PARA ONDE CAMINHA O DIREITO?
Um estudo acerca das interpretações divergentes quanto à aplicabilidade
das medidas sócio-educativas (dispostas no Estatuto da Criança e do
Adolescente), após a vigência do novo Código Civil
Promotora de
Justiça.
" A experiência jurídica está a demonstrar ' que os raciocínios jurídicos são inseparáveis de incessantes controvérsias', o que ocorre não só entre os mais eminentes juristas como entre juízes e tribunais mais prestigiosos. Tanto assim é que tais desacordos, encontráveis tanto na doutrina como na jurisprudência, "obrigam, na maioria das vezes, após a eliminação das soluções não razoáveis, à imposição de uma solução através da autoridade, seja a da maioria, seja a das instâncias superiores, critérios que, aliás, na maioria das vezes, se combinam"[1].
Há que se considerar que todo sistema normativo deve
exprimir lógica e coerência. Destarte, os artigos, parágrafos, incisos e
alíneas de qualquer ordenamento legal devem estar intrinsecamente relacionados,
revelando as normas jurídicas dentro de um sistema que obedece a uma ordem
lógica e coerente, tendo em vista os fins a realizar.
O parágrafo de um dispositivo legal, a exemplo, revela
uma especificação normativa, cuja atividade interpretativa depende da
interpretação e do sentido do caput
do artigo ao qual pertence.
Iniciando a análise quanto ao tema proposto,
observa-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta no artigo 2º a
definição legal de criança e adolescente, pois a Lei 8.069/90 tem por objetivo
a proteção integral à criança e ao adolescente, e, sob esta perspectiva, é a
estes indivíduos que se direciona todo o conjunto de disposições normativas do ECA. No parágrafo 1º do artigo 2º, por sua vez, há
especificação normativa que apresenta, excepcionalmente, a possibilidade de
atendimento aos adolescentes acima do limite dos 18 anos de idade. Este
dispositivo, por sua vez, tem direta concatenação com o capítulo referente à
aplicação das medidas sócio-educativas, razão por que aludida regra determina a
possibilidade de menores infratores
cumprirem as medidas sócio-educativas após a maioridade.
Analisando este dispositivo de forma sistemática com o
artigo 121, parágrafo 5º do ECA, referente ao prazo
máximo para a liberação compulsória de adolescentes infratores da medida de
internação, infere-se a clara possibilidade de o adolescente infrator ter que
cumprir as sanções estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente, mesmo
após completar a maioridade penal. Isto porque, com o advento do Estatuto da
Criança e do Adolescente, no ano de 1990, nasce um sistema
completo e avançado, objetivando a proteção de crianças e adolescentes,
permitindo que, a nível jurisdicional, haja a aplicação de medidas
sócio-educativas em função da apuração de atos infracionais
frente ao órgão jurisdicional.
O procedimento referente à elucidação e
responsabilização por atos infracionais está calcado
nos princípios do contraditório, na garantia de ampla defesa, na igualdade na
relação processual, entre outros princípios constitucionais, sendo que, neste
referido procedimento judicial, há que existir garantias processuais e
constitucionais aos adolescentes a ele submetidos. Ademais, todos os
procedimentos regulados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente seguem
subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação processual,
subtendidas as regras processuais penais e civis. Por conseqüência, nada obsta
que as disposições normativas existentes no Estatuto da Criança e Adolescentes
sejam aplicadas aos autores de atos descritos como crimes ou contravenções
penais, quando ao tempo do fato tais indivíduos não tenham atingido a idade de
18 anos. Neste sentido, ainda que atingida a maioridade penal, há patente
possibilidade de aplicação destas medidas, desde que o fato ensejador da instauração de um procedimento para
apuração de ato infracional seja anterior aos 18
anos.
Todavia, com o advento do Código Civil, intérpretes
têm defendido que suas disposições normativas interferem e modificam a aplicação
das regras referentes aos procedimentos para apuração de atos infracionais previsto no Estatuto da Criança e do
Adolescente. Tendo em vista a diminuição da maioridade civil de 21 para 18
anos, estes autores sustentam não mais existir a possibilidade de aplicação, em
caráter excepcional, de medidas sócio-educativas a adolescentes que tenham
completado 18 anos de idade. Haveria, segundo este posicionamento doutrinário,
uma derrogação dos artigos 2º, parágrafo 1º e 121, parágrafo 5º, em razão das
disposições do Código Civil determinarem uma diminuição da maioridade civil de
21 para 18 anos. Em poucas palavras, tendo completado 18 anos de idade, o
adolescente infrator, submetido à medida de internação ou qualquer outra medida
sócio-educativa, deveria ser compulsoriamente liberado.
Não assiste razão a esses doutrinadores.
A maioridade civil não tem qualquer relação direta com
as sanções previstas e com o limite de idade máximo estipulado pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente para a sua aplicação, no que diz respeito a infratores
com mais de 18 anos de idade.
