O ATO INFRACIONAL E A JUSTIÇA DA INFÂNCIA E DA
JUVENTUDE
César Barros Leal
Professor da Universidade
Federal do Ceará.
Membro Titular do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
Resumo: O autor expõe a evolução legislativa brasileira no tocante à
criança e o adolescente, apresentando de forma elucidativa as mudanças de enfoque
referentes à responsabilidade criminal (critério do discernimento e critério biológico) e
seus limites. As diversas políticas e doutrinas implantadas também são objeto da presente dissertação, bem como o Código
de Mello Mattos (1927), o Código de Menores (1979) e de maneira especial a vigente
Lei 8069/90, destacando-se o conteúdo das medidas sócio-educativas e de proteção e os
trâmites da apuração do ato infracional.
Introdução
Consoante
alguns autores, a vocação tutelar da legislação menorista
brasileira deita raízes na Carta Régia, datada de 1693, que ordenou ao
Governador da Capitania do Rio de Janeiro ficassem as crianças enjeitadas ou
abandonadas sob os cuidados da Câmara e do Conselho. Este foi o
primeiro dispositivo a favor da infância desvalida em nosso país e marcou o nascimento de um vasto elenco de normas
voltadas fundamentalmente para a defesa e proteção do menor abandonado, em situação de perigo, na condição de vítima
de agressão ou autor de um delito.
Referência
ao menor já constava nas Ordenações Filipinas, que vigoraram no período
colonial de 1603 a 1830 e que dispunham
no art. 134 do Livro V:
"Quanto aos menores, serão punidos pelos delitos que fizerem. Se for
maior de 17 anos e menor de 20, fica ao arbítrio do juiz aplicar-lhe a pena e, se achar que
merece pena total, dar-lhe-á, mesmo que seja a de morte. Se for menor de 17
anos, mesmo que o delito mereça a morte, em nenhum caso lhe será dada."
Em
1830, o Código Criminal do Império, ao disciplinar sobre o menor, cuidou apenas
de sua responsabilidade penal, fixada aos
14 anos, e adotou, tomando como modelo o Código Penal da França de 1810, o
critério do discernimento, sem limite inferior:
"Se obrarem com
discernimento, deverão ser recolhidos à Casa de Correção, pelo tempo que ao
juiz parecer, contanto que o recolhimento não exceda a idade de 17 anos."
É
importante registrar que o discernimento, ou seja, a
capacidade de compreender a natureza ilícita do fato e determinar-se de acordo
com este entendimento, foi acolhido como critério por diplomas legais de
inúmeros países do mundo e pretendeu substituir
o cronológico, sob o argumento de que a evolução da personalidade não é
uniforme e que a mera avaliação pela idade não é científica nem justa.
Dito
critério foi mantido no 1º Código Penal da Republica, de 1890, que prefixou a
idade de 9 anos para a responsabilidade penal, sendo que dos 9 aos 14 anos os
menores somente desta se eximiam quando ficava evidenciado que teriam agido sem discernimento.
O
Governo Federal, através de um instrumento incomum, a Lei Orçamentária nº 4242,
de 05.01.1921, autorizou a organização
do serviço de assistência e proteção à infância abandonada e delinqüente,
elevou para 14 anos a idade da responsabilidade penal e extinguiu o critério
do discernimento. A par disso, regulou o processo especial aplicável a menores, com o uso restrito
de medidas de natureza reeducativa e protetora.
Até
então não se cogitava de codificação das leis menoristas,
uma idéia que levou o 1º juiz de menores da América Latina, José Cândido de Albuquerque Mello Mattos,
a apresentar ao Senado projeto de sua autoria, o qual, aprovado e promulgado
(Decreto nº 17.943-A, de 12.10.1927), teve o mérito de consolidar as leis
esparsas existente na época e instituir um sistema de proteção e assistência
aos menores, divididos esses em dois grupos: abandonados e delinqüentes.
Visando
a assistência e não a punição, o Código Mello Mattos, como passou a chamar-se,
consagrou o poder de perdão pelo juiz, quando da prática de infração leve e não
reveladora de má índole; a sentença indeterminada; a liberdade vigiada. Os procedimentos
relativamente aos menores delinqüentes variavam de conformidade com a faixa
etária, a saber:
a. menor de 14 anos: improcessável; internado no caso
de menor pervertido ou doente;
b. mais de 14 anos e menor de 16 anos: processo especial; passível de
tratamento médico ou internamento em escola de reforma; c. mais de 16 anos e menor
de 18 anos: internado, uma vez constatada a periculosidade, em estabelecimento
especial.
