ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÂNCIA E À JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
Centro Educacional Bahá’í.
Súmula: O
texto ressalta a importância da educação para a vida e o progresso humano, apresentando-a
como elemento fundamental para a sobrevivência da espécie, o desenvolvimento da
civilização e a plenitude de vida individual. Mostra como, durante a
Modernidade (século XVI até o presente) os paradigmas de cientificismo,
racionalidade, objetividade e materialismo destruíram o equilíbrio dos valores
humanos e princípios espirituais que sempre deram sustento à civilização e à
realização humana. Tal radicalismo deu-se em antítese ao teocentrismo dogmático
e obscurantista dos mil anos da Idade Média da cristandade européia (século V
ao XV), e acabou por minar os fundamentos da eticidade e da moral, que são
fundamentalmente espirituais por natureza. Argumenta-se que o período
pós-moderno em que vivemos oferece a necessidade e a possibilidade de uma
síntese entre a Razão e os Valores Humanos, entre a Ciência e a
Espiritualidade, apresentando os postulados de grandes pensadores clássicos,
modernos e contemporâneos. Estabelece-se a necessidade dos grandes princípios e
valores morais universais, dentro de um contexto pluralista e transecumênico,
para que se possa fundamentar uma educação libertadora e garantir a formação do
indivíduo e da sociedade éticos, onde valores como o Amor e a Justiça conduzam
o fazer social.
Sumário:
1. Pressupostos Filosóficos
para a Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente à Educação Escolar
1.1.Educação e Humanidade
1.2. Educação e Saúde
1.3. Educação e Arquétipos
1.4. Educação e Auto-Realização
1.5. Educação e Escolaridade
2. Valores Humanos e
Motivação para a Ação Transformadora
2.1. Paradigmas Dominantes e Desumanização
2.2. A Permanência dos Valores “Desumanos”
2.3. A Inércia dos Modelos Mentais e a Ação Transformadora
2.4. Reconstruir Modelos Mentais em prol da Humanização
2.5. A Origem e a Fonte dos Valores Humanos
3. A Formação do Indivíduo
Ético
3.1. As Três Formas de Educação e a Educação Moral
3.2. A Natureza Humana, as Inteligências Múltiplas e a Moral
3.3. Universais Morais e Janelas de Oportunidade para a
Formação Ética
3.4. A Educação da Vontade e a Sociedade Ética
3.5. Os Princípios Espirituais Universais
4. A Fundamentação do
Sistema de Garantias Legais da Infância e da Juventude
4.1. Um Século de Leis
4.2. Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)
4.3. Declaração Universal dos Direitos da Criança (DUDC)
4.4. Convenção Internacional Sobre os Direitos da Criança
(CIDC)
4.5. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
4.6. Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)
5. Compromisso Histórico e
Político
1. Pressupostos Filosóficos para a Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente à Educação Escolar
1.1. Educação e Humanidade
Sem Educação não haveria humanidade.
A frase pode soar como um exagero, mas, no tocante à educação, esse é o grande
tema e a justa conclusão apresentados nos escritos dos grandes pensadores,
religiosos ou laicos, homens da ciência ou das humanidades, em todas as
culturas, ao longo dos cinco ou seis mil anos de civilização.
E não é para menos: ao contrário dos
animais, os seres humanos dependem da educação para sobreviver. Com um arsenal de instintos menos elaborado e menor
repertório de respostas automáticas para a vida, homens e mulheres dependem do
aprendizado para assegurar que suas existências transcorrerão de forma segura e
satisfatória. Diferentemente dos animais, a vida humana inicia de maneira
extremamente frágil. Um recém-nascido é incapaz de prover seu próprio sustento
ou sobreviver sem o amparo constante de adultos, senão depois de passados
longos anos de amadurecimento.
A educação, passada pelos adultos às
novas gerações, sempre foi, assim, não apenas a ferramenta essencial da
construção da Cultura e da Civilização, mas o instrumento supremo da própria
sobrevivência humana e de sua evolução. A educação, como instrumento que permitiu
aos homens uma cada vez mais elaborada adaptação ao meio-ambiente, ao longo de
incontáveis eras, foi o grande diferencial na história evolutiva da humanidade.
As pesquisas científicas realizadas
durante o século XX, em áreas como a Psicologia, a Antropologia e a Sociologia,
consolidaram uma enorme gama de dados sobre a necessidade da Educação, a ponto
de se poder afirmar que o ato de aprender e de ensinar é tão fundamental para a
raça humana quanto a procriação ou a vida social. A educação, mais do que qualquer
outro elemento tomado em separado garantiu a sobrevivência e a evolução da
humanidade. Nesse sentido, Educação é Humanidade.
Jean Piaget, Noam Chomsky e outros
descreveram estruturas (de pensamento e de linguagem, entre outras)
relacionadas à mente humana, as quais exigem um desenvolvimento tão natural e
vital quanto o crescimento do corpo ou a associação grupal.[1] A aprendizagem,
neste contexto, é vista como uma função vital, através da qual cada aprendiz
(todos os seres humanos) está ativa e permanentemente formando estruturas
mentais novas na sua interação com o meio-ambiente; ou seja, está
permanentemente aprendendo.
O enfoque biológico, adotado por
Piaget para entender e explicar a aprendizagem/educação ressalta que cada ser
humano, como ser vivo, é um organismo em constante interação com o
meio-ambiente. Na verdade, o organismo (o ser humano), o meio e a interação
entre eles constituem uma unidade biológica onde os três elementos estão
inseparavelmente conectados. O processo de aprendizagem, neste contexto, é
desencadeado por uma perturbação do equilíbrio experimentado entre o organismo
e o meio. O organismo procura superar esta perturbação, e o sentimento
subjetivo de tensão ou necessidade que emerge dela, através de uma adaptação.
Quando esta mudança no ambiente é enfrentada através de uma adaptação do
organismo, houve aprendizagem.
Neste sentido, pois, poder-se-ia
dizer não apenas que a educação (ensino/aprendizagem) é uma atividade
fundamental da vida, mas sim que a
própria vida é aprendizagem, ou educação. A vida, individual ou social,
nada mais é do que uma cadeia única de processos de aprendizagem. Piaget chega
a falar de uma “epistemologia genética” e da organização biológica como uma
“estrutura cognitiva” que interage com o meio-ambiente.
Essa base biológica do processo de
aprendizagem demonstra, pois, o quanto a educação é vital para o próprio
processo de existir. É claro, porém, que a vida especificamente humana não se
esgota no nível biológico; antes, desenvolve-se num plano sociocultural. A
educação humana, portanto, não ocorre apenas ao nível de uma ação recíproca
biológica, mas, bem mais do que isso, numa ação sociocultural recíproca do
sujeito e seu meio, entre o indivíduo e aqueles que o rodeiam.
Esse enfoque sociocultural ressalta o
fato de que o processo de educação de cada ser humano não se dá no vazio, nem
de forma isolada, mas sempre no seio de um grupo humano, no qual cada pessoa
deve viver e aprender. É fácil perceber, nessa situação, que o aprendizado se
dá não apenas pela necessidade intelectual ou cognitiva que o indivíduo tem
daquilo que está aprendendo, mas de uma plêiade de fatores emocionais, sociais
e existenciais. Ou seja, como seres humanos, aprendemos não apenas porque temos
necessidade de aprender num sentido intelectual, mas porque temos necessidade
de amar e ser amados, de ser aceitos, respeitados e bem-quistos; necessitamos
encontrar um propósito para nossas vidas e respostas adequadas para questões
como o sofrimento e a morte.
Embora seja bastante comum falar de Educação
para referir-se simplesmente ao desenvolvimento cognitivo, ou tão somente à
transmissão de instrução, o fato é que, como vimos, educação é bem mais do que
isso. Howard Gardner, da Universidade de Harvard, o destacado descobridor das inteligências múltiplas, afirma que a
educação precisa ser vista como “um empreendimento muito mais amplo, envolvendo
motivação, emoções, práticas e valores sociais e morais”. [2] A educação, assim
vista, é a própria expressão da condição humana.
1.2. Educação e Saúde
A Organização Mundial da Saúde, OMS,
define saúde como o “estado dinâmico
de bem-estar físico, psíquico, social e espiritual”. Nessa concepção
contemporânea de saúde, identificam-se também as quatro áreas nas quais uma
pessoa pode estar enferma. Podemos sofrer de enfermidades físicas (bursite,
alergia, câncer), enfermidades psíquicas (neuroses, psicoses), enfermidades
sociais (violência, miséria, desemprego), ou enfermidades espirituais (anomia,
ódio, falta de sentido na vida, desesperança).
Essas áreas de saúde/doença definem
também aqueles campos da existência humana que precisam ser adequadamente
atendidos para podermos viver bem. Ou seja, nossa vida depende de que sejam
supridas as necessidades físicas, emocionais, psicológicas e espirituais
(também chamadas existenciais) que nos constituem como seres. O suprimento
dessas necessidades vitais se dá através do processo de ensino/aprendizagem, de
forma que podemos, agora, associar a educação não apenas com nossa
sobrevivência (o que não seria pouco!), mas também com nossa saúde plena.
No campo físico, necessitamos
aprender como sustentar e melhorar nossa vida através de adequada alimentação,
repouso, atividade, higiene e proteção.
No campo emocional, nossas
necessidades são supridas pelo aprendizado do amor, da simpatia, da atenção, da
estima, do aconchego, da auto-estima e da auto-aceitação, sem os quais não
podemos nos desenvolver de forma plena e feliz. Na verdade, a própria
sobrevivência física fica comprometida quando tais necessidades emocionais são
desatendidas.
Nossas necessidades psicológicas de
realização, autonomia, lazer, expressão e comunicação, entre outras, também são
supridas através do aprendizado adequado de capacidades pessoais e sociais que
as viabilizam e desenvolvem.
Da mesma forma, é a educação o
instrumento supremo que permite a cada nova geração de homens desenvolver
aqueles conhecimentos, habilidades, atitudes e qualidades de natureza
espiritual ou existencial que lhe permitem satisfazer suas necessidades de
transcendência, beleza, virtude e propósito para a vida.
Educação, portanto, tem a ver não
apenas com sobrevivência, mas com qualidade de vida, com plenitude, com
felicidade.
1.3. Educação e Arquétipos
Os homens sempre perceberam, ainda
que inconscientemente, que o conhecimento, e sua transmissão, tinha algo de
supremo, de vital, de divino – que estava relacionado com sua própria
sobrevivência e plenitude de vida.
A educação, assim, sempre foi
percebida como um dos maiores dons e deveres da humanidade, quer ante Deus (ou
deuses) quer ante os próprios homens. Para as percepções mais aguçadas, ao
longo dos séculos, tão relevantes tem sido a educação – e seu fruto, o
conhecimento –, que sua natureza e processo chegou a ser descrita como limitada
ao domínio celestial, sem acesso aos homens, ou como algo sobrenatural, ou como
uma porta para a eternidade. Os vários mitos relacionados à Criação e os textos
sagrados dos primórdios da História refletem essa importância vital atribuída
ao conhecimento.
Na mitologia grega, Prometeu, que era
um dos Titãs, e, portanto, primo de Zeus é representado como um especial amigo
da humanidade. Segundo as mais antigas tradições do mito, é Prometeu quem cria
o homem, a partir do barro. Depois disso, desejando dar à nova criatura acesso
ao que somente pertencia aos deuses, Prometeu rouba de Zeus o conhecimento do
fogo (ele próprio símbolo do conhecimento) e o entrega à humanidade.
Zeus, enfurecido por não mais deter a
exclusividade do conhecimento, castiga a humanidade com toda a espécie de
pragas e sofrimentos. Tal castigo chega através de uma bela mulher, Pandora,
que fora criada pelos deuses e dada de companheira ao irmão de Prometeu,
Epimeteu. Apesar de bela, Pandora tinha o engano e a trapaça no coração, e é
através de suas mãos que se abre a caixa ou jarra donde saem todos os males que
afligem a humanidade.
Mas, apesar de agora sofridos, os
homens detinham o conhecimento que antes era somente dos deuses. E, assim,
resta a esperança...
No Antigo Testamento, o Gênesis faz
um relato similar do “ciúme” divino quanto ao conhecimento, e do castigo
imposto à humanidade como preço por ter comido da “árvore do conhecimento do
bem e do mal”.[3] Ao comer o fruto proibido, Adão e Eva se apropriam de algo
que era restrito aos céus, e se tornam “como deuses”,[4] com seus olhos abertos
pelo conhecimento. O próprio Deus exclama: “Eis que o homem é como um de nós,
sabendo o bem e o mal”.[5] Para que esta usurpação de posições não prossiga, e
o homem se torne, além de conhecedor, imortal, Deus expulsa Adão e Eva do
jardim do Éden, para que “não estenda sua mão e tome também da árvore da vida e
coma e viva eternamente”.[6]
Uma vez expulsos do paraíso por causa
do conhecimento, Adão e Eva concebem dois filhos, mas Caim mata Abel, dando
continuidade aos sofrimentos humanos. Porém, é também da descendência deles,
através do terceiro filho, chamado Sete, que nascem Abraão e Isaque e Jacó, e
todos os profetas de Israel, inclusive Jesus, dando ao final do relato também
uma sobra de esperança para a redenção humana, como na caixa de Pandora.
Claro que tais relatos são símbolos
antigos e riquíssimos que explicam a condição humana. Tanto Pandora como Eva
podem ser entendidas como representações da mente humana primitiva, em seu
estado bruto e selvagem, cheia de curiosidade e beleza, mas também de todos os
vícios que apenas a educação pode remediar. Essa mente pressente que
conhecimento é poder, que pode inclusive aproximá-la do divino.
Ambos os relatos podem ser tomados,
assim, com o seguinte sentido: o conhecimento é luz, é sustento (fogo) e tão
elevado que é propriedade exclusiva da divindade. Através do conhecimento o
homem crê tornar-se independente da divindade. Porém, ele só se apossa do
conhecimento através do sofrimento; através dele percebe a complexidade da
vida, assim perdendo a inocência do paraíso (infantil). O simples conhecimento
do mundo, portanto, não liberta o homem de sua condição humana. Ele precisa de
um conhecimento ainda mais elevado para isso, um conhecimento das coisas
transcendentes, divinas: precisa conhecer a esperança, a obediência, o
arrependimento, a perseverança, a honestidade, o amor...
Tais mitos e relatos indicam, nesta
formulação primitiva, um dos grandes temas relacionados à educação: o
conhecimento, por si só, pode ser perigoso. Se for imperfeito, ou incompleto,
será causa de sofrimento, e melhor seria não tê-lo. Mas isso será tratado mais
adiante, quando abordarmos a formação do indivíduo ético.
Vê-se, pois, como a simbologia é
completa: apesar dessa associação entre o conhecimento e o sofrimento, que pode
ser encontrada em praticamente todos os mitos e textos primevos, os relatos
indicam que o conhecimento, quando aprimorado pelas coisas “da alma”, aproxima
realmente os homens da condição divina; não mais pela competição, mas pela
humildade, não pela usurpação, mas pelo descobrimento de sua verdadeira
condição.
Seja através da esperança, como em
Pandora, ou do arrependimento e da misericórdia de Deus, como na Bíblia, a
idéia é que o mal do conhecimento imperfeito pode ser superado pela educação
verdadeira, que incorpora ao conhecimento das coisas visíveis também o
conhecimento das invisíveis, ou seja, o domínio da moral, do bem e do mal, das
virtudes.
A origem desta educação suprema,
completa, segundo as grandes tradições espirituais do mundo, é divina, concedida
à humanidade como um ato de graça dos céus. Como diz São Paulo a Timóteo:
“Toda a Escritura divinamente
inspirada é proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para
instruir em justiça. Para que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente instruído
para toda a boa obra”.[7]
Seguramente, entre as escrituras
“divinamente inspiradas” apontadas por São Paulo como proveitosas para que o
homem “seja perfeito”, estão aquelas provindas de outros horizontes e climas, nascidas
tanto antes quanto depois do cristianismo. Nelas, o conhecimento também é
apresentado como algo sagrado, redentor, e a educação, como um ato divino.
