O RAP E O FUNK NA SOCIALIZAÇÃO DA JUVENTUDE
Juarez Dayrell*
Universidade Federal de Minas Gerais.
Resumo: O texto se propõe a discutir a importância dos grupos musicais juvenis nos processos de socialização vivenciados por jovens pobres na periferia de Belo Horizonte, problematizando o peso e o significado de ser membro de um grupo musical no conjunto da vida de cada um. Tem como foco os integrantes de três grupos de rap e três duplas de funk, procurando analisar as suas experiências culturais e o sentido que tais práticas adquirem no conjunto dos processos sociais que os constituem como sujeitos. Significa compreender como eles elaboram as suas vivências em torno do estilo, e os significados que atribuem a elas, no contexto social onde se inserem como jovens pobres.
A discussão aponta que os jovens rappers e funkeiros encontram poucos espaços nas instituições do mundo adulto para construir referências e valores por meio dos quais possam se construir como sujeitos. Os estilos rap e funk assumem uma centralidade na vida desses jovens por intermédio das formas de sociabilidade que constroem, da música que criam, e dos eventos culturais que promovem.
Esses estilos possibilitaram e vem possibilitando a esses jovens práticas, relações e símbolos por meio dos quais criam espaços próprios, significando uma referência na elaboração e vivência da sua condição juvenil, além de proporcionar a construção de uma auto-estima e identidades positivas.
Palavras-chave: Juventude - Socialização - Cultura juvenil - Sociabilidade.
Nos últimos anos, e de forma
cada vez mais intensa, podemos observar que os jovens vêm lançando mão da
dimensão simbólica como a principal e mais visível forma de comunicação,
expressa nos comportamentos e atitudes pelos quais se posicionam diante de si
mesmos e da sociedade. É possível constatar esse fenômeno nas ruas, nas escolas
ou nos espaços de agregação juvenil, onde os jovens se reúnem em torno de
diferentes expressões culturais, como a música, a dança, o teatro, entre
outras, e tornam visíveis, através do corpo, das roupas e de comportamentos
próprios, as diferentes formas de se expressar e de se colocar diante do mundo.
O mundo da cultura aparece
como um espaço privilegiado de práticas, representações, símbolos e rituais no
qual os jovens buscam demarcar uma identidade juvenil. Longe dos olhares dos
pais, professores ou patrões, assumem um papel de protagonistas, atuando de
alguma forma sobre o seu meio, construindo um determinado olhar sobre si mesmos
e sobre o mundo que os cerca. Nesse contexto, a música é a atividade que mais
os envolve e os mobiliza. Muitos deles deixam de ser simples fruidores e passam também a ser
produtores, formando grupos musicais das mais diversas tendências,
compondo, apresentando-se em festas e eventos, criando novas formas de
mobilizar os recursos culturais da sociedade atual além da lógica estreita do
mercado.
Esse processo não está
presente apenas entre os jovens de classe média. Nas periferias constatamos uma
efervescência cultural protagonizada por parcelas dos setores juvenis. Ao
contrário da imagem socialmente criada a respeito dos jovens pobres, quase
sempre associada à violência e à marginalidade, eles também se posicionam como
produtores culturais.1 Entre eles, a música é o
produto cultural mais consumido e em torno dela criam seus grupos musicais de
estilos diversos, dentre eles o rap e
o funk.
Nesses grupos estabelecem trocas, experimentam, divertem-se, produzem, sonham,
enfim, vivem determinado modo de ser jovem.
Autores como Mannheim (1982)
ou Melucci (1994) recomendam que devemos estar
atentos às expressões juvenis, pois estas podem ser a ponta de um iceberg, que
torna visíveis as tensões e contradições da sociedade em que vivem. Se seguimos essa orientação, cabe-nos perguntar: o que pode
estar significando esse fenômeno? Será que é apenas uma moda passageira, como
tantas outras patrocinadas pela indústria cultural? Ou pode estar nos dizendo
sobre novos modos de ser jovem neste início de século ou mesmo apontando para
novas formas de socialização vivenciadas por eles?
A nossa hipótese é de que a
centralidade do consumo e a da produção cultural para os jovens são sinais de
novos espaços, de novos tempos e de novas formas de sua produção/formação como
atores sociais. Ou seja, apontam para novas formas de socialização, nas quais
os grupos culturais e a sociabilidade que produzem vêm ocupando um lugar
central. É o que nos propomos discutir neste texto. Interessa-nos apreender os
significados que os jovens atribuem à experiência de participação nos grupos
musicais, buscando compreender os sentidos que adquirem no processo de
construção social de cada um deles. Para tanto, tomaremos como objeto de
análise jovens da periferia de Belo Horizonte que participam de grupos musicais
ligados aos estilos rap e funk[2].
Iniciaremos com uma discussão sobre a noção de socialização, seguida por uma
contextualização social dos jovens pesquisados. Com esse pano de fundo,
desenvolveremos uma análise dos estilos rap
e funk e os
significados que adquirem para os jovens.
Na sociologia clássica,
desde Durkheim, desenvolveram-se reflexões sobre a
socialização a partir de diversas perspectivas, de acordo com o próprio contexto
histórico, com concepções distintas de sociedade, dos atores sociais e das
interações, exprimindo modelos determinados de sociedade e de cultura. Vários
autores questionam se tais paradigmas, produzidos no contexto de certa
concepção clássica de sociedade, são capazes de explicar os processos sociais
que ocorrem na sociedade contemporânea, no bojo das profundas transformações
que vêm ocorrendo nas últimas décadas.
Van Haetcht (1992), por exemplo, evidencia que, nesses
paradigmas anteriores, a teoria da socialização dicotomiza a lógica estrutural
e a lógica da atuação, compreendendo a socialização reduzida a um treino, que
gera a interiorização de um "programa" a ser executado no futuro.
Propõe entendê-la como um processo adaptativo, articulando ator e estruturas,
em que os efeitos da socialização seriam apenas os parâmetros da ação, não
sendo, assim, irreversíveis. Nessa mesma direção, Dubet
(1994) aponta uma série de limites na sociologia clássica para a compreensão
dos processos socializadores contemporâneos. Para ele, tais teorias buscam
entender e explicar a socialização na perspectiva da reprodução social,
perguntando como as instituições garantem a continuidade social. Nelas o ator é
o sistema, ou seja, a conduta, a subjetividade, os sentimentos são
interiorizações de uma posição objetiva do sistema. Dessa forma, explicar os
indivíduos é explicar a determinação de seu lugar social sobre sua
personalidade, uma vez que haveria um processo de interiorização do social. O
objeto de análise se constitui em torno da religião, da família e/ou da escola,
instituições que permitem "fabricar" os atores pelo sistema.
O autor propõe uma outra
forma de conceber os processos de socialização no contexto de uma sociedade em
mutação, numa superação dos limites das teorias clássicas. Para Dubet, os atores e as instituições não são mais redutíveis
a uma lógica única, a um papel e a uma programação cultural de condutas, como
era pensada a socialização na sociedade industrial. Passa a ocorrer uma
heterogeneidade de princípios culturais e sociais que organizam as condutas,
com os atores podendo adotar simultaneamente vários pontos de vista. Há
mutações globais dos quadros de referência, e nenhuma delas assume uma
centralidade. Não há mais uma unidade do sistema e do ator. O ator não é
totalmente socializado a partir das orientações das instituições nem a sua
identidade é construída apenas nos marcos das categorias do sistema.
Para o autor existem três
sistemas que formam o conjunto social, cada qual regido por
uma lógica diferente: uma comunidade estruturada por uma lógica de
integração; um ou mais mercados competitivos, dependendo de uma lógica da
estratégia e um sistema cultural correspondente a uma lógica da subjetivação.
Os indivíduos constroem-se socialmente através das experiências sociais,
entendidas como a capacidade de o indivíduo articular esses tipos de ação, numa
dinâmica que leva à constituição da subjetividade do ator e sua reflexividade.
