EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E
JUVENTUDE DA COMARCA DE CAMPINAS.
O Ministério Público do Estado de São Paulo, através do Promotor de Justiça que abaixo subscreve, no exercício das atribuições que lhe são conferidas por lei e legitimado pelo art. 129, inciso III, da Constituição Federal, pelo art. 25, inciso IV, a, da Lei n. 8625/93, pelo art. 103, inciso VIII, da Lei Complementar Estadual n. 734/93, pelos artigos 3 e 5 da Lei n. 7347/85 e pelo art. 201, inciso V, da Lei n. 8069/90 vem, perante Vossa Excelência, ajuizar
AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER, com pedido de liminar e antecipação de tutela
em face da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor – FEBEM, vinculada ao Governo do Estado de São Paulo, através da Secretaria da Criança, Família e Bem-Estar Social, e da FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO, pelos fatos e fundamentos a seguir expostos:
O polo passivo da presente demanda compõe-se da Fazenda do Estado de São Paulo e da FEBEM - Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, tendo em vista o litisconsórcio necessário advindo da natureza convergente das obrigações constitucionais e legais de ambos em face dos direitos e garantias das crianças e dos adolescentes.
Com efeito, pretende-se, com a presente ação, sejam construídos equipamentos, ou adaptados os já existentes, onde possam ser cumpridas as medidas sócio-educativas privativas de liberdade (incluídas a semiliberdade e internação provisória), por adolescentes residentes na região de Campinas1, respeitando-se as determinações legais e constitucionais pertinentes (art. 227, CF e artigos 124 e 125 do Estatuto da Criança e do Adolescente). Objetiva-se sejam efetivamente respeitados os direitos dos adolescentes privados de liberdade, dentre os quais, destacamos os seguintes: o de permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável (art. 124, VI, ECA); receber visitas ao menos semanalmente (art. 124, VII, ECA); ter acesso aos objetos necessários à higiene e asseio pessoal (art. 124, IX, ECA); habitar alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade (art. 124, X, ECA); receber escolarização e profissionalização (art. 124, XI, ECA); realizar atividades culturais, esportivas e de lazer (art. 124, XII, ECA).
Constata-se, assim, que o assunto abordado nesta demanda, envolvendo interesses e direitos dos adolescentes autores de atos infracionais, constitui matéria de segurança pública2.
De fato, a aplicação de medida sócio-educativa pressupõe tenha sido o adolescente autor de um ato infracional, considerado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente como “a conduta praticada por criança ou adolescente, descrita como crime ou contravenção” (art. 103, da Lei nº 8069/90). O próprio Estatuto, no art. 121, caput, dispõe que a internação é medida privativa de liberdade, impondo ao Poder Público a obrigação de adotar as medidas necessárias à contenção dos internos (art. 125, da lei nº 8069/90). Não é por demais lembrar que a ordem pública se vê constantemente abalada pelo cometimento de atos infracionais por menores de 18 (dezoito) anos de idade. Daí porque é competência dos Estados-Membro a manutenção de casas de internação destinada a jovens autores de atos infracionais.
Tal raciocínio é reforçado pelo artigo 144 da Constituição Federal, segundo o qual "a segurança pública, dever do Estado, direito a responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (... )".
Nesse sentido foi a conclusão do estudo elaborado pela Procuradoria-Geral de Justiça acerca do tema (fls. 17/18 do I.C. nº 06/98):
a) Ao estabelecer a diretriz de municipalização do atendimento o legislador ordinário apenas procurou responder à demanda com serviços localizados mais próximos do local de residência da criança e do adolescente, de sorte a fortalecer vínculos familiares e comunitários (ECA, arts. 92-1, V, Vil e IX, 94-V, VI; 124-VI etc), sem implicar em prefeiturização ou mesmo em extensão do princípio constitucional da descentralização político-administrativo, mesmo porque a lei federal ordinária, respeitados o princípio federativo e a autonomia dos Estados e Municípios, não poderia alterar a ATRIBUIÇÃO CONCORRENTE DO ESTADOS E MUNICÍPIOS NA EXECUÇÃO DOS PROGRAMAS DESTINADOS A CRIANÇA E ADOLESCENTE.
b) Considerando que é dever do Poder Público adotar, em relação a adolescentes internados ou colocados em casas de semiliberdade, MEDIDAS DE CONTENÇÃO E SEGURANÇA (ECA, art. 125), e verificando que deflui da disciplina constitucional da segurança pública que tais atribuições, evidentemente não encaixadas naquelas reservadas à Polícia Federal, SÃO ALÇADA DAS POLÍCIAS ESTADUAIS, ressalta, à evidência, que o ECA não transferiu aos municípios a responsabilidade, incluindo a criação e custeio, pelos programas destinados a infratores, mesmo porque as atribuições das guardas municipais são restritas, destinadas exclusivamente à proteção de bens, serviços e instalações dos municípios (CF., art. 144, § 8º).
c) Assim, quer se considere que a Constituição Federal estabeleceu ATRIBUIÇÃO CONCORRENTE ENTRE OS ESTADOS E MUNICÍPIOS para a execução dos programas destinados a crianças e adolescentes (CF., art. 204), quer se releve que os Estados são responsáveis, através de suas polícias, pelas medidas de contenção e segurança destinadas a adolescentes infratores internados, quer se verifique que a diretriz da municipalização do atendimento prevista no ECA implica tão somente em manutenção de serviços nos locais mais próximos das residências das crianças e dos adolescentes atendidos, resta somente concluir que, juridicamente, os Estados não se encontram excluídos da responsabilidade pela criação, manutenção e custeio dos referidos programas.
d) Nada obsta, contudo, porquanto se tratam de obrigações concorrentes, que o Estado mantenha convênios com os municípios, ou grupos deles (regiões administrativas) para a instalação dos necessários programas, definindo-se as formas de participação de cada um nas atividades relacionadas a infância e juventude.
e) Observe-se, ainda, que a Constituição Paulista, ao tratar do assunto, também prevê que as ações do Poder Público, por meio de programas e projetos, serão executadas concorrentemente pelo Estado e Municípios (art. 232, inciso 11). Por fim, consigne-se o fato de que, de acordo com a Lei Estadual 185/73, alterada pela Lei 985/76, compete à Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor – FEBEM/SP, 'elaborar e executar programas de atendimento ao menor' (art. 2º, inciso II).
