A INFREQÜÊNCIA EM FACE DA LDB

 

 

Afonso Armando Konzen

Procurador de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul.

 

 

1. A Educação, na sociedade brasileira, em geral, ainda tem sido entendida como tema para especialistas, não só pela construção de normas diferenciadas em suas características terminológicas, mas também pela ocupação de espaços de interpretação e de regulamentação. São os chamados especialistas que se reservam a responsabilidade de influir na administração dos sistemas de ensino e de chamar para si a tarefa de responder pelo processo educativo.

Com a vigência da Lei n.º 8.069 (Estatuto da Criança e do Adolescente), em 14 de outubro de 1990, norma regulamentadora de todos os chamados direitos fundamentais da criança e do adolescente, inclusive o Direito à Educação, a temática passou a interessar mais de perto a outras esferas da sociedade e do Poder Público, em especial no que diz respeito à regularidade da oferta do ensino fundamental, creche e pré-escola e os instrumentos de sua exigibilidade. O novo ciclo instalado a partir de então diz que a tarefa de garantir a Educação, no Brasil, não está mais tão-só sob a exclusiva tutela das especialidades. Trata-se de um bem maior, de interesse de todos. A Educação enquanto Direito, direito fundamental, direito público subjetivo e indisponível, ingressou, a partir do Estatuto, na seara do mérito jurídico, inclusive com a possibilidade do acesso judicial em garantia do acesso, da permanência e do sucesso da criança e do adolescente na Escola. A matéria saiu da esfera da discricionariedade administrativa. Adquiriu relevância jurídica, pela possibilidade instrumental de submeter a satisfação do Direito à Educação ao controle judicial. Se a educação escolar é de responsabilidade do educador, se a oferta é da responsabilidade do Poder Público, pelos sistemas de ensino, o papel de velar pelo integral asseguramento do direito de ser educado pertence à toda sociedade. Com o que se justifica e se legitima o posicionamento a seguir, sobre a infreqüência em face da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

 

2. A reprovação tem sido considerada uma aliada preponderante da exclusão escolar, sendo apontada como a causa mais evidente do fracasso espelhado nos indicativos da evasão. Em sentido inverso, inúmeras são as iniciativas voltadas à inclusão. Nesse último sentido, no Estado do Rio Grande do sul, por exemplo, são modelares os trabalhos de mobilização social do Movimento O Direito é Apreender. Em termos nacionais, as projeções são no mesmo rumo, como sinalizam os fundamentos de inúmeros programas em desenvolvimento. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996) também se pauta pela promoção do aluno, ao instituir na Educação Básica, para fins de aproveitamento, todo um sistema criterioso de verificação do rendimento, com mecanismos de avaliação onde prevaleçam os aspectos qualitativos sobre os quantitativos, mecanismos que possibilitam a aceleração dos estudos, o avanço nos cursos e nas séries mediante verificação do aprendizado, o aproveitamento de estudos concluídos com êxito e a obrigatoriedade de estudos de recuperação para os casos de baixo rendimento, tema a ser disciplinado nos regimentos das instituições de ensino. Ou seja, o esforço da sociedade brasileira, esforço calcado na compreensão da importância da Educação como fator essencial ao desenvolvimento do País, caminha no sentido da obrigatória inclusão escolar. Na esteira da inclusão deve atuar a escola. Nesse sentido devem ser organizados os esforços dos governos. Esse é o dever das autoridades de proteção à infância e à juventude. Com a inclusão colabora a sociedade. Consolida-se um processo de solidariedade pela Educação, onde o consenso das providências governamentais e não-governamentais está na construção de um novo jeito de VER, SENTIR e FAZER a EDUCAÇÃO, em que a inclusão é o corolário lógico.

No entanto, a cultura da reprovação, uma das causas predominantes da exclusão, ainda resiste bravamente. Aproveita-se da ainda fragilidade dos sistemas educacionais, da transição de um modelo para outro, da falta de conhecimento e das eventuais lacunas da novel legislação, para repetir conceitos superados, invadir a autonomia da instituição escolar e engessar as mudanças nas práticas da Escola. A idéia de que reprovar faz sentido encontrou um aliado significativo na redação do artigo 24, inciso VI, da LDB, onde se diz que "o controle de freqüência fica a cargo da escola, conforme o disposto no seu regimento e nas normas do respectivo sistema, exigida a freqüência mínima de setenta e cinco por cento do total de horas letivas para aprovação".

