SOLIDARIEDADE CONTRA VIOLÊNCIA

 

 

Benilton Bezerra Jr.

Psicanalista, professor do Instituto de Medicina Social da UERJ.

 

 

O pátio estava uma festa. A noite de domingo prometia ser longa, porque o ponto facultativo na segunda iria esticar o fim-de-semana. Lá pelas onze, como todos esperavam, em um dos bares desse novo point da zona sul, o grupo de chorinho iniciou sua apresentação. A cena começa: o garoto, animado, passa por entre as mesas lotadas. Seu olhar se demora alguns segundos e ele reconhece a amiga morena. Alegre, vai em direção a ela, sem saber que sua vida nunca mais seria a mesma. Foi tudo muito rápido: um início de discussão, os gritos de pânico, a correria desabalada, os carros saindo em velocidade, os bombeiros, a cirurgia de emergência, e a sentença: M.M.A., 15 anos, iria viver o resto de seus dias paraplégico. Apenas um tiro, e ele havia seccionado sua medula para sempre. Eram todos adolescentes e jovens, numa bela noite, envolta em risos e música.

 

A cena é real, aconteceu no Rio de Janeiro. Ao me deparar com a notícia, e diante da violência estúpida e gratuita, a perplexidade e o sentimento de absurdo foram aos poucos dando lugar a um desconforto, um mal-estar que senti, forte, no estômago. O jornal sujava minhas mãos de tinta, e as manchas me aproximavam - como se fossem provas de meu envolvimento - do sofrimento trágico de M.M.A., de seus pais, de seus amigos. Tudo havia acontecido a algumas dezenas de metros de minha casa, num lugar onde eu já havia estado inúmeras vezes, buscando minha filha adolescente. Aconteceu na minha cara, podia ter acontecido a mim. Li e reli a matéria, sem sucesso: nada tornava plausível a cena, ela se repetia na minha imaginação como uma idéia absurda. Ainda não sabia, naquele instante, do pior: M.M.A., não resistindo ao ferimento, morreria na mesma semana.

 

Ao ler a notícia, duas coisas logo me vieram à mente. Primeiro, a terrível freqüência com que episódios como esse chegam até nós: adolescentes matando e sendo mortos são personagens cada vez mais freqüentes nas páginas dos jornais. A violência invadiu o cotidiano de forma surpreendente, já começa a fazer parte daquelas coisas esperadas, que compõem um dia a dia qualquer: as lutas entre gangues, a violência no trânsito, a ferocidade nos trotes, o ataque covarde a menores de rua e mendigos, a valentia insensata dos alunos de lutas marciais, a agressão anunciada nos bailes e boates, o clima de insegurança onipresente. Ser adolescente hoje, nas metrópoles do país é ter de dominar um complicado código de sinais e condutas, uma cartografia bélica dos espaços públicos, que lhe permita circular pela cidade, reduzindo os riscos de se tornar alvo preferencial da violência disseminada. Significa ter de saber por onde andar e a que horas do dia, saber que tipo de objetos pessoais exibir, tipo de roupa usar, que comportamento apresentar, sob pena de “dar mole” e jogar seu destino na loteria. Já não se trata apenas da violência de pobres contra ricos, de marginais ou criminosos comuns contra cidadãos normais. A violência é cada vez mais pervasiva, a mais presente na vida cotidiana. Já não é um acontecimento episódico que contrasta com a normalidade da vida em comum, mas um traço inerente a essa vida comum. Mata-se cada vez mais, por motivos fortuitos: por um lanche que deixou de ser pago, por um olhar de paquera mais ostensivo ou mesmo apenas suposto, por uma reação qualquer no trânsito, por um tênis, por um desaforo.