Nos
anos seguintes vieram à luz novos preceptivos, referentes à assistência e
proteção aos menores abandonados e delinqüentes.
Após a entrada em vigor do Código Penal de 1940 (que fixou em 18 anos a
idade-limite da responsabilidade penal,
com atenuante para a faixa de 18 a 21), tornou-se necessário editar o Decreto
lei nº 6.026, de 24.11.1943 ("lei de
emergência"), com vistas a disciplinar as medidas aplicáveis aos menores
pela prática de infrações penais.
Mais
de 50 anos após a promulgação do Código Mello Mattos, precisamente em
10.10.1979, surgia, através da Lei 6.697, um
novo Código de Menores, com 123 artigos, dividido em dois livros (parte substantiva
e parte adjetiva), que entrou em vigor em 08.12.1980. Imposto pelas
transformações ocorridas na sociedade brasileira ao longo de cinco décadas e
pela própria
evolução do Direito do Menor, sinalizava uma profunda mudança de filosofia no
tratamento do menor autor de infração penal.
Contrários
ao uso de termos alegadamente pejorativos como
abandonado e delinqüente, presentes no Código Mello Mattos, os legisladores do
novo Código optaram pela expressão menor em situação irregular, empregada pela
primeira vez pelo jurista venezuelano Carlos Angarita
e adotada pelo Instituto Interamericano da Criança, organismo de consulta da
OEA. O art. 2º relacionava seis categorias de situação irregular:
I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução
obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de:
a. falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b. manifesta impossibilidade
dos pais ou responsável para provê-las:
II - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos
pelos pais ou responsável;
III
- em perigo mortal, devido a:
a. encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes, b. exploração em
atividade contrária aos bons costumes:
IV
- privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais
ou responsável,
V - com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação
familiar ou comunitária;
VI - autor de infração penal.
Clímax
da situação irregular, a 6ª categoria correspondia ao cometimento de ato
previsto na legislação penal como crime ou
contravenção e, neste caso, medidas de tratamento eram aplicáveis ao menor
como, por exemplo, a advertência, a
liberdade assistida, a colocação em caso de semiliberdade e a internação, com a
ressalva de que esta última só seria determinada
se inviáveis ou malogradas as demais medidas e que, na ausência de
estabelecimento adequado, poderia excepcionalmente
fazer-se em seção de unidade destinada a maiores, exigindo-se para isso
isolamento em instalações apropriadas,
de modo a assegurar total incomunicabilidade.
Com
a promulgação da Constituição de 1988, um amplo movimento, inspirado em sem
art. 227, caput, e que contou com a participação
de representantes da sociedade civil e de entidades governamentais, com o apoio
de um grupo de juristas, propôs-se
a substituir o Código de Menores por uma legislação que tivesse como
destinatários todas as crianças (assim nomeadas
até doze anos incompletos) e adolescentes (entre doze e dezoito anos de idade),
sem nenhuma discriminação, os quais passariam a ser sujeitos
de direito, pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e objetos de
prioridade absoluta.
Nasceu,
assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 6.069, de 13.07.1990, com
vigência a partir do dia 15.10.1990),
que perfilhou a doutrina da proteção integral, defendida pela ONU, com base em
4 instrumentos de cunho universal:
Convenção internacional das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança; Regras
de Beijing (Regras Mínimas das Nações Unidas para a Prevenção da
Delinqüência Juvenil); e Regras de Riad (Regras
Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Menores Privados de Liberdade).
Inovador,
o Estatuto catalogou os direitos fundamentais das crianças e adolescentes e
estabeleceu a municipalização do atendimento,
com a participação da sociedade organizada, seja na formulação das políticas
públicas para a infância e a juventude,
seja no controle das ações, criando os Conselhos dos Direitos da Criança e do
Adolescente e os Conselhos Tutelares.
Na área do ato infracional, que particularmente nos interessa nesta exposição,
enunciou que nenhum adolescente
será privado de liberdade senão em flagrante ou por ordem escrita e
fundamentada da autoridade judiciária competente,
estendendo-lhe as garantias constitucionais de ampla defesa conferidas ao
adulto, inclusive recurso a
instância superior.
O Sistema Formal
Ato Infracional, Direitos Individuais e
Garantias Processuais
No
sistema penal vigente no Brasil faz-se uma distinção entre crime e
contravenção, esta qualificada como crime anão ou delito menos importante, de
menor gravidade, a que se aplica uma pena mais branda (multa ou prisão
simples).
Assim
como o Código de Menores de 1979, o Estatuto abriga esta classificação
dicotômica ao consignar que ato infracional
é a conduta descrita como crime ou contravenção.
