O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O SISTEMA RECURSAL NO PROCESSO PARA APURAÇÃO DE INFRAÇÃO PENAL: UM PROCESSO GARANTISTA?
Sumário
1. O Estatuto da Criança
e do Adolescente – 2. A Responsabilidade Penal Juvenil – 3. Sistema Recursal –
4. Do não conhecimento do Recurso de Apelação – 5. Da Renúncia ao Apelo – 6.
Conclusões – 7. Bibliografia
1. O Estatuto da
Criança e do Adolescente
Na esteira do texto
constitucional de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069
de 13 de julho de 1990 – caracterizou-se como verdadeira ruptura com o modelo
até então vigente e orientador do antigo Código de Menores – Lei nº 6.697/79 –
que adotava a Doutrina da Situação Irregular.
Encontrando suas mais
recentes raízes na Convenção sobre o Direito da Criança, aprovada pela
Assembléia Geral das Nações Unidas e na adesão pelo Brasil,
em 1990, a Doutrina da Proteção Integral, que se baseia no
reconhecimento de todos os direitos da criança e do adolescente e tem por base
a satisfação dos interesses e necessidades das pessoas com até dezoito anos de
idade, vislumbra não apenas questões de ordem civil envolvendo crianças e
adolescentes, mas também de ordem penal, contemplando a prática de atos
infracionais por jovens autores e outorgando-lhes a condição de "sujeitos
do processo", detentores de direitos e obrigações, obedecida, é claro, sua
condição de pessoa em desenvolvimento.
A doutrina da proteção
integral, levando em conta o adolescente infrator, estabelece direitos e
garantias postas na Constituição Federal e na Convenção firmada pelo Brasil, de
forma a manter a inimputabilidade dos menores de dezoito anos de idade,
conforme determinado no artigo 228 da Constituição Federal, sem, entretanto,
descuidar da prática do ato infracional praticado pelo adolescente, prevendo, à
semelhança do Código Penal brasileiro, além das medidas sócio-educativas vislumbradas,
a privação provisória da liberdade com internamento fechado, equiparando-a ao
regime fechado de cumprimento de pena.
Ao contrário,
entretanto, do sistema administrativizado previsto no
direito processual penal relativamente à execução das penas privativas de
liberdade, no que respeita ao cumprimento das medidas socioeducativas de
privação da liberdade, o ECA prevê uma série de
regramentos, que além de procurar evitá-las ao máximo, restringem-nas também
quanto ao período temporal de sua fixação.
Muito embora não se
possam afastar de todo as características da instituição meritocrática
definida por Foucault na obra Vigiar e Punir (Foucault, Michel. Vigiar e Punir
– Histórias da Violência nas Prisões. Editora Vozes
Ltda. Petrópolis, 1977), e tão bem analisada nas obras de Erwing
Goffman, Estigma (Goffman, Erwing. Estigma: NOTAS SOBRE A Manipulação da Identidade
Deteriorada. 4ªed. Editora Guanabara, 1988.) e Manicômios, Prisões e Conventos
(Goffman, Erwing.
Manicômios, Prisões e Conventos. 6ªed. Editora Perspectiva S.A, 1999.),
percebe-se uma nítida limitação do poder de punir estatal, em especial no que
diz respeito a utilização de um processo garantista a
ser observado.
2. A
responsabilidade penal juvenil
A "responsabilidade
penal juvenil" dos adolescentes, assim definida por João Batista da Costa
Saraiva (Saraiva, João Batista da Costa. Adolescente e Ato Infracional –
Garantias Processuais e Medidas Socioeducativas. Livraria do advogado
Editora. Porto Alegre, 1999, p.38.), como meio apto a responsabilizar o
adolescente pela prática dos seus atos, encontra bases doutrinárias na Carta
Política e nas Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça
da Juventude, caracterizando-se pela diferenciação das medidas socioeducativas
relativamente às penas criminais, quanto ao aspecto pedagógico e a sua duração.
Refere ainda, o citado
autor, que essa "imputabilidade" frente à legislação especial vem
prevista na própria Constituição Federal, quando dispõe, na segunda parte do
artigo 228 – que remete à legislação especial casos excepcionais como é o do
adolescente infrator – sendo que as medidas previstas como aplicáveis a esses
infratores, muito embora possuam características nitidamente retributivas e socioeducativas, traduzem-se em respostas
justas, adequadas e indispensáveis à repressão da delinqüência.
