EXMO. SR. JUIZ DE
DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DO FORO REGIONAL DE PINHEIROS
O
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO,
por seu Promotor de Justiça designado, vem, mui respeitosamente à presença de
V. Exa. para, nos termos do art. 129, inc. III da Constituição Federal, art.
25, inc. IV, a, da Lei 8.625/93, art.
103, VIII da Lei Complementar Estadual 734/93, arts. 4º, 5º, 19 e 21 da Lei
7.347/85, arts. 208 e ss. da Lei 8.069/90, arts. 3º, 83 e 90 da Lei 8/078/90
propor esta AÇÃO CIVIL PÚBLICA
DECLARATÓRIA DE RITO SUMÁRIO PARA O RECONHECIMENTO DO DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO
DE ACESSO UNIVERSAL E GRATUITO À EDUCAÇÃO INFANTIL E PRÉ-ESCOLAR em
face do MUNICÍPIO DE SÃO PAULO,
representado judicialmente em Juízo, por força do art. 12, II, do Código de
Processo Civil, por seu Prefeito Municipal, DR. CELSO ROBERTO PITTA DO NASCIMENTO, domiciliado no Palácio das
Indústrias - Parque D. Pedro II, nesta Capital, pelos fatos e fundamentos a
seguir expostos.
I.
DOS FATOS
É de conhecimento público e notório que o MUNICÍPIO DE SÃO PAULO vem
sistematicamente negligenciando a oferta
de educação infantil a milhares de crianças pela insuficiência de vagas nas
Escolas Municipais de Educação Infantil - EMEIs, agravada também pelo
sistemático descumprimento das leis orçamentárias quanto à construção e
ampliação da rede existente.
Numerosos exemplos podem ser ofertados relatando
a desídia municipal no provimento de vagas suficientes para atender em
condições de igualdade todas as crianças em idade de escolarização infantil. À
guisa de meros - mas chocantes – exemplos, apresentamos na seqüência quadro
dramático extraído de inquéritos civis e procedimentos preparatórios de tais
inquéritos em tramitação nesta Promotoria de Justiça.
1.1
OS DADOS LEVANTADOS PELO PRÓPRIO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO (IC 1/97)
Consta de notícias veiculadas pela imprensa no
dia 30 de dezembro de 1996, especialmente pelo jornal “O ESTADO DE SÃO PAULO”, que cerca de 200 mil crianças ficarão sem
vagas em pré-escolas, segundo estudos feitos pela Fundação Instituto de
Administração da Universidade São Paulo (FIA-USP), cuja cópia encontra-se em
anexo ao presente pedido.
O estudo indica que cerca de 44,1% das crianças
compreendidas entre 4 e 6 anos de idade não encontrarão vagas na rede pública
de pré-escola, incluindo estabelecimentos de ensino que devem ser mantidos
conjuntamente pelo ESTADO e pelo MUNICÍPIO.
A apresentação dos resultados da PESQUISA SOBRE CENSO, MATRÍCULA E
FREQÜÊNCIA ESCOLAR, desenvolvida pela Fundação Instituto de Administração
(FIA-USP), instituição conveniada com a Faculdade de Economia, Administração e
Contabilidade da Universidade São Paulo, e coordenada pelos Profs. José Afonso
Mazzon e Helio Janny Teixeira, solicitada diretamente pela Secretaria Municipal
de Educação do Município de São Paulo, evidencia que:
a) São estimadas matrículas de 275.048 crianças na pré-escola, no ano de
1997, em toda a cidade de São Paulo, segundo divisão feita entre as onze
delegacias regionais de ensino municipal;
b) Estima-se que, pelo
menos, 202.747 crianças de 4 a 6 anos de idade, ficarão fora da escola na
cidade de São Paulo, no ano de 1997, o que corresponde a 38,9% das crianças,
segundo a base de estimativa provável no limite inferior;
c) De um total de
530.299 crianças estimadas que vivem na cidade de São Paulo entre 4 e 6 anos,
36,8%, ou seja, 194.979 não freqüentam a pré-escola ou creche e das 335.320 que
freqüentam, 41,4% estão na rede particular;
d) Há diversas regiões
da cidade onde mais de 40% do total das crianças de 4 a 6 anos estão fora da
escola: (DREM 6, 10, 3 e 5).
e) 44,1% das crianças
que estão fora da escola entre 4 e 6 anos têm como motivo a falta de vaga em
escola pública e outros 22,8% não podem pagar escola particular, ou seja, 66,9%
das crianças fora da escola nessa idade por insuficiência de atendimento do
Poder Público;
f) Nas classes
sócio-econômicas C, D, e E, a falta de vaga em creche ou pré-escola pública é o
maior motivo de não estarem matriculadas as crianças de 4 a 6 anos e a
impossibilidade de pagamento, o segundo motivo mais relevante;
Segundo dados da própria Secretaria Municipal de
Educação, de 1989 a 1993 tem havido sistematicamente decréscimo de vagas para
educação infantil de crianças de 4 a 6 anos de idade. O ligeiro acréscimo
verificado em 1996 não repõe sequer o número de vagas existentes em 1989,
conforme o quadro seguinte:
MATRÍCULAS
|
1989 |
1992 |
1993 |
1996 |
VAGAS |
208.721 |
200.704 |
182.790 |
199.758 |
O MUNICÍPIO
DE SÃO PAULO, por sua vez, tem se mostrado absolutamente incapaz ao longo
de gestões administrativas passadas de compreender a importância da educação no
processo formador do cidadão, economizando vergonhosamente e deixando
criminosamente de implementar os investimentos devidos na manutenção e no
desenvolvimento do ensino, tema esse objeto de ações e inquéritos civis
próprios no âmbito desta Promotoria de Justiça.
2. DO
RITO SUMÁRIO
Conforme dispõe o art. 5º, § 3º da Lei 9.394, de
20 de dezembro de 1996, a ação judicial intentada por qualquer cidadão, grupo
de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe
ou outra legalmente constituída e, ainda, o Ministério Público, nos casos de
não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público ou de sua oferta
irregular, será de rito sumário.
Trata-se de aplicação das normas processuais
previstas nos arts. 275 e ss. do Código de Processo Civil, independentemente de
qualquer outra regulamentação, por força do disposto no art. 275, inc. II, g, que garante a observância do
procedimento sumário nas causas, qualquer que seja o valor, nos demais casos
previstos em lei, como a hipótese vertente.
3. DA
NATUREZA DECLARATÓRIA DA AÇÃO
A presente ação civil pública funda-se no art.
19 da Lei 7.347/85 que prevê a aplicação à ação civil pública prevista naquela
lei, subsidiariamente as regras do Código de Processo Civil. Outrossim, para a
defesa dos direitos e interesses protegidos pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente são admissíveis todas as espécies de ações pertinentes (art. 211 da
Lei 8.069/90).
Assim, podendo limitar-se o interesse do autor à
declaração da existência de relação jurídica (art. 4º, I, do CPC) e cabendo
ainda subsidiariamente na aplicação à defesa dos direitos e interesses difusos
e coletivos as regras dos arts. 81 e ss. do Código de Defesa do Consumidor
(art. 21 da Lei 7.347/85) e dispondo o art. 81, parágrafo único da Lei 8.078/90
que a defesa coletiva será exercida tanto em situações de direitos ou
interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos e que para a defesa dos
direitos e interesses protegidos são admissíveis todas as espécies de ações
capazes de propiciar adequada e efetiva tutela (art. 83 da Lei 8.078/890) e que
se aplicam também a essa lei as regras do Código de Processo Civil, tem-se por
perfeitamente cabível e juridicamente possível pedido de natureza declaratória
em ação civil pública.
4.
DOS DISPOSITIVOS LEGAIS E CONSTITUCIONAIS PERTINENTES AO TEMA:
O direito fundamental à educação é tema afeto a
inúmeros diplomas legais em todas as órbitas da Federação. Além de objeto da
Constituição Federal e de leis nacionais como a que estabelece diretrizes e
bases para a educação (Lei 9.394/96) e o próprio Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei 8.069/90), é também alvo de disciplina nas Cartas estaduais e
nas leis de organização interna dos municípios.
4.1 A
Constituição Federal
Antes mesmo daquele dispositivo específico, a
própria Constituição Federal já consagrara a educação como direito social
fundamental, dispondo sobre ela, dentre outros, nos seguintes artigos:
Art. 6º São
direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição.
[...]
Art. 205. A
educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho.
Art. 206. O
ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de
condições para o acesso e permanência na escola;
[...]
IV - gratuidade
do ensino público em estabelecimentos oficiais;
[...]
VI - gestão
democrática do ensino público, na forma da lei;
VII - garantia de
padrão de qualidade.
[...]
Art. 208. O dever
do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
I - ensino
fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita
para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria;
[...]
IV - atendimento
em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade:
[...]
§ 1º O acesso ao
ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.
§ 2º O
não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta
irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.
§ 3º Compete ao
Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a
chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola.
[...]
Art. 211. A
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de
colaboração seus sistemas de ensino.
§ 1º A União
organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios, financiará as
instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional,
função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de
oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante
assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios.
§ 2º Os
Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação
infantil.
§ 3º Os Estados e
o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio.
§ 4º Na
organização de seus sistemas de ensino, os Estados e os Municípios definirão
formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino
obrigatório.
Art. 212. A União
aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal
e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de
impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e
desenvolvimento do ensino.
[...]
4.2 A
Constituição do Estado de São Paulo
A Constituição Estadual Paulista dispõe com rara
riqueza, em diversos dispositivos, o sistema de prioridades estabelecido para
educação, mormente nos níveis fundamentais do ensino básico, do seguinte modo:
Art. 233 - As
ações governamentais e os programas de assistência social, pela sua natureza
emergencial e compensatória, não deverão prevalecer sobre a formulação e
aplicação de políticas sociais básicas nas áreas de saúde, educação,
abastecimento, transporte e alimentação.
[...]
Art. 237 - A
educação ministrada com base nos princípios estabelecidos no artigo 205 e
seguintes da Constituição Federal e inspirada nos princípios de liberdade e
solidariedade humana, tem por fim:
I - a compreensão
dos direitos e deveres da pessoa humana, do cidadão, do Estado, da família e
dos demais grupos que compõem a comunidade;
II - o respeito à
dignidade e às liberdades fundamentais da pessoa humana;
III - o
fortalecimento da unidade nacional e da solidariedade internacional;
IV - o
desenvolvimento integral da personalidade humana e sua participação na obra do
bem comum;
V - o preparo do
indivíduo e da sociedade para o domínio dos conhecimentos científicos e
tecnológicos que lhes permitam utilizar as possibilidades e vencer as
dificuldades do meio, preservando-o;
VI - a
preservação, difusão e expansão do patrimônio cultural;
VII - a
condenação a qualquer tratamento desigual por motivo de convicção filosófica,
política ou religiosa, bem como a quaisquer preconceitos de classe, raça ou
sexo;
VIII - o
desenvolvimento da capacidade de elaboração e reflexão crítica da realidade;
Art. 238 - A lei
organizará o Sistema de Ensino do Estado de São Paulo, levando em conta o
princípio da descentralização.
Artigo 239 - O
Poder Público, organizará o Sistema Estadual de Ensino, abrangendo todos os
níveis e modalidades, incluindo a especial, estabelecendo normas gerais de
funcionamento para as escolas públicas estaduais e municipais, bem como para as
particulares.
Art. 240 - Os
Municípios responsabilizar-se-ão prioritariamente pelo ensino fundamental,
inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria, e pré-escolar
só podendo atuar nos níveis mais elevados quando a demanda naqueles estiver
plena e satisfatoriamente atendida, do ponto de vista qualitativo e
quantitativo.
Art. 241 - O Plano Estadual de Educação, estabelecido em lei, é de responsabilidade do Poder Público Estadual, tendo sua elaboração coordenada pelo Executivo, consultados os órgãos descentralizados do Sistema Estadual de Ensino, a comunidade educacional, e considerados os diagnósticos e necessidades apontados nos Planos Municipais de Educação.
[...]
Art. 247 - A
educação da criança de zero a seis anos, integrada ao sistema de ensino,
respeitará as características próprias dessa faixa etária.
Art. 248 - O
órgão próprio de educação do Estado será responsável pela definição de normas,
autorização de funcionamento, supervisão e fiscalização de creches e
pré-escolas públicas e privadas do Estado.
Parágrafo único -
Aos Municípios, cujos sistemas de ensino estejam organizados, será delegada
competência para autorizar o funcionamento e supervisionar as instituições de
educação das crianças de zero a seis anos de idade.
[...]
Art. 255 - O
Estado aplicará, anualmente, na manutenção e no desenvolvimento do ensino
público, no mínimo, trinta por cento da receita resultante de impostos,
incluindo recursos provenientes de transferências.
Parágrafo único -
A lei definirá as despesas que se caracterizem como manutenção e
desenvolvimento do ensino.
[...]
4.3 A
LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO
A Lei Orgânica do Município de São Paulo também
é generosa ao abordar a educação, fazendo-o nos seguintes dispositivos
principais:
Art. 200 - A
educação ministrada com base nos princípios estabelecidos na Constituição da
República, na Constituição Estadual e nesta Lei Orgânica, e inspirada nos
sentimentos de igualdade, liberdade e solidariedade, será responsabilidade do
Município de São Paulo, que a organizará como sistema destinado à
universalização do ensino fundamental e da educação infantil.
§ 1º - O sistema
municipal de ensino abrangerá os níveis fundamental e da educação infantil
estabelecendo normas gerais de funcionamento para as escolas públicas
municipais e particulares nestes níveis, no âmbito de sua competência.
§ 2º - Fica
criado o Conselho Municipal de Educação, órgão normativo e deliberativo,
com estrutura colegiada, composto por
representantes do Poder Público, trabalhadores da educação e da comunidade,
segundo lei que definirá igualmente suas atribuições.
§ 3º - O Plano
Municipal de Educação previsto no art. 241 da Constituição Estadual será
elaborado pelo Executivo em conjunto com o Conselho Municipal de Educação,
consultados os órgãos descentralizados de gesto do sistema municipal de ensino,
a comunidade educacional do referido sistema, sendo ouvidos os órgãos
representativos da comunidade e consideradas as necessidades das diferentes
regiões do Município.
Art. 201 - Na
organização e manutenção do seu sistema de ensino, o Município atenderá ao
disposto no art. 211 e parágrafo da Constituição da República e garantirá
gratuidade e padrão de qualidade de ensino.
§ 1º - A educação
infantil, integrada ao sistema de ensino, respeitará as características
próprias dessa faixa etária, garantindo um processo contínuo de educação
básica.
§ 2º - A
orientação pedagógica da educação infantil assegurará o desenvolvimento
psicomotor, sócio-cultural e as condições de garantir a alfabetização.
§ 3º - A carga
horária mínima a ser oferecida no sistema municipal de ensino é de 4 (quatro)
horas diárias em 5 (cinco) dias da semana.
§ 4º - O ensino
fundamental, atendida a demanda, terá extensão de carga horária até se atingir
a jornada de tempo integral, em caráter optativo pelos pais ou responsáveis, a
ser alcançada pelo aumento progressivo da atualmente verificada na rede pública
municipal.
§ 5º - O
atendimento da higiene, saúde, proteção e assistência às crianças será
garantido, assim como a sua guarda durante o horário escolar.
§ 6º - É dever do
Município, através da rede própria, com a cooperação do estudo, o provimento em
todo o território municipal de vagas, em número suficiente para atender à demanda
quantitativa e qualitativa do ensino fundamental obrigatório e progressivamente
à da educação infantil.
§ 7º - O disposto
no § 6º não acarretará a transferência automática dos alunos da rede estadual
para a rede municipal.
§ 8º - Compete ao
Município recensear os educandos do ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e
zelar, junto aos pais e responsáveis, pela freqüência à escola.
§ 9º - A atuação
do Município dará prioridade ao ensino fundamental e de educação infantil.
Art. 202 - Fica o
Município obrigado a definir a proposta educacional, respeitando o disposto na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação e legislação aplicável.
§ 1º - O
Município responsabilizar-se-á pela integração dos recursos financeiros dos
diversos programas em funcionamento e pela implantação da política educacional.
§ 2º - O
Município responsabilizar-se-á pela definição de normas quanto à autorização,
supervisão, direção, coordenação pedagógica, orientação educacional e
assistência psicológica escolar, das instituições de educação integrantes do
sistema de ensino no Município.
§ 3º - O
Município deverá apresentar as metas anuais de sua rede escolar em relação à
universalização do ensino fundamental e da educação infantil.
Art. 203 - É
dever do Município garantir:
I - ensino
fundamental gratuito a partir de 7 (sete) anos de idade, ou para os que a ele
não tiveram acesso na idade própria;
II - educação
igualitária, desenvolvendo o espírito crítico em relação a estereótipos
sexuais, raciais e sociais das aulas, cursos, livros didáticos, manuais
escolares e literatura;
III - a matrícula
no ensino fundamental, a partir dos 6 (seis) anos de idade, desde que
plenamente atendida a demanda a partir de 7 (sete) anos de idade.
Parágrafo único -
Para atendimento das metas de ensino fundamental e da educação infantil, o
Município diligenciará para que seja estimulada a cooperação técnica e
financeira com o Estado e a União, conforme estabelece o art. 30, inciso VI, da
Constituição da República.
Art. 204 - O
Município garantirá a educação visando o pleno desenvolvimento da pessoa,
preparo para o exercício consciente da cidadania e para o trabalho, sendo-lhe
assegurado:
I - igualdade de
condições de acesso e permanência;
II - o direito de
organização e de representação estudantil no âmbito do Município, a ser
definido no Regimento Comum das Escolas.
Parágrafo único -
A lei definirá o percentual máximo de servidores da área de educação municipal
que poderão ser comissionados em outros órgãos da administração pública.
Art. 205 - O
Município proverá o ensino fundamental noturno, regular e adequado às condições
de vida do aluno que trabalha, inclusive para aqueles que a ele não tiveram
acesso na idade própria.