Buda, por exemplo, exortando seus
discípulos há mais de 2500 anos, apresenta a educação verdadeira, que edifica o
caráter, como o único remédio contra o sofrimento:
“Não vos desconcerteis com a
universalidade do sofrimento. Segui os meus ensinamentos, mesmo depois de minha
morte, e estareis livres do sofrimento. Fazei isso e sereis verdadeiramente
meus discípulos... Se seguirdes estes ensinamentos, sereis sempre felizes”[8].
Para que os homens possam desfrutar
dessa felicidade, porém, Buda diz que “eles devem estar ansiosos por
aprender”[9]
Os Upanishades, parte da antiqüíssima
tradição sagrada hindu, nascida há mais de 5000 anos, nos primórdios da vida
sedentária da humanidade, também associam este valor sagrado à educação,
afirmando que “pelo conhecimento obtemos imortalidade”[10]
No Alcorão, revelado aos árabes no
século VII, o conhecimento é outra vez apresentado como sendo de origem divina,
concedida ao homem através da Revelação de Deus no Alcorão e nos demais
escritos sagrados, como o Evangelho cristão e a Tora judaica. Falando através
de Maomé, é o próprio Deus quem explica:
“Revelamos a Tora, que encerra
Direção e Luz ... e depois dos outros profetas enviamos Jesus, filho de Maria,
corroborando a Tora que O precedeu; e Lhe concedemos o Evangelho que encerra
Direção e Luz, o qual confirma a Tora, e é guia e exortação para os
tementes.”[11]
Maomé afirma que Deus é o “Mais
Bondoso” porque “ensinou ao homem o uso da pena [a escrita] e aquilo que ele
desconhecia”.[12]
Na mesma linha de argumentação,
Bahá’u’lláh, no século XIX, renova esta mensagem das grandes tradições
espirituais, outra vez exaltando o papel do conhecimento na vida humana:
“O conhecimento é como asas para a
vida do homem e uma escada para sua ascensão. A todos incumbe sua aquisição...
Em verdade, o conhecimento é um autêntico tesouro para o homem e uma fonte de glória
e bênção, de contentamento, de exaltação, de alegria e de felicidade. Feliz é o
homem que a ele se apega, e desafortunado o desatento”.[13]
Mas ele também observa que “Deve ser
adquirido, contudo, o conhecimento de tais ciências que possam beneficiar aos
povos da terra, e não daquelas que começam e terminam com palavras.”[14]
Todos esses textos, reverenciados
pela humanidade há milênios, não apenas refletem o respeito e fascínio antigo e
elevado que os homens nutrem pelo conhecimento e por sua ferramenta, a
educação, mas também têm servido, ao longo de incontáveis eras e gerações, para
dar a ela o caráter de processo arquetípico para a salvação dos homens.
É a educação que emerge, ao longo da
História, como o arquétipo da redenção humana de sua própria condição humana.
Uma educação que é um constante devir, pois que nunca está acabada. Como coloca
Paulo Freire:
“[Os homens] descobrem que pouco
sabem de si, de seu posto no cosmos,
e se inquietam por saber mais. Estará, aliás, no reconhecimento do seu pouco
saber de si uma das razões desta procura. ... Indagam. Respondem, e suas
respostas os levam a novas perguntas.”[15]
1.4. Educação e Auto-Realização
Além de a educação garantir a
sobrevivência e a saúde da espécie, ela nos permitiu construir um padrão de
existência único sobre o planeta: aquilo que chamamos de Civilização. Ciência, Arte, Auto-realização, Fé, Ordem,
Desenvolvimento, Prosperidade e Cultura têm sido alguns dos temas e conquistas
desenvolvidos e aprimorados ao longo dos milênios. E a educação sempre foi o
elemento que, sozinho, serviu de veículo e garantia para a continuidade das
conquistas humanas.
Como já vimos, profetas, filósofos e
pensadores sempre atribuíram à educação o mais alto valor social e moral, acima
de tudo pelo fato de a considerarem o único instrumento capaz de elevar o homem
acima do nível dos animais, colocando-o numa esfera especial da Natureza, num
patamar todo seu.
Entretanto, ao longo dos séculos, a
educação não tem sido vista apenas como a fonte de todo bem social e coletivo
dos homens, mas também como a ferramenta que permite a cada indivíduo elevar-se
ao seu verdadeiro destino e cumprir seu potencial inato.
“A direção na qual a educação
encaminha um homem determina sua vida futura”, é a afirmação de Platão em A República[16]. Dois grandes
poetas ingleses também expressaram isso de forma belíssima. William
Wordswoth afirma:
“A criança é pai do homem.” (The
child is father of the man)[17]
E John Milton reflete:
“A infância
revela o homem, (The childhood shows the man,)
“Como a manhã revela o dia”. (As
morning shows the day.)”[18]
Isso significa que, mais do que o
destino da espécie, o destino pessoal de cada ser humano está na dependência da
educação. Ela determina o grau no qual os potenciais inatos de cada um serão
explorados e utilizados para o seu próprio proveito e para o benefício da
sociedade. Ou seja, a medida da auto-realização de cada indivíduo está ligada
indissoluvelmente à educação que lhe é concedida.
Abraham Maslow, um dos maiores nomes
da Psicologia neste século, afirma a respeito desse potencial individual
inexplorado:
“Freud supunha que o nosso superego
ou a nossa consciência era, primordialmente, a internalização dos desejos,
exigências e ideais do pai e da mãe, quem quer que eles fossem.... Essa consciência
existe – Freud estava certo. Mas existe também outro elemento na consciência,
que todos nós possuímos, seja ela débil ou vigorosa. Trata-se da consciência intrínseca. Esta baseia-se
na percepção inconsciente ou pré-consciente da nossa própria natureza, do nosso
próprio destino ou das nossas próprias capacidades, da nossa própria vocação na
vida. Ela insiste em que devemos ser fiéis à nossa natureza íntima e em que não
a neguemos, por fraqueza, por vantagem ou qualquer outra razão...”[19]
Além disso, Maslow afirma que “Se
esse núcleo essencial da pessoa for negado ou suprimido, ela adoece, por vezes
de maneira óbvia, outras vezes de uma forma sutil, às vezes imediatamente,
algumas vezes mais tarde”.[20]
É claro que este “adoecer” deve ser entendido
naquele sentido amplo da definição da OMS apresentado acima. O fato é que a
vida plenamente realizada, com um sentimento de dinâmico bem-estar, depende da
auto-realização.
Por essa razão, a educação
humana precisa despertar em cada indivíduo não apenas aqueles comportamentos e
características que sejam necessários e adequados à sociedade em que vive, mas
também à expressão daqueles imponderáveis potenciais inatos que lhe permitam
sentir-se em paz com sua “consciência intrínseca”. Isso não pode ser alcançado
senão através de uma educação que encoraje a criatividade e a auto-expressão,
mais do que a imitação e o conformismo. Nas palavras de Jean Piaget:
“A meta principal da
educação é criar homens capazes de fazer coisas novas e não apenas repetir o que
outras gerações fizeram – homens criativos, inventivos, e descobridores. A
segunda meta da educação é formar mentes que possam ser críticas, que possam
verificar e que não aceitem tudo o que lhes é oferecido.”[21]
Tais observações encaixam-se na
tradição dos grandes pensadores do passado, independentemente dos enfoques
específicos que adotaram em outros aspectos, na medida em que foram unânimes ao
relacionar a educação com a vocação de cada homem, preparando-o em pensamento e
ação para cumprir seu propósito e posição na vida.
O contrário desta educação que
liberta e realiza seria a educação dos animais domesticados ou dos escravos,
que aprendem para o benefício dos outros, não do seu próprio.
Tal educação “liberal”, um termo
cunhado por Aristóteles para definir a educação de homens livres – ao contrário
da educação “iliberal”, fornecida aos animais domesticados e aos escravos –,
destina-se a redimir e viabilizar a expressão do potencial inato de cada
pessoa. É seu objetivo garantir que cada ser humano viva bem, e não que tão
somente seja capaz de ganhar a vida, para si ou para os demais.
Aristóteles afirma que a educação de
um homem só é liberal “se ele faz ou aprende algo por causa dele mesmo ou de
seus amigos, ou com vistas à excelência”[22]. Em outras palavras, ela deve
tratar o homem como seu fim, e não como um meio a ser usado por outros homens,
ou pelo estado.
“Concepção bancária da educação”, é
como Paulo Freire denomina o processo de ensino/aprendizagem que não objetiva o
homem livre para pensar e repensar o mundo, para entendê-lo e recriá-lo. Tal
educação, denunciada por Aristóteles como “baixa e servil”[23] é, segundo
Freire, a própria antítese do saber:
“Educador e educandos se arquivam na
medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há
transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na
busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o
mundo e com os outros. Busca esperançosa também”.[24]
1.5. Educação e Escolaridade
Obviamente, até aqui se falou de
educação num sentido bem mais amplo do que simplesmente escolaridade. A maior parte da educação humana ocorre de maneira
não-formal, através da convivência, da orientação, da imitação, da
diferenciação. A educação, portanto, é muito mais antiga e ampla do que essas
instituições formais chamadas escolas. Na verdade, como vimos acima, a educação
é tão antiga quanto a própria humanidade. Mesmo em nossos dias, muitos outros
veículos educacionais, além das escolas (a mídia, por exemplo), atuam
permanentemente sobre todos os seres humanos.
Ao longo da História humana, com
exceção do século XX, a educação se deu através do aprendizado contextualizado,
ou seja, as lições eram transmitidas dentro do contexto em que deveriam ser
aplicadas. Em outras palavras, aprendia-se fazendo. Através da observação
informal e da prática orientada no lar, nos campos, nos templos ou nos
artesanatos, as crianças e os jovens aprendiam, não apenas a fazer coisas e a
entender as coisas, mas a ser.
Toda a cosmovisão, os valores, os
modelos de papéis adultos, as possibilidades e as limitações que uma cultura
possui foram transmitidos, ao longo de milhões de anos, desta forma pouco
sistematizada e espontânea. Mesmo na vida contemporânea, esta ainda é a principal
forma de educação, mas, em todo o mundo, as crianças passam hoje grande parte
do seu tempo dentro de salas de aula.
A escola pública elementar, como a
conhecemos atualmente, foi concebida somente no século passado, pela primeira
vez nos Estados Unidos da América. Como observa Howard Gardner, “A instrução
pública em massa é distintamente um fenômeno do século XX”.[25]
Há uma grande diferença entre a
educação tradicional e a escolar, tanto no que diz respeito aos objetivos
educacionais, quanto ao processo educativo. É Gardner, novamente, quem comenta:
“Pois enquanto a educação no mundo
inteiro se caracteriza desde longa data pela transmissão de papéis e valores em
ambientes apropriados, as escolas
descontextualizadas foram criadas, primordialmente, com dois objetivos
específicos: a aquisição de instrução com
notações e o domínio de disciplinas”.[26]
Por que, então, deveríamos nos
preocupar tanto com o acesso das crianças às escolas, e buscar, de todos os
meios, que elas possam desfrutar de tal conhecimento “descontextualizado” e com
ênfase mais na instrução e nas disciplinas, do que nos valores e nos papéis
adultos? Há várias razões.
Até a Revolução Industrial, no século
XIX, a maioria dos seres humanos dependia da educação informal (proveniente do
convívio com os pais, a família e a sociedade) ou contextual (aprendizado in loco, como numa carpintaria, num
mosteiro ou no campo) para construir aquele conhecimento que lhe seria
necessário para a vida em sociedade. Este conhecimento, em geral, privilegiava
a estagnação e o imobilismo sociais: nobres aprendiam coisas de nobres,
camponeses aprendiam coisas de camponeses, artesãos, de artesãos, etc. Ou seja,
o panorama educacional e social era “Filho de peixe, peixinho é.”
Na sociedade contemporânea, porém, as
profissões e ocupações humanas estão cada vez mais voltadas e abertas para as
capacidades inatas de cada ser humano, independentemente de sua origem. Neste
contexto, a educação escolar tornou-se o melhor instrumento educacional que
permite acesso ao mundo para além da família. As escolas, no mundo inteiro,
passaram a representar, em seu estado ideal é claro, um belo exercício de
justiça e igualdade humanas, na medida em que oferecem a todas as crianças os
benefícios do conhecimento, independentemente de sua condição social.
Obviamente, ainda há uma enorme e
injusta diferenciação na qualidade de ensino oferecido a diferentes classes
sociais, mas o fato é que, se compararmos a educação de hoje, em termos de
possibilidade de crescimento e realização pessoal, com aquela que dominou a
História humana, é impossível negar os grandes avanços ocorridos. Hoje as
escolas são, em todo o mundo, talvez o principal instrumento de socialização,
de integração comunitária, de possibilidade de auto-realização. Assim, no
contexto da civilização contemporânea, negar acesso à escola é negar acesso à
auto-realização, à cidadania, à vida.
Além disso, com o ingresso das
mulheres no mercado de trabalho e com as transformações ocorridas na estrutura
do dia-a-dia dos indivíduos e famílias, especialmente no que diz respeito ao
tempo e à qualidade do convívio diário, muito daquilo que antes era aprendido
no lar agora precisa ser aprendido na escola. Regras básicas de convivência,
noções de certo e errado, entendimento do mundo e de si mesmo, estão entre
aqueles aprendizados fundamentais que, de maneira crescente, ocorrem, numa
medida cada vez maior, fora dos lares.
Em muitíssimos casos até, as escolas
oferecem o melhor ambiente possível para o desenvolvimento das crianças, quer
no sentido mais elementar de uma refeição adequada, quanto nas dimensões mais
sutis e determinantes de um ambiente emocional e socialmente saudável. Para os
filhos de tantos lares desfeitos ou sujeitos ao álcool, à violência, à miséria
e à degradação, muitos professores são, hoje, os mais importantes adultos e os
melhores modelos. Muitas destas crianças contam com eles como os mais saudáveis
exemplos pelos quais irão modelar suas possibilidades de crescimento e sucesso,
sua auto-estima e respeito, seus padrões de paternidade e felicidade... Para
outros tantos, as melhores lembranças de carinho, amor e ternura, estarão para
sempre relacionadas aos bancos escolares.
Além disso, no contexto de um mundo
sujeito aos impulsos preconceituosos, fanáticos e etnocêntricos relacionados a
religião, raça, ideologia, origem e classe, as escolas oferecem, idealmente, e
também, em geral, na prática, um ambiente neutro e democrático para a
convivência e a aprendizagem da convivência pacífica e respeitosa. Enquanto não
se tornarem quintais das igrejas e partidos, oxalá isso nunca ocorra, as
escolas representam um baluarte fundamental da sociedade pluralista, livre e
democrática. Bastaria isso para fazer delas um elemento essencial no processo
de educação do qual estivemos falando acima.
Barbara Freitag, um dos grandes nomes
na área do pensamento da eticidade, realizou em 1981 e 1984, um estudo
piagetiano em escolas e favelas da Grande São Paulo, concentrando-se em
crianças e adolescentes entre 6 e 16 anos provindos de diferentes origens
socioeconômicas, com o fim de identificar o perfil de desenvolvimento moral
nesta população. No estudo foram empregados os testes de moralidade sugeridos
por Piaget e por Lowrence Kohlberg. Como em outros estudos realizados em outras
partes do mundo, a pesquisa confirmou a existência de estágios de
desenvolvimento moral, conforme postulados tanto por Piaget quanto por Kohlberg
(algo que trataremos mais adiante, quando falarmos da Construção do Indivíduo
Ético). Mais importante para nossa consideração aqui foi outra conclusão da
pesquisa, no que diz respeito ao desenvolvimento moral diferenciado para
adolescentes escolarizados e não-escolarizados. Segundo Freitag:
“Essa Segunda hipótese foi
inteiramente confirmada, favorecendo os adolescentes escolarizados. Entre estes,
registraram-se os estágios mais elevados de moralidade. A decalagem
[diferenciação] vertical constatada entre jovens favelados (sem experiência
escolar) com relação aos jovens escolarizados de diferentes origens
socioeconômicas mas de mesma faixa etária (de 12 a 16 anos de idade) era enorme.”[27]
Estas experiências, como outras em
diferentes contextos socioculturais, demonstram, como ressalta Freitag, que a
“educação geral e a educação moral tornam-se necessárias para evitar o atraso
(cumulativo) no alcance dos estágios adequados do desenvolvimento [moral].”[28]
Na base de teoria da moralidade de
Kohlberg está o postulado de que a genuína compreensão moral depende de o
indivíduo ter alcançado o estágio cognitivo do pensamento operacional formal,
como descrito por Piaget, o que teria relação estreita com a escolaridade.
