A EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA LEGISLAÇÃO
BRASILEIRA – CAMINHOS DE APRIMORAMENTO
Grupo Estudos Jurídicos
Comissão Nacional de
Organização das Atividades do 18 de maio de 2003.
A base jurídica para o tratamento da questão da exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil é a Constituição Federal de 1988 (art. 227, caput, § 1º, 3º, IV, V e § 4º; art. 228); o Código Penal(1) (arts. 213 a 229, 233 e 234); o Estatuto da Criança e do Adolescente(2) (arts. 5º; 82 a 85; 149, 238 a 243; 250 e 255); a Lei dos Crimes Hediondos(3) (arts. 1o. e 6o.) e a Lei da Tortura(1) (arts. 1o. e 4o.).
No Código Penal Brasileiro de 1940 existem os crimes de estupro, atentado violento ao pudor, posse sexual mediante fraude, atentado ao pudor mediante fraude, sedução, corrupção de menores, rapto violento ou mediante fraude, mediação para servir à lascívia de outrem, favorecimento à prostituição, casas de prostituição, rufianismo, tráfico de mulheres e ato obsceno, todos parte de seu Título VI ("Dos crimes contra os costumes"). O Código Penal acha-se defasado em função dos sessenta e dois anos que o separam dos hábitos, costumes morais e tipos criminais da atualidade, além da sua óbvia distância em relação a leis nacionais e internacionais mais recentes. Já existe no Brasil uma "Comissão de Reforma do Código Penal", que todavia ainda não enviou sua proposta para o Congresso Nacional.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instrumento jurídico inovador por ter como base a concepção de proteção integral, defendida pela ONU na Declaração Universal dos Direitos da Criança, legisla sobre a hospedagem de criança ou adolescente em hotel, motel, pensão ou estabelecimento congênere; viagens de crianças no território nacional; viagens de crianças e adolescentes para o exterior; entrada, permanência ou participação de crianças e adolescentes em estádios, bailes, boates, estúdios de cinema/teatro/tv, espetáculos públicos, concursos de beleza, entre outros; entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou recompensa; promover ou auxiliar o envio de criança ou adolescente para o exterior; produzir ou dirigir representação teatral, televisiva ou cinematográfica utilizando-se de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica; fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente; hospedar crianças ou adolescentes desacompanhados, sem autorização dos pais ou juiz, em hotel, motel, pensão ou congênere; e exibir filme, trailer, peça ou congênere classificado como inadequado às crianças ou adolescentes admitidos ao espetáculo.
A Lei dos Crimes Hediondos, de 1990, assim considera diversos crimes já tipificados no Código Penal, entre eles o estupro e o atentado violento ao pudor. Além disso, aumenta as penas para esses crimes e para o de ato obsceno. Se a vítima tiver menos de 14 anos, as penas são acrescidas da metade.
A Lei de Tortura, de 1997, considera crime de tortura, entre outros, submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo, com aumento na pena se a vítima for criança ou adolescente.
O Parlamento brasileiro tem tido importante atuação no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes. Em 1993 instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para tratar da prostituição infanto-juvenil. A CPI chamou a atenção para a impunidade, a ligação com o narcotráfico, a ausência de políticas de atendimento às meninas vitimizadas, a existência de rotas de tráfico internas e externas ao território nacional, o turismo sexual, a tipicidade da região amazônica (garimpos) e para o problema das adoções internacionais. Existe a possibilidade de ser instalada este ano uma nova CPI para tratar do tema.
Tramitam atualmente no Congresso dezenas de proposições sobre violência e exploração sexual, que apontam para necessidades de mudanças na atual legislação ou propõem novos instrumentos legais. Tais proposições, além daquelas que vêm sendo debatidas e/ou sugeridas por operadores de direito e pela sociedade civil brasileira, são a base da reflexão que apresentamos a seguir.
Vale lembrar que muitas das mudanças propostas buscam adequar a legislação brasileira ao posicionamento do país diante da agenda internacional, especialmente a Convenção sobre os Direitos da Criança, as Convenções 138 (idade mínima) e 182 (piores formas de trabalho infantil) da OIT; o Protocolo Facultativo sobre a venda de crianças, a prostituição infantil e a pornografia infantil, e a Convenção contra a Delinqüência Transnacional Organizada das Nações Unidas (2000).
A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é um tema ainda de difícil absorção em nossa sociedade. Não obstante sua unânime condenação, os meios utilizados para reprimi-la e resgatar as meninas e meninos explorados são frutos de amplo debate. Este debate já vem sendo feito pela sociedade civil e pelos operadores de direito. O papel do Legislativo na sua reverberação é fundamental.
Neste sentido, a Comissão Nacional de Organização das Atividades do 18 de Maio de 2003 se dirige ao Congresso Nacional com o intuito de apresentar três propostas para a reflexão dos senhores parlamentares:
Defendemos que, dentre as propostas de alteração do Código Penal em discussão pela sociedade civil e pelo Congresso, se priorize (1) alteração do art. 225(2) permitindo a instituição de ação penal pública incondicionada para os crimes cujas vítimas sejam crianças e adolescentes e (2) alteração do art. 231(3), substituindo a expressão "tráfico de mulheres" por "tráfico de pessoas" e legislando sobre o crime de trafico interno e não somente internacional.