É a experiência social que articula o trabalho do indivíduo, que constrói uma
identidade, uma coerência e um sentido às suas ações sempre dialogando com as
lógicas de ação que já se encontram determinadas. Nessa medida a socialização e
a formação dos sujeitos são entendidas como o processo mediante o qual os
atores constroem sua experiência, evidenciando uma equação na qual os
indivíduos se constroem e ao mesmo tempo são construídos socialmente (Dubet, 1997).
Nessa mesma direção, Charlot (2000) avança ao enfatizar um lugar à questão da
ação do indivíduo sobre o mundo e no mundo. É nesse autor que nos inspiramos
para definir determinada compreensão dos processos de socialização. Acreditamos
que a socialização dos jovens pode ser compreendida como os processos por meio
dos quais os sujeitos se apropriam do social, de seus valores, de suas normas e
de seus papéis, a partir de determinada posição e da representação das próprias
necessidades e interesses, mediando continuamente entre as diversas fontes,
agências e mensagens que lhes são disponibilizadas. Em outras palavras, cada um
dos jovens rappers
ou funkeiros
encontra-se em determinado grupo social, mas não se reduz a esse vínculo e ao
que pode ser pensado a partir da posição desse grupo em um espaço social.
Encontra-se em uma sociedade cujas agências clássicas de socialização, como
veremos no caso da escola e do trabalho, se mostram frágeis, não sendo uma
referência de valores e normas. Destas, a única instituição que continua tendo
forte referência formativa é a família. Mas nenhuma delas, no contexto de uma
sociedade em mutação, oferece certezas e seguranças como no passado. Como lembra Melucci (1996), as
seguranças de que necessitamos devem ser construídas por nós mesmos.
Por outro lado, esse jovem
vai abrindo outros espaços, nos quais o grupo de pares, o estilo ao qual adere
e o consumo dos meios de comunicação de massa vão cada vez mais se constituindo
como parâmetros de avaliação e organização das relações interativas com a
realidade externa. Esse jovem tem acesso a múltiplas referências culturais,
constituindo um conjunto heterogêneo de redes de significado que são
articuladas e adquirem sentido na sua ação cotidiana. Assim, ele interpreta a
sua posição social, dá um sentido ao conjunto das experiências que vivencia,
faz escolhas, age na sua realidade: a forma como ele se constrói e é construído
socialmente, como se representa como sujeito, é fruto desses múltiplos
processos.
Para melhor compreensão dos
significados que os jovens pesquisados atribuem à vivência dos estilos rap ou funk, é necessário contextualizar
a realidade deles, apreendendo a forma como elaboram o conjunto das
experiências que vivenciam no cotidiano. Por mais óbvio que possa parecer, é
importante ressaltar que nenhum deles é um rapper ou funkeiro vinte e quatro horas ao
dia. No cotidiano, a maioria deles trabalha, alguns estudam, possuem família,
vivenciam conflitos, divertem-se, amam, sofrem, possuem desejos e propostas de
melhoria de vida. Privilegiaremos, assim, as instâncias do trabalho, da escola
e da família para traçar o contexto em que se inserem.[3]
Os jovens rappers e funkeiros
pesquisados estão situados no limiar da precariedade. Praticamente, todos eles
começaram a trabalhar muito cedo, em ocupações típicas de adolescentes pobres,
tais como lavar carros e ser office-boy. Além de ser uma forma de contribuir em
casa, o trabalho era a condição para a vivência da condição juvenil:
A época do lava-jato foi a época que eu mais tinha condição. Eu ganhava super-pouco, eu fazia a feira de casa, eu comprava o frango, entendeu, eu tinha a minha roupa, eu bebia, eu namorava... Lá a gente ralava sábado, entendeu, sábado tinha vez que eu saía oito horas de lá, meu. Chegava em casa, deitava no tapete do meu quarto, todo sujo de graxa. Dormia até umas nove horas, aí tomava um banho, jantava. Tinha uma garrafa de vinho na geladeira, eu abria, tomava o vinho, ia pra rua. Chegava e encontrava no Vilarinho com a turma, aí a gente dançava e zoava pra caralho... (Nilson, 26 anos, rapper)
Como evidenciam inúmeras pesquisas,
o trabalho juvenil não pode ser compreendido apenas pelo contexto de pobreza em
que vivem os jovens. Aparece também como condição para maior autonomia e
liberdade em relação à família, pela possibilidade do consumo de bens e pela
garantia de um mínimo de lazer, enfim, é o trabalho que possibilita a vivência
da própria condição juvenil. Mas o que podia ser visto como uma etapa inicial,
tornou-se uma constante em suas trajetórias no mercado de trabalho. Nenhum
deles conseguiu se qualificar em alguma profissão e todos
sobrevivem ainda de bicos e empregos precários. Expressam
o contexto de uma crise pela qual passa a sociedade brasileira, o que afeta as
instituições clássicas responsáveis pela socialização. Essa crise se manifesta
na desestruturação do mercado de trabalho e no aumento do desemprego juvenil,
atingindo mais diretamente os jovens pobres (Pochmann,1998).
Dessa forma, o mundo do
trabalho não lhes aparece como um espaço de escolhas, ao contrário, nenhum
deles gosta do que faz, não vendo nessas atividades nenhuma centralidade além
da renda. Para muitos deles, o envolvimento com a música implicou uma tensão
entre o tempo do trabalho e o tempo da música:
Chegava dentro de uma firma e minha cabeça num era pra aquilo lá, trabalhei em muitos lugares, cara, mas minha cabeça num aceitava... era aquele trauma, ficava nervoso porque eu pensava: "Pô, eu tenho de fazer é música, o meu negócio é aquilo lá, é só com isso que eu me entretenho, é nisso que eu tenho uma vontade, cara!" (Pedro, 24 anos, rapper)
Eles fazem uma dissociação
entre o emprego atual e a carreira musical: um é aquele ao qual se vêem
coagidos a exercer, cuja valência é instrumental; a outra, a carreira musical,
aponta para a possibilidade de um trabalho que é visto como fonte de satisfação
pessoal e como atividade criativa. Como diz um deles, gostar de trabalhar eu até gosto; a questão não é de não gostar de
trabalhar, é de fazer o que não gosto...
Podemos entender a postura
desses jovens como uma recusa das condições que a sociedade lhes oferece para
sua inserção social. Por intermédio da música, experimentam a possibilidade de
uma atividade com sentido e não querem aceitar a sujeição às alternativas que
lhes são postas. Dessa forma, o trabalho não constitui fonte de expressividade.
Reduz-se a uma obrigação necessária para uma sobrevivência mínima, perdendo os
elementos de uma formação humana que derivavam de uma cultura que se organizava
em torno do trabalho.
Esses jovens são exatamente
os menos contemplados pela escola. A maioria deles foi excluída da escola nos
mais variados estágios e, grande parte, antes de completar o ensino
fundamental, com uma trajetória marcada por repetências, evasões esporádicas e
retornos, até a exclusão definitiva. Apenas quatro jovens continuam a estudar, alguns no ensino fundamental e outros no ensino médio, sendo
possível perceber que os significados que atribuem a essa experiência é bem
diversa. Para aqueles que ainda estudam, a escola aparece como uma instituição
distante e pouco significativa:
Antes eu não gostava de da escola de jeito nenhum... Agora, tipo assim, eu tive que gostar porque é uma coisa que eu dependo dela, tipo assim, eu aprendi a gostar porque eu sei que preciso... mas se desse pra viver sem escola eu preferia viver sem escola... (Flavinho, 17 anos, funkeiro)
A escola se realiza como uma
provação, uma "chatice necessária" para um credenciamento que tem um
peso relativo no mercado de trabalho. Já para outros, a experiência escolar carrega
um sentido negativo, contribuindo para reproduzi-los na condição de
subalternos:
Eu larguei a escola depois que tomei a segunda bomba na 5ª série, isso eu tava com 14 anos, já tinha tomado pau na 2ª, e na 5ª série eu tomei dois. Minha lembrança da escola é péssima, eu nem gosto muito de tocar nesse assunto não. Por que assim, quando eu era novo eu era muito complicado, ‘ocê’ entendeu? Eu contestava muito, eu tenho um senso crítico muito grande comigo mesmo. Então a escola nunca aguçou esse lado meu, entendeu? A professora falava lá, eu não gostava desses papos lá... eu sempre contestando o que ela falava. Sempre batendo de contra, pelo menos o que eu achava. Ignorando, também, o lado da ignorância minha. Eu queria mais era brincar, e sempre caía na turma dos mais bagunceiros. Ah, sei lá, escola pra mim era um saco. Resumindo, era um saco mesmo, era muita pouca coisa de escola que eu gostava mesmo... (João, 21 anos, rapper)
A construção de
auto-imagens, como a de "mau aluno", ou as reprovações são alguns dos
mecanismos internos à organização escolar que terminam por levá-los à exclusão.
