acolheu (migrantes de primeira, segunda e terceira gerações). A história da própria migração, com suas causas e modalidades, pode interferir muito no "Weltanschaung" do adolescente e no modo como ele se sente e se comporta em termos de saúde e estilo de vida. Além disso, vários estudos têm mostrado que os adolescentes membros de grupos minoritários têm mais problemas de saúde que adolescentes membros da maioria, pois encontram mais dificuldades para ter acesso a cuidados apropriados com a saúde e a programas de prevenção(14-18). De fato, em um dos primeiros levantamentos conduzidos entre adolescentes, feito ainda na década de 1970, Parcel e cols. mostraram que o acesso a cuidados regulares com a saúde (um provedor de cuidados primários identificado) era melhor entre os americanos de ascendência britânica, que entre os de ascendência africana ou mexicana(18). Estudos transculturais devem dar indícios de como se deve entender a maneira em que fatores culturais específicos relacionam-se com status de saúde e resultados em saúde(19,20). Isso ajudaria os profissionais da saúde a criar ambientes de cuidados com a saúde e programas preventivos de acordo com as representações específicas e necessidades específicas dos adolescentes de grupos minoritários.
Problemas metodológicos
vinculados a conceitos, escolha de termos para indicadores e análises
estatísticas
À guisa de ilustração, tomemos o exemplo do levantamento multicêntrico em saúde do adolescente suíço (SMASH – Swiss Multi-center Adolescent Survey on Health), realizado nos anos 1992-93, com uma amostra de aproximadamente 10.000 adolescentes de 15 a 20 anos de idade(21). A Suíça tem cerca de 6,5 milhões de habitantes e tem a particularidade de ser constituída de três populações lingüísticas distintas. Há uma população falante do alemão (cerca de 4 milhões), outra falante do francês (cerca de 2 milhões) e ainda outra, falante do italiano (cerca de 500.000). Além disso, a Suíça tem uma das maiores taxas de imigração da Europa e os estrangeiros são 20% da população (e mesmo 30% entre os adolescentes). Sendo assim, pode-se considerar a Suíça um país culturalmente diverso.
O objetivo desse levantamento foi investigar os adolescentes do país quanto a atitudes, comportamento e necessidades em relação à saúde, bem como os estilos de vida desses adolescentes. Mesmo com o levantamento incluindo os usuais fatores de background, como características sociodemográficas, tipo de escolaridade etc., ele não foi desenvolvido dentro de uma clara estrutura conceitual multicultural. Assim sendo, não teve a intenção de olhar especificamente diferenças entre as regiões lingüísticas, nem entre participantes suíços e estrangeiros. O questionário teve a participação de jovens em sua concepção(21).
Perto de dois anos depois, decidiu-se olhar as diferenças entre regiões lingüísticas(22) e entre suíços e estrangeiros(23). Mas, como era de se prever, faltavam muitas peças do quebra-cabeça. Na verdade, foi possível mostrar diferenças, mas não havia dados disponíveis suficientes para se interpretar essas diferenças. Por exemplo, os adolescentes falantes de francês relataram atividade sexual numa idade mais precoce que seus pares falantes de alemão; além disso, um maior número deles admitiu o uso de substâncias químicas e aparentemente eram menos equilibrados psicologicamente (mais estressados ou deprimidos). Mas por que essas diferenças?
Para responder a esse tipo de questão, o levantamento deveria ter incluído perguntas sobre como os respondentes das diferentes regiões foram criados, como viam sua saúde, o que significavam para eles conceitos como "depressão" e "estresse" etc. Também aconteceu que a interpretação dos dados relativos aos adolescentes estrangeiros ficou bastante dificultada, posto que esse grupo era extremamente heterogêneo em termos de história de migração e origem étnica/cultural.
