DILEMAS ÉTICOS DA VIDA HUMANA: A TRAJETÓRIA HOSPITALAR DE CRIANÇAS
PORTADORAS DE PARALISIA CEREBRAL GRAVE
Débora Diniz
Associação das Pioneiras Sociais.
Resumo: O artigo é um estudo antropológico que aborda os
pressupostos éticos do tratamento médico ministrado em crianças portadoras de
paralisia cerebral grave. A pesquisa foi realizada a partir de um trabalho
etnográfico de oito meses, com pacientes em tratamento no Centro de Paralisia
Cerebral do Hospital Sarah, Salvador. A observação da terapêutica ministrada a
estas crianças, que apresentam pouquíssimas mudanças do quadro clínico, levou
ao questionamento já bastante sugerido em discussões relativas à deontologia médica: Qual o
objetivo do tratamento médico empregado nestas crianças? Na verdade, os resultados
desta pesquisa indicaram a existência de explicações sócio-humanistas que
estariam além da explicação médico-científica oficial, a qual resumiria a
terapêutica a um fisicalismo corporal.
Palavras-chave
Paralisia Cerebral; Saúde da
Criança; Antropologia Médica; Ética Médica
Introdução
Já se foi o tempo em que os
médicos oficiais eram grandes magos. Lendas, como o "Médico Mago"
(Nina, 1959), comuns à literatura popular, encontram pouquíssimos ecos na
medicina oficial do mundo ocidental. O "Médico Mago", conto popular
chinês, provavelmente proveniente do período das áureas dinastias, é uma destas
narrativas primorosas que nos auxiliam a iniciar discussões teóricas, pela
sutileza com que as questões são sugeridas.
Conta-se que na província de I
vivia um cidadão chamado Tchiang. Pobre e
desempregado, Tchiang perambulava pelas ruas da
cidade, quando, um dia, topou com um sacerdote taoísta,
dotado de poderes premonitórios. Sem ser questionado, o sacerdote disse a Tchiang que ele poderia ficar rico caso exercesse alguma
arte mágica. Espantado, Tchiang lhe perguntou qual
magia deveria praticar, uma vez que desconhecia por completo qualquer das artes
mágicas. O sacerdote observou um pouco mais seu rosto e lhe respondeu que a
mais sublime delas: a medicina. Mais surpreso ainda, Tchiang
lhe disse que ignorava completamente os preceitos do ofício médico, o que fez o
sacerdote sair sorrindo. Convencido de que deveria seguir o vaticínio do
sacerdote, Tchiang retornou para casa e, rapidamente,
instalou um consultório. Os dias se passaram e nenhum cliente o procurou. Já
pensando em desistir da profissão e desacreditado em relação ao sacerdote, Tchiang foi intimado a tratar a bronquite do governador de Tch'ing-tchiau, uma grande província da China antiga.
Assustado, Tchiang partiu com a comitiva oficial que
viera buscá-lo. Porém, além de saber que renomados médicos falharam antes dele,
o próprio Tchiang também sofria de uma bronquite
crônica. Durante a viagem, no primeiro lugarejo que pararam para beber água (e
isso numa região em que a água é um dos bens mais raros), uma vez que Tchiang tossia continuamente, somente encontraram um balde
contendo umas poucas gotas de água suja de agrião. Como Tchiang
não suportava mais a sede, resolveu beber daquela água mesma. No mesmo
instante, desapareceram por completo o chiado e a tosse que tanto lhe
importunavam. Assim, ao chegar diante do governador, Tchiang
deu-lhe um pouco da mesma água que bebera instantes antes, a qual,
misteriosamente, também o curou. Este, completamente estupefato com o milagre
que acabara de presenciar, fez de Tchiang o médico
oficial do governo, bem como lhe dedicou inúmeras honras. Tchiang,
neste novo papel, continuou a exercer eficazmente a arte médica.
Talvez com um pouco de
melancolia, nós constatemos que, hoje, para aqueles que exercem a arte médica,
a medicina não é mais magia. O feitiço da medicina, que tanto encantou nossos
antepassados, está mais para aqueles que dela dependem, diferentemente do
conto, em que tanto Tchiang quanto os pacientes acreditavam
e esperavam milagres mágicos da medicina. Hoje, a ciência médica, a todo momento, depara-se com seus limites e faz questão de
esclarecê-los para os pacientes. É comum ouvirem-se frases como: foi feito tudo que era possível, ou é importante que o paciente saiba toda a
verdade, nas quais os limites da ciência são lembrados com uma força
dilacerante. Há, na medicina, alguns ramos do saber onde estes limites são mais
visíveis e mais constantes que em outros. São áreas do fazer médico em que os
pacientes esperam que a medicina novamente volte a estar ligada à magia, pois
este seria, hoje, o único caminho para a tão esperada cura. São instantes da
vida humana durante os quais é impossível, para o exercício médico,
relativizar-se a idéia de cura. É um desses limites que eu me proponho a
apresentar.
O Centro de Paralisia Cerebral do Hospital Sarah
O Hospital Sarah, especializado
em patologias do aparelho locomotor, possui uma seção conhecida como
"Escolinha", direcionada especialmente ao tratamento de crianças
portadoras de paralisia cerebral. A "Escolinha" tem por objetivo
treinar as famílias das crianças pacientes do Sarah, a fim de que empreendam o
tratamento paralelamente ao atendimento no hospital. É feita uma avaliação por
terapeutas funcionais (que são fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais),
médicos e psicólogos, que informam a família sobre o diagnóstico. As crianças
atendidas pela "Escolinha" são aquelas que apresentam seqüelas de
lesão cerebral e aquelas com síndrome neurológica. Lembro, no entanto, que o
Sarah é uma rede de hospitais espalhados pelo país e, sempre que me referir à
instituição, assim faço baseando-me no hospital de Salvador, onde trabalho como
pesquisadora-antropóloga. Acredito que as discussões que apresento poderiam ser
estendidas a todas as unidades, porém, a título de reserva, gostaria que fosse
lembrado o recorte etnográfico.