O artigo 225 prevê que somente se procede mediante queixa nos crimes de estupro, atentado violento ao pudor, posse sexual mediante fraude, atentado ao pudor mediante fraude, sedução, corrupção de menores, rapto violento ou mediante fraude e rapto consensual. O parágrafo primeiro do art. 225 permite o procedimento mediante ação pública apenas se (I) a vítima ou seus pais não podem prover as despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família (neste caso, a ação do Ministério Público depende de representação) e (II) se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador. Nossa proposta prevê a alteração do caput do art. 225, para que os crimes elencados acima fiquem sujeitos à ação penal pública incondicionada. Além disso, no inciso II o rol dos autores da infração deveria se estender a outras pessoas que, pelo cargo ou profissão, detenham influência sobre a criança e o adolescente.
Em relação ao tráfico, o texto em vigor tipifica apenas aquele que promova ou facilite a entrada em território nacional de mulheres que aqui venham exercer a prostituição, ou a saída de mulheres para o estrangeiro. Embora as mulheres sejam, de fato, as maiores vítimas do tráfico internacional(4) , há registros contundentes do tráfico de homens e menores de idade de ambos os sexos. Para o Departamento de Estado dos Estados Unidos, em relatório divulgado em julho de 2001, o Brasil é considerado país fornecedor de vítimas para o tráfico doméstico e internacional de seres humanos.
É urgente alterar o art. 231 em vários aspectos, inclusive tendo em vista que o Brasil está para ratificar a Convenção de Palermo e seus dois Protocolos relativos ao Tráfico de Migrantes e ao Tráfico de Pessoas: (1) substituir a expressão "mulheres" por "pessoas"(5), responsabilizando penalmente os traficantes, independentemente do sexo ou idade das vítimas; (2) responsabilizar penalmente também aquele que "compra" a pessoa traficada; (3) não restringir o tráfico de pessoas à prostituição, em seu lugar deveria constar "exploração sexual"; (4) incluir no tipo penal outras modalidades de tráfico de seres humanos, tais como a exploração do trabalho, o trabalho forçado, o casamento forçado, o cativeiro por dívidas, o cárcere privado, a extração de órgãos e a adoção ilegal; (5) em relação à crianças, uma vez que o art. 239(6) do ECA somente criminaliza a remessa de criança ou adolescente para o exterior, deve ficar expresso numa proposta de modificação do art. 231 do CP "a promoção do tráfico ou facilitação do mesmo dentro do território nacional".
Recomendamos que seja aprovada uma lei específica para crimes na Internet, especialmente aqueles que utilizam imagens de crianças e adolescentes com fins sexuais.
Sugerimos que o Congresso Nacional apoie todas as propostas no sentido de criação de Delegacias Especializadas de Proteção à Criança e ao Adolescente e de Varas Privativas de Crimes contra a Infância e a Juventude (para que tenhamos, em 18 de Maio de 2004, ao menos uma em cada unidade da federação). Entendemos que boas legislações são ineficazes se não estiverem apoiadas pela ação destes órgãos.
NOTAS :
1. Decreto-Lei nº 2.848, de 07.12.1940.
2. Lei no. 8.069, de 13 de julho de 1990.
3. Lei no. 8.072, de 1990.
4. Lei no. 9.455, de 1997.
5. Artigo 225- Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, somente se procede mediante queixa. § 1º - Procede-se, entretanto, mediante ação pública: I - se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família; II - se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador. § 2º - No caso do n. I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público depende de representação
6. Art. 231. Tráfico de Mulheres – Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. § 1º Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1º do art. 227: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. § 2º Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude, a pena é de reclusão, de 5 (cinco) anos a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência. § 3º Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.
7. Conforme a Organização para o Controle de Drogas e Prevenção do Crime, o tráfico internacional de mulheres movimenta, anualmente, de US$ 7 a US$ 9 bilhões. Somente perde, em lucros, para o tráfico de drogas e o contrabando de armas.
8. Até o presente momento a única referência ao tráfico internacional de crianças encontra-se prevista, nunca se forneceu uma disciplina jurídica própria. A ausência de um tipo penal que incida específica e diretamente sobre a matéria traz um sério inconveniente, uma vez que obriga o aplicador da norma a recorrer ao ECA, posterior ao Código Penal e específico no tratamento de pessoa menor de 18 anos, que, por sua vez, tem situações que não foram acobertadas, causando problemas de enquadramento como a não previsão do caso de envio da criança ou do adolescente para o exterior em obediência a todas as formalidades, ou que não tenha como fim a obtenção de lucro. Dessa forma, inexistindo tipo penal, desde que a ação envolva ato praticado pelo progenitor, no momento só resta a possibilidade de enquadramento no delito previsto no art. 245 do Código Penal ("entrega de filho a pessoa idônea"). Nesse caso, a vítima, que pode ser de ambos os sexos, tem de ser menor de 18 anos.
9. Art. 239 - Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro: Pena - reclusão de quatro a seis anos, e multa.