 

A segunda coisa a me chamar a atenção, um minuto depois de começar a refletir sobre o ocorrido, foi a evidência de que minha sensibilidade para com a tragédia tinha sido intensificada pelo fato de que todos - vítima, agressores, testemunhas - eram muito próximos de mim. Os laços de afinidade social desencadearam automaticamente um processo de identificação para com os personagens. Podia ter sido comigo, com um filho ou um colega dele, com amigos meus ou com seus filhos. A brutalidade que insultava minha razão passou a me ferir também o corpo, me atingiu também no coração. O que sempre fora apenas uma notícia, transformou-se num acontecimento que me dizia respeito diretamente. O que antes era fato objetivo externo do qual poderia desviar o olhar, era agora experiência subjetiva que eu não conseguia contornar. Porque não era mais apenas uma informação manipulada racionalmente, porque me atingiu afetivamente, suscitou em mim uma reação imediata. O colorido dos afetos juntou-se ao conteúdo racional, produzindo um jeito diferente de lidar com a questão, uma apreensão cognitiva da qual eu não participava enquanto observador. Eu me senti implicado.

 

Esse triste episódio ocorreu no momento em que concluía este escrito. Pareceu-me que ilustrava com muita pertinência dois dos aspectos que procuro trazer à discussão - tão urgente e complexa - do processo de disseminação da violência no cotidiano, em especial entre os jovens e adolescentes. Em primeiro lugar, mostra a necessidade de se tentar compreender como a violência se tem tornado tão banal, no universo de nossas cidades. A resposta ao problema não pode se esgotar na denúncia, nem mesmo no combate direto a ela. É claro que políticas de segurança, campanhas preventivas, etc., são fundamentais. Mas é necessário não perder de vista a importância de compreender as raízes mais profundas desse fenômeno, e as particularidades com que ele se apresenta no contexto atual. Que tipo de cenário social emoldura seu aparecimento, quais são as condições da existência que o tornam possível? Em segundo lugar, sugere que a melhor maneira de mobilizar os corações e mentes contra a violência e seus efeitos é descrevê-la, de modo a que um círculo cada vez maior de pessoas se sinta afetivamente (e não apenas racionalmente) tocado. Precisamos atingir os corações dos indivíduos, não só suas mentes. Creio que enfrentar o problema da violência num contexto de alargamento do espaço de cidadania, de fortalecimento do projeto democrático exige atenção em relação a esses dois itens. Supõe a construção de indivíduos compromissados racional e sentimentalmente com os horizontes de solidariedade, liberdade e tolerância do projeto democrático radical.

 

Da socialização à construção da cidadania

 

O processo de socialização dos indivíduos, em qualquer cultura, depende da presença de pelo menos três fatores. A sociedade põe à disposição de seus novos membros modelos identificatórios e objetos de investimento que compõem um leque de possibilidades, por meio do qual cada indivíduo se construirá com um sujeito. Embora absolutamente singular, cada sujeito apresenta as marcas de sua cultura e de seu tempo. Isso vale não apenas para as ações e para os processos conscientes, mas também para as motivações inconscientes que condicionam seu modo de pensar e agir. Esses modelos e objetos oferecidos pela sociedade vão balizar as características, que estarão presentes no modo como os sujeitos estabelecem laços sociais, nos seus padrões de conduta afetiva, nos seus estilos de ação individual e coletiva.

 

Para que esses modelos e objetos possam ser incorporados à experiência de um organismo humano - incorporação que o transformará, com o tempo, num sujeito - é indispensável um outro elemento: a mediação de pelo menos um indivíduo já plenamente socializado. É a isso, em simples palavras, que chamamos de exercício da função materna: a presença de alguém que porta e transmite um conjunto de significações, que torna o meio ambiente um mundo humano. Herdeira de sua cultura, matriz inicial de todo sentido, à figura materna cabe o papel de introduzir o bebê no campo simbólico; referendando, com seus cuidados, a admissão deste novo membro da sociedade. A espécie humana, como se sabe, nasce ainda prematura, desadaptada à vida, e, portanto, extremamente dependente deste outro inicial, do qual tudo deriva: da sobrevivência física à sobrevivência psíquica. Um bebê ao nascer já dispõe, é claro, de uma capacidade fantástica de reagir discriminatoriamente ao meio. Mas somente quando suas reações imediatas ao mundo começam a se transformar numa experiência carregada de sentido, que é avalizada por um semelhante que se pode falar do processo de emergência de um sujeito.