 

3. O Conselho Nacional de Educação, por sua Câmara de Educação Básica, em parecer normativo aprovado em 07 de maio de 1997 (Parecer n.º 05/97), com o propósito de estudar e propor linhas de interpretação e de regulamentação da Lei, visando à orientação dos sistemas de ensino, produziu, acerca do dispositivo mencionado, o seguinte posicionamento:

 

A Lei, ao mesmo tempo em que valoriza a freqüência, reafirma através de mecanismo de reclassificação, de aceleração de estudos e de avanços progressivos, o propósito de eliminar, gradualmente as distorções idade/série, geradas no âmago da cultura da reprovação. Entretanto, é oportuno observar que a verificação do rendimento escolar, tal como tratada não inclui a freqüência como parte desse procedimento. A Lei anterior (Lei n.º 5962/71) determinava que a verificação do rendimento escolar ficaria na "forma regimental", a cargo dos estabelecimentos, compreendendo a avaliação do aproveitamento e a apuração da assiduidade. A verificação do rendimento era pois um composto de dois aspectos a serrem considerados concomitantemente: aproveitamento e assiduidade. Este entendimento é substituído pelo que separa verificação de rendimento e controle de freqüência. A verificação se dá por meio dos instrumentos próprios, busca detectar o grau de progresso do aluno em cada conteúdo e o levantamento de suas dificuldades visando à sua recuperação. O controle da freqüência contabiliza a presença do aluno nas atividades escolares programadas, das quais está obrigado a participar pelo menos 75% do total da carga horária prevista. Deste modo, a insuficiência revelada na aprendizagem pode ser objeto de correção, pelos processos de recuperação a serem previstos no regime escolar. As faltas, não. A lei fixa a exigência de um mínimo de 75% (setenta e cinco) de freqüência, considerando o total de horas letivas para aprovação. O aluno tem o direito de falta até o limite de 25% (vinte e cinco por cento) do referido total. Se ultrapassar este limite estará reprovado no período letivo correspondente. A freqüência de que trata a lei passa a ser apurada, agora, sobre o total da carga horária do período letivo. Não mais sobre a carga específica de cada componente curricular, como dispunha a lei anterior"(os grifos inexistem no original).

 

O Parecer n.º 12/97, de 08 de outubro de 1997, aprovado pela mesma Câmara, com o intuito de solucionar novas consultas e sob o item "Apuração de freqüência no ensino básico", reprisa o posicionamento no que chama de "exigência do ensino presencial", no sentido de que cada aluno está obrigado à freqüência de pelo menos 75% do total das aulas dadas, nos termos da lei, como sinônimo de apuração da totalidade das aulas, independente do conteúdo ou da disciplina, com a integral ratificação do Parecer n.º 05/97.

O Conselho Nacional de Educação, órgão com funções normativas e de supervisão da estrutura educacional (artigo 9º, parágrafo primeiro, da LDB), está legitimado a emitir pareceres normativos em face da redação do artigo 90 da citada legislação, que lhe atribui a tarefa de resolver as questões suscitadas na transição entre o regime atual e o anterior.