Paralisia cerebral, grosso modo,
é uma encefalopatia de tipos e graus variados,
provocada por alterações e/ou interferências na formação, amadurecimento e
evolução do encéfalo. Devido à variabilidade dos agentes provocadores da
paralisia cerebral, alguns autores apontam como conseqüência o fato de a
patologia poder ser classificada também de diferentes formas, não havendo um
consenso entre os pesquisadores:
"...A paralisia cerebral pode ser
classificada de maneiras diferentes, o que leva a uma considerável confusão:
(1) de acordo com o tipo; (2) de acordo com o número de membros afetados; (3)
de acordo com a época de instalação; (4) de acordo com o grau de
comprometimento e (5) de acordo com a extensão e natureza da lesão
cerebral..." (Telford & Sawrey, 1977:568).
As causas podem variar desde
ocorrências pré-natais, traumas obstétricos, até distúrbios pós-nascimento. Os
diferentes tipos de paralisia cerebral têm como característica comum disfunções
sensório-motoras, comumente associadas a distúrbios visuais, auditivos,
perceptivos, convulsões etc. Algumas vezes o desenvolvimento cognitivo dessas
crianças não é facilmente avaliável, tamanho o grau de comprometimento motor,
ou como diz um dos textos produzidos pelo hospital Sarah:
"...A paralisia cerebral (...) é de
caráter não progressivo e caracterizada por variação de tônus, desordens da
postura e do movimento e distúrbios sensoriais. Além dessas características
básicas, outros problemas podem estar associados, como convulsões, déficit
mental, distúrbios visuais e auditivos (...) No que se refere ao
desenvolvimento cognitivo, os graus de deficiência mental podem variar
bastante. Ele está na dependência das dificuldades da criança no manuseio dos
objetos e na limitação para locomoção, já que estes aspectos privam a criança
de experiências que, normalmente, favorecem o desenvolvimento da
inteligência..." (Lucena, 1988:18) ou ainda,
"...Em razão das limitações motoras
severas, eventuais deficiências sensoriais e da idade, não é possível
qualificar esses pacientes quanto a eventual defasagem cognitiva..."
(Lucena, 1988:18).
Como é possível perceber pelo
trecho acima, o custo individual e social que a patologia provoca é imenso. Por
isso, o grau de expectativa que a família deposita no tratamento médico
ministrado pelo hospital é enorme, sendo infinitamente superior ao que a
medicina é capaz de responder. Esperam-se do hospital e, conseqüentemente, do staff médico e paramédico verdadeiros
milagres. Essa ansiedade em torno de respostas está tão presente que, a todo o
momento, chama atenção o modo como os pacientes se relacionam com o espaço
hospitalar: sacraliza-se cada lugar como se estivesse circulando em um templo.
São verdadeiros sinais sociais que marcam o espaço sagrado do hospital: o
grande e famoso lençol branco presente em todas as entradas ("guardiões do
sagrado", Eliade, 1988), a limpeza reluzente, o cuidadoso atendimento, a
construção física, entre outros "sustos" que o paciente toma ao
chegar em um hospital que pouco se assemelha às instituições de saúde pública
do país. A cada novo "susto" com que o paciente ou sua família se
depara é como se a fé inabalável na ciência médica, sempre presente em pacientes
portadores deste tipo de patologia, apenas encontrasse seus alicerces
simbólicos. Já faz parte do "folclore" do hospital ouvirem-se frases
do tipo: abaixo de Deus, só vocês,
ou, mais curioso ainda, o trocadilho o
Sarah sara. Considero, assim, que o hospital Sarah, ao menos para estas
famílias e pacientes, é como um templo onde as pessoas
vêm em busca de milagres que a ciência insiste em afirmar-lhes serem
impossíveis de se produzir. O mundo médico se torna, usando a expressão de Boltanski (1984), "um universo onde tudo é
possível", assim como o universo, também dogmático, da religião.
Desta forma, parte de meu
trabalho etnográfico foi realizado na "Escolinha" do Hospital Sarah.
Acompanhei consultas médicas e paramédicas, fiz visitas domiciliares às famílias
de pacientes e, principalmente, participei de um grupo destinado a dar apoio
aos familiares das crianças com paralisia cerebral grave. Foi deste grupo que
se originou grande parte das observações que ora apresento. Apesar dos dados
que disponho para trabalhar com o discurso acerca da enfermidade desenvolvido
pelas famílias dos pacientes, optei, neste ensaio, por analisar o discurso
terapêutico oficial, uma vez que o considero, assim como Boltanski
(1984) muito bem demonstrou, um importante agente formador de opiniões. Além
disso, a opção por se analisar o chamado discurso "popular" elaborado
em torno da enfermidade vem sendo, até o momento, a opção preferencial dos
cientistas sociais, haja vista as teses acadêmicas produzidas nos últimos anos
(Knauth, 1991; Redko, 1992;
Borges, 1993; entre outras).