 

Depois desse momento inicial, porém, um terceiro termo se torna indispensável: a figura do pai, ou a dimensão da lei. A relação dual mãe-bebê precisa ser rompida pela presença desse terceiro elemento, que abre a via de acesso à cultura. A partir daí um novo indivíduo social emerge, singular. Já não mais colado às significações transmitidas inequivocamente pelo outro inicial, ele é lançado no universo da alteridade, das diferenças, da temporalidade. Não dispondo mais de uma fonte única de significações, torna-se progressivamente co-autor de si mesmo. No plano de sua própria experiência, surge um Eu. O Eu é, portanto, desde seu momento inicial, um projeto realizado no tempo. Um processo constante de reconstrução de si, realizado com base nos modelos identificatórios que a sua sociedade e a imaginação do seu tempo lhe abrem. A experiência familiar, os grupos sociais de que fará parte, a classe a que pertence, o imaginário social dominante, as características próprias de sua época, etc., condicionarão esse processo, que segue ao longo de toda a existência individual, e só termina com sua morte.

 

Esse processo de construção de subjetividades não tem limites naturais no homem. Desde que forneça algum sentido para a vida e para a morte, a sociedade pode fazer praticamente tudo de seus membros: tolerantes ou belicosos, monoteístas ou politeístas, monogâmicos ou poligâmicos, defensores intransigentes do valor universal da vida ou canibais, amantes da liberdade e da igualdade ou assujeitados a hierarquias totalitárias e à desigualdade, etc. O que importa salientar é isso: qualquer cultura, para sobreviver e projetar-se no futuro, precisa oferecer aos seus membros um sentido para a existência individual e uma razão de ser para a organização social. Não importa qual seja: isso vale para uma sociedade de castas como para uma sociedade liberal. Esse sentido, além disso, não pode esgotar-se na justificação do status quo. Ele precisa apontar para além. Precisa não apenas explicar como as coisas são de fato, mas também como devem ser, não apenas como são agora, mas como devem vir a ser.

 

É essa dimensão de idealidade, indispensável a qualquer formação social, que fornece não só razões para agir, mas também razões para renunciar a certas ações.São os ideais contidos no horizonte de uma época, que delineiam os limites do que é aceitável ou inaceitável, e apontam para as imagens do futuro, que se apresentam como as melhores promessas para o presente. A inscrição desses ideais na experiência dos sujeitos se dá de maneira complexa e evidentemente ultrapassa, em muito, os limites da atividade consciente. Eles se apresentam encarnados nos hábitos da ação, nos sentimentos mais fundos, nas reações mais imediatas, que qualquer indivíduo socializado apresenta em sua vida cotidiana.

 

Mas ser sujeito, no sentido forte do termo ou no sentido que nos é mais caro, é não apenas estar mergulhado no universo de significações de onde retira sua “substância”. É, sobretudo ser normativo, ou seja, ser capaz de reconhecer as significações (que o moldam) como criadas histórica e socialmente, e dispor-se a modificá-las. O momento inicial de assujeitamento à cultura torna-se, para o sujeito normativo, uma condição para transcender essa determinação e exercitar sua autonomia, sua capacidade de ver a sociedade, a si próprio como realidades mutáveis e a serem mudadas. Sujeitos orientados para o exercício da autonomia são, portanto, indispensáveis para qualquer sociedade que se volte para o futuro com uma construção, como a realização de um projeto; e não como a concretização da vontade divina, ou o resultado inexorável das “leis” da história, da natureza ou do mercado.