Art. 206 - O
atendimento especializado aos portadores de deficiências, dar-se-á na rede
regular de ensino e em escolas especiais públicas, sendo-lhes garantido o
acesso a todos os benefícios conferidos à clientela do sistema municipal de
ensino e provendo sua efetiva integração social.
§ 1º - O
atendimento aos portadores de deficiências poderá ser efetuado suplementarmente
mediante convênios e outras modalidades de colaboração com instituições sem
fins lucrativos, sob supervisão dos órgãos públicos responsáveis, que objetivem
a qualidade de ensino, a preparação para o Trabalho e a plena integração da
pessoa deficiente, nos termos da lei.
§ 2º - Deverão ser garantidas aos portadores de deficiência a eliminação de barreiras arquitetônicas dos edifícios escolares já existentes e a adoção de medidas semelhantes quando da construção de novos.
Art. 207 - O
Município permitirá o uso pela comunidade do prédio escolar e de suas
instalações, durante os fins de semana, férias escolares e feriados, na forma
da lei.
§ 1º - É vedada a
cessão de prédios escolares e suas instalações para funcionamento do ensino
privado de qualquer natureza.
§ 2º - Toda área
contígua às unidades de ensino do Município, pertencentes à Prefeitura do
Município de São Paulo, será preservada para a construção de quadra
poliesportiva, creche, posto de saúde, centro cultural ou outros equipamentos
sociais públicos.
Art. 208 - O
Município aplicará, anualmente, no mínimo 30% (trinta por cento) da receita
resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na
manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental e da educação infantil, nos
termos do art. 212, § 5º, da Constituição da República.
§ 1º - O
Município desenvolverá planos e diligenciará para o recebimento e aplicação dos
recursos adicionais, provenientes da contribuição social do salário-educação de
que trata o art. 212, § 5º da Constituição da República, assim como de outros
recursos, conforme o art. 211, § 1º da Constituição da República.
§ 2º - A lei
definirá as despesas que se caracterizam como manutenção e desenvolvimento do
ensino.
§ 3º - O atendimento
ao educando se dará também através de programas de transportes, alimentação e
assistência à saúde, nos termos dos art. 208, inciso VII e 212, § 4º da
Constituição da República e não incidirá sobre a dotação orçamentária prevista
no “caput” deste artigo.
§ 4º - A eventual
assistência financeira do Município às instituições de ensino filantrópicas,
comunitárias ou confessionais, não poderá incidir sobre a aplicação mínima
prevista no “caput” deste artigo.
§ 5º - Será
vedado o fornecimento de bolsas de estudo que onerem os cofres públicos, salvo
para aperfeiçoamento e capacitação de recursos humanos da administração
pública.
Art. 209 - O
Município publicará, até 30 (trinta) dias após o encerramento de cada semestre,
informações completas sobre receitas arrecadadas, transferências e recursos
recebidos e destinados à educação nesse período, bem como a prestação de contas
das verbas utilizadas, discriminadas por programas.
Art. 210 - A lei
do Estatuto do Magistério disciplinará as atividades dos profissionais do
ensino.
Art. 211 - Nas
unidades escolares do sistema municipal de ensino será assegurada a gestão
democrática, na forma da lei.
4.4 O
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Por sua vez, o Estatuto da Criança e do
Adolescente, em inúmeros de seus dispositivos, registra o dever do Poder
Público para com a educação, com ênfase no ensino fundamental e na educação
infantil, premissas maiores de intervenção do Município na condução da gestão
educacional. Destaca-se, nesse contexto, o próprio art. 4º do Estatuto, assim
descrito:
Art. 4º É dever
... do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos
direitos concernentes à ... educação.
Parágrafo único.
A garantia de prioridade compreende:
[...]
c) preferência na
formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação
privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à
infância e à juventude.
Depois
desse, também o art. 54 do Estatuto ao dispor que:
Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:
[...]
IV - atendimento
em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade;
[...]
§ 1º O acesso ao
ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.
§ 2º - O não
oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público ou sua oferta irregular
importa responsabilidade da autoridade competente.
[...]
4.5 A
LEI 9.394/96
O tema da educação é de tal transcendência que
há lei federal recente com quase uma centena de artigos estabelecendo apenas as diretrizes e bases para a
educação. Esse diploma, a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, no que se
refere ao dever do Estado para com a educação, destaca, principalmente que:
Art. 4º - O dever
do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de:
[...]
IV - atendimento
gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade;
[...]
Art. 5º - O
acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo qualquer
cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical,
entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério
Público, acionar o Poder Público para exigi-lo.
§ 1º - Compete
aos Estados e aos Municípios, em regime de colaboração, e com a assistência da
União:
I - recensear a
população em idade escolar para o ensino fundamental, e os jovens e adultos que
a ele não tiveram acesso;
II - fazer-lhes a
chamada pública;
III - zelar,
junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência a escola.
§ 2º - Em todas
as esferas administrativas, o Poder Público assegurará em primeiro lugar o
acesso ao ensino obrigatório, nos termos deste artigo, contemplando em seguida
os demais níveis e modalidades de ensino, conforme as prioridades
constitucionais e legais.
§ 3º - Qualquer
das partes mencionadas no caput deste artigo tem legitimidade para peticionar
no Poder Judiciário, na hipótese do § 2º do art. 208 da Constituição Federal,
sendo gratuita e de rito sumário a ação judicial correspondente.
§ 4º - Comprovada
a negligência da autoridade competente para garantir o oferecimento do ensino
obrigatório, poderá ela ser imputada por crime de responsabilidade.
§ 5º - Para
garantir o cumprimento da obrigatoriedade de ensino, o Poder Público criará
formas alternativas de acesso aos diferentes níveis de ensino,
independentemente da escolarização anterior.
Especificamente sobre a educação infantil, além
dos dispositivos já citados anteriormente, trata ainda o Título V, Capítulo II,
Seção II da Lei 9.394/96, assim disciplinando a matéria:
Art. 29 - A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.
Art. 30 - A educação
infantil será oferecida em:
I - creches, ou
entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade;
II - pré-escolas,
para as crianças de quatro a seis anos de idade.
Art. 31 - Na
educação infantil a avaliação far-se-á mediante acompanhamento e registro do
seu desenvolvimento, sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino
fundamental.
5. DA
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Em face do disposto nos art. 127, caput, da Constituição Federal, incumbe
ao Ministério Público promover a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Nesta ordem que ora se requer, competem em
igualdade harmônica a defesa desses três paradigmas legitimantes da intervenção
ministerial e que pode ser sumularmente descrita como a defesa da ordem jurídica-democrática na proteção dos interesses
sociais.
Mais ainda, o Estatuto da Criança e do
Adolescente, Lei 8.069/90, em seu art. 208, VI,
registra que regem-se pelas
disposições desta Lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos
assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não-oferecimento ou
oferta irregular de ... ensino obrigatório, de atendimento educacional
especializado aos portadores de deficiência; de atendimento em creche e pré-escola
às crianças de zero a seis anos de idade; de ensino noturno regular, adequado
às condições do educando, de programas suplementares de oferta de material
didático-escolar, transporte e assistência à saúde do educando do ensino
fundamental.
O mesmo dispositivo legal, em seu parágrafo
único, registra que as hipóteses previstas neste artigo não excluem da proteção judicial
outros interesses individuais ou coletivos, próprios da infância e da
adolescência, protegidos pela Constituição e pela Lei.
Recentes pronunciamentos da jurisprudência referendam integralmente a legitimidade do Ministério Público para questões como esta posta em debate. Veja-se sobre o tema, dentre outras decisões:
MINISTÉRIO PÚBLICO -
LEGITIMIDADE DE PARTE ATIVA - DEFESA DA ORDEM JURÍDICA, SOBRETUDO NO QUE DIZ
RESPEITO AOS DIREITOS BÁSICOS DO CIDADÃO - RECURSO PROVIDO. Não se deve negar
ao Ministério Público a legitimidade ativa ad causam, na defesa do cumprimento
das normas constitucionais, sob o argumento da independência entre os Poderes.
São independentes, enquanto praticam atos administrativos de competência
interna corporis. Não são independentes para, a seu talante, desobedecerem à
Carta Política, às leis e, sob tal pálio, permanecerem, cada uma seu lado,
imune à reparação das ilegalidades. (TJSP, Apel. 201.109-1,
Rel. Villa da Costa,
04.02.94)
5.1 O
ENSINO FUNDAMENTAL COMO DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO E OS LEGITIMADOS PROCESSUAIS
O acesso ao ensino fundamental corresponde a
direito público subjetivo. Entendemos neste ponto, uma vez que há outros
deveres do Poder Público para com a educação estabelecidos no art. 4º, que
todos aqueles constantes do rol dos incisos I a IX daquele artigo também são
direitos públicos subjetivos, posto que não pode haver declaração de dever do Estado
sem a correspondente transformação daquela obrigação em direito do cidadão,
cujo cumprimento pode ser judicialmente exigível. Assim, além do ensino
fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram
acesso na idade própria, também são direitos públicos subjetivo: a) a
progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio; b) o
atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades
especiais, preferencialmente na rede regular de ensino; c) o atendimento
gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade; d)
o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação
artística, segundo a capacidade de cada um; e) a oferta de ensino noturno
regular, adequado às condições do educando; f) a oferta de educação escolar
regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às
suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores
as condições de acesso e permanência na escola; g) o atendimento ao educando, no ensino
fundamental público, por meio de programas suplementares de material
didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde; h) o
atendimento a padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a
variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao
desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.
No tocante ao ensino fundamental, com duração
mínima de oito anos, obrigatório e gratuito na escola pública, é direito
subjetivo do público, inclusive que ele cumpra seus objetivos legalmente
definidos mediante o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como
meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; a
compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia,
das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; o desenvolvimento da
capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e
habilidades e a formação de atitudes e valores; o fortalecimento dos vínculos
de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que
se assenta a vida social. Há, pois, direito público subjetivo não apenas quanto
à sua prestação, mas também quanto ao cumprimento de suas finalidades
importando o desvio em responsabilidade da autoridade pública, valendo o mesmo
raciocínio aos demais direitos públicos subjetivos relacionados com a educação.
Reforça esse preceito o art. 208, § 1º, da
Constituição Federal que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito
público subjetivo, assim como disposição à contida no Estatuto da Criança e do
Adolescente, no art. 54, § 1º.
Qualquer cidadão poderá demandar contra o Poder
Público para exigir o acesso à educação por meio de mandado de segurança (art.
5º, LXIX, da Constituição Federal), ação cautelar ou outra via adequada, em
vista da declaração legal e constitucional de que tal acesso é direito público
subjetivo e em face do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional
de qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito (art. 5º, inc. XXXV, da
Constituição Federal). Aplica-se, fora dos casos de ações especiais, as normas
processuais previstas nos arts. 275 e ss. do Código de Processo Civil,
independentemente de qualquer outra regulamentação, por força do disposto no
art. 275, inc. II, g, que garante a
observância do procedimento sumário nas causas, qualquer que seja o valor, nos
demais casos previstos em lei, como a hipótese vertente. Também para a defesa
dos direitos e interesses protegidos por esta Lei que forem comuns aos
previstos do Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo o art. 212 daquele
diploma, são admissíveis todas as espécies de ações pertinentes, inclusive ação
mandamental, que se regerá pelas normas da lei do mandado de segurança.
Grupos de cidadãos poderão demandar contra o
Poder Público para exigir o acesso à educação por meio de mandado de segurança
(art. 5º, inc. LXIX, da Constituição Federal) ou por mandado de segurança
coletivo, desde que preenchidas as condições previstas no art. 5º, inc. LXX, b, da Constituição Federal, ou ainda
pelos meios já indicados.
As associações comunitárias, organizações
sindicais, entidades de classe ou outras legalmente constituídas poderão
demandar contra o Poder Público também por esses meios.
O Ministério Público[1] poderá demandar
contra o Poder Público para exigir o acesso à educação pelos meios já expostos,
com exceção do mandado de segurança coletivo por lhe faltar legitimidade
processual. Poderá, principalmente, por força do disposto no art. 129, III da Constituição
Federal, art. 25, inc. IV, a, da Lei nº 8.625/93 (Lei Orgânica nacional do
Ministério Público), no art. 5º, da Lei nº 7.347/85, propor ação civil pública[2]
e nos arts. 201, inc. V e 210, inc. I do Estatuto da Criança e do Adolescente,
propor ação civil pública. Aplica-se, fora dos casos de ações especiais, as
normas processuais previstas nos arts. 275 e ss. do Código de Processo Civil,
independentemente de qualquer outra regulamentação, por força do disposto no
art. 275, inc. II, g, que garante a
observância do procedimento sumário nas causas, qualquer que seja o valor, nos
demais casos previstos em lei, como a hipótese vertente. Também para a defesa
dos direitos e interesses protegidos por esta Lei que forem comuns aos
previstos do Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo o art. 212 daquele
diploma, são admissíveis todas as espécies de ações pertinentes, inclusive ação
mandamental, que se regerá pelas normas da lei do mandado de segurança.
6. DA
COMPETÊNCIA DA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Não suscita dúvida a competência absoluta para
processo e julgamento da causa por qualquer Vara da Infância e da Juventude da
Capital, não sendo razoável pretextar-se
que vigora a competência do juízo especializado em causas em que figurem
como parte a Fazenda Pública, sendo esta inquestionável, segundo os arts. 35 e
36 da Lei de Organização Judiciária do Estado de São Paulo.
O art.
148, inc. IV do Estatuto da Criança e do
Adolescente, que é Lei Federal (nº 8.069, de 13 de julho de 1990), estabelece que:
Art. 148. A
Justiça da Infância e da Juventude é competente para:
[...]
IV - conhecer
de ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos
à criança e ao adolescente, observado o disposto no art. 209;
O art.
209, por seu turno, dispõe que:
Art. 209. As
ações previstas neste Capítulo serão propostas no foro do local onde ocorreu ou
deva ocorrer a ação ou omissão, cujo juízo terá competência absoluta para
processar a causa, ressalvada a competência da Justiça Federal e a competência
originária dos Tribunais Superiores.
Vale dizer, apenas a competência da Justiça
Federal e dos Tribunais Superiores prefere a da Vara da Infância e da
Juventude. Nada ficou registrado quanto à competência da Vara da Fazenda
Pública, que não goza da mesma qualidade daquela atribuída por Lei Federal à da
Infância e Juventude. Mais, tal competência é absoluta.
Dispõe o aludido artigo 35 do Código Judiciário
do Estado de São Paulo, Decreto-Lei
Complementar Estadual n° 3 de 27 de agosto de 1969, com a alteração dada pelo
artigo 17 da Lei Estadual n° 6.166 de 29 de junho de 1988, que:
Art. 35. Aos Juizes das Varas da Fazenda do Estado compete:
I - processar,
julgar e executar os feitos, contenciosos ou não, principais, acessórios e seus
incidentes, em que o Estado e respectivas entidades autárquicas ou paraestatais
forem interessados na condição de autor, réu, assistente ou opoente,
excetuados:
a) os de
falência;
b) os mandados de
segurança contra atos de autoridade estaduais situados fora da Comarca da
Capital; e
c) os de
acidentes do trabalho.
II - conhecer e
decidir as ações populares que interessem ao Estado ou às autarquias e
entidades paraestatais; e
III - cumprir
cartas precatórias e rogatórias em que seja interessado o Estado.
Parágrafo único.
As causas propostas perante outros juizes desde que o Estado nelas intervenha
como litisconsorte, assistente ou opoente, passarão à competência das Varas da
Fazenda do Estado.
O artigo 17 da Lei Estadual n° 6.166 de 29 de
junho de 1988 apenas dá nova denominação à Vara Especializada (para Vara da
Fazenda Pública).
Os dois dispositivos em análise decorrem da
competência dos Estados para organizar sua Justiça, nos termos do artigo 125 da
Constituição Federal, e do teor do artigo 93 do Código de Processo Civil, e
devem se harmonizar expressamente com o artigo 22 da referida Constituição, que
prevê competência exclusiva da União para legislar sobre direito processual.
Como harmonizar os referidos preceitos? Torna-se
evidente que ao organizar sua Justiça, os referidos Estados podem criar Foros
Privativos (não privilegiados), desde que seus dispositivos se harmonizem com
os preceitos de natureza processual, emanados de lei federal.
E nesse aspecto, temos que o Estatuto da Criança
e do Adolescente, ao trazer em seu bojo normas de competência próprias, afasta
por completo a possibilidade de aplicação do Código Judiciário do Estado,
tornando patente a competência absoluta das Varas da Infância e Juventude para
ações referentes a essa matéria, excetuando expressamente somente a Justiça
Federal e as competências originárias dos Tribunais Superiores.
Diz o artigo 208 da Lei n° 8.069/90,
expressamente:
Art. 208. Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular:
Logo a seguir, no mesmo Capítulo, prossegue o
Estatuto com o art. 209, já citado, afirmando que “As ações previstas neste Capítulo serão propostas no foro do local
onde ocorreu ou deva ocorrer a ação ou omissão, cujo juízo terá competência absoluta para processar a
causa, ressalvadas a competência da Justiça Federal e a competência originária
dos Tribunais Superiores.”(grifo nosso).
Finalmente, sobre o tema, diz ainda a lei especial
em comento com o também já citado art. 148, onde se esculpe que “A
Justiça da Infância e da Juventude é competente para: ... IV - conhecer de
ações civis públicas fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos
afetos à criança e ao adolescente, observado o disposto no artigo 209;...”
A análise dos artigos em questão demonstra com
segurança a competência absoluta em razão da matéria do Juízo da Infância e da
Juventude, que não poderia ser afetada pelos foros privativos criados por
normas de organização judiciária, que, aliás, é anterior a sua edição.
Outro, aliás, não poderia ser o entendimento.
