AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO CIVIL PÚBLICA -CRIANÇA - AQUISIÇÃO DE MEDICAMENTO NECESSÁRIO PARA TRATAMENTO DE DOENÇA GRAVE -LIMINAR CONCEDIDA INAUDITA ALTERA PARTE - PRESENÇA DOS PRESSUPOSTOS FUNDAMENTAIS À SUA CONCESSÃO - AGRAVO IMPROVIDO. TJPR. AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 142-1. RELATOR: DES. TADEU COSTA.

 

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 142-1, DE APUCARANA

 

AGRAVANTE: ESTADO DO PARANÁ - SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE

AGRAVADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ

RELATOR: DES. TADEU COSTA

 

 

A presença do fumus boni juris e o evidente perigo da insatisfação do direito, decorrente da gravidade do fato, aliados à premência da medida pleiteada, justificam a concessão da liminar em ação civil pública, sem a audiência prévia do representante judicial da pessoa jurídica.

 

ACÓRDÃO Nº 7671

 

VISTOS, relatados e discutidos estes autos de agravo de instrumento n0 142-1, de Apucarana, Vara de Família e Anexos, em que é agravante o Estado do Paraná -Secretaria de Estado da Saúde e agravado o Ministério Público do Estado do Paraná, figurando como interessada

 

1. Inconformado com decisão proferida pelo MM. Juiz de Direito da Vara de Família e Anexos da Comarca de Apucarana, que, nos autos de ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Estado do Paraná, concedeu a liminar pleiteada, determinando à requerida (Secretaria de Estado da Saúde) o fornecimento do medicamento ceredase” à criança ..., portadora da doença de “Gaucher”, o Estado do Paraná interpôs o presente agravo de instrumento, pleiteando a revogação da mesma liminar, alegando, de início, a ilegitimidade passiva da Secretaria da Saúde, pelo que deve ser sanada tal irregularidade, “fazendo constar o Estado do Paraná no pólo passivo da demanda”. Argüiu, também, a impossibilidade jurídica do pedido, a ensejar a carência da ação proposta, ao argumento de que a pretensão deduzida (entrega de medicamento a pessoa determinada), está na esfera dos atos discriminatórios inerentes ao Poder Executivo, cabendo, exclusivamente, a esse poder avaliar a conveniência e a necessidade da realização da referida pretensão, bem como não haver previsão orçamentária para o fim almejado. Sustentou, ainda, a inobservância do art. 2º, da Lei Federal n0 8.43 7/92. Aduzindo não existir, in casu, os pressupostos exigidos para a concessão da liminar, pela ausência do periculum in mora e do fumus boni juris. Por derradeiro, asseverou que, através da Resolução n0 09/95, do Conselho Estadual de Saúde do Paraná, foi proposta relativa a medicamentos excepcionais, incluindo o “ceredase”, visando à aquisição e conseqüente distribuição desses medicamentos ás pessoas necessitadas, pelo que a ação proposta perdeu o objeto.

 

Formado o instrumento, com resposta ofertada e despacho de sustentação, vieram os autos a este egrégio Tribunal, onde foram, inicialmente, distribuídos a Primeira Câmara Cível, a qual, através do venerando Acórdão n0 12.151 (fls.232- 234), não conheceu do recurso, determinando a remessa a este Conselho da Magistratura.

 

A douta Procuradoria Geral de Justiça emitiu o parecer de fls. 242-251, opinando pelo improvimento do recurso.

 

É, em síntese, a necessária exposição.

 

2. De início, no tocante à alegada ilegitimidade passiva da Secretaria de Saúde do Estado, a ensejar a retificação na autuação e na distribuição, observa-se que a matéria é atinente à competência do Juízo a quo, na qual tramita a demanda, como esclarece o parecer ministerial, já que “nenhum prejuízo adveio ao agravante, pois a citação recaiu na pessoa de Sua Excelência, o Procurador Geral do Estado, ou seja, o Chefe do Órgão de defesa judicial do Estado do Paraná (...) a quem incumbia a contestação do pedido” (fls. 245).