Embora a comprovação de tal relação direta ainda permaneça inconclusiva, e a
distinção daquilo que é puramente lógico daquilo que é puramente moral ainda
não tenha sido definida pelas pesquisas contemporâneas[29], permanece a clara
indicação de que a educação ampliada, seja formal ou informal, oferece maiores
condições de desenvolvimento moral ao indivíduo, quando as demais variáveis
forem idênticas.
A escola, nos dias atuais, e a escola
pública em particular, apesar de todas as grandes e urgentes necessidades de
aprimoramento e transformação, representam, assim, uma tábua de salvação para
milhões de crianças que, de outra maneira, estariam fadadas à ignorância e à
marginalidade. O acesso à escola representa, portanto, o acesso à própria vida,
à possibilidade de vida. É uma promessa, humilde que seja, de um mundo melhor
para cada criança, e a promessa da construção de um ser que possa mesmo
transcender suas origens, e que se construa conforme seus mais elevados
potenciais.
2. Valores Humanos e Motivação para a Ação Transformadora
“Não se pode pensar em objetividade
sem subjetividade. Não há uma sem a outra, que não podem ser
dicotomizadas.”[30] (Paulo Freire)
2.1. Paradigmas Dominantes e Desumanização
Durante a maior parte da História
humana, em todas as culturas, era relativamente fácil entender o universo e o
papel do homem dentro dele. Deus era o Criador supremo e os homens suas
criaturas supremas. Os governantes o eram por direito divino e a missão de
todos os homens era obedecer a Deus, ao rei, e tratar de salvar suas almas
através da Fé. As regras básicas da existência eram de natureza religiosa e a
sociedade dominava sobre o indivíduo. A tarefa humana fundamental era crer e
obedecer.
Esta visão teocêntrica do mundo e de
seu funcionamento foi questionada crescentemente, a partir da Europa do século
XVII, dando lugar a um paradigma antitético: Deus existia, é verdade, mas
distante. O homem passou a ser o centro do universo, e a ciência era sua
criatura suprema. Os governantes derivavam sua autoridade do poder concedido a
eles pelo povo. As regras da vida eram de natureza científica e o indivíduo
estava acima do todo da sociedade. A tarefa fundamental dos homens passou a ser
raciocinar e criar.
É claro que este paradigma nascido
com a Revolução Científica, o Iluminismo e o Racionalismo dos séculos XVI ao
XVIII, representou uma antítese aos milênios de domínio cultural e social da
religião sobre os homens.
Ao longo dos últimos dois ou três séculos,
o antropocentrismo substituiu o teocentrismo como paradigma dominante. A Razão
substituiu a Fé. O Objetivo substituiu o Subjetivo. A Certeza substituiu o
Mistério. Essa mudança de weltanschauung
da civilização ocidental difundiu-se para o mundo inteiro, através do processo
de Industrialização e Globalização que se lhe seguiu. Desde então, a Ciência e
a Razão são dotadas de força de lei, de forma tão categórica quanto haviam
sido, no passado, a Doutrina e a Fé.
Fritjof Capra, da Universidade da
Califórnia, em Berkeley, um dos mais destacados físicos e pensadores
contemporâneos, comenta:
“A crença na certeza do conhecimento
científico jaz na própria base da filosofia cartesiana e na cosmovisão que dela
nasceu; e foi aqui, nas próprias origens, que Descartes se equivocou. A Física
do século XX nos convenceu, de maneira forçosa, que não há verdade absoluta na
Ciência, que todos os nossos conceitos e teorias são limitados e aproximados. A
crença cartesiana na verdade científica é ainda muito disseminada hoje em dia e
se reflete no cientificismo que se tornou típico de nossa cultura
Ocidental.”[31]
Porém, como antítese que é, o
paradigma científico-racional contemporâneo ainda não está completo. Na
verdade, nenhum paradigma jamais poderá ser considerado completo. Dar-se conta
dessa limitação é fundamental para se poder ir além dos limites criados por
ele. Capra observa:
“O método de pensamento de Descartes
e sua visão da natureza influenciaram todos os ramos da Ciência moderna e podem
ainda ser muito úteis hoje em dia. Mas serão úteis somente se suas limitações
forem reconhecidas. A aceitação da visão cartesiana como verdade absoluta, e do
método de Descartes como a única forma de conhecimento válida desempenharam um
papel importante na geração de nosso desequilíbrio cultural contemporâneo”.[32]
O grande sucessor de Descartes na
busca do conhecimento objetivo da natureza foi Isaac Newton. Seu êxito em
desenvolver todo um modelo matemático para a visão mecanicista da natureza
levou o paradigma do universo-máquina ainda mais longe. Além da certeza no
conhecimento científico e no primado da razão, Newton difundiu o paradigma da
realidade composta de partes isoladas e independentes, os átomos, e da
possibilidade de compreender o todo a partir apenas do estudo das partes. Esta
visão atomista e reducionista agiria sinergicamente com os postulados
cartesianos para criar todo um paradigma cada vez mais “objetivo” e “realista”,
onde as sutilezas das percepções desenvolvidas por épocas anteriores se
perderam. Capra segue sua análise:
“O extraordinário sucesso da física
newtoniana e da crença cartesiana na certeza do conhecimento científico
conduziram diretamente à ênfase que nossa cultura atribuiu à ciência pura e à tecnologia pura. Somente em meados do século XX é que se tornou claro que a
idéia de uma ciência pura era parte
de um paradigma cartesiano-newtoniano, um paradigma que seria então
superado”.[33]
Embora não tenha sido esta a intenção
de Descartes, ou de seu grande sucessor, o fato é que os pensadores que os
sucederam, quer nas Ciências da Natureza, quer nas Humanidades, estenderam a
outros domínios do conhecimento uma visão crescentemente materialista e
mecanicista, buscando tratar a natureza, o homem e a sociedade como máquinas.
Houve, num sentido cada vez mais intenso e geral, um processo de
dessacralização da vida e de suas metas.
“Os pensadores do século XVIII” –
continua Capra – “levaram este programa mais longe, ao aplicarem os princípios
da mecânica newtoniana às ciências que estudavam a natureza humana e a sociedade.
As ciências sociais recentemente criadas geraram grande entusiasmo, e alguns de
seus expositores chegaram mesmo a reivindicar a descoberta de uma Física social”.[34]
Eventualmente, nessa caminhada obsessiva
pela realidade objetiva, todos os fenômenos subjetivos e todos os valores
espirituais foram descartados como inúteis. A famosa postulação de Marx em A Ideologia Alemã cria escola e se impõe
no mundo:
“O modo de produção da vida material
condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a
consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser
social que determina suas consciências”.[35]
Apesar de tal interpretação da
realidade ter deixado de ser verdade absoluta ao ser cabalmente desmentida por
Max Weber, em seu A Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo, o fato é que o conteúdo revolucionário e político
da práxis marxista dominaram o cenário cultural de grande parte do mundo, sendo
força incontestável na difusão de uma postura e interpretação puramente
materialista da realidade. Como se não bastasse, em 1882, Nietzsche, proclama
que “Deus está morto”![36]
Este paradigma atomista,
materialista, reducionista e mecanicista está nas raízes da crescente
desumanização do ser humano ao longo dos últimos 300 anos. Eric Fromm descreve
vivamente o que se passa na consciência e no comportamento das pessoas quando
passam a tratar o universo como se fosse uma grande máquina, pessoas que ele
denomina de “necrófilos”, ou seja, amantes das coisas mortas.
“... o indivíduo necrófilo ama tudo o
que não cresce, tudo o que é mecânico. A pessoa necrófila é movida por um
desejo de converter o orgânico em inorgânico, de observar a vida mecanicamente,
como se todas as pessoas viventes fossem coisas. Todos os processos,
sentimentos e pensamentos de vida se transformam em coisas. A memória e não a
experiência; ter, não ser, é o que conta. O indivíduo necrófilo somente pode se
realizar com um objeto – seja uma flor ou uma pessoa – se o possuir. Em
conseqüência, a ameaça à posse é uma ameaça a ele mesmo. Se perde a posse,
perde contato com o mundo.”[37]
Outro grande nome da Psiquiatria do
pós-guerra, Victor Frankl, criador da terceira escola de Psiquiatria de Viena
(Depois de Sigmund Freud e Alfred Adler), e uma das mais extraordinárias vidas
e mentes do século, descreve as conseqüências nefastas do materialismo e do
tecnicismo na sociedade contemporânea:
“... a evidência clínica sugere que a
atrofia do sentido religioso na pessoa humana resulta numa distorção de seus
conceitos religiosos. Ou, falando em termos menos clínicos: uma vez reprimido o
anjo dentro de nós, ele vira um demônio. Existe um paralelo inclusive em nível
sociocultural, pois repetidas vezes observamos e somos testemunhas de como a
religião reprimida acaba degenerando em superstição. Em nosso século, o
endeusamento da razão e uma tecnologia megalomaníaca constituem as estruturas
repressivas em prol das quais é sacrificado o sentimento religioso. Este fato
explica grande parte da atual condição humana, a qual realmente parece uma neurose compulsiva universal da humanidade,
para citar Freud”.[38]
Ken Wilber, um dos maiores filósofos
da atualidade, comenta sobre a ruptura da cultura contemporânea a partir da
dissociação ocorrida entre os “Três Grandes”, como ele chama o Belo, o Bom e o
Verdadeiro. Essas três dimensões de valores, identificadas por Platão, seguiram
sendo os referenciais de grandes pensadores ao longo dos séculos, como Tomás de
Aquino, Kant, Popper e Habermas.
Wilber, numa análise fascinante,
identifica como estes três domínios se relacionaram ao fazer humano de formas bem distintas, mas complementares, até
interdependentes, ao longo da maior parte da História de todas as culturas e
civilizações, com exceção da Modernidade[39] na cultura Ocidental. Ele também
identifica os “Três Grandes” com outras dimensões epistemológicas e
ontológicas. Senão, vejamos:
O Belo
tem a ver com a consciência, a subjetividade, a identidade pessoal, a
auto-expressão (inclusive arte e estética), a veracidade, a sinceridade, a
consciência vivida irredutível e imediata, os “relatos na primeira pessoa”. O
Belo é o domínio da Arte e do Eu.
O Bom
diz respeito à ética e à moral, às visões de mundo, ao contexto compartilhado,
à cultura, aos significados intersubjetivos, à compreensão mútua, ao
apropriado, à justeza, aos “relatos em segunda pessoa” (tu, você; vós, vocês).
O Bom é o domínio da Moral e do Nós.
O Verdadeiro
se relaciona com o domínio da ciência e da tecnologia, com a natureza objetiva,
com as formas empíricas, com a verdade propositiva, com as exterioridades
objetivas tanto de indivíduos quanto de sistemas, e aos “relatos na terceira
pessoa” (ele, ela, eles, elas). O Verdadeiro é fundamentalmente o domínio da Ciência e das Coisas (Ele, Ela, Eles, Elas).
Wilber descreve como o projeto da Modernidade tratou de separar essas três
grandes esferas que sempre haviam andado mescladas ao longo da História. Isso,
de certa forma, foi bom, pois permitiu que cada uma delas pudesse se
desenvolver sem os freios que as demais poderiam inadequadamente impor-se
mutuamente. Mas ele também mostra como, mais do que diferenciação, a cultura
moderna ocidental dissociou uma
esfera da outra, criando barreiras (aparentemente) intransponíveis entre o eu e
o nós e o eles, entre a razão e a emoção e a intuição, entre a ciência e a arte
e a religião... Comenta Wilber:
“[...] a diferenciação entre os Três Grandes [o Belo, o Bom e o Verdadeiro]
(e essa foi a dignidade da modernidade) degenerou em dissociação dos Três Grandes (o que representou o desastre da
modernidade). Essa dissociação permitiu que uma ciência empírica explosiva,
associada a formas florescentes de produção industrial – sendo que ambas
enfatizavam somente o conhecimento das
coisas e a tecnologia das coisas –
dominasse e colonizasse as outras esferas de valor [o Belo e o Bom]
efetivamente destruindo-as em seus termos próprios.
“Assim, as [...] dimensões interiores foram reduzidas às suas [...]
correspondentes exteriores, o que
significou o colapso do Grande Encadeamento do Ser[40], e com ele, dos
postulados centrais das grandes tradições sapienciais.
“[...] Aí está, precisamente, o
desastre da modernidade, o desastre que foi o ‘desencantamento do mundo’
(Weber)[41], a ‘colonização da esfera dos valores pela ciência’ (Habermas), o
‘surgimento da terra desolada’[42] (T.S.Eliot), o nascimento do ‘homem
unidimensional’ (Marcuse), a ‘dessacralização do mundo’ (Schuon), o universo
desqualificado’ (Mumford).
“Por qualquer outro nome que seja,
trata-se do desastre conhecido como terra plana”.[43]
Assim, o fato é que, através de um
processo progressivo de materialização, racionalização e mecanização do
universo, do indivíduo e da sociedade, a cultura moderna acabou por coisificar
o mundo, o ser humano e seus ideais. Os paradigmas dominantes da modernidade
levaram à desumanização do ser humano e de seu mundo.
2.2. A Permanência dos Valores “Desumanos”
Há, ainda hoje, em todo o mundo, uma
inércia – herança tardia da Renascença, do Iluminismo, do Racionalismo e da
Revolução Industrial –, de se conceber as soluções dos problemas humanos,
inclusive sociais, em termos meramente técnicos e materialistas. Tal abordagem
dá ênfase aos recursos, especialmente econômicos, não às pessoas; à transferência
de conhecimento e tecnologia, não à educação e à capacitação; às normas e
regulamentos, não ao diálogo; às exigências técnicas e financeiras, não às
espirituais.
Arnold Toynbee, para muitos o maior
historiador do século, comentava, já nos anos 50, sobre esta falácia das
soluções técnicas, ao discorrer sobre a integração mundial que viemos a chamar
de globalização:
“Desde o começo a humanidade tem
estado dividida - hoje nos unimos finalmente. ... Mas
nosso andaime, armado no Ocidente, é constituído por materiais menos duráveis.
Seu elemento mais notório é a técnica e o homem não pode viver somente da
técnica”.[44]
Toynbee ressaltava a necessidade
urgente de a interdependência mundial passar também pelo enriquecimento
cultural mútuo, pelos valores humanos, por aqueles princípios espirituais,
universais e atemporais como a Justiça, a Liberdade e o Amor. Para que a aldeia global que se estava formando não
se transformasse numa aldeia de dominadores e dominados, de possuidores e
excluídos.
Paulo Freire, da mesma forma, não se
sentia tolhido de falar em Amor quando falava de transformação social. Para não
parecer piegas, entretanto, (devemos lembrar que corriam os anos 60!) sentiu
ser necessário apoiar-se em “Che” Guevara que afirmava que “o verdadeiro revolucionário
está guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível pensar em um
revolucionário autêntico sem esta qualidade.”[45]
A ideologia da desumanização, da
racionalidade crua e mecânica e das ações “isentas” de sentimentos, baseadas
apenas em dados “científicos” dominou grande parte do último século, ao ponto
de muitos não conseguirem perceber outra alternativa para a realidade. Essa
miopia de visão social caracterizou aquilo que viemos a reconhecer como Modernidade. Sua difusão pelo mundo, e
as conseqüências disso, é descrita por Ervin Laszlo, um dos cientistas
fundadores do Clube de Roma e consultor científico da UNESCO:
“A reunião do conhecimento científico
e dos ofícios práticos sinalizou o nascimento da ciência aplicada, ou
tecnologia. Seu surgimento na Europa, em estados-nações que dominavam os sete
mares e se consideravam plenamente soberanos, pavimentou o caminho para a
industrialização e todas as suas bem conhecidas conseqüências. Os valores da
civilização industrial foram difundidos para o resto do mundo através do
mercantilismo e da busca por novas matérias-primas, assim como (num estágio
posterior) por novos mercados. ...