Grande parte da literatura de estudos transculturais revela a mesma falta de entendimento abrangente das razões e maneiras das diferenças entre grupos de diferentes origens étnicas. Por exemplo, há alguns anos, Brindis e cols. publicaram um estudo que examinava a associação entre status de imigrante e comportamento de risco entre adolescentes americanos de origem latina(24). Embora os resultados fossem interessantes, os autores não forneceram um entendimento mais aprofundado da representação dos que responderam para sexualidade, relação sexual e gravidez entre os diferentes grupos estudados (os adolescentes da amostra haviam migrado recentemente para os Estados Unidos ou haviam nascido no país). Na falta dessas informações, os autores interpretaram os dados a partir de seu próprio campo conceitual de referências, deixando de lado a questão do significado desses comportamentos dentro do processo de formação da identidade e, assim, não fornecendo ao leitor conclusões que poderiam ser úteis na criação de programas específicos de intervenção.
Nas duas últimas décadas, vários modelos foram propostos, modelos que incorporam um entendimento dos valores promovidos dentro das comunidades-alvo, bem como a percepção ou representação que os sujeitos têm dos diferentes problemas ou comportamentos. A partir do conceito básico do Modelo de Crenças em Saúde(25), idéias foram desenvolvidas e tornaram-se ferramentas sofisticadas que incorporam a avaliação dos valores de cada indivíduo. Em nossa opinião, comparações transculturais deveriam ir um passo adiante e não só incluir dados referentes a percepções individuais, mas também uma apreciação ampla da maneira com que os adolescentes vêem seu corpo, sua saúde, doenças e o modo como eles deveriam ser tratados dentro do sistema de assistência à saúde e dentro da sociedade. Bronfrenbrenner(26), em seu livro intitulado "A ecologia do desenvolvimento humano", sugere uma interessante estrutura sistêmica que abrange a situação e representação dos indivíduos, sua família e ambiente escolar e, mais amplamente, os ambientes cultural, socioeconômico e político (micro, meso e macro-sistemas). De um modo ideal, essa estrutura sistêmica epidemiológico-antropológica deveria ser desenvolvida por equipes multidisciplinares que envolvessem antropólogos e representantes da comunidade estudada, inclusive os próprios adolescentes.
Um exemplo muitas vezes esquecido de uma tal abordagem nos é dado pela pesquisa longitudinal realizada nos anos 70 por uma equipe de psicólogos de Yale e da Universidade de Michigan(27). Eles examinaram o desenvolvimento físico e também o desenvolvimento psicossocial de adolescentes do sexo masculino em três comunidades. A primeira comunidade era de adolescentes nascidos e residentes em Palermo, na Sicília; a segunda comunidade era de adolescentes cujos pais haviam migrado para Roma; e a terceira, de adolescentes nascidos em Boston, filhos de pais que para lá migraram vindos de Palermo. Fascinante nesse estudo, que durou três anos, é a estrutura abrangente, que incluiu, como parte dos dados antropométricos e comportamentais, uma análise em profundidade tanto do sistema escolar e educacional, quanto dos valores cultivados pelos pais. A esperança do pesquisador era deslindar a influência da cultura de origem (dos pais na Sicília) e da cultura do ambiente imediato, tanto em uma cidade grande (Roma), como em outro país (Estados Unidos).
Os autores mostraram como um exemplo que, enquanto os adolescentes de Palermo aprendiam a beber álcool com seus pais como parte das refeições normais, os que viviam em Boston não tinham acesso formal a bebidas alcoólicas e usavam-nas como substância química, ingerindo-as em grandes quantidades em curtos espaços de tempo. Pode-se imaginar que essas diferentes abordagens ao consumo de álcool tiveram importantes conseqüências em termos de estratégias preventivas.
Duas questões serão agora discutidas brevemente: a escolha de indicadores e termos para os itens do questionário e os tipos de análises que podem ser realizadas. A escolha de indicadores tem de ser feita levando-se em conta não só a utilidade das variáveis selecionadas, dependendo dos objetivos gerais do levantamento, mas também se levando em conta sua validade transcultural. A maioria dos levantamentos disponíveis(21,28-31) usa um questionário auto-administrado que, com raras exceções, não foi submetido a um processo de validação, nem mesmo numa certa amostra cultural homogênea. A única exceção a essa regra, da qual temos conhecimento, é o questionário CHIP, desenvolvido por Starfield e col., mas esse instrumento não foi aplicado em escala nacional(32). As perguntas em geral são concebidas por um grupo de profissionais que compartilham os mesmos interesses, seja numa base nacional ou internacional. Pode-se entender facilmente que, nesse processo, não se dedica muita atenção à adequação de certos conceitos para subgrupos de participantes membros de minorias culturais.