O grupo é composto pelos
familiares de pacientes tetraplégicos graves (a tetraplegia diz respeito à
distribuição do comprometimento motor, no caso para os quatro membros), com
idades entre um e quatro anos, cujo prognóstico é ruim (a expressão
"ruim", apesar de soar um pouco pesada, é o conceito utilizado pelos
profissionais que lidam com a patologia, por isso optei por mantê-lo). O número
de participantes de cada turma, em um total de quatro, sendo um encontro a
cada terça-feira durante oito meses seguidos, é de seis a oito pacientes. O
grande objetivo do grupo é proporcionar um apoio intensivo à família para que
esta possa seguir sozinha, após os oito meses, o acompanhamento da criança. Na
verdade, o grupo é uma forma sutil de "desmame", uma vez que a
medicina oferece poucas possibilidades de mudança do quadro, além dos
exercícios fisioterápicos ensinados pelos profissionais do hospital, que
consistem em exercícios básicos, cujo objetivo é proporcionar à criança um
pouco mais de conforto nas atividades elementares de vida diária. As reuniões
semanais servem, então, como forma de as mães (em geral são elas quem
participam dos atendimentos) compartilharem experiências, muitas delas bastante
dolorosas. A proposta do grupo resgata uma prática que se assemelha, segundo
Heródoto, à medicina da antiga Babilônia a da diagnose compartilhada (este
paralelo histórico pode ser estabelecido, mas não houve qualquer intenção
semelhante na elaboração do projeto de funcionamento do atendimento em grupo):
"...Eles levam os seus doentes à praça
do mercado. Então, aqueles que passam pelo doente conferenciam com ele; isto se
faz para se descobrir se algum dos passantes já foi acometido pela mesma
doença; e, se alguém o foi, esse alguém aconselha o doente a recorrer ao mesmo
tratamento por meio do qual esse mesmo alguém ou outras pessoas que ele haja
conhecido, tenha sido curado. Os passantes não têm permissão pra transitar em
silêncio perto de uma pessoa, sem lhe fazer perguntas quanto à natureza do seu
destempero..." (apud Calder, s/data:59).
No grupo, tive, então,
oportunidade de acompanhar as mães dos pacientes durante atendimentos. Eram
momentos especiais, quando elas se sentiam relativamente livres para exporem
suas dúvidas e ansiedades acerca da patologia e do desenvolvimento da criança.
A proposta do atendimento coletivo é bastante semelhante à da descrição de
Heródoto: busca-se trocar experiências e confortos, ao confrontar a família de
um paciente com a de outros, às vezes, portadores de quadro clínico mais
severo. O encontro é um momento socialmente estabelecido para se cotejarem e
medirem as diferenças entre os, supostamente, "iguais". As reuniões
são os locais onde se é permitido exibir a criança publicamente sem esta ser
alvo de chacota ou olhares indiscretos, pois todos os casos são discutidos
conjuntamente, deixando-se de lado as visíveis diferenças sócio-econômicas, que
jamais permitiriam pôr juntas crianças tão diversas. Para as mães, os encontros
são os instantes em que é possível estabelecer um diálogo por elas conhecido,
porém desenvolvido somente acerca de outros filhos: fala-se das
"traquinagens" e das "descobertas" feitas por cada criança,
e o tom das conversas assemelha-se ao comumente esperado de mães que referem-se com orgulho a seus filhos. Há, ainda, por trás
dessa característica informal, que perpassa toda a reunião do grupo, um arsenal
terapêutico que dá o suporte técnico aos encontros, o qual, apesar de não menos
importante, será deixado à parte nesta discussão.
O corpo e a vida
"...O corpo tornou-se o esconderijo da
vida..." (Merleau-Ponty, 1994).
Como é possível perceber pelas
descrições feitas da patologia e do tratamento ministrado, a paralisia cerebral
grave põe uma questão ético-filosófica de peso à medicina: o que os médicos
estão tratando em um paciente portador de paralisia cerebral grave? A paralisia
cerebral grave impõe uma situação de vida ao paciente que, hoje, é considerada
irreversível pela medicina. Uma prova disto é que, dentre os axiomas
científicos que constantemente se modificam, um ainda permanece inabalável:
"células nervosas uma vez lesadas não se regeneram" (alguns estudos,
provenientes de institutos de pesquisa norte-americanos, têm analisado o poder
regenerador das células nervosas, porém pouco ainda tem sido descoberto a ponto
de ser apresentado um novo modelo explicativo para o funcionamento das células
nervosas cerebrais). O quadro é tão radical que, segundo os médicos, quase
nenhum espaço é dado pela medicina oficial aos pacientes portadores de
paralisia cerebral grave. Raríssimas são as instituições que tratam de
pacientes portadores de paralisia cerebral com severo grau de comprometimento.
Em geral, dizem os médicos, o tratamento ministrado em pacientes PCs (sigla utilizada para designar os pacientes portadores
desta patologia) é apenas sintomático e de controle de efeitos
"secundários", sendo impossível uma terapêutica das causas e,
conseqüentemente, uma mudança de quadro. O paciente PC vive em outro estado de
normalidade, completamente diverso do comumente considerado como tal. Tanto é
assim que se fala, no jargão médico, que o paciente é PC, não que ele sofre de
paralisia cerebral, fazendo com que a patologia seja uma essência e não mais
uma intercorrência. Para nós, falantes da língua
portuguesa, esta diferenciação é facilmente compreendida uma vez que
distinguimos o ser do estar. Seria o mesmo que disséssemos que
um paciente é doente, ao contrário do comumente esperado em relação a uma
enfermidade em que se diz que alguém sofre de algo.
Esta situação levou-me a
repensar o conceito de saúde, procedimento comum a inúmeros cientistas sociais
que trabalham na interface entre saúde e comportamento social. A solução foi
buscar, para esta situação específica, um conceito que levasse ao máximo em
conta o indivíduo. A fronteira entre o normal e patológico é difícil de ser
estabelecida quando se consideram várias pessoas ao mesmo tempo, mas fácil de
ser determinada numa mesma pessoa, ou seja, a pessoa é doente não em relação a outras,
mas, principalmente, em relação a si mesma (Canguilhem,
1982). Assim, entendo por saúde exatamente o proposto por Canguilhem
quando disse que:
"...A saúde é uma margem de tolerância
às infidelidades do meio. Porém, não será absurdo falar em infidelidade do
meio?(...) Nada acontece por acaso, mas tudo ocorre sob a forma de
acontecimentos. É nisso que o meio é infiel. Sua infidelidade é exatamente seu
dever, sua história..." (Canguilhem, 1982:
159).