No Estado de São Paulo, por força da Lei nº 185, de 12.12.73 e Decreto 8777 de 13 de outubro de 1976, que aprovou os Estatutos da Fundação Estadual do Bem Estar do menor de São Paulo (não revogados pelo Estatuto da Criança e do adolescente), o planejamento e a execução de programas de internação de adolescentes autores de atos infracionais estão sob a responsabilidade da FEBEM-SP, fundação vinculada ao Governo do Estado, através da Secretaria do Menor.
No entanto, a Constituição Federal, ao permitir que o Estado atue através de entes descentralizados (artigo 37, inciso XIX) apenas instrumentalizou a administração pública para melhor alcançar seus objetivos, sem com isso isentar a responsabilidade original do ente estatal.
Ademais, apesar da descentralização do serviço ora examinado, é do Estado a obrigação tanto de fiscalizar corno de prover a autarquia especial, zelando para que o serviço seja efetivamente prestado.
Além disso, tanto a Constituição Federal quanto a Constituição Estadual (artigo 147, parágrafo 411, item 3) estabelecem que a lei orçamentária compreenderá também o orçamento das fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público. Ou seja, o custeio do serviço pela FEBEM é responsabilidade do Estado de São Paulo.
Portanto, tendo em vista a natureza da relação jurídica existente entre o Estado e a FEBEM impõe-se, no caso, a litisconsórcio passivo necessário, com fundamento no artigo 47 do Código de Processo Civil.
A competência judicial para propositura da ação é fixada nos moldes do que estabelece o artigo 209 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, em razão do local onde ocorreu ou deva ocorrer a ação ou omissão, cujo juízo terá competência absoluta para processar e julgar a causa, ressalvadas a competência de Justiça Federal e a competência originária dos Tribunais Superiores.
Ao comentar aludido dispositivo, assim leciona Josiane Rose Petry Veronese, in "A Tutela Jurisdicional dos Direitos de Criança e do Adolescente", Editora Ltda., 1998:
"O Estatuto resguardou à Vara Especializada da infância e da Juventude a competência absoluta para processar e julgar as demandas identificadas no art. 208. Assim, mesmo que Estados e Municípios figurem no polo passivo ou ativo das ações civis públicas, será aquele a juízo competente, para o qual deverão ser encaminhadas as demandas de responsabilidade por alguma ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, o que representa uma novidade, pois até o advento dessa nova lei, as ações propostas pelas pessoas jurídicas de direito público ou contra elas eram todas processadas nas Varas da Fazenda Pública, sem qualquer exceção”.
No presente caso, a omissão que gera a ofensa ao bem jurídico tutelado está se verificando em cada uma das cidades onde se deveria ofertar à comunidade a casa de internação ou de semiliberdade, para atendimentos dos adolescente infratores. Pode-se concluir, assim, que cada uma das Comarcas é competente para a propositura de ação, visando a construção desses equipamentos. Assim, a competência judicial seria definida pela prevenção.
Ressalte-se que poucas comarcas da região de Campinas, conforme recente levantamento da FEBEM, possuem demanda que justifique a existência de casa de internação e semiliberdade apenas para aquela localidade. Por essa razão, a questão não pode ser tratada isoladamente, posto que as comunidades das pequenas cidades ficariam prejudicadas, uma vez que nunca teriam demanda para tanto. Destarte, a questão merece um tratamento regionalizado.
Ademais, no tocante ao Estado de São Paulo a regionalização das casas de internação e demais medidas sócio-educativas já foi definida como diretriz de atuação na esfera administrativa, conforme resolução nº 46/96-CONANDA e deliberação da II Conferência Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, realizada em julho de 1997 (fls. 31 e 42 do I.C.)
A própria FEBEM vem tratando da matéria de forma regionalizada, definindo como prioridade a descentralização do atendimento do adolescente infrator, através da construção de internatos nas regiões de maior demanda do Estado, dentre as quais, a região de Campinas (fls. 83/156 do I.C.).
Seguindo o tratamento dispensado pela demandada à questão da regionalização do atendimento do adolescente infrator (conforme Relatório de Informações Gerenciais da FEBEM, datado de janeiro de 1998) e atendendo a resolução do CONANDA e deliberação do CONDECA acima mencionadas, concluiu o Egrégio Conselho Superior do Ministério Público ser a divisão administrativa estadual a forma mais adequada de dimensionar a necessária atuação do “Parquet”, visando a solução da questão da regionalização. Assim, determinou a instauração de inquéritos civis em cada uma das sedes de circunscrição onde se localizam as regiões administrativas, num total de vinte e dois inquéritos civis (fls. 241/250; 336/361).
Não é por demais observar que Campinas, em relação a região geográfica onde se encontra, constitui o município com maior índice populacional, maior arrecadação, pólo cultural e, por via de conseqüência, apresenta, isoladamente, demanda que justifica a construção de unidades de internação. Aliás, Campinas é o único município da região que conta com uma unidade de acolhimento provisório (UAP-5) e com uma outra unidade de internação em fase final de construção.
Há muito se vem notando que a FEBEM não mais está suportando a demanda do Estado de São Paulo, demonstrando ineficácia no atendimento e recuperação do adolescente infrator posto sob custódia (quer provisória ou definitivamente, quer em regime de semiliberdade).