Em levantamentos transculturais, mesmo quando as pessoas responsáveis pelo conteúdo do questionário concordam quanto aos melhores indicadores, permanece a questão da tradução. Devem as perguntas ser formuladas no idioma de cada subamostra, com risco do processo de tradução ser tendencioso (por preconceitos), ou devem as perguntas permanecer no idioma do país de residência dos sujeitos, com risco dos adolescentes ainda não familiarizados com a nova língua não entenderem ou entenderem equivocadamente as questões? Se o pesquisador escolhe traduzir o questionário, a equipe inevitavelmente enfrenta dilemas quanto a como algumas expressões devem ser adaptadas. Uma maneira de superar essas barreiras lingüísticas e conceituais é envolver, na adaptação e tradução, jovens da população-alvo, através de grupos específicos(21).
O que se pode dizer sobre as análises? Como diferenças culturais específicas são muitas vezes disfarçadas ou exageradas por outros fatores socioeconômicos (como pobreza ou falta de acesso à assistência médica), os dados devem ser apresentados de modo que permitam deslindar a influência de fatores específicos e não-específicos. Um recente artigo de Griesler e cols.(19) fornece um bom exemplo de análises em maior profundidade, usando análises separadas de regressão para cada um dos três grupos étnicos envolvidos em seu estudo. Além disso, o interessante nesse estudo nacional (o Levantamento Nacional Longitudinal sobre a Juventude, NLSY) era o fato de ser um estudo baseado num levantamento que envolveu mais de 1.000 famílias e examinou não só os adolescentes, mas também suas mães, o que deu uma idéia do impacto do ambiente familiar/cultural dos adolescentes. Assim, esse estudo permitiu chegar-se a uma estimativa do papel da família e dos modelos culturais de educação no começo dos hábitos de tabagismo. Por exemplo, o estudo mostra que "contextos sociais favoráveis ao ato de fumar cigarros, o uso de cigarros pela mãe e a percebida pressão dos pares para fumar parecem constituir os fatores de maior risco para tabagismo entre adolescentes brancos do que entre adolescentes membros de grupos minoritários, o que pode ter conseqüências importantes na maneira como se devem realizar atividades preventivas”.
A interpretação dos dados
e sua divulgação: uma responsabilidade em saúde pública
A primeira pergunta básica com que devemos lidar refere-se à validade das diferenças que aparecem entre subgrupos culturalmente diferentes devido às várias representações que os adolescentes apresentam, sendo eles de diferentes culturas. Com freqüência, é difícil decidir se as dessemelhanças encontradas para taxas de vários itens são reais ou simplesmente tendenciosas em função da maneira com que os respondentes de específicos backgrounds tendem a responder às perguntas.
§ Primeiro, o levantamento pode incluir várias perguntas sobre como os adolescentes vêem a sexualidade em geral, a que valores eles aderem, como eles consideram questões como o amor, a abstinência, a contracepção etc.(33). Se isso nem sempre é possível fazer dentro de um amplo levantamento nacional, pesquisa extra pode ser realizada em vários ambientes culturais para que se abordem essas questões.
§ Uma segunda maneira é examinar outros indicadores, disponíveis de outras fontes, que viriam então confirmar ou não as hipóteses levantadas pelas comparações interculturais(22). Esses indicadores seriam escolaridade e tipo de escolaridade, taxas de gestações ou partos entre mães adolescentes, taxas de acidentes ou de suicídio, se o adolescente freqüenta a igreja (ou templo ou sinagoga ou...) etc.
§ Uma terceira e mais promissora maneira de examinar-se mais de perto as dessemelhanças transculturais é conduzir pesquisas qualitativas com grupos de adolescentes de vários backgrounds(34). O uso de tais discussões interativas, ainda ignoradas por muitos epidemiologistas, vem ganhando muita atenção recentemente e com certeza constitui uma "via régia" para um melhor entendimento de especificidades étnicas e culturais.
