OS FILHOS DE NINGUÉM: ABANDONO, INSTITUCIONALIZAÇÃO E ADOÇÃO DE CRIANÇAS
NO BRASIL
Lidia Natalia Dobrianskyj Weber[1]
Texto Introdutório:
"No Brasil existem milhares de crianças que vivem em instituições e recém-nascidos são abandonados em lugares públicos. Como um país pode suportar isso? Em 13 de julho de 1990, o Brasil promulgou a Lei 8.069 que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), um dos primeiros países do mundo a estabelecer uma lei própria para a criança e o adolescente, a qual é considerada uma das mais avançadas em todo o mundo.
Neste ano o ECA comemora 10 anos, mas ainda existe uma longa estrada, repleta de muitos obstáculos, para que a justiça ultrapasse o papel e chegue à vida real. Em nosso país permite-se a negligência e o abandono de crianças. Por que "a criança", tão amada e festejada em versos e prosa ainda é relegada ao segundo plano? De um lado, existem milhares de crianças vivendo em instituições, sem ter noção do que é uma "mãe" ou um "pai" e, do outro, existem centenas de pessoas desejando adotar uma criança. Por que esses dois contingentes não se encontram?
Por que os estrangeiros acabam adotando nossas crianças mais velhas, ou de cor ou com necessidades especiais? Qual é o papel do psicólogo para conseguir reunir o desejo das crianças de ter uma família, o desejo dos adotantes de ter um filho ideal e dos serviços de adoção que desejam selecionar adotantes ideais?
Nos dias atuais não existem mais as "Rodas dos Expostos", mas ainda temos muitas instituições de internamento de crianças, chamadas de "Unidades de Abrigo", um modelo eufemista da Roda, na contramão do que reza o ECA: "Toda criança tem o direito à convivência familiar e comunitária". Ainda temos um longo caminho a percorrer em todas as áreas que concernem ao desenvolvimento social da população de nosso país. Mas, a institucionalização de crianças, com certeza, não é uma solução. Apesar da institucionalização de crianças ter surgido como uma tentativa de solucionar o problema de crianças e adolescentes abandonados, esta tentativa mostra-se extremamente ineficaz no Brasil porque não ataca as verdadeiras causas do problema (a miséria social, a carência de apoio sócio-educativo, a ausência de prevenção em relação à violência doméstica, entre outros); não possibilita qualquer tipo de reabilitação para as famílias de origem e exclui as crianças de uma convivência familiar (em sua família de origem ou família substitua) e comunitária. Algumas entrevistas realizadas com essas mães que deixaram "por algum tempo" seus filhos em Unidades de Abrigo, e ainda os visitavam, revelam a falta de apoio social em suas vidas:
"Faz cinco anos que as minhas filhas estão internadas aqui; elas vieram porque eu fiquei doente, fui internada em um hospital e me separei do pai delas. Sou lavadeira e tenho três filhas e tenho muita vontade de levar "elas" pra casa. Eu acho que tenho condições de ficar com elas. Eu sofro bastante, queria ter elas do meu lado, né. Eu tenho mais um piá, porque casei de novo. E elas devem pensar porque o menino fica comigo e elas não.Vai vê que elas pensam isso. Mas é o juiz que não deixa eu levar "elas", cada vez que eu vou lá pra pedir para tirarem elas, eles falam que não dá, que vai ter outra audiência, outra audiência, outra audiência, e nunca se decide nada. O juiz nunca fala nada pra começar, a gente nem conversa com ele, são secretários dele que atendem a gente, nunca, nunca a gente vê a cara dele. As meninas têm muita vontade de ir para casa, sempre estão pedindo, toda vez que eu venho aqui. É um sofrimento".
"Tenho uma filha aqui de dez anos, sou cozinheira e tenho trinta e sete anos, e eu trouxe ela pra cá porque sou sozinha; ela não tem pai e aqui eles me ajudam a educar "ela". Eu tive que trazer "ela" porque não tinha condições de ficar em casa. Porque quando eu me separei do meu marido e eu não tinha onde morar, então eu fui morar na casa da patroa e ela mandou eu vim pra cá; ela me trouxe aqui e eu deixei a minha filha aqui porque eu trabalho de doméstica e eles não aceitam crianças lá, então ficou bom pra mim deixar ela aqui. Faz um ano e meio que ela está aqui”.