A história da instituição demonstra que o atendimento dispensado aos adolescentes infratores não se coaduna aos parâmetros exigidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, dando causa aos constantes distúrbios e rebeliões nos pavilhões da FEBEM, intensificando o desgaste do sistema.
A superpopulação das unidades, além de impossibilitar o acolhimento digno dos adolescentes, propicia a freqüente ocorrência de fugas e rebeliões dos internos, os quais, não raro, acabam sendo vítimas do descontrole estatal, observando-se a ocorrência de lesões físicas e psíquicas dos adolescentes postos sob a custódia do Estado3.
Atente-se para os últimos acontecimentos ocorridos nas unidades do Quadrilátero do Tatuapé em São Paulo e, mais recentemente, no Complexo da Imigrantes, conforme recortes de jornais juntados a fls. 946/948. Na verdade, a imprensa tem veiculado com freqüência matérias noticiando fugas e rebeliões das unidades da Capital. Aliás, realizando análise acerca dos fatos o Excelentíssimo Senhor Governador do Estado de São Paulo reconheceu, claramente, perante a imprensa, a necessidade de regionalização.
Também é comum a fuga de adolescentes do interior de cadeias públicas, destinadas ao encarceramento de pessoas maiores de dezoito anos, não sendo raros os casos de maus tratos e constrangimentos de que são vítimas os adolescentes custodiados que ali aguardam autorização da Corregedoria Geral de Justiça para a transferência para as unidades de acolhimento provisório da FEBEM.
Segundo os estudos realizados pela própria FEBEM, a inoperância do sistema já era sentida pelo Estado há muito tempo, sendo que a regionalização das unidades de internação vem sendo apontada como a única alternativa viável para a garantia de um atendimento condigno aos adolescentes custodiados.
Todavia, observa-se que desde o advento da Carta Política de 1988, seguida da implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, poucas - e insuficientes - foram as medidas concretas tomadas pelo Poder Público no sentido de solucionar a aflitiva situação dos adolescentes postos sob a custódia do Estado, não obstante o tratamento prioritário que deve ser reservado à questão da infância e da juventude.
Desse modo, quer pelo inchaço, como também pela inoperância do sistema de custódia de adolescentes infratores, verifica-se que, de há muito, foram rompidos os limites da capacidade de atendimento, atingindo patamares insustentáveis de violação aos direitos fundamentais dos adolescentes privados de liberdade, a reclamar a urgente tomada de medidas tendentes à solução dos problemas retro narrados.
Segundo informação prestada pelo Presidente da Febem, em agosto de 1997 a fundação mantinha internados, na Capital, 146 (cento e quarenta e seis) adolescentes, provenientes das sub-regiões de Campinas e de Bragança Paulista, tendo esse número se elevado para 241 (duzentos e quarenta e um) em agosto de 1998 (fls. 410/411). Posteriormente, em levantamento mais pormenorizado, a fundação informou o número de adolescentes custodiados na Capital, mês a mês, compreendendo o período de março de 1998 a agosto de 1999 (fls. 700/701). Consta, ainda, a informação do tempo médio de internação dos adolescentes (fls. 412, item 3) bem como o custo médio por adolescente internado (fls. 415, item 09).
É verdade que existe uma unidade em construção, no município de Campinas, destinada à custódia de adolescentes infratores, tendo sido objeto de matéria veiculada na imprensa local (fls. 255 e 651). A própria FEBEM informou, em novembro de 1998, que estava em construção um internato na região de Campinas, cuja previsão para finalização da obra era dezembro de 1998 (fls. 414). Estamos em outubro de 1999 sem que a obra tenha sido concluída e implementado o projeto de atendimento, embora a previsão para entrega do equipamento seja para trinta dias, consoante matéria veicula pela imprensa local (fls. 953).. Ademais, a unidade, quando em funcionamento, terá capacidade para atendimento de 72 (setenta e dois) adolescentes, número insuficiente para a demanda da região, consoante dados fornecidos pela própria FEBEM (fls. 700/701).
Insta salientar que, com exceção à Comarca de Campinas, a qual conta com uma Unidade de Acolhimento Provisório (UAP-5), destinada à custódia dos adolescentes na hipótese do art. 108, ECA, com capacidade para 32 (trinta e dois) adolescentes, as demais comarcas da região não contam com estabelecimento adequado para internação desses adolescentes. Aliás, a própria UAP-5 está sempre com número de adolescentes acima de sua capacidade, conforme informações prestadas pelo Ilustre Diretor, prejudicando a qualidade do atendimento (fls. 591/594; 618 e 697). Ademais, a unidade, da forma em que está construída, se assemelha mais a uma Cadeia, posto que os alojamentos constituem verdadeiras celas, como salientado pelo Digno Diretor (fls. 625).
Verifica-se, ainda, que a região de Campinas4 conta apenas com um equipamento destinado à medida de semiliberdade, situado na Comarca de Mogi Mirim, destinado ao atendimento de adolescentes provenientes desta Comarca, de Itapira e de Mogi-Guaçu, ficando inviabilizada a aplicação dessa medida nas demais comarcas, conforme informação prestada pelos Cartórios Judiciais e Promotores de Justiça (veja-se quadro resumo a fls. 680/687).
Em decorrência da ausência de estabelecimento adequado para o cumprimento da medida intermediária de semiliberdade, muitos adolescentes, que mereceriam tratamento menos rigoroso, se vêem prejudicados em razão de sua custódia
Diante desse quadro, a regionalização tem sido apontada por especialistas como a solução eficaz para a implantação efetiva de programas destinados ao atendimento do adolescente infrator ao qual tenha sido aplicada medida sócio-educativa.