Saúde é, desta forma, poder cair
doente e se recuperar, ou, como considera Canguilhem,
um "luxo biológico". É assim que é possível considerar as crianças
portadoras de paralisia cerebral como saudáveis, uma vez ser este o quadro
original em que vivem.
Os PCs
graves são, assim, pacientes (com graus de sobrevivência variados) que vivem às
custas da medicina contemporânea. São pacientes que não teriam sobrevida em
comunidades tribais, por exemplo, uma vez que dependem diretamente do
desenvolvimento técnico-científico alcançado pela medicina oficial, principalmente
a dos últimos cinqüenta anos (para o controle das convulsões, dos problemas
respiratórios, entre outros). Assim, radicalizando a situação, poder-se-ia
afirmar que os pacientes portadores de paralisia cerebral grave são um fenômeno
moderno e conseqüência das descobertas tecnológicas alcançadas pela ciência
médica (situação bastante semelhante, dentre inúmeras outras, é o caso das
crianças portadoras de espinha bífida, analisado por Singer, 1994). Com isso,
não desejo afirmar que a causa da existência de PCs
seja o desenvolvimento técnico alcançado pela medicina, mas afirmar que a
sobrevivência física e social deles corresponde a um desenrolar recente da
ciência. Até pouco tempo atrás seria impossível manter um paciente PC grave
vivo (ao menos nos primeiros instantes de vida ou pós-lesão), uma vez que a
enfermidade exige uma série de medicamentos e procedimentos
técnico-terapêuticos somente descobertos recentemente.
Deste modo, o que desejo apontar
é que tanto a terapêutica quanto as representações simbólicas referentes aos
pacientes portadores de paralisia cerebral grave correspondem a um fenômeno
novo, e a ética médica (aqui me refiro à deontologia
médica conforme definida por Durant (1995) e assim o farei até o final da
exposição) ainda não dispôs de tempo e espaço acadêmicos/sociais suficientes
para se recompor. Segundo Jonas (1994), uma das características da ética
clássica era o pressuposto da coletividade, isto é, o que era bom para pólis também o
era para o cidadão. Assim, a ética filosófica (e também a médica) que governava
a sociedade clássica era aquela baseada em um princípio coletivo onde não havia
espaço para os "naturalmente perturbados", como os deficientes
físicos, os gêmeos, os retardados mentais etc. Ora, como muito bem considerou
Jonas (1994), uma vez que a ética diz respeito à ação e se a forma de agir se
modificou, principalmente em decorrência do desenvolvimento biotecnológico,
também a ética deveria ser repensada e, provavelmente, reelaborada.
No entanto, a principal dificuldade analítica, sugerida por Jonas, concernente
a esta nova ética era que:
"...Nenhuma ética anterior tinha de
levar em consideração a condição global da vida humana e o futuro distante ou
até mesmo a existência da espécie..." (Jonas, 1994:39).
Assim, a terapêutica dos
pacientes portadores de paralisia cerebral grave impõe um desafio ético ao
exercício médico. Como disse anteriormente, a todo momento
se lança a questão: o que a medicina contemporânea trata nestes pacientes? As
consultas médicas, nos ambulatórios de pacientes portadores de paralisia
cerebral grave, são momentos durante os quais a tristeza e o silêncio reinam. O
paciente não fala, não anda, sofre de um retardo mental severo, em resumo, não
estabelece quase nenhum vínculo com a realidade. Várias vezes tive a sensação
de serem crianças que pareciam olhar através de nós. O quadro da enfermidade
sugere, até mesmo ao mais leigo dos observadores, a questão, talvez das mais
profundas feitas pela espécie humana, de o que venha a ser vida. Não há como se
lidar com pacientes-limite, como são os portadores de paralisia cerebral grave,
e não se questionar o que a ética médica entende por dois conceitos já
demasiadamente discutidos por quase todas as ciências: ser humano e vida
(considero que vida seja um conceito diverso de sobrevivência e mais adiante
esclarecerei o porquê). Como disse Pigeaud (1989:27)
em "Doença da Alma", "...a
medicina e a ética não se desenvolveram como técnicas independentes. Elas são
ligadas profundamente por uma concepção de homem...". Tentarei mostrar
que são ambos os conceitos que estão por trás da terapêutica ministrada aos
pacientes portadores de paralisia cerebral grave.
A alma
"...Para mim, agora, a única realidade
é a alma humana..." (Sherrington, 1965, apud Popper & Eccles,
1991).
Duas hipóteses básicas guiarão a
minha tentativa de responder a pergunta inicialmente posta sobre o que é
tratado nos pacientes portadores de paralisia cerebral grave:
· De acordo com a
tradição tecnicista imperante na medicina
contemporânea, a terapêutica ministrada a um paciente PC se reduziria a um
mecanicismo corporal. Ou seja, o médico (e aqui também o paramédico) estaria
apenas observando (ou, como dizem, estaria "evoluindo" o prontuário)
e, na medida do possível, cuidando das queixas do paciente.
· Para além do
tecnicismo contemporâneo, a medicina de tradição hipocrática
vincular-se-ia a uma idéia de humanidade que se situaria além do corpo e que,
hoje, se encontraria arraigada, mesmo que esquecida, na ética médica.
Antecipo, no entanto, que acredito
ser a segunda hipótese a mais plausível. A discussão será feita tendo as duas
hipóteses por eixo de referência e, somente ao final, procurarei respondê-las
explicitamente.