Na
estréia do Código Penal de 1940 e da reforma de sua Parte Geral de 1984, bem
como da Carta Magna, estipula o ECA que são penalmente
inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas nele previstas,
agregando, em seguida, que
deve ser considerada, para efeitos da lei, a idade do adolescente à data do
fato.
Separados
os menores, consoante sua faixa etária em dois grupos, distingue o diploma
tutelar, por igual, as medidas aplicáveis
à criança e ao adolescente pelo cometimento de ato infracional.
Convenciona
o art. 105 que ao ato praticado por criança corresponderão as
medidas de prevenção contidas no art. 101, a saber:
I - encaminhamento dos pais ou responsável mediante termo de responsabilidade;
II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III - matrícula e freqüência obrigatórias
em estabelecimento oficial de ensino fundamental;
IV - inclusão em programas comunitário ou oficial de auxílio à família, à
criança e ao adolescente;
V - requisição de tratamento médico, psicólogo ou psiquiátrico, em regime
hospitalar ou ambulatorial;
VI - inclusão em programa oficial ou
comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;
VII
- abrigo em entidade;
VIII - colocação em família substituta.
Ao
Conselho Tutelar, órgão municipal permanente, autônomo,
não-jurisdicional, composto de cinco membros, escolhidos pela comunidade, caberá atender as
crianças autoras de ato infracional, aplicando as medidas do art. 101, incisos
I a VII.
Enquanto não instalado o Conselho, porém, suas atribuições serão exercidas pela
autoridade judiciária (o juiz da infância e da juventude ou o juiz que exerce
essa função, na forma da Lei de Organização Judiciária local).
Se
o ato infracional tiver como autor um adolescente, a autoridade competente
poderá administrar-lhe medidas que o legislador alcunhou de sócio-educativas e
que estão relacionadas no art. 112, além de qualquer uma das medidas de
proteção constantes dos incisos I a VI do art. 101.
Em
consonância com o art. 5º, incisos LXI, da
Constituição Federal, o Estatuto admite duas modalidades de apreensão legal quando preceitua que nenhum adolescente
será privado de sua liberdade a não ser em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da
autoridade judiciária competente. Considera-se, aliás,
em flagrante delito, a teor do art. 302
do Código de Processo Penal, quem:
I - está cometendo a infração penal;
II - acaba de cometê-la;
III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer
pessoa, em situação que faça presumir ser autor
da infração;
IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis, que
façam presumir ser ele autor da infração.
Com
o fim de protegê-lo em sua integridade física e moral de arbitrariedades e
constrangimentos que amiúde se verificam, prevê-se
não apenas que o adolescente tem assegurado o acesso à identificação dos
responsáveis pela sua apreensão, devendo
informar-se-lhe sobre seus direitos (de ser assistido pela família ou por seu
advogado; de permanecer calado),
como também que sua apreensão e o local onde se acha recolhido serão
incontinenti comunicados à autoridade judiciária competente e à família do
apreendido ou à pessoa por ele indicada.
A
lei recomenda, comparecendo qualquer dos pais ou responsável, a soltura
imediata do adolescente, sob termo de compromisso
e responsabilidade de sua apresentação ao representante do MP no mesmo dia ou
no primeiro dia útil imediato.
A liberação, no entanto, não deve ocorrer se o ato infracional for grave e por
sua repercussão social deva o adolescente
permanecer internado, seja para garantir sua segurança pessoal, seja para
manter a ordem pública.
Na
hipótese de julgar-se necessária a internação provisória (custódia cautelar),
antes da sentença, esta se dará pelo prazo máximo
de quarenta e cindo dias, mediante decisão que deverá ser fundamentada e
apoiar-se em indícios suficientes de autoria
e materialidade, demonstrando o caráter imperioso da medida segregativa.
Com
esteio no texto constitucional, onde se refere que ninguém (expressão que
compreende, inequivocamente, o menor de
18 anos) será privado de sua liberdade sem o devido processo legal, os estatutistas inscreveram a observância desta norma em relação ao adolescente, a quem
se assegurou, entre outras, no art. 111, as seguintes garantias:
I - pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, mediante
citação ou meio equivalente;
II - igualdade na relação processual, podendo
confrontar-se com vítimas e testemunhas e produzir todas as provas necessárias à sua defesa;
III - defesa técnica por advogado;
IV - assistência judiciária gratuita e integral aos necessitados, na forma da
lei;
V - direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente;
VI
- direito de solicitar a presença de seus pais ou responsável em qualquer fase
do procedimento.
O
leque dessas garantias constitui, sem dúvida, um extraordinário avanço do
Direito da Infância e da Juventude no sentido de oferecer ao adolescente a plena tutela
jurisdicional do Estado.