Na “Proposta de Descentralização e Regionalização do Atendimento dos Adolescentes Autores de Ato Infracional no Estado de São Paulo”, de novembro de 1997, a FEBEM se posicionou favoravelmente à descentralização e regionalização do atendimento (fls. 83/156). Em junho de 1999, a FEBEM apresentou “Projeto de Implantação de Internatos Regionalizados”, onde mais uma vez se posicionou favoravelmente à regionalização (fls. 655/666), cujo texto é parcialmente abaixo transcrito:
Este documento é um sumário da proposta de implementação de internatos, foi elaborado visando a implantação de internatos regionalizados na Capital, Grande São Paulo e Interior.
Os seus pressupostos estão referendados na diretriz de descentralização do governo do Estado de São Paulo, estando embasados nos preceitos constitucionais e na filosofia preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Para efetivar a diretriz de descentralização propõe-se a construção de equipamentos sociais regionalizados que permitam o atendimento global às necessidades dos adolescentes privados de liberdade. Para tanto não será suficiente apenas a construção de novas bases físicas, mais adequadas e funcionais.
O grande desafio é o de superar as práticas correncionais-repressivas em favor de uma ação sócio-educativa calcada na noção de cidadania que contemple os princípios de responsabilidade e justiça.
(...)
No decorrer das últimas décadas o Brasil foi palco de importantes transformações, no que se refere ao atendimento e à promoção dos direitos da infância e juventude.
No Estado de São Paulo a FEBEM é o órgão responsável pelo atendimento dos adolescentes privados de liberdade. Concebida sob a ótica da contenção, a Fundação se estruturou em grandes complexos institucionais o que inviabilizou a perspectiva de um gerenciamento eficiente, bem como o estabelecimento de um processo pedagógico com caráter sócio-educativo.
A centralização do atendimento em unidades da capital acarreta desperdício de recursos humanos, materiais e financeiros. O translado dos jovens do interior para a capital também leva ao afastamento do núcleo familiar e comunitário, muitas vezes por longos períodos, dificultando a reinserção familiar e social, quando retornam à comunidade de origem.
O crescimento da clientela é um fato observado nos últimos quatro anos (...)
No início de 1995 a FEBEM/SP atendia a uma média mensal de 2037 adolescentes privados de liberdade. No final de 1998 ocorreu um aumento para 3999 adolescentes, representando 96% de crescimento. O resultado desse acréscimo é o aumento da defasagem entre o número de adolescentes atendidos e as vagas disponíveis.
(...)
A proposta de regionalização do atendimento a adolescente privados de liberdade viabilizará o cumprimento do artigo 94, inciso III do Estatuto da Criança e do Adolescente que estabelece as obrigações das entidades que desenvolvem programas de internação de “oferecer atendimento personalizado, em pequenas unidades e grupos reduzidos” e no inciso V acrescenta: “diligenciar no sentido de restabelecimento e da preservação de vínculos familiares” bem como proporcionará a participação das comunidades locais em co-gestão gerando um arejamento institucional e a transparência das ações.
Igualmente recomendam a regionalização a Resolução nº 46/96 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, apontando a desconcentração dos grandes complexos quanto à execução das medidas sócio-educativas como diretriz para todos os Estados da Federação (fls. 31/32) e a deliberação da II Conferência Estadual Sobre os Direitos da Criança e do Adolescente – CONDECA, órgão responsável pelo traçado das políticas públicas na área (fls. 34/48). Acrescente-se que o CONDECA deliberou, em 18 de maio de 1998, que o cumprimento da medida de semiliberdade pelo adolescente também deverá ser descentralizado de modo a possibilitar o efetivo cumprimento da medida na localidade do domicílio de seus pais ou responsável, proporcionando a convivência familiar e comunitária determinada pelo ECA (art. 1º).
No mesmo sentido é o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito instituída na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo visando a apuração de fugas diárias nas Unidades dos Complexos Imigrantes e Tatuapé, bem como irregularidades administrativas na contratação de funcionários e prática ilegal da medicina dentro da Fundação Estadual do Bem-Estar do menor – FEBEM, cuja cópia parcial encontra-se a fls. 709/756 dos autos do inquérito.
Apesar da FEBEM já se ter posicionado pela descentralização e regionalização do atendimento do adolescente autor de ato infracional, sendo que em 1992 já apresentara plano de descentralização (conforme se verifica pela “Análise Crítica” à proposta, da lavra do Ilustre Procurador de Justiça Dr. Paulo Afonso Garrido de Paula, a fls. 04/15), a Fundação pouco fez para alcançar os objetivos traçados nos diversos planos. Prova da omissão dos réus é a existência de um único equipamento na região de Campinas destinado à custódia de adolescentes internados provisoriamente, cuja capacidade está muito aquém da demanda da região, conforme dados levantados no inquérito civil. Da mesma forma, até o presente momento a unidade destinada ao cumprimento da medida sócio-educativa de internação não está operando e sua capacidade também não é suficiente para atender a região. O mesmo se diga em relação a medida de semiliberdade, contando a região com um único equipamento, destinado ao atendimento dos adolescentes provenientes das Comarcas de Mogi-Mirim, Mogi-Guaçu e Itapira.
Institui a Constituição Federal em seu artigo 227, caput, o princípio da prioridade absoluta. Segundo citada disposição constitucional, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Mencionado princípio encontra-se igualmente previsto no artigo 4º da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Além de repetir a redação dada pelo texto constitucional, o dispositivo, em seu parágrafo único, estabelece o seguinte:
Art. 4º (...)
Parágrafo único. A garantia da prioridade compreende:
(...)
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com proteção à infância e juventude.