Apesar de não a ter considerado
neste ensaio, acredito existir uma terceira hipótese explicativa para o
fenômeno discutido. Talvez, pacientes como as crianças PCs
sejam sustentados pela medicina por uma terceira razão totalmente diversa das
duas hipóteses apresentadas. Desconsiderando por completo as origens
filosóficas que teriam nutrido a medicina na sua formação, a prática atual,
diante do rápido desenvolvimento da biotecnologia e da engenharia genética,
manteria vivo um paciente com tamanho grau de comprometimento, semelhante a um
PC grave, unicamente por uma onipotência do saber. Seria a possibilidade futura
de cura ou, quem sabe, a de através destes atuais pacientes se encontrar o
caminho para a cura. Acredito que esta é uma hipótese a ser considerada, porém
os dados etnográficos que obtive nestes oito meses de pesquisa me indicam que o
caminho a ser seguido não é este, ao menos para os praticantes da ciência
médica. Talvez uma situação diversa se descortine em estudos que considerem os
pesquisadores que se encontram distantes do exercício clínico.
A história do pensamento filosófico
ocidental está repleta de tentativas, muitas delas frustradas, de se encontrar
o elo perdido em que os homens se diferenciaram dos animais e, mais
diretamente, dos nossos ditos "irmãos", os macacos. Para alguns, a
diferença estaria na linguagem; para outros, no cuidado com os mortos e no
conhecimento da finitude, na capacidade de expressar
a dor ou, ainda, na consciência de si. Muito mais do que tentar encontrar o que
nos tornou diferentes dos animais irracionais, o que se buscou foi uma
constante redefinição do que constituiria o ser humano. Ou seja, aqueles que
buscaram encontrar o elo perdido, foram, na verdade, os maiores filósofos, uma
vez que tinham que definir nossa humanidade. Acredito que boa parte dos
filósofos acabaram por recair nestas questões ontológicas por mais que
tentassem evitá-las. Gostaria de citar, rapidamente, algumas dessas idéias
filosóficas na sua essência e tentar apresentar como elas definiram a
humanidade do ser humano. Considero ser este exercício não apenas uma mera
demonstração teórica. Sua importância está no fato de tentar entender como a
ciência vem redefinindo o conceito de humanidade nos últimos tempos. As
elucubrações metafísicas desses autores seriam como que uma representação
etnográfica do pensamento humanista ocidental, mesmo que profundamente
recortada e reduzida.
Pigeaud,
em seu monumental livro "A Doença da Alma" (1989), buscou fazer uma
retrospectiva do pensamento clássico acerca do que era denominado doença da
alma. A idéia de doença da alma levou a autora a um retorno a três cânones do
conhecimento: a filosofia, a medicina e a literatura clássicas. Segundo Pigeaud, este conceito foi imposto pela tradição
médico-filosófica antiga e teve seu surgimento com o problema metafísico ou
teológico da existência da alma. Para ela, era o sofrimento que diferenciava a
alma do corpo e era a consciência do sofrimento que fazia do ser humano um ser
cultural e, conseqüentemente, o diferenciaria dos animais. A doença da alma,
segundo a autora, impôs à medicina clássica questões sobre dois desconhecidos:
a alma e o corpo. Desta relação, muito se discutiu, porém talvez o mais
importante tenha sido o debate sobre a localização da alma no corpo. Onde
estaria, então, a sede da alma? Dizia Pigeaud:
"...Alguns dizem que a sede é o
encéfalo, outros dizem que é a extremidade inferior ou sua base, que nós
podemos chamar de sessio, outros dizem que é a
artéria que os gregos chamam aorta, outros a "veia
espessa" que os gregos chamam phlebapacheian,
outros consideram o diafragma. Mas por que se discute sobre uma coisa que nós
podemos explicar facilmente, se nós dizemos que eles estão dentro do espírito?
Pois cada um deles indica como sede do frênito a
parte onde ele pensa se tem o governo da alma..." [tradução livre] (Pigeaud, 1989:47).
A preocupação por se localizar a
alma não era apenas uma questão metafísico-religiosa, mas principalmente uma
tentativa de localizar no corpo a parte mais
valorizada do ser humano, que foi durante o período clássico e mais tarde com o
advento do cristianismo, a alma. Suposições sugeriam a sede da alma no
diafragma, no nervo frênito ou até mesmo na artéria
aorta, mas foram substituídas, no decorrer dos tempos, pela idéia da alma
localizada no cérebro (resultado do racionalismo) e no coração (fruto do romantismo).
Destas duas possibilidades, a mais condizente, se assim pode ser dito, com o
pensamento científico atual, é a que estabeleceu como sede da alma o cérebro
(aqui confundindo-se mente com cérebro). Ou como dizia
Pigeaud:
"...Por estas razões, eu penso que o
cérebro possui a função mais importante no homem; pois ele é, para nós, um
intérprete do que nos vem do ar, caso ele esteja bem [sem grifos no original]
(...) Mas, para o conhecimento, o cérebro é o mensageiro (...) É por isso que
eu digo que o cérebro é o intérprete do conhecimento..." [tradução
livre] (Pigeaud, 1989:38).
E, caso o cérebro não esteja
bem, que papel ele exerceria para este corpo? Fisiologicamente, é fácil
identificar o que um conjunto de sinapses é capaz de realizar, porém, quando
estamos falando de cérebro enquanto sede de algo metafísico, cuja capacidade é
nos tornar humanos, como é a alma, como fica esta relação para o pensamento
social e, mais ainda, para o exercício médico que também esteve (e ainda está)
inserido neste contexto filosófico? Mas vamos adiante.