A entrada em vigor do novo Código Civil, ao apresentar
a idade de 18 anos como limite à menoridade civil, não revogou o parágrafo
único do artigo 2º, e, por conseqüência, não alterou o prazo legal estipulado
para a aplicação da medida de internação que, excepcionalmente, deve ser
aplicada até os 21 anos.
A redução da maioridade civil não ensejou
transformações interpretativas quanto aos objetivos de proteção que o Estatuto
da Criança e do Adolescente visa concretizar, mormente se considerarmos que as
medidas sócio-educativas têm função pedagógica, objetivando incutir no
representando o senso de responsabilidade e avaliação sobre seus atos. A
maioridade civil estabelece limites precisos quanto à capacidade civil, e o ECA, por sua vez, objetiva resguardar, proteger o
adolescente por meio de vários instrumentos jurídico-processuais, a exemplo das
medidas sócio-educativas, razão por que a aplicação das medidas
sócio-educativas se estende até os 21 anos em caráter excepcional.
A ratio legis se revela cristalina: em casos em que o
procedimento, em razão da morosidade da justiça ou por sua própria
complexidade, alcançar o termo final quando adolescente já tiver completado 18
anos, ainda assim, a legislação permite a aplicação das sanções estipuladas no
Estatuto, justamente porque objetiva que o adolescente, em cumprindo estas
sanções, possa não mais reincidir em atos delituosos.
A medida de internação, por sua vez, prevista no
artigo 121, parágrafo 5º, revela algo muito mais importante do que um limite de
idade. Como medida excepcionalíssima e de enorme gravidade, deve ser aplicada
somente aos casos mais graves, e neste sentido, considerando todos os
princípios, objetivos e fundamentos existentes no Estatuto da Criança e do
Adolescente, tal medida deverá ter um período limitado de tempo para ser
cumprida - no máximo três anos, e que pode estender-se até o limite de 21 anos.
Esta é a interpretação lógica do artigo 121 e seus parágrafos, em que o caput revela o caráter excepcional da internação, e
seus artigos, os limites à aplicação da medida, não só como necessidade de
proteção à pessoa, à liberdade e à personalidade do infrator, mas também como
limite à atuação do Estado quanto à forma e o prazo para aplicação de aludida
medida[2].
"Assim, embora
qualquer decisão que determine previamente o período de internamento fique
cancelada em razão do artigo 121, parágrafo 2º, ECA, não será admitida medida
perpétua, pois encontrar-se-ia óbice não só no
Estatuto que fixa o prazo máximo de cumprimento, mas também em mandamento
constitucional (art. 5º., XLVII, b CF). Ora, se a legislação brasileira
sabiamente repeliu o ergástulo no que diz respeito às penas, não haveria lógica
em admitir a perpetuidade da medida sócio-educativa que se desnaturaria,
tornando-se fonte de desesperança e descrença no sistema" .
"Levando-se em
conta os princípios da brevidade e excepcionalidade
da internação, tem-se que o limite da medida é a sua necessidade, diante o que
dispõe o artigo 2º. do Estatuto da Criança e do Adolescente" (TJSP - HC
26.301.0 - Rel. Yussef Cahali)[3].
A lei não disse mais, nem disse menos. Em sua interpretação, podemos vislumbrar que, no que diz respeito à medida de internação, em defesa da dignidade do adolescente e de seu direito de ir e vir, a medida de internação terá um prazo máximo de três anos, e, uma vez completando 21 anos, o menor infrator, submetido à medida, há que ser liberado[4].
Deve-se ter o máximo de cuidado para que
interpretações gramaticais - que se dizem literais – não colidam com todo o
arcabouço jurídico existente em um sistema legal, como é o sistema do Estatuto
da Criança e do Adolescente. Interpretações obtusas e
colidentes com os valores e princípios constitucionais, como o da
dignidade humana, revelam que a corrente doutrinária que objetiva a não
aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente aos adolescentes infratores
que tenham atingido a idade de 18 anos, contrapõe-se sobremaneira aos valores e
objetivos maiores do Estatuto, quais sejam, a ajuda ao menor infrator, a ressocialização e a prevenção de reincidência e da
criminalidade.
Se não fosse esse o objetivo da lei, por que então o
adolescente infrator, uma vez tendo completado a idade de 18 anos, teria ainda
que cumprir medidas sócio-educativas relativas à sua atuação quando ainda
inimputável? Por que então a possibilidade de menores infratores, após atingir
a maioridade penal, terem ainda que cumprir as sanções dispostas no Estatuto da
Criança e do Adolescente?
Como bem argumenta Roberto Barbosa Alves, Promotor de
Justiça em São Paulo,
"O conceito de
ato infracional tem o direito penal como referência obrigatória: são atos infracionais
todas aquelas condutas descritas como crime ou contravenção penal no Código
Penal e na legislação penal (artigo 103 dos ECA).
Adotada a tipicidade geral do
ordenamento jurídico, dispensa-se a redação de um código penal juvenil, com
tipos penais específicos para os adolescentes.