“Os valores e aspirações associados
com o modernismo espalharam-se de forma pouco sábia, na medida em que povos dominados
pela tradição buscavam os confortos e o poder concedidos pela tecnologia, mas
se achavam também expostos à sua mentalidade subjacente. Assim se espalharam
pelos quatro cantos do mundo o materialismo, o egoísmo, o chauvinismo, o
ateísmo e a intolerância ao subdesenvolvimento.
Se para algumas pessoas tais atitudes parecem hoje ser expressões da própria
natureza humana, isso é porque adotaram-nas de modo tão completo que nada mais
parece concebível”.[46]
Laszlo então denuncia a falácia de se
imaginar que os valores e padrões da sociedade moderna contemporânea sejam
finais ou ideais:
“Ao contrário do que muitos crêem
piamente, o modernismo não é a expressão final da natureza humana, mas apenas
uma fase da evolução humana e sociocultural. ... Muitos grandes pensadores hoje
vêem nossa civilização a trilhar o caminho errado, tanto material quanto
espiritualmente. Eles buscam uma mudança espiritual através da educação e da
religião, que conduza a um redespertar de nosso senso de compaixão por toda a
humanidade.”
É importante ter em consideração que
tais palavras sobre a premência de nosso redespertar espiritual tem sido, cada
vez mais, pronunciadas por cientistas, como Toynbee e Laszlo, e não apenas por
teólogos ou espiritualistas. A necessidade de se redimir a verdadeira natureza
humana não tem escapado às mentes mais perspicazes, qualquer que seja o domínio
do conhecimento ao qual se dedicam.
Paulo Freire também reforça esta
visão de que os ideais desumanizados do materialismo não podem ser tidos como
vocação ou necessidade, como finais ou como única alternativa humana. É dele a
seguinte expressão lúcida, comovente e inspiradora:
“Humanização e desumanização, dentro
da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos
homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão.
“Mas, se ambas são possibilidades, só
a primeira nos parece ser o que chamamos de vocação dos homens. Vocação negada,
mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, na
exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de
liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos, pela recuperação de sua
humanidade roubada.
“A desumanização ... é distorção
possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos
que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos de
fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela
humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens
como pessoas, como seres para si, não
teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que
um fato concreto na história, não é porém, destino
dado...[47]
No que toca especificamente à
Educação e à sua potencial ação libertária e humanizadora, Paulo Freire
ressalta que esta precisa ser dialógica, pois, se não houver diálogo, o que há
é dominação. E aponta para o fato de que tal meta, postura e método
humanizadores só podem existir se fundados nos valores espirituais humanos:
“Não há diálogo, porém, se não há um
profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há
amor que a infunda.
“Sendo fundamento do diálogo, o amor
é, também, diálogo. Daí que seja essencialmente tarefa de sujeitos e que não
possa verificar-se na relação de dominação. Nesta, o que há é patologia de
amor: sadismo em quem domina; masoquismo nos dominados. Amor, não. Porque é um
ato de coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os homens”.[48]
Esta percepção de que os valores
humanos, ou espirituais, estão na base da motivação e da mobilização para a
ação transformadora é uma grande redescoberta da segunda metade do século XX.
As teorias contemporâneas sobre motivação humana apontam para o fato de que as consciências dos homens não podem ser
mobilizadas se seu coração não for
tocado. Os grandes valores espirituais da Verdade, do Belo, do Bem, da Justiça,
do Amor, etc, são elementos indeléveis da natureza humana, e sua negação ou
menosprezo estão na raiz da maior parte dos problemas globais contemporâneos.
Por que, então, tais princípios
espirituais são negados ou menosprezados?
2.3. A Inércia dos Modelos Mentais e a Ação Transformadora
É Ervin Laszlo, novamente, como uma
das vozes mais notáveis do século em prol da humanização das ações
governamentais e sociais, quem nos pode ajudar a começar a entender as razões
pelas quais, apesar de os valores humanos existirem e serem conhecidos, não são
utilizados como instrumento de mudança social.
Laszlo aponta para o que chama de
“limites internos” da humanidade, que identifica com a inércia em revermos
criticamente a weltanschauung, a
cosmovisão da qual derivamos a lógica (ou a falta dela) para nossa intervenção
no mundo. Ele comenta:
“Esquece-se que não nosso mundo, mas
nós seres humanos é que somos a causa de nossos problemas, e que apenas
redesenhando nosso pensamento e ação, e não o mundo ao nosso redor, é que os
poderemos solucionar....”
“Não há praticamente nenhum problema
mundial cuja causa não possa ser vinculada à ação humana e que não possa ser
superado por mudanças adequadas no comportamento humano. As causas que estão na raiz mesmo dos problemas físicos e ecológicos
são as limitações internas de nossa visão e nossos valores”.[49]
O fato é que a razão, a emoção e as
ações concretas humanas são reflexo da visão, das crenças e valores que são
nutridos subjetivamente, aquilo que pesquisadores como Howard Gardner e Peter
Senge, ambos da Universidade de Harvard, chamam de “modelos mentais”, ou
“representações mentais”, e que Thomas Khun batizou de “paradigmas”.
Os modelos ou representações mentais,
os paradigmas, são imagens mentais arraigadas dentro de nosso ser, que usamos
(individual e coletivamente) para compreender como funciona o mundo. Como a
mente humana não pode lidar muito bem com dados detalhados relacionados à
complexidade do mundo, ela tende a construir modelos mentais compostos de
generalizações. Estas generalizações se baseiam em imagens, idéias, suposições,
relatos, estereótipos e várias linguagens
nutridas dentro da mente-cérebro. Como coloca Gardner, “essas representações
são reais e importantes”.[50]
Mas o mais importante é que os
paradigmas-modelos-representações mentais determinam nosso comportamento, seja
individual, seja coletivo. Gardner aponta para o fato de que os comportamentos
humanos objetivos podem melhor ser entendidos como “epifenômenos, isto é, as
sombras de nossas representações mentais determinantes”.[51] Ou seja, agimos
conforme cremos e sentimos, sejam tais crenças ou sentimentos justificados ou
não. Vemos e agimos de acordo com nossos paradigmas pessoais e coletivos, sejam
eles válidos ou não.
Segundo Senge:
“... o mais importante é saber que os
modelos mentais são ativos - eles
modelam nosso modo de agir. Se achamos que as pessoas não são dignas de
confiança, agimos de maneira diferente da que agiríamos se achássemos que elas
eram confiáveis. ...
“Por que os modelos mentais têm esse
poder de influenciar o que fazemos? Em parte, porque eles influenciam o que vemos. Duas pessoas com diferentes modelos
mentais podem observar o mesmo acontecimento e descrevê-lo de maneira
diferente, porque olharam para detalhes diferentes”.[52]
Thomas Khun, da Universidade de
Chicago, o brilhante fundador da epistemologia contemporânea, já ressaltava em
sua obra seminal A Estrutura das
Revoluções Científicas:
“[...] algo como um paradigma é um
pré-requisito para a própria percepção das coisas. Aquilo que um homem vê
depende tanto daquilo para o qual ele olha quanto do que sua experiência
visual-conceitual anterior ensinou-lhe a ver”.[53]
Podemos comparar os paradigmas e
modelos mentais dominantes de uma civilização ou cultura a um navio
transatlântico que cruza o oceano. Dentro dele, milhares de pessoas se deslocam
para cima e para baixo, entram e saem, de acordo com suas vontades: vão ao
cinema, à piscina, ao jantar, ao baile, à sauna, ao camarote... Entretanto,
todo esse movimento se dá dentro de um movimento maior, que é o deslocamento do
navio de um continente ao outro. Esse macro-movimento, dentro do qual se dão
todos os infinitos micro-movimentos, quase que não é percebido, já que todos se
preocupam não com o deslocamento do navio, mas com suas vontades e necessidades
dentro do navio. Todos se consideram livres para tudo fazer dentro do navio.
Mas exatamente aí está a grande prisão: tudo fazer DENTRO do navio. Não haveria
nenhuma dimensão de liberdade (ou quase nenhuma, com exceção de se afogar ou
ser comido pelos peixes) se alguém quisesse fazer algo fora do navio.
Da mesma forma, os paradigmas de uma
civilização estabelecem os limites invisíveis dentro dos quais as pessoas
pensam, sentem e agem. Os paradigmas estabelecem as barreiras imperceptíveis
dentro das quais tudo parece lógico e coerente e viável. O grande problema é
justamente esse: assim como certamente existe muito mais vida e realidade fora
do navio, da mesma forma, existe muito mais verdade e realidade fora do(s)
paradigma(s) dominante(s) de uma determinada civilização, época ou cultura.
Transcender os paradigmas é uma
tarefa evolucionária fundamental, e a humanidade tem sempre sido capaz de
fazê-lo, mas não sem dor e medo, não sem contradições e resistência. Como
Thomas Khun salientou, nenhum paradigma é abandonado sem que outro seja
assumido em seu lugar. O ser humano não pode viver sem um sentido das coisas, e
é exatamente isso que os paradigmas oferecem. Quando um paradigma começa a se
mostrar deficiente, outro começa a ser formado, através dos esforços não
orquestrados, mas sinérgicos, de pioneiros do novo paradigma. Inicialmente,
tais pessoas são ridicularizadas e perseguidas, como os seguidores das novas
religiões, ou os defensores de novas teorias (veja-se os cristãos nos circos
romanos, Giordano Bruno, Galileu, Einstein, Max Plank, os protestantes na Europa
da Contra-Reforma, etc.), mas eventualmente, o novo paradigma se estabelece,
até o processo se repetir, no avanço irrefreável do desenvolvimento do
conhecimento e da consciência humanos.
Pois bem, tais considerações sobre
modelos e representações mentais indicam que, sem uma revisão de nossos
postulados básicos, sem um exercício crítico de nossa visão de como as coisas
são e funcionam no tocante ao desenvolvimento humano, individual ou social, é
impossível que ultrapassemos os “limites interiores” que, como aponta Laszlo,
nos impedem hoje de criar realidades novas e melhores.
“O problema dos modelos mentais” –
destaca Senge – “não está no fato de eles serem certos ou errados - por
definição, todos os modelos são simplificações. O problema surge quando eles
são tácitos - quando estão abaixo de nosso nível de
consciente”.[54]
Em relação aos valores humanos,
espirituais por natureza, há ainda muita resistência inconsciente, pautada em
modelos mentais inconsistentes com a realidade, que impede que eles se manifestem
ou sejam considerados seriamente quando se trata de “resolver problemas reais e
objetivos”. Laszlo, entretanto, nos recorda que “os valores e a motivação
impregnam todas as atividades humanas, mesmo as investigações científicas, e
desconsiderá-los ou depreciá-los não irá resolver nossos problemas, mas apenas
varrê-los para baixo do tapete”.[55]
A visão desumanizada da vida, se não
bastasse, não foi a única conseqüência do paradigma materialista. A negligência
e o desprezo em relação ao poder do ideal, da visão positiva de futuro e da
utopia, em favor de um pragmatismo cético, foram outro legado da Modernidade.
Em muitos ambientes, especialmente acadêmicos, era considerado “de bom tom” e
“moderno” depreciar todos os ideais da sociedade, mesmo aqueles dos grandes
pensadores liberais dos séculos anteriores. Isso era ser “científico”.
Ervin Laszlo comenta que
“praticamente esquecemos a importância e o valor das idéias e imagens positivas
de futuro. Olhamos para os poucos visionários remanescentes, que ainda
acreditam num mundo melhor, como sendo otimistas ingênuos ou tolos inofensivos.
Nossas sociedades sofrem de uma overdose de pragmatismo combinada com um
pessimismo generalizado mas indefinido”.[56]
Somos ainda herdeiros, em muitos
sentidos, desta postura cínica e cética, mas, ao mesmo tempo, sentimos, como
nunca, a falta das utopias.
2.4. Reconstruir Modelos Mentais e Paradigmas em prol da Humanização
Reconhecer esta tendência ao
menosprezo do poder transformador dos valores humanos e dos grandes ideais humanistas
é fundamental para que se quebre o encanto do tecnicismo e das soluções
mecânicas e “racionais”. Sem tal revisão de posturas e pontos de vista, de modo
a se colocarem os valores humanos, ou princípios espirituais, nas bases das
decisões morais, econômicas e políticas, o que ocorre é a criatividade no erro.
Neste sentido, Laszlo denuncia:
“Sondamos maneiras inovadoras de
satisfazer valores obsoletos. Administramos crises individuais enquanto
marchamos direto para catástrofes coletivas. Pensamos em mudar quase tudo,
menos nós mesmos”.[57]
E aponta a alternativa:
“Os apuros contemporâneos da
humanidade exigem mudanças interiores, uma revolução humana e humanística que
mobilize novos valores e aspirações, apoiados em novos níveis de
comprometimento pessoal e de vontade política”.[58]
Durante o Ano Internacional da Paz,
1986, um documento distribuído pela Comunidade Bahá’í aos líderes mundiais,
intitulado “A Promessa da Paz Mundial”, alertava-os sobre a importância dos
valores humanos para a transformação social. O documento salienta o fato de que
os valores humanos, ao contrário do que muitos ainda acreditam hoje, não são
meros instrumentos para as decisões pessoais de indivíduos mais refinados ou
desenvolvidos espiritualmente, mas sim princípios-guia que devem nortear as
decisões de entidades e governos na busca do desenvolvimento da social e
econômico. Diz o texto:
“Existem princípios espirituais, ou
aquilo que algumas pessoas chamam valores humanos, por meio dos quais se podem
encontrar soluções para todos os problemas sociais. Qualquer grupo
bem-intencionado pode, num sentido geral, formular soluções práticas para seus
problemas, mas as boas intenções e os conhecimentos práticos geralmente são
insuficientes. O mérito essencial de um princípio espiritual reside no fato de
não somente apresentar uma perspectiva que se harmoniza com aquilo que é
imanente à natureza humana, mas também de incutir uma atitude, uma dinâmica,
uma vontade e uma aspiração que facilitam e identificação e a implementação de
medidas práticas. Os dirigentes governamentais e todos os que ocupam postos de
autoridade fariam bem se, em seus esforços para resolver problemas, procurassem
primeiro identificar os princípios envolvidos e, depois, se deixassem guiar por
eles”.[59]
O texto aponta também para aquilo que
poderia ser considerado o principal valor dos princípios espirituais: o de
serem capazes de “incutir uma atitude, uma dinâmica, uma vontade e uma
aspiração” que conduzem à ação transformadora. Estudos na área da motivação
apontam os grandes ideais e valores humanos como os mais poderosos motivadores
da humanidade. Todo homem, um dia, cansa ou desiste de lutar por um melhor
salário, ou maior estatus, se estes forem fins em si mesmos. Mas pela Justiça,
pelo Respeito, pela Dignidade, ninguém se cansa de lutar. São lutas perenes da
humanidade.
Abraham Maslow, entre tantos outros
pensadores humanistas e pós-modernos [60], identifica esta mudança gradual em
direção a uma percepção mais equilibrada do mundo, uma síntese entre a tese
teocêntrica e espiritualista medieval e a antítese antropocêntrica e
materialista dos últimos cem anos. Esta síntese paradigmática conduz na direção
de uma percepção da realidade que harmoniza tanto os elementos sensoriais
quanto os suprasensoriais, que respeita tanto as coisas do “mundo” quanto as do
“céu”. Ele comenta:
“Quando a filosofia do homem (sua
natureza, seus fins, suas potencialidades, sua realização) muda, então tudo
muda, não só a filosofia política, a econômica, a ética e a axiológica, a das
relações interpessoais e a da própria História, mas também a filosofia da
educação, da psicoterapia e do crescimento pessoal, a teoria de como ajudar os
homens a tornarem-se no que podem e profundamente necessitam vir a ser.
“Estamos atualmente no meio de uma
tal mudança na concepção das capacidades, potencialidades e metas humanas. Está
surgindo uma nova visão das possibilidades do homem e do seu destino, e as suas
implicações são numerosas, não só para as nossa concepções de educação, mas
também para a ciência, a política, a literatura, a economia, a religião e até
para as nossas concepções sobre o mundo não-humano”.[61]
Além
dessa revisão fundamental dos valores que baseiam nossa cosmovisão
contemporânea, há outro elemento fundamental para a transformação da realidade
humana em direção da humanização e da ressacralização da vida, que já foi
adiantada acima. Trata-se da construção de visões positivas de futuro.