Mais sutil do que buscar a sede
da alma no coração, na veia aorta ou no cérebro foi a
tentativa de Bergson (1990), em "Matéria e
Memória", de estabelecer o que nos diferenciaria dos animais. Neste livro,
Bergson tentou resolver o dilema da época, entre o
materialismo e o idealismo, dizendo que a memória era responsável pela ponte
entre o espírito e o corpo. Para ele, todos os animais superiores teriam
lembranças e, conseqüentemente, um tipo de memória: a memória que poderíamos
chamar de aprendida ou a dos hábitos. No entanto, o que faria a diferença entre
os homens e os outros animais quem sabe novamente nossos "irmãos"
macacos era um tipo de memória que somente os humanos deteriam: a memória
abstrata (memória de imagens), aquela capaz de inserir a idéia de tempo e sua
transgressão. Grosseiramente falando, seria a noção de que houve um ontem, há
um hoje e um amanhã que se diferenciam entre si, mas que podem ser mutuamente
influenciados. O ponto-chave da argumentação de Bergson,
e que nos interessa aqui, é que os homens não nasceram com o dom de perceber e
de viver sob a noção do tempo, sendo esta mais uma de nossas construções
culturais necessárias de serem submetidas ao aprendizado. Novamente, lançarei a
pergunta fazendo a relação entre o que disse Bergson
e nosso foco de análise: como ficam os pacientes PCs
que, aparentemente, não são capazes de discernir a sucessão dos dias e atingir
esta noção tão humana, segundo Bergson, que é o
tempo?
Para citar mais um filósofo,
agora em conjunto com um fisiologista, seria interessante discutir o que Popper
& Eccles (1991) consideraram como sendo as
sutilezas humanas, no conhecido livro "O Eu e seu Cérebro". A
principal função do cérebro, segundo os autores, seria a de interpretar. No
entanto, a faculdade de interpretar não seria inata aos indivíduos, sendo
necessário o aprendizado, ou segundo os autores, a imersão no que ficou
conhecido por Mundo 3, onde se desenvolveria tal capacidade. O que Eccles e Popper chamaram de Mundo 3 nada mais é do que o
que nós, antropólogos, denominamos cultura. Ou seja, somente através da
socialização e da interação com outros seres humanos é que o sujeito se
tornaria capaz de desenvolver a mais alta faculdade que faria de nós seres
racionais: a consciência e, em seguida, a linguagem. Tentar discutir como
surgiu a consciência, sugeriu Popper, seria o mesmo
que buscar a origem da vida; considera-se como algo miraculoso, porém
constitutivo de nossa existência. A idéia de consciência, assumem os autores,
seria, na essência, um problema metafísico. No entanto, seria complicado
afirmar que os animais superiores não teriam consciência, por isso os autores
avançaram na discussão e afirmaram que o grande atributo humano comprovável através da linguagem seria a idéia de
autoconsciência ou, como preferiu Popper, consciência de si. Possuir mente
autoconsciente seria um dom unicamente humano e que, segundo os autores, não
necessitaria de comprovação orgânica, além da lingüística. Seria como um a priori da espécie e, para eles, um
atributo universal dos seres humanos. Assim, Eccles e
Popper associaram a evolução humana ao desenvolvimento cerebral e ao
conseqüente desenvolvimento da consciência de si e da linguagem. Somos humanos
porque nosso cérebro atingiu tal grau de evolução (representado pela cerebralização "...no homem, a cerebralização
é quatro vezes superior àquela dos símios antropóides..." (Sanvito, 1991:18) , pela cartografia cortical (Percheron, 1988), pela significativa assimetria
"...é preciso esperar pelos primatas superiores para que surja uma
assimetria notável dos hemisférios e pelo homem para que esta assimetria seja
significativa..." (Percheron, 1988:122) etc),
porque temos consciência de nossa situação e, principalmente, porque somos
capazes de expressar nossa existência através da linguagem. Semelhante a Geertz, em "A Evolução da Mente" (1988), Popper e
Eccles consideraram que, em um determinado momento da
evolução humana, com o desenvolvimento da linguagem, a evolução cultural
assumiu o papel da evolução biológica. Isto é, poderíamos dizer que, para os
autores, o elo perdido, que também outros buscaram, estaria no surgimento da
linguagem articulada.
Com Popper e Eccles
e com a argumentação de que a diferença entre nós e os animais estaria na capacidade
de comunicação através da linguagem, acredito que as idéias
filosófico-humanistas atingiram o seu ápice uma vez que se encontram na
fronteira com as novas descobertas realizadas pela neurolingüística. Grandes
neurologistas, como Semir Zeki,
em entrevista a um jornal norte-americano (reproduzida em um jornal de
circulação nacional), afirmam ter chegado a algumas conclusões semelhantes às
de Eccles e Popper de quase duas décadas atrás:
"...Não poderíamos dizer que é a
consciência que define os homens, porque estaríamos afirmando que os macacos,
por exemplo, não são conscientes. Acho que as características que definem o
homem são a linguagem, a capacidade de discernimento e previsão, memória e
capacidade de associação..." (reprodução da entrevista publicada pelo
Jornal "Folha de S. Paulo", datado de 28/08/1995, caderno Mais!) e
ainda,
"...Eu diria que a alma está dentro do
cérebro. O homem como ser emocional e intelectual é criação do cérebro. No
entanto, o cérebro é criado pelos genes. Então onde vamos parar? É a história
do ovo e da galinha..." (ibidem).
O curioso desta afirmação de Zeki é que ele parecia também estar dialogando com Bergson, Pigeaud, Popper e Eccles. Ao enumerar as características eminentemente
humanas, Zeki reuniu um pouco das preocupações
presentes em cada um dos filósofos anteriormente discutidos: a memória para Bergson, a localização da alma para Pigeaud
e a linguagem como definidor do ser humano, feita por Eccles
e Popper. Com isso, é possível demonstrar como as idéias filosóficas
apresentadas não se encontram tão distantes, quanto poderia ser sugerido, do
pensamento científico contemporâneo (e mais diretamente dos filósofos da ética,
como, por exemplo, de Singer, 1993). Esta busca por se encontrar a base
universal que faria com que todos fôssemos "homens" - e aqui compreenda-se esta categoria como algo sagrado (Eliade, 1988) - talvez faça parte de uma característica da
ciência também presente na antropologia, haja vista os universais lévi-straussianos.