 

 

O esvaziamento da política

 

Ora, dentre as características mais insistentemente descritas de nosso tempo estão justamente o esmaecimento ou a corrosão dos ideais (instância que aponta, no funcionamento psíquico, para esta dimensão de devir, de vir a ser), e do sentimento de autonomia dos sujeitos. Nas últimas décadas, essa em sido uma tecla batida por praticamente todos os que se debruçam sobre os problemas do fim do século, entre eles a banalização da violência em nossas sociedades. Várias são as razões apontadas para isso.

 

Uma das mais significativas é o processo de esvaziamento da política como esfera relevante na vida social.[1] Com o fim do confronto entre as grandes utopias universais, que galvanizaram a ação política nos últimos cem anos; a imaginação divorciou-se da política, que passou a ser vista mais como administração burocrática de interesses do que como planejamento e invenção do futuro. Esse fato incide de maneira decisiva sobre as novas gerações. Nas décadas de 60 e 70, qualquer jovem tinha uma posição política, quer dizer, uma visão do mundo, uma noção ou mesmo um programa que considerava mais adequado para o país e para o planeta. Não importa se de direita ou de esquerda, reacionário ou revolucionário, comunista ou hippie; o que realmente chama a nossa atenção, quando comparamos esse cenário com o atual, é a ausência, nos dias de hoje, do interesse pela coisa comum, pela esfera pública da vida, pelo questionamento acerca daquilo que diz respeito a todos e não apenas ao umbigo de cada um. É assustador perceber que os jovens que hoje ingressam na vida social pela primeira vez na história, encontram à sua frente um vazio de utopias. Elas sempre existiram - religiosas, ideológicas, políticas -, pouco importa. Sempre foram referências às quais aderir ou contra as quais lutar. Funcionaram com marcos simbólicos, em relação aos quais se construíam trajetórias identitárias individuais e coletivas. Na ausência desses horizontes utópicos, a política se degrada em consulta de opinião, a cultura se degenera em consumo de entretenimento, os cidadãos se transformam em meros consumidores. Ao menos enquanto flagrante do momento atual, a infeliz expressão de Fukuyama anunciando o “fim da história” não deixa de captar algo importante. Já não há mais os rebeldes de sempre, aquele punhado de inquietos que a cada geração ostentavam a convicção de que tinham a solução para o mundo. O mundo hoje já não parece exigir solução, sequer se apresenta como problema. As novas gerações se deixam ir à deriva dos apelos dos modismos comportamentais do momento.

 

A exclusão por irrelevância

 

No plano da economia, as conseqüências do fim do bipolarismo também estão à vista. Os valores econômicos (produtividade, eficácia) se tornaram a medida de todas as coisas, varrendo o resto para debaixo do tapete. A ideologia de mercado, que domina o cenário, transforma os debates econômicos em pouco mais do que discussões acerca da otimização dos interesses privados de imensas corporações e especuladores transnacionais. O gigantesco impulso dos avanços tecnológicos em todas as áreas, num contexto como este, não resulta de modo algum na superação dos graves problemas coletivos. Vivemos não numa era de abundância, mas num tempo de opulência e desperdício de um lado e escassez e privação de outro. A competitividade a todo custo vai transformando contingentes de pessoas, cada vez maiores, em verdadeiros excluídos sociais. Digo verdadeiros, porque em toda sociedade há mecanismos de diferenciação, regras hierárquicas, que criam espaços privilegiados e espaços de marginalização. O capitalismo sempre criou massas de oprimidos e explorados, postos de lado na distribuição das riquezas. As conquistas no sentido de uma organização social mais justa e um caráter mais redistributivo da economia foram, nos últimos duzentos anos, construindo barreiras a esse movimento inevitável do capital.