Assim, o Estatuto da
Criança e do Adolescente, hoje com dez anos de vigência, é considerado uma das
mais modernas legislações no âmbito da proteção dos direitos à criança e ao
adolescente em nível mundial, sendo poucas as legislações que têm disciplinado
a matéria com tão grande acuidade.
Nas palavras da
pesquisadora Annina Lahalle
(Lahalle, Annina. Estatuto
da Criança e do Adolescente Comentado. 3ªed. Malheiros, SP, 2000, pg. 31), a
legislação brasileira é a primeira legislação latino-americana a ter
incorporado em seu texto tanto as regras de proteção e de garantia dos direitos
do menor infrator como as de proteção da criança vítima de abandono ou outra
violência.
3. Sistema recursal
A despeito de traduzir as
mais modernas tendências na outorga das garantias fundamentais da criança e do
adolescente, o Estatuto descuida dos direitos e garantias individuais do
adolescente infrator quando escolhe o Código de Processo Civil como orientador
do sistema recursal relativamente à prática do ato infracional, criando, com
isso, uma evidente infração aos princípios constitucionais
orientadores de um processo penal garantista, se
comparado o adolescente infrator aos criminosos maiores de 18 anos que se vêem
tutelados pelo Código de Processo Penal, no que respeita ao devido processo
legal.
O equivocado
paralelismo entre processo civil e processo penal, mais uma vez se faz
presente, descurando, assim, o correspondente sistema
acusatório, equiparando-se à concepção de Carl Binding
que adotava o Código de Processo Civil para disciplinar também o processo penal.
Ao contrário do que
pressupõe o direito processual civil – composição da lide – o ato infracional
praticado por adolescente tem nítido caráter penal e sua apuração, conforme
dispõe o estatuto, obedece estritamente aos pressupostos processuais penais
básicos – tanto que a lei em comento repisa os dispositivos do Código de
Processo Penal na determinação do procedimento a ser observado e, ainda, na
caracterização de um direito penal de garantias autorizador de um sistema
processual acusatório.
Na esteira de James Goldschimidt (Goldschmidt, James.
Principio Generales del Proceso – Problemas
juridicos y politicos del processo penal. Ediciones Juridicas
Europa-America, Buenos Aires), tal procedimento
pressupõe a liberação de cargas probatórias pelas partes, na medida em que tem
interesse na busca da pretensão almejada.
Basta a simples
leitura dos artigos que evidenciam a apuração do ato infracional no Estatuto para
que se verifiquem assegurados ao adolescente um procedimento
orientado por princípios processuais de características garantistas
e, por isso mesmo, característicos de um sistema acusatório. Isso porque evidencia-se no Estatuto o fim primeiro de conferir aos
adolescentes, ainda que infratores, e às crianças a garantia dos seus direitos
fundamentais, somando-se aos mesmos as garantias de submissão a um procedimento
justo, adequado, isento de qualquer resquício ditatorial, em total
correspondência com os ditames Constitucionais (Prado, Geral. Sistema
Acusatório. Editora Lumen Juris,
Rio de Janeiro, 1999.).
Assim, quer pelo
conhecimento do ato infracional que lhe é atribuído; ou ainda, na interposição
da representação pelo Ministério Público; na determinação da igualdade de
partes estabelecendo o contraditório e a mais ampla defesa; na necessária
designação de advogado ao adolescente; ou ainda, na evidente e indispensável
instrumentalidade do processo correspondente; ou finalmente na característica
do juiz – natural e imparcial –, estão presentes no respectivo procedimento as
características de um sistema acusatório, observando-se, assim, o devido
processo legal previsto na Constituição Federal.