Outra pesquisa que realizei para traçar o perfil de todas as crianças que estavam em uma instituição mostrou que:
· somente em 5% dos casos os pais entregaram voluntariamente a criança para a Instituição abrigar ou abriram mão do seu Pátrio Poder para que ela pudesse ser adotada. Todos os outros casos foram frutos de denúncias frente a uma situação irregular em relação ao cuidado com as crianças;
· 37% das crianças estão na instituição há mais de um ano;
· o motivo mais freqüente para o internamento foi classificado como maus-tratos em função de negligência (deixar a criança sozinha em casa; deixar a crianças com estranhos; não cuidar da alimentação e/ou saúde da criança etc.) = 64%;
· em 76% dos casos a situação econômica precária foi o motivo relevante para o internamento dos filhos; em 16% dos casos as famílias não possuíam residência fixa; 23% moravam em favela; em 43% dos casos a criança não era bem alimentada; em 32% dos casos os pais deixavam a criança sozinha em casa;
· em 45% dos casos a criança apresentava algum problema de saúde por ocasião do internamento; a maioria provém de famílias monoparentais (45% de mães solteiras e 21% de mães separadas); em 68% dos casos a família nunca visitou a criança; somente 8% dos pais tinham sido destituídos do Pátrio Poder e, portanto, somente nesses casos a criança está liberada para ser colocada em uma família substituta.
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Da condição de "carentes", estas crianças passam a ser abandonadas, pela ausência de uma relação de continuidade com a família e pela sua prolongada permanência nos internatos. Além da exclusão social proporcionada pelo abrigamento da criança, existem evidências de que não há qualquer tipo de trabalho social sendo realizado com as famílias das crianças. A simples passagem do tempo não parece suficiente para que uma família modifique o seu modus operandi. Repertórios comportamentais graves como alcoolismo, violência familiar, negligência, entre outros, não recebem qualquer tipo de assistência do Estado ou da sociedade civil.
O discurso das crianças é doloroso: reflete ambivalência e desamparo ao último grau, como mostra claramente o primeiro depoimento: o trecho de uma carta (jamais enviada) de um menino que mora em instituições havia 12 anos:
"Mamãe, você me abandonou. Mas eu sinto muito porque você fez isso comigo. Já faz onze anos que eu não te vejo, mas eu já estou com muita saudade. Você foi muito cruel comigo. Mas hoje já tenho doze anos e estou convivendo com a minha tia, e ela me ama como eu fosse seu filho legítimo. Como, eu estou com saudades de você, não sei aonde você está. Um beijo de seu filho que não te ama, João".
"Eu 'quelo' que a minha mãe venha aqui visitar a gente... ela quase nunca vem e eu 'quelo' ser adotado pela minha tia, ela disse que vai me adotar". (Menino, 7 anos).
"Eu acho que vou ser adotada porque é a terceira vez que a minha foto vai pra Itália e para os Estados Unidos". (Menina, 12 anos)
É possível, sim, colocar a adoção como um instrumento emergente para proporcionar uma família substituta para crianças e adolescentes institucionalizados que estejam de fato abandonados. Não estamos colocando este instrumento como uma solução para crianças abandonadas de maneira geral e ela não é, de forma alguma, prioritária a outras medidas que visem melhor distribuição de renda, saúde e educação para todos. Estamos falando de crianças e adolescentes abandonados de fato e esquecidos pela comunidade nos internatos da vida. Alguns degraus são imprescindíveis para atingirmos o objetivo de devolver o direito destes internos de convivência familiar e comunitária. Tenho algumas idéias de caminhos e soluções e gostaria que você debatesse comigo. A literatura sobre adoção é extremamente escassa em nosso país. Os psicólogos precisam participar e têm muito a fazer sobre o tema."
(Resumo da conferência apresentada pela autora no Congrès Mondial Enfants-Victimes (novembro 1999), em Bruxelas e de pesquisas que serão apresentadas no XXVII International Congres of Psychology, (julho 2000), Estocolmo.)
Notas:
[1] Psicóloga há 20 anos, Mestre em Psicologia Experimental pela
Universidade de São Paulo desde 1988 e professora do Departamento de Psicologia
da Universidade Federal do Paraná há 18 anos. Tem mais de uma
centena de artigos (técnicos e científicos) publicados e pesquisas apresentadas
em congressos nacionais e internacionais e atualmente está terminando
seu Doutoramento em Psicologia pela Universidade de São Paulo (sobre famílias
adotivas). Coordenadora do Projeto Criança (http://members.xoom.com/pcdec),
entre outros trabalhos tem um site na Internet que
responde perguntas de pais sobre educação e desenvolvimento infantil e adoção.
É correspondente internacional da revista francesa Le
Journal des Psychologues e Coordenadora Latino-americana da Society for Community Research and Action
(Divisão de Psicologia comunitária da American Psychological Association).
Publicou os seguintes livros: Análise Experimental do Comportamento: manual de
laboratório, 1985 (com co-autoria); Filhos da Solidão: institucionalização,
abandono e adoção, 1986 (com co-autoria); Laços de Ternura: pesquisas e
histórias de adoção, 1998 e Aspectos Psicológicos da adoção, 1999.