 

No final do século, porém, algo diferente começa a aparecer. Acuados os seus opositores, o capitalismo dispensa mecanismos de acomodação a reivindicações. Ainda nos anos setenta, dizia-se que o bolo da economia devia crescer antes de ser dividido. Mas essa afirmação ainda era efeito de um mundo tensionado entre macro-opções. Hoje, como não há alternativa, já se diz abertamente que o bolo não dá mesmo para todos e só os competitivos terão chance de pegar uma fatia. Já não se produz apenas opressão ou exploração, produz-se um novo tipo de exclusão, que se expressa na irrelevância. No nível planetário, esse fenômeno se expressa na indiferença total para com o destino de populações e países inteiros no continente africano. No interior de nossa sociedade, ele aparece no número assustador de brasileiros que só têm praticamente uma existência estatística. Comparecem, enquanto números, a baixar de modo deselegante nossos indicadores sociais. Estão aquém do limiar de relevância social. Não importam, nem como produtores, nem como consumidores. O processo de obsolescência, que caracteriza os objetos, numa sociedade desvairadamente consumista, atinge também as pessoas.

 

As conseqüências desses processos sobre os sujeitos não são pequenas.[2] A mais importante delas é, talvez, a tremenda intensificação do sentimento de vulnerabilidade e de desamparo a que eles são submetidos. Num mundo em que os mecanismos tradicionais de estabilização da experiência pessoal se enfraquecem, é difícil evitar a sensação pervasiva de fragilidade. Os sentimentos de transitoriedade, fluidez, fragmentação, inundam as relações familiares, as parcerias amorosas, os laços de amizade, os vínculos de trabalho. Famílias duradouras são substituídas por configurações instáveis de relações afetivas fundadas, não em alianças e compromissos em direção ao futuro, mas na fruição da satisfação e do prazer que o contexto presente oferece. Carreiras profissionais montadas em vínculos trabalhistas estáveis são abaladas pela substituição do emprego pela “empregabilidade”, qualidade volátil que precisa ser reconstruída permanentemente, em resposta às exigências cambiantes de uma economia invadida incessantemente pela inovação tecnológica e pela inexistência de um exercício da política que corrija a errância do mercado.

 

Um mundo, em que a política foi demitida pela ideologia da prosperidade e do sucesso, precisa de indivíduos não só dispostos, mas permanentemente incitados, a consumir sem cessar. Tudo se transforma em produto. Mesmo a vida privada, se bem fotografada nas revistas de gente famosa; a religião, se puder apresentar-se como solução para os problemas financeiros de seus fiéis; os sentimentos e conflitos existenciais, se renderem bem no mercado da auto-ajuda; estilos de vida, se forem alcançados pelo uso das chamadas life-style drugs. Saúde passa a ser a exigência impossível de juventude e beleza eternas. Cultura deixa de ser o espaço de exercício da vida reflexiva dos sujeitos, e torna-se nada mais do que a vitrine dos produtos a serem consumidos em série. O direito de cada um de buscar a felicidade a seu modo, que se incluiu na revolução americana entre os ideais democráticos, transforma-se em um imperativo universal de gozo compulsório. Em meio a um individualismo levado ao seu extremo, percebe-se o processo de dessubjetivação, de esvaziamento da normatividade dos sujeitos sociais. Ao lado da privação material, que atinge os marginalizados e excluídos dos bens econômicos, cresce vertiginosamente a privação simbólica daqueles, cuja existência é vivida mais e mais como desprovida de sentido.

 

Portanto, como um dos efeitos mais devastadores sobre a subjetividade, encontramos um duplo processo de esvaziamento, na experiência dos sujeitos. De um lado, esvazia-se a dimensão de temporalidade, leito por onde o processo de construção de si e do mundo necessariamente tem de correr. O futuro parece inteiramente fora do alcance da ação, quer individual, quer coletiva. Ele virá por determinação das forças “livres” do mercado, ou como efeito das forças “naturais” do organismo (serotoninas a mais ou a menos governando os estados de espírito). Quando o futuro não se apresenta como campo de intervenção, o passado se torna completamente sem importância. O passado é sempre visitado, no presente, em função de interrogações que hoje temos sobre o amanhã. Assim se constroem utopias, assim se perseguem ideais. Quando essas interrogações carecem de conseqüências, todo o jogo temporal do exercício de si torna-se achatado: vale apenas a fruição imediata do presente.