Em que pese o
indiscutível e moderno questionamento acerca do necessário direcionamento do
processo penal a um sistema acusatório, reclamado nas obras de Jacinto de
Miranda Coutinho (Coutinho, Jacinto Miranda. Separata ITEC!, ano I, nº4, p.01.)
e Salo de Carvalho (Carvalho, Salo
de. Aplicação da Pena e Garantismo. Lumen Juris, Rio de janeiro,
2001.) desvinculado de resquícios inquisitoriais e voltado à proteção dos
interesses individuais e sociais postos na Constituição e, via de conseqüência
comprometido com a questão da liberdade, como lembra Afrânio Silva Jardim (Jardim,
Afrânio Silva. Bases Constitucionais para um Processo Penal Democrático in
Direito Processual Penal, 7ªed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, p.317.),
característica de um Estado de direito, onde a validade e eficácia das normas
jurídicas se estabelecem em vista da leitura constitucional dos direitos
fundamentais e sociais caracterizados como expressão da soberania popular, numa
leitura heteropoiética (Cademartori, Sérgio. Estado de Direito e
Legitimidade: uma abordagem, garantista. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999, pg 162.) do ordenamento jurídico, capaz de impedir, do ponto de
vista político, o estabelecimento de um estado totalitário ou absolutista e, ao
invés disso submetendo a vontade do legislador aos interesses de toda uma
coletividade, o Estatuto fica aquém desses questionamentos, elevando ao mesmo
patamar e tratando de maneira assemelhada os recursos que contemplam matéria de
ordem eminentemente civil – guarda, tutela, adoção, ação civil pública, etc. –
e aqueles que dizem respeito a apuração do ato infracional do adolescente.
É nesse passo que se
vai verificar a desconstrução dos até aqui ressaltados princípios orientadores
de um processo penal acusatório
Se nas palavras de
Candido Rangel Dinamarco (Dinamarco,
Cândido Rangel. A Instrumentalidade do processo, 3ª ed. Malheiros. SP, 1993, pg
27.) o processo precisa refletir as bases do regime democrático, nele
proclamadas, caracterizando-se como o microcosmo democrático do Estado de
Direito, com as conotações da liberdade, igualdade e contraditório, em clima de
legalidade e responsabilidade, a legitimação da atividade jurisdicional no
dizer de Ferrajoli é a atuação dos juízes na busca do
caráter representativo da verdade substancial, sujeitando-se somente à lei
válida, porquanto constitucional. (Ferrajoli, Luigi. Derecho y
Razón – Teoria des garantismo Penal, 4ª ed. Editoril Trotta. Madrid,
2000, pg.69) Nessa sujeição do juiz à Constituição, onde reside o "principal
fundamento atual da legitimação da jurisdição e da independência do poder Judiciário,
frente aos poderes legislativo e executivo" (Ferrajoli,
Luigi. O Direito como Sistema de Garantias in O Novo em Direito e Política. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1997, pg. 101), tendo em
vista que os direitos e garantias são de cada um e de todos e sua garantia
exige um juiz terceiro independente que possa intervir para reparar injustiças
sofridas, se evidencia a crise da nova legislação menorista,
como ocorre na atualidade com o próprio direito penal.
Não se pode olvidar, é
bem verdade, que o avanço da legislação menorista
relativamente à tutela dos interesses do adolescente infrator, se opera, no
novo Estatuto, de forma a evidenciar os princípios da legalidade – orientador
de um direito penal garantista – e do devido processo
legal, inclusive no que respeita ao duplo grau de jurisdição – ao contrário do
antigo Código de Menores que, além de aplicação de medidas não devidamente
determinadas ou esclarecidas em seu bojo, previa recursos apenas em nível
administrativo, remetendo ao Conselho da Magistratura o julgamento dos recursos
referentes à matéria, deixando de estabelecer o procedimento digno da
preservação dos direitos fundamentais do adolescente infrator.
Além disso, é
indiscutível que a lei se demonstra imbuída de fazer valer seu espírito
garantidor dos princípios postos na Constituição Federal relativamente a seu
público alvo.
Entretanto, é de se
ressaltar que o equívoco operado quando da determinação do procedimento
recursal poderia ter sido, desde logo, dissipado estabelecendo-se um duplo
sistema recursal: aquele destinado à proteção dos interesses e garantias da
criança e adolescentes – de caráter eminentemente civil e por isso mesmo
regulado pelo Código de Processo Civil, no intuito de fazer valer a função do
processo civil que é a composição da lide; e um segundo, que diria respeito aos
procedimentos de atos infracionais – de caráter eminentemente penal e regulado
pelo Código de Processo Penal, para o fim da plena observância dos critérios
orientadores do devido processo garantista.
A divisão se impunha.