Medidas Sócio-Educativas
Endereçadas
ao adolescente autor de ato infracional, as medidas sócio-educativas visam, em primeiro
plano, sua (re)integração familiar e comunitária, devendo ter em conta, em
sua aplicação individualizada, a capacidade do jovem de cumpri-la, bem como as circunstâncias e a
gravidade da infração.
O ECA as enumera em seu art. 112:
I - advertência;
II - obrigação de reparar o dano;
III - prestação de serviços à comunidade;
IV - liberdade assistida;
V - inserção em regime de semiliberdade;
VI - internação em estabelecimento educacional;
VII - qualquer uma das formas previstas no art. 101, I a VI.
Aplicáveis isolada ou cumulativamente, ditas medidas podem
ser substituídas a qualquer tempo pela autoridade competente se assim julgar necessário, com amparo em
parecer técnico.
De
cada uma trataremos a seguir, assinalando-se que as
medidas de proteção já foram objeto de referência e a imposição das medidas constantes dos incisos II a
VI pressupõe existir provas suficientes da autoria e da materialidade da
infração, tirante
a hipótese da remissão, nos termos da lei.
Advertência
Medida mais branda, recomendável a
primários ou autores de atos
infracionais leves e aplicada com a presença dos pais ou responsável (até mesmo
porque a estes também se destina), a advertência, com acentuado matiz
preventivo, consiste e admoestação
verbal, reduzida a termo e assinada.
Obrigação de Reparar o Dano
De
conteúdo punitivo e pedagógico, a medida, substituível por outra adequada se
manifestamente impossível, pode ser aplicada pela autoridade quando o ato
infracional tiver reflexos patrimoniais. O adolescente poderá ser obrigado, se
for o caso, a restituir a coisa, promover o
ressarcimento do dano ou, de outro modo, compensar o prejuízo da vítima.
Em
registro tenha-se que a obrigação de reparar o dano inadmite,
expressamente, como forma de compensação do prejuízo, o trabalho forçado, proibido
igualmente pela Constituição Federal.
Prestação de Serviços à Comunidade
Não
contemplada pelo Código de 1979, mas constante na legislação penal como pena
restritiva de direito, a prestação de serviços é uma medida alternativa à
internação e consiste na realização de tarefas gratuitas, de interesse geral,
por um período não superior a seis meses, junto a
entidades assistenciais, hospitais, escolas, outros estabelecimentos congêneres, bem assim em
programas desenvolvidos pela comunidade ou pelo governo.
As
tarefas, atribuídas conforme as aptidões do adolescente (e com sua
concordância, na opinião de alguns autores, pois, ao contrário, caracterizar-se-ia o trabalho
forçado), devem ser cumpridas com duração máxima de oito horas semanais, aos sábados, domingos e feriados, ou em dias
úteis, de maneira a não afetar a freqüência à escola ou à jornada normal de trabalho.
Liberdade Assistida
Forma
aperfeiçoada da liberdade vigiada e tida unanimemente como a mais importante, a
mais eficaz de todas as medidas sócio-educativas,
a liberdade assistida, prevista no Código de 1979 para o menor infrator e o
menor com desvio de conduta, é adotada, nos termos do ECA,
sempre que se afigurar a mais conveniente para o fim de acompanhar, auxiliar e
orientar o adolescente que haja cometido ato infracional.
Sabidamente
de caráter educativo e preventivo, sua aplicação é sugerida a reincidentes, a
habituais em atos delituosos, e deve
ser fixada pelo prazo máximo de seis meses, sujeita a sofrer prorrogação ou ser
revogada e substituída por outra medida.
Ao
orientador, pessoa capacitada para acompanhar o caso e que pode ser indicada
por entidade ou programa de atendimento,
incumbe, apoiado e supervisionado pela autoridade competente, realizar encargos
como o de promover socialmente
o adolescente e sua família, supervisionar sua freqüência e aproveitamento
escolar, diligenciar para profissionalizá-lo e inseri-lo no mercado de
trabalho, além de apresentar relatório do caso.
Eis
o depoimento de Sotto Maior (1992, p. 340)
"...não temos dúvida em
afirmar que, do elenco das medidas sócio-educativas, a que se mostra com as
melhores condições de êxito é a da liberdade assistida, porquanto se desenvolve
direcionada a interferir na realidade familiar e social do
adolescente, tencionando resgatar, mediante apoio técnico, as suas
potencialidades."