 

O indivíduo supérfluo

 

O investimento nos ideais, o que significa dizer o compromisso com os semelhantes de hoje e as gerações de amanhã, não é automático. Como diz Richard Sennett, ao analisar a corrosão do caráter nos dias de hoje[3], ele exige a possibilidade do reconhecimento de minha importância para o outro. Torno-me responsável na medida em que sinto que alguém conta comigo, na medida em que me sinto necessário. Se não consigo dar uma resposta satisfatória à pergunta “Quem precisa de mim?”, tendo a ser tomado por uma atitude de indiferença às pessoas e ao que se passa ao meu redor. Deixo de me sentir fazendo parte de uma narrativa partilhada, de dificuldade, compromissos e esperanças. Ao me deparar com o fato de que sou supérfluo, descartável, cessa toda motivação para responsabilidade frente ao outro. O narcisismo, que caracteriza a cultura individualista[4] contemporânea, é um efeito combinado da instabilidade permanente de uma sociedade sem compromissos com o sujeito, e a falta de responsividade social de sujeitos voltados sobre si mesmos, na defesa desesperada dos limites de um eu mínimo[5].

 

Se passarmos do universo das classes médias para os setores mais desfavorecidos da população, o quadro se torna mais dramático ainda, é claro. Pois a esses fatores já assinalados, é preciso acrescentar outros. O descompasso enlouquecedor entre a injunção constante de consumo dos produtos erigidos em emblemas de felicidade, bem-estar e sucesso e a realidade socioeconômica brutal que os mantém aquém de qualquer possibilidade de acesso a eles. A distância abissal entre o discurso oficial de igualdade e a crueldade de uma concentração de renda que não tem paralelo no planeta. Há países mais pobres do que o Brasil, mas não tão injustos na distribuição de suas riquezas. Há países que ostentam uma hierarquia social mais rígida, mas em nenhum deles se encontra uma ideologia da igualdade, da liberdade e da fraternidade como base de justificação da sociedade. É claro que mulheres nos países islâmicos fundamentalistas sofrem um tipo de opressão que as brasileiras não conhecem. Os párias indianos são discriminados de um modo que não tem equivalente em nossa cultura. Mas nos dois exemplos, há um sentido por trás desses fenômenos, e ele é dado pela religião. Pode-se adotá-la ou rejeitá-la; mas há, de qualquer maneira, uma razão de ser, uma justificativa, uma forma de legitimação. No Brasil, essas modalidades de legitimação inexistem. Se todos “são iguais”, se somos “uma democracia”, se praticamos a “livre concorrência”, então o fracasso social, a exclusão, a marginalização, são de responsabilidade do próprio indivíduo, e de sua incompetência.[6]

 

Não é difícil concluir que o cenário que venho descrevendo em traços rápidos (mas creio, não incorretos) é um caldo de cultura no qual manifestações de intolerância, descompromisso em relação ao outro, agressividade e violência, desprezo pelas instituições, indiferença para com o que é público, ganância sem limites, etc., encontram um terreno fértil para vicejar. Tiros, como o que acabou por tirar a vida de M.M.A. são apenas um exemplo.

 

A construção da solidariedade

 

O que fazer? Evidentemente não se trata de sonhar com o fim da violência, simplesmente. Ela provavelmente existirá em qualquer formação social, pelos menos até onde nossa vista alcança, no momento. Mas a questão que estamos discutindo tem contornos bastante próprios. Estamos falando da violência pervasiva, da violência banalizada, que expressa mais do que a existência de sérios conflitos no tecido social. Sinaliza, mais que tudo, a existência de um certo pano de fundo subjetivo, no qual os indivíduos se sentem (e vêem os outros) despidos de relevância, indiferentes ao destino do que é comum a todos, alheios a qualquer coisa que transcenda sua vida e seus interesses individuais. Essa violência é a manifestação de efeitos que podem também ser vistos em processos supra-individuais; como o recrudescimento do racismo étnico, da intolerância religiosa, das identidades fundadas em características de grupos (e não em projetos mais universalizantes), etc.