4. É surpreendente que o órgão de supervisão e de normatização máxima da estrutura educacional brasileira diga, em escrito de sua autoria e sob a égide de intérprete da lei, que, na Educação Básica, "o aluno tem o direito de faltar até o limite de 25% (vinte e cinco por cento)" do total das horas letivas. A orientação contraria frontalmente a regulamentação do Direito à Educação da Criança e do Adolescente. O ensino fundamental, elemento da Educação Básica, está elevado, pela Constituição Federal e pela norma regulamentadora ordinária, à categoria de direito público subjetivo, cabendo ao Poder Público, junto aos pais ou responsável, zelar pela freqüência à escola (artigo 54, parágrafo terceiro, do Estatuto da Criança e do Adolescente). Criança ou adolescente no ensino fundamental, segundo o mesmo normativo, na hipótese de reiteração de faltas injustificadas, está obrigatoriamente sujeito à medidas de proteção (artigos 98, 101 e 136 do Estatuto), impondo-se ao dirigente do estabelecimento de ensino a obrigação de comunicar o fato ao Conselho Tutelar, para as providências (artigo 56 do Estatuto). A falta à aula, portanto, não se constitui em direito algum. Nesse particular, o conceito expresso pelo Conselho Nacional é equivocado, porque acena para a possibilidade da infreqüência como uma conquista e uma garantia do infreqüente, quando a regulamentação do Direito à Educação propõe o inverso, colocando na seara da tomada de providências toda infreqüência reiterada. A criança ou o adolescente no ensino fundamental, portanto, não pode faltar à aula. A falta coloca-o na condição de tutelado especial, sujeito do Direito à Educação que é, direito que o próprio não dispõe e que ninguém pode dispor em seu nome, nem seus pais, nem a Escola ou qualquer ente do sistema educacional.

 

5. A aplicação do Direito consiste em enquadrar o caso concreto na regra jurídica adequada. Sem embargo das múltiplas teorizações sobre os preceitos hermenêuticos ou os processos de interpretação da norma jurídica, hodiernamente consolida-se a posição que atribui ao intérprete da norma a tarefa de comparar o dispositivo sujeito a exegese com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto. Como tal, a interpretação é obra de raciocínio, mas também de sabedoria e de bom senso. O vocábulo deve subordinar-se aos princípios que informam todo o sistema.

Segundo Carlos Maximiliano, ao explicar o significado do processo sistemático de interpretação das leis,

 

Por umas normas se conhece o espírito das outras. Procura-se conciliar as palavras antecedentes com as conseqüentes, e do exame das regras em conjunto deduzir o sentido de cada uma.

 

E segue o mesmo doutrinador:

Em toda ciência, o resultado do exame de um só fenômeno adquire presunção de certeza quando confirmado, contrastado pelo estudo de outros, pelo menos dos casos próximos, conexos; à análise sucede  a síntese; do complexo de verdades particulares, descobertas, demonstradas, chega-se até à verdade geral.

Possui todo corpo órgãos diversos; porém a autonomia das funções não importa em separação; operam-se, coordenadas os movimentos, e é difícil, por isso mesmo, compreender bem um elemento sem conhecer os outros, sem os comparar, verificar a recíproca interdependência, por mais que à primeira vista pareça imperceptível. O processo sistemático encontra fundamento na lei da solidariedade entre os fenômenos coexistentes.

Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um aglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em campos diversos.

Cada preceito, portanto é membro de um grande todo; por isso do exame em conjunto resulta bastante luz para o caso em apreço. (em Hermenêutica e Aplicação do  Direito, editora Forense, 9 º Edição, pág.128).

 

As lições de hermenêutica, em geral, auxiliam na compreensão da norma. Na hipótese em análise (artigo 24 da LDB), num mesmo artigo de lei estão citadas diversas regras comuns, verdadeiros princípios de instrumentalização da educação básica nos níveis fundamentais e médio. A observação do conjunto das normas permite concluir que se pretende um ensino onde a classificação em qualquer série ou etapa tenha por fundamento a promoção com aproveitamento, com a flexibilização das progressões ao grau de desenvolvimento e experiência, com a admissão, inclusive, da progressão parcial. Concorrem para a promoção a carga horária e a freqüência mínima. Os aspectos qualitativos prevalecem sobre os quantitativos, o sistema para a promoção possibilita a aceleração de estudos para alunos com atraso escolar; o avanço nos cursos e nas séries mediante verificação do aprendizado; o aproveitamento dos estudos concluídos com êxito; e a obrigatoriedade de estudos de recuperação, de preferência paralelos ao período letivo, para os casos de baixo rendimento escolar, a serem disciplinados pelas instituições de ensino em seus regimentos. A carga horária e a freqüência mínima, como condição de promoção, porque inerente ao aspecto meramente quantitativo do rendimento, está nitidamente associado a um sistema de retomada, toda vez que não atingidos os mínimos para a promoção. Em outras palavras, se não houve freqüência mínima, por exemplo, deriva-se para a suposição quantitativa de não-aproveitamento, logo incidem as formas de superação do atraso quantitativo. Se o sistema de recuperação vale para o aspecto qualitativo, por que não valeria para os aspectos quantitativos, se os primeiros prevalecem sobre os outros?