Regime de Semiliberdade
Os
adolescentes, a que se aplique a semiliberdade, identificada, no plano dos
adultos, com a prisão albergue, podem exercer atividades externas durante o dia
(trabalho e/ou freqüência à escola), recolhendo-se no período noturno a uma
entidade de atendimento.
O
regime, que exige acompanhamento técnico, pode efetivar-se de duas formas: a. desde o princípio; b. a título de progressão, como forma de
transição do internato para o meio aberto.
Fazendo
uso, quando possível, de recursos comunitários, com a oferta obrigatória de
escolarização e profissionalização, a medida que não tem prazo determinado,
embora a lei autorize que se lhe apliquem, no que couber, as disposições concernentes à internação.
Internação
Tal
como definida pelo Estatuto, a internação é uma medida privativa de liberdade.
Aplicável pela autoridade judiciária em decisão
fundamentada, assenta-se em três princípios básicos:
a. brevidade (sem tempo determinado, sua manutenção é reavaliada no
máximo a cada seis meses e jamais excederá a três anos);
b. excepcionalidade (de caráter residual), a
internação só será aplicada em última hipótese, ou seja, se forem inviáveis ou
malograr as demais medidas, dela se podendo aduzir o que Michel Foucault
afirmou sobre as prisões: "é a detestável solução de que não se pode
abrir mão." Admite-se somente em três hipóteses: ato infracional cometido
mediante grave ameaça ou violência a pessoa;
reiteração no cometimento de outras infrações graves; descumprimento reiterado
e
injustificável
da medida anteriormente imposta. Além do mais, alcançado o limite máximo de
três anos, deverá o adolescente
ser liberado, posto em regime de semiliberdade ou de liberdade assistida, sendo
compulsória a sua liberação aos 21 anos de idade;
c. respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (ao Estado
compete zelar pela sua integridade física e moral, para isso adotando medidas
apropriadas de contenção e segurança).
Permitida
a realização de atividades externas, a internação deverá cumprir-se em entidade
exclusiva para adolescentes (retirou-se a
possibilidade anterior de sê-lo em unidades penais), onde serão obrigatórias
atividade pedagógicas, obedecer-se-á
a rigorosa separação (com fundamento em três critérios: idade, compleição
física e gravidade da infração) e se assegurarão ao adolescente privado de
liberdade os direitos elencados no art. 124.
Apuração de ato infracional
O
Estatuto apenas prevê a forma de apuração do ato infracional atribuído a
adolescente; tratando-se de criança, a competência é do Conselho Tutelar e, à falta
deste, da autoridade judiciária, que poderá, nos termos do art. 153, investigar
os fatos e ordenar de ofício as providências necessárias, ouvido o Ministério
Público.
Procedimento na Fase Policial
De
acordo com a forma de apreensão do adolescente a quem se atribua autoria do ato
infracional, estabelece a lei uma nítida
distinção no procedimento a ser adotado:
a. se a apuração for decorrente de ordem judicial, este será, desde logo,
encaminhado à autoridade judiciária;
b. se ocorrer em flagrante, será, desde logo, conduzido à autoridade policial
competente.
Na
hipótese de existência de repartição policial especializada para atendimento de
adolescentes, é mister anotar que, diferentemente
do Código de Menores, se o ato infracional houver sido praticado em co-autoria
com maior, ambos serão encaminhados de início à unidade especializada e
só depois, tomadas as providências cabíveis, será o adulto encaminhado à repartição policial própria.
O
certo é que o adolescente não poderá ser levado com o maior a uma delegacia
comum para, em seguida, ser transferido
a uma especializada. Como anuncia a lei, prevalecerá a atribuição desta.
Entretanto,
inexistindo repartição especializada, o que é regra em regiões interioranas, o
adolescente será transportado a uma
delegacia comum, onde aguardará a apresentação em dependência separada daquela
que se destina a maiores, não podendo, em qualquer hipótese, exceder o prazo de
24 horas.
Em
caso de flagrante, atenta-se para a dicotomia de procedimento: a. se o ato infracional for
cometido mediante violência ou grave ameaça a pessoa
(exemplos: roubo, estupro), a autoridade policial deverá: lavrar o auto de apreensão,
ouvindo as testemunhas e o adolescente; apreender o produto e os instrumentos
da
infração; requisitar os
exames de perícias necessárias à comprovação da materialidade e autoria da
infração;
b. nas demais hipóteses, boletim de ocorrência circunstanciado poderá
substituir a lavratura do auto.
Não
cabendo a liberação imediata, cuja possibilidade é examinada desde logo e sob
pena de responsabilidade, a autoridade policial,
evidenciada a gravidade do ato infracional (por grave se estende aquele ato
punível pela lei penal com reclusão) e sua repercussão social, indicativas da
necessidade de o adolescente
permanecer internado para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção de ordem pública,
conduzi-lo-á, desde logo, ao representante do MP junto com a cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência.