A forma como muitos deles elaboram a saída da escola é marcada pela culpa e
pelo arrependimento: consideram-se os únicos responsáveis pela falta de
qualificação na qual se encontram atualmente. Não levam em conta os mecanismos
sociais perversos que interferiram nas suas escolhas, com um sentimento de
culpa que tende a minar a auto-estima.
Dessa forma, as experiências
escolares desses jovens, mesmo apresentando situações específicas, deixam claro
que a instituição escolar é pouco eficaz no seu aparelhamento para enfrentar as
condições adversas de vida com as quais vieram se defrontando, não constituindo
referência de valores no seu processo de construção como sujeitos.
A situação desses jovens se
vê agravada pelo encolhimento do Estado na esfera pública, que não oferece
soluções por meios de políticas que contemplem a juventude, gerando
privatização e despolitização das condições de vida. Além da falta de políticas
nas áreas básicas de emprego ou saúde, se defrontam com a falta de acesso aos
bens culturais. Todos afirmam não freqüentar cinema com a regularidade com que
gostariam de fazê-lo; grande parte nunca freqüentou um teatro; todos gostariam
de fazer algum curso ligado à música, entre outros exemplos, e não o fazem por
falta de recursos financeiros.
Para aqueles que se
encontram desempregados, o cotidiano se mostra vazio. Andando pelos bairros de
periferia nos dias de semana, é possível ver dezenas de jovens pelas ruas e
calçadas, conversando em grupos ou simplesmente sentados, passando o dia sem
ter o que fazer, sem acesso a equipamentos sociais, como centros culturais ou
mesmo praças públicas, sem espaços e tempo que os estimulem, que ampliem as
suas potencialidades. Não têm outra alternativa a não
ser levar uma vida empobrecida não só de recursos materiais, mas,
principalmente, de recursos simbólicos que os capacitem a enfrentar as
transformações pelas quais a sociedade vem passando. Talvez esteja aí uma das
principais razões que levam os jovens pobres a se envolverem com as drogas e a
marginalidade. Para os jovens ligados aos grupos musicais, existe pelo menos o
sonho de se tornarem cantores, gravar, fazer sucesso. Um sonho que,
independentemente das possibilidades da sua realização, dá um sentido ao
cotidiano deles.
Nesse contexto, as famílias se vêem cada vez mais responsabilizadas por garantir a reprodução dos seus membros, não contando com quem possa "ajudá-las a se ajudar". Como lembra Telles (1992, p. 89), a centralidade da família pode ser vista como registro de uma sociedade na qual a chamada questão social foi equacionada nas formas de uma pobreza colonizada, despolitizada e privatizada nas suas formas de manifestação.
Não é sem razão que para a
grande maioria desses jovens a família ocupa um lugar central: as relações que
estabelecem, a qualidade das trocas, os conflitos e os arranjos existentes para
garantir a sobrevivência são dimensões que marcam a vida de cada um,
constituindo-se um filtro por meio do qual traduzem o mundo social,
significando um espaço de experiências estruturantes. Nesse sentido, a família
ainda é uma das poucas instituições do mundo adulto com a qual esses jovens
podem contar.
Uma primeira tendência seria caracterizar esses jovens como excluídos. Mas tanto Castel (1995) quanto Martins (1997) nos advertem sobre a imprecisão desse conceito, criticando certo fetichismo da idéia da exclusão que tende a suprimir as mediações existentes entre a economia e outros níveis e dimensões da realidade social. Para Martins (1997, p. 20), o modelo socioeconômico brasileiro implementa uma proposital inclusão precária e instável, marginal. São políticas de inclusão de pessoas nos processos econômicos, na produção e circulação de bens e serviços, estritamente em termos daquilo que é racionalmente conveniente e necessário à mais eficiente reprodução do capital.
Assim, é mais esclarecedor
caracterizá-los como jovens pobres, vivenciando formas frágeis e insuficientes
de inclusão num contexto de uma nova desigualdade social: aquela que implica o
esgotamento das possibilidades de mobilidade social para a maioria da
população. Nela, a pobreza mudou de forma, de âmbito e de conseqüências. Se
para as gerações anteriores estava posta, mesmo que remotamente, a perspectiva
de mobilidade por meio da escola e/ou do trabalho, para os jovens de hoje essa
alternativa não mais se apresenta. Nesse sentido se instaura o quadro da crise[4]: os velhos modelos nos quais as
instituições tinham um lugar socialmente definido já não correspondem à
realidade. O trabalho não oferece mais um tipo de regulação da sociedade, a
escola não cumpre a função de moralização e mobilidade social, e novos modelos
ainda não estão delineados. O que antes se caracterizava como possibilidade de
passagem do momento da exclusão para o momento da inclusão, hoje, para parcelas
de jovens pobres, está se transformando em meio de vida.
Vivemos no Brasil uma
situação paradoxal. Nas últimas décadas vem ocorrendo uma modernização
cultural, consolidando uma sociedade de consumo, ampliando o mercado de bens
materiais e simbólicos, mas que não é acompanhada de uma modernização social.
Assim, os jovens pobres inserem-se, mesmo que de forma restrita e desigual, em
circuitos de informações, por meio dos diferentes veículos da mídia, e sofrem o
apelo da cultura de consumo, estimulando sonhos e fantasias, além dos mais
variados modelos e valores de humanidade. A esfera do consumo cultural torna-se
um momento importante para as trocas sociais, propiciando o acesso aos estilos,
por exemplo. No caso dos jovens pesquisados, foi como consumidores culturais de
músicas, CDs, shows de rap e funk que eles
puderam se transformar em produtores e, nessa experiência, ressignificar a sua
trajetória, criando formas próprias de ser jovem.
Mas se há uma ampliação de
possibilidades, há uma restrição ao seu acesso, sendo uma das faces perversas
da nova desigualdade. Os jovens pobres se vêem, assim, privados da escola, do
emprego, acompanhados da limitação de meios para a participação efetiva no
mercado de consumo, da limitação das formas de lazer, da limitação dos direitos
de vivenciar a própria juventude e, o que é mais sério, vêem-se
privados da esperança.
É nesse contexto que temos
de entender os significados que adquirem para esses jovens a experiência nos
grupos musicais, sejam de rap ou funk.
Juventude e música: o rap e o funk
Em outro artigo,[5] procurei discutir a importância da
música para os jovens, ressaltando que a relação entre a música e a juventude é
uma construção histórica, iniciada principalmente a partir
dos anos 1950 com o jazz. Mas
foi a partir da década de 1970 que essa relação adquiriu maior visibilidade,
tanto pela expansão quanto pela diversificação de estilos, além de os jovens se
posicionarem mais diretamente como produtores musicais, e não apenas como fruidores. Essa mudança foi resultado de uma série de
fatores, dentre eles da popularização da aparelhagem eletrônica e mesmo do
estímulo do movimento punk, com o seu
lema do it yourself
"faça sua música, o seu estilo,
não se acomode na postura do espectador vazio" apontando uma forma
possível de produzir arte no contexto da cultura de massas.