Imagens utópicas são arquetípicas. Ou
seja, os seres humanos possuem uma capacidade inata, como espécie, de responder
entusiasticamente a propostas de futuro que sejam promissoras e desejáveis, e
de agir para torná-las realidade.
Nos primórdios da civilização, há uns
bons 3000 anos, esta verdade já havia sido expressada quando um sábio disse que
“Onde não há visão, o povo perece”.[62]
Isso era tão verdade então quanto o é
hoje.
2.5. A Origem e Fonte dos Valores Humanos
Mas onde buscar estes princípios
espirituais norteadores, estes valores humanos orientadores, estas visões
positivas de futuro?
Kant queria que todo o agir moral se
sustentasse na razão, e não via necessidade de nada mais do que seu imperativo categórico para que cada um e
todos os seres humanos agissem de forma ética. A Moral, nesta visão, seria
basicamente autônoma (partindo do próprio indivíduo) e racional, e não
heterônoma (partindo de uma autoridade externa) e cultural (religiosa ou
política). Kant acreditava que bastaria a compreensão desta formulação
racional, belíssima, por sinal, para fazer que os homens agissem moralmente uns
para com os outros. Diz o imperativo categórico:
“Age tu de tal maneira que a máxima
de tua vontade possa valer sempre e ao mesmo tempo como princípio de uma
legislação universal”.[63]
Ou, em outra formulação:
“Age tu segundo a máxima que possa
transformar-se me lei geral”.
No entanto, a História e as Ciências
contemporâneas (Sociologia, Antropologia, Psicologia) demonstram que o agir
moral exige bem mais do que a simples razão. A moralidade nasce de uma tecitura
complexa onde inextrincáveis elementos autônomos e heterônomos (para usar
Kant), ou internos e externos, atuam sobre o indivíduo de forma categórica na
sua complexidade e não-linearidade. A realidade moral é bem diferente da pura
razão prática. As emoções, tanto ou mais do que a razão, as estruturas
psico-cerebrais congênitas, os condicionamentos familiares e sócio-econômicos,
os valores religiosos, políticos e ideológicos, as tradições sociais, as
circunstâncias, a educação, o nível de desenvolvimento moral, os paradigmas
dominantes da civilização, cultura ou sub-cultura, tudo isso atua sobre o
indivíduo para constituir seu ser e fazer moral.
Na realidade, apesar do que desejava
Kant, é hoje evidente que não existe desenvolvimento moral sem uma fonte
externa ao indivíduo que sobre ele exerça influência inequívoca e à qual ele,
preferencialmente, entregue sua lealdade, mas, em qualquer caso, sua
obediência. Um ser humano não age moralmente no vácuo da razão, mas
impulsionado por crenças, sentimentos, lealdades, ódios, amores, valores e
princípios (ou pela falta deles).
Assim, parece haver bastante consenso
entre os pensadores pós-modernos quando tendem a valorizar uma redescoberta dos
princípios eternos e universais proclamados, não pela simples razão, mas pelas
grandes tradições espirituais da humanidade. Sem necessariamente postularem um
retorno às Religiões, pelo menos enquanto elas, ou naquelas que, se configuram
conforme o que Wilberg chama de formato “pré-moderno”, tais pensadores e
cientistas identificam nelas a origem e a fonte dos princípios universais de
humanização cuja falta tanto denunciam.
Max Horkheimer, o fundador da “Teoria
Crítica” e um dos pais da (Primeira) Escola de Frankfurt, junto com Adorno,
Marcuse e Benjamin, deu desenvolvimento ao pensamento filosófico contemporâneo
a partir de uma perspectiva marxista. É dele, e de um quadrante tão insuspeito
para tal posicionamento, a seguinte afirmação:
“Não
existe nenhuma razão lógica e imperativa pela qual eu não deva odiar, se isso
não me prejudicar na vida social. Todas as tentativas de basear a moralidade na
inteligência mundana, em vez de vê-la em relação ao mais além – uma tendência à
qual nem mesmo Kant resistiu todo o tempo – estão fundadas em ilusões. Em
última análise, tudo o que diz respeito à moralidade deriva logicamente da teologia”.[64]
Arnold Toynbee, ao analisar as
possibilidades de correção de rumos da civilização contemporânea, lançava o
desafio de se “restabelecer a superestrutura secular sobre fundações
religiosas”.[65] Claro que não se refere a “fundações religiosas” no sentido de
sectárias ou doutrinárias, mas no sentido dos valores espirituais que sempre
foram o baluarte e o moto de todas as religiões.
Fritjof Capra, por sua vez, escreve:
“Um número cada vez maior de
cientistas está consciente de que o pensamento místico oferece um fundamento
consistente e relevante para as teorias da ciência contemporânea, uma concepção
de mundo na qual as descobertas científicas de homens e mulheres podem estar em
harmonia perfeita com seus objetivos espirituais e suas crenças religiosas”.
[66]
Ervin Laszlo, faz uma exposição
bastante completa do que representaria um programa de humanização da cultura
contemporânea partindo da influência dos valores universais salientados em
diversas correntes de pensamento religioso ou humanista (inclusive ateu):
“Os grandes ideais das religiões
mundiais, e a ética e a cosmovisão de tempos mais recentes, representam valores
perenes, independentemente do período histórico em que apareceram inicialmente.
Estes ideais poderiam e deveriam ser reafirmados e divorciados das práticas
políticas, freqüentemente questionáveis, que estiveram associadas a eles.
“Há, por exemplo, a visão cristã da
fraternidade universal governada pelo amor que o homem dedica ao Deus de todos
os homens e ao próximo. Há a visão histórica do judaísmo, de um povo eleito
através do qual todas as famílias da terra serão abençoadas. O Islã possui a
visão universal de uma comunidade derradeira entre Deus, o homem, a natureza e
a sociedade. A meta essencial da Fé Bahá’í é alcançar uma visão abrangente do
mundo que possa conduzir à unidade da humanidade e ao estabelecimento de uma
civilização mundial baseada na paz e na justiça. O hinduísmo percebe a matéria
com sendo nada mais que a manifestação exterior do espírito e exorta à sintonia
com a harmonia cósmica através dos caminhos variados da yoga. O budismo,
também, percebe toda a realidade como interdependente, e ensina o homem a
alcançar união com ela através da renúncia aos apelos e apetites de um ego
independente. O confucionismo acha a harmonia suprema nas relações humanas
disciplinadas e ordeiras, e o taoísmo encontra esta harmonia na natureza e no
convívio com ela. As religiões tribais africanas concebem uma grande comunidade
dos vivo e dos mortos à qual todas as pessoas pertencem a menos que
intencionalmente criem desequilíbrios enter as forças visíveis e invisíveis que
estão dentro e ao redor delas.
“Para aqueles que buscam valores e
ideais seculares, a democracia liberal oferece uma visão de uma sociedade livre
onde todos possam realizar o que melhor convier a seus desejos e temperamentos,
e onde cada um possa achar as melhores oportunidades para ser feliz. O
marxismo, por sua vez, propõe o ideal de uma sociedade igualitária onde não
haja classes nem exploração, e onde cada um receba benefícios de acordo com
suas reais necessidades.
“Todos estes são ideais perenes
baseados em valore humanos universais. Não poderíamos fazer nada melhor do que
redescobri-los e guiar nossos passos de acordo com eles”.[67]
Howard Gardner, da mesma forma, encoraja-nos
a buscar nestas fontes, sem dogmatismo, mas também sem medo, os elementos
necessários para uma recuperação do equilíbrio do homem contemporâneo:
“Tradicionalmente, as mais
importantes verdades foram as religiosas – as crenças da cultura sobre o que os
seres humanos são, seu lugar no cosmo, como se relacionam com deidades e outras
figuras espirituais, forças divinas que determinam o destino de cada um”.[68]
Estas considerações parecem ser mais
do que suficientes para apresentar alternativas válidas no sentido de recolocar
a humanização, e, na verdade, a ressacralização da vida, outra vez no centro da
vida.
É possível, pois, e não apenas
necessário, recuperar as elevadas verdades de natureza espiritual, moral e
ética que foram esquecidas durante nossa fase de modernidade cartesiana,
atomista, reducionista materialista e tecnicista. Além disso, essa recuperação,
mais do que necessária e possível, é saborosa, enriquecedora e fraternal. Ela
aponta para uma visão sistêmica do homem e de sua interação com a vida.
Na medida em que está aberta para
todas as verdades e incorpora todo o bem, esta postura humanizadora é
instrumento de tolerância, e, mais que tolerância, de amor. É instrumento de
liberdade, igualdade e paz. Trata-se da busca da transcendência humana, do Ser Mais de Paulo Freire. E, como ele
afirma, “Esta busca do Ser Mais ...
não pode realizar-se no isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na
solidariedade dos existires...”[69]
3. A Formação do Indivíduo Ético
3.1. As Três Formas de Educação e a Educação Moral
Vem
de A República, de Platão, a primeira
formulação sobre as três formas de educação necessárias para a adequada
condução de um ser humano ao seu destino potencial: a educação física (ou
material); a intelectual (ou humana, ou liberal); e a moral (ou espiritual).
Com ênfases ou terminologia
cambiantes, todos os pensadores parecem concordar nesta divisão tripartida,
ainda que se possam encontrar também subdivisões adicionais. É claro, também,
que esta divisão é meramente pedagógica, pois é fácil perceber o quanto cada
área da educação afeta todas as demais.
Uma separação exagerada entre a
educação intelectual e a moral pode ser questionada, ou, pelo menos
qualificada, por aqueles que, como Sócrates, tendem a identificar o
conhecimento com a virtude. Porém, dificilmente algum pensador foi ao extremo
oposto, de não fazer distinção nenhuma entre a tarefa de transmitir
conhecimento à mente, e a de edificar o caráter.
Platão
chega a identificar a educação do caráter com a própria essência da Educação:
“Chamo educação àquele
treinamento que é dado, através de hábitos adequados, aos primeiros instintos
de virtude existentes nas crianças... a disciplina correta de prazer e
sofrimento através dos quais um homem, desde o início até o fim de sua vida,
abominará o que deve ser abominado e terá amor pelo que se deve amar”.[70]
Na visão aristotélica, que é
desposada pela grande maioria dos pensadores e filósofos que ponderaram sobre
os desafios da educação, a felicidade humana depende do desenvolvimento de
virtudes. “Reconheçamos, pois,” – diz Aristóteles – “que cada um desfruta
apenas de tanta felicidade quanto possuir de virtude e sabedoria, e de ação
virtuosa e sábia”.[71]
Aristóteles considera a virtude não
apenas como o desenvolvimento da moral, mas também do intelecto, e propõe que a
Virtude “é de duas naturezas, intelectual e moral” ·[72]. Sua classificação de virtudes
intelectuais incorpora aquilo que, ao longo dos séculos, veio a ser definido
como raciocínio, imaginação, compreensão e memória. Por outro lado, as virtudes
morais englobam qualidades de caráter, como temperança, justiça e veracidade.
Ele observa então, que “a virtude
intelectual, no geral, deve seu nascimento e desenvolvimento ao ensino (razão
pela qual necessita experiência e tempo), enquanto a virtude moral nasce como
resultado do hábito... Disso se torna claro, também, que nenhuma das virtudes morais se desenvolvem em nós de forma espontânea”.[73]
Na mesma linha de argumentação, sobre
a necessidade da educação espiritual e moral, mas refletindo toda uma tradição
oriental milenar em educação, aquela elogiada por Sócrates, Platão e
Montesquieu, ‘Abdu’l-Bahá, o grande nome da filosofia da educação no Oriente,
com grande impacto na Europa e América do início do século XX, comenta:
“Há quem imagine que um sentido inato
de dignidade humana impedirá o homem de cometer más ações e assegurará a sua
perfeição material e espiritual [moral]. [...] No entanto, se ponderarmos as
lições da história, tornar-se-á evidente que o próprio sentido de honra e
dignidade, em si, é uma das bênçãos provenientes das orientações dos Profetas
de Deus. [...] É evidente, pois, que o aparecimento deste senso natural de dignidade
e honra humanas é o resultado da educação.[...]
“A causa fundamental do mau
procedimento é a ignorância, razão pela qual temos de segurar firmemente as
ferramentas da percepção e do conhecimento. O
bom caráter tem de ser ensinado”.[74]
Quando se fala em formar um indivíduo
ético ou moral, portanto, a ênfase cai sobre a educação moral. Ao longo dos
séculos, o desafio da sociedade de manter um equilíbrio adequado entre a
educação intelectual e a moral sempre foi presente. Ao longo da História, em
todos os quadrantes da terra, houve épocas, culturas e mesmo civilizações, que
tiveram como ideal máximo da Educação não o desenvolvimento intelectual, mas o
desenvolvimento das virtudes. Em outras, por sorte bem mais raras, como a nossa
experiência de modernidade, ocorreu o reverso.
A ênfase social e cultural sobre um
ou outro aspecto da educação produz resultados bastante perceptíveis e
diferenciados. Ao longo do período clássico ocidental e na maioria das culturas
orientais em todos os tempos, o ideal da Educação era o desenvolvimento do
homem integral, com virtudes do corpo, da mente e da alma, especialmente estas
últimas (segundo a tradição universal do “Grande Encadeamento do Ser”, apontado
por Ken Wilber).
Howard
Gardner comenta:
“Os antigos não viam o indivíduo como
uma coleção de virtudes, conjugadas ou não. Adotaram, de preferência, uma visão
decididamente holística da pessoa. Esta procuraria atingir a excelência em
todas as coisas, continuaria esforçando-se durante a vida inteira e buscaria
igualmente constituir-se num ser humano integrado e equilibrado. Ou a pessoa
representava uma integração dessas características intelectuais, físicas,
éticas e estéticas, ou a pessoa não a representava. A aquisição de conhecimento
e habilidade era vista como um auxiliar necessário à obtenção de virtude
[moral] – o bem supremo – a serviço da sociedade a que se pertencia”.[75]
Ao longo do tempo, a Educação humana,
em todas as sociedades, teve basicamente quatro grandes objetivos: “transmitir
papéis, veicular valores culturais, inculcar os diversos graus de instrução e
comunicar certo conteúdo disciplinar e modos de pensar”[76] Porém, como aponta
Gardner, “enquanto a educação no mundo inteiro se caracteriza desde longa data
pela transmissão de papéis e valores em ambientes apropriados, as escolas descontextualizadas foram
criadas, primordialmente, com dois objetivos específicos: a aquisição de instrução com notações e o domínio de disciplinas”.[77]
Assim, na cultura ocidental, como
resultado das mudanças paradigmáticas que investigamos antes, ocorridas em
decorrência da secularização da visão do mundo, a partir do século XVI, a
ênfase da Educação recaiu sobre os elementos intelectuais, com um evidente e
crescente menosprezo pela educação moral.
Já em 1580, Michel de Montaigne criticava
que “Indagamos sempre se o indivíduo sabe grego e latim, se escreve em verso ou
prosa, mas perguntar se se tornou melhor e se seu espírito se desenvolveu – o
que de fato importa – não nos passa pela mente. Cumpre, entretanto, indagar
quem sabe melhor e não quem sabe mais. Só nos esforçamos por guarnecer a
memória, deixando de lado, e vazios, juízo e consciência”.[78] E ironizava a
falta da educação moral: “Centenas de estudantes contraem doenças venéreas
antes de chegarem a aprender o que Aristóteles diz da temperança”.[79]
Reconhecer que a educação do caráter
e da moral possui uma dimensão, propósitos, métodos e instrumentos específicos
parece ser uma das grandes necessidades contemporâneas para a formação, mais do
que de indivíduos éticos, de uma sociedade ética. Precisamos nos deter com
tanto empenho em formar pessoas boas como nos temos dedicado a formá-las
inteligentes. Precisamos também estudar e disseminar mais tudo o que se precisa
conhecer a respeito da educação moral.