 

Dessa forma, a existência de eventual irregularidade, nesse aspecto, deve ser sanada pelo Juízo processante, mesmo porque tal questão não foi objeto da decisão agravada, desmerecendo qualquer consideração nesta instância em respeito ao princípio do duplo grau de jurisdição.

 

3. Em relação às demais questões suscitadas, ou seja, impossibilidade jurídica do pedido, interferência do Poder Judiciário em ato administrativo discriminatório inerente à esfera exclusiva do Poder Executivo e inexistência de previsão orçamentária para o fim pleiteado, o judicioso pronunciamento da douta Procuradoria Geral de Justiça bem analisou tais matérias, pelo que os argumentos ali expendidos são adotados como razões de decidir, in verbis:

 

“Cumpre se assinalar, primeiramente, que o agravante não se insurge contra a decisão que recebeu a petição inicial e determinou a citação do requerido, instaurando-se a relação processual. O pedido recursal não se dirige à pretensão de extinção do processo, desde que sua fase postulatória, sem julgamento de mérito, posto que esta seria a conseqüência lógica e necessária do reconhecimento de inexistência de uma das condições da ação (art. 267, VI, do Código de Processo Civil). O agravante se insurge apenas em relação à decisão de caráter cautelar, liminarmente concedida, pleiteando a sua revogação.

 

Assim, em sendo acolhida esta sorte de argumentação, o juízo ad quem estaria julgando o presente agravo em desconformidade com o pedido recursal.

 

Por outro tanto, esta fundamentação no sentido de ingresso do Poder Judiciário no âmbito de discricionariedade dos atos administrativos diz respeito à discussão de mérito da relação processual, e não propriamente das denominadas condições da ação. O ordenamento jurídico, a priori, não veda a propositura de ações contra o Estado, visando obrigá-lo ao cumprimento de seus deveres legais.

 

Não se está - frise-se - a pleitear judicialmente a cobrança de dividas de jogo ou atividades ilícitas ou imorais, caso em que o Poder judiciário se recusaria em admitir o exercício do direito de ação e se negaria a receber a petição inicial e determinar a citação do requerido com fundamento na ausência da possibilidade jurídica do pedido com uma das condições da ação exigíveis.

 

Conforme lição básica de Humberto Theodoro Júnior, ‘O direito de ação é o direito público subjetivo à prestação jurisdicional do Estado. Para obter a solução da lide (sentença de mérito), incumbe, porém, ao autor atender a determinadas condições, sem as quais o juiz se recusará a apreciar seu pedido: são elas as condições da ação, ou condições do exercício de ação “(Curso de Direito Processual Civil, Vol. 1, 10ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1992).

 

O mesmo autor adverte, ainda, no tocante à possibilidade jurídica d pedido, que se deve a Allorio (em sua obra Problemas de Derecho procesal, Vol. II, 1ª edição, 1963, pág. 270) o esclarecimento de que o cotejo do pedido com o direito material só pode levar a unia solução de mérito, ou seja, à sua improcedência (ob. cit., pág. 54).

 

Parece-nos pacifico que o conceito de possibilidade jurídica do pedido para a admissibilidade da ação deve se estabelecer de forma genérica face o ordenamento jurídico e não de molde a antecipar o próprio julgamento de mérito. A respeito, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça se manifestou, esclarecendo:

 

“Por possibilidade jurídica do pedido entende-se a admissibilidade da pretensão perante o ordenamento jurídico, ou seja, previsão ou ausência de vedação, no direito vigente do que se postula na causa” (Resp. 1678-00, DJU de 09.04.90, transcrito por Salvio de Figueiredo Teixeira, no seu Código de Processo Civil Anotado, 5ª edição, Editora Saraiva, 1993, pág. 165).

O pedido que se formula na ação civil pública diz respeito ao cumprimento de dever do Estado em relação ao direito à saúde de uma criança, e vem estribado no art. 227 da Constituição Federal, arts. 4º, 7º e 11º, § 2º da Lei Federal n0 8.069/90, bem como no art. 2º da Lei Federal n0 7.853/89. Trata-se, portanto, de pedido juridicamente possível de ser dirigido ao Poder Judiciário. Quanto à sua procedência, unicamente a análise de mérito o dirá, e sua discussão em sede recursal há de se realizar, oportunamente, através do recurso de apelação.