Tudo isso comprova que as medidas
sócio-educativas não deixam de ter caráter idêntico ao das penas. O legislador
preferiu claramente um direito da infância e da juventude de mentalidade penal,
ainda que haja tido em conta as características próprias do adolescente como
pessoa em desenvolvimento. Esse reconhecimento de responsabilidade nunca
significou maior castigo, senão o respeito à identidade do adolescente, através
de um processo conveniente e garantista capaz de
estimular a ressocialização"[5].
No mesmo sentido:
“Posição
sustentada na atualidade é a que reconhece o caráter penal das medidas
sócio-educativas, pois, em se tratando de defesa de direitos humanos dos
adolescentes, ao se reconhecer tal caráter deverá ser observado, especialmente,
o critério da estrita legalidade, quando de sua aplicação. A nova posição
possui como fontes os documentos de direitos humanos das Nações Unidas:
Princípios das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência
Juvenil - (Princípios Orientadores de Riad),
especialmente VI - Legislação e Administração da Justiça de Menores), Regras de Beijing
e para Proteção dos menores privados de liberdade, que aconselham a garantia a
crianças e adolescentes de todos os direitos fundamentais e sociais insertos na
Constituição da República"[6].
Destarte, as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente jamais tiveram por fim específico proteger civilmente os incapazes, vez que ordenamento jurídico de similar hierarquia já tratava de conceitos precisos como o da capacidade civil. Prova cristalina de que o objetivo do Estatuto é diverso revela-se nas situações em que os emancipados, à luz do Código Civil, podem responder por procedimentos de atos infracionais e ser submetidos às sanções estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente. Logo, a aplicação das penalidades do Estatuto não tem relação direta com a capacidade civil, disposta no novo Código, pois o Estatuto considera que pessoas com menos de 18 anos que transgridem o ordenamento jurídico penal devem ser responsabilizadas por seus atos, dentro de um procedimento judicial que leve em conta sobremaneira a idade, a condição biopsicológica e a individualidade destes agentes. Por conseqüência, no que diz respeito à aplicação de medidas sócio-educativas, o Estatuto da Criança e do Adolescente objetiva cominar sanções aos adolescentes infratores para que estas medidas sócio-educativas sejam instrumentos de prevenção a uma criminalidade futura e mesmo forma de reprimir atitudes consideradas ilícitas e reprováveis no seio da sociedade.
Por meio da interpretação que limita a aplicação das
medidas sócio-educativas aos maiores de 18 anos, ter-se-ia um conjunto de
medidas que perderia totalmente o seu sentido e eficácia se, como exemplo,
determinado adolescente, na véspera de seu aniversário de 18 anos, tendo
assassinado inúmeros indivíduos, ficasse sem responder a um procedimento
judicial, vez que o Código Civil estabelecera uma nova faixa etária referente à
maioridade civil. Por conseqüência, este indivíduo não estaria sujeito a
qualquer tipo de punição, pois nem o ECA nem o Código
Penal a ele se aplicariam. Teríamos de um só golpe interpretativo a vigência,
mas ineficácia de todo um sistema de proteção aos adolescentes (ECA), e ainda a
certeza de impunidade (aos adolescentes infratores) e um convite para o
exercício da criminalidade, como profissão!
Ressalte-se que, em hermenêutica jurídica, a
interpretação restritiva tem por objetivo limitar a incidência da norma, quando
o intérprete percebe que, uma vez aplicada, pode produzir efeitos danosos.
Trata-se de interpretação que objetiva diminuir o espaço de incidência da
norma, justamente porque esta já não se adequa aos
anseios e valores que a sociedade quer ver realizar. Nota-se que o tipo de
interpretação que ora repudiamos não é uma interpretação restritiva, mas sim
uma “interpretação bloqueio”, no dizer de Barroso, pois gera a total ineficácia
das medidas sócio-educativas, vez que não permite a concretização dos fins que
referidos dispositivos devem realizar: a proteção integral ao adolescente, sua
recuperação e prevenção à criminalidade.
Este tipo de interpretação fere não só o sentido
literal, pois a lei não disse que a referência aos 21 anos estava diretamente
relacionada com o limite da maioridade civil, durante a vigência do Código
Civil de 1916; fere o método
sistemático, vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente, como um sistema
jurídico ordenado, apresenta seus artigos e incisos totalmente concatenados e
relacionados aos objetivos e valores dispostos nas idéias de proteção e
prevenção de criminalidade para adolescentes em situações de risco. Sob esta
perspectiva, a tênue possibilidade de permitir este tipo de interpretação
encolherá a importância e a função de todo o arcabouço normativo do Estatuto da
Criança e do Adolescente, tendo como conseqüência inevitável a total ruína, a
ineficácia das medidas sócio-educativas que, diante da morosidade de nossa
justiça e de todas as dificuldades enfrentadas desde a fase investigatória na
apuração de atos infracionais, sobremaneira nos
municípios menores sem infra-estrutura, acabam por ser aplicadas
quando o menor infrator já completou 18 anos de idade.
Ademais, há que se considerar que adolescentes
infratores, com 17 anos ou no limiar de completar 18, não compreenderão os
motivos, a finalidade das medidas sócio-educativas, vez que muitas delas terão
que ser suspensas compulsoriamente em razão desta interpretação mais que
restritiva que esta nova corrente, de forma equivocada, impõe ao Estatuto da
Criança e do Adolescente em razão da maioridade civil.