Tanto, que nos artigos reguladores do procedimento infracional é nítida a
preocupação do legislador para a caracterização daquilo que Luigi Ferrajoli, na sua obra Direito e Razão (Ferrajoli,
Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal,
4ªed. Editorial
Trotta, Madrid, 2000, p.372), definiu como os cinco
pilares orientadores de um processo penal garantista,
e tão bem analisados e subdividido, o último, para fins didáticos, por Aury Lopes Júnior, in "O fundamento da existência do
processo penal: instrumentalidade garantista"
(Lopes Jr, Aury Celso L. O fundamento da existência
do processo Penal: instrumentalidade garantista.
Revista da Ajuris, nº76, Associação dos Juízes do rio
Grande do Sul. Porto Alegre, dezembro de 1999, pg.208.).
Esses pilares, de
acordo com a subdivisão operada por Aury Lopes
Júnior, agora em número de seis – jurisdicionalidade,
inderrogabilidade, separação entre acusador e
julgador, presunção de inocência, contraditório e
fundamentação da decisão – servem de garantia instrumental aos direitos do
"imputado" seja ele menor infrator – responsável pela prática dos
atos infracionais que correspondam a crimes e contravenções – seja maior de
dezoito anos – responsável pela prática dos crimes definidos no Código Penal e
em leis especiais – de forma a minimizar os espaços impróprios da
discricionariedade judicial, oferecendo um sólido fundamento para a
independência da magistratura e ao seu papel de controle da legalidade do poder
(idem, ibidem).
É que assim caracterizado
o devido processo legal, constitui-se o mesmo em instrumentalidade das
garantias, tornando-as efetivas ao assegurar-lhes o máximo de imparcialidade,
verdade e controle. (Ferrajoli, Luigi. Derecho y razón.
pg. 537). Ademais, verificada essa correlação biunívoca entre garantias
penais e processuais é que se estabelece o nexo específico entre lei e juízo,
em matéria penal.
Impõe-se, pois, a
conclusão de que no caso do estatuto da criança e do adolescente, ocorreu a
quebra desse nexo específico entre lei e juízo, restando descaracterizado o
principal princípio processual garantista, qual seja,
o da jurisdicionalidade. Sem essa característica,
resta desconstruida qualquer possibilidade de
assegurar-se ao adolescente infrator, as garantias tão evidenciadas no
correspondente Estatuto, havendo severa afronta as mesmas, dando margem a
interpretações jurisprudenciais desviadas, com certeza, dos interesses buscados
quando de sua edição, distanciando-se de sua finalidade primeira.
4. Do não
conhecimento do recurso de apelação
Uma dessas interpretações
diz respeito ao não conhecimento dos recursos de apelação cujas razões sejam
juntadas em momento posterior ao da interposição do recurso; ou ainda, daqueles
cujas razões não sejam juntadas.
São decisões do
Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, as que seguem,
sobre a matéria:
"Menor.
Apelação: processo infracional. Nos processos infracionais contra menor, a
sistemática recursal adotada é a do CPP, segundo a qual, as razões de recurso
devem ser apresentadas junto com a petição recursal ou, no máximo, dentro do
respectivo prazo. Não conhecimento: não se conhece de apelo com razões
apresentadas a destempo. Inaplicação do CPP.” (Apelação-Cível
nº595.090.036. 7ª Câmara Cível. Relator Des. Waldemar
L. de Freitas Filho.); e
"Processual
civil. Apelação sem fundamentação – Não conhecimento. Não se conhece do recurso
de apelação, formulado sem fundamento, por falta de dialeticidade
ou razões de inconformidade recursal. Recurso não conhecido”. (Apelação-Cível nº 595.111.576. Câmara de Férias Cível.
Relator Des. Celeste Vicente Rovani).
Nesse mesmo sentido,
as apelações-cíveis de nº 595.154.022 e 596.003.210 da 7ª Câmara Cível; e ainda
595.202.110 e 596.005.926 da 8ª Câmara Cível.
Se o procedimento escolhido
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente correspondesse àquele previsto no
Código de Processo Penal, ao contrário do que verificamos hoje, estaria
estabelecido o nexo que vincula ao direito penal garantista
o processo penal garantista, pois indiscutível, do
ponto de vista do processo penal que qualquer recurso proposto dentro do prazo
legal – é claro que observados os casos de limitação da apelação, quando houver
– acompanhado ou não de razões recursais juntadas tempestiva ou
intempestivamente, são passíveis de conhecimento, como forma
de garantia da jurisdicionalidade, considerada a
jurisdição em seu sentido estrito, qual seja, típico de um estado de
direito, dentro de um sistema processual acusatório, e de um modelo processual
cognoscitivo, garantista, onde se estabelece a
verdade processual, observado, ainda, o princípio da presunção de inocência e
evidenciada a liberdade desse inocente, através da possibilidade da mais ampla
defesa.