 

Registre-se, enfim, que o Poder Judiciário não está impedido de ingressar no exame de legalidade da atividade do Poder Executivo. E exatamente o caso em tela, onde de aponta a violação à legalidade, ou à ordem jurídica, por atitude de omissão da administração pública quanto ao cumprimento de preceitos normativos positivados (ilegalidade por omissão). Totalmente diversos são os aspectos relacionados à simples discricionariedade dos atos da administração pública, sob cujo manto tenta o Estado, por ora, eximir-se de seu dever.

 

O agravante aduz em suas razões que não existe previsão orçamentária para o cumprimento da decisão de caráter cautelar.

 

Com o devido respeito ao agravante, este problema há de ser resolvido unicamente como o Poder Executivo e se encontra na eventual controvérsia quanto ao cumprimento ou execução da medida.

 

Em 25 de fevereiro de 1994, os pais da criança ... (com quatro anos de idade à ocasião), formalizaram um requerimento ao Presidente da Assembléia Legislativa do Estado do Paraná, relatando que sua filha apresentava a moléstia denominada doença de “Gaucher”, cujo tratamento só possível com aquisição do custoso medicamento Ceredase. (fls. 158).

 

Neste documento, os genitores da pequena ... registraram a luta travada para a aquisição deste remédio, onde se incluem gestões junto ao Ministério da Saúde, bem como uma reunião havida com o então Secretário de Estado da Saúde do Paraná, doutor Nizam Pereira.

 

Segundo ainda consta às fls. 158, o Senhor Secretário ... “orientou para que solicitássemos junto à Promotoria de Apoio à Criança e ao Adolescente para que a mesma entre com medida judicial para a garantia constitucional do tratamento de nossa filha”... (sic). Derradeiramente, solicitaram ao Presidente da Assembléia Legislativa uma ação concreta junto ao Ministério Público com a finalidade de ser obter deste alguma providência inicial que amparasse, através do Poder Judiciário, o desespero dos mesmos.

 

Instados pelo Poder Legislativo Estadual (doc. de fls. 157), o Ministério Público buscou, primeiramente, uma solução no âmbito administrativo junto à Secretaria de Estado da Saúde, onde se instaurou o procedimento de n0 1.941.888-0 (fls. 28 e seguintes).

 

Em atendimento, pois, a despacho do Chefe do Departamento de Programas Especiais da Secretaria de Estado da Saúde, doutor Carlos Renato d’ Ávila, a criança ... foi encaminhada para exame perante o corpo médico do Hospital Universitário de Londrina (fls. 36), cujo relatório de atendimento concluiu ser a mesma portadora da doença do Gaucher (fls. 50 e 51).

 

Referida constatação, todavia, não foi imediatamente aceita pela Secretaria de Estado da Saúde, que exigiu a composição de uma junta médica para emitir um parecer (fls. 54 e 55).

 

Em 20 de julho de 1994, o Diretor Clínico do Hospital da Universidade de Londrina, doutor ..., firmou resolução designando três médicos desta instituição para comporem uma junta médica, cujo relatório concluiu, enfim e novamente, ser a criança ... portadora da doença de Gaucher Tipo I, havendo ... “indicação formal para a terapêutica com a medicação Cederase”..., oportunidade em que se salientou,, ainda, que ... “a relação custo beneficio com a terapêutica substitutiva com Ceredase é favorável”... (ambos os trechos extraídos do doc. de fls. 57).

 

Conforme consta às fls. 71, em 24 de outubro de 1994, a Assembléia Jurídica da Secretaria de Estado da Saúde, recomendou, à vista de parecer exarado pela Procuradoria Geral do Estado (fls. 67 à 70), a compra do medicamento Ceredase. Em 25 de outubro de 1994, o Gabinete do Secretário de Estado da Saúde adotou a recomendação e determinou que fossem tomadas as providências necessárias para a aquisição do Ceredase (fls. 73), decisão esta, encampada, em data de 03 de novembro, pessoalmente pelo Senhor Secretário e ratifica em 17 de novembro por Sua Excelência, o Governador do Estado do Paraná (doc., fls. 107).