Há que se acrescentar que a provável não aplicação de
medidas sócio-educativas a infratores com mais de 18 anos gera a sensação de
impunidade e a inexistência de limites para os mesmos, vez que a eles não se
aplicará nenhum tipo de sanção. Isto se revelará, no futuro, como total omissão do Estado diante da atribuição
de proteger, acolher e responsabilizar adolescentes quanto aos seus atos.
Certamente, num futuro não muito distante, estes
adolescentes infratores, sem limites impostos, poderão se tornar futuros
criminosos, posto que um ordenamento jurídico avançado,
moderno e eficaz, terá sido totalmente encolhido em seu cumprimento, em
razão de uma interpretação que não leve em conta o processo teleológico.
Para Carlos Maximiliano,
"Toda prescrição legal tem provavelmente um escopo, e presume-se que a este pretenderam corresponder os autores da mesma, isto é, quiseram tornar eficiente, converter em realidade o objetivo ideado. A regra positiva deve ser entendida de modo que satisfaça aquele propósito; quando assim se não procedia, construíam a obra do hermeneuta sobre a areia movediça do processo gramatical".
A interpretação do Direito deve ser teleológica.
"
O hermeneuta sempre terá em
vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação
prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas
necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será
interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure
plenamente a tutela de interesse para a qual foi redigida"[7].
A interpretação
teleológica tem em vista considerar que disposições normativas existem em razão
de um fim a ser colimado. Neste sentido, o ordenamento jurídico como um todo
deve ser interpretado não só em razão da literalidade de seus dispositivos (interpretação gramatical), mas também
em razão do sentido literal conjugado com a própria sistemática dos
dispositivos referentes ao ordenamento jurídico, e ainda sempre considerando a
finalidade de aplicação desse conjunto normativo.
A corrente a favor da interpretação que objetiva a não aplicação de medidas sócio- educativas a
adolescentes infratores quando completarem 18 anos vai de encontro à
interpretação teleológica porquanto não
considera que os artigos 2º, parágrafo 1º e 121, parágrafo 5º, têm concatenadas
às suas disposições normativas, valores e objetivos aos fundamentos do ECA, que
objetivam sua integral proteção de crianças e adolescentes. E isto não é levado
em conta por esta corrente.
Não se deve olvidar que a norma é texto frio, sem
vida, o intérprete é que a revela, que lhe dá expressão, e é por meio de uma
interpretação coerente, consistente e adequada aos anseios sociais que se deve
pautar toda a atuação dos Promotores de Justiça e Juízes da Infância e da
Juventude.
Como afirma Reale, o Direito
"é uma das expressões basilares do espírito humano em seu incessante
processo de objetivação ordenadora e racional do mundo em que vivemos,
representando sistemas de respostas sucessivas aos problemas que se põem
através da história"[8].
Com base neste excerto, que analisa a função e o fim
do Direito, podemos constatar que foi justamente em função de se buscar uma
mudança no tratamento aos adolescentes, tratados de forma estigmatizada, em que
a reclusão, o internamento e demais sanções não advinham de um devido processo
legal e não estavam assentes as garantias e princípios orientadores para sua
melhor qualidade de vida, que, diante de reivindicações consistentes e
necessárias, estabeleceu-se procedimento judicial que objetiva resguardar a
dignidade do infrator e as garantias básicas para sua proteção, como previsto no ECA.
O que ora se objetiva,
impedindo a aplicação do instituto da internação e de outras medidas
sócio-educativas, é nada mais nada menos do que ir de encontro à função do Direito:
a realização da justiça, tendo sempre em vista a pauta valorativa que reflete e
absorve os anseios da própria sociedade.
É em razão de posições incoerentes, como a por nós
refutada, que a ABMP se posicionou claramente contra a não aplicação em caráter
excepcional de medidas sócio-educativas a adolescentes infratores que tenham
completado a idade de 18 anos.