De fato, desde
a Constituição Federal de 1988 foi estabelecido o princípio da absoluta
prioridade da criança (artigo 227) e o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao
repetir o princípio, perfilhou a doutrina da proteção integral da criança e do
adolescente, estampada no seu artigo 1° . A intenção do legislador foi de criar
leis específicas para a proteção da pessoa humana em desenvolvimento e o aplicador
dessa lei deve atuar especificamente no Juízo da Infância e Juventude,
ressalvadas unicamente as competências expressamente previstas em seu texto
legal, entre as quais não se situa o foro da Fazenda Estadual.
Embora a matéria seja nova em nossos Tribunais,
já houve julgado em que foi admitida a Fazenda Pública do Estado no pólo
passivo, discutindo-se unicamente se a competência seria da Vara Especial ou não.
Entre a doutrina, também a matéria não é
analisada, excetuando-se aqui apenas o entendimento do Ilustre Promotor de
Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, JOSÉ LUIZ MÔNACO DA
SILVA, (Estatuto da Criança e do
Adolescente - Comentários - ed. Revista dos Tribunais, 1994, p. 365), que
com maestria, enfrentou a questão em foco, explicando:
Tratando-se de ato comissivo ou comissivo que importe em violação dos
direitos assegurados pela Constituição Federal e pelo Estatuto, a ação será
proposta no foro do local onde o dano ocorreu. Se determinada cidade deixar de
oferecer ensino obrigatório aos seus munícipes mirins, a demanda será proposta
na comarca a que pertencer tal município, cujo Juízo da Infância e da Juventude
terá competência absoluta para processar a causa.
A questão assumirá
contornos mais complexos quando o ato comissivo ou omissivo for praticado
dentro dos limites geográficos de uma grande cidade, como é o caso da Capital
Paulista, cuja comarca apresenta mais de uma dezena de Juízos da Infância e da
Juventude. Desses juízos, qual será o competente para o processamento e o conhecimento
da ação? Um exemplo, decerto, responderá a indagação: se na Zona Norte de São
Paulo o ensino público mostra-se deficitário devido a contínuas greves do corpo
docente, dando azo a que o corpo discente passe a maior parte do ano letivo sem
aulas, a ação será proposta perante o
juízo que tenha competência para açambarcar toda a região, no caso o Juízo da
Infância e da Juventude do Foro Regional de Santana. No pólo passivo figurará o
Estado, caso a rede de ensino seja estadual, ou o Município, se municipal. E
mais: não prevalecerá, ante expressa disposição do artigo em estudo, o foro
privativo de que gozam essas pessoas jurídicas de direito público.
Convém registrar enfaticamente que a Vara da
Infância e da Juventude dispõe de competência absoluta em razão da matéria, o
que se sobrepõe à competência em razão da qualidade da parte.
Importa ressaltar que as exceções previstas no
próprio Estatuto, ou seja, a ressalva quanto à Justiça Federal e quanto à
competência originária dos Tribunais, obviamente, não se aplica ao caso
concreto.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é lei
especial e traça regra específica de competência material e a própria
Constituição Federal prevê o princípio da absoluta prioridade de atendimento à
criança, o que deve ser estendido aos limites da preferência processual. (art.
227).
A passagem citada de lavra do ilustre Promotor
de Justiça JOSÉ LUIZ MÔNACO DA SILVA, suscita-nos o tema da competência
territorial para a presente ação, posto que a ação deveria ser prestada pelo ESTADO
DE SÃO PAULO em áreas correspondentes aos mais diversos foros regionais da
Capital.
O problema pode ser facilmente resolvido
mediante algumas singelas considerações. Inicialmente, cabe ponderar que a
competência territorial é relativa e, portanto, prorrogável.
Nos termos do art. 102 do Código de Processo
Civil, a competência em razão do território poderá ser modificada pela conexão
ou continência. Os juízes por onde se processam as ações conexas são
competentes, isoladamente, para o julgamento das causas. A conexão é causa
modificadora dessa competência, fazendo com que as causas conexas sejam
reunidas para obter julgamento conjunto, a fim de se evitarem decisões
conflitantes.
Em tema assim, expressa a lei, que ocorrendo
conexão ou continência, o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, pode
ordenar a reunião de ações propostas em separado. a fim de que sejam decididas
simultaneamente. (art. 105, do CPC).
Ora, se assim pode agir o magistrado, ex officio, ou a requerimento das
partes, pode o autor, ab initio, ao
invés de propor diversas ações idênticas em diversos foros, reuni-las em uma
única e propô-la em qualquer daqueles que fosse competente para o julgamento de
parte da demanda global, por força de sua jurisdição local.
Economia processual manifesta se concentra em
tal proceder, obtendo-se maior celeridade e concentração de esforços da Justiça
Pública na solução geral da causa.
Não fossem argumentos suficientes, há outro
mais, quase desconhecido. As atuais Varas da Infância e da Juventude dos Foros
Regionais foram criadas por força do art. 2º da Lei Estadual 3.947/83., à época
denominada simplesmente Vara de Menores. Foi distribuída a competência
territorial geral, sem referência específica às Varas de Menores de então pelo
mesmo art. 2º. No art. 4º, inc. IV, e com a norma expressa no art. 7º, quando
ficou assentado que:
Art. 4º A
competência de cada foro regional será a mesma dos foros distritais
existentes, com os acréscimos seguintes e observados, no que couber, os
demais preceitos em vigor:
[...]
IV - em matéria
de menores, a mesma competência da atual Vara de Menores da Comarca de São
Paulo, excluídas, porém, as infrações imputadas a menores e observado o
disposto no artigo 7º desta Lei.
Art. 7º Os atos
normativos dos juizados de menores da Comarca de São Paulo serão adotados, em
conjunto, pelos titulares das respectivas varas regionais e central, ou das
especiais, com a coordenação de um deles, designado, periodicamente, pelo
Conselho Superior da Magistratura.
Vale dizer, há um nível de coesão e uniformidade
na atuação das Varas da Infância e da Juventude, quer pela competência idêntica
vigorante entre elas, quer pela atividade administrativa que deve ser
conjuntamente desenvolvida por seus magistrados titulares. Tal aspiração de coesão
reforça o sentido identificador de qualquer uma das Varas da Infância e da
Juventude é igualmente competente para apreciar o tema da presente ação civil
pública.
Ademais disso a jurisprudência dessa E. Corte
tem firmado reiterada posição no sentido da firmar a competência, em casos que
tais, na sede da Justiça da Infância e da Juventude.
Se na inicial fundou o autor seu pedido em
defesa de interesse coletivo afeto à criança e ao adolescente, a competência
somente poderia ser a Justiça da Infância e da Juventude, nos termos do acórdão
exarado nos autos do Conflito de Competência n. 33.513-0/8, do qual foi relator
o Des. Luís de Macedo.
Em termos análogos a decisão proferida na ação
civil pública em recurso de Agravo n. 36.139-0/2, em que foi relator o Des.
Carlos Ortiz.
7. DO
ENSINO PÚBLICO
A preferência constitucional pelo ensino público
importa em que o Poder Público organize os sistemas de ensino de modo a cumprir
o respectivo dever com a educação, mediante prestações estatais que garantam,
no mínimo: ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a
ele não tiveram acesso na idade própria; progressiva extensão da
obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio; atendimento educacional
especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular
de ensino; atendimento em creches às crianças de zero a três anos e em pré-escolas às crianças de quatro a seis
anos de idade; acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da
criação artística, segundo a capacidade de cada um; oferta de ensino noturno
regular, adequado às condições do educando; atendimento ao educando, no ensino
fundamental, através de programas do educando; atendimento ao educando, no
ensino fundamental, através de programas suplementares de material
didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde; conteúdo
mínimo para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum
e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais (art.
208).
O dever estatal com a educação implica a União,
os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, cada qual, com seu sistema de
ensino em regime de colaboração mútua e recíproca, destinado, anualmente, a
União não menos de dezoito por cento da receita de impostos, e os Estados e
Municípios, cada um, no mínimo, vinte e cinco por cento da receita de impostos,
compreendida a proveniente de transferências, com prioridade de aplicação no
ensino obrigatório. Esses recursos, como qualquer outro recurso público, serão
destinados à escola pública. Faculta-se, por exceção, dirigir recursos públicos
a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, inclusive por meio de
bolsa de estudos a quem demonstrar insuficiência de recursos, quando houver
falta de vagas e cursos regulares na rede pública na localidade da residência
do educando.[3]
O dever do Estado para com a educação aparece
repetido em diversos diplomas legais. Na Constituição Federal, nos arts. 205 e
208; na Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), no art. 54; na
própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação nos arts. 2º, 4º, 58, § 3º e 87,
§§ 2º e 3º.
A educação como processo de reconstituição da
experiência é um atributo da pessoa humana[4] e, por isso, tem que ser
comum a todos. É essa concepção que a Constituição agasalha nos arts. 205 a
214, quando declara que ela é um direito de todos e dever do Estado.
Misteriosamente, mas nem tanto, o legislador
neoliberal convicto e irresponsável, olvidou o mandamento constitucional no
sentido de antes de ser um dever, a
educação tratar-se de um direito do
cidadão, exatamente porque de sua definição como direito (e como direito
fundamental insujeito, pois, às restrições de aplicabilidade, sendo-lhe
perfeitamente adequadas a extensão da aplicabilidade imediata prevista no art.
5, 1 da Constituição Federal) é que
surge o correlato dever do Estado. Na espécie, a redução legal da amplitude do
comando constitucional é absolutamente ineficaz quanto a qualquer pretensão
limitadora dos efeitos da norma constitucional ou daquelas contidas no Estatuto
da Criança e do Adolescente.
Implica dizer, a educação é fundamentalmente
dever do Poder Público, supletivamente da família, mormente porque, como
estabelece a Lei 9.394/96, dispõe sobre a educação formal, aquela cujo ensino
se dá por meio de instituições próprias e estas são de obrigação estatal e não
familiar. Parece, desse modo, injusta e simultaneamente arbitrária e
irresponsável a tentativa de mudança do pólo principal quanto aos deveres de
educação.
Absolutamente indevida a inversão
constitucionalmente definida sobre a preferência de responsabilidade pelo dever
de educação. Este é prioritariamente do Estado, entendido como Poder Público,
em seguida da família, não ao contrário, cabendo inicialmente àquele oferecer
as condições para exigência do cumprimento do dever familiar,
institucionalmente secundário. Tal inversão, que já se fazia presente no texto
do art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, é aqui robustecida pela
omissão do direito público subjetivo expresso no art. 205 da Constituição
Federal.
A consecução prática dos objetivos da educação
consoante o art. 205 - pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho - só se realizará num sistema educacional democrático,
em que a organização da educação formal (via escola) concretize o direito ao
ensino, informado por princípios com eles coerentes, que, realmente, foram
acolhidos pela Constituição, como são: igualdade de condições para o acesso e
permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber; pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas,
e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; gratuidade do
ensino público em estabelecimentos oficiais; valorização dos profissionais do
ensino; garantia de padrão de qualidade (art. 206).
Segundo o art. 4º desta Lei, o dever do
Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: I -
ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não
tiveram acesso na idade própria; II - progressiva extensão da obrigatoriedade e
gratuidade ao ensino médio; III - atendimento educacional especializado
gratuito aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede
regular de ensino; IV - atendimento gratuito em creches e pré-escolas às
crianças de zero a seis anos de idade; V - acesso aos níveis mais elevados
do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;
VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; VII -
oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e
modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se
aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola;
VIII - atendimento ao educando, no ensino fundamental público, por meio de
programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e
assistência à saúde; IX - padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos
como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao
desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.
7.1
DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO
Antes mesmo de iniciar a explicação sobre o
significado de ser a educação um direito público
subjetivo, cabe trazer ilustradora passagem de Pontes de Miranda,[5]
onde conclama o mestre que não se deve confundir “o direito à educação com as bolsas sob os Antônimos, em Roma, ou sob
Carlos Magno, ou nos séculos do poder católico. Não se trata de ato voluntário,
deixado ao arbítrio do Estado, ou da Igreja, mas de direito perante o Estado, direito público subjetivo, ou, no Estado
puramente socialista e igualitário, situação necessariamente criada no plano
objetivo, pela estrutura mesma do Estado. A própria estatização do ensino
constitui, nos ciclos evolutivos, grau avançado de progresso. Foi o que se deu
em Roma e na França, o que tem sido moroso é o processo de tal intervenção do
Estado. Surgiu na Alemanha antes de surgir entre os Franceses, porém lá mesmo
estacou.”
Em outra passagem, o festejado mestre destila
sua ira contra inúteis disposições legais ao expressar “a ingenuidade ou a
indiferença ao conteúdo dos enunciados com que os legisladores constituintes
lançam a regra “A educação é direito de todos” lembra-nos aquela Constituição
espanhola em que se decretava que todos “os espanhóis seriam”, desde aquele
momento, “buenos”. A educação somente
pode ser direito de todos se há
escolas em número suficiente e se ninguém
é excluído delas; portanto, se há direito público subjetivo à educação e o
Estado pode e tem de entregar a prestação educacional. Fora daí, é iludir o
povo com artigos de Constituição ou de leis. Resolver o problema da educação,
não é fazer leis, ainda excelentes; é abrir escolas, tendo professores e
admitindo os alunos.”[6]
O legislador constituinte emprega tranqüilamente
a expressão técnica especializada, direito
subjetivo público ou direito público
subjetivo, como se tratasse de proposição normal, de conhecido significado.
Por isso tentaremos explicá-la, a fim de que o educando e sua família possam,
eventualmente, ir a juízo, a exigir a prestação jurisdicional do acesso ao
ensino gratuidade, que o Estado tem o poder-dever de ofertar. A importância do
estudo dos direitos subjetivos e dos direitos subjetivos públicos não precisa
ser posta em relevo, porque incontestável, no âmbito do Direito Administrativo.[7]
Na questão dos direitos públicos subjetivos,
cumpre observar que a Administração deles pode participar como sujeito ativo ou
como sujeito passivo, mas trataremos aqui apenas da relação jurídica pública,
na qual, de um lado a Administração figura como sujeito passivo, de outro lado
o administrado, ou o funcionário, como sujeito ativo. Desse modo, podemos
entender, in genere, o direito
público subjetivo como a faculdade específica de exigir prestação prometida
pelo Estado, decorrente da relação
jurídica administrativa.
O sujeito passivo tem interesse pessoal em
exigir a obrigação por parte da Administração e essa potestas a exigir é
condicionada por uma obrigação jurídica do sujeito passivo, fundamentada em
norma de direito objetivo.
A obrigação do sujeito passivo decorre ou das
leis e regulamentos ou de ato jurídico individual, porque, em ambos os casos
foi editada regra de direito que originou a obrigação. Ao poder de exigir do
administrado correspondente a obrigação jurídica “de pagar” da Administração,
obrigação que nem sempre existe, como é, por exemplo, o caso do poder
discricionário, causa determinante da restrição ou desaparecimento do direito
subjetivo. O administrado, neste caso, pode ter interesse, jamais direito.
Agindo na esfera da discricionariedade, a Administração desvincula-se de
quaisquer obrigações, desaparecendo, desse modo, a possibilidade do direito
público subjetivo, pela inexistência da obrigação jurídica do sujeito passivo.
Por sua vez, ao poder de exigir da Administração, a qual também pode ser
sujeito ativo da relação jurídica, correspondente a obrigação jurídica “de
pagar” do administrado.
Não se empreendeu, até o momento, a
classificação completa dos direitos públicos subjetivos, mas entre as
tentativas apresentadas sobressaem as de Jellinek, Löning, Stengel, Hauriou e
Rossi, expostas e analisadas por Santi Romano.
Segundo este último autor, em cinco diferentes
categorias se distribuem os direitos públicos subjetivos: “de supremacia”, “de
liberdade”, “cívicos”, “políticos” e “patrimoniais”. Os primeiros - direitos
públicos subjetivos de supremacia - cabem ao Estado e correspondem à
possibilidade de exigir a prestação de obrigações públicas.
Roger Bonnard classifica em três grupos os
direitos públicos subjetivos dos administrados: 1º) direitos relativos aos
serviços públicos e seu funcionamento; 2º) Direitos à legalidade dos atos da
administração; 3º) direitos à reparação dos danos causados pelo funcionamento
do serviço público.[8]
A fonte primeira dos direitos públicos
subjetivos dos administrados reside na lei e no regulamento, mas ambos, em si,
não são suficientes, muitas vezes, sem a complementação do ato administrativo,
que dá origem ao direito subjetivo, porque se, em inúmeras hipóteses, basta que
o indivíduo preencha uma série de requisitos prescritos pela norma para que
seja titular ativo do “poder de exigir”, outras vezes, o pronunciamento da Administração
completa o traçado do texto legal ou regulamentar.
É o que se passa, por exemplo, nos casos dos
atos administrativos não-vinculados, nos quais o enunciado legal fixa as
condições de fato e de direito, mas as vantagens só serão exigíveis quando
surge o ato administrativo, enquadrado o administrado na hipótese, ao contrário
do que ocorre nos atos vinculados, quando, preenchidos os requisitos
prescritos, pode o funcionário ou administrado exigir do sujeito passivo - a
Administração - a prestação a que tem direito como titular do direito subjetivo
público, atuante, mesmo sem a edição de ato administrativo posterior.
Desse modo, a norma jurídica delineia apenas, de
modo impessoal e geral, o direito, integrando-se este, imediatamente, no
patrimônio jurídico do administrado, assim que este cumpra os requisitos
enumerados. Nestes casos, o pronunciamento da Administração, dispensável quando
ao surgimento do direito público subjetivo, serve apenas como um modo público
de reconhecimento da situação jurídica legítima e eficaz.
Graças à estruturação de conceito preciso do
direito público subjetivo, é possível empreender a tarefa, difícil, mas
aplainada, em parte, de estudar-lhe o campo e os efeitos, em nosso sistema
jurídico. Há um direito público subjetivo “quando a pessoa administrativa se
constitui em obrigação, segundo o Direito Público, para com o particular; ou,
igualmente, o Estado para com uma das pessoas administrativas por ele criadas” [9].