Conclusão
De tudo o que foi dito, acredito
ter ficado claro que a humanidade dos seres humanos está imersa em questões
metafísicas. Falar em mente, em cérebro, em consciência ou em alma tem
implicações tanto teórico-metodológicas quanto ontológicas. Popper costumava
dizer que perguntas do tipo o que é
jamais deveriam ser feitas, uma vez que implicavam respostas nada inteligentes.
No entanto, apesar de com ele concordar, não tenho como me esquivar de
estabelecer definições, mesmo que algumas esbarrem nesta fadada questão de o que é algo. Não há como se conduzir
uma análise como esta sem antes definir o que entendo por três conceitos
amplamente discutidos pelos autores apresentados. São eles: mente (juntamente
com cérebro), consciência e alma. A partir destas definições é que gostaria de
realizar a ponte para o estudo de caso que apresentei no início deste ensaio.
Mente, consciência e alma foram
noções comumente usadas pelos filósofos, antropólogos, literatos e cientistas
no decorrer dos tempos. Todos estes pensadores trabalharam com alguns destes
conceitos muitas vezes para justificar a racionalidade ou a humanidade do ser
humano em contraste aos outros animais. Apesar de soarem como semelhantes,
acredito que cada idéia carrega consigo conotações sócio-epistemológicas
bastante diversas. Rapidamente apresentarei o porquê, tendo os três autores
discutidos como referência.
A idéia de mente, parece-me, foi
mais usada por aqueles pesquisadores que buscavam dar uma conotação
cientificista ao assunto que tratavam. Falar em mente era compartilhar o
linguajar utilizado pelos grandes cientistas (fossem eles psicólogos,
neurologistas, neurolingüístas etc) que buscaram nominar o resultado além do fisicamente previsto pelas
sinapses nervosas. A mente estaria, assim, intimamente ligada ao cérebro e,
conseqüentemente, fazendo parte da fisiologia humana. A mente seria o resultado
do desenvolvimento pleno da biologia humana e assumiria um papel preponderante
na constituição orgânica do ser humano (remontando à tradição platônica, que
considerava a relação mente versus
corpo como a existente entre o piloto e o navio). Seria possível, desta forma,
estudar a mente através das lentes científicas oficiais. Processo semelhante
ocorreu com o conceito de consciência. Em geral, a consciência foi tida como um
atributo ativo dos seres humanos, onde a principal condição para o seu
desenvolvimento seria o surgimento da linguagem ou, mais amplamente, o mundo da
cultura. Foi com a vida social que o mundo da consciência teria emergido no ser
humano. Popper e Eccles chegaram ao extremo, na
tentativa de definir nossa humanidade através da consciência e da linguagem, ao
dizerem que:
"(...) Tornar-se um ser humano completo
[sem grifos no original] depende de um processo de maturação no qual a
aquisição da fala desempenha um importante papel (...)" (Popper & Eccler, 1991:75) ou ainda,
"(...) Não somente a percepção e a
linguagem devem ser aprendidas mas até mesmo a tarefa de ser uma pessoa
(...)" (Popper & Eccler, 1991:149).
Neste processo de busca para
encontrar "seres humanos completos" (o que, aqui, tornou-se sinônimo
de pessoa) é que se inserem os estudos neurolingüísticos,
comuns às últimas duas décadas, que visam a encontrar o elo perdido entre os
homens e os símios superiores. A pergunta-chave destas pesquisas vem sendo se
os macacos são ou não capazes de desenvolver a linguagem articulada, semelhante
à desenvolvida por nós humanos. Caso a resposta venha a ser afirmativa, o ponto
seguinte da análise é a passagem para se estudar a presença ou não da
consciência. Estudos, já clássicos, como o do casal Gardner
que utilizou a "linguagem dos sinais" empregada pelos surdos para
treinar os símios superiores ou o do psicólogo Herbert Terrace
(1989), que durante cinco anos treinou a linguagem em um macaco, são exemplos
interessantes deste empreendimento, talvez mais metafísico que científico na
sua constituição. Por fim, o aparentemente mais abstrato dos conceitos, o de
alma, foi regularmente abandonado pelos cientistas uma vez que junto a ele um
conjunto de referências religiosas se fazia (e se faz) presente. Não há como
pensar, no contexto ocidental cristão, a idéia de alma sem impregnações de
conotações sobrenaturais de cunho religioso. Popper, por exemplo, quando
apresentou o porquê de cada um dos conceitos escolhidos, disse ter descartado o
de alma exatamente por estes motivos:
"(...) Algo pode ser dito neste sentido
sobre o uso feito por nós dos termos "alma",
"mente", "eu", "consciência do eu", e assim por
diante. Evitamos principalmente o uso da palavra "alma", porque na
língua inglesa ela tem fortes conotações religiosas (...)" (Popper,
1992:15).
No entanto, alma enquanto
princípio de vida pode ser desvencilhado da conotação religiosa para assumir um
papel eminentemente social, sugerido muito antes de mim por um dos pais da
sociologia, Durkheim (1989). A idéia de alma pode
significar um princípio coletivo de humanidade que nos torna humanos exatamente
pela mesma razão que se constitui. Mas, antes de me deter nesta questão final,
gostaria de retornar aos conceitos anteriormente apresentados.