Sob esta mesma perspectiva, e trazendo ao debate qual
a nossa função enquanto intérpretes do Direito, e neste sentido responsáveis
quanto à interpretação e aplicação das normas, que se faz interessante
descrever a posição do Procurador de Justiça, Olympio de Sá Sotto
Maior Neto, do Ministério Público do Estado do Paraná, que, ao se posicionar
favoravelmente à garantia para a infância e juventude do exercício de direitos
elementares da pessoa humana, e neste sentido, posicionado-se
contra a diminuição da imputabilidade penal, assim afirma:
"A lição mais importante que aprendi nestes meus quase 23 anos de Ministério Público foi a de que a realidade social e a justiça devem estar presentes em todos momentos da vida do Direito. A atuação do jurista despreocupada com esses conteúdos se traduz em comportamento profissional meramente burocrático, que, antes de ter o condão de auxiliar na construção de nova ordem social, apresenta efeito contrário, auxiliando na manutenção do status quo - injusto - vigente. Neste aspecto, assente-se que nossa atividade profissional, centrada apenas na proposta de responder às conseqüência dos atos criminosos, significa parca colaboração para o propósito de ver instalada uma sociedade progressivamente melhor e mais justa. Tão-só encaminhar para as cadeias públicas ou para o sistema de segregação oficial os autores de fatos criminosos não auxilia em nada - afora uma imaginada prevenção geral - à tarefa de impedir ou prevenir a prática de novos delitos. Daí a preocupação com a realidade social brasileira ser o ponto central da reflexão vinculada à violência praticada por e contra crianças e adolescentes, conjugando-se o pensamento de que nossa infância e juventude (e suas famílias ) estão visceralmente ligados a uma situação de miserabilidade. Segundo estatísticas do IBGE, cerca de 56% (cinquenta e seis por cento) dos brasileiros integram famílias cuja renda per capta é inferior a meio salário mínimo (que, diga-se, mesmo quando percebido por inteiro se mostra insuficiente para atender às necessidades básicas do trabalhador e de sua família, correspondendo hoje, inclusive, a 18% (dezoito por cento) do seu valor real quando instituído em 1940). Vale lembrar que existe no país cerca de 30 milhões de pessoas (cidadãos?!) vivendo em situação de indigência, ou seja, abaixo da linha de pobreza. Nesse quadro social evidente, resta que o primeiro enfrentamento no sentido de evitar a criminalidade e a violência infantil-juvenil deve buscar a superação da condição de marginal (insista-se, à margem dos benefícios produzidos pela sociedade) infelizmente vivenciada pela maioria das crianças e adolescentes brasileiros. Evitando-se a marginalidade, além de se estar cumprindo os ditames do Estatuto da Criança e do Adolescente (assim como de todos os demais documentos internacionais pertinentes aos direitos fundamentais das crianças e adolescentes), certamente se estará impedindo o aumento do índice de delinqüência infanto-juvenil. No momento em que o Poder Público responder concretamente ao seu dever institucional de assegurar a todas as crianças e adolescentes - com prioridade absoluta - o exercício dos direitos elementares da cidadania, indiscutivelmente caminharemos para contexto real inibidor da marginalidade e, de conseqüência, determinante de efetiva prevenção à criminalidade"[9].
Aduz-se que interpretações coerentes com a realidade
social brasileira e que objetivam a proteção integral aos adolescentes e a
prevenção à criminalidade se fazem presentes também em tribunais superiores[10], o que corrobora o pensamento de Miguel Reale, ao afirmar que:
"O trabalho do intérprete, longe de reduzir-se a uma passiva adaptação a um texto, representa um trabalho construtivo de natureza axiológica, não só por se ter de captar o significado do preceito, correlacionando-o com outros da lei, mas também porque se deve ter presentes os da mesma espécie existentes em outras leis: a sistemática jurídica, além de ser lógico-formal, é também axiológica ou valorativa"[11].
Não entendendo suficientes as argumentações até então
realizadas, deve-se considerar as disposições normativas constitucionais no que
diz respeito à proteção à criança e ao adolescente, pois a Constituição Federal
revela o plano normativo supremo, que determina e
origina as competências e interpretações de todas as expressões normativas, que
da norma constitucional recebem validade.
Do ponto de vista lógico e formal, a Constituição
Federal é a norma basilar de todo o ordenamento jurídico, que torna possível a
vivência do Estado Democrático de Direito, pois traça determinações principiológicas que influenciam a interpretação e a
experiência do Direito como um conjunto de regras gradativas e hierarquicamente
conectadas, por conseqüência normas
entre si logicamente concatenadas, revelando-se a coerência e a
subordinação entre elas.
Diante da concepção lógico-normativa do sistema
jurídico, em que a coerência do sistema normativo com a ordem constitucional é
condição sine qua non para sua validade, ajunta-se a questão da
tridimensionalidade do ordenamento jurídico, que revela serem as normas
"momento culminante de um processo" (Reale),
que jamais estarão separadas dos fatos, razão de ser de sua criação, e ainda,
que em sua origem há conjunto valorativo que justifica a sua razão de ser.
Com base nestas assertivas, verifica-se que a
Constituição Federal, em capítulo específico, destinado à família, à criança,
ao adolescente e ao idoso, determina:
Artigo 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
"O ordenamento jurídico, enquanto expressão de uma experiência social e histórica, é constituído por múltiplos complexos normativos entre si relacionados.Tais complexos normativos acham-se em contínua transformação, havendo um que se põe como círculo envolvente dos demais: é o complexo normativo constitucional"[12], que condiciona a vigência e eficácia, assim como revela os caminhos interpretativos das demais normas jurídicas.
Sob esta perspectiva, o ordenamento constitucional,
por meio do artigo 227, apresenta conteúdo principiológico
que deve ser observado quando da interpretação e aplicação de outros complexo normativos, como são o Código Civil e o
Estatuto da Criança e do Adolescente.
Por si só, o
caput do artigo 227 apresenta o conjunto de direitos e garantias
fundamentais que o Estado há que concretizar, seja por meio de posturas
passivas, seja por meio de ações que priorizem a vida, a saúde, a alimentação,
a educação, o lazer, a liberdade e cultura, em suma, conjunto de atuações
estatais que concretizem a dignidade humana.