Os estudos contemporâneos
desenvolvidos na área da educação em geral, e da educação moral, em particular,
especialmente por Piaget e Kohlberg, mas também por Habermas, Shweder e
Mahapatra, Turiel, Khulman, Weinreich-Haste e Oser, entre outros, confirmam
esta tese da necessidade da educação moral, embora enfatizando os estágios
universais da psicogênese da eticidade.
Piaget e Kohlberg, corroborados por
incontáveis pesquisas posteriores, demonstraram que o desenvolvimento moral se
dá conforme uma seqüência de estágios morais invariantes, da mesma forma como
existe uma seqüência para o pensamento lógico-matemático. Isso significa que a
estruturação da consciência moral ocorre em patamares cada vez mais elevados e
mais equilibrados, conforme evolui a pessoa e sua interação com o meio
sociocultural. Neste desenvolvimento, Freitag salienta, “Os estágios da
moralidade ordenam-se de forma hierárquica: o estágio imediatamente subseqüente
a um estágio anterior apresenta maior complexidade, permitindo resolver dilemas
ou conflitos morais com maior desenvoltura e competência”.[80]
Piaget descreve as etapas de
desenvolvimento moral em quatro estágios: pré-moralidade (de 0 a 5 anos de
idade, aproximadamente), heteronomia moral (5 a 8 anos), semi-autonomia moral
(8 a 13) e autonomia moral (depois dos 13 anos). Kohlberg, baseando-se em
Piaget, mas ampliando as observações e os postulados, observa que essa evolução
não se encerra necessariamente por volta dos 13 anos de idade, podendo ir além.
(É claro que o indivíduo pode ficar estagnado em estágios inferiores de
moralidade, se não dispuser dos instrumentos que promovam sua evolução.) Além
disso, ele vê a necessidade de redefinir os quatro estágios de Piaget para
melhor descrever o processo de desenvolvimento moral. Kohlberg propõe, então,
três grandes níveis de moralidade (pré-convencional, convencional e
pós-convencional), cada um composto por dois níveis diferenciados, o que
resulta em seis níveis de desenvolvimento moral.
O nível pré-convencional é composto
pelos estágios 1 (moralidade heterônoma) e 2 (individualismo, intenção
instrumental). Aqui a criança é sensível às regras sociais e distingue o bem do
mal, o certo do errado, mas interpreta essas categorias em função ou das
conseqüências físicas ou hedonísticas (recompensa e punição, troca de favores),
ou do poder físico dos que formulam as categorias (o certo é o que o mais forte
define).
O nível convencional constitui-se dos
estágios 3 (expectativas interpessoais, relações e conformidade interpessoal) e
4 (sistema social e consciência). Neste nível desenvolve-se a noção da lealdade
ao grupo (família, sociedade, nação, religião) a que pertence a criança.
O nível pós-convencional, ou nível
regulado por princípios, possui os estágios 5 (contrato social ou utilidade e direitos
individuais) e 6 (princípios éticos universais). Neste nível a pessoa se
esforça por definir valores e princípios morais que tenham validade universal,
independentemente de quem os defenda ou da relação da pessoa com as fontes de
tais valores.
Pesquisas mais recentes demonstraram,
além disso, que “pode haver códigos
morais de embasamento racional alternativos, os quais não são contemplados pelo
esquema de Kohlberg, fundado que é no individualismo abstrato, no voluntarismo
e secularismo”[81].
De qualquer forma, o que tudo isso
indica é que a discussão da educação em nosso país, de maneira geral, precisa
ser transferida dos domínios puramente cognitivos e intelectuais para dimensões
mais amplas, “envolvendo motivação, emoções, práticas e valores sociais e
morais”[82], como postula Gardner. Ou seja, uma educação que vise a formação do
indivíduo ético, ou melhor, do indivíduo pleno, “necessita explorar com alguma
profundidade um conjunto de realizações humanas capitais, condensadas na
venerável frase o verdadeiro, o belo e o
bom”.[83]
Sem
o domínio moral da educação, as demais capacidades e talentos humanos ficam à
mercê de forças instintuais e sociais poderosas, que podem facilmente conduzir
o ser humano a formas de comportamento tremendamente danosas. Quando o caráter
não é cultivado, quando as noções de verdadeiro,
belo e bom não são desenvolvidas, ou o são de forma patológica, então todo
o conhecimento intelectual e todas as capacidades adquiridas são naturalmente
empregados para fins egoístas e potencialmente malévolos.
Os
maiores sofrimentos e catástrofes experimentados pela humanidade não foram obra
de pessoas ignorantes ou incapazes, mas de indivíduos extremamente refinados no
intelecto e nas capacidades sociais, mas sem nenhum parâmetro espiritual,
universal e perene de virtude ou de humanidade, como Hitler, Stalin, Jim Jones,
o “Unabomber” e outros do mesmo calibre. Melhor seria que tais indivíduos
tivessem permanecido ignorantes, incapazes de promover o dano que causaram.
Isso
nos faz concordar com Montaigne quando diz que “todo conhecimento é danoso para
aquele não possui a ciência da bondade”.[84]
3.2. A Natureza Humana, as Inteligências Múltiplas e a Moral
É claro que
o ideal da Educação é a formação do homem pleno. Para que isso possa ser
alcançado, é fundamental entender qual é, afinal, a plenitude do homem. Visões
parciais e incompletas do homem geram sistemas e esforços educacionais
necessariamente incompletos também.
Se concebermos o ser humano num nível físico e intelectual,
poderemos dar muita ênfase e conseguir, presumida uma educação excelente,
grandes resultados em seu aprimoramento do corpo e do raciocínio. Provavelmente
tais esforços educacionais conseguirão, no nível do corpo, o máximo possível em
termos de coordenação motora, de adequada psicomotricidade, força,
flexibilidade, resistência, graça e beleza. Da mesma forma, no nível
intelectual, o máximo será alcançado em termos de capacidade de raciocínio,
imaginação, compreensão e memorização.
Porém, tal educação, excelente nestes dois campos, poderia
ser totalmente falha no que diz respeito ao desenvolvimento de capacidades de
socialização, de auto-estima, de responsabilidade moral, de apreciação da
beleza e da arte. Isso porque tais dimensões não estão automaticamente incluídas
nas dimensões “corpo” e “intelecto”.
Assim, uma concepção integral do ser humano, o mais integral
possível, faz-se necessária para uma educação integral.
Um fundamento importante para isso são as descobertas da
Psicologia Transpessoal, como em Victor Frankl e Abraham Maslow, e da
Psicologia Cognitiva, como em Howard Gardner.
Até Freud, o ser humano era entendido como tendo um corpo e uma alma. A partir dele, passou a ter um corpo e uma psique. Ambas
as visões, porém, são apenas bidimensionais. Frankl, como já vimos, salienta o
fato de o ser humano ser constituído de três elementos fundamentais, e não
apenas de dois.
“De forma alguma podemos falar do homem [apenas] em termos de
uma unidade psicossomática. O corpo e
a psique podem formar uma unidade – uma unidade psicofísica – mas esta unidade
ainda não representa o todo do homem. Sem o espiritual como base essencial,
esta unidade não pode existir. Enquanto falarmos apenas do corpo e psique, a
integridade ainda não está dada”.[85]
Este
reconhecimento de uma dimensão espiritual ou transcendente no ser humano, de
natureza moral, clama por uma educação que atenda às demandas de tal realidade,
satisfazendo e encorajando o potencial ético-moral do indivíduo.
É
por reconhecer também esta dimensão espiritual que Abraham Maslow ressalta:
“Sem
o transcendente e o transpessoal, ficamos doentes, violentos e niilistas, ou
então vazios de esperança e apáticos. Necessitamos de algo maior do que somos, que seja respeitado por nós próprios e a que
nos entreguemos...”[86]
Gardner,
por sua vez, demonstrou em suas pesquisas que todos os seres humanos possuem
nove formas nitidamente separadas de inteligência: 1) inteligência lingüística,
2) inteligência lógico-matemática, 3) inteligência espacial, 4) inteligência
musical, 5) inteligência corporal-cinestésica, 6) inteligência naturista, 7)
inteligência intrapessoal (sobre si mesmo), 8) inteligência interpessoal (sobre
os outros), 9) inteligência existencial (sobre coisas espirituais e
existenciais, como a vida, a morte e as realidades supremas).
Tais
evidências apontam para a necessidade de uma gama ampla de enfoques
educacionais para que todas estas dimensões do ser humano possam ser
adequadamente desenvolvidas. Entretanto, a sociedade ocidental contemporânea e
suas escolas tendem a privilegiar apenas as duas primeiras categorizações de
Gardner – as inteligências lingüística e lógico-matemática –, deixando para
segundo ou terceiro plano as demais. Isso para não falar do descaso para com a
educação moral, do que já tratamos.
É
claro que tal enfoque reducionista não tem possibilidades de contribuir com a
formação de um indivíduo ético ou uma sociedade ética, pois esta formação
precisa passar, necessariamente, pela estimulação e amadurecimento de todas as capacidades e potenciais humanos.
Como Montaigne afirmou há quatro séculos, “pois não é uma alma somente que se
educa, nem um corpo, é um homem”.[87]
3.3. Universais Morais e Janelas de Oportunidade para a Formação Ética
As
investigações sobre a natureza humana promovidas pelas ciências modernas (como
a Biologia, a Psicologia e a Antropologia) e contemporâneas (como a Psicologia
Transpessoal e a Genética do Comportamento), apresentam um retrato complexo do
ser humano, mas perfeitamente compreensível e coerente, inclusive no que diz respeito
ao comportamento ético e moral, sobre o qual nos debruçaremos.
Uma
das percepções mais importantes, neste sentido, é a constatação de que os seres
humanos não vêm ao mundo como tabulas
rasas, como seres informes que serão posteriormente construídos através dos
cuidados e do cultivo do corpo, da mente e da alma. A Ciência já deixou
plenamente claro que cada um de nós nasce já dotado de características muito
bem definidas, particulares, distintamente pessoais, bem como de outras tantas
que compartilhamos com a espécie em geral. Como aponta Barbara Freitag:
“[...] a
perspectiva psicológica da questão [da moralidade] chamou atenção para os
processos de formação da consciência moral. Esta não é uma qualidade inata,
como a cor dos olhos, mas é resultado de uma construção, para a qual contribuem
fatores biológicos (hereditariedade e maturação) , de auto-regulação e
equilibração interna, bem como fatores socioculturais (de socialização e
educação escolar).”[88]
Esta natureza
humana, tanto em seus aspectos individuais quanto coletivos, é fruto de milhões
de anos de evolução, e está definida de forma a atuar de maneira muito
característica e, em certo sentido, programada. Tanto como indivíduos quanto
como espécie, temos parâmetros definidos dentro dos quais podemos ser livres,
mas a liberdade absoluta de se
construir como indivíduo ou sociedade não faz parte das regras da Evolução.
Isso pode soar desagradável ou injusto para alguns de nós, mas, na realidade,
trata-se de uma grande proteção para a sobrevivência da espécie e, num nível
mais individual, de uma grande contribuição da Natureza para nossa felicidade
pessoal.
Hoje é evidente que os seres humanos
possuem capacidades inatas, para a linguagem, para o raciocínio, para as
emoções e, não deveria ser surpreendente, para a compreensão espiritual e as
decisões morais. Tais capacidades existem na forma de potenciais, que, se não
forem aproveitados adequadamente e exercitados no momento certo e da maneira
correta, podem deixar de se expressar, vindo a ficar frágeis ou até
completamente atrofiados.
As obras de Jean Piaget, no campo da
aprendizagem, e de Noam Chomsky, no da linguagem, foram fundamentais para
demonstrar que os seres humanos já nascem com, ou desenvolvem a partir do
nascimento, uma série de representações e estruturas mentais muito específicas,
inclusive com correspondentes estruturas mentais e neurológicas. Há estruturas
mentais dedicadas à linguagem, ao reconhecimento dos números, às relações
espaciais, ao entendimento de outras pessoas, ao comportamento moral, etc. O
campo de investigação é novo, mas as conclusões já são significativas.
A principal implicação de tais
constatações é que, se tais estruturas mentais não forem reconhecidas e
aproveitadas corretamente, o aprendizado que resultaria de sua utilização se
torna difícil, ou mesmo impossível. Tomemos a linguagem como exemplo. As
representações mentais universais de todos os seres humanos no tocante à
linguagem permitem-nos reconhecer todos os fonemas das mais de 6000 línguas e
dialetos falados no mundo. Porém, essa capacidade tem uma “janela de
oportunidade” para ser desenvolvida, aproximadamente até os seis meses de
idade. Neste período, a criança desenvolverá a capacidade de escutar e falar
todos os fonemas com que entra em contato. Depois disso, as estruturas mentais
se cristalizam, por assim dizer, permanecendo apenas ativas, ou disponíveis,
aquelas que foram exercitadas.
É por isso que não conseguimos falar
sem sotaque as línguas que não nos foram ensinadas desde a infância.
Simplesmente aqueles sons estrangeiros não existem mais dentro do nosso
repertório de possibilidades de fala. Então buscamos sons parecido, mas nunca
idênticos aos originais. Fechada a “janela de oportunidade” para o aprendizado
dos elementos fundamentais das línguas, as estruturas mentais como que perdem
sua plasticidade e não mais podem ser modeladas, ou não o podem de maneira
categórica.
As conseqüências disso para a
educação moral são enormes, tanto no que diz respeito ao tempo em que ela deve
ocorrer como no tocante à maneira como as lições deveriam ser transmitidas.
Lyall Watson, em seus brilhantes
estudos sobre a antropologia do mal, diz que “a janela para aprender os hábitos
característicos que nos fazem seres morais pode ser igualmente estreita e
igualmente crítica”.[89]
Howard Gardner observa sobre este
fenômeno:
“Assim como as capacidades
lingüísticas (e numéricas e espaciais) evoluíram a fim de permitir a adaptação
ótima ao meio ambiente, outras capacidades humanas podem igualmente ter
propriedades universais, sendo também a conseqüência adaptativa de milênios de
evolução. Especificamente, pode haver universais no domínio moral (por exemplo,
a inclinação para procurar eqüidade numa transação) e no domínio estético (por
exemplo, a atração para padrões visuais ou auditivos que sejam moderadamente
discrepantes daqueles que são tipicamente encontrados no meio em que se vive).
Os educadores tomem nota: pode ser que as lições precisem ser elaboradas à luz
dessas representações mentais universais de beleza e moralidade”.[90]
As evidências clínicas no estudo de
psicopatas ou sociopatas, sejam eles delinqüentes violentos, assassinos seriais
ou simplesmente “crianças difíceis”, indica que, ao contrário do normal das
pessoas, eles não dispõem (em diferentes graus) de um repertório de noções
morais introjetadas que sirvam como instrumento de medida do que é certo ou
errado. Em casos extremos, essa dissociação chega a representar uma absoluta
falta de empatia: o agressor simplesmente “não entende” a dor que está
provocando na vítima. Ele tortura, por assim dizer, “por curiosidade”.