Acrescentamos: ou ainda para com um dos próprios agentes da Administração,
o funcionário público. O direito que o administrando tem, diante do Estado, de
exigir prestações ativas ou negativas, constitui o denominado direito público
subjetivo.[10]
Neste particular, o mandado de segurança é
utilizado a todo instante, no Brasil, para a proteção do direito subjetivo
público, líquido e certo, ameaçado ou violado por ato de autoridade que cause
dano ao cidadão, com a simples ameaça ou com a efetiva violação.
Embora não desconhecida no âmbito do Direito
Provado, é no campo de Direito Administrativo que a relação de administração
aparece com relevo todo especial, importância que transparece, dominando e
paralisando a de direito subjetivo.[11] Podem, no Direito
Administrativo, como no Direito Privado, nascer simultaneamente, do mesmo
negócio jurídico, a relação de direito subjetivo e a relação de administração.
Tais noções, aceitas no campo do Direito Administrativo, são, em nossa
disciplina, de natureza hierárquica diferente, superando a relação de
administração à de direito subjetivo.[12] Cumpre observar que os
direitos públicos subjetivos, unidos à relação de administração, no Direito
Administrativo, encontram, geralmente, no desenvolvimento desta relação, uma
condição necessária. O funcionário público só adquire direito ao estipêndio
quando presta, efetivamente, trabalhos impostos pela relação de administração[13],
o mesmo se verificando no direito à aposentadoria ou à promoção, só possíveis
quando determinados requisitos, possibilitados ela relação de administração, são
preenchidos.
Subjetividade pública, pretensão e
acionabilidade existem, quer da parte do administrado, particular ou
funcionário, quer da parte da Administração, porque a obrigação jurídica ora se
fixa nas pessoas públicas, ora nas pessoas privadas, o mesmo se verificando
quanto à titularidade que é peculiar à Administração ou ao administrado.
Desse modo, quando o administrado tem o direito
de exigir do estado o cumprimento de obrigações ativas ou passivas, dizemos que
está de posse e no uso de seus direitos públicos subjetivos erga statum, figurando, pois, como
sujeito ativo de tais direitos e a Administração como sujeito passivo, ao passo
que quando o Estado, no uso do jus
imperii ou potestade, como, por
exemplo, na realização efetiva dos créditos resultantes da imposição
tributária, exige do particular a cobrança, está, por sua vez, na
acionabilidade de seus direitos públicos subjetivos, passando agora a figurar
como sujeito ativo da relação de administração.
O direito à educação serve para ilustrar o tema
dos direitos subjetivos públicos, mas não se confunda o direito à educação com
o direito subjetivo público à educação. Direito declarado verbalmente, de
lineamento discutível, é diferente de direito subjetivo, munido de ação
protetória. O direito que todos têm ou teriam à educação, direito declarado,
não é a solução melhor, mais perfeita, mais humana. Cumpre elevar, mediante
pretensão, ação e remédio processual adequado, o direito à educação à categoria
de realidade exigível, pela aplicação de sanções a quem não o cumpre.
Cria mera possibilidade de instrução para todos,
sem, entretanto, o traço de direito subjetivo público, é um passo, condição
mesma para a concretização desse tipo de subjetividade, a que falta, ainda, a
chancela da pretensão, da ação e, no caso de inércia, da sanção.
Quanto à legalidade do ato administrativo, pois
que a Administração se submete ao princípio da legalidade, o administrado tem o
direito público subjeto de exigir tal conformidade de adequação do ato à lei,
quando o pronunciamento o atinja individualmente, prejudicando-o.
Relativamente ao desencadeante da ação popular,
é a particular parte legítima, fazendo, uso, então, de seu direito público
subjetivo àquele remedium juris. Nem
se diga, neste caso, que o direito subjetivo material é da pessoa jurídica
pública, porque o cidadão, fração do estado, também se beneficia com a
providência tomada, impedindo lesão patrimonial que indiretamente o atinge.
Tratando-se de acesso aos cargos públicos (art.
37, I), o cidadão, em nosso direito, tem os seguintes direitos públicos
subjetivos: o de ser tratado com igualdade; o de ser escolhido de acordo com a
lei; o de inscrever-se no concurso, preenchidos os requisitos legais, o de
concorrer, em licitações e concursos, com os que se encontram nas mesmas
condições ou em condições equivalentes, segundo critérios legais,
constitucionalmente válidos; o de não ter acesso condicionado de modo diferente
ao acesso de outros concorrentes que se acharem nas mesmas condições.
O art. 208, § 1º da Constituição vigente não
deixa a menor dúvida a respeito do acesso ao ensino obrigatório e gratuito que
o educando, em qualquer grau, cumprindo os requisitos legais, tem o direito
público subjetivo, oponível ao estado, não tendo este nenhuma possibilidade de
negar a solicitação, protegida por expressa norma jurídica constitucional
cogente.
8. DA
EDUCAÇÃO INFANTIL
8.1
Educação infantil como parte da educação básica
A educação escolar como processo de formação
integral do cidadão compõe-se de educação básica (formada pela educação
infantil, ensino fundamental e ensino médio) e de educação superior, de acordo
com o art. 21 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
A educação infantil não paira, pois,
abstratamente sobre o mundo dos fatos como um corpo errante de sentido, uma vez
que é elo integrante da corrente denominada educação
básica, e que compreende a educação infantil, o ensino fundamental e o
ensino médio.
Expressa o art. 22 da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação apenas duas finalidades da educação básica: a) fornecer ao aluno a
formação comum indispensável para o exercício da cidadania; b) fornecer-lhes
meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores.
Desarticula-se o art. 22 das finalidades
estabelecidas no art. 2º desta mesma Lei onde está previsto que a educação,
dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos
ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Assim, parece curial que a mata primeira da educação básica seja alcançar o
pleno desenvolvimento do educando.
Cada ramo da educação básica, por sua vez, tem
seus objetivos próprios, assim definidos: a) a educação infantil tem como
finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em
seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação
da família e da comunidade; b) o ensino fundamental terá por objetivo a
formação básica do cidadão, mediante: I - o desenvolvimento da capacidade de
aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do
cálculo; II - a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político,
da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III -
o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de
conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; IV - o
fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de
tolerância recíproca em que se assenta a vida social; c) o ensino médio terá
como finalidade: I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos
adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;
II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para
continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a
novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; III - o
aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento
da autonomia intelectual e do pensamento crítico; IV - a compreensão dos
fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a
teoria com a prática, no ensino de cada disciplina.
8.2
DISCIPLINA GERAL DA EDUCAÇÃO INFANTIL
A pré-escola, ou o antigo pré-primário, hoje
estendido para períodos de quatro a seis anos e onze meses, capaz, pois, de ser
desenvolvido ao longo de três anos letivos, sujeita-se a um regime
intermediário entre a educação nas creches e o ensino fundamental.
Ainda não existe para o educando infantil, nem
mesmo no campo da pré-escola a sujeição a sistemas de avaliação para fins de
promoção, mas apenas para registro e tratamento individualizado do aluno, em
apoio às suas dificuldades especiais e respeito à sua personalidade. De outro
lado, pode começar a estar sujeita a reconhecimento de intervalos nos períodos
escolares, a exemplo do que se passa com o ensino fundamental, onde a educação
nem é prestada em período integral, nem por todo o ano, havendo longos períodos
de férias.
Essa fase de intermediação entre os regimes de
creche e de ensino fundamental pode e, sempre que necessário, deve ser
complementada pelo Poder Público com programas auxiliares de caráter também
educacional através de atividade própria ou conveniada de apoio pedagógico e
assistencial integral através de centros de referência da infância ou programas
análogos que permitam o completo desenvolvimento das crianças em todos os
aspectos preconizados pelo art. 29 da Lei 9.394/96.
8.3
FINALIDADE DA EDUCAÇÃO INFANTIL
A
educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o
desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos
físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e
da comunidade (art. 29), servindo assim como etapa básica para adequado
aproveitamento do ensino fundamental.
8.4
GRATUIDADE DA EDUCAÇÃO INFANTIL
Elogio que cabe para a Lei 9.394/96 que estendeu
a garantia da gratuidade para a educação pré-escolar ou infantil. As
pré-escolas destinam-se às crianças de quatro a seis anos de idade, fazendo-se
idêntica ressalva que estas estão garantidas até aos seis anos e onze meses,
salvo se a rede pública acolher no ensino fundamental com idade inferior a sete
anos, o que consideramos perfeitamente possível e juridicamente exigível.
Veja-se que o ensino fundamental também é
concedido sob a rubrica de gratuidade, a exemplo do ensino infantil. Ocorre que
para o ensino fundamental há prática de crime de abandono intelectual pelos
pais se deixarem de prover a educação de filho em idade escolar. Apenas para os
pais existe essa obrigatoriedade especial, porque a obrigação genérica do
Estado existe não apenas para o ensino fundamental, mas para todos aqueles
previstos no art. 4º, no âmbito de sua competência. O art. 5º, § 2º indica
apenas uma ordem de preferência na formulação das políticas de atendimento, mas
todas as modalidades de ensino sendo deveres do Poder Público, são de prestação
obrigatória.
9. DA
OBRIGATORIEDADE DA EDUCAÇÃO INFANTIL PRÉ-ESCOLAR
Na sessão de 2 de julho de 1793, em pleno regime do terror, na Convenção Nacional,
ROBESPIERRE queria, em Projeto daquela data, que toda a mocidade fosse educada,
às expensas da República, desde os cinco anos. O art. 2º era assaz claro: “A
educação nacional será igual para todos; todos receberão o mesmo alimento, as
mesmas roupas, a mesma instrução e os mesmos cuidados”. O art. 3º considerava dívida da República a educação nacional
e negava aos pais o direito de se oporem à instrução.[14]
À noção do direito natural (por exemplo, Wilhelm
Von Humboldt, em 1729), de direito escolar para todos os povos, ligado à teoria geral do direito, fora dos
limites em que o Estado pode exercer a sua atividade, sucedeu em que o Estado
interessado na difusão do ensino; e a essa, a do Estado responsável pelo ensino
de todos os seus cidadãos e realizador da igualdade
intelectual (uma das espécies de igualdade material). Tal igualdade não
significa primarização geral, e sim o asseguramento de iguais possibilidades
educativas para todos.
As Constituições do fim do século XVIII não
resolveram o problema técnico da obrigatoriedade,
nem o problema técnico da generalização (compulsória
para o Estado) da escola. Nem mesmo da escola primária. Institui-se o ensino
gratuito, mas os dirigentes ficaram como os únicos juízes do número de postos escolares e das lotações. A escola única não veio à
tona. Todavia, somente era do ensino primário que se cogitava. Ao lado do
direito à educação deveria estar a obrigação de educação.[15]
A partir da promulgação da Constituição Federal
de 1988 e o que nela contém a respeito de educação e, especialmente quanto à
educação infantil, inúmeras inovações, em termos legais, têm sido verificadas.
Dentre estas inovações o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90)
e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) merecem
destaque dado o seu caráter nacional e abrangente.
Tendo em vista a intrínseca relação jurídica que
há entre as normas citadas e a correlação lógica existente entre elas, cumpre
citá-las especificamente a fim de que seja possível demonstrar a evolução e a
importância das mesmas, principalmente no que tange à educação infantil.
Assim, o art. 208 da Constituição Federal
preleciona:
Art. 208. O dever do Estado com a educação
será efetivado mediante a garantia de:
I - ensino fundamental obrigatório e
gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele
não tiveram acesso na idade própria;
(...)
IV - atendimento em creche e pré-escola às
crianças de zero a seis anos de idade;
(...)
§ 1º O acesso ao ensino obrigatório e
gratuito é direito público subjetivo.
§ 2º O não-oferecimento do ensino
obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade
da autoridade competente. (grifos nossos)
Desde já é possível verificar a dimensão da
responsabilidade estatal no tocante ao tema da educação, sendo caracterizado
como seu dever o oferecimento do
ensino básico, ou seja, do ensino infantil, fundamental e médio, segundo
definição proposta pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a seguir
analisada. E aqui cabe adiantar que o texto constitucional, como se vê, não
traça qualquer hierarquia ao enumerar as diversas áreas de atuação do Estado no
universo da educação, limitando-se a defini-las como “deveres” a serem,
obviamente, cumpridos, na medida em que a demanda da sociedade assim o exigir.
De acordo com este preceito constitucional, o
Estatuto da Criança e do Adolescente consagrou novamente, em seu art. 54, o
dever do Estado em propiciar a educação básica, salientando os mesmos pontos
tratados pela Carta Magna.
E por fim, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), sancionada em 1996, retoma a questão da responsabilidade do Estado em tema de educação, conforme disposto em seu art. 4º. Esta Lei, por sua vez, define a composição dos níveis escolares, já tratado de maneira genérica nos textos legais acima citados. Deste modo, em seu artigo 21 fica definida a estrutura da educação escolar:
Art. 21. A educação escolar compõe-se de:
I - educação
básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio;
II - educação
superior.
Ao tratar especificamente da educação básica
determina a referida Lei:
Art. 22. A educação básica tem por finalidade desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhes meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores.
E aqui cumpre fazer algumas considerações. O
legislador ao estipular o que comporia a educação básica, agrupou aqueles
níveis escolares que, como diz o próprio nome, são básicos à formação do
indivíduo e assim, indispensáveis ao seu desenvolvimento como ser humano e como
cidadão. Tanto o é que não incluiu neste rol o ensino superior que, apesar de
muito importante, não assume como objetivo primordial a formação da
personalidade do aluno.
Deste modo, da mesma forma que o ensino
fundamental e o ensino médio, o ensino infantil encontra-se em posição
privilegiada no rol de deveres do Estado. E tal privilégio encontra respaldo
não somente na esfera jurídica como, e principalmente, no campo da pedagogia e
da psicologia. Qualquer profissional da área, ao ser inquirido a respeito,
fornecerá resposta sempre no mesmo sentido: a imprescindibilidade do ensino
infantil, ministrado em creches e pré-escolas. Desde estudos realizados,
livros, artigos e outras publicações, até os índices estatísticos, indicam que
as crianças que freqüentam creches e pré-escolas apresentam condições
infinitamente superiores de ingressarem na 1ª série do primeiro grau do que
aqueles que não cursaram.
Diante do exposto chega-se a uma conclusão
lógica: não há nenhum tipo de preferência prevista pela Lei entre o
fornecimento de educação fundamental e o de educação infantil. Isto significa,
portanto, que o Estado será responsabilizado da mesma forma se deixar de prover
adequadamente o ensino infantil, assim como o será se deixar de prover o ensino
fundamental. E neste ponto cabe uma indagação: qual então o sentido do termo
obrigatório atribuído à educação fundamental no § 1º do art. 208 da
Constituição Federal e conseqüentemente da responsabilidade pelo seu
não-oferecimento prevista no § 2º do mesmo artigo?
Ora, claro é que quando a Lei determina a obrigatoriedade
do ensino fundamental, fica evidenciada a intenção do legislador em enfatizar o
caráter indispensável desta etapa educativa, o que não significa colocá-la
acima, em termos de importância, à educação infantil. Significa, por seu turno,
que o legislador foi atento ao tema da educação fundamental, visando frisar aos
administradores do Estado que o seu não fornecimento adequado pode gerar
conseqüências várias no que tange à responsabilidade jurídica. Claro que o não
fornecimento do ensino infantil também gera responsabilização estatal, mas que,
como se verá adiante, apresenta aspectos diferentes da responsabilidade
suscitada nos casos do não cumprimento da demanda do ensino fundamental.
Assim, enquanto a obrigatoriedade do ensino
fundamental caracteriza-se como um dever de duas vias, ou seja, dever do Estado
em propiciar e dever dos pais em garantir a matrícula do filho menor, a
obrigatoriedade do ensino infantil caracteriza-se somente pelo dever do Estado
em propiciá-la. Neste segundo caso, este caráter obrigatório não se encontra
expresso na lei, como no caso da educação fundamental, mas implícito no “caput”
do art. 208 da Constituição Federal, que determina: O dever do Estado com a
educação...
Ambos os ciclos educacionais, portanto, têm
caráter obrigatório, restando a diferença entre eles o fato de no caso do
ensino infantil não estarem os pais compelidos pela lei a matricular suas
crianças nas creches e pré-escolas. No caso do ensino fundamental, determina o
Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 55: “Os pais ou responsável têm a
obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”
Tal obrigação é elemento integrante daquele rol
de deveres que incumbe aos pais cumprirem, sob pena, inclusive de destituição
de pátrio poder. Assim, dispõe novamente a referida Lei:
Art.
22: Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores,
cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir
as determinações judiciais. (grifo nosso)
E quanto à sanção prevista por este Estatuto
Legal:
Art. 24: A perda e a suspensão do pátrio poder serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22.
E, por fim, cumpre ressaltar que também incorrem
em prática de crime os pais que não provêm ao filho a educação adequada, sendo
este fato criminoso intitulado como “abandono material”, previsto no art. 246,
do Código Penal.
O objetivo da citação destes dispositivos legais
é exatamente demonstrar qual o tipo de vínculo obrigacional que existe entre o
particular e o ensino fundamental. Sim, porque como já foi dito, em relação ao
Estado, a obrigação se caracteriza seja quanto ao ensino fundamental, seja
quanto ao ensino infantil.
A educação é obrigatória para o Estado como
serviço público que deve ser posto em quantidade e qualidade necessárias para
atendimento universal da população em condições de igualdade de conteúdo e
aproveitamento àquele posto à disposição pela iniciativa privada.
Ora, se o ensino infantil é obrigatório, também
pode se dizer que é direito público subjetivo, assim como o ensino fundamental.
Tal conclusão, ainda que óbvia e baseada no bom senso, pois afinal está-se
falando de uma etapa importantíssima na educação da criança, merece especial
atenção.