 

Contudo, apenas quatro meses após, em data de 18 de abril de 1995 (doc. de fls. 110), foram adotadas as medidas definitivas para a aquisição do medicamento, com a expedição das notas de empenho relativas à despesa (fls. 113 à 117).

 

Finalmente, em 04 de maio de 1995, um primeiro lote de medicação foi encaminhada ao Hospital Universitário de Londrina.

 

Este histórico bem registra a necessidade de intervenção do Poder Judiciário, quer seja para assegurar a continuidade de fornecimento do medicamento, quer seja a fim de que se evite, no futuro, urna solução de continuidade. Quando a própria vida é o bem jurídico ameaçado, não pode subsistir dúvida a respeito da caracterização do periculum in  mora.

 

4. Por outro vértice, em relação ao descumprimento no disposto no art. 2º, da Lei Federal n0 8.437/92, ou seja, concessão da liminar sem audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, contra quem foi dirigida a demanda, conforme preconiza o referido dispositivo, está plenamente justificado, face à gravidade e à urgência do caso em tela.

 

Aliás, sobre o tema, bem observou Teori Albino Zavascki, Juiz do Trihunal Regional Federal, da Quarta Região:

 

“O art. 2º trouxe novidade a exigir, como pressuposto da liminar em mandado de segurança coletivo e em ação civil pública, a prévia audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público. no prazo de setenta e duas horas. Cabe observar, porém, que qualquer liminar para ser cabível, pressupõe situação de perigo iminente, ou seja. em condições de perpetrar dano antes da citação do demandado. Em casos em que tal risco não existir, a rigor a liminar não se justifica. O “princípio da necessidade” veda a concessão de liminar se a providência puder ser postergada para a fase posterior à citação. Portanto, o art, 2º, para não ser considerado supérfluo, há de ser entendido como aplicável a hipótese em que a providência cautelar não possa aguardar o término do prazo privilegiado, em quádruplo, de que dispõe a pessoa jurídica de direito público para defender-se. Assim, nestes casos, a fixação de prazo menor, para que a parte demandada possa se manifestar, especificamente, sobre o cabimento da medida, é dispositivo compatível com o ‘princípio da menor restrição possível”. Entretanto, parece certo que tal dispositivo não se aplicará àquelas situações fáticas revestidas de tal urgência ou relevância, que não permitem tempo para, sequer, aguardar-se o prazo de setenta e duas horas. Se tão excepcional hipótese se apresentar, poderá o Juiz, em nome do direito à utilidade da jurisdição e sempre mediante a devida justificação, conceder a liminar, já que para tanto estará autorizado pelo próprio sistema constitucional. Tratar-se-ia de singular hipótese de liminar para tutelar o direito a outra liminar, posto em perigo pelas especiais circunstâncias do caso concreto” (“Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados”, Vol. 125 - Jun - 1994, págs. 80-81).

 

Portanto, no caso em espécie, constatando o Magistrado de primeiro grau a presença do fumus boni juris, uma vez que o pedido formulado pelo Ministério Público encontra supedâneo no art. 227 da Constituição Federal, bem como nos arts. 4º, 7º e 11º § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, e tendo em vista o perigo de insatisfação do direito, decorrente da gravidade do fato, que tomava premente a medida pleiteada, lícito lhe era decidir tal como decidiu, concedendo a liminar sem audiência da parte contrária.

 

A decisão hostilizada, pois, antes de merecer qualquer censura, é digna de integral confirmação, inclusive por seus próprios fundamentos.

 

Ante o exposto:

 

ACORDAM os Desembargadores integrantes do Conselho da Magistratura, à unanimidade de votos, negar provimento ao recurso.

 

Estiveram presentes e acompanharam o voto do Excelentíssimo Desembargador Relator os Desembargadores ACCÁCIO CAMBI e NEWTON LUZ.

 

Curitiba, 19 de maio de 1997.

 

DES. LENZ CÉSAR

Presidente

 

DES. TADEU COSTA

Relator