O valor dignidade humana está expresso enquanto
princípio fundamental, arcabouço do sistema jurídico constitucional, assim como
previsto especificamente no capítulo que trata da infância e juventude,
determinando a atuação dos agentes estatais, dos legisladores e aplicadores das
normas no sentido de garantir o que dispõe o caput do artigo 226.
Em seus parágrafos, há um que de forma determinante
apresenta a proteção especial às crianças e adolescentes,
e especificamente aos adolescentes, a garantia de pleno e formal conhecimento
da atribuição de ato infracional, e igualdade na relação
processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a
legislação tutelar específica (art. 226, parágrafo 3º., IV do CF). Há ainda a
necessidade de obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade
e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da
aplicação de qualquer medida privativa de liberdade, referindo-se, in casu, à medida de internação (226, parágrafo 3º., V,
CF).
Há ainda, em dispositivo diverso, norma de grande
influência sobre os ordenamentos infraconstitucionais. Trata-se
da inimputabilidade dos menores de 18 anos de idade, sujeitos que estão às
normas da legislação especial.
Estas disposições constitucionais, em sua
interpretação, por si só seriam suficientes para demonstrar que os menores de
18 anos sujeitam-se a uma legislação específica, e neste sentido, todo e
qualquer tipo de atuação, a esta legislação específica deve estar subordinada,
o que revela, em consonância com o parágrafo 3º, IV, que o procedimento para
apuração de atos infracionais deve estar disposto em
legislação que objetiva sobretudo a concretização dos valores e direitos
insertos no caput do artigo 226 CF.
Se dispositivos constitucionais apresentam a
possibilidade de punição para adolescentes infratores e de tomada de atitudes
que objetivam a sua proteção por meio de uma legislação especial, não teria
sentido a aplicação do Código Civil no que diz respeito à maioridade civil,
criando óbice à aplicação de medidas sócio-educativas. A aplicação do Código
Civil geraria uma interpretação de bloqueio, colidente com os dispositivos
constitucionais acima apresentados, uma vez que o Estatuto da Criança e do
Adolescente é a legislação apropriada para a garantia dos direitos da criança e
do adolescente.
Sintetiza Roberto Barbosa Alves que o
ECA,
“construído sobre a doutrina da proteção integral, exige obediência estrita à condição peculiar de seus destinatários e à garantia de prioridade absoluta (artigos 1º., 4º. e 6º.). Assim, ‘como as principais relações jurídicas entre o mundo infanto-juvenil e o mundo adulto encontram-se disciplinadas no micro-sistema criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a elas são aplicáveis às normas nele previstas. Somente deve incidir as normas do Código Civil, do Código de Processo Civil, etc., quando houver lacuna no Estatuto da Criança e do Adolescente, e mesmo assim se não forem compatíveis com os seus princípios fundamentais"(Garrido de Paula, Paulo Afonso. Direito da criança e do adolescente e tutela jurisdicional diferenciada. São Paulo, RT, 2002, p. 83)[13].
Ademais, o Código Civil é a legislação que deve ser aplicada em caráter subsidiário, que reforça ainda mais o nosso posicionamento no sentido de que o Estatuto da Criança e do Adolescente é o ordenamento legal a ser aplicado a todos os adolescentes submetidos a medidas sócio-educativas.
Como argumenta o Procurador de Justiça Ricardo Moreira
Lins Pastl,
"as normas previstas no Estatuto da Criança e do
Adolescente possuem caráter manifestamente protetivos
aos interesses dos adolescentes, pautado na doutrina da proteção integral, de
forma a oportunizar uma almejada possibilidade de educação e ressocialização, dada a prática nociva de atos infracionais, através da aplicação de medidas
sócio-educativas, inclusive após completar a maioridade penal, mas desde que o
fato tenha sido cometido antes desta (artigo 104 do Estatuto da Criança e
Adolescente), atendendo a esta condição peculiar dos destinatários da norma, de
pessoas em formação.
Nesta senda, saliente-se que o procedimento
para aplicação de medidas sócio-educativas existe visando, em primeiro lugar, o
próprio interesse do adolescente a sua reinserção na
comunidade, na vida em sociedade, como modo de afirmar o primeiro ditame
consagrado no Estatuto da Criança e do Adolescente, que é, como referido, da
proteção integral à criança e ao adolescente, em consonância com a ‘Convenção
sobre os direitos da criança’, aprovada em 10/11/1989, da qual o Brasil foi um
dos signatários, conforme Decreto legislativo nº 28, de 14/91/1990 "[14].
Em razão de sua aplicação de forma subsidiária, não há razão para a alegação de uma provável antinomia entre diplomas legais (Código Civil e ECA), pois antinomia reside na existência de normas com igual hierarquia que apresentam dispositivos colidentes.
Para solucionar o problema no ordenamento jurídico,
pois este não pode apresentar lacunas ou deixar de produzir soluções para problema apresentados, existem formas para resolução de
antinomias.