Segundo o eminente professor Rodolfo de Camargo
Mancuso, “os direitos subjetivos compreendem posições de vantagem, privilégios,
prerrogativas, que, uma vez integradas ao patrimônio de seu titular, passam a
beneficiar de uma tutela especial do Estado.” E complementa: “quando tais
prerrogativas se estabelecem em forma de créditos formados contra ou em face do
Estado, tomam a designação de direitos subjetivos públicos.” [16]
De acordo com tal definição, fica claro
visualizar o direito à educação infantil como um direito subjetivo, já que,
integrando o rol de direitos sob titularidade da criança, passam,
necessariamente, a serem tutelados pelo Estado. E mais, patente é constatar que
também se trata de um direito público subjetivo haja vista que figura como
crédito em face do Estado.
Ora, se é a educação infantil direito público
subjetivo e de caráter obrigatório, qual a motivação do legislador em expressar
tais condições apenas para o ensino fundamental? A resposta é simples. Ao se
proceder à análise dos textos legais pertinentes à educação, uma conclusão
somente é cabível: não há hierarquia alguma entre o ensino fundamental e o
infantil. Optou, porém, o legislador em ressaltar aos administradores do Estado
que o ensino fundamental é tão importante para a criança a ponto de estarem os
pais obrigados a matricular seus filhos, sob pena de sofrerem todas as sanções
acima expostas. E se os pais estão obrigados a cumprir este dever, o Estado,
logicamente, deve prover a escola de toda a infra-estrutura necessária, pois,
caso contrário, as normas mencionadas teriam seu conteúdo esvaziado.
No caso do ensino infantil, tal obrigação legal
dos pais em relação à matrícula dos filhos não existe, o que, em tese,
abrandaria a urgência do fornecimento. O que não significa que não seja o
ensino infantil obrigatório ou consistente em um direito público subjetivo, ou
seja, passível de ser objeto de responsabilização estatal em função de seu não
fornecimento adequado.
Ademais disso, por figurar como princípio a
igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola (art. 3º, inc.
I), as crianças que puderam desfrutar, sobretudo, de pré-escola, tendem a
ingressar em condições mais evoluídas no processo de alfabetização e
desenvolvimento intelectual. Assim, diante do sistema de direitos e garantias
preconizados pela Constituição Federal e pela Lei 9.394/96, somos inclinados a
registrar a opinião no sentido de que, mesmo sem o caráter obrigatório para os
pais ou responsáveis, a pré-escola, correspondendo a deveres do Estado para com
a educação, são etapas do ensino fundamental, tornando-se secundário o disposto
no art. 30.
Assim, o acesso à pré-escola também, e igualmente
ao ensino fundamental propriamente dito, é direito público subjetivo,
regendo-se pelas disposições tanto do Estatuto da Criança e do Adolescente,
quanto desta Lei, as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos
assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não-oferecimento ou
oferta irregular de atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a
seis anos de idade. (art. 208, III da Lei nº 8.069/90 e art. 5º da Lei nº
9.394/96).
Disposições análogas a essa disciplina jurídica
da educação pré-escolar e infantil estão dispostas, como visto, nos arts. 208,
inc. IV da Constituição Federal e 54, inc. VI do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Diante do exposto, evidenciado está o
descumprimento de normas constitucionais pelo Estado nas situações em que não
há um atendimento proporcional à demanda nas creches e pré-escolas municipais.
Se o pai não é obrigado a propiciar o ingresso do filho na pré-escola, o Estado
é sim, de maneira indiscutível, obrigado a colocá-la à disposição das crianças,
sendo os seus pais, portanto, os únicos
a possuírem legitimidade para decidir pelo ingresso ou não da criança na
educação infantil.
Assim, inexiste discricionariedade
administrativa do Poder Público no sentido de promover ou não a educação
infantil na sua rede oficial de ensino. Sua omissão dá ensejo às ações
judiciais já apresentadas anteriormente por todos aqueles legitimados.
10.
DO CONTROLE DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA EM MATÉRIA DE EDUCAÇÃO
OBRIGATÓRIA
10.1
INTRODUÇÃO
Toda experiência haurida em mais de oito anos de
vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente tem despertado diversas
indagações na doutrina que desembocam na seguinte pergunta: como tornar reais
os direitos consagrados, à exaustão, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente,
inspirados pela Constituição-Cidadã de 1988?
Se é certo que o art. 227 da CF decorreu de uma
imensa pressão popular que guindou o princípio da prioridade absoluta à
hierarquia de norma constitucional, “lex superior”, não é menos certo que a
norma infraconstitucional que se lhe seguiu - o ECA - objetivou, através de uma
série de preceitos ousados para nossa sociedade marcada por desigualdades e
injustiças sociais, criar uma tensão entre a norma e a realidade, de tal sorte
que, através de diversos mecanismos, notadamente os de participação popular,
fosse possível forjar um avanço no tecido social.
Dentre estes mecanismos, sobressai o da ação
civil pública para tutela dos bens-interesses contemplados pala Carta Magna e
pelo ECA, para cuja propositura estão legitimados, concorrentemente, o
Ministério Público, a União, os Estados, os Municípios, os Territórios, o
Distrito Federal e as associações legalmente constituídas, há pelo menos um
ano, e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e
direitos protegidos pelo ECA.
Ocorre que a força vanguardeira que inspirou o
art. 227 da CF e o Estatuto da Criança e do Adolescente e, de forma muito
nítida, vem alimentado iniciativas do Ministério Público - especialmente o de
primeiro grau - nessa seara, perde terreno quando essas demandas, de solução
conturbada, desembocam nos tribunais.
Avaliando uma série de acórdãos sobre o tema -
que ainda são poucos face à recenticidade dos dispositivos legais neles
debatidos -, concluímos que o principal argumento para o não-acolhimento da
pretensão deduzida em juízo decorre, direta ou indiretamente, do chamado “poder
discricionário” do Administrador Público.
Nesses arestos, o Judiciário acaba por concluir
não lhe ser possível, sob pena de se imiscuir na esfera de atribuições de outro
Poder, condenar o Poder Executivo numa obrigação de fazer ou não-fazer
(geralmente da primeira espécie), pena de ser vulnerado o postulado da
discricionariedade administrativa.
Por entendermos que essa idéia não se coaduna
com o espírito do Constituinte - que merece respeito - nem com o claramente
vazado nas normas escritas por muitas e anônimas mãos aglutinadas na Lei nº
8.069/90 - é que resolvemos desenvolver este estudo, o qual se pretende seja
INSTRUMENTAL, ou seja, ferramenta útil para todos aqueles que labutam na área
da infância e juventude, principalmente direcionado aos que têm como
compromisso pessoal forjar o avanço social, a partir de uma lei que pode ser
adjetivada de revolucionária - O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.
10.2
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
Como já pontificou com brilho o culto magistrado
da Vara da Infância e da Juventude da Lapa, MM. Juiz de Direito Dr. Fermino
Magnani Filho, ao conceder medida liminar em ação civil pública proposta pelo
Ministério Público visando correções na política estadual sobre o programa de
reorganização do ensino:
Orientação momentânea
da política educacional está a sobrepor-se a um trabalho reconhecidamente bem
sucedido. Esses momentos negros - valendo frisar que os governos passam, mas o
lixo fica - seriam até compreensíveis sob regimes ditatoriais, tendem a
perpetuar seus efeitos funestos. (pp. 230 e 232 do Proc. 385/96).
Tais considerações evidenciam a necessidade de
controle sobre administração pública despossuída de valores, princípios e
padrões legais e constitucionais de intervenção. Suscita rígido e enérgico
controle jurisdicional para se fazer cumprir a Constituição Federal, a
Constituição Estadual e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Há, pois, redução do nível de discricionariedade
que se tolera em tema de políticas públicas direcionadas à infância e à
adolescência, em especial quanto à educação.
São lições da doutrina que a Administração tem
liberdade para decidir o que convém e o que não convém ao interesse coletivo,
devendo executar a lei “vinculadamente, quanto aos elementos que ela
discrimina, e discricionariamente, quanto aos aspectos em que ela admite opção[17].
Mas o fato de a lei conferir ao Poder Público certa margem de discrição
significa que lhe deferiu o encargo de adotar a providência mais adequada à
espécie, podendo examinar o momento e a forma de fazê-lo, mas não ficar inerte,
pois os comandos legais não se subordinam à vontade do administrado.[18]
De fato, o dever de agir é um dos princípios da
Administração, para quem a execução, a continuidade e a eficácia dos serviços
públicos constituem imperativos absolutos. Por isso se diz que, sendo outorgado
para satisfazer interesses indisponíveis, todo poder administrativo tem para a
autoridade um caráter impositivo, convertendo-se, assim, em verdadeiro dever de
agir.[19]
Em conhecida passagem, FLEINER adverte que, no
exercício de um poder discricionário, a autoridade administrativa está
autorizada a escolher entre as várias possibilidades de solução, aquela que
melhor corresponda, no caso concreto, ao desejo da lei. [20]
Essa característica fundamental do poder
discricionário, associada ao dever de eficiência que toca a Administração,
evidencia que a existência de norma autorizadora de um determinado ato, embora
requisito indispensável, não é suficiente para concluir pela sua legalidade em
um caso concreto.
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO explica, a
respeito, que, ao permitir alternativas de conduta, a lei não autoriza o
administrador a fazer o que bem entenda, antes o encarrega de adotar o
comportamento ideal: aquele que seja apto, no caso concreto, a atender com
perfeição a finalidade da norma. [21]
O mesmo autor identifica em todas as normas
(vinculadas ou discricionárias), o dever de adotar a melhor solução, praticando
os atos logicamente idôneos ao atendimento das finalidades colimadas. Nas suas
expressivas palavras, o dever jurídico de praticar, não qualquer ato dentre
os comportados pela regra, mas, única e exclusivamente, aquele que atenda com
absoluta perfeição à finalidade da lei, para que sempre seja adotada a
decisão pertinente, adequada à fisionomia própria de cada situação. [22]
Porque existe um dever jurídico de boa
administração, entende-se que o ordenamento só quer a solução excelente e “se
não for esta a adotada, haverá pura e simplesmente violação da norma de
Direito, o que enseja correção jurisdicional, dado que ter havido vício de
legitimidade”. Assim, “em despeito da discrição presumida na regra de direito,
se o administrador houver praticado ato discrepante do único cabível, ou se
tiver eleito algum sumamente impróprio ante o confronto com a finalidade da
norma, o Judiciário deverá prestar a adequada revisão jurisdicional”.[23]
Portanto, o administrador só é livre,
verdadeiramente, para, no caso concreto, decidir entre duas ou mais soluções
igualmente aptas a atender a finalidade legal, na sua plenitude.[24]
10.3
EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA:
A idéia de um poder discricionário do qual são
adotados os administradores da coisa pública nasce concomitantemente com a do
Estado de Direito.
A Revolução Francesa de 1789, ao soterrar a
monarquia, fez eclodir profundas mudanças em nível de infra e superestrutura,
numa linguagem marxista.
Na ordem jurídica, as alterações foram notórias,
marcando a passagem do Estado de Polícia ou Absolutista - “L’Etat C’est moi” -
para o Estado de Direito.
A concepção de Estado de Direito, gestada no
início do Século XVIII e influenciada, decisivamente, por nomes como os de
Rousseau e de MONTESQUIEU[25], tem como aspecto nuclear a submissão do
Executivo à lei, a legalidade cede ao arbítrio que imperava na estrutura
monarco-despótica rompida pela burguesia emergente.
Para Jean Jacques Rousseau, o Estado é resultado
de um acordo de vontades, de um contrato social, concluindo que apenas o Estado
é fonte de direito, sendo tal a legítima expressão da “volonté générale”. Ele
acreditava que a justificação do poder residiria na vontade direta dos vários
indivíduos que compõem o todo social.[26]
O pensamento de Montesquieu, o qual deixou sua
confortável posição na magistratura francesa para refletir sobre a acelerada
evolução política de seu tempo, vem resumindo em sua principal obra “O Espírito
das Leis”, na qual expressa, com a ironia que lhe é peculiar:
A liberdade política
somente existe nos governos moderados. Mas nem sempre ela existe nos governos
moderados. Só existe quando não se abusa do poder, pois é uma experiência
eterna que todo homem que detém o poder é levado a dele abusar; e vai até onde
encontra limites. Quem diria? A própria virtude precisa de limites. Para que
não abusar do poder, precisa que, pela disposição das coisas, o poder freie o
poder.
É na França que o direito administrativo ganha
foros de disciplina, inclusive a nível acadêmico, país pioneiro na formulação
de seus princípios basilares, dentre eles o do chamado “poder discricionário”.
Com efeito, costuma-se dizer que a “Certidão de
Nascimento” do Direito Administrativo está materializada numa lei francesa de
1800, conhecida por Lei de 28 do pluvioso ano VII (calendário da Revolução
Francesa).
Sem embargo da pertinência desse marco, de
inegável valia do ponto de vista da organização histórica dos acontecimentos, é
mister salientar que a função Administrativa sempre existiu, desde a
Antigüidade, sem solução de continuidade, ao contrário das demais funções do
Estado (Legislativa e Judicante), que sofreram algumas interrupções,
principalmente em períodos de arbítrio e de hipertrofia do Executivo.
A escola de administrativistas franceses, que
construiu o arcabouço doutrinário e principiológico sobre o qual nós, hoje,
ainda, comodamente, trabalhamos[27] estruturou o conceito de
discricionariedade administrativa em torno da idéia de PODER, colocando-a como
atributo imprescindível ao seu exercício.
Nesse sentido, vale traduzir trecho da obra de
Maurice Hauriou, vazado nos seguintes termos:
A administração não é animada, naquilo que ela faz, por uma vontade
interior, mas sim, por vontade executiva livre submetida à lei como um poder
exterior. Segue-se que, de um lado, nas matérias de sua competência, enquanto
seu poder não está ligado por disposições legais, ele é inteiramente autônomo
e, por outro lado, nas matérias em que seu poder parece ligado pela lei, ele se
conforma sempre a uma certa escolha de meios que lhe permite de se conformar
voluntariamente à lei.
Esta faculdade de se
conformar voluntariamente à lei é tanto mais reservada à administração das leis
quanto ela goza constitucionalmente de uma certa liberdade na escolha dos
momentos e das circunstâncias em que assegura esta aplicação.
Conforme este ponto de
vista, convém mostrar novamente que o poder discricionário da administração
consiste na faculdade de apreciar a oportunidade que pode ter de tomar
ou não tomar uma decisão executória, ou de não tomá-la imediatamente, mesmo que
seja prescrita pela lei.[28]
Do escrito por Hauriou, no início do século,
emerge a tônica da discricionariedade, segunda sua ótica: poder do administrador
que, nas matérias de sua competência, não delimitadas pela lei, estaria livre
para agir de acordo com critérios de conveniência e oportunidade.
Fiorini critica essa visão inicial do problema,
por acabar deixando ao arbítrio do administrador (o que não se coaduna com o
Estado de Direito) a forma de atuação quando a lei seja omissa quanto a ela.
São dele as seguintes palavras:
Para a velha tese da
legalidade, donde o poder administrador devia executar a lei, resultava difícil
justificar a existência da denominada discricionariedade da administração
pública. Esta se apresentava como um poder que tinha a administração pública.
Esta se apresentava como um poder que tinha a administração quando a lei não
havia disposto como devia atuar ante certas circunstâncias. Este reconhecimento
da existência da discricionariedade administrativa era a falência do caráter
absoluto da legalidade, que sustentava o dogma de que a administração só
executava a lei. A falência se salvava distinguindo-se a discricionariedade
como um poder dentro da administração, criador de normas particulares, que não
tinham a consistência jurídica das que executava a administração.[29]
O mestre português André Gonçalves Pereira, após
vaticinar contra aqueles que vêem no poder discricionário uma resultante da
falta de disciplina legal, faz questão de distingui-lo do poder arbitrário, “in
verbis”:
O poder discricionário
não resulta da ausência de regulamentação legal de dada matéria, mas sim de uma
forma possível de sua regulamentação: através de um poder, ou seja, do
estabelecimento por lei de uma competência, cuja suscetibilidade de produzir
efeitos jurídicos compreende a de dar validade a uma decisão a uma escolha, que
decorre da vontade psicológica do agente.
Discricionariedade e
vinculação são assim formas diversas de regulamentação por lei de certa
matéria; mas quando a lei não contemple determinada situação de vida, e não o
integre pelo menos genericamente na sua previsão, nenhum poder tem em relação a
ela o agente, - e sustentar o contrário seria pôr em dúvida o valor do
princípio da legalidade.[30]
Michel Stassinopoulos, citado pelo legendário
Themistocles Brandão Cavalcanti[31], fez um apanhado das teorias acerca
da natureza do ato discricionário que, no início do nosso século, encontravam
guarida doutrinária. Dentre elas, destaca-se a encampada pelo próprio
Stassinopoulos, segundo a qual a discricionariedade coincide com a determinação
ou a capacidade de determinação do sentido de uma noção deixada imprecisa pela
lei, havendo nisso a possibilidade de escolher entre as diversas soluções, a
melhor, ou a que for julgada melhor, por motivos de conveniência, de
oportunidade, de interesse público.
Essa noção, a nosso ver superada pela melhor
doutrina da atualidade, [32] ainda vem sendo reconhecida em diversos
arestos de nossos tribunais, receosos de ousarem interferir no intangível
“mérito” do ato administrativo.
Outra corrente, criticada pela sua falta de
consistência científica (pois confunde a natureza do ato discricionário com uma
de suas conseqüências), qualifica de discricionário o poder não sujeito ao
controle jurisdicional (Strassinopoulos debita essa abordagem a Laun, Jellinek
e Gegotz).
Essa teoria, a par de seu arrigorismo técnico,
também não mais encontra respaldo na doutrina hodierna, que vem,
paulatinamente, admitindo serem todos os atos administrativos, mesmo os de
cunho discricionário, sujeitos ao crivo do Poder Judiciário. Lamentavelmente,
na jurisprudência, ainda há algum receio de invasão na esfera de atuação do
Poder Executivo,[33] a despeito de ter nossa vigente Carta Magna
ampliado a noção de universalidade da jurisdição: “a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”; (inc. XXXV do art. 5º),
aderindo a uma verdadeira tendência mundial de abertura do Poder Judiciário.[34]
A vigente Carta Magna avançou no tocante ao
acesso à Justiça, pois, além de ter suprimido a expressão individual, o
que franqueia a tutela dos interesses metaindividuais, acrescentou a expressão
“ameaça a direito”, se comparada com o art. 153, § 4º, da Emenda constitucional
nº 1/69.