É também dessa mesma época
uma grande diversificação social da juventude urbana, com a crescente inserção
dos jovens pobres no mercado de trabalho, gerando a ampliação do consumo
juvenil, principalmente na moda e no lazer, e criando espaços próprios de
diversão nas periferias dos grandes centros, como os bailes e sons. Desde então, a visibilidade social
dos jovens vem se dando principalmente por intermédio dos grupos culturais
existentes, sucedendo-se uma lista considerável de movimentos e tendências,
umas mais passageiras, outras ainda persistentes, envolvendo jovens de
diferentes camadas sociais, com diferentes projetos, níveis diferenciados de
envolvimento, mas tendo em comum uma proposta de estilização[6] e a eleição de determinado ritmo musical. São os punks nas suas diversas variações, como
o trash, o hardcore, o anarco-punk. São
os darks, o
heavy metal, o reggae. É nessa esteira que podemos situar o hip hop e o funk.
Esses dois estilos possuem
uma mesma origem a música negra americana, que incorporou a
sonoridade africana, baseada no ritmo e na tradição orais. Eles são
herdeiros diretos do soul
que, depois de ser a trilha sonora dos movimentos civis americanos da década de
1960 e um símbolo da consciência negra, perdeu essas características
revolucionárias com a sua massificação. O funk radicalizou o soul, empregando
ritmos mais marcados e arranjos mais agressivos, mas o funk também sofreu um processo de
comercialização, com a remoção de sua base cultural, tornando-se uma música
mais digerível do grande público.
O rap surgiu, nesse período, como mais uma reação da tradição black. Ele surge junto
a outras linguagens artísticas, como a das artes plásticas - a do grafite, a da dança - o break e da discotecagem
- o DJ. Juntas tornaram-se os pilares da cultura hip hop, fazendo da rua o espaço
privilegiado da expressão cultural dos jovens pobres. O rap, palavra formada pelas iniciais da expressão rhythm and poetry (ritmo e poesia), tem como fonte de produção a
apropriação musical, sendo a música composta pela seleção e combinação de
partes de faixas já gravadas, a fim de produzir uma nova música. "Mixando"[7] os mais
variados estilos da black music, o rap cria um som próprio, pesado e
arrastado, reduzido ao mínimo, no qual são utilizados apenas bateria, scratch[8] e voz. Mais tarde, essa técnica
seria enriquecida com o surgimento do sampler. Desde então, o rap
aparece como um gênero musical que articula a tradição ancestral africana com a
moderna tecnologia, produzindo um discurso de denúncia da injustiça e da
opressão a partir do seu enraizamento nos guetos negros urbanos.[9]
No Brasil, a difusão do funk e do hip hop remonta aos anos 1970, quando da
proliferação dos chamados "bailes black"
nas periferias dos grandes centros urbanos. Embalados pela black music americana, principalmente o soul e o funk, milhares de
jovens encontraram nos bailes de finais de semana uma alternativa de lazer até
então inexistente. Desenvolveram-se nos mesmos espaços, por jovens de uma mesma
origem social: pobres e negros, na sua maioria. Tanto a música rap e funk quanto o seu processo de
produção continuam apresentando algumas semelhanças, fiéis à sua origem, tendo
como base as batidas, a utilização de aparelhagem eletrônica e a prática da
apropriação musical. Os dois estilos são mais democráticos, não tendo como
pré-requisito a utilização de instrumentos musicais, o domínio de habilidades
técnicas musicais nem mesmo maiores custos com a montagem e a organização dos
locais para exibição pública. Para os jovens da periferia que, geralmente, não
têm acesso a uma formação musical, o rap
e o funk
são dos poucos estilos que lhes permitem realizar-se
como produtores musicais e artistas. Não é sem razão que grupos de rap e duplas de MCs[10] tendem a cantar apenas suas próprias
músicas, sendo raro que cantem músicas de outros grupos.
Mas, no processo da sua
elaboração e reelaboração nos grandes centros urbanos brasileiros, o rap e o funk foram assumindo
características próprias. As letras expressam outros sentidos, as formas de
sociabilidade possuem especificidades, assim como os rituais que constituem
cada um desses estilos, ganhando significados próprios para os jovens que deles
participam. É o que veremos a seguir na descrição dos grupos de rap e duplas de funk em Belo Horizonte. O scratch consiste na obtenção de sons,
girando manualmente o disco sob a agulha em sentido contrário, produzindo
efeitos sonoros próprios.
Os jovens e o rap
O rap começou a difundir-se em Belo Horizonte a partir do final dos
anos 1980. Desde então, veio se construindo uma cena rap que, mesmo ocupando um espaço marginal no circuito cultural, se
mantém viva e atuante, apesar das oscilações entre momentos de latência e de
maior visibilidade. Ao mesmo tempo, existe uma parte ainda mais submersa, formada por um sem-número de jovens que se reúnem e formam
seus grupos nos bairros por simples diversão, na maioria das vezes com uma
curta trajetória, sem se tornarem conhecidos no próprio meio hip hop. Durante
todo esse tempo existiu e existe ainda uma rotatividade de grupos muito grande,
vários se desfazendo ou mesmo trocando de integrantes, e muito poucos
permanecendo do início do movimento na cidade.
Os três grupos pesquisados
expressam essa realidade:
• O grupo Processo Hip Hop - Formou-se
no início de 1998 e teve uma vida relativamente curta,
extinguindo-se no final de 1999. Era formado por três jovens, com idade
variando de 17 a 22 anos, sendo dois negros e um branco, todos moradores do
Aglomerado da Serra, região centro-sul da cidade. É um exemplo de grupos que se
formam e se desfazem sem ganhar maior projeção na cena rap, não tendo CD nem fita demo gravados.
• O grupo Máscara Negra- É um grupo formado, desde 1996, por três integrantes, todos negros,
sendo dois com 20 anos e um com 27 anos. Tem projeção na cena rap, tendo sido escolhido o melhor grupo
de rap em 1997. O grupo não tem
nenhum CD gravado, apenas fita demo.
• O grupo Raiz Negra - Formou-se no início dos anos 1990, sendo o mais antigo dos
grupos pesquisados e um dos poucos desse período que ainda permanecem ativos. É
formado por quatro integrantes, três deles negros, com idade
variando de 24 a 28 anos. Dentre os grupos pesquisados, é o que apresenta o
perfil mais profissional, possuindo um CD gravado.
A experiência desses jovens
nos grupos musicais revela múltiplos significados, interferindo diretamente na
forma como se constroem e são construídos como sujeitos sociais e como elaboram
determinada identidade individual e coletiva.
Um primeiro aspecto a ser
salientado é a dimensão da escolha. Recuperando a trajetória dos grupos,
constatamos inicialmente que todos os jovens aderem ao estilo como consumidores
do gênero musical. A passagem para a condição de produtores significou para
todos um processo de envolvimento gradativo. É possível perceber alguns fatores
comuns que explicam a escolha que realizam: o lugar social que ocupam e o
capital cultural a que têm acesso, os poucos pré-requisitos do rap para a produção cultural, a
identidade com o ritmo e a temática abordada pelo estilo, dentre outros.
Significa dizer que a escolha e a adesão ao estilo são frutos de uma complexa
trama na qual estão presentes os determinantes sociais, mas também a expressão
da subjetividade.
Mas o exercício da escolha
não se dá apenas no momento da adesão ao estilo. Os jovens revelam que em
vários momentos ocorreram dúvidas e crises, quando se perguntavam a si mesmos
se o caminho era realmente o da música. Alguns se afastaram para depois
retornar; outros, como o Processo Hip Hop, se dissolveram.
Mostram, assim, que a trajetória no estilo não está separada da vida, com as
suas dúvidas e perplexidades, quando deparamos sempre com a necessidade de
escolher.