Comenta Dalmo de Abreu Dallari, in Estatuto da Criança e do Adolescente - Comentários Jurídicos e Sociais - Malheiros Editores, 2ª Edição, 2ª Tiragem, pág. 28 que:
Essa exigência legal é bem ampla e se impõe a todos os órgãos públicos competentes para legislar sobre a matéria, estabelecer regulamentos, exercer controle ou prestar serviços de qualquer espécie para promoção dos interesses e diretos de criança e adolescentes. A partir da elaboração e votação de projetos de lei orçamentária já estará presente essa exigência. Assim, também, a tradicional desculpa da “falta de verba” para a criação e manutenção de serviços não poderá mais ser invocada com muita facilidade quando se tratar de atividade ligada, de alguma forma, a crianças e adolescentes. Os responsáveis pelo órgão público questionado deverão comprovar que, na destinação dos recursos disponíveis, ainda que sejam poucos, foi observada a prioridade exigida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Outro princípio merecedor de invocação é o princípio da proteção especial aos adolescentes autores de atos infracionais, consagrado pelo artigo 227, § 3º, da Constituição Federal. Segundo citada disposição,
“O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
(...)
V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalmente e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa de liberdade.”
Mencionado dispositivo constitucional dita os princípios relativos a medidas sócio-educativas de semiliberdade e internação de jovens maiores de doze anos, previstas, respectivamente, nos artigos 120 e 121, da Lei nº 8.069/90 ( Estatuto da Criança e do Adolescente).
Nesse sentido é a previsão do artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente:
“Esta lei dispõe sobre a proteção integral5 à criança e ao adolescente.”
Proposições de idêntico teor constam da “Convenção sobre Direitos da Criança – ONU6 e do documento denominado “Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade”7.
Comentam, finalmente, o Desembargador de Santa Catarina Antonio Fernando do Amaral e Silva e o Procurador de Justiça de São Paulo Munir Cury8:
Ainda mais recentemente, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e Juventude – Regras de Beijing (Res. 40/33 da Assembléia-Geral, de 29.11.85); as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil – Diretrizes de Riad (Assembléia-Geral da ONU, novembro/90); bem como As Regras Mínimas das Nações Unidas para a proteção dos Jovens Privados de Liberdade (Assembléia-Geral da ONU, novembro/90), lançaram as bases para a formulação de um novo ordenamento no campo do Direito e da Justiça, possível para todos os países, em quaisquer condições em que se encontrem, cuja característica fundamental é a nobreza e a dignidade do ser humano criança.
(...)
O espírito e a letra desses documentos internacionais constituem importante fonte de interpretação de que o exegeta do novo Direito não pode prescindir. Eles serviram como base de sustentação dos principais dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente e fundamentaram juridicamente a campanha Criança e Constituinte, efervescente mobilização nacional de entidades da sociedade civil e milhões de crianças, com o objetivo de inserir no texto constitucional os princípios da Declaração dos Direitos da Criança.
Ratificando-as, elencou o art. 124 do Estatuto da Criança e do Adolescente os direitos do adolescente privado de liberdade, dentre os quais: ser tratado com respeito e dignidade, permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio dos seus pais ou responsáveis, receber visitas ao menos semanalmente e corresponder-se com seus familiares e amigos.
O objetivo de tal previsão visa facilitar a ressocialização e recuperação do adolescente infrator, na medida em que não é afastado de sua unidade familiar e comunidade de origem.
Preceitua, ainda, o art. 123 do mencionado diploma legal que a internação deve ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por idade, compleição física e gravidade da infração.
Não é por demais lembrar que as entidade que desenvolvem programas de internação, dentre outras obrigações expressamente previstas no texto legal, devem oferecer atendimento personalizado, em pequenas unidades e grupos reduzidos e diligenciar no sentido do restabelecimento e da preservação dos vínculos familiares (art. 94, incisos III e V, ECA).
A regionalização tem por finalidades precípuas: a) assegurar a proximidade do adolescente ao domicílio de seus pais, como forma de fortalecer os laços familiares e comunitários e facilitar sua reintegração na vida social no momento oportuno, nos moldes do disposto no art. 124, VI, da Lei nº 8069/90; b) evitar que adolescentes originários de comunidades de pequeno ou médio porte cumpram a internação em companhia daqueles provenientes da Capital e Grande São Paulo, que vivem realidade totalmente diversa e que, muitas vezes, apresentam uma vinculação muito mais profunda com o mundo da criminalidade; c) equacionar a superlotação das unidades de internação da FEBEM, hoje instaladas em sua maioria na Capital.
As mesmas regras e princípios valem para a medida sócio-educativa de semiliberdade, porquanto a ela se aplica, no que couber, as disposições relativas à internação (art. 120, § 2º, ECA).
Não obstante a existência de diversos estudos realizados pela FEBEM, ao longo desses anos, apontando para premente necessidade de regionalização do atendimento de adolescentes infratores, a atuação do Estado tem sido tímida e ineficaz, não tendo sido até o presente implementadas instituições regionalizadas que mantenham programas sócio-educativos de internação e semiliberdade, com exceção à unidade de Mogi-Mirim, acima mencionada, que atende adolescentes proveniente de apenas três cidades.
A análise dos documentos juntados à inicial demonstra, à evidência, a omissão do Governo do Estado de São Paulo no atendimento condigno do adolescente infrator privado de liberdade, apontando, como corolário, para a urgente necessidade de implantação dos programas já referidos, dentro de um cronograma mínimo de regionalização, que permita o atendimento da demanda pulverizada por todo o Estado.
Interessante a colação de acórdão proferido pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e publicado na Revista dos Tribunais nº 743, páginas 132 e seguintes:
Ementa: AÇÃO CIVIL PÚBLICA - Programa de internação e semiliberdade para adolescentes infratores - Ausência de implantação por Estado-membro sob a alegação de falta de verba orçamentária - Inadmissibilidade, em face da previsão constitucional (art. 227) que define como prioridade absoluta as questões de interesse da criança e do adolescente - Ajuizamento da ação pelo Ministério Público visando o cumprimento da ordem constitucional que não afronta o poder discricionário da administração Pública.
(...)
