“QUERO QUE ALGUÉM ME CHAME DE FILHO”

ABANDONO, POBREZA, INSTITUCIONALIZAÇÃO E O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR[1]

 

 

Lidia Natalia Dobrianskyj Weber[2]

Psicóloga.

 

 

 

“Muitas coisas que nós precisamos podem esperar. A criança não pode. Agora é o tempo em que seus  ossos estão sendo formados; seu sangue está sendo feito; sua mente está sendo desenvolvida. Para ela nós não podemos dizer amanhã. Seu nome é hoje”.  (Gabriela Mistral)

 

 

Não é possível falar de abandono de crianças em países da América Latina sem se remeter às questões gerais sobre direitos humanos, às questões específicas sobre direitos da criança e os problemas desta região. É preciso referir-se aos contextos macroeconômicos e às políticas governamentais insuficientes que não conseguem proteger a amplos setores da população que está na pobreza extrema. Em dezembro de 1998 foi comemorada a data de 50 anos de aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Naquela época de pós-guerra almejava-se construir um patamar de dignidade em relação aos direitos, direitos estes que deveriam transcender a diversidade cultural, afirmando a universalidade dos direitos humanos que decorrem única e exclusivamente da condição de ser humano. O objetivo maior é termos direitos humanos sem fronteiras. Além de falarmos de Direitos Humanos, devemos lembrar os Direitos da Criança, que neste ano de 2001 fará 42 anos. Em 1959 a Declaração dos Direitos da Criança “havia concluído um mínimo ético em relação à proteção da infância desvalida e, trinta anos depois a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989) veio a constituir um máximo jurídico e constitui o instrumento mais ratificado no âmbito jurídico e o mais aceito socialmente na história da humanidade” (UNICEF - A Infância na Américas, Gazeta do Povo 28/03/97). Em 1990 o Brasil, "através de um movimento social sem precedentes  na história da assistência à infância no Brasil, que contou com a participação de diversos segmentos da sociedade civil. Aprovou uma nova lei, o Estatuto da Criança e do Adolescente, considerada uma das leis mais avançadas do mundo "(Rizinni, 1995), p. 103). Dentre estes direitos fundamentais, está o direito básico e essencial à convivência familiar e comunitária. Na verdade, isto significa o direito de ser amado e de, conseqüentemente, aprender a amar o outro. No entanto, apesar de todos estes programas de Direitos Humanos, ainda no limiar do novo milênio permanece o abismo entre as intenções e a vida real.

 

Até a década de 70 afirmava-se que crianças que se encontravam nas ruas eram produto do abandono e da orfandade familiar; a criança assim diagnosticada era levada a abrigos onde crescia e era “preparada” para sua integração na sociedade. A instituição era uma forma de “proteção” para a criança. Atualmente sabe-se que estar nas ruas é um meio de sobrevivência para estas famílias; as crianças “trabalham”  e voltam para suas famílias ou ficam nas ruas com sua família, geralmente monoparental, onde existe somente a mãe. Com a institucionalização de crianças a sociedade livrou-se destes “produtos indesejáveis”, mas não interrompeu as monstruosas engrenagens que os produziram. A institucionalização nestes países tem se mostrado não como uma alternativa mas como um incentivo ao abandono. Uma vez deixada a criança na instituição, a maioria das famílias não retorna para buscá-las e elas passam sua infância e sua adolescência sem ter a consciência de uma família, seu direito fundamental (Weber e Kossobudzki, 1996).

 

Na verdade, essa prática da institucionalização tem sido amplamente criticada e condenada, levando alguns autores a sustentarem que “o ato da institucionalização é em si mesmo uma forma de abuso infantil”  (Miller, 1981). Esta conclusão é certamente aplicável a muitas regiões onde internatos funcionam em recintos caracterizados por falta de segurança, higiene, estimulação e, principalmente carinho.  Como bem coloca Pilotti (1995, p. 41) “... a institucionalização acarreta mais danos que benefícios para a maioria das crianças internas devido ao predomínio das seguintes características negativas no desenvolvimento do ser humano: impossibilidade de interação com o mundo exterior e conseqüente limitação da convivência social; invariabilidade do ambiente físico, do grupo de parceiros e das autoridades; planejamento das atividades externas à criança, com ênfase na rotina e na ordem; vigilância contínua; ênfase na submissão, silêncio e falta de autonomia.  As conseqüências negativas deste processo - tanto para o indivíduo como para a sociedade - surgem dos graves e irreversíveis efeitos exercidos pela institucionalização sobre os afetados. Com efeito, a criança interna desenvolve uma auto-estima extremamente baixa, caracterizada por uma imagem negativa de si mesmo o que interfere no desenvolvimento normal das relações interpessoais. A inserção social destas crianças fica extremamente limitada.     

                                               

A adoção é uma das formas mais completas de integração familiar para uma criança. É óbvio que não estamos falando de "incentivar" a adoção como um estímulo ao abandono! Primeiramente precisamos amparar as famílias carentes que acabam por abandonar os seus filhos única e exclusivamente por falta de condições materiais. No entanto, existem milhares de crianças nesses países que estão nas instituições de internamento sem qualquer possibilidade de volta a sua família de origem...  Os estudos sobre adoção são escassos no país, contribuindo para fortalecer estereótipos e preconceitos sobre o tema. Para entender muitos dos preconceitos sociais que existem contra a adoção é preciso lembrar que o Brasil tem a pior concentração de renda do planeta, ou seja, tem o título de campeão mundial da desigualdade. Os 20% mais ricos da população detém 67,5% da renda total e os 50% mais pobres ficam com 12% e 2% de pessoas detêm 50% das terras do país. O Brasil contemporâneo com 160 milhões de habitantes, tem 38% da população de crianças e adolescentes, mas o governo federal destina-lhes apenas 12,4% dos investimentos sociais; 30% da população é considerada pobre ou indigente e mais outros 30% são excluídos, pois estão à margem de qualquer possibilidade de ascensão social; 22% da população é analfabeta; quase 4 milhões de crianças entre 5 e 14 anos trabalham e meio milhão de meninas estão expostas à exploração sexual.