Essa jurisdicionalidade que assegura ao "acusado" o
direito de ser julgado por um juiz "natural" e "imparcial",
que não pode declinar de suas funções, nem eximir-se
de proferir a correnspondente sentença, pressupõe a
devolução, ao segundo grau de jurisdição, de toda a matéria decidida no
primeiro grau, sendo defeso o não conhecimento do apelo por falta de motivação,
bastando que diga a parte que não se conforma com a decisão proferida, para ver
conhecido seu recurso. É isso que se depreende da leitura do artigo 599 do
Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial:
"O artigo 599
do CPP não determina ao recorrente que, no ato de interposição, dê a motivação
do recurso. No ordenamento procedimental o que se exige, apenas, e com rigor, é
que deixe patente, num lapso de tempo fatal e improrrogável, sua inconformidade
com a sentença." (Revista dos Tribunais, 563/349. No mesmo sentido, RT
553/390;544/349; 544/425-6; 574/384;552/350; 556/338).
Da mesma sorte, a não
apresentação das razões de apelo, pelo réu, não impede o conhecimento da
apelação e seu julgamento. É entendimento pacificado na jurisprudência pátria,
inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, do conhecimento do apelo formulado,
mesmo que não acompanhado das razões recursais, devendo o Magistrado de
primeiro grau remeter o recurso à superior instância em cumprimento ao previsto
no aludido artigo.
Nesse sentido, decisão
oriunda do extinto Tribunal de Alçada deste Estado, publicada na Revista dos
Tribunais de nº 678/369:
"Por força do
artigo 601 do CPP, subindo apelo sem as razões, é tido como pleno, posto
abranger não só apenamento, como também, e,
sobretudo, o mérito, com o que fica assegurada ao apelante a
garantia constitucional da ampla defesa”. (No mesmo passo, RTJRS 148/137; 65/108; RT 676/309;
JTACRESP 58/235, 68/266).
Não é diferente o que
ocorre no caso da juntada extemporânea das razões recursais, em caso de apelo,
constituindo, à luz da jurisprudência, mera irregularidade que não tem o condão
de impedir seu conhecimento.
Dessa feita,
verifica-se, conforme entendimento dominante de nossos Tribunais, que com o fim
de assegurar a mais ampla defesa ao acusado, deve o recurso de apelação ser
conhecido, desde que proposto dentro do prazo legal, independente de se fazer
acompanhar das correspondentes razões recursais.
Essa amplitude de
defesa não se verifica no atual sistema recursal do Código de Processo Civil,
impedindo, no caso do ECA, a instrumentalidade garantista relevada por Ferrajoli
no Capítulo X de sua obra, e descaracterizando, assim, um direito penal de
garantia, aos adolescentes infratores.
No caso do Estatuto da
Criança e do Adolescente, quando remete ao Código de Processo Civil, a
regulamentação do recurso de apelação das decisões que imprimem ao adolescente
infrator medida socioeducativa, descuida de assegurar a garantia, tão relevada
em seu texto, dos direitos fundamentais desse adolescente, numa contradição
indiscutível.
Permite, com isso, a
descaracterização do devido processo legal e via de conseqüência a caracterização de um procedimento de caráter nitidamente
inquisitorial, que priva o adolescente infrator do acesso à justiça e ao
reconhecimento das garantias processuais que lhe são devidas quanto ao asseguramento de seu direito à liberdade.
A figura do juiz,
caracterizada no processo penal pátrio como um órgão super e inter partes,
neutro e imparcial, é completamente esquecida no Estatuto, porquanto em face do
não conhecimento dos recursos dezarrazoados em razão
das regras contidas no Código de Processo Civil, nega-se ao adolescente –
definido como inimputável na Lei Maior – um direito reconhecido aos, inclusive,
penalmente imputáveis, maiores de 18 anos, qual seja, o de ver submetido ao
segundo grau de jurisdição o recurso tempestivamente interposto,
independentemente de se fazer acompanhar de razões recursais, assegurando-se-lhe, assim, o princípio da ampla defesa,
necessário à caracterização do devido processo legal.