Portanto, Criança e Adolescente é prioridade absoluta do Brasil (aliás a expressão prioridade absoluta não é utilizada em nenhum outro dispositivo Constitucional). É assim a prioridade das prioridades do Estado.
Nesta linha, fiel ao texto Constitucional, priorizando de forma absoluta a questão, o Judiciário gaúcho encaminhou à Assembléia Legislativa o projeto de lei que criou os Juizados Regionais da Infância e Juventude, onde a principal atribuição é o de funcionar como Juízos de Execução das medidas Sócio-educativas privativas de liberdade em relação aos adolescentes infratores em todas as Comarcas a que serve.
O projeto teve atendimento prioritário na Assembléia, onde tramitou rapidamente e recebeu aprovação unanime (!). Sancionada a Lei (nº 9.896/93), apesar das notórias deficiências orçamentárias, o Judiciário Gaúcho - sempre às voltas com carência de juizes, apesar da realização de recursos onde as vagas oferecidas acabam não sendo preenchidas - providenciou a instalação desses juízos especializados, dotando-os de juizes e funcionários, provendo cargos, cumprindo a prioridade absoluta preconizada pela Magna Carta.
Estes Juizados e o espírito que norteou a criação destes se vêem agora inviabilizados da atividade que lhes é fundamental, voltada à garantia dos direitos fundamentais do adolescente privado de liberdade - em função dos quais foram concebidos - diante da inexistência de casas para acolhimento de infratores sujeitos à medida de internamento e semiliberdade, permanecendo a renovar a nefasta rotina de encaminhar jovens às únicas entidades dessa espécie existentes, em Porto Alegre, o que viola frontalmente aqueles direitos do adolescente privado de liberdade - enumerados no ECA -, levados a um meio diferente, distantes mais de quinhentos quilômetros de suas cidades, em outra realidade sócio-cultural, convivendo com jovens com outras vivências e experiências, em sério - e muitas vezes - irreparável prejuízo ao processo sócio-educativo que se busca realizar.
Neste país, que além do futebol e do carnaval, se celebriza no exterior por ser aquele que mata suas crianças e adolescentes, não é possível mais conviver com estes quadros.
Queixar-se da violência dos adolescentes, propor a absurda redução da imputabilidade penal para 16 anos, clamar-se em equívoco que o adolescente infrator resta impune, é não querer efetivar o Estatuto e descumprir o mandamento Constitucional da PRIORIDADE ABSOLUTA do país.
Os recursos para estes programas de atendimento de adolescentes infratores são a grande prioridade de qualquer orçamento diante do quadro que vivemos. Somente o investimento nessa área permitirá a desnecessidade de a cada ano proclamar-se a necessidade de ampliação da rede de penitenciárias.
No art. 4º do ECA está insculpida a norma a ser cumprida (parágrafo único, alínea ‘c’: PREFERÊNCIA NA FORMULAÇÃO E NA EXECUÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS E PÚBLICAS, e alínea ‘d’: DESTINAÇÃO PRIVILEGIADA DE RECURSOS PÚBLICOS NAS ÁREAS RELACIONADAS COM A PROTEÇÃO A INFÂNCIA E JUVENTUDE).
Como se faz impossível a criação de unidades de internamento em todas as Comarcas do Estado - nem se faz oportuno pela necessidade de dotá-las de uma equipe técnica adequada - foram criadas as sedes regionais, como Santo Ângelo.
O inquérito civil público que informa esta ação demonstra a imperiosa necessidade da instalação da unidade de atendimento reclamada, eis que hoje há diversos adolescentes internados na Capital, afastados de seu meio social, longe das referências que seriam fundamentais em um processo terapêutico (psicológico, pedagógico e educacional) apto a garantir a eficiência da medida sócio-educativa que os priva de liberdade.
Há omissão do Poder Público, tanto que desde 1991 está incluído no plano plurianual da FEBEM a criação dessa Casa em Santo Ângelo, sem nenhuma medida efetiva de execução (sequer a destinação de verba para início das obras, previstas em qualquer orçamento do Estado). Onde fica a prioridade absoluta.
O referido protocolo de intenções é a renovação do reconhecimento pelo Estado de sua obrigação e responsabilidade. Mas, como demonstra a inclusão no plano plurianual da FEBEM para o período 91/95, sem nada realizar, somente de boas intenções não se resolve a problemática da infância e juventude. O momento reclama ação, decisão e vontade política.
O Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, a quem incumbe traçar normas de política de atendimento no Estado, com recomendações aos órgãos de Poder, em 27 de maio de 1994 editou Resolução, onde bradava pela criação de unidade de internamento de infratores em todas as sedes de Juizados Regionais de Infância e Juventude (portanto incluindo Santo Ângelo), estabelecendo que DEVERÁ O PODER EXECUTIVO PREVER NO ORÇAMENTO PARA O EXERCÍCIO DE 1995, OS RECURSOS NECESSÁRIOS À INSTALAÇÃO E À MANUTENÇÃO DOS PROGRAMAS DE QUE TRATA ESTA RESOLUÇÃO (fl. 27).
O que lamentavelmente se verifica, a justificar plenamente a ação do Ministério Público, é que entra ano e sai ano, muito se fala e pouco se realiza nesta área, pois embora a explicita deliberação do CEDICA, o orçamento do estado para este ano não contemplou a criação das unidades de internamento (isso que se está tratando com a “prioridade absoluta” do Estado...).
Num quadro como este, pleno de boas intenções, pobre de realizações, diante da gravidade do problema, estribado na experiência da implantação do ECA neste Estado, que tem demonstrado que quando é possível a adequada execução da medida sócio-educativa, mesmo nos casos mais graves, se tem alcançado índices expressivos de recuperação de jovens infratores, se impõe a procedência da demanda, no estrito cumprimento da disposição Constitucional e no legítimo interesse público.