Outro aspecto que ganha
importância na vida de cada um é a experiência, comum a todos, como produtores
culturais. Como já observamos, todos só cantam suas próprias músicas, sendo
muito raro cantarem músicas de outros grupos, o que envolve um exercício da
criatividade. Geralmente o processo de produção das músicas é individual e
coletivo, sendo um momento rico de trocas entre os integrantes do grupo quando
todos discutem, opinam e interferem na criação. Todos são autodidatas, mas
expressam o desejo de estudar música e algum instrumento, condição essencial
para a profissionalização.
Em cada grupo sempre existe
um que tende a compor as "rimas", através das quais desenvolvem uma
interpretação poética de si mesmos e da condição social em que vivem. Para
muitos deles, compor a letra é um momento de extravasar, de traduzir em forma
de poesia os sentimentos que vivenciam:
Escrever as letras é tipo assim, uma muleta, quando eu ‘tô’ sentindo muita melancolia, quando eu ‘tô’ sentindo muitas vezes só, eu sento e escrevo... Eu sempre escrevo quando eu ‘tô’ muito melancólico... (Nilson, 25 anos)
Nessa produção poética, a
estrutura das letras, a fidelidade ao território e a explicitação de uma
temática social são elementos identificadores do rap em qualquer lugar, seja no Brasil ou nos Estados Unidos. Ao
mesmo tempo, o conteúdo poético tende a refletir o lugar social concreto onde
cada jovem se situa e a forma como elabora suas vivências, numa postura de denúncia
das condições em que vive: a violência, as drogas, o crime, a falta de
perspectivas, quando sobreviver é o fio
da navalha. Mas também cantam a amizade, o espaço onde moram,
o desejo de um "mundo perfeito", a paz. Como diz um deles, eu sou um mero observador do comportamento
do ser humano... num tenho estudo, num sou nada, mas eu fico observando o
comportamento das pessoas. Nesse sentido, o rap pode ser visto como uma crônica da realidade da periferia.
Eles atribuem a si mesmos o
papel de "porta-vozes" da periferia, um dos elementos da identidade
do estilo. Alguns deles se atribuem a "missão" de problematizar a
realidade em que vivem através das músicas que cantam, com a pretensão de
"conscientizar os caras" dos problemas e
riscos que o meio social lhes impõe:
O que a gente passa com a música é um pouquinho de consciência, de amor próprio, de auto-estima... a gente quer levar o nosso povo pra frente, a minha vontade é essa, de revolucionar, abrir a cabeça de um e de outro para eles terem consciência e saber o que está fazendo, aprender o direito deles, nem que for um pouquinho, entendeu? (Pedro, 26 anos, rapper)
Para muitos desses jovens, o
rap torna-se uma forma de intervenção
social, mas em outros moldes. Por meio da linguagem poética, do corpo, do lazer
propõem uma pedagogia própria, que tem como um dos
instrumentos a polêmica. Talvez esteja aí uma das dificuldades de estabelecerem
um diálogo com as organizações políticas do mundo adulto, como sindicatos,
partidos e até mesmo o movimento negro, diante dos quais se mostram
desconfiados, mantendo distanciamento. Ao mesmo tempo, os grupos Máscara Negra e Raiz Negra desenvolvem esporadicamente algumas atividades sociais,
como oficinas de hip hop em
escolas públicas e festas beneficentes.
Um momento muito
significativo para todos os grupos são as apresentações que realizam. Para
muitos, é no palco que se sentem verdadeiramente rappers. A freqüência e o caráter
dos shows são diferentes entre os grupos: enquanto o Processo Hip Hop tem
um número limitado de apresentações e sempre em eventos no próprio bairro, o Raiz Negra e o Máscara Negra se apresentam com mais regularidade tanto em eventos
quanto em festas promovidas em danceterias no centro da cidade. Todos os jovens
reforçam a importância dos shows na vida de cada um. Alguns ressaltam a emoção
e o prazer - a maior adrenalina - de
estarem no palco mostrando o resultado da sua produção. Outros ressaltam a
auto-afirmação do que os shows representam, sendo uma forma de resgatar a
própria dignidade:
Trabalhava de faxina e o maior orgulho meu era estar lá fazendo faxina e quando eu chegava no palco eu era um rapper, entendeu? Eu tenho pouco estudo, nunca tive um emprego bom, mas eu tenho uma cabeça pra revolucionar, eu tenho dignidade porque eu chego em casa e sou um rapper, tenho uma missão... (Pedro, Máscara Negra)
Outros ainda enfatizam a
importância de serem reconhecidos no próprio meio em que vivem. Podemos dizer
que, para esses jovens, aderir ao estilo possibilitou-lhes a abertura de novos
espaços, onde eles passaram a se colocar na cena pública em outros termos, como
artistas, como criadores, como sujeitos de um projeto. Nesse sentido, o rap é um meio de que se servem para articular uma auto-imagem positiva, uma forma de
se afirmarem como "alguém" numa sociedade que massifica e os
transforma em anônimos. Ao mesmo tempo, através das letras das músicas, do
corpo e do visual que valorizam a estética negra, na afirmação positiva do
espaço da periferia, o rap
possibilita a muitos desses jovens reelaborar a experiência social imediata em
termos culturais, traduzida em forma de autoconsciência diante do processo de
segregação espacial e dos preconceitos sociais e raciais que se acirram em Belo
Horizonte, possibilitando a construção de uma identidade positiva como pobres e
negros.
Por outro lado, podemos
constatar que o estilo proporciona algumas circunstâncias centrais na
construção de uma identidade juvenil: a música e um quadro de referências
comuns por meios dos quais fazem uma leitura da realidade; as práticas
coletivas, tanto na produção musical quanto na fruição do lazer; além de um
conjunto de ícones que os distinguem do mundo adulto.
Para grande parte deles, a
adesão ao estilo se deu na adolescência, coincidindo com um momento no qual procuravam
romper com tudo aquilo que os prendia ao mundo infantil, buscando outros
referenciais para a construção da identidade fora da família, onde o grupo de
amigos passa a cumprir um papel fundamental. Desde então, o rap funcionou como uma referência para a
escolha dos amigos, bem como das formas de ocupação do tempo livre.
Inicialmente centrada no bairro, o envolvimento com o
estilo e a participação nos eventos proporcionaram a quase todos uma ampliação
da rede de relações, estimulando-os a se apropriarem da cidade.
As redes de relações
construídas em torno do rap
apresentam densidades distintas, o que leva os jovens a distinguir entre "colegagem" e amizade. Aquela é mais fluida, e esta é
uma relação que traz uma conotação familiar, de "irmão", quase sempre
presente nas relações que se constroem no grupo musical. Em cada um deles a
rotina de encontros entre os seus integrantes é variável, dependendo do ritmo
dos ensaios e da disponibilidade para o lazer de cada um.
Uma característica desses
grupos é a sua rotatividade. Todos narram uma trajetória na qual há um contínuo
nascer e renascer de grupos, fazendo com que o percurso de crescimento e as
experiências de agregação sejam muito dinâmicos e singulares. Essa
descontinuidade dos grupos e das relações pode ser vista como uma
característica da própria da condição juvenil, e não tanto do estilo em si.
Mas o grupo é sempre uma
referência muito forte, aparecendo como um espaço privilegiado de investimento emocional
e de construção de relações de confiança, numa complexa trama de conflitos e
acordos, em um equilíbrio instável. Mas em todos eles parece que a
individualidade dos seus membros é assegurada, fazendo com que as relações
sejam uma contínua negociação com as diferenças e os desejos individuais. Essa
característica, perceptível em todos os grupos, parece mostrar a necessidade
que os jovens têm de garantir espaços, tempos e projetos individuais no
coletivo. Podemos dizer, com Torti (1994, p. 62), que
sinalizam para novas formas da sociabilidade na sociedade contemporânea, que
"induzem dinâmicas recíprocas de distanciamento e aproximação. Nós nos
aproximamos para depois nos distanciarmos num jogo entre necessidades de
agregação e exigências de espaços de individuação...".