 

A adoção no Brasil sempre esteve ligada à clandestinidade, ao segredo e aos estereótipos e à falta de informação, que tornava praticamente impossível a emergência de adoções tardias, multiraciais e de crianças portadoras de excepcionalidade. Em uma pesquisa que realizei sobre a opinião acerca da adoção, os dados mostram que os brasileiros acreditam que “cedo ou tarde o filho adotivo vai dar problemas”; que “uma criança adotada sempre vai sofrer preconceitos e ser tratada diferentes pelos outros; “algumas mulheres só conseguem engravidar depois de terem adotado uma criança, portanto, a adoção é um bom motivo para se tentar ter filhos biológicos”; pensam que “morte de um filho natural é motivo suficiente para um casal adotar uma criança”; “crianças adotadas devem ser devolvidas ao Juizado (ao orfanato ou aos pais biológicos) quando surgirem problemas como desobediência ou rebeldia”; “é interessante adotar crianças com mais de 10 anos de idade para que pudessem ajudar nos serviços domésticos”;  “haverá menos problemas se a criança nunca souber que foi adotada”; acreditam que deveria ser feito um controle ostensivo à natalidade pelo governo e  que somente os pais são culpados pelos filhos que estão nas ruas e nos orfanatos porque não sabem educá-los.

 

O Brasil abriu a sua marcha de justiça para a criança e o adolescente na América Latina, através do seu Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em julho de 1990. No entanto, o processo de ultrapassar a Lei e caminhar para a Justiça tem sido penoso e lento para as crianças de todo o mundo, especialmente do mundo pobre. Na verdade, não é possível acabar com a injustiça e com o preconceito por decreto. O ECA traz à tona a questão de que não devemos transformar a adoção em um “projeto de sociedade”. Devemos lutar contra a miséria e o abandono. A adoção internacional tornou-se uma exceção, ou seja, uma criança somente poderá ser adotada por um estrangeiro se não conseguir ser adotada no Brasil. Este fato traz um novo impulso para um trabalho de conscientização da população. Os desafios que devemos enfrentar atualmente é não deixar as crianças envelhecer nas instituições e conscientizar os brasileiros sobre as adoções necessárias: crianças mais velhas, de cor e com necessidades especiais. O trabalho principal é pedagógico, de conscientização da população e técnico, de preparação de profissionais que selecionem e preparem pessoas dispostas a acolher uma criança ou um adolescente. É um trabalho gigantesco e a longo prazo, mas que já começou.

 

Acredito que o mundo tem recursos e conhecimento necessários para atingir a meta de vida decente e liberdade: o futuro não precisa ser caos e miséria. A pobreza não pode ser eliminada imediatamente, mas não se pode tolerar mais a exploração da pobreza. Todas essas crianças fazem parte, pelo menos imaginariamente, do contingente das espécies conhecido como “ser humano”.

 

O famoso poeta Drumond de Andrade disse em um de seus versos: “entre a raiz e a flor existe o tempo”. No entanto não devemos somente deixar o tempo passar, como o Gattopardo de Lampedusa, que admitia que tudo poderia mudar desde que permanecesse como estava. É preciso ações efetivas: cuidar da flor, maternar a flor, protegê-la...  Vamos fazer todos juntos?

 

 

NOTAS

 

[1] Breve resumo da conferência Abandon et adoption: regards sur l’Amérique Latine”, apresentada no Congresso “Le bébé face à lábandon, le bébé face à l’adoption realizado em 23 e 24 de janeiro de 1998 em Paris.

[2] Professora e pesquisadora do Departamento de Psicologia da UFPR; Mestre e Doutora em Psicologia pela USP.

 

REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS

 

Miller, J.G.  Toughts on institutional abuse.  Legal response: child advocacy and protection, 2 (3) Spring, 14, USA, 1981.

Pilotti, F. (1995).  Crise e perspectivas da Assistência à Infância na América Latina.  In: Pilotti, F. & Rizzini, I. (1995).  A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil.  Rio de Janeiro: Amais.

Pilotti, F. & Rizzini, I. (1995).  A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil.  Rio de Janeiro: Amais.

Rizzini, I. (1995).  Crianças e menores - do Pátrio Poder ao Pátrio Dever: um histórico da Legislação para a Infância no Brasil. In: Pilotti, F. & Rizzini, I. (1995).  A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil.  Rio de Janeiro: Amais.

Weber, L.N.D. (1995). Da institucionalização à adoção: um caminho possível? Igualdade, 9, 1-8.

Weber, L.N.D. (1996). Children without family in Brazil. Journal International de Psychologie - résumés du XXVI Congrès International de Psychologie. Volume 31, nº 3 e 4, p. 124. Montréal, Canadá, 16-21 agosto. Edição: Union Internationale de Psychologie Scientifique.

Weber, L.N.D. (1998). Abandon des enfants: regards sur l’Amérique Latine. Colloque Le bébé face à l’abandon/ le bébé face à l’adoption. Montrouge/França, 24 e 25 janeiro.

Weber, L.N.D.; Kossobudzki, L.H.M. (1996). Filhos da solidão: institucionalização, abandono e adoção. Curitiba: Governo do Estado do Paraná, 212 p.

Weber, L.N.D. (1999). Laços de ternura: pesquisas e histórias de adoção. 2ª ed.  Curitiba: Juruá