Lyall Watson comenta que tais
assassinos frios e indiferentes “não possuem [internamente] nada através do
qual medir seu comportamento”. [91] “O maltrato de animais ou bebês” – ele
acrescenta – “é parte bem comum do perfil ou do histórico daquelas pessoas que
acabam matando [como psicopatas]. Trata-se de um aviso de que algo impediu o
desenvolvimento normal do sentido moral, da habilidade para distinguir o certo
do errado. O que falta, em poucas palavras, é o conhecimento do bem e do mal.” [92]
Descrevendo como se forma, na
primeira infância, esta “régua moral” que permite a avaliação subjetiva do
certo e do errado, ele diz:
“Quando nos tornamos programados com
a informação que necessitaremos para fazer julgamentos morais mais tarde na
vida, seguimos apenas uma regra: Acredite
no que lhe é dito. Não há tempo para mais nada naqueles dias em que a
janela [de oportunidade para a construção dos valores morais] está aberta de
par em par. Você recolhe o que pode e seleciona depois, desprezando o que não
faz sentido e incorporando os pedaços que parecem ajudar a fazer planos que
funcionam, estratégias que o conduzem aonde você deseja. Podemos fazer estes
julgamentos de valor porque temos uma régua moral, algo com o que medir, mesmo
que seja apenas um simples exemplo negativo retirado do Antigo Testamento ou um
tio caprichoso e difícil”.[93]
Isso significa que, depois de fechada
a janela de oportunidade para o aprendizado moral, e tudo indica que isso
ocorra ao redor da puberdade, é extremamente difícil corrigir o caráter de um
ser humano. Na verdade, há indícios de que ao redor dos cinco ou seis anos de
idade as estruturas morais fundamentais já estarão ou não construídas. Barbara
Freitag, em sua abrangente visão multidisciplinar (Filosofia, Psicologia e
Sociologia) comenta:
“A psicologia da moralidade ainda
chama a atenção para o fato de que existem no desenvolvimento da criança para o
adulto fases em que a criança está mais aberta do que em outras para certos
aprendizados. A educação moral pode, em rigor, ser mobilizada sempre, mas os
efeitos produzidos depois de concluída a psicogênese serão menores do que os
efeitos potencialmente alcaçáveis em períodos de maior flexibilidade e abertura
para o aprendizado.”[94]
“Assim como há um limite biológico
para o crescimento e a maturação, há [...] um limite (possivelmente flexível)
para a formação das estruturas cognitivas e morais por parte do sujeito. Os
estudos realizados com adolescentes em favelas [...] e a experiência com
analfabetos adultos [...] no Brasil confirmam inteiramente essa visão”.[95]
Tudo indica, portanto, que este
“analfabetismo moral” seja semelhante ao analfabetismo das letras. Existe a
capacidade para a alfabetização, mas ela não ocorre espontaneamente. As
estruturas mentais correspondentes precisam ser educadas no período adequado e
da maneira adequada, senão a oportunidade de aprender a ler e escrever pode ser
perdida. Claro que é possível a alfabetização de adultos, mas os métodos são
outros e o processo é bem mais difícil. Nada indica, entretanto, que tal
aprendizado moral possa ser conseguido mais tarde na vida. Pelo menos, na
sociedade contemporânea, ainda não descobrimos se é possível e como.
3.4. A Educação da Vontade e a Sociedade Ética
Os estudos na área da genética do
comportamento indicam claramente que o aprendizado moral tem imensa relevância
sobre o comportamento, a ponto de poder alterar profundamente as tendências
inatas de qualquer pessoa. Como vimos acima, porém, esta intervenção precisa
ser sábia e oportuna. Assim, embora não se possa negar os limites impostos ao
desenvolvimento moral pelo caráter congênito[96] (ou temperamento, ou
personalidade) de cada pessoa, o fato é que, como coloca Freitag, “as
competências morais [...] podem ser melhoradas com certos programas de educação
moral”[97]
Dean Hamer, do Instituto Nacional do
Câncer, nos EUA, um dos mais renomados geneticistas do comportamento em todo o
mundo, comenta:
“As últimas pesquisas em genética,
biologia molecular e ciência neural demonstra que muitos traços fundamentais da
personalidade são herdados ao nascimento, e que muitas das diferenças entre os
estilos de personalidade resultam de diferenças genéticas.... Os psicólogos
chamam esta dimensão biológica e inata da personalidade de temperamento.
“Só porque uma pessoa nasce com um
determinado temperamento, porém, não significa que tenha de seguir uma
determinada programação ou um conjunto simples de instruções.... As pessoas têm
a opção de se deixar levar por fraquezas do temperamento, ou de vencê-las. Elas
podem tirar vantagem de dons do temperamento, ou ocultá-los. ... A mesma coisa
vale para todos: há traços que você pode mudar e outros que pode apenas tentar
controlar ou modificar.”[98]
O temperamento, apesar de ser em
grande parte inato, não está ainda totalmente formado num recém-nascido. Na
verdade, o que ocorre é que o bebê nasce com o potencial de desenvolver um
determinado temperamento em resposta ao ambiente que o cerca. Portanto, o temperamento
também é aprendido, só que este aprendizado não se dá como aprendemos a
memorizar um número de telefone. Como diz Hamer, “as pessoas aprendem seu
temperamento através da memória emocional,
que a maioria das pessoas conhece pelo nome de hábito”.[99]
Justamente devido a este fato é que
as primeiras experiências do bebê, de amor e aconchego, de proteção e carinho,
de cuidado, tranqüilidade e calma, ou seus opostos, têm tanta influência sobre
seu desenvolvimento posterior. Neste período tão primitivo de seu
amadurecimento, as influências do ambiente sobre ele já atuam sobre suas
estruturas mentais, conformando-as ou deformando-as. Entre elas, as estruturas
de dimensão moral.
Apesar dos relevantes fatos e dados relativos
à influência da hereditariedade no comportamento humano, a realidade é que o
caráter, aquela parte de nossa personalidade que é aprendida através das
experiências de natureza social e moral, tem um fator preponderante em como nos
comportamos. Como exclama Dean Hamer, “A coisa maravilhosa a respeito do
caráter é sua habilidade para modificar o temperamento, para capacitar as
pessoas a tirarem vantagem das partes úteis de seus temperamentos e a
diminuírem a influência das tendências biológicas ou instintos menos
desejáveis”.[100]
Abraham Maslow, ao abordar a questão
da natureza humana em relação ao bem e o mal, descreve assim o fenômeno:
“Essa natureza interna, até onde nos
é dado saber hoje, parece não ser intrinsecamente, ou primordialmente, ou necessariamente,
má. As necessidade básicas ... , as emoções humanas básicas e as capacidades
humanas básicas são, ao que parece, neutras, pré-morais ou positivamente boas. A destrutividade, o sadismo, a
crueldade, a premeditação malévola, etc. parecem não ser intrínsecos, mas,
antes, constituiriam reações violentas contra a frustração das nossas
necessidades, emoções e capacidades intrínsecas. A cólera, em si mesma, não é
má, nem o medo, a indolência ou até a ignorância. É claro, podem levar (e
levam) a um comportamento maligno, mas não forçosamente. Esse resultado não é
intrinsecamente necessário. A natureza humana está muito longe de ser tão má
quanto se pensava. De fato, pode-se dizer que as possibilidades da natureza
humana têm sido, habitualmente, depreciadas.”[101]
Victor Frankl identifica no ser
humano, uma “pré-consciência moral” e mesmo um “instinto ético”, que
corresponde àqueles universais morais dos quais tratamos acima. Tais estruturas
interiores, como já vimos, somente se tornam ativadas se forem estimuladas
através de experiências de natureza moral e espiritual logo na primeira infância e até a puberdade. Tudo vale: fábulas na
hora de dormir, cantigas de roda, castigos e recompensas, abraços, beijos,
carinho, ou a falta deles... Tais experiências modelam aquilo que poderíamos
chamar de temperamento moral,
modelado através de lições emocionais, e que é anterior ao caráter propriamente
dito, cuja formação já está mais vinculada aos aspectos intelectuais do
desenvolvimento.
Montaigne observou, neste sentido de
uma educação moral temporã: “parece que os primeiros raciocínios de que lhe [à
criança] devem embeber o espírito são os que deverão regular-nos os costumes e
os juízos, os que lhe ensinarão a conhecer-se, a saber viver e morrer
bem”[102]. São diretrizes tão válidas no século XVI quanto no XX.
Assim, compreendemos que as
estruturas morais universais parecem ser tocadas através de inúmeros
instrumentos, primariamente de natureza emocional e, depois, de natureza
intelectual. Dois elementos, porém, parecem, em conjunto, servir de eixo
condutor das experiências, quer emocionais, quer intelectuais, associadas ao
aprendizado moral: recompensa e punição.
Sob a influência destas duas forças, em todas as suas formas de expressão, é
que se modela o temperamento moral e o caráter do ser humano. Isso não é
estranho, na medida em que prazer e sofrimento são, de um modo geral, os dois
grandes mestres da própria evolução das espécies.
Como já vimos antes, Platão chamava
de educação o treinamento dado “aos
primeiros instintos de virtude existentes nas crianças”, através de “hábitos adequados”. A genética do
comportamento chama tais hábitos, contemporaneamente, de memória emocional. Platão também enfatizava, como instrumento da
educação, “a disciplina correta de prazer e sofrimento”, instilada desde a mais
tenra idade, disciplina esta que garantia que cada homem “desde o início até o
fim de sua vida, abominará o que deve ser abominado e terá amor pelo que se
deve amar”.[103] Todos os indícios da ciência contemporânea é de que Platão
estava certo.
Montaigne, exaltando as virtudes
educacionais dos impérios do passado, comenta que os persas “ensinavam a
virtude aos filhos como nos outros países se ensinavam as letras”, e que o
filho do rei era ensinado por quatro tutores, respectivamente “o mais avisado,
o mais justo, o mais virtuoso e o mais valente da nação”. Estes atuavam como
mestres especializados, ensinando “o primeiro, a religião; o segundo, a ser
sincero; o terceiro, a dominar as paixões; o quarto, a nada recear”.Ainda mais,
Montaigne faz notar que a perfeição da juventude sob a legislação de Licurgo
deveu-se ao fato de que “Sua educação consistia, como entre os persas, em pedir
às crianças julgamentos sobre os homens e suas ações. E cumpria-lhes justificar
sua maneira de ver, de modo que a um tempo exerciam a inteligência e aprendiam
Direito”.[104]
Alguns
poderiam apressar-se em pensar que tais exemplos não nos servem, já que se
referem a outros povos e outros tempos. Isso seria um sério engano. Os seres
humanos têm sido os mesmo há pelo menos 100.000 anos, e as experiências
culturais de qualquer povo têm valor universal pelo que nos dizem sobre a
natureza humana. Howard Gardner alerta que:
“O
que aprendemos sobre seres humanos a partir de estudos culturais é, pelo menos,
tão importante quanto o que aprendemos através da Psicologia e Biologia; com
efeito, as decisões educacionais não deveriam ser tomadas sem um apoio
igualmente sólido em ambos os campos”.[105]
Essas observações de Montaigne
apontam, além disso, para elementos que a ciência atual (como em Piaget e
Kohlberg) identifica como essenciais para a geração de padrões elevados de
comportamento: a edificação das noções morais através do contato direto com os
conceitos morais e por meio da reflexão sobre as conseqüências dos atos; o
contato com figuras-modelo que sirvam como exemplos existenciais das lições de
moral; a força arquetípica da fundamentação religiosa e sagrada do bom caráter
e da virtude, a força dos princípios universais morais, a centralidade da Justiça
no desenvolvimento moral, etc. São todos elementos que faríamos bem em resgatar
nos nossos dias.
Todas estas considerações nos servem
de guia para a formação de pessoas dotadas de valor e comportamento ético e
moral, especialmente no que diz respeito à exigência de experiências iniciais,
na mais tenra idade, de amor e carinho, de certo e errado, de recompensa e
punição.
Porém, ainda se apresenta um grande
problema. Tudo o que sabemos hoje sobre este campo aponta para uma direção
fundamental: se as normas culturais, os valores sociais, a jurisprudência e os
costumes de uma sociedade não forem imbuídos de tais valores espirituais em
suas mais diversas formas de manifestação, a possibilidade de se educar o
caráter dos indivíduos torna-se extremamente remota. Quanto mais frágil o
caráter geral da sociedade, mais frágil será o caráter de cada um de seus
membros, num círculo vicioso difícil de interromper.
Assim, se o efeito da educação dos
persas ou de Licurgo, como descritas por Montaigne, era tão extraordinário,
isso não era devido ao método simplesmente, embora ele também seja importante.
A principal razão desse efeito, porém, é que a cultura na qual estavam
inseridos estes métodos, estes alunos e estes professores, ela toda, guiava-se
por tais valores. Eles permeavam a cultura, e a educação das crianças segundo
estes padrões era apenas a institucionalização das aspirações gerais de todos
com relação a um ser humano ideal. Eram os paradigmas culturais, a visão do
homem ideal e da vida ideal quem, na verdade, educavam, criando tanto as
estruturas como o ambiente para esta educação.
Isso nos coloca um desafio adicional:
é claro que se faz necessário atuar sobre a educação do indivíduo, mas o mais
importante é enfrentar-se a questão da formação de uma sociedade que paute seu comportamento pelos grandes princípios
espirituais, os valores humanos eternos, as virtudes universais e os ideais
nobres e imorredouros.
Essa necessidade se dá por uma razão,
acima de tudo: como espécie, nossos piores e mais terríveis comportamentos não
se dão como ações individuais, mas coletivas. Atos de selvageria, ódio,
violência extrema, sadismo e bestialidade foram cometidos por milhares de
indivíduos que jamais se consideraria, nem foram considerados, como psicopatas
assassinos. Isto porque suas ações foram realizadas dentro do contexto e da
anuência das diversas culturas, instituições e determinações ideológicas onde
viviam. E foram cometidas contra os que “mereciam” tal tratamento. Assim foram
mortos vinte milhões de camponeses sob Stalin; seis milhões de judeus, ciganos
e deficientes sob Hitler; 150.000 pessoas, em segundos, sob as bombas
americanas em Hiroxima e Nagazaki...
Lyall Watson nos faz observar:
“Se existe algo que os atos malignos
nos deveriam ter ensinado é que eles não tendem a ser cometidos por vilões
extraordinários, ou por demônios ou estranhos, mas por gente perfeitamente
comum”.[106]
Em 1960, o nazista Adolf Eichmann foi
julgado em Jerusalém, pelos crimes de genocídio levados a cabo de maneira tão
burocrática durante o Terceiro Reich. Ao contrário do que se esperava, Eichmann
se mostrou uma pessoa desapontadoramente normal. Nenhum sinal maligno, nenhum
ódio perturbador, nenhum olhar diabólico.
A filósofa Hannah Arendt, comentando
sobre o julgamento, escreveu:
“O difícil em relação a Eichmann é
justamente que tantos eram exatamente como ele, e que estes tantos não eram nem
pervertidos nem sádico, mas eram todos, e ainda são, terrível e pavorosamente
normais”.[107]
Assim, o grande desafio contemporâneo
é, na verdade, não apenas individual, mas coletivo. É necessário moralizar
nossa vida e nossas instituições novamente; voltar a sentir respeito sagrado
pela vida humana e pela natureza; abdicar de prazeres fugazes em prol de
virtudes eternas; abandonar a futilidade e regozijar-nos na nobreza; desistir
do materialismo e atentar para os fundamentos espirituais da existência...
Metas difíceis, mas essenciais. Mudanças complexas, mas já conseguidas no
passado. O cenário está montado para que cada um e todos possam atuar nesse sentido.
3.5. Os Princípios Espirituais Universais
Como vimos nas tantas análises
anteriores, tanto as tradições espirituais e sapienciais quanto a investigação
científica contemporânea apontam numa mesma direção: a necessidade da educação
para a formação da eticidade na pessoa humana. Além disso, para ser eficaz,
essa educação precisa ter conteúdo e relevância racional, emocional, cultural e
espiritual. Como aponta Barbara Freitag, “Os conceitos morais não podem ser
tratados de forma impessoal e neutra, devendo ser tratados como normativos,
positivos ou relevantes em relação a outros valores”.[108]
Isso significa que, nos seres
humanos, os julgamentos morais sempre se apóiam em algum critério, princípio ou
lei geral, não se tratando de simples avaliações de circunstâncias ou ações
particulares. É por isso que os estágios mais elevados de desenvolvimento moral
se baseiam em princípios e normas universais, que transcendem o grupo, a
cultura ou as circunstâncias peculiares ao indivíduo.
Porém, para que tal desenvolvimento
moral possa realizar-se, é fundamental o contato da pessoa com tais normas
universais, necessariamente através da pluralidade de fontes de autoridade
moral, sem o que o desenvolvimento da eticidade tende a se sedimentar nos
estágios inferiores do nível convencional da moralidade, no qual as
idiossincrasias culturais, nacionais e religiosas são colocadas acima dos
universais.
Tal educação moral que não enxerga
além de seu próprio entorno imediato, é perigosa, uma vez que encerra em si a
semente da intolerância e do ódio. As virtudes não se tornam abrangentes, mas
restritas. Não alcançam os “diferentes”, mas apenas os “iguais”. Nesse
contexto, o amor (à família, à pátria, à raça, à religião) pode se tornar
instrumento de ódio (a outras famílias, outras nações, outras raças, outras
religiões). É por isso que a educação moral, ou é baseada em universais, ou não
é educação moral que se preze.