 

Está claro que as condições políticas e econômicas em curso não parecem ainda ter começado a enfraquecer-se. O chamado neoliberalismo continuará cegamente avançando seus tentáculos, pelo menos até que uma crise de proporções catastróficas venha solicitar um pouco de racionalidade humana, no lugar da matemática dos lucros. As grandes opções políticas alternativas ao modelo dominante ainda não se apresentaram, desde o fracasso das experiências socialistas, e a erosão do estado do bem-estar social-democrata. As inovações tecnológicas tendem evidentemente a se intensificar. A família, a religião, a tradição, fontes de significação relevante para a vida em outras épocas, têm tido seu papel cada vez mais restringido na função de ordenamento dos processos de subjetivação dos indivíduos. As relações de trabalho, e o próprio papel do trabalho na construção das imagens identificatórias dos sujeitos, também provavelmente continuarão a sofrer os efeitos das transformações político-econômicas e tecnológicas em andamento. Nada resta a fazer, então? Não creio.

 

Uma tarefa - certamente gigantesca - que temos todos é a de multiplicar e ampliar os espaços de tolerância e exercício da solidariedade. Não que isso tenha o poder de atacar as raízes mais profundas da violência. Mas só se pode sonhar com um mundo melhor e menos violento se formos capazes de recuperar a imaginação política para os jovens; se pudermos inculcar nas novas gerações não somente a “idéia” da fraternidade, que hoje todos estudam como uma bandeira do século XVIII, mas o “sentimento” de fraternidade para com aqueles que não estão no seu raio imediato de ação; se ampliar os limites daquilo que “realmente importa” para eles, levando essa fronteira para as próximas gerações, à população do país, às nações do planeta. O projeto democrático inventado pelos franceses e americanos, há duzentos anos, só se realizará plenamente se levado a cabo por sujeitos, cuja identificação com ele seja “visceral” e não apenas racional. Os dois últimos séculos foram suficientes para mostrar que a razão desacompanhada é capaz de transformar uma utopia num pesadelo, como fez o stalinismo, ou fazer de um ideário racista a bandeira de um povo, como fizeram os nazistas. Uns e outros se sustentaram não somente pela imposição do terror, mas, sobretudo, pelo exercício de uma racionalidade[7]. A construção progressiva da solidariedade como valor central no projeto democrático é a resposta mais duradoura que podemos oferecer ao quadro que viemos de observar. Como levá-la a cabo? Não há, claro, respostas fáceis ou imediatas. Mas acredito que, para todos aqueles que direta ou indiretamente lidam com jovens (isso vai de educadores a jornalistas, de médicos a representantes da lei, de profissionais psi a trabalhadores sociais), esta é uma questão fundamental, e um desafio particular. É preciso impedir que mortes, como a de M.M.A., continuem se multiplicando. Hanna Arendt disse certa vez que os homens só existem no plural. No momento em que vivemos, essa é cada vez mais uma afirmação a ser repetida. Construindo, com imaginação e vontade, espaços e práticas de solidariedade.

 

 


Notas:

 

[1] Castoriadis, C. Feito e a fazer. Rio de Janeiro, DP&A, 1999.

 

[2] Giddens, A. A s conseqüências da modernidade. São Paulo, Unesp, 1991

 

[3] Sennett, R. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro, Record, 1999.

 

[4] Calligaris, C. Cônicas do individualismo cotidiano. São Paulo, Ática, 1996.

 

[5] Lasch, C. O mínimo eu: a sobrevivência psíquica em tempos difíceis. São Paulo, Brasiliense, 1986.

 

[6] Cf. Benjamin, C. et all. A opção brasileira. Rio de Janeiro, Contraponto, 1998.

 

[7] Ver Bauman, Z. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.

 

[8]  Texto extraído em: http://www.adolec.br/bvs/adolec/P/cadernos/capitulo/cap14/cap14.htm