Da ênfase que era dada à atividade
discricionária enquanto vinculada à idéia de poder[35, 36], evoluiu-se,
face ao fortalecimento do princípio da legalidade[37] para a idéia de poder-dever.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, comentando o
assunto, conclui ser preferível conceber a discricionariedade administrativa
como uma competência para definir, no caso, o interesse público,
atribuindo-lhe a natureza jurídica de poder-dever.[38]
Essa trajetória está associada ao acréscimo de
funções sofrido pelo Estado que passou a ser de cunho social.
Consoante os adjetivos que as Constituições
foram acrescentando a idéia de Estado, conclusão essa diagnosticada com
precisão por Maria Sylvia Zanella Di Pietro,[39] esse passou de mero
Estado de Direito para um Estado Social, que, hoje, ainda, se almeja seja
democrático, atributo esse que virá a delimitar ainda mais a abrangência da
discricionariedade administrativa.
Não por outra razão, a doutrina moderna passa a
identificar a discricionariedade mais com a idéia de DEVER do que com a de
PODER, acentuando sua condição de serviente, caracterizador de função pública.
Celso Antônio Bandeira de Mello[40], é
categórico ao analisar:
Na ciência do Direito
Administrativo, erradamente e até de modo paradoxal, quer-se articular os
institutos do direito administrativo - inobstante ramo do direito público - em
torno da idéia de poder, quando o correto seria articulá-lo em torno da idéia
de dever, de finalidade a ser cumprida. Em face da finalidade, alguém - a
Administração Pública - está posta numa situação que os italianos chamam de doverosità,
isto é, sujeição a esse dever de atingir a finalidade. Como não há outro meio
para se atingir esta finalidade, para obter-se o cumprimento deste dever, senão
irrogar a alguém certo poder instrumental, ancilar ao cumprimento do dever,
surge o poder, como mera decorrência, como mero instrumento impostergável para
que se cumpra o dever. Mas é o dever que comanda toda a lógica do Direito
Público. - grifei -. Assim, o dever assinalado pela lei, a finalidade nela
estampada, propõe-se, para qualquer agente público, como um ímã, como uma força
atrativa inexorável do ponto de vista jurídico.
Outros
doutrinadores pátrios[41], menos ousados que o mestre Celso Antônio, não
chegam a situar a discricionariedade na pauta dos deveres, mas questionam o
porquê da nomenclatura usualmente empregada - “poder discricionário”-, bem como
apontam os diversos limites constitucionais e legais a esse poder, face à
marcha dos acontecimentos históricos que têm levado uma democratização do
Estado de Direito, com sua tendência, inexorável, de passar a ser mais
participativo, menos representativo.
Numa linha própria de pensamento, não menos
vanguardista e científica, Lúcia Valle de Figueiredo afirma consistir a
discricionariedade numa “competência-dever” atribuída ao administrador para
agir no caso concreto, de acordo com o critério da razoabilidade geral.[42]
Por demais significativa é a lição trazida pelo
mestre Karl Engish, em sua “Introdução ao Pensamento Jurídico”, onde, ainda em
1956, prelecionava:
“Aqui podemos também
lançar mão do conceito evanescente de discricionariedade vinculada e dizer que
a discricionariedade é vinculada no sentido de que o exercício do poder de
escolha deve ir endereçado a um escopo e resultado da decisão que é o único
ajustado, em rigorosa conformidade com todas as diretrizes jurídicas”.[43]
Por fim, há quem vislumbre, como o tedesco Huber
e o francês Léon Duguit, antagonismo entre as idéias de
discricionariedade administrativa e a de Estado de Direito, na medida em que,
sob a inspiração do princípio da legalidade, inexiste atividade administrativa
não submissa aos seus cânones.
Enquanto Huber ironiza, comparando a
discricionariedade a um “Cavalo de Tróia” nos arraiais do Direito
Administrativo[44], Duguit assevera:
“A
limitação da competência, não somente quanto ao objeto do ato, mas ainda quanto
ao motivo que o determina, constitui garantia muito forte contra o arbítrio dos
agentes públicos. A conseqüência disso, com efeito, é que nada mais foi deixado
à apreciação discricionária do agente administrativo”.[45]
Não compactuamos com as posições extremas dos
ilustres autores estrangeiros, porquanto entendemos realmente haver um DEVER
discricionário. A discricionariedade, sob nossa ótica, é natural da prática do
direito, porque a vida é bem mais rica do que a lei, sendo impossível ao
legislador ordenar e prever todas as situações de vida, de exercício do poder e
de seus desdobramentos.
10.4
Controle jurisdicional da discricionariedade administrativa:
Razão assiste ao preclaro publicista Celso
Antônio Bandeira de Mello (talvez o mais completo da atualidade brasileira)
quando desloca o eixo metodológico do conceito de discricionariedade da noção
de poder para a de DEVER, noção essa muito mais afinada ao Direito Público e à
situação jurídica de FUNÇÃO.
O dever discricionário do administrador público
está, inegavelmente, cingido por diversos princípios trazidos a lume pela
Constituição de 1988 (inclusive em seu preâmbulo) e por normas de hierarquia
inferior.
Por outro lado, o princípio da legalidade, norte
maior do Administrador Público, foi ampliado de tal sorte a contemplar não mais
somente a lei, formalmente considerada, mas o Direito como um todo, com toda a
sua carga valorativa.
Não podemos conviver mais com a marca da
democracia meramente representativa, segundo a qual os cidadãos limitam-se a
eleger seus representantes e, após depositarem seu voto na urna, aguardam
passivamente a sucessão de atos de governo, sem qualquer participação na tomada
de decisões.
Se, desconformes com o modo de governar dos
eleitos, resta aos eleitores a possibilidade de, no próximo pleito, não tornar
a elegê-los.
Esse modelo político não serve ao terceiro
milênio.
Dotados dessa visão prospectiva, nossos
constituintes de 1988 engendraram e inscreveram no texto Constitucional
diversos mecanismos de participação popular nos atos de governo, em perfeita
consonância com o princípio gravado no parágrafo único do art. 1º da CF: “Todo
o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição”.
Sabedores de que a mobilização popular, máxime
em um país de dimensões continentais como o Brasil, é de difícil ou
impraticável influência direta junto aos governantes, nossos legisladores (a
nível Constitucional e Infraconstitucional), acolhendo soluções do Direito
alienígena e criando algumas genuinamente brasileiras, outorgaram legitimação a
certas entidades ou instituições, reconhecendo-lhes representatividade para
levar à análise de um outro segmento do PODER, o Judiciário, anseios e
pretensões que transcendem à esfera individual.
Essa multiplicidade de remédios processuais
alinhados na CF de 1988 (“habeas data”; mandado de injunção; ação popular;
mandado de segurança individual e coletivo; ação direta de
inconstitucionalidade; ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão e
quejandos) aliada aos inúmeros legitimados ativos para suas proposituras, consubstanciaria
verdadeira letra-morta se mantido o dogma da inatacabilidade do mérito do ato
administrativo.
Quando se aborda o tema da discricionariedade
como reduto privativo do administrador[46], geralmente se leva em conta
a clássica teoria da separação de poderes, cuja base teórica remonta aos
séculos XVII e XVIII, tendo em Montesquieu seu mais prolífico ideólogo.
Deveras. Não se pode olvidar o contexto social e
político que levou o famoso BARÃO DE BRÈDE e de MONTESQUIEU (1689/1755) a
construir tal estrutura: o absolutismo monárquico que imperava no mundo
ocidental antes da Revolução Burguesa de 1789, cuja característica marcante
era, sem dúvida, a hipertrofia do Executivo sobre as demais expressões de
poder.
Naquele cenário se tornava mais fácil compreender
porque o nobre, conquanto partidário da repartição tricotômica do poder,
idealizava um Judiciário amorfo, ao ponto de afirmar, literalmente: “Dos
três Poderes, de que falamos, o de julgar é de certo modo nulo. Não restam
senão dois[47]”.
A pouca relevância política dada ao Judiciário,
era contraposta pelo teórico à força do Legislativo, único poder capaz de, na
sua ótica, neutralizar os abusos do Executivo (“As leis devem, todo o tempo,
castigar o orgulho da dominação”) e mitigar as desigualdades.
Esse Judiciário, definido por Montesquieu como “a boca que pronuncia as palavras da lei”,
evoluiu, graças à plena superação da idéia de um poder ilimitado, e ganhou, na
prática, status” de Poder, compreendido, politicamente, como a capacidade de
decidir imperativamente e impor decisões.
Cândido Rangel Dinamarco[48] tece
profundas considerações sobre a Jurisdição, enquanto expressão do poder estatal
(que é uno), concluindo ser ela uma das funções do Estado, a qual,
ontologicamente, não se distingue é sua vocação para voltar-se aos casos
concretos, às situações de conflitos interpessoais.
O juiz de hoje deve ter presente, quando conduz
um processo e julga uma causa, que suas ações são manifestações do poder
estatal. Portanto, qualquer posição que adote tem conotação política, que deve
se pautar, não em seus gostos pessoais, em suas idiossincrasias, mas nos
valores dominantes do seu tempo, pois como afirma o multicitado Cândido
Dinamarco, o juiz “é, afinal de contas, um legítimo canal de
comunicação entre o mundo axiológico da sociedade e os casos que é chamado a
julgar”.[49]
José Afonso da Silva define, com inequívoco bom
senso, o que seja harmonia entre os poderes:
“cortesia no trato
recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que se verifica, primeiramente,
por normas de mutuante todos têm direito. De outro lado, cabe assinalar que a
divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são
absolutos. Há interferências que visam ao estabelecimento de um sistema de
freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da
coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em
detrimento do outro e especialmente dos governados”.[50]
Essa real harmonia leva o Judiciário, quando
provocado, a ser o responsável pela identificação do interesse público, não
podendo se furtar a fazê-lo. Discorrendo sobre o tema, o insigne Mauro
Capelletti, após acentuar a possibilidade de o Judiciário atuar para coibir
incorreções praticadas pelos membros dos outros poderes, afirma a relevância da
atuação desse Poder para colaborar com identificação do interesse público e
garantia de que esse seja realmente alcançado.[51]
Partindo-se da premissa de que nenhuma lesão ou
ameaça de lesão a direito (individual, coletivo, difuso, público ou privado)
não seja passível de apreciação pelo Poder Judiciário, resta concluir que
também a discricionariedade administrativa está sujeita ao controle
jurisdicional.[52]
Nessa linha de raciocínio, é digno de
transcrição parte do aresto da lavra do Des. Nery da Silva, do Tribunal de
Justiça de Goiás, onde, após trazer a lume lições exemplares da magistrada
Federal Lúcia Valle Figueiredo, infere:
“Não há imunidade
legal para quem infringe direito. O poder discricionário não está situado além
das fronteiras dos princípios legais norteados de toda iniciativa da
administração e sujeita-se a regular apreciação pela autoridade judicante”.[53]
Extrai-se das colocações acima a exata dimensão
que o Relator daquela apelação interposta nos autos de uma ação civil pública
tem de sua função de fazer uma lei para o caso concreto: do caráter
indeclinável da Jurisdição e da legalidade que deve inspirar todos os atos
administrativos.
Decisão da sétima Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul (Relator o Des. Sérgio Gischow Pereira), entendeu
ser passível de apreciação pelo Poder Judiciário obrigação de fazer demandada
do Executivo Estadual, por ser respaldada em princípio constitucional e em lei
infraconstitucional, sem que com isso estivesse havendo qualquer tipo de
intromissão do Judiciário na discricionariedade do Administrador Público. Na
ementa do acórdão, afirma o insigne Relator:
“Valores
hierarquizados em nível elevadíssimo, aqueles atinentes à vida e à vida digna
dos menores. Discricionariedade, conveniência e oportunidade não permitem ao
administrador que se afaste dos parâmetros principiológicos e normativos da
Constituição Federal e de todo o sistema legal”.[54]
De todos os ensinamentos supra-expostos, resulta
de meridiana clareza a possibilidade e até a necessidade de controle judicial
dos atos administrativos, mesmo aqueles praticados dentro da chamada esfera de
atuação discricionária, porque somente esse controle, a par de outros previstos
na Lei Magna, é capaz de garantir que a Administração atue sempre pautada pelo
princípio da legalidade estrita, jamais desbordando eventuais opções que o
vazio da norma lhe deixe (já que o legislador não tem como prever todas as
situações concretas da vida) para uso arbitrário do Poder.
10.5
CONCEITO DE DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA:
Através de uma ótica funcional da Administração,
podemos definir a discricionariedade administrativa como sendo o dever de o Administrador Público, ante o
grau de imprecisão existente na norma, seja essa imprecisão derivada de
conceitos axiológicos ou multissignificativos, optar pela solução que mais se
compatibilize com o interesse público, ditado pela Constituição, pelas normas
de inferior hierarquia e pelos dominantes ao tempo da consecução do ato.
Despretensiosamente, nosso conceito busca
realçar a idéia de um “DEVER” discricionário.
Compromete-se com a necessidade de o
Administrador estar sempre vinculado à legalidade, enquanto conceito amplo,
hoje integrado também por outras fontes de Direito distintas da lei “stricto
sensu”.
Por fim, ressalta o império do interesse público
sobre todas as condutas administrativas.
10.6
O PRINCÍPIO DA PRIORIDADE ABSOLUTA AOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE:
De forma inédita na legislaçao brasileira, o
Constituinte de 1988 fez sentir, no art. 227, o chamado princípio da prioridade
absoluta, quando determina ser dever da família, da sociedade e do Estado,
assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária.
Essa nota diferencial em relação a outros campos
de atuação das políticas públicas, a fim de que não pairasse qualquer dúvida
quanto à aplicabilidade do preceito constitucional (que alguns ainda insistem
de taxar de meramente programático), veio reiterada e esmiuçada na Lei nº
8.069/90, mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente.
Reza o art. 4º:
É dever da
família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com
absoluta prioridade - grifei -, a efetivação dos direitos referentes à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária.
Parágrafo Único -
A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de
receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência do
atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência
na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação
privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à
infância e à juventude - grifos meus.
O dispositivo fala por si só. É por demais explicativo,
mormente para quem está imbuído do espírito da lei e dos critérios que devem
nortear sua interpretação.
O art. 6º do ECA traça os rumos da hermenêutica
a ser empregada por seu aplicador, destacando os fins sociais a que se dirige;
as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos e a
condição peculiar da criança e do adolescente de pessoas em desenvolvimento.
Ainda que não o fizesse, é mister ao intérprete
abrir mão da chamada “hermenêutica tradicional”, que nunca valorou corretamente
a força normativa dos princípios, e realizar um trabalho exegético
multilateral, que leve em conta não só a valoração política, como a social e
até a econômica.[55]
O mestre em Direito Econômico, Johnson Barbosa
Nogueira, em excelente trabalho publicado na Revista GENESIS de Direito
Administrativo, procura destacar a função hermenêutica dos princípios. Segundo
ele:
“Os princípios são
referenciais de valoração jurídica, os grandes responsáveis para não se ter uma
valoração livre, mas emocionalmente conceitual. São os princípios a
ferramenta primordial para o preenchimento das lacunas (axiológicas) do
ordenamento jurídico”.[56]
Prioridade, segundo o mais popular dos
dicionaristas brasileiros, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, é:
“1. Qualidade do que está em primeiro lugar, ou
do que aparece primeiro; primazia. 2. Preferência dada a alguém relativamente
ao tempo de realização de seu direito, com preterição do de outros; primazia.
3. Qualidade duma coisa que é posta em primeiro lugar numa série ou ordem”.[57]
ABSOLUTA, segundo o mesmo “Aurélio” (hoje
sinônimo de dicionário de nossa língua), significa ilimitada, irrestrita,
plena, incondicional.
A soma dos vocábulos já nos indica o sentido do
princípio: qualificação dada aos direitos assegurados à população
infanto-juvenil, a fim de que sejam inseridos na ordem-do-dia com primazia
sobre quaisquer outros.
Segundo o Promotor de Justiça Wilson Donizeti
Liberati, especialista na área dos direitos da criança,
Por absoluta
prioridade, devemos entender que a criança e o adolescente deverão estar em
primeiro lugar na escala de preocupações dos governantes; devemos entender que:
primeiro, devem ser atendidas todas as necessidades das crianças e adolescentes
(...).
Por absoluta
prioridade, entende-se que, na área administrativa, enquanto não existirem
creches, escolas, postos de saúde, atendimento preventivo e emergencial às
gestantes, dignas moradias e trabalho, não se deveria asfaltar ruas, construir
praças, sambódromos, monumentos artísticos, etc., porque a vida, a saúde, o
lar, a prevenção de doenças são mais importantes que as obras de concreto que
ficam para demonstrar o poder do governante.[58]
O jurista Dalmo de Abreu Dallari,[59] comentando
o art. 4º do ECA, destaca a necessidade de serem priorizados o apoio e a
proteção à infância e juventude, por mandamento constitucional. Mais. Preceitua
não ter ficado ao alvedrio de cada governante decidir se dará ou não apoio
prioritário às crianças e aos adolescentes.
Exsurge com clareza, das considerações tecidas,
não ser possível qualificar a norma esculpida no art. 227 da CF como sendo de
eficácia contida (na classificação exemplar de José Afonso da Silva); nem como
sendo “not self-executing”, na já superada taxionomia do Direito Americano.
A norma é
clara, passível até de uma exegese meramente gramatical, aquela que exige do
intérprete o mínimo esforço racional, embora seja recomendável avançar no
“iter” hermenêutico e se lançar mão dos métodos lógico e teleológico, quando,
então, virão a lume os dispositivos dos arts. 4º e 6º do ECA.
A prioridade absoluta, enquanto
princípio-garantia constitucional, vem sendo reconhecida em alguns julgados de
nosso país.