Pode
suceder, porém, que não seja possível a apresentação
imediata ao MP e, nesta circunstância, a autoridade policial encaminhará o
adolescente a entidade de atendimento (vedada sua condução ou transporte em
compartimento fechado de veículo policial - os chamados
"camburões" ou "tintureiros" -, em condições atentatórias à
sua dignidade, ou que impliquem risco
à sua integridade física ou mental) e o dirigente desta, no prazo de 24 horas,
fará a apresentação ao representante do MP.
Se,
por outra parte, não houver entidade de atendimento, a apresentação terá que
ser feita pela autoridade policial, advertindo-se, consoante já realçado, que a
eventual permanência do adolescente em delegacia comum deverá ser dependência separada da destinada a
maiores.
Cabendo
a liberação, a autoridade policial encaminhará imediatamente ao representante
do MP cópia do auto de apreensão ou
boletim de ocorrência.
Por
último, não tendo sido o adolescente flagranciado na
prática de ato infracional, a autoridade policial fará chegar às mãos do representante do MP relatório das
investigações e demais documentos.
Procedimento do Ministério Público
O
adolescente, liberado anteriormente ou mantido sob custódia, nos termos da lei
estatuária, será apresentado ao representante
do MP, a quem caberá, no mesmo dia, proceder imediatamente, sem formalidades, à
sua oitiva e, se possível, dos pais ou responsável, vítimas e
testemunhas.
O
MP, à vista do auto de apreensão, boletim de ocorrência ou relatório policial,
devidamente autuado no cartório judicial e com informação sobre os antecedentes
do adolescente, terá, como dominis litis, as seguintes opções: a. promover o arquivamento
dos autos;
b. conceder a remissão (a qual não prevalece para efeito de antecedentes e pode
incluir eventualmente a aplicação de qualquer medida, excetuando-se a colocação em
regime de semiliberdade e a internação);
c. representar à autoridade judiciária para aplicação de medida
sócio-educativa.
Nas
duas primeiras opções, que exigem fundamentação contendo o resumo dos fatos, os
autos serão conclusos à
autoridade judiciária para homologação. Esta, evidentemente, poderá ocorrer ou
não. Se ocorrer, a autoridade judiciária determinará
o cumprimento da medida. Se não ocorrer, ou seja, se houver discordância, fará
remessa dos autos ao
Procurador Geral da Justiça, autoridade superior do Ministério Público,
mediante despacho fundamentado, e este tomará uma das seguintes providências: oferecerá
representação; designará outro membro do MP para apresentá-la; ou ratificará o arquivamento ou a remissão que só então
estará a autoridade judiciária obrigada a homologar.
Na
terceira opção, a representação ministerial, que independe de prova
pré-constituída da autoria e da materialidade e que proporá a instauração de procedimento
para aplicação da medida sócio-educativa que se afigurar a mais conveniente,
será oferecida
por petição, com breve resumo dos fatos e a classificação do ato infracional e,
quando preciso, rol de
testemunhas, podendo ser deduzida oralmente, em sessão diária (inovação do ECA), instalada pela autoridade judiciária. Nela o representante do MP
não deve especificar a medida a ser aplicada, uma vez que só na continuidade do procedimento, depois da
apresentação do laudo da equipe interprofissional, é que se terá noção da
medida que mais se adequa ao adolescente.
Estando
o adolescente internado, será, então, imediatamente posto em liberdade.
Concluído
a autoridade judiciária pela necessidade de internação ou regime de
semiliberdade, a intimação da sentença que aplicar uma dessas duas medidas será feita: ao
adolescente e ao seu defensor; quando não for encontrado o adolescente, a seus pais ou responsável,
sem prejuízo do defensor.
Concluindo,
porém, pela aplicação de outra medida, a intimação far-se-á unicamente na
pessoa do defensor.
Se
a intimação recair na pessoa do adolescente, este deverá manifestar se quer
recorrer ou não da sentença.
Em
tempo se noticie: o sistema recursal, nos procedimentos afetos à Justiça da
Infância e da Juventude, é o do Código de Processo
Civil e suas alterações ulteriores, com as adaptações referidas pelo art. 198 do ECA.
O Sistema Informal
Nos
últimos anos tem-se revigorado no país um movimento favorável à redução para 16
anos da idade-limite da responsabilidade
penal, de que trata o art. 104 do ECA, sob a
justificativa de que nesta faixa etária se alcança a plena maturidade biopsicosocial
e que o rebaixamento, mercê de sua força intimidativa,
serviria para conter os elevados índices da violência praticada por
adolescentes, maiormente nas áreas urbanas.