Pelo que foi dito, ser pessoa ou ser humano, idéias caras e sagradas à ética médica e, hoje, à chamada bioética, foram noções que realizaram recortes conceituais em que uma parcela considerável daqueles "aparentemente" também humanos não se enquadrariam (apesar desta discussão entre pessoa e ser humano enquanto membro da espécie Homo sapiens ser um debate interessante, já iniciado por Singer (1993) e ao qual a Antropologia teria muito a acrescentar, acredito que, no momento, extrapola os limites iniciais deste artigo). Ser humano, pelas considerações anteriormente expostas, seria dominar a linguagem articulada, possuir consciência e mente, possuir um desenvolvimento cerebral compatível à evolução da espécie humana ou, quem sabe, resumindo esses valores por um conceito tradicional da antropologia, ser humano seria ser capaz de interagir culturalmente, tendo um cérebro evoluído e saudável por alicerce. Mas, os pacientes PCs graves, não sendo humanos sob a ótica dessas definições científicas (uma vez que não falam a linguagem padrão, não compartilham das definições de mente e consciência e, mais grave ainda, o órgão considerado o símbolo de nossa humanidade se encontra neles perturbado ou, como sugere o nome da patologia, "paralisado"), por que, então, a medicina, a mais alta das artes mágicas, como dizia o conto de Tchiang, permite-se tratar de "não-humanos"? Ou há outra razão, além deste tecnicismo físio-cerebral? Seriam eles também humanos exatamente por aquela parcela de humanidade presente em todos nós, porém negligenciada pelos pesquisadores em função das temíveis conotações religiosas, que poderiam provocar distúrbios não-científicos na análise? Ou seja, o que nos torna humanos é algo além do corpo? Seria a alma?
Observações finais
"...Creio, Karl, que você também quer
dizer isso: que existe algo inexplicável, algum mistério sobre a existência de
cada um de nós... Então pode haver um núcleo central, o
"eu" íntimo, que sobrevive à morte do cérebro, para encontrar
alguma outra existência que está além de qualquer coisa que se possa imaginar.
A singularidade da individualidade que experimento, eu próprio, possuir não
pode ser atribuída à singularidade de minha herança de DNA... Nosso vir a ser é
tão misterioso quanto nosso cessar de ser, na morte... (Popper & Eccles, 1991:154/156).
Esse mysterium tremendus, como dizia Eccles, talvez não seja tão misterioso assim. É claro que
para esta ciência, herdeira de uma tradição positivista, seria difícil lidar
com o conceito de alma, ainda mais enquanto nele estivessem presentes idéias
por demais sobrenaturais como as sugeridas por Eccles,
como a de sobrevivência após a morte. Considero ser viável lidar com a noção de
alma, separadamente dessas considerações que visam a explicar a cosmologia do mundo
e o sentido da vida. Penso que é possível retomar o tom sagrado e, ao mesmo
tempo, não-sobrenatural dado por Durkheim à idéia de
alma. A alma seria aquela parcela da sociedade que todos carregaríamos, não
apenas por compartilharmos de uma mesma carga genética, como talvez tenha
sugerido Eccles, mas principalmente por duas razões
básicas: porque nascemos a partir de outros seres também humanos e que, por
condição da espécie, são sagrados (o que Singer (1993) chamaria de "especismo", porém prefiro referir o conceito à
tradição cristã) e porque vivemos em sociedade. Ou seja, retornando aos cânones
mais clássicos da disciplina antropológica, somos sagrados porque a vida social
o é e, desta forma, trazemos algo dela em nós. Seria, então, um princípio coletivo
de humanidade que nos torna humanos e este princípio, a partir de Durkheim, passou a chamar-se sociedade.
Assim, retornando às duas
hipóteses lançadas no decorrer deste ensaio onde se questionava o porquê da
medicina manter sob sua custódia indivíduos, aparentemente, não-humanos,
gostaria, agora, de respondê-las. Na verdade, a ética médica e, aqui, falo da
herdeira da tradição hipocrática carrega consigo
uma construção de ser humano que está além das idéias meramente corporais de
sobrevivência ou de harmonia orgânica. Os corpos de crianças PCs graves são, muitas vezes, verdadeiros acidentes da
"natureza", onde a dita organização prevista pela genética e que
mantém a vida saudável é abalada. Os conceitos científicos, porém também
arraigados no senso comum e que tentam explicar nossa humanidade, excluem os
pacientes PCs com alto grau de comprometimento. Ser
um paciente PC grave é, tanto para o linguajar científico quanto para o
imaginário social, não ser um "ente racional" (no caso, seriam ainda sencientes). Negar a racionalidade do ser humano seria o
mesmo que negar a sua humanidade. Mas como foi visto, esta última não está
sendo negada uma vez que são pacientes que continuam a ser atendidos pelos
"curandeiros dos homens", o mago médico, como diria Tchiang. A despeito de todas as diferenças, explicadas e nominadas por paralisia cerebral, retardo mental, déficit cognitivo ou defasagem motora
severa, os PCs continuam a ser humanos, pois
compartilham da mais importante das características definidas socialmente e, no
caso, pela ética médica como tal.
Talvez, em sua origem, a
medicina hipocrática de que tanto falo, tivesse outra
idéia do que viesse a ser alma. Semelhante ao sugerido por Eccles,
alma, para os filósofos clássicos, possuía uma conotação mais sobrenatural e
religiosa do que a definição durkheimiana. Na própria
constituição do conceito de alma havia uma preocupação com a finitude e, principalmente, com a imortalidade da alma (o
Diálogo Fédon, Platão, é um excelente exemplo). Era
de uma alma individual que se falava (a alma de Sócrates, instantes antes da
ingestão da cicuta, por exemplo). No entanto, acredito que, com a transformação
provocada pelos tempos e com a mudança de mentalidades, a origem além-social do
conceito se perdeu, e o que hoje se mantém é o conceito coletivo de alma e,
conseqüentemente, de humanidade.
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Nota sobre a autora
Débora Diniz - Associação das
Pioneiras Sociais, Hospital Sarah, SMHS, quadra 301, Bloco B-45, sala 403,
Brasília, DF, 70334-900, Brasil.