É do Tribunal de Justiça do Distrito Federal o
primeiro acórdão, verdadeiro “leading case”, do qual tivemos conhecimento no
qual há menção clara a ele, “in verbis”:
Do estudo atento
desses dispositivos legais e constitucionais, desume-se que não é facultado à
Administração alegar falta de recursos orçamentários para a construção dos
estabelecimentos aludidos, uma vez que a Lei Maior exige PRIORIDADE ABSOLUTA -
art. 227 - e determina a inclusão de recursos no orçamento. Se, de fato, não os
há é porque houve desobediência, consciente ou não, pouco importa, aos
dispositivos constitucionais precitados encabeçados pelo parágrafo sétimo do
art. 227.[60]
O Tribunal de Justiça Gaúcho, em decisão
anteriormente mencionada, também faz referência ao princípio quando adverte:
A exigência de
absoluta prioridade não deve ter conteúdo meramente retórico, mas se confunde
com uma regra direcionada, especificamente, ao Administrador Público.[61]
Partindo da premissa de que a norma do art. 227
é de eficácia plena (distanciando-se em tudo daquelas que alguns insistem em
catalogar como sendo de conteúdo meramente programático, cada vez mais raras em
nosso ordenamento jurídico malcriadamente positivado), temos de reconhecê-la,
sim, como um fator a mais a limitar o campo de atuação discricionária do
administrador público.
Pensar de outra maneira é converter o art. 227 e
o microssistema do ECA em meras cartas de intenções, desvirtuando-os de seu
sentido evolutivo, de sua virtual condução a uma utopia concreta.
É também ignorar que diversas normas
constitucionais, como bem ensina o juspublicista luso Gomes Canotilho,
destinam-se a formular roteiros de ação que os poderes públicos devem
concretizar, os quais adquirem especial relevância nos programas de governo[62].
Eduardo Garcia de Enterria e Tomás-Ramón
Fernández, dissertando sobre os princípios constitucionais[63]
tecem considerações críticas a respeito dessa classificação de algumas normas
inseridas na Constituição como sendo princípios meramente programáticos.
Textualmente, vejamos:
“Estes valores não são
pura retórica, temos de impugnar essa doutrina, de tanta força ineficaz entre
nós - simples princípios programáticos - sem valor normativo de aplicação
possível; pelo contrário, são justamente a base inteira do ordenamento; o
que há de presidir, portanto, toda sua interpretação e aplicação” – grifei.
A partir do momento em que se tem uma visão
nítida do sistema, do qual ressalta o princípio em foco, certamente que nenhum
magistrado ousará denegar Justiça sob o argumento da inviabilidade de exame do
agir discricionário do administrador.
10.7
PERIGO DE DESRESPEITO ÀS NORMAS CONSTITUCIONAIS
Ao se enfatizar o assento constitucional do
princípio da prioridade absoluta (art. 227 da CF), é mister que explicitemos a
sua eficácia jurídica.
Sob a inspiração da doutrina de José Afonso da
Silva, é possível situar o princípio em comento dentre os princípios gerais
informadores de toda a ordem jurídica nacional. Portanto, traduz-se ele em
norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata.[64]
Nessa linha de raciocínio, não merece acolhida a
argumentação de que nossa Constituição, no tocante à priorização das questões
atinentes à infância e juventude, seria de cunho programático. Por essa trilha
equivocada, “data venia”, optou o E. Superior Tribunal de Justiça no julgamento
de Recurso Especial interposto nos autos de ação civil pública ajuizada pelo
“parquet” de Goiás, “verbis”:
A nossa Constituição
de 1988, mais do que todas as Cartas e Constituições brasileiras anteriores é
dirigente (dirigierende Verfassung) e programática (programmatische
Verfassung). Ela almeja construir uma sociedade livre, justa e solidária
(art. 3º, I) erradicando a pobreza e a marginalidade, e reduzir as
desigualdades sociais e regionais (id. III). Em outras palavras, um dos
objetivos fundamentais da nossa República Federativa é oferecer diretivas
modeladoras para a própria sociedade, acenando na ordem econômica,
financeira, cultural e ambiental. Essas normas programáticas se destinam
especialmente aos Poderes Públicos; Ao Legislativo, para que ele procure
elaborar as normas infraconstitucionais consoante programas e tarefas
gizados pela Constituição; Ao Judiciário, para que ele igualmente exerça a
denominada atualização constitucional (Verfassungsaktualisierung), ou
seja, interprete as leis tal qual preceituado na Constituição. Acontece que no
caso dos autos, as normas maiores não estabeleceram, de modo concreto, a
escalada das prioridades - grifei. Assim, não se tem como obrigar o Executivo a
construir o Centro de Recuperação e Triagem para a recepção de adolescentes
submetidos ao regime compulsório de internamento. Haveria uma verdadeira
intrusão do Judiciário no Executivo.[65]
Labora em erro o eminente Relator quando entende
imprescindível uma definição, a nível infraconstitucional, de uma “escalada da
prioridade”. Ora, ou a questão é prioritária, com a nota de absoluta, ou não é.
O Brasil parece regozijar-se de ser o país do
faz-de-conta, o único no mundo onde 12% (doze por cento) podem ser 20,25%.
Sendo o Estado de Direito um Estado
Constitucional, torna-se implícita a existência de uma Constituição que sirva
de ordem jurídico-normativa fundamental, vinculando todos os poderes
públicos.
Gomes Canotilho, ao discorrer sobre a noção de
SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO, desdobra sua lição em quatro tópicos: a) vinculação
do legislador à constituição; b) vinculação de todos os restantes atos do
Estado à constituição; c) o princípio da reserva da constituição e d) força
normativa da constituição.
Explicando o item b, acentua que o princípio da constitucionalidade não se impõe
apenas sobre os atos que não violem positivamente a Constituição, mas também
repercute sobre a omissão inconstitucional, por falta de cumprimento das
imposições constitucionais ou de ordens de legislar.
Sobre a força normativa da Constituição adverte:
“No entanto, quando
existe uma normação jurídico-constitucional ela não pode ser postergada
quaisquer que sejam os pretextos invocados. Assim, o princípio da
constitucionalidade postulará a força normativa da constituição contra a
dissolução político-jurídica eventualmente resultante: (1) da pretensão de
prevalência de fundamentos políticos, de superiores interesses da
nação, da soberania da Nação sobre a normatividade
jurídico-constitucional; (2) da pretensão de, através do apelo ao direito
ou à idéia de direito, querer desviar a constituição da sua função
normativa e substituir-lhe uma superlegalidade ou legalidade de duplo grau,
ancorada em valores ou princípios transcendentes (Preuss).”[66]
O perigo de converter-se a Constituição em mera
carta de intenções já havia sido apontado pelo Prof. Konrad Hesse, em sua
monografia “A Força Normativa da Constituição”, escrita para rebater o texto “O
que é uma Constituição Política” de Ferdinand Lassale.
Hesse confere peculiar destaque à chamada vontade
da Constituição, alinhando-a a vontade de poder. Segundo ele,
“aquilo que é
identificado como vontade da Constituição deve ser honestamente preservado,
mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar a alguns benefícios, ou até a
algumas vantagens justas. Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em
favor da preservação de um princípio constitucional, fortalece o respeito à
Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado,
mormente ao Estado democrático. Aquele que, ao contrário, não se dispõe a esse
sacrifício, malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do
que todas as vantagens angariadas e que, desperdiçado, não mais será
recuperado.”[67]
A lição do mestre germânico merece uma profunda
reflexão, máxime em nosso país onde a regra é o desrespeito às normas constitucionais,
sempre sob o argumento de não serem elas providas de aplicabilidade imediata.
Oprimir a eficácia do princípio da prioridade
absoluta é condenar seus destinatários à marginalidade, à opressão, ao descaso.
É fazer de um diploma que se pretende revolucionário,
o Estatuto da Criança e do Adolescente, instrumento de acomodação.
10.8
A AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA CONCRETIZAÇÃO DOS BENS-INTERESSES TUTELADOS PELO ECA
E PELA CONSTITUIÇÃO
Os idealizadores do Estatuto da Criança e do
Adolescente, no tocante à proteção judicial dos interesses desse contingente de
cidadãos, agiram em total consonância com o princípio constitucional da
Universidade da Jurisdição.
Tocante à ação civil pública (que é um dentre
tantos remédios processuais a que alude a L. 8.069/90), foi ela objeto de
ampliação.
Está o Ministério Público legitimado (coisa que,
apesar dos quase sete anos de vigência do ECA, poucos lidadores do Direito o
sabem)[68] a ajuizar ação civil pública para proteção de interesses individuais
de crianças e adolescentes.
Louvando-se nesse permissivo (art. 201, inc. V,
do ECA), o Ministério Público do Rio Grande do Sul ajuizou demanda contra o
Estado do Rio Grande do Sul, com o fito de compeli-lo a suportar encargos
decorrentes do transplante de medula óssea - única forma de salvar a vida de
uma menor - e arcar com os remédios, transporte e despesas hospitalares
derivadas do procedimento.
Em contestação, o Estado-réu argumentou, dentre
outras coisas, ser o Ministério Público carecedor de ação, por fundamentar o pleito
em matéria constitucional não regulamentada por lei ordinária.
A demanda foi julgada procedente, por sentença
confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. No acórdão,
o Relator designado (houve um voto divergente) faz expressa referência ao art.
227 da CF, conforme veremos:
Então, atendendo a este fato e à circunstância bem colocada pelo
Ministério Público, autor da ação civil pública, vislumbro a incidência do art.
227 da Constituição Federal, que obriga o Poder Público, o Estado como um todo,
a assegurar à criança a ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, etc. No caso específico, o
direito à vida.
Ainda, o art. 4º do
Estatuto da Criança e do Adolescente diz que: é dever da sociedade em geral e
do Poder Público assegurar com prioridade a efetivação dos direitos referentes
à vida, à saúde, à alimentação, etc. No seu parágrafo único, diz que a garantia
da prioridade compreende a primazia em receber proteção e socorro em quaisquer
circunstâncias.[69]
O importante nessa decisão, a par do
reconhecimento da legitimidade ministerial para o ajuizamento de ação civil
pública para tutela de interesse individual (matéria essa que também foi objeto
de impugnação estatal), é o posicionamento favorável à idéia de eficácia plena
e aplicabilidade imediata dos direitos reconhecidos na CF à população
infanto-juvenil.
A legitimação para as ações de responsabilidade
civil por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente está
regulada nos arts. 201, inc. V, e 210, ambos do ECA.
Dentre as espécies de interesses a serem
argüidos em juízo, ressaltam, por sua abrangência, os difusos, aos quais Ada
Pellegrini Grinover atribui a seguinte qualificação jurídica:
Trata-se de interesses
comuns a uma coletividade de pessoas, que não repousam necessariamente sobre
uma relação-base, sobre um vínculo jurídico bem definido que as congregue. Tal
vínculo, nota Barbosa Moreira, pode até inexistir, ou ser extremamente
genérico - reduzindo-se, eventualmente, à pura e simples pertinência à mesma
comunidade política - e o interesse que se quer tutelar não é função dele, mas
antes se prende a dados de fato, muitas vezes acidentais e mutáveis; existirá,
v.g., para todos os habitantes de determinada região, para todos os
consumidores de certo produto, para todos os que vivam sob tais ou quais
condições sócio-econômicas ou se sujeitem às conseqüências deste ou daquele
empreendimento público ou privado, e assim por diante.[70]
O objeto dessas ações civis públicas está
elencado, exemplificativamente, no art. 208 do ECA.
Onde houver oferta irregular ou não-oferta dos
serviços de educação, saúde, profissionalização infanto-juvenil e outros
serviços relativos às crianças e adolescentes, o Ministério Público, a União,
os Estados, os Municípios, o Distrito Federal, os Territórios e as associações
legalmente habilitadas (art. 210 do ECA) poderão propor ação civil pública.
Wilson Donizeti Liberati chega ao ponto de
afirmar ser possível o emprego desse tipo de ação para impedir o gasto de
dinheiro público em obras não prioritárias para a comunidade, apurando-se a
responsabilidade civil e criminal do ordenador das despesas. Faz essa ousada e
lúcida assertiva com base no princípio da prioridade absoluta, definido por ele
como “viga-mestra” do Estatuto.[71]
Com todo esse arcabouço legislativo, não devemos
vacilar quanto ao ajuizamento de demandas tendentes a tornar reais os direitos
abstratamente assegurados à massa de crianças e adolescentes.
A utilização da via jurisdicional se faz
necessária sempre que o Estado se omite quanto a alguma política social ou ação
de abrangência individual contemplada no ECA.
Fábio Konder Comparato advoga ser do Executivo e
do Legislativo a competência conjunta para aprovação e encaminhamento dos
programas de ação governamental e que a intervenção do Judiciário somente se
impõe quando determinado direito social é negligenciado. Nessa hipótese, esse
Poder está reconhecendo uma omissão inconstitucional por parte dos demais poderes.[72]
Somente a proliferação dessas ações será capaz
de fazer desabrochar o senso de Justiça dos integrantes de nossas cortes, pois
o que se constata hoje, onde encontramos escassos julgados dessa natureza, é
uma exacerbada timidez dos integrantes do Poder Judiciário.
Esse problema, aliás, foi detectado com
percuciência pela Profª Josiane Rose Petry Veronese, na obra com a qual
conquistou o título de Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina, “in literis”:
Depreende-se dessa
questão que, apesar da existência de todo um instrumental, cuja efetividade
dependeria tão-somente de seu uso, restringe-se a poucos casos isolados, e o
que é ainda pior, fica-se à mercê de determinados padrões, que antevêem na
realização das normas jurídicas que tenham a função de contribuírem na
transformação da sociedade, um certo perigo de desequilíbrio no sistema da
tripartição dos poderes. Temem que o Poder Judiciário, à medida que julgue
procedentes a grande maioria dos casos de conflitos que envolvem o indivíduo,
ou coletividades inteiras que interpõem ações civis públicas em razão da
inadimplência do Estado no cumprimento de suas políticas sociais, estaria
adentrando um campo que não me pertence, pois são questões que tradicionalmente
se entendia estarem a cargo dos outros dois Poderes.[73]
O acanhamento do Judiciário quando decide as
ações civis públicas para tutelas de interesses protegidos pelo ECA pode ser
atribuído a vários fatores.
É inequívoco o despreparo para lidar com a
matéria (os cursos jurídicos de graduação e de pós-graduação raramente incluem
em seus currículos uma visão sistemática da doutrina de proteção à infância e
adolescência e, quando o incluam, o fazem à guisa de disciplina opcional).
Muitos dos atuais juízes, mormente aqueles que
atualmente integram órgãos colegiados, tiveram sua formação sob a égide do
Código de menores, calcado na doutrina da chamada “situação irregular”, o qual
não contemplava em seu sistema qualquer forma de responsabilização do Estado
por eventuais omissões, hoje, quem pode ser declarado em situação irregular é o
Estado omisso.
Mas o que mais chama a atenção é, sem dúvida, o
receio de invasão em atribuições afetas a outros poderes, tanto assim que, da
leitura de diversos julgados nesse diapasão, surgiu nossa motivação para o
presente trabalho.
Emblemático é o acórdão proferido pelo Tribunal
de Justiça de Santa Catarina, no Agravo de Instrumento nº 8.443, interposto
pelo respectivo Estado em ação civil pública promovida pelo “parquet” no
intuito de condená-lo a reformar uma escola pública situada na cidade de Xaxim.
Houve deferimento da liminar pelo juízo “a quo”,
o que motivou o recurso, apreciando a irresignação, a Câmara houve por bem
provê-la. Na ementa, assim se expressa o relator:
A Câmara decidiu
acolher o pedido de reforma para declarar a extinção da ação civil pública
proposta pelo Ministério Público contra o Estado, por carência de ação, em face
da impossibilidade jurídica do pedido, com base no art. 267, VI, combinado com
o parágrafo 3º do mesmo artigo, do CPC, uma vez que a pretensão deduzida na
petição inicial não encontra admissibilidade no ordenamento jurídico vigente,
na medida em que não podem o Juiz, tanto quanto o próprio Tribunal, avocar para
si a deliberação de atos da Administração Pública, que resultam sempre e
necessariamente de exame de conveniência, oportunidade e conteúdo dos atos de
exercício dos outros Poderes, Executivo e Legislativo, do Estado; tendo-se,
ainda, em consideração que a Administração Pública nada pode fazer que não se contenha
em seus recursos, e há de fazê-lo segundo as previsões programáticas e
orçamentárias, com participação do Poder Legislativo, cujas atribuições
igualmente restaram atropeladas... [74].
Há quem chegue ao ponto de fulminar a própria
legitimidade ministerial para a ação civil pública “lato sensu”. Tal exagero
pode ser constatado em voto proferido pelo Des. Lécio Resende, do Distrito
Federal:
(...) tive notícia de
que o professor Calmon de Passos, ardoroso defensor da introdução na
Constituição dos predicamentos obtidos pela Instituição (Ministério Público),
em conferência pronunciada na Escola Superior do Ministério Público, teria se
penitenciado, convalidando até o entendimento que tenho casualmente me
manifestado até quanto à absoluta ilegitimidade para a propositura da chamada
ação civil pública, que para mim já induz a idéia de paradoxo, porque até
quando aprendi a ação civil diz respeito, exclusivamente, a interesse privado
tutelado pela lei. Não posso conceber a existência de ação civil pública.[75].
Esse tipo
de posicionamento bem externa a necessidade de uma reformulação no ensino
jurídico brasileiro, para adequá-lo às novas demandas sociais, tão bem
detectadas e definidas no magistral voto do Ministro do STF, Sepúlveda
Pertence, o qual se transcreve parcialmente:
É manifesto que
as demandas reais da sociedade
naturalista de massas deste século têm lançado por terra, mesmo no âmbito dos
regimes capitalistas, alguns dogmas fundamentais do primitivo liberalismo
burguês, entre eles, particularmente, a aversão dos revolucionários do séc.