Para Bobbio, antinomia é
"aquela situação na qual são colocadas em
existência duas normas, das quais uma obriga e a outra proíbe, ou uma obriga e
a outra permite, ou uma proíbe e a outra permite o mesmo comportamento. Mas a
definição não está completa. Para que possa ocorrer antinomia são necessárias
duas condições que, embora óbvias, devem ser explicitadas.
1) As duas normas devem pertencer ao mesmo
ordenamento. O problema de uma antinomia entre duas normas pertencentes a
diferentes ordenamentos nasce quando elas não são independentes entre si, mas
se encontram em um relacionamento qualquer que pode ser de coordenação ou de
subordinação".
(...)
2) As duas normas devem
ter o mesmo âmbito de validade. Distinguem-se
quatro âmbitos de validade de uma norma: temporal, espacial, pessoal e
material. Não constituem antinomia duas normas que não coincidem com respeito
a:
a) validade temporal: " É proibido fumar
das 5 às 7 " não é incompatível com : " É permitido fumar das 7 às 9
";
b) validade espacial: " É proibido fumar na
sala de cinema" não é incompatível com : " É permitido fumar na sala
de espera";
c) validade pessoal: " É proibido, a menor
de 18 anos, fumar" não é incompatível com " É permitido aos adultos
fumar";
d) validade material: " É proibido fumar
charutos " não é incompatível com "É permitido fumar cigarros"[15].
Com base nesta citação, podemos, a priori, concluir que não há entre o ECA e o Código Civil
qualquer relação de coordenação ou de subordinação. O novo Código Civil não
tratou especificamente da aplicação de medidas sócio-educativas, muito menos realizou
qualquer referência ao ECA a revelar qualquer relação
entre os ordenamentos, razão maior para afirmar a independência entre os
ordenamentos legais.
Ademais, há que se verificar se o Estatuto e o Código
Civil têm o mesmo âmbito de validade.
Mais uma vez, com base nas lições de Norberto Bobbio, podemos verificar que a possível antinomia
residiria no âmbito de validade pessoal,
ou seja, que o Estatuto e o Código Civil dispusessem determinações normativas
colidentes quanto à aplicação de medidas sócio-educativas aos menores de 18
anos.
Observa-se que o Código Civil apenas estabeleceu nova faixa etária para a
maioridade civil (18 anos), coincidindo com a maioridade penal. O legislador
optou transformar a capacidade de exercício para 18 anos, momento em que os
maiores de 18 anos passam a poder responder por seus atos e contrair direitos e
obrigações. No entanto, não há qualquer disposição normativa no Código Civil
que trate das medidas sócio-educativas existentes no Estatuto da Criança e do
Adolescente, ou seja, não há qualquer dispositivo que mencione a não aplicação
da legislação específica, o que revela a inexistência de qualquer relação de
subordinação ou de dependência entre os ordenamentos acima aludidos.
O que se deduz é que o Código Civil tratou tão somente
de estipular a maioridade civil, não fazendo qualquer alusão ao Estatuto da
Criança e do Adolescente, e, por conseqüência, não fazendo qualquer alusão à
aplicação em caráter excepcional das medidas sócio-educativas (aos menores
infratores) até os 21 anos de idade, assim como não fez qualquer alusão ao
Código Penal, quando apresenta como minorante a idade
de 21 anos, para a dosimetria da pena.
Isto nos leva a crer que não há qualquer antinomia
jurídica entre o Código Civil e o ECA, pois não são
ordenamentos incompatíveis que estejam disputando o mesmo âmbito de validade.
Ademais, vale lembrar mais uma vez que a Constituição Federal, como ordenamento
que define o âmbito de validade das demais normas, tratou de determinar que
adolescentes e crianças devem ser regidos por ordenamento legal específico,
razão por que não haveria motivos para que o Código Civil dispusesse acerca da
aplicação de medidas sócio educativas.
Vale, contudo, por amor à argumentação, salientar o
disposto no artigo 2º, parágrafo segundo da Lei de Introdução ao Código Civil,
que afirma: "A lei nova, quer
estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga
nem modifica a lei anterior".
Este dispositivo normativo, que objetiva prevenir
qualquer conflito entre normas,
apresenta solução específica, demonstrando que lei geral nova não tem o condão
de revogar a lei especial, mais antiga. Em outras palavras, o Código Civil, por
ser ordenamento legal que objetiva tratar das relações entre pessoas no seio
social, não tem por atribuição tratar dos adolescentes e crianças, nem muito
menos tem por pretensão trazer novas disposições normativas referentes aos
procedimentos por atos infracionais. Assim, evidente
fica que o Código Civil tem vigência e eficácia e que trouxe inovações quando à
maioridade civil. Todavia, não traz qualquer determinação que interfira na
aplicação e na interpretação do Estatuto da Criança e do Adolescente como um
todo.