Dos pedidos
Do pedido liminar
Considerando que os adolescentes infratores provenientes das cidades que integram a região de Campinas9 que estão internados nas unidades da FEBEM na Capital estão sofrendo grave violação a seus direitos fundamentais, já que:
- o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 124, inciso VI, determina que é direito do adolescente privado de liberdade permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsáveis (fumus boni iuris);
- a cada dia que passa tais adolescentes sofrem influência negativa de outros adolescentes de maior periculosidade oriundos da Capital e de outras localidades de intensa violência social, bem como que, cada dia internado nas unidades da FEBEM da Capital é um dia perdido na sua ressocialização, já que estão distantes de suas famílias e não podem receber o apoio a que têm direito (periculum in mora);
requer o Ministério Público, liminarmente, que:
a) no prazo máximo e improrrogável de 30 (trinta) dias seja colocada em funcionamento a unidade de internação em fase final de construção, identificada, pelos veículos de comunicação, como UNIPAI, situada no município de Campinas, que deverá atender os adolescentes da região de Campinas10 (art. 122, ECA), sob pena de multa diária de R$ 15.000,00 (quinze mil reais);
b) todos os adolescentes provenientes das comarcas que compõem a região de Campinas, que estejam internados nas unidades da FEBEM na Capital, sejam transferidos, no prazo máximo e improrrogável de 120 (cento e vinte) dias, para uma unidade provisória a ser instalada em um prédio destinado exclusivamente a adolescentes, garantido o atendimento pedagógico, prédio este que deve estar localizado na região de Campinas, sob pena de multa diária de R$ 15.000,00 (quinze mil reais).
Ressalte-se que as providências solicitadas nos itens “ a” e “ b” são necessárias por ser inaceitável a permanência dessa situação durante o curso da presente ação civil, considerando as prováveis delongas, em virtude da natural morosidade da tramitação do processo, em conseqüências da obediências dos prazos processuais e da possível interposição de recursos.
Do Pedido de Tutela Antecipada
Dispõe o artigo 273, do Código e Processo Civil:
O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:
I – haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação;
II- fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.
Como fartamente demonstrado nos autos do inquérito civil anexo, os demandados de há muito vêm descumprindo a obrigação de oferecer aos adolescentes autores de ato infracional, aos quais tenha sido imposta medida de internação, atendimento adequado, através de programa compatível com os requisitos legais, a ser executado em localidade próxima de sua residência.
Desde há muito os demandados reconhecem a necessidade da descentralização e regionalização do atendimento do adolescente em conflito com a lei, elaborando infindáveis projetos de regionalização, mas deixando de adotar medidas eficazes para tanto.
Tão antigo o descumprimento das obrigações dos demandados que em 1992, o Ministério Público de São Paulo propôs ação visando pôr fim à superlotação de casas de internação (fls. 201/216), ação esta julgada procedente em ambas às instâncias, não tendo o V. Acórdão transitado em julgado em face da interposição de recurso pela demandada (fls. 757/838).
Tal descumprimento decorre, à toda evidência, da inércia dos administradores em exercício na área da infância e juventude, posto que é de conhecimento público que o Governo Estadual promoveu expressiva reestruturação no sistema carcerário, construindo diversas unidades prisionais pelo Interior. Injustificável, pois, que o atendimento ao jovem autor de ato infracional fique esquecido, seja em razão da prioridade absoluta estabelecida pelo art. 227 da Constituição Federal e pelo art. 4º da Lei nº 8069/90, seja quando se considera a circunstância de que o número de adolescentes a ser atendido é ao menos dez vezes menor do que o número de adultos ou, quando temos presente que o custo de tais casa é bem inferior ao de um presídio.
Presente, pois, a hipótese prevista no inciso I, in fine, do art. 273, que por si só autoriza a antecipação do pedido inicial.
Mesmo que assim não fosse, presente a hipótese prevista no inciso I do referido art. 273. Com efeito, o dano que os adolescentes atualmente internados nas unidade da Capital vêm sofrendo é irreparável. Estão eles a sofrer violações não somente aos direitos previstos no art. 124, do Estatuto da Criança e do Adolescente, como também aos direitos previstos no art. 5.º, III (tratamento degradante), XLIX (respeito a integridade moral), da Constituição Federal, dadas as péssimas condições de atendimento reinantes nas unidades da Capital, fortemente marcadas pela super-lotação.
Tais danos são irreparáveis por sua própria natureza. Evidente que o ordenamento prevê tutela de natureza ressarcitória, pecuniária, para tais casos. Esta providência, entretanto, não restaura o dano efetivamente sofrido, posto que ligado à própria formação da personalidade dos adolescentes. Em outras palavras, têm eles o direito de receber tratamento pedagógico que, influenciando nas capacidades de transformação do ser humano próprias da adolescência, lhes auxilie a modificar seu comportamento, antes dirigido à prática criminosa, possibilitando-lhes desenvolverem-se plenamente como cidadãos e integrarem-se no seio da comunidade, dela recebendo acolhida e a ela oferecendo sua contribuição de trabalho e participação. Eis, portanto, o periculum in mora (tutela antecipada assecuratória ou de urgência).
Por outro lado, é clara e irrefutável a procedência do pedido a seguir formulado ante o manifesto reconhecimento dos demandados quando a necessidade de regionalização (vide recortes de jornal anexados aos autos) e flagrante violação aos dispositivos legais e constitucionais em vigor, não havendo falar-se, de modo algum, em necessidade de dilação probatória em razão da evidente e inequívoca comprovação das presentes alegações e de sua irreplicável verossimilhança.