Mas as relações não se
reduzem ao grupo, estendendo-se a uma rede de "colegagem".
Encontram-se nos momentos de lazer, nas festas e nos eventos. Mesmo não
estabelecendo relações mais próximas, existe uma solidariedade própria para com
quem se sente parte de um mesmo movimento. Os programas de lazer são um pouco
desiguais no ritmo e na qualidade, dependendo do momento de vida de cada um.
Para aqueles mais novos, existe uma procura constante de programas, mobilizados
pela diversão e pelo desejo de estarem juntos com a turma de amigos. A
centralidade do lazer e dos amigos tende a se transformar com o avanço da
idade, dos compromissos afetivos com as esposas ou namoradas e das
responsabilidades que cada um vai assumindo, diminuindo a sua intensidade. No
geral, os programas mais comuns são a freqüência à casa de amigos, os bares e
as festas de rap, que lhes abrem as
possibilidades de um lazer além da sua região, gerando um deslocamento que
desafia a lógica perversa da metrópole, que tende a
segregá-los nos bairros distantes da periferia, tornando-se uma forma possível
de ocupação da cidade.
Os jovens e o funk
O funk em Belo Horizonte é herdeiro
direto dos bailes black
que se difundiram na periferia da cidade desde os anos 1970. Até o início da década
de 1990, os jovens freqüentadores dos bailes não se identificavam ainda como funkeiros,
agregando-se em torno da música e no prazer da dança. Nos bailes não havia,
como não há, uma fidelidade a um estilo musical, convivendo os mais diferentes
sons eletrônicos, além do rock e até do pagode. Foi nos meados dessa década que
começam a aparecer os "mestres de cerimônias" (MCs) locais, duplas ou grupos que cantavam suas músicas,
influenciados pelo processo de nacionalização do funk iniciado no Rio de Janeiro.
Foi quando começou a se delinear, de fato, o funk como estilo, com os jovens
se identificando como funkeiros.
A cena funk
na cidade está presente no circuito cultural formal, em grandes danceterias e
programas em rádios comerciais, mas também no circuito alternativo, nos bailes
promovidos nos bairros, em quadras cobertas ou em escolas. Isso se deve à
característica do estilo ser baseada nos bailes, um tipo de
lazer que tradicionalmente atrai uma massa de jovens, quer se
identifiquem como funkeiros,
quer não.
O funk, na forma como veio sendo
construído em Belo Horizonte, é uma reelaboração do estilo difundido no Rio de
Janeiro. Não significa, porém, que haja uma imposição linear da mídia na
produção do estilo local. O que podemos constatar é um processo por meio do
qual os jovens se apropriam do estilo difundido pelos meios de comunicação e o
reelaboram a partir das condições concretas em que vivem, dos recursos de que
dispõem, excluindo elementos ou ressignificando
práticas.
Essa constatação põe em discussão
os processos de difusão cultural no contexto de uma sociedade cada vez mais
globalizada. O estilo funk,
mas também o estilo rap,
como expressões de uma cultura juvenil, não podem ser vistos como
resultado de uma progressiva homogeneização e massificação cultural, que
homologaria a um único registro uma produção cultural juvenil,
independentemente das condições estruturais concretas nas quais esses jovens
estariam inseridos.
Ao contrário, a realidade
dos grupos de rap e funk e a história
de cada um deles na cidade apontam para a existência de uma identidade própria
a esses rappers e
funkeiros. Uma identidade que é
fruto de uma reinterpretação dos sons e ícones
associados a esses estilos, numa construção em que os sentidos que lhe são
atribuídos expressam não só as condições estruturais nas quais se situam, mas
também o próprio contexto cultural do meio social no qual vieram se construindo
como sujeitos. Nesse sentido, concordamos com Sansone
(1997, p. 171), quando questiona as teses de homogeneização de uma cultura
juvenil, mostrando que, "ao lado de uma inquestionável globalização do
universo da cultura juvenil, mantém-se uma série de aspectos locais,
determinados por uma história local e contextos específicos", fazendo com
que o "local" reinterprete o "global" de formas
diferenciadas.
O funk será refletido a partir da
realidade de três grupos pesquisados:
• A dupla Flavinho e Maninho - Ambos têm 17 anos, são brancos e moram com os pais. Começaram a cantar juntos no início de 1998 e atualmente fazem parte da
equipe de DJ Vitor, a qual acompanham nas festas promovidas quase sempre na
região norte da cidade. Já participaram de uma coletânea, com uma música
gravada, além de vários CDs demo.
• A dupla Marcos e Fred - Cantavam juntos desde 1995,
separando-se no final de 1998. Marcos é branco e tem 18 anos; Fred é negro e
tem 19 anos. Eles são um bom exemplo de centenas de duplas que se formam,
ganham alguma projeção, mas depois se desfazem, desiludidas com as perspectivas
profissionais abertas pelo mercado musical. Por dois anos fizeram parte da
equipe Funk Music, do DJ
Vitor, fazendo shows em Belo Horizonte, no interior de Minas Gerais e no
Espírito Santo. Chegaram a ter suas músicas gravadas
em dois CDs coletânea, que tiveram certa repercussão no meio funk em BH.
• Os Cazuza - O grupo
formou-se em 1996, contando com quatro integrantes, todos negros, com idade
variando entre 19 e 21 anos, sendo dois deles casados. Gravaram uma música em
um CD coletânea, e na época se dividiam entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro,
tentando a gravação de um CD e a contratação por alguma equipe carioca.
Para esses jovens, aderir ao
funk
significa uma escolha, condicionada pela própria condição juvenil e o campo de
possibilidades com o quais se deparam. Os fatores são semelhantes aos do rap: a atração pelo ritmo e pela dança,
a inexistência de maiores pré-requisitos para a produção musical e a influência
da mídia. Mas o que parece ter influenciado de fato na decisão dos jovens em se
tornarem MCs foi a
identificação com o clima de alegria característico dos bailes, além de se
destacarem diante dos seus pares e, principalmente, das meninas. Assim, a
escolha pelo funk
expressa determinada forma de vivenciar a condição juvenil, com ênfase na
diversão e na alegria que os bailes representam.
Da mesma forma como no rap, os MCs se
colocam como produtores culturais, mas pouco interferem
na produção das bases musicais, uma tarefa dos DJs e
de seus pequenos estúdios espalhados pela periferia. A música funk,
diferentemente da música rap, não tem
muito sentido em si mesma, cumprindo o seu papel efetivo como meio de animação
dos bailes. Assim, a produção musical é caracterizada pela transitoriedade, por
ser descartável, executada por um período relativamente curto, sendo logo
substituída por outra. Os temas abordados são diretamente ligados ao universo
das vivências juvenis, sendo comum abordarem as relações afetivas, a descrição
de bailes e sua animação ou temas jocosos de situações ocorridas na cidade,
além da exaltação das diferentes galeras. Outras características presentes em
várias letras são a exaltação da paz e a crítica às brigas, numa resposta
possível às situações de violência que ocorriam em alguns bailes.[11]
Os temas expressam aspectos
da vivência juvenil, não deixando de ser uma forma de refletirem sobre si
mesmos e resgatarem o prazer e o humor que são tão negados em um cotidiano
permeado pela lógica instrumental dominante, o que é coerente com o sentido que
atribuem a si mesmos como MCs - serem os mensageiros
da alegria, promovendo a agitação da galera.
O MC tem a obrigação de levantar a galera, incentivar mesmo, procurar passar uma paz, um agito, um ânimo pro pessoal pular mesmo, balançar, soltar os cachorros. Eu acho que o MC se expressa num modo de progredir a festa, fazer a festa encaminhar... (Flavinho,17 anos)
Se o rappers se vêem como porta-vozes da
periferia, assumindo a dimensão da denúncia, os MCs
se percebem como aqueles que contribuem para criar a alegria da festa. Assumem,
assim, dimensões particulares de uma mesma realidade, pontuando questões
cruciais vividas pelos jovens.