XVIII às formações sociais intermediárias, que então se pretendeu proscrever,
como intoleráveis resíduos do feudalismo. Hoje, ao contrário, o certo é que -
dos sindicatos de trabalhadores às corporações empresariais e às ordens de
diversas profissões, dos partidos às entidades de lobby de toda, das sociedades
de moradores às associações ambientalistas, dos centros de estudo aos
agrupamentos religiosos, das minorias organizadas aos movimentos feministas -
tudo são formações sociais reconhecidas, umas e outras, condutos reputados
imprescindíveis à manifestação das novas dimensões da democracia contemporânea,
dita democracia participativa e fundada, não mais na rígida separação, sonhada
pelo liberalismo individual da primeira hora, mas na interação cotidiana entre
o Estado e a sociedade - grifei. Nesse contexto, era fatal, como tem
ocorrido desde o início do século, que progressivamente se viesse pondo em
xeque o dogma do direito processual clássico, corolário das inspirações
individualistas da ideologia liberal, qual seja, o da necessária coincidência
entre a legitimação para agir e a titularidade da pretensão material deduzida
em juízo.[76]
Sem que se olvide da vinculação da Administração
pública a existência de recursos e sua previsão orçamentária, a observância do
princípio da prioridade absoluta impõe a necessária inclusão desses recursos
que visem a atender os direitos previstos abstratamente no ECA e na Carta Magna
em orçamento. Esse, aliás, deve ser o pedido nuclear das ações civis com a
preponderante carga eficacial cominatória.
10.9
CONCLUSÃO
De tudo o que foi exposto, dessume-se ser o
princípio da prioridade absoluta aos direitos das crianças e adolescentes mais
um vetor de limitação ao agir discricionário do administrador público.
Tal conclusão decorre, em primeiro lugar, do
próprio princípio da legalidade que deve nortear toda a pauta de ações dos
integrantes do Poder Executivo, dogma esse insculpido no art. 37 da
Constituição Federal.
Não há que se falar, por essa razão, em
ingerência ou em falta de atribuição do Judiciário para determinar como deve
ser o agir do Administrador, porquanto é a própria lei, e a Lei Maior, que o
descreve no tocante aos direitos das crianças e adolescentes.
O fato de o princípio da prioridade absoluta
encontrar assento constitucional denota seu sentido norteador, verdadeira
super-norma a orientar a execução e a aplicação das leis, bem como a feitura de
diplomas de inferior hierarquia, tudo dentro da mais estrita legalidade.
Na discussão sobre a implementação dos
bens-interesses previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente jamais pode
ser denegada qualquer pretensão deduzida em juízo sob o argumento de que o
Administrador Público tem o discricionário “poder” de eleger prioridades e
estabelecer prioridades, já que a Constituição Federal, em seu art. 227,
ampliada pelo art. 4º do ECA, não estabelece qualquer hierarquia entre os
direitos ali reconhecidos como prioritários.
De outra banda, impõe uma oxigenação ideológica
nos integrantes do Judiciário e do Ministério Público para que de fato se
conscientizem de sua função política, enquanto integrantes de instituições cujo
compromisso maior é com o interesse público, tendo como valores supremos
aqueles estabelecidos no preâmbulo de nossa vigente Carta Magna.
Também é de ser reconhecido o instituto da ação
civil pública como um instrumento por demais relevante na prestação
jurisdicional, de dimensão política considerável, permitindo o “vir ao mundo”
de demandas outrora excluídas do acesso à Justiça, garantindo a efetivação e a
democratização dos direitos fundamentais assegurados pelo ECA.
11.
DO PEDIDO
Diante
desse quadro, requer-se a declaração de
que se encontra o MUNICÍPIO DE SÃO PAULO obrigado a prestar o serviço público
de educação infantil em estabelecimento pré-escolar, em condição de igualdade,
a todas as crianças a partir dos quatro anos de idade, cujos pais desejem
matriculá-las, quer por meio de rede pré-escolar própria, conveniada ou
indireta, respeitados os princípios da universalidade e gratuidade, até o
ingresso no ensino fundamental.
Oportunamente requer
seja citado o réu, por intermédio de seu Prefeito Municipal, DR. CELSO ROBERTO PITTA DO NASCIMENTO, domiciliado
no Palácio das Indústrias - Parque D. Pedro II, nesta Capital, para responder
aos termos da presente ação, assim como, querendo, contestá-la, no prazo legal,
sob pena de revelia.
Requer-se sejam as
intimações ao autor expedidas para a Promotoria de Justiça de Defesa dos
Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude da Capital, à Rua
Major Quedinho, n. 90, 8º andar, tels. 257.2899, r. 214/215/216.
Dá-se à causa o valor simbólico de R$ 1.000,00 (um mil
reais).
Termos em que
Pede deferimento.
São Paulo, 05 de maio de 1999.
Notas:
[1]
Sobre o Ministério Público e o ensino fundamental, veja-se o artigo de Valerio
Bronzeado - “Ensino fundamental e Ministério Público: algumas considerações
críticas e práticas”, ADV advocacia dinâmica, seleções jurídicas, p. 19-29,
fev. 1995.
[2]
Sobre o tema cabe examinar o trabalho de Francisco Chaves dos Anjos Neto, “Ação
civil pública: direito à gratuidade do ensino em estabelecimentos oficiais de
João Pessoa - PB; liminar concedida”, Boletim Informativo Secodid, vol. 7, nº
23, p. 40-48, jul./set., 1993.
[3]
Silva, José Afonso da, Curso, p. 713.
[4]
Anísio Teixeira, A pedagogia de Dewney, in John Dewnwy, Vida e educação, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1959, p.
361.
[5]
Comentários à Constituição de 1967,
Tomo VI Rio de Janeiro, Forense, 1987, p. 333.
[6]
Idem, p. 348.
[7]
Bonnard, Le controle juridictionnel de l’administration, 1934, p. 35.
[8]
Précis, p. 73.
[9]
Cirne Lima, Princípios
de direito administrativo, 4ª ed., 1964, p. 57.
[10]
Miguel Seabra Fagundes, O controle dos
atos administrativos pelo Poder
Judiciário, 5ª ed., 1979, p. 169.
[11]
Cirne Lima, op. cit., p. 54-55.
[12]
Id. Ibid.
[13]
Id. Ibid.
[14]
Cretella Jr., José, Comentários, p.
4.404.
[15]
Pontes de Miranda, Comentários, p.
334-335.
[16]
MANCUSO, Rodolfo de Camargo - Ação
Popular, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1998.
[17]
HELY LOPES MEIRELLES, Direito
Administrativo, p. 104.
[18]
SEABRA FAGUNDES, “Responsabilidade do Estado - Indenização por Retardada
Decisão Administrativa”, em Revista de
Direito Público, 57-58/14.
[19]
HELY LOPES MEIRELLES, Direito
Administrativo Brasileiro, pp. 82-83 e 88-89; CARLOS MAXIMILIANO, ob. cit.,
pp. 336/337; LUCIA VALLE FIGUEIREDO, Disciplina
Urbanística da Propriedade, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1980, pp.
7 e 15; CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Elementos
de Direito Administrativo, pp. 30 e 46-48, e Discricionariedade e Controle Jurisdicional, Malheiros Editores,
São Paulo, 1992, pp. 13 e 15.
[20]
Iinstituciones de Derecho Administrativo,
1ª ed., Madrid, p. 117, citado por HELY LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, p.
152.
[21]
Elementos de direito administrativo,
ed. cit., p. 144.
[22]
Discricionariedade, pp. 32-33 e 36;
no mesmo sentido, WEIDA ZANCANER, Da
Convalidação e da Invalidação dos Atos Administrativos, 2ª ed., Malheiros,
São Paulo, 1993, p. 54; JOSÉ AUGUSTO DELGADO, “Princípio da Moralidade
Administrativa e a Constituição Federal de 1988”, em Revista Trimestral de Direito Público, vol. 1/214-215.
[23]
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Discricionariedade,
ed. cit., p. 37.
[24]
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Discricionariedade,
ed. cit., p. 38.
[25]
Nesse sentido, positiva o jurista português AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, citado por
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO em: “Discricionariedade e Controle
Jurisdicional”, p. 11. Ed. Malheiros, 2ª edição”, quando afirma: “Aquilo que o
Estado de Direito é forçosamente é Montesquieu e Rousseau, talvez mais Rousseau
que Montesquieu” (Reflexões sobre a Teoria do Desvio de Poder, Coimbra Editora,
1940, p. 8).
[26]
“El Contrato Social”, tradução espanhola, Editorial Maucci, Barcelona.
[27]
Encabeçada por MAURICE HAURIOU: FRANCIS-PAUL BENOIT: LAFERRIÈRRE E BARTHELÉMY,
dentre outros.
[28]
No original, transcreve-se: L’administration n’est pas animée, dans ce qu’elle
fait, d’une volonté intérieure légale: elle animée d’une volonté exécutive
libre assujettie à la loi comme à un pouvoir extérieur. Il suit da là, d’une
part, que, dans les matières de as compétence, lorsque son pouvoir n’est pas
lié par des dispositions légales, il est entierement autonome, et, d’autre
parte, que dans les matières où son pouvoir parait liè par la loi, il lui se
conforme toujours à un certain choix des moyens qui lui permet de se conformer
volontairement à la loi.
“Cette faculté
de se conformer volontairement à la loi est d’autant plus rèservèe à
l’administration des lois et qu’elle jouit constitutionnellement d’une certaine
latitude dans le choix des moments et des circonstances où elle assure cette
application.
“A ce point de
vue, il convient d’indiquer à nouveau que le pouvoir discrètionnaire de
l’administration consiste en la facultè d’apprecier l’opportunitè qu’il peut y
avoir à prendre ou à ne pas prendre ine décision exécutoire, ou à ne pas la
prendre immediatement, méme lorsqu’elle est precrite par la loi” (Précis
Élémentaire de Droit Administratiff, Librairie du Recueill Sirey, 1938, p.
229).
[29]
Bartolome A. Fiorini, “Manual de Derecho Administrativo”, Primeira Parte,
Buenos Aires, Ed. La Ley, 1968,
p. 233.
[30]
Erro de Ilegalidade no Acto Administrativo, Lisboa, Ed. Ática, pp. 222-223.
[31]
Tratado de Direito Administrativo, vol. V, p. 11. Ed. Freitas Bastos.
[32]
v.g. CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO; MARIA SILVIA ZANELLA DI PIETRO; DIOGO DE
FIGUEIREDO MOREIRA NETO, dentre outros.
[33]
v. RDA 89/134 e TJSDP, REO 165.977).
[34] CÂNDIDO
RANGEL DINAMARCO, em sua magnífica obra “A Instrumentalidade do Processo”, p.
32, 3ª ed., Malheiros, quando discorre acerca das mutações constitucionais do
processo, enfatiza a tendência do Estado contemporâneo, enquanto
Estado-de-direito, onde assoma a legalidade e abertura do Poder Judiciário como
guarda último da Constituição e dos valores e garantias que ela abriga e
oferece, fruto dos sucessivos movimentos político-sociais da Humanidade nos
últimos duzentos anos, com a Revolução Francesa, e a industrial, gerando a
ascensão da burguesia e do proletariado e a universalização do voto mais a
urbanização da população e expansão dos meios de comunicação de massa.
[35]
HELY LOPES MEIRELLES traz noção emblemática da discricionariedade em torno da
idéia de PODER: “Poder discricionário é o que o direito concede à Administração
de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos com
liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo” (Direito
Administrativo Brasileiro, p. 97, 14ª edição, Revista dos Tribunais).
[36]
EDIMILSON FARIAS, em artigo intitulado “Técnicas de Controle da
Discricionariedade Administrativa” (Arquivos do Ministério da Justiça, 47/159),
chega a falar em “potestades discricionárias da administração”.
[37]
No Estado-de-direito, o exercício do poder está amarrado pelo princípio da
legalidade. Cabe ao administrador público, em todos os casos, mesmo naqueles em
que a lei não descreve em minúcias como e o quê fazer, procurar sempre a
solução ótima para o caso concreto. Vale dizer, cabe ao administrador, enquanto
ocupante de uma função pública, o dever de buscar o interesse social.
[38]
In “Legitimidade e Discricionariedade”, p. 33. 1ª ed., Forense.
[39]
Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988, Ed. Atlas.
[40]
In “Discricionariedade Administrativa e Controle Jurisdicional”, pp. 12/14, 2ª
ed., Malheiros.
[41]
v., nesse sentido, José Cretella Júnior, em seu Curso de Direito
Administrativo, p. 224, 14ª edição, Forense, e Maria Sylvia Zanella di Pietro,
op. cit., p. 171.
[42]
Curso de Direito Administrativo, p. 123, 1ª ed., Malheiros.
[43]
obra citada, p. 220, 6ª edição, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian.
[44] Citado por
ODETE MEDAUAR, em “O Direito Administrativo em Evolução”, São Paulo, Ed.
Revista dos Tribunais, 1992, p. 184.
[45]
“apud” AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, “in” Teoria do Desvio de Poder em Direito
Administrativo, Revista de Direito Administrativo, vol. VI, p. 44.
[46]
Exemplo desse tipo de decisão retrógrada encontra-se em acórdão prolatado pela
6ª Turma do e. Superior Tribunal de Justiça, Rel. Min. Adhemar Maciel, no Rec. Especial
nº 63.128-9, oriundo de uma ação civil pública promovida com o fito de obrigar
o Governo Goiano a construir um centro de recuperação e triagem para
adolescentes infratores, onde encontramos afirmações como as que seguem: “A
Constituição Federal e em suas águas a Constituição do Estado de Goiás são dirigentes
e programáticas. Têm, no particular, preceitos impositivos para o
Legislativo (elaborar leis infraconstitucionais de acordo com as tarefas
e programas pré-estabelecidos) e para o Judiciário (atualização
constitucional). Mas, no caso dos autos as normas invocadas não
estabelecem, de modo concreto, a obrigação do Executivo de construir, no
momento, o Centro. Assim, haveria uma intromissão indébita do Poder Judiciário
no Executivo, único em condições de escolher o momento oportuno e conveniente
para a execução da obra reclamada”.
[47]
“O Espírito das Leis”, Traduzido e Anotado pelo Des. Pedro Vieira Mota, nota
55, p. 26, Ed. Saraiva.
[48]
Encerra seus comentários sobre uma visão funcional da Jurisdição, apregoando:
“Essa visão funcional da jurisdição, partindo da unidade do poder e diversidade
das formas do seu exercício segundo os objetivos propostos, elimina certas
preocupações minudentes e exageradas, como a da natureza jurisdicional ou não
das atividades do juiz na execução civil ou no processo criminal. Muito mais
relevante do que afirmá-la ou negá-la nesses casos, é saber que se trata
invariavelmente do exercício do poder e que, por isso, são atividades que se
pautam por desenganada marca de publicismo, sobrelevando aos interesses dos
demais sujeitos os do Estado” (op. cit., p. 119).
[49]
“O Poder Judiciário e o Meio Ambiente”, RT 631/28.
[50]
Direito Constitucional Positivo; p. 101, Ed. Rev. dos Tribunais.
[51]
“Juízes Legisladores?”, 1993, p. 100, Ed. Sérgio Antônio Fabris.
[52]
A essa conclusão já chegara, aliás, o administrativista Oswaldo Aranha Bandeira
de Mello (em seus “Princípios Gerais de Direito Administrativo”, vol. 1/417),
quando se posicionou a favor da sindicalidade do mérito do ato administrativo
com respaldo no art. 153, parág. 4º, da antiga Carta Constitucional (hoje art.
5º, inc. XXXV).
[53]
RT 721/212.
[54]
Apel. Cível nº 596017897, 12.03.97.
[55]
Nesse diapasão apregoa AUGUSTIN GRODILLO, em seus “Princípios Gerais de Direito
Público”, apud Johnson Barbosa Nogueira, em artigo nominado “A
Discricionariedade Administrativa sob a Perspectiva da Teoria Geral do
Direito”, “in” GENESIS - Revista de Dir. Administrativo Aplicado, nº 3, p. 747.
[56]
op. cit., p. 747.
[57]
“Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa”, p. 1393, Ed. Nova Fronteira.
[58]
“O Estatuto da Criança e do Adolescente - Comentários”, pp. 4/5, Ed. IBPS.
[59]
Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 25, 1ª ed., Malheiros.
[60]
Apel. Cível nº 62, de 16.04.93, acórdão 3.835.
[61]
Apel. Cível 596017897, 7ª Câmara Cível.
[62]
Direito Constitucional, p. 74, Ed. Almedina, 6ª edição, 1993.
[63]
“in” Curso de Direito Administrativo, p. 393, Ed. Rev. dos Tribunais.
[64]
Aplicabilidade das Normas Constitucionais, p. 108, 2ª edição, Ed. Revista dos
Tribunais.
[65]
Rec. Especial nº 63.128-9 - Goiás; Rel. Min. Adhemar Maciel.
[66]
op. cit., pp. 360/362.
[67]
op. cit., p. 22, Ed. Sergio
Antonio Fabris.
[68] O próprio
HUGO NIGRO MAZZILLI, quando conceitua ação civil pública, em obra atualizada
após a vigência do ECA, a designa como sendo aquela ajuizada pelo Ministério
Público e demais legitimados, sempre no intuito de tutelar interesses difusos,
coletivos ou individuais homogêneos, partindo de critério objetivo-subjetivo,
baseado na titularidade e no objeto específico da prestação jurisdicional
pretendida na esfera cível.
[69]
Reexame Necessário nº 596035428, 8ª Câm. Cível, Redator p/ acórdão Des. Eliseu
Gomes Torres.
[70]
“A Tutela Jurisdicional dos Interesses Difusos”, Rev. do Processo nº 14/15, pp.
27/27.
[71]
op. cit., p. 141.
[72]
A Nova Cidadania, Anais da XIV Conferência da OAB, Vitória, p. 49, set./1992.
[73]
Interesses Difusos e Direitos da Criança e do Adolescente, p. 258, Ed. Del Rey.
[74]
Julgado em 3.5.94, Rel. Des. Rubem Córdova.
[75]
HC 6.656/94.
[76]
RT 142/446.