Nega-se ao
adolescente, saliente-se mais uma vez, o princípio da jurisdicionalidade.
5. Da renúncia ao
apelo
Peca o Estatuto,
também, no que diz respeito à aplicação da medida socioeducativa ao adolescente
infrator, ao impossibilitar o recurso de apelação pelo defensor, ou ainda, pelo
Ministério Público em caso de renúncia, pelo adolescente, ao recurso.
O direito de renúncia
à interposição do recurso, vem previsto no ECA e
permite que o adolescente, quando de sua intimação da decisão condenatória,
manifeste seu interesse em não recorrer da decisão. Essa manifestação pode ser
certificada pelo Oficial de Justiça responsável pela intimação, impedindo a
interposição do recurso pela defesa do adolescente, ou melhor, obstaculizando
seu conhecimento, pelo segundo grau de jurisdição, diante do que dispõe o
Código de Processo Civil.
Na obra Estatuto da
Criança e do Adolescente Comentado - comentários jurídicos e sociais, Nelson Néry Júnior, ao comentar o artigo 198 do Estatuto, reputa
impossível, em face da renúncia do adolescente, o conhecimento do recurso
interposto por sua defesa (Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado -
Comentários Jurídicos e Sociais. Coordenadores: Munir Cury, Antônio Fernando do
Amaral e Silva e Emílio García Mendez. 3ª ed.
Malheiros, SP, 2000, pg. 614/615.), porquanto essa renúncia é impeditiva do
conhecimento do recurso. Não atenta, entretanto, o processualista civil, para
os critérios de efetividade dessa renúncia, ou seja, das condições ou
capacidade processual de seu autor ao afirmá-la.
A regra que contempla
a referida renúncia deve ser, entretanto, declarada inconstitucional em se
tratando o adolescente infrator de pessoa com idade inferior a vinte e um anos
e, portanto, incapaz de avaliar a real extensão da aplicação da sentença
condenatória e, mais ainda, das medidas socioeducativas impostas, mormente a de
internação ou semiliberdade, de nítido caráter sancionatório,
que pode se estender por período de até três anos. Ademais, a possível
incapacidade do adolescente em evidenciar a possibilidade da aplicação de uma
medida de internação, quando em realidade outra medida se impunha como critério
apto a evitar a internação, conforme disposto no artigo 122 do
ECA, não é de pronto afastada.
A esse respeito,
Emílio García Mendez, na obra citada, evidencia que o
aspecto mais importante do artigo 122 se encontra no §2º que, literalmente,
inverte o ônus da prova, obrigando a autoridade judicial a demonstrar que não
existe outra medida mais adequada que a internação. Mesmo na hipótese dos
incisos I e II do referido artigo, a privação da liberdade deve ser evitada
existindo, antes dela, outras medidas de caráter mais adequado (Mendez, Emilio García – UNICEF/América do Sul. Estatuto da
Criança e do Adolescente Comentado. 3ª ed. Malheiros, SP, 2000, pg. 402/403.).
No mesmo sentido e com
referencia às medidas de semiliberdade, Alessandro Baratta
(Baratta, Alessandro. Estatuto da Criança e do
Adolescente Comentado. 3ª ed. Malheiros, SP, 2000, pg. 394/395.) assevera: “Deve-se,
portanto, considerar válido, também para a semi-liberdade
o limite de aplicabilidade estabelecido para a internação com os incisos I, II
e III do "caput" do artigo 122 em relação a gravidade das infrações”.
Há que se questionar,
à luz desses argumentos interpretativos, como poderá o adolescente avaliar o
princípio da excepcionalidade previsto na legislação
especial e determinar sua renúncia ao recurso, mediante simples manifestação ao
oficial de justiça, sem que seja assistido por curador, ou ainda, ouvido em
juízo sobre essa renúncia? Como poderá dispor de uma ampla avaliação da
sentença que lhe aplicou uma medida de internação ou semi-liberdade?
A toda evidência, o
dispositivo fere as garantias individuais do adolescente infrator,
impossibilitando, inclusive ao órgão do Ministério Público, que ao ver afastado
seu pedido relativamente à "absolvição" do adolescente infrator,
tenha reconhecido seu recurso de apelação ante a renúncia do adolescente a esse
direito.