Para esses jovens, ser um MC
é uma experiência muito marcante. Assim como os rappers, para os jovens funkeiros o estar
no palco é fonte de emoção e prazer:
Nó, cara, é bom demais, né, ver aquele povo lá, a gente entrar e a massa ir ao delírio! Depois gritando: "Marcos e Fred! Marcos e Fred!" isso e aquilo, é gostoso demais... quando a gente sobe a gente treme, vem uma adrenalina! Dá uma vontade de esgoelar, sair gritando, pular lá em baixo, curtir com o pessoal mesmo... (Fred, 18 anos)
Participar de shows e ter
suas músicas difundidas nas rádios é o desejo mais imediato desses jovens.
Essas são formas de participação que os destacam da multidão anônima,
permitindo-lhes que se sintam alguém, com reflexos na auto-imagem. Ao mesmo
tempo, proporciona-lhes descobrir e desenvolver as próprias potencialidades,
como compor e cantar, tornando-os sujeitos criativos.
Como jovens, o grupo de
amigos, ou a galera, constitui uma
referência importante. E para esses MCs o grupo de
amigos mais próximo se articula em torno do funk. Os companheiros de dupla
tendem a se tornar os amigos mais próximos, sendo com eles que se encontram com
mais freqüência, conversam sobre os problemas ou casos afetivos, numa relação
mais íntima. Mas, assim como no rap,
existe uma mobilidade muito grande de grupos e duplas,
expressão de um momento de experimentações, típico da condição juvenil. Também
o funk
possibilitou a esses jovens a ampliação da rede de relações. Por meio dos
bailes e shows, estabeleceram uma rede de relações amplas - os conhecidos - que não possui uma
estrutura de coesão tão forte entre aqueles que dela participam: reconhecem-se
no funk,
compartilham situações lúdicas, encontram-se nos bailes, sentindo-se parte de
uma rede simbólica (Arce, 1999).
Para esses jovens, o estilo
se constrói em torno dos bailes. Este é o elemento central a partir do qual se
articula a identidade do funk.
É neles que podem expressar os outros elementos: o encontro com os amigos, o
gosto pela música funk,
um determinado jeito de dançar e, principalmente, a oportunidade de se
mostrarem como MCs. Podemos dizer que o baile funk representa,
antes de tudo, a celebração da amizade, o espaço por excelência para viverem
dimensões constitutivas da condição juvenil: a explosão emocional da alegria, a
identificação coletiva, o sentir-se em grupo. Vianna (1987, p. 58) reforça essa
dimensão ao afirmar que "as pessoas freqüentam o baile não por um tipo de
música, mas principalmente pelo ambiente, isto é, as outras pessoas, os amigos
que se encontram e se divertem juntos, a alegria de viver em bando". Dessa forma, o baile funk constitui um
espaço de sociabilidade, uma massa composta por grupos de amigos e galeras. Pode
ser visto como uma opção de agrupamento metropolitano, numa reação possível à
massificação da sociedade contemporânea.
Mas, afinal de contas, o que
é ser funkeiro?
A própria definição é fluida, como diz o Marcos:
O funk é um modo de pensar, d'ocê estar de bem com a vida... mas não é uma idolatria, um tipo de religião como o rap, é mais um modo d'ocê estar solto com a vida, não num modo de não ter responsabilidade, mas d'ocê ser alegre...
Esse depoimento parece
esclarecer os contornos da identidade desses jovens com o funk. Ser funkeiro não implica um conjunto
de valores e comportamentos comuns, como uma "religião", mas
constitui uma forma determinada de vivenciar as demandas dessa fase da vida. A
identidade do funk
é a oferecida pelo estilo de possibilidades de viver e expressar as pulsões, os
desejos e as necessidades que caracterizam a condição juvenil. Tanto é que não
existe nenhuma exigência de coerência entre o comportamento pessoal e o
comportamento como um MC, o que vimos existir entre os jovens que aderem ao rap. Outro elemento é a questão da cor e
da origem social, quando parecem não estabelecer relações entre o funk e a
identidade étnica ou como pobres. Enfim, podemos dizer que, diferentemente do rap, o funk não se coloca como espaço de
construção de uma identidade como negros e pobres.
Essas considerações indicam
que a identidade que esses jovens constroem como funkeiros é fluida
e efêmera, uma imbricação com elementos simbólicos apropriados da cultura
popular, da indústria cultural em geral, como manifestação cultural
híbrida. Essa identidade apresenta-se como uma fronteira provisória e móvel,
operando a partir de múltiplos registros na construção mais ampla de uma
identidade desses sujeitos como jovens. Podemos dizer que o funk é parte de determinado
estilo de vida juvenil, um marco identitário que contribui para que esses
jovens possam vivenciar e se afirmar como sujeitos numa determinada fase da
vida.
As experiências desses jovens
rappers e funkeiros nos
levam a constatar que eles vieram se construindo e sendo construídos como
sujeitos sociais numa complexidade de espaços e tempos, estabelecendo múltiplas
relações a partir do seu meio social, mas com uma referência central nos grupos
musicais e na sociabilidade que produzem. Nesse processo, é evidente como eles
encontram poucos espaços nas instituições do mundo adulto para construir
referências e valores por meio dos quais possam se construir com identidades
positivas, colocar-se na cena pública como sujeitos, como cidadãos que são. A
sociedade não lhes oferece muitas perspectivas. O mundo do trabalho lhes fecha
as portas, a escola se mostra distante, não conseguindo entender nem responder
às demandas que lhes são colocadas. Apesar de motivados e envolvidos com a
música, não encontram estímulos e espaços para aprimorar o potencial criativo
que demonstram, não existindo em Belo Horizonte uma política cultural que os
contemple.
Nesse contexto o rap e o funk cumpriram e vêm cumprindo um
papel significativo na vida desses jovens. Um primeiro aspecto diz respeito ao
exercício da criatividade. Os estilos rap
e funk
possibilitam que esses jovens se introduzam na cena pública para além da figura
do espectador passivo, colocando-se como criadores ativos, contra todos os
limites de um contexto social que lhes nega a condição de criadores. Dessa
forma, a experiência nos grupos musicais assume um valor em si, como exercício
das potencialidades humanas. A música que criam, os shows que fazem, os eventos
culturais dos quais participam aparecem como forma de afirmação pessoal, além
do reconhecimento no meio em que vivem, contribuindo para o reforço da
auto-estima. Ao mesmo tempo, através da produção cultural que realizam,
principalmente o rap e seu caráter de
denúncia, colocam em pauta no debate público o lugar
social do pobre e da pobreza.
Mas cada um dos estilos
possui a sua especificidade. A melhor forma de caracterizá-las é pelo duplo
sentido que a palavra "diversão" oferece. Em um deles temos a
diversão como ato ou efeito de distrair ou distrair-se: falta de atenção,
abstração, irreflexão, esquecimento, divertimento (do latim, distractione). É
o sentido do funk,
no qual predominam as emoções, mediadas pela música. Podemos ver nele a
expressão do direito legítimo dos jovens à alegria, à fruição, ao prazer. Por
outro lado, a diversão surge como um ato ou efeito de divergir: mudança de
direção, desvio (do latim, diversione). É o sentido do rap. Mais do que o funk, o estilo rap
estimula o jovem a refletir sobre si mesmo, sobre seu lugar social,
contribuindo para a ressignificação das identidades do jovem como pobre e
negro. Ao mesmo tempo, ele cria uma forma própria de o jovem intervir na
sociedade, por meio das suas práticas culturais. Mas não significa
necessariamente que se coloque como uma forma de resistência ou mesmo como uma
expressão política de oposição de classe. Prefiro ressaltar o seu sentido
formativo, detectado numa pedagogia que parece gestar entre eles. Uma pedagogia
da palavra, emitida pelas letras, por meio da qual não pretendem impor uma
compreensão da realidade, mas "fazer o cara pensar", como nos
disseram vários deles. Uma pedagogia na qual há o respeito pela diversidade,
quando propõem que o outro, na sua condição de indivíduo, pense por si mesmo e
tire suas próprias conclusões. Essa postura é coerente com as relações que
estabelecem nos grupos, em que o coletivo não subsume o individual, o
"nós" não abdica da condição do "eu".