Faz muitos anos que os antropólogos vêm nos lembrando que há essencialmente duas maneiras epistemológicas de se examinar dados: as abordagens -éticas e as abordagens -emic(7,8,35).
§ A abordagem -ética refere-se à idéia de que fatos científicos e medidas científicas podem ser interpretados da mesma maneira por todos, independentemente da natureza dos sujeitos que estão sendo investigados. Essa concepção ética tem sido vista como uma representação altamente tendenciosa, "acadêmica, masculina e ocidental". Mas devemos reconhecer que muitos levantamentos epidemiológicos realizados no mundo ainda aderem a esse paradigma.
§ Cada vez mais cientistas, no entanto, especialmente na área da antropologia, adotam uma abordagem diferente, "hermenêutica", o que implica que a interpretação de observações científicas deve levar em conta as representações dos próprios sujeitos. Esta abordagem -emic traz duas vantagens: por um lado, aumenta a validade das conclusões tiradas dos resultados e oferece indícios para os tipos de ações que devem ser implementadas. Por outro lado, os adolescentes envolvidos no estudo deixam de ser meros objetos (objetos da curiosidade científica) e passam a ser verdadeiros sujeitos, com direito a suas próprias idéias, opiniões e força.
Esse último comentário nos traz às questões éticas relacionadas com a aplicação dos resultados de estudos transculturais na área de saúde pública. Muitas vezes, os pesquisadores envolvidos num tal estudo decidem se tais e tais atitudes ou comportamentos são bons ou ruins, saudáveis ou insalubres, partindo da suposição de que eles sabem o que é certo e errado. A realidade é diferente, porque o que é certo numa cultura pode ser errado em outra, ou o que pode ser bom em uma comunidade pode ser danoso em outra. Isso porque valores e representações, aquilo que se encontra no cerne de cada cultura, variam enormemente dependendo do grupo étnico que é considerado. Muitas comparações transculturais ou interétnicas, na linha de uma abordagem -ética típica, limitam a discussão a meras afirmações, muitas vezes opiniáticas, que seguidamente estigmatizam as atitudes e comportamentos dos adolescentes da comunidade observada sem dar quaisquer indícios de como e por que os fenômenos foram observados e o que significam para os sujeitos. Muito seguidamente, pesquisadores adultos tendem a liderar cruzadas desde suas próprias perspectivas. Essa atitude imperialista é com freqüência inútil e algumas vezes (se não na maioria das vezes) contra-produtiva. Além disso, e aqui está o real desafio da abordagem transcultural, essa atitude imperialista simplesmente apaga a essência da cultura e da vida.
– Será que os adolescentes devem realmente adiar sua iniciação sexual? Será que uma gravidez na adolescência é algo ruim em todas as culturas?
– Como se deve lidar com a questão da violência doméstica em culturas que admitem esse comportamento?
– Quem deve decidir que comportamentos são bons ou ruins: as autoridades, os pesquisadores, os professores, os pais, os adolescentes?
Isso considerado, será que os pesquisadores devem favorecer a integração dos adolescentes na cultura do ambiente imediato, ou devem ajudá-los a preservar os traços culturais cultivados por seus pais, que têm o desejo de mantê-los? Essas questões levam-nos às questões políticas discutidas no começo desta apresentação: como cada país ou sociedade vê e trata as minorias. Em outras palavras, se o país espera que os indivíduos sigam um modelo único de sociedade ou se as pessoas são incentivadas a preservar sua própria identidade étnica(35).
Na área da epidemiologia, muitos pesquisadores serão de opinião que são responsáveis pela validade e qualidade de seus resultados e dados, mas que não são de modo algum responsáveis por sua divulgação e utilização. Na verdade, tal posição é impossível de sustentar, porque o próprio modo como os dados são analisados e apresentados já é em si uma atividade de saúde pública. O epidemiologista não pode escapar de questões éticas e tem de se posicionar. Na área da medicina do adolescente, isso é provavelmente ainda mais necessário, uma vez que muitos dos profissionais envolvidos na criação de levantamentos regionais ou nacionais também têm obrigações clínicas e/ou estão envolvidos em atividades preventivas.