Segundo evidencia Zaffaroni (Zaffaroni, Raùl Eugênio. Estatuto da Criança e do Adolescente
Comentado. 3ª ed. Malheiros, pg. 683), em comentários ao artigo 207 e 206 do ECA, as conseqüências do processo são limitações ao princípio
da inocência, demonstrando-se de considerável gravidade quando referentes a um
adulto, e em grau muito mais elevado, quando se refere ao adolescente infrator,
constituindo-se em medida estigmatizante que afeta a
auto-estima e faz aflorar a conduta desviante.
Dessa feita, mais uma
razão se encontra em destaque de modo a evidenciar a real necessidade da
interposição do recurso de apelação em favor do adolescente infrator não apenas
porque não possui as condições necessárias para avaliar o que pode ou não ser
favorável a sua pessoa, mas principalmente em obediência aos princípios
constitucionais da mais ampla defesa e da presunção de inocência, reconhecidos
quando da instauração do devido processo legal.
Conforme se verifica
do Código de Processo Penal brasileiro em caso de renúncia de recurso pelo réu,
maior de 21 anos, esta deverá ser tomada por termo perante o próprio juiz ou
por petição própria. No caso, entretanto, dos réus cuja idade situa-se entre 18
e 21 anos e, portanto caracterizada a menoridade do agente, a renúncia não
impede a propositura da correspondente apelação pela defesa, tendo em vista a
não compreensão, pelo agente, da extensão de sua condenação, pelo que impõe-se a efetiva avaliação da necessidade de interposição
de recurso ou não, por parte de seu defensor, como critério apto a assegurar a
ampla defesa e, via de conseqüência, o princípio da jurisdicionalidade.
Mais uma vez,
repise-se, o evidente descompasso do Estatuto da Criança e do Adolescente com
relação à adoção do sistema recursal do Código de Processo Civil relativamente
aos procedimentos de prática de atos infracionais por adolescentes. Esse
procedimento, além de imprestável ao processo penal de garantias, sequer se
presta a limitar o poder estatal na sua tendência antigarantista,
ou ainda, legitimá-lo na preservação e promoção dos direitos voltados à
satisfação dos interesses da sociedade.
6. Conclusões
Na esteira das
observações acima gizadas, é bom que se questione o
real direcionamento do Estatuto da Criança e do Adolescente, especialmente na
garantia dos direito individuais e fundamentais do adolescente infrator,
observando-se os princípios penais garantistas
orientadores de um processo penal garantista que se
impõem na determinação do procedimento de apuração da infração penal praticada
por adolescente. A indevida adoção de um sistema recursal orientado por
princípios processuais civis, além de quebrar com a hierarquia dos direitos
individuais reconhecidos na norma Constitucional – no caso concreto, a
desigualdade perante a lei – servem ao abandono de um processo penal garantista.
Urge, pois, que se
restabeleça, contrariamente à situação criada com a adoção do procedimento
processual civil previstas no ECA, um
redimensionamento acerca da regulamentação dos recursos de apelação que digam
respeito ao procedimento de apuração do ato infracional, outorgando-lhe
características e regulamentação previstas no Código de Processo Penal que,
nesse particular, se demonstra mais benéfico ao adolescente infrator, como
demonstra quando do tratamento dos criminosos comuns.
Essa adequação servirá
para retomar, no procedimento menorista, o devido
processo legal à semelhança de um modelo garantista e
preocupado com a realização da justiça.
7. BIBLIOGRAFIA
CADEMARTORI, Sérgio.
Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista.
1ª edição. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999.
CARVALHO, Salo de. Aplicação da Pena e Garantismo.
1ª edição. Editora Lumen Juris,
Rio de Janeiro, 2001.
COUTINHO, Jacinto Miranda.
Separata ITEC!, ano I, nº4.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A
Instrumentalidade do processo, 3ª edição. Malheiros. SP, 1993.
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE COMENTADO: Comentários Jurídicos e Sociais. Coordenadores: Munir
Cury, Antônio Fernando do Amaral e Silva e Emílio García Mendez.
3ªedição. Malheiros, São Paulo, 2000.
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria do Garantismo Penal, 4ªedição. Editoril
Trotta. Madrid, 2000.
FERRAJOLI, Luigi. O Direito
como Sistema de Garantias in O Novo em Direito e Política. Livraria
do Advogado, Porto Alegre, 1997.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e
Punir – Histórias da Violência nas Prisões. Editora Vozes
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