Apesar dessas
especificidades, podemos constatar significados comuns aos dois estilos. Um
deles diz respeito à dimensão da escolha. O rap
e o funk se
colocam como um dos poucos meios pelos quais os jovens puderam exercer o
direito às escolhas, elaborando modos de vida distintos e ampliando o leque das
experiências vividas. Essa dimensão se torna mais importante quando levamos em
conta que é o exercício da escolha, junto com a responsabilidade das decisões
tomadas, uma das condições para a construção da autonomia. Se a escolha e a
autonomia são frutos de aprendizagens, podemos nos indagar: Quais os espaços
que esses jovens encontram no mundo adulto onde possam exercitar a prática de
escolhas responsáveis, onde possam ir construindo-se como sujeitos autônomos?
Outra dimensão é a
possibilidade que esses estilos proporcionam de vivência da condição juvenil.
Para a maioria dos jovens pesquisados, os estilos funcionaram como um rito de
passagem para a juventude, fornecendo-lhes elementos simbólicos, expressos na
roupa, no visual ou na dança, para que pudessem construir uma identidade
juvenil. Desde então, passaram a ser uma referência para a escolha dos amigos,
bem como para as formas de ocupação do tempo livre, duas dimensões - o grupo de
pares e o lazer - constitutivas da condição juvenil. A
convivência continuada no grupo ou na dupla possibilitou a criação de relações
de confiança e a aprendizagem de relações coletivas, servindo também de espelho
para a construção de identidades individuais.
Todos enfatizam que a adesão
aos estilos gerou uma ampliação dos circuitos e redes de trocas, evidenciando o
rap e o funk como produtores de
sociabilidades. A dinâmica das relações existentes, o exercício da razão
comunicativa, a existência da confiança, a gratuidade das relações, sem outro
sentido que não a própria relação, são aspectos que apontam para a centralidade
da sociabilidade no processo de construção social desses jovens. Nesse sentido,
os estilos podem ser vistos como respostas possíveis à despersonalização e à
fragmentação do sistema social, possibilitando-lhes relações solidárias e a
riqueza da descoberta e do encontro com os outros.
Podemos concluir constatando
que o rap e o funk, mesmo com abrangências
diferenciadas, significaram uma referência na elaboração e vivência da condição
juvenil, contribuindo de alguma forma para dar um sentido à vida de cada um,
num contexto onde se vêem relegados a uma vida sem sentido. Ao mesmo tempo, o
estilo de vida rap e funk possibilitou
a muitos desses jovens uma ampliação significativa do campo de possibilidades, abrindo
espaços para sonharem com outras alternativas de vida
que não aquelas, restritas, oferecidas pela sociedade. Querem ser reconhecidos,
querem uma visibilidade, querem ser alguém num contexto que os torna
invisíveis, ninguém na multidão. Querem ter um lugar na cidade, usufruir dela,
transformando o espaço urbano em um valor de uso. Enfim, querem ser jovens e
cidadãos, com direito a viver plenamente a sua juventude. Este parece ser um
aspecto central: pelos estilos rap e funk, os jovens
estão reivindicando o direito à juventude.
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Recebido em 25.02.2002 Aprovado em 03.05.2002
* Juarez Tarcisio Dayrell é formado
em Ciências Sociais pela UFMG. Tem vários artigos publicados além do livro Múltiplos olhares sobre educação e cultura,
pela Editora da UFMG. Atualmente é professor-adjunto na Faculdade de Educação
da UFMG.
[1]. Nos limites deste texto não cabe
desenvolver uma discussão sobre violência e juventude, que se torna cada vez mais
séria, com índices alarmantes de homicídios envolvendo jovens. Como denunciou o
juiz Geraldo Claret, do Juizado da Infância e da
Juventude de Belo Horizonte, morrem assassinados na cidade,
por ano, uma média de 400 jovens de 12 a 20 anos (Estado de Minas, 13/10/2001). Mas é importante ressaltar a
necessidade de uma maior problematização deste tema, superando as análises
reducionistas que fazem uma vinculação linear da violência à pobreza ou, pior,
levam a generalizações preconceituosas que fazem de todo
jovem pobre um marginal em potencial, aumentando o fosso social já
existente na nossa "cidade partida".
[2]. Os dados empíricos utilizados são
resultado da pesquisa que resultou na tese de doutorado intitulada: A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da juventude em Belo
Horizonte, apresentada na Faculdade de Educação da USP em julho de 2001.
Nela, partimos de um universo de 146 grupos musicais juvenis, de onde foram
escolhidos seis grupos de rap e funk, a partir
dos quais discutimos os processos de socialização.
[3]. Reafirmo que estou me baseando na
realidade dos dezoito integrantes dos três grupos de rap e três de funk pesquisados. Esses jovens se situam, na sua maioria, na
faixa etária entre 17 e 24 anos, sendo que apenas quatro deles estão acima
dessa idade. Catorze deles são solteiros, morando com os pais, e apenas quatro
são casados.
[4]. A noção de crise é utilizada não
no sentido de ruptura, de caos, mas de mutações e recomposições profundas nas relações
sociais, nas quais se esgotam modelos anteriores e ainda não estão delineadas
as novas relações, como sugere Melucci (1994).
[5]. Ver Dayrell
(1999).
[6]. Estou entendendo
"estilo" como uma manifestação simbólica das culturas juvenis,
expressa em um conjunto mais ou menos coerente de elementos materiais e
imateriais, que os jovens consideram representativos da sua identidade
individual e coletiva. Na construção de um estilo, os jovens escolhem
determinado gênero musical que consomem, criam um tipo de visual e espaços
próprios de diversão e atuação. Assim o estilo pressupõe o cruzamento dos
campos do lazer, do consumo, da mídia e da criação cultural (Dayrell,1999;
2001).
[7]. A mixagem é a mistura de músicas
feita pelo DJ, que utiliza o aparelho mixer.
[8]. O scratch consiste na obtenção de
sons girando manualmente o disco sob a agulha em sentido contrário, produzindo
efeitos sonoros próprios.
[9]. Para maiores detalhes da história
do hip hop; ver,
dentre outros, Dayrell (2001), Sposito
(1993), Silva (1998) e Tella (2000). Para uma
história do funk,
ver Vianna (1987) e Herschmann (1997, 2000).
[10]. O MC é o mestre de cerimônia, como
se autodenominam os cantores de funk, quase sempre formados por duplas.
[11]. A pesquisa foi concluída antes da meteórica
ascensão do funk
em 2000, não sendo pois objeto de análise desse trabalho. Mas é necessário
pontuar a estigmatização promovida pela mídia, numa negação do estilo. As
críticas sobre a qualidade das letras, o machismo, a erotização
pública exagerada, etc., se são até certo ponto pertinentes, não levam em conta
que os jovens expõem na cena pública as contradições do tecido social. Eles
expressam, nas músicas e na dança, o caldo de cultura em que estão
inseridos, fruto das condições em que vivem e do acesso que possuem aos
bens simbólicos. Mais do que negar, é preciso aprofundar-se nos seus múltiplos
significados.
Como citar este artigo:
Formato ISO
DAYRELL, Juarez. O rap e o funk na socialização da juventude. Educ. Pesq., jan./jun. 2002, vol.28, no.1, p.117-136. ISSN
1517-9702.
Formato Documento Eletrônico (ISO)
DAYRELL, Juarez. O rap e o funk na socialização da juventude. Educ. Pesqui. [online]. jan./jun. 2002, vol.28, no.1 [citado 27 Junho 2003], p.117-136. Disponível na World Wide Web: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022002000100009&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1517-9702.