Nesse sentido é o entendimento dos renomados processualistas:
A norma permite que o juiz adiante a tutela de mérito. Esta tutela antecipatória significa que o juiz poderá conceder liminar e, provisoriamente, o pedido mesmo deduzido em juízo. É como se estivesse julgando procedente, provisoriamente o pedido. Somente será autorizado a fazê-lo se estiverem presentes, cumulativamente, dois requisitos: a) se for relevante o fundamento da demanda; b) se houver justificado receio de ineficácia do provimento final. O adiantamento da tutela de mérito é possível em todas as ações coletivas fundadas no CDC e na LACP. A partir de 12.2.95 é possível a tutela antecipatória em qualquer ação civil, consoante o CPC 273, com redação dada pela L 8952/94 1.º11.
Finalmente, assim preceitua o art. 213 da Lei n.º 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente):
Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
§1.º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citando o réu.
Logo também a legislação especial reconhece claramente a possibilidade de antecipação da tutela pleiteada, na medida em que o julgador determinará ao réu a tomada de providências que assegurem o resultado prático equivalente, aqui considerado como sendo a efetiva transferência dos adolescentes internados nas unidades da Capital para unidades localizadas na região de Campinas, respeitados os seus direitos fundamentais quanto ao cumprimento de medida sócio-educativa privativa de liberdade.
Ademais, segundo estabelecem os parágrafos 2.º e 3.º do aludido art. 213, possível a imposição de multa diária aos demandados, com fixação de prazo para o cumprimento. Pese a exigibilidade da multa apenas após o trânsito em julgado da sentença favorável ao autor, será ela devida a partir do momento em que houver configurado o descumprimento.
Assim, com fundamento nos dispositivos acima apontados, requer o Ministério Público a concessão da tutela antecipatória para o fim de determinar que as unidades referidas no item “a” do pedido a seguir formulado sejam criadas no prazo de 06 (seis) meses a contar do deferimento deste pedido antecipado, sob pena do pagamento de multa diária no valor RS 30.000,00 (trinta mil reais), passando a multa resultante do inadimplemento a fluir deste mesmo termo.
Requer o Ministério Público que esta ação seja julgada PROCEDENTE, com a conseqüente condenação dos réus em obrigação de fazer, dentro do prazo máximo e improrrogável de seis meses, a:
a) criar e manter unidades de atendimento em regime de internação, internação provisória e semiliberdade, que atenda toda a demanda das cidades de Águas de Lindóia, Americana, Amparo, Arthur Nogueira, Atibaia, Bom Jesus dos Perdões, Bragança Paulista, Campinas, Cosmópolis, Engenheiro Coelho, Estiva Gerbi, Holambra, Hortolândia, Indaiatuba, Itapira, Jaguariúna, Joanópolis, Lindóia, Mogi-Guaçu, Mogi-Mirim, Monte Alegre do Sul, Monte Mor, Nazaré Paulista, Nova Odessa, Paulínia, Pedra Bela, Pedreira, Pinhalzinho, Piracaia, Santa Bárbara D’Oeste, Santo Antonio da Posse, Serra Negra, Socorro, Sumaré, Tuiuti, Valinhos, Vargem, Vinhedo, providenciando, no mínimo, a criação e manutenção de :
a.1) 05 (cinco) unidades de internação, com quarenta vagas cada uma, a serem instaladas na região de Campinas;
a.2) 10 (dez) unidades de semiliberdade, com dez vagas cada uma, a serem instaladas na região de Campinas, além da unidade que já se encontra implantada na comarca de Mogi-Mirim;
a.3) 03 (três) unidades de internação provisória, com quarenta vagas cada uma, a serem instaladas na região de Campinas, além da Unidade de Acolhimento Provisório de Campinas – UAP-5, instalada no município de Campinas.
As requeridas deverão manter os programas sócio-educativos de internação e semiliberdade, assim como as casas de acolhimento provisório, com a estrita observância das normas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, especialmente as determinações contidas nos artigos 94 e. 124 do citado diploma legal. Na implantação dos programas que atendam à demanda da região de Campinas12, as requeridas também deverão observar as determinações constantes das Resoluções Conanda n.º 46/96 e 47/96 e deliberações do Condeca (II Conferência Estadual de 11 de julho de 1997 e Deliberação CONDECA-2 de 18 de maio de 1998).
Assim, haverão de estar garantidos:
nos casos de internação, inclusive provisória, uma capacidade real de atendimento adequada aos parâmetros fixados pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente na Resolução nº 46/96, qual seja, 40 (quarenta) adolescentes por unidade;
vestuário e alimentação suficientes e adequados à faixa etária dos adolescentes atendidos (art. 94, VIII, ECA);
cuidados médicos, psicológicos, odontológicos e farmacêuticos (art. 94, IX, ECA);
escolarização, profissionalização, atividades pedagógicas, culturais, esportivas e de lazer (artigos 94, X e XI; 123, parágrafo único e 124, XI e XII, ECA)
Requer, ainda:
a imposição de multa diária no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), devida no caso de descumprimento das obrigações fixadas pela sentença e a partir do prazo por ela estabelecido, que reverterá ao Fundo Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, nos termos dos artigos 213 e 214 da lei n.º 8069/90.
a condenação final dos réus ao pagamento de custas e demais despesas processuais.
A citação da FEBEM – Fundação Estadual do Bem Estar do menor, na pessoa de seu presidente e representante legal, bem como da Fazenda do Estado de São Paulo, na pessoa do Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral do Estado, para, querendo, oferecer contestação no prazo facultado pela lei e acompanhar a presente ação até seus ulteriores termos;
Finalmente, requer provar o alegado por todos os meios de prova em direito admitidos, notadamente a juntada do inquérito civil n.º 006/98, de outros documentos, realização de perícias, vistorias e inspeções, tomada de depoimentos, oitiva de testemunhas, além de outras provas necessárias à comprovação dos fatos articulados.
Dá-se à causa o valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais).
Campinas, 06 de outubro de 1999
Elisa De Divitiis Camuzzo
Promotora de Justiça da Infância e Juventude
De Campinas