Entendem
alguns que um grande número de jovens delinqüem encorajados pela impunidade e
que as garantias processuais recepcionadas
pelo Estatuto os tornam praticamente inalcançáveis, deixando-os
imunes às sanções nele previstas, o que contribui para a exacerbação
da delinqüência infanto-juvenil.
Verdade
é que muitos policiais, mal orientados, fazem vista grossa às ações delitivas desses jovens (quando não participam, no outro extremo, de grupos
de extermínio), com o beneplácito de um vasto segmento populacional que rechaça qualquer postura repressiva em relação a
adolescentes infratores, a pretexto de sua condição de vítima da sociedade,
como se a vitimização constituísse um aval permanente
para a criminalidade.
Por
outro lado, a falta de meios, de equipamentos, a despeito da "destinação
privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à
infância e à juventude" (ECA, art 4º, parágrafo único, alínea a) torna
inexeqüíveis numerosas conquistas
da nova lei.
Já
foi dito que muitas cidades do país, sobretudo do interior, não possuem
delegacias especializadas para atendimento a adolescentes infratores. Esta, aliás, é uma
realidade que dificilmente mudará a curto ou médio prazo.
De
igual modo inexistentes fora do âmbito das capitais, as unidades de internação
costumam apresentar profundas deficiências
e identificar-se, em certos aspectos, com os cárceres dos adultos. Neles, via
de regra, são visivelmente frágeis as
medidas de contenção e segurança (oportunizando constantes evasões) e
impróprias às condições de vida dos
adolescentes que, privados de liberdade, sem a separação prevista na lei (por
critérios de idade, compleição física e
gravidade da infração), encaram certamente com desencanto os direitos
relacionados no art. 124 do ECA (entre os quais o de ser tratado com respeito e dignidade;
habitar alojamento em condições de higiene e salubridade; receber escolaridade
e
profissionalização; realizar atividades
culturais, esportivas e de lazer).
Incluída
entre as medidas sócio-educativas, a prestação de serviços à comunidade tem
sido pouco imposta pelos juízes, que apontam, entre as razões
inibidoras, a insuficiência do apoio comunitário e governamental.
Semelhantemente,
a liberdade assistida, apesar de suas virtudes, reconhecidas por todos, sequer
se implantou em alguns estados,
enquanto em outros se acha em manifesta decadência ou foi desativada por falta
de recursos.
Por
estes e outros fatores, a internação, com todas suas mazelas, tende a perder o
caráter residual, empregando-se, ao arrepio
da lei, com uma constância de todo condenável.
A
apuração do ato infracional atribuído a adolescente é prejudicada também pela
falta de qualificação de um bom número de profissionais que atuam neste campo,
os quais geralmente se revelam insuficientemente familiarizados com a lei (e
isso se explica, em parte, pelo fato de muitas
academias de polícia civil e militar e cursos de direito, a
nível de graduação e pós-graduação,
não incluírem em seus currículos a disciplina "Direito da Infância e da
Juventude").
Ao
despreparo mencionado se adiciona a carência de
equipes interprofissionais (obstaculizante dos
estudos de caso, suporte
de definição das medidas sócio-educativas), bem como, a escassez de defensores
públicos que incumbam de prestar-lhe
assistência jurídica.
Os
Conselhos Tutelares - entre cujas atribuições está a de atender as crianças e
adolescentes, aplicando as medidas previstas
no art. 101, I a VII, assim como providenciar a medida estabelecida pela
autoridade judiciária, entre as previstas no citado artigo, de I a VI, para o
adolescente autor de ato infracional - não foram
instalados na maioria das comarcas do país, embora tenha a lei entrado em vigor
em 1990.
De
um certo modo, o desinteresse dos governantes (que efetivamente nunca
priorizaram a infância e a juventude, numa política
distorcida que resultou na marginalização de milhões de crianças e no
conseqüente aumento da delinqüência infanto-juvenil),
a apatia da comunidade (cúmplice em sua indiferença) e o alheamento de
promotores, juizes e advogados (muitos dos quais amarrados a normas e
princípios informadores do Código de Menores e refratários às mudanças estabelecidas pelo Estatuto), concorrem
fortemente para que se alargue o fosso entre o texto legal e a práxis.
Sumário
Nascido
do Direito Penal, o Direito da Infância e da Juventude foi fruto de uma
preocupação básica: a de substituir as penas,
anteriormente cominadas aos menores, de natureza essencialmente retributiva, por medidas profiláticas e pedagógicas, que tivessem como objetivo
maior sua (re)inserção social.