Afirma o parecer normativo do Conselho Nacional de Educação, ao interpretar o sentido de expressão horas-aula (artigo 12, inciso III, e artigo 13, inciso V), segundo ensinam os doutos sobre a interpretação das leis”, que “nenhuma palavra ou expressão existe na norma legal sem uma razão específica”. Se é verdadeiro o axioma, por qual razão o legislador não referiu que a infreqüência é sinônimo de reprovação? Ora, nos termos da verdade do axioma, se o legislador usou determinada terminologia, não cabe ao intérprete dizer o que a norma não diz. Ou seja, segundo o artigo 24, inciso VI, da LDB, NÃO-APROVAÇÃO não é sinônimo de REPROVAÇÃO. Não-aprovação por infreqüência significa, ao lado de outras formas de falta de aproveitamento, quer qualitativo ou quantitativo, a necessidade da instalação de um regime de suprimento da insuficiência, sempre para fins de aprovação, permitindo ao aluno, nas circunstâncias, que preencha através da freqüência a estudos de recuperação, por exemplo, ou a outras formas a serem definidas em cada regimento escolar, a superação da infreqüência constatada. Interpretar as “regras comuns” insertas no artigo 24 da LDB como um conjunto de exigências autônomas, algumas referentes à “verificação do rendimento” e outras atinentes ao “controle de freqüência”, como faz o Conselho Nacional, retira ao infreqüente qualquer possibilidade de recuperação da infreqüência. Ou seja, nega-se ao infreqüente, por razões meramente presenciais (“ensino presencial”, como prefere o Conselho), ou quantitativos, a possibilidade da recuperação da infreqüência. A referida interpretação desautoriza a autonomia da escola, transformando-a, ainda mais uma vez, em ente meramente contabilizadora da presença física, no lugar de estimular a instituição de ensino, mesmo em relação ao infreqüente, na busca da recuperação do tempo perdido, oportunizando ao aluno com problemas presenciais a promoção pela freqüência a estudos de recuperação.

6. A vigorar a interpretação normativa com origem no Conselho Nacional de Educação, haverá crianças e adolescentes prematuramente excluídas do ensino fundamental. A exclusão pela reprovação, mesmo para o infreqüente, antes de esgotados as formas previstas para a recuperação, significa a disposição ilegal do Direito à Educação. Felizmente, no Rio Grande do Sul, a Resolução n.º 233, de 26 de novembro de 1997, do Conselho Estadual de Educação, e Recomendação do Ministério Público, expedida pela Coordenadoria das Promotorias da Infância e da Juventude de Porto Alegre, ameniza a perspectiva da exclusão com origem na orientação do Conselho Nacional de Educação. A orientação estadual, no entanto, em assunto de tamanha importância social, não basta. Fiel ao dever constitucional de zelar pela ordem jurídica e, mais especificadamente, “zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis” (artigo 201, inciso VIII, do Estatuto da Criança e do Adolescente), espera-se que o Ministério Público Federal, pelo órgão funcionalmente competente, proponha as medidas necessárias à correção do normativo do Conselho Federal de Educação.

Espera-se, outrossim, dos órgãos do Ministério Público dos Estados com atribuições na defesa dos diretos da criança e do adolescente, idêntico zelo. A vigilância diz não só com as orientações dos respectivos sistemas estaduais ou municipais de ensino acerca do tema, mas também para com a prática de cada instituição escolar, para que a simples infreqüência, mesmo nos percentuais quantificados pelo legislador federal, não importe na automática reprovação, mas que a Escola esteja empenhada em propor mecanismos de recuperação dos estudos do infreqüente.