Num workshop realizado há alguns anos, cujo enfoque estava no vínculo entre pesquisa e ação na área da medicina do adolescente, Blum(36) apresentou alguns conceitos básicos com relação ao uso "político" de dados nos níveis estadual e federal. Esse processo de fazer lobby abarca a preparação e distribuição de material (fôlderes) de esclarecimento, planejamento de encontros com pessoas com poder de decisão e políticos influentes e a inserção de artigos científicos na literatura especializada – sendo que todas essas são atividades que devem ser preparadas e divulgadas de uma maneira coordenada para que atinjam um efeito máximo sobre a opinião pública. A transferência de dados epidemiológicos para programas de prevenção não é assim tão fácil, especialmente quando os dados foram obtidos em estudos transculturais. É nesse estágio que as abordagens e os instrumentos metodológicos "-emic", discutidos anteriormente, mostram-se valiosos. De fato, se os pesquisadores foram suficientemente cuidadosos no sentido de envolver equipes multidisciplinares na realização do processo e se os indivíduos da comunidade investigada estão envolvidos desde o começo, então se torna mais fácil tirar conclusões e sugerir propostas com relação à criação de uma estrutura de saúde adequada e/ou de programas preventivos.
No Canadá, a região da British Columbia nos fornece um outro exemplo de tal estratégia(37). Os resultados de um amplo levantamento realizado em várias comunidades étnicas foram discutidos por adolescentes representantes desses vários grupos culturais, que contribuíram com idéias interessantes sobre como interpretar os dados e como transformar os resultados em ações concretas. Mais uma vez, é a combinação de abordagens quantitativas e qualitativas que se mostrou frutífera nesse caso.
Como Alice (na citação de Lewis Carroll), que não sabe para onde está indo, desde que esteja indo, muitos pesquisadores conduzem estudos interétnicos sem saber muito bem aonde querem chegar, mas pelo menos eles os estão realizando. A pesquisa transcultual precisa de um novo paradigma, o qual, em alguma instância, ainda precisa ser definido ou pelo menos refinado. Os profissionais envolvidos na área da saúde do adolescente devem estar particularmente bem preparados para esse desafio. Na verdade, a maioria dos princípios vinculados à pesquisa transcultural são exatamente os mesmos princípios que devem guiá-los na utilização dos dados para o planejamento de ações de assistência à saúde e de prevenção entre os adolescentes. Isso tudo porque a adolescência pode ser considerada de certo modo como uma subcultura, ou uma "síndrome determinada pela cultura", como afirmam alguns autores(38). Muitos adultos tendem a ver os adolescentes com olhos tradicionais (-éticos), com um olhar puramente "acadêmico, masculino e ocidental" e, portanto, decidindo por eles o que é arriscado ou não, o que é sano ou insano, o que é bom e correto – ou não – e o que eles devem fazer (abstinência) e o que não devem fazer (sexo). Como na pesquisa transcultural, qualquer ação ou programa que tenha como alvo os adolescentes deve ser "-emic" e, como tal, ser conduzido não para eles, mas com eles.
Agradecimento
Este artigo é baseado em uma apresentação anterior, feita durante o encontro da Associação Internacional de Saúde do Adolescente (IAAH) sobre "Saúde e comportamento", em Los Angeles, terça-feira, 16 de março de 1999.
Nota sobre o artigo
Artigo publicado em Adolesc. Latinoam.,
abr. 2001, vol.2, no.3, p.152-158. ISSN 1414-7130. Disponível em
http://ral-adolec.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-71302001000300009&lng=pt&nrm=iso
Endereço para correspondência: Pierre-André Michaud,
MD, Associate professor in Adolescent
Medicine and Chief of Unité Multidisciplinaire de Santé des Adolescents, Centre
Hospitalar Universitaire Vaudois,
1011 – Lausanne, Switerzland.
Tel: (4121) 314 36 60 – Fax: (4121) 314 37 69; E-mail:
Pierre-Andre.Michaud@inst.hospvd.ch
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