A
retrospectiva feita na Introdução mostrou-nos este gradual desmembramento da
legislação penal e a consolidação de uma corrente humanista, que leva em
conta a condição peculiar do(a) menino(a) como pessoa
em desenvolvimento e dá ênfase
às medidas que perseguem o fortalecimento de seus vínculos familiares e
comunitários.
Nessa
evolução histórica teve um papel de relevo o Código de Menores de 1979, pelas
mudanças que provocou no tratamento
do menor infrator, ao exigir, por exemplo, que se considerasse, em sua
aplicação, o contexto sócio-econômico e cultural
em que se encontrassem o menor e seus pais ou responsável, além do estudo de
cada caso, realizado por equipe de
que participasse pessoal técnico, sempre que possível, assinalando, inclusive,
a prevalência dos interesses do menor sobre
qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado.
Foi
feliz o Código, no disciplinamento das medidas
aplicáveis ao menor autor de infração penal, ao substituir a liberdade vigiada
prevista no Código Mello Mattos pela liberdade assistida e dispor que a
internação somente seria determinada se fossem inviáveis ou malograssem as
demais medidas.
É
absolutamente certo que uma análise detida da Lei 6.697 nos levaria a concluir
que, apesar de suas imperfeições, representou
esta, em sua época, um avanço notável no enfrentamento do problema do
"menor".
Não
resta dúvida, porém, que o Estatuto da Criança e do Adolescente deu um passo
importantíssimo ao definir uma nova política
de atendimento, com a participação da comunidade, e adotar a doutrina da
proteção integral, advertindo para a percepção
das crianças e adolescentes como sujeito de direitos e objetos de prioridade
absoluta.
Nas
disposições sobre a prática do ato infracional, há que realçar o
estabelecimento de medidas diferenciadas para crianças e adolescentes, assim
como a garantia de que nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão
em
flagrante ou por ordem
escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, uma equiparação aos
adultos que se
impunha na nova lei.
Acerca
das medidas sócio-educativas convém registrar repetidamente: a. a exigência de se
considerar a capacidade do adolescente de cumpri-las, bem como as
circunstâncias e a gravidade da infração; b. a proibição do trabalho
forçado;
c. a pressuposição da existência de provas suficientes da autoria e da
materialidade da infração, ressalvada a hipótese da remissão; d.
a inclusão da medida de prestação de serviços à comunidade, por período não
excedente a seis meses.
Atento
às mazelas da internação - um dos principais desafios do Estatuto - o
legislador sujeitou-a aos princípios da brevidade,
excepcionalidade e respeito à condição de pessoa em
desenvolvimento; estabeleceu a reavaliação de sua manutenção no máximo a cada seis meses;
fixou o período máximo de três anos de internação, com liberação compulsória aos 21 anos de idade; e arrolou os
direitos do adolescente privado de liberdade, reafirmando o dever do Estado de
zelar por sua integridade física e mental.
Ante
as normas reguladoras da apuração da infração penal, é evidente o cuidado não
apenas de impedir que a investigação policial
se torne traumatizante, mas também de assegurar, de conformidade com o art.
111, o pleno e formal conhecimento da
atribuição do ato, a igualdade na relação processual e a defesa técnica por
advogado.
Instrumento
indispensável à função jurisdicional do Estado, o Ministério Público, por outro
lado, fortaleceu-se sobremaneira no
Estatuto, competindo-lhe promover e acompanhar os procedimentos relativos às
infrações atribuídas a adolescentes e conceder
a remissão como forma de exclusão do processo.
A
par dos pontos positivos, o ECA representa, contudo,
alguns equívocos que devem ser corrigidos como, por exemplo, a ambigüidade de certos dispositivos e a
adoção do sistema recursal do Código do Processo Civil para os procedimentos de natureza penal. Por isso mesmo, não se pode
desconhecer, com os olhos voltados inclusive para futuras alterações na lei, as reflexões críticas que têm sido
feitas, com percuciência e objetividade, por juristas de nomeada, o que
permitirá os ajustes que se fazem necessários.
Referências Bibliográficas
LIBERATI, Wilson Donizetti. Comentários ao Estatuto da Criança e do
Adolescente. São Paulo: Malheiros, 1993.
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado (lei nº
8.069, de 13 de julho de 1990). São Paulo: Saraiva. 1991.
SOTTO MAYOR, Olympio. "Das
Medidas Sócio-Educativas". In Estatuto da Criança e do Adolescente
Comentado: Comentários
Jurídicos e Sociais, editado por Munir Cury et alli. São Paulo; Malheiros, 1992.