Vimos o quanto a ressacralização do
mundo, não em bases fundamentalistas e proselitistas, mas universais, é
fundamental para a saída da unidimensionalidade materialista na qual a
sociedade contemporânea se viu afundar. Vimos, também, que a religião é central
para toda a questão da moralidade, ou eticidade. Evidentemente, ao longo de
toda a História humana, nenhuma outra força social conseguiu educar as massas
na moralidade como a religião. Os imperativos
categóricos e outras formulações da filosofia, apesar de sua nobreza e
elevação, de sua utilidade epistemológica e cognitiva, não conseguem mobilizar
o imaginário e a vontade das massas. O comportamento moral coletivo dos homens
exige dimensões ideológicas, representacionais, arquetípicas, metafóricas,
simbólicas, racionais e emocionais que somente as religiões conseguem oferecer.
Porém, é fundamental que tal resgate
das grandes verdades religiosas se dê em novas bases, sem o que estaríamos
simplesmente pregando um retorno à Idade Média. O resgate do espiritual e do
religioso no mundo contemporâneo precisa passar pela ciência, pela razão, pela
pluralidade e pelo universal, sem o que tal projeto estaria fadado ao fracasso.
No Brasil, temos uma circunstância
toda especial, estabelecida por Lei, que pode servir de grande instrumento para
a promoção de uma educação moral eficaz. A Lei 9.475, de 22 de julho de 1997,
que altera o artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394, de
20 de dezembro de 1996), instituiu nas escolas brasileiras a obrigatoriedade do
ensino religioso, de matrícula facultativa, como “parte integrante da formação
básica do cidadão”. A Lei salienta que deve ser “assegurado o respeito à
diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de
proselitismo”.
Ainda se está longe de resolver a
forma pela qual se irá garantir esse respeito à diversidade cultural e esta
ausência de proselitismo. Sem dúvida alguma, como a própria Lei estabelece,
isso terá de passar, necessariamente, pelo diálogo amplo entre os vários
setores e segmentos da sociedade. Se as análises e evidências apresentadas nos
capítulos anteriores forem acolhidas, para que o ensino religioso possa servir
no contexto de uma educação moral apropriada, ela dever-se-ia basear em dois
princípios: universalidade e pluralidade.
Ou seja, o ensino religioso-moral,
mais do que somente oferecer informações de religião comparada (que em geral
baseiam-se simplesmente na transmissão de dados históricos e na análise das
diferenças entre os diversos sistemas de fé) deveria focalizar a experiência
ética e eticizante dos grandes princípios morais comuns a todas as religiões.
Tal experiência abordaria os necessários universais morais de uma forma
pluralista, envolvendo várias tradições espirituais, o que permitiria o
desenvolvimento, ao mesmo tempo, da moralidade e da fraternidade. Uma vez que
não se ama o que não se conhece, o contato com os grande princípios morais em
suas várias formulações ao longo do tempo e do espaço (como expostas nas várias
religiões mundiais) permitiria a construção do amor e da justiça, como
dimensões morais básicas, sem o amargor do etnocentrismo e da xenofobia que
podem facilmente emergir do ensino moral e religioso restrito a uma única
denominação ou “verdade”.
Todas as grandes tradições
espirituais possuem uma Lei moral central, também conhecida como a “Regra Áurea”,
que nos pode servir de exemplo a esta exploração do universal plural. Esta
regra suprema, que é a versão religiosa do imperativo categórico kantiano, tem
sido considerada, em todos os tempos, a lei máxima das religiões, e serve de
substrato para qualquer consideração de natureza verdadeiramente moral. Ela
simplesmente nos ordena tratar os demais
como gostaríamos de ser tratados. Algumas de suas variadas formulações são
as seguintes (entre parênteses estão informações quanto ao nome do fundador, a
época de surgimento e a região do mundo de origem):
Hinduísmo
(Krishna. Há 5.000, Índia)
“Não faças aos demais aquilo que não
queres que seja feito a ti; e deseja também para o próximo aquilo que desejas e
aspiras para ti mesmo. Essa é toda a Lei[109], atenta bem para isso.”[110]
Judaísmo
(Moisés. Há 3.400 anos, Egito-Palestina)
“Não faças a outrem o que abominas
que se faça a ti. Eis toda a Lei[111]. O resto é comentário”.[112]
“Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.[113]
Zoroastrismo (Zoroastro.
Há 3.000 anos, Pérsia).
“Aquilo que é bom para qualquer um e
para todos, para quem quer que seja - isso é bom para mim... O que julgo
bom para mim mesmo, deverei desejar para todos. Só a Lei Universal é verdadeira
Lei”.[114]
Budismo (Buda.
Há 2.500 anos, Nepal-Índia)
"Todos temem o sofrimento, e
todos amam a vida. Recorda que tu também és igual a todos; faze de ti próprio a
medida dos demais e, assim, abstém-te de causar-lhes dor”.[115]
Cristianismo
(Jesus Cristo, há 2.000 anos, Palestina)
“Tudo aquilo, portanto, que quereis
que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, porque isto é a Lei e os
Profetas”.[116]
Islamismo (Maomé.
Há 1.400 anos, Arábia)
“Nenhum de vós é um verdadeiro crente
a menos que deseje para seu irmão aquilo que deseja para si mesmo”.[117]
Fé Bahá’í (Bahá’u’lláh.
Há 150 anos, Pérsia-Palestina)
“Ó filho do homem! ... se teus olhos
estiverem volvidos para a justiça, escolhe tu para teu próximo o que para ti próprio
escolhes. Bem-aventurado quem prefere seu irmão a si próprio... tal homem
figura entre o povo de Bahá.[118]
“Não ponhais sobre nenhuma alma uma
carga da qual vós não desejaríeis ser incumbidos, nem desejeis para pessoa
alguma as coisas que não desejaríeis para vós mesmos. É este Meu melhor
conselho a vós, fôsseis apenas observá-lo”.[119]
É evidente, por si só, quão eficazes
tais máximas universais, pluralizadas, podem ser no estabelecimento de normas
morais de conduta. Tais máximas, que certamente podem ser encontradas em
relação a todos os grandes valores, como justiça, amor, perdão, fraternidade,
perseverança, trabalho, paciência, temperança, etc, quando unidas aos seus
elementos metafóricos e simbólicos, expressos em parábolas e relatos sagrados, mostraram-se,
ao longo dos séculos, extremamente poderosos na construção da eticidade do
indivíduo e da sociedade.
Uma das maravilhas do nosso
tempo é a acessibilidade a estas fontes diversas, e uma das necessidades da era
é o respeito universal a todas elas. Tais podem ser os fundamentos de uma
eticidade universal para a nossa época. É uma obra extraordinária, as promessas
são belíssimas, e o trabalho é imenso. Mas como sempre ocorreu no passado, os
seres humanos, coletivamente, têm se mostrado capazes de enfrentar o eterno
desafio de reinventar-se e reinventar seu mundo. Nisso reside a certeza de um
futuro melhor.
4. A Fundamentação do Sistema de Garantias Legais da Infância e da
Juventude
4.1. Um Século de Leis
Uma
das grandes características do século XX foi ser capaz de produzir legislação
internacional que atuasse sobre os estados soberanos e que servisse de modelo
para as leis internas dos estados-nações. Além disso, como nunca ocorrera na
História nesta escala e nesta magnitude, os direitos das pessoas, em várias
instâncias, foram defendidos por instrumentos jurídicos de caráter
internacional e nacional.
A
emergência, ao longo do século XX, de um corpo de leis que defendem os direitos
fundamentais da pessoa humana, em vários aspectos e níveis, representou, sem
dúvidas, um avanço importantíssimo na construção de uma sociedade mundial
baseada no direito. Os direitos humanos deixaram de ser simplesmente aspirações
nobres de indivíduos nobres para se tornarem exigências legais do cidadão
comum. Ainda que haja muitíssimo por caminhar neste sentido, o avanço é
extraordinário.
O fundamental, no que diz respeito a
estes documentos, são as garantias com força de lei que produziram. Embora a
realidade esteja ainda muito aquém da legislação existente, é inegável que as
leis, nascidas na história dos povos, têm força também de construir história.
Para isso, dispomos hoje no Brasil de um conjunto invejável e avançado de leis
que podem, ao serem respeitadas e aprimoradas, garantir uma vida bem mais digna
para as crianças e jovens de hoje e de amanhã.
4.2. Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)
Adotada pela Assembléia Geral das
Nações Unidas em 1948, é, o principal documento internacional norteador e
disciplinador dos direitos e liberdades fundamentais da pessoa humana. Nesse
sentido, está na base do amparo que hoje legislação mais específica estende à
criança e à juventude.
Em seu preâmbulo, o documento
ressalta que “uma concepção comum destes direitos e liberdades [da pessoa
humana] é da mais alta importância”. E esta, sem dúvida, foi uma dos grandes
conquistas da Declaração: universalizar a concepção dos direitos humanos e
oferecer um referencial pelo qual as práticas de diferentes povos e nações
podia ser avaliado ante a opinião pública internacional.
Com relação especificamente
à infância e juventude, a DUDH salienta que as crianças “têm direito a ajuda e
a assistência especiais”, independente de sua origem. Também prescreve que
“Toda a pessoa tem direito à educação” e que esta deve “ser gratuita, pelo menos
a correspondente ao ensino elementar fundamental.” Também diz que “O ensino
elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional dever ser
generalizado” e que “o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos
em plena igualdade, em função do seu mérito.”
A DUDH salienta o propósito humanista
e enobrecedor da educação: “A educação
deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos
do Homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a
tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou
religiosos, bem como o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para a
manutenção da paz”.
Também salienta que “Aos pais
pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos
filhos.”
Com base nos postulados gerais da
DUDH, a consciência humana elevou-se a novas alturas, e instrumentos
compulsórios universais e nacionais passaram a regular tais princípios.
4.3. Declaração Universal dos Direitos da Criança (DUDC)
Com
dez Princípios, foi proclamada em 20
de Novembro de 1959, pela Assembléia Geral das Nações Unidas. A DUDC levou a um
nível maior de detalhamento os direitos e proteções específicos das crianças
que são mencionados na DUDH.
O texto
salienta outra vez, como na DUDH, a “proteção especial” que deve ser garantida
à criança. Além disso, chama por leis que garantam “oportunidade e serviços ...
para que possa desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente
de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade.”
A
“consideração fundamental” nas leis a serem promulgadas para a proteção da
criança, ressalta o texto, sempre “será o interesse superior da criança”.
Este chamamento por leis específicas
é importante em seus desdobramentos posteriores, já na Convenção Internacional
sobre os Direitos da Criança, que veremos a seguir, cujo texto assumiu poder de
lei interna em vários países-membros da ONU, inclusive o Brasil.
4.4. Convenção sobre os Direitos da
Criança (CIDC)
A Convenção Internacional
sobre os Direitos das Crianças, com 54 artigos, foi adotada pela Assembléia
Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, entrando em vigor em 2 de
setembro de 1990.
O Brasil ratificou
a Convenção, regulamentando-a através do Decreto n. 99.710 de 21/11/90.
Aprovada pelo Congresso e promulgada pelo Presidente da República, a CIDC tomou
força de lei interna do país.
Seu preâmbulo faz referência a todos
os instrumentos internacionais que a precederam e fundamentaram:
-
a Carta das Nações Unidas
-
a Declaração Universal de Direitos
Humanos
-
as Convenções Internacionais de
Direitos Humanos
-
a Declaração de Geneva dos Direitos
da Criança (1924)
-
a Declaração Universal dos Direitos
da Criança (20/11/99)
-
o Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos (em particular os artigos 23 e 24)
-
o Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (em particular o artigo 10)
-
os estatutos e instrumentos
pertinentes das Agências Especializadas e das organizações internacionais que
se interessam pelo bem-estar da criança
-
a Declaração sobre os Princípios
Sociais e Jurídicos Relativos à Proteção e ao Bem-Estar das Crianças,
especialmente com Referência à Adoção e à Colocação em Lares de Adoção, nos
Planos Nacional e Internacional
-
as Regras Mínimas das Nações Unidas
para a Administração da Justiça (Regras de Pequim)
-
a Declaração sobre a Proteção da
Mulher e da Criança em Situação de Emergência ou de Conflito Armado
A CIDC detalha muito os direitos e garantias a serem estendidos às
crianças (definidas como menores de 18 anos), especialmente no tocante à suas
relações com os pais e a família e nos casos de infração juvenil. Os direitos
pré-natais também fazem parte das considerações.
O texto estabelece, acima de tudo,
que “Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições
públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades
administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.” (Artigo
3. A ênfase é nossa).
4.5. Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA)
Com
267 artigos, a lei 8.069, de 13/7/90 “dispõe sobre a proteção integral à
criança e ao adolescente”.
Nele, considera-se criança “a pessoa
até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito
anos de idade.”
O ECA representou um grande avanço na
proteção da criança e do adolescente, em relação ao anterior Código de Menores.
A maior maturidade da lei se faz sentir em seu espírito e estatutos mais
voltados à proteção dos valores fundamentais para o desenvolvimento do ser
humanos integral.
4.6. Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB)
Com 92 artigos, a Lei 9.394, de
20/12/96, estabelece de maneira rica e detalhada os propósitos, os mecanismos e
a estrutura educacional no Brasil. A LDB representa um avanço marcante em
relação às leis anteriores, especialmente no significado ampliado que atribui à
a educação.
Com base nela, os maiores e melhores
ideais educacionais contemporâneos assumem forma de obrigação legal, e o
direito da criança brasileira, não só à educação, mas à boa educação, fica
garantido por lei.
5. Compromisso Histórico e Político
Na sua origem, responsabilidade provém do latim responsus, particípio passado do verbo respondere, que significa responder, corresponder. Responsabilidade,
portanto, indica bem mais do que simplesmente “compromisso” ou “dar conta dos
próprios atos”. Implica comunicação, resposta, envolvimento. Nesse sentido, é o
oposto do egoísmo e da alienação.
Na medida em que é envolvimento,
responsabilidade é vida e crescimento.
Todos nós, como seres humanos, nos
constituímos como seres históricos, na medida em que, através de nossa breve
passagem pela vida, damos continuidade e influenciamos a grande epopéia humana.
Nosso papel pode ser maior ou menor, dependendo das circunstâncias e de nossas
decisões, mas não podemos, em nenhum momento, abdicar de nossa historicidade.
Ser responsável ante a História, quer
a universal, quer a nossa própria, significa, acima de tudo, assumir
responsabilidade ante a vida. Uma responsabilidade que é existencial porque é vida. Uma responsabilidade que é escuta, que é resposta, que é diálogo. Ter responsabilidade existencial é viver em
plenitude, não como um parasita da vida, mas como um parceiro. Não como
observador, mas como companheiro.
O sentido
de nossa existência, em última instância, está definido por nossa responsabilidade ante a existência.
Abdicar disso nos faria subumanos.
Descartáveis. Inúteis.
A responsabilidade para com a
História nos faz humanos. A responsabilidade política nos faz cidadãos. Uma
complementa a outra. Não podemos ser humanos no vazio, no abstrato, no ar.
Constituímo-nos como pessoas numa realidade concreta, num momento determinado,
em relações definidas. Ter compromisso político é mudar o que precisa ser
mudado. É promover transformações visíveis. É concretizar nossa humanidade
através da intervenção concreta num mundo real.
Não intervenção materialista, oxalá,
mas plena de espírito. Não menos concreta, porém. Intervenção que pode criar um
mundo melhor ou pior, se for feita no Amor, ou fora dele. Que pode criar um
mundo mais sereno ou mais confuso, se for feita na Sabedoria, ou fora dela. Um
mundo mais feliz ou mais desesperado, se na Fé, ou fora dela. Mais digno, se na
Verdade. Mais pacífico, se na Justiça.
Assumir um compromisso histórico e
político para com a educação e a proteção da criança e do adolescente em nosso
país é redimir milhões. É resgatar milhões. É ter milhões de companheiros.
Miúdos. Inacabados. Cheios de promessas e esperanças, como todo ser humano. É
ser companheiro de milhões.
Na vida. No amor.
Na esperança.