Como bem argumenta Pastl,
"para que se cogitasse da ocorrência de revogação do texto legal menorista pelo Código Civil brasileiro, imperioso seria,
por primeiro, que esta disposição moderna houvesse modificado diretamente a
pretérita, ou, ainda, que contivesse disposições com esta
conflitantes ou colidentes (pela disciplina distintas, v.g.), o que não
se observa na espécie.
Acontece que o novo Código Civil não tratou,
justamente pela especificidade da temática, do ato infracional,
do respectivo procedimento para a sua apuração e menos ainda da aplicação ou da
execução das medidas sócio-educativas. Tampouco se pode extrair, pelo exame dos
diversos diplomas legais, que as disposições gerais contidas na lei civil
fundamental ora renovada sejam incompatíveis com as regras especiais do
Estatuto da Criança e do Adolescente - mesmo porque a eventual
incompatibilidade implícita entre duas normas não se presume, devendo, na
dúvida, ser consideradas conciliáveis -, o que retira qualquer plausibilidade
na compreensão acerca da revogação desta.
Se
a lei nova houvesse criado sobre o assunto da infância e juventude um sistema
completo e diferente do estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente,
estupefação não existiria de que todo o sistema teria sido afastado"[16].
Concluindo, descabido a corrente que objetiva dar uma interpretação restritiva e “encolhedora” ao Estatuto da Criança e do Adolescente, pois “lex posterior generalis non derrogat legi priori speciali”.
Temos que ter, como “operadores do direito”, a
responsabilidade e sensatez para interpretar o ordenamentos
jurídico, atividade que devemos realizar, considerando sempre as diretrizes
constitucionais. Certamente, se posições doutrinárias como a que contestamos
tomarem espaço no meio jurídico, no futuro, observaremos o recrudescimento dos
debates e argumentos a favor da diminuição da maioridade penal, justamente pela
falta de prevenção da criminalidade, que é um dos objetivos do
ECA.
Necessitamos de uma postura coerente com as
atribuições que atualmente o Ministério Público e o Poder Judiciário detêm. Não
podemos virar as costas para a sociedade e para as necessidades e anseios que
dela provêm. Devemos assumir uma posição que objetiva a realização dos direitos
e garantias fundamentais das crianças e dos adolescentes. Precisamos ter a
serenidade e perspicácia para interpretar o ordenamento jurídico consoante os
problemas sociais.
Como bem argumenta Plauto
Faraco de Azevedo:
"Diante da situação atual, degradante da condição
humana, não pode a Ciência Jurídica repousar no formalismo conceitual, fechando
os olhos à realidade. Quanto mais nesta apoiar-se, comprometendo-se com a
realização da solidariedade humana, tanto mais autêntica será. Necessita a
Ciência do Direito ultrapassar o "puramente"
jurídico, auscultando o pulsar da vida, que está a reclamar nova configuração
político-jurídica, inspirada pela ética da solidariedade, em que o homem
reencontre o humano, em si e no semelhante, não obstante o clamor, orquestrado
pela "grande" mídia, em favor de um neoliberalismo economicista,
divorciado da moral, centrado no lucro e benefício de poucos, em detrimento da
maioria, falazmente identificado com a modernidade.
Para que o jurista possa assumir posição consentânea com sua responsabilidade,
no grave quadro que se configura, tem que ser capaz de ir além da formação
positivista, que o quer operando como máquina de articulação e encadeamento de
conceitos, em nome de uma inventada "neutralidade científica" de seu
saber. O Direito não é ciência especulativa, mas prática, ensejando efeitos
sociais dramáticos. O exame atento e crítico da história do direito demonstra
que o esforço dos juristas tem buscado "conciliar as técnicas do
raciocínio jurídico com a justiça", ou ao menos com a aceitabilidade das
decisões, o que prova "a insuficiência, no Direito, de um raciocínio
puramente formal, satisfeito com controlar a correção das inferências, sem
realizar juízo de valor sobre a conclusão". Os conceitos, de que se serve
a linguagem, tanto jurídica quanto vulgar, desservem sua função quando
obscurecem a realidade a que aludem, ao invés de iluminá-la"[17].
Que possamos melhor compreender os textos jurídicos e melhor aplicá-los em conexão com a nossa realidade!
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ALVES,
Roberto Barbosa. O novo Código Civil e a
responsabilidade do adolescente infrator,
p. 2 (mimeo).
AZEVEDO, Plauto Faraco. Direito, justiça social e neoliberalismo.
São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999.
BOBBIO, Norberto. Teoria
do ordenamento jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense: 2002
PASTL, Ricardo Moreira Lins. Parecer em Habeas Corpus, número 70005971270 (mimeo)
REALE,
Miguel. Lições preliminares de direito.
São Paulo: Saraiva, 2002.
SOTTO MAIOR
NETO, Olympio de Sá. 1.2 – SIM À GARANTIA PARA A INFÂNCIA E JUVENTUDE DO
EXERCÍCIO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ELEMENTARES DA PESSOA HUMANA. NÃO À
DIMINUIÇÃO DA IMPUTABILIDADE PENAL (mimeo).
Maioridade civil não extingue aplicação de medida
sócio-educativa. http:// www.abmp.org.br/noticias.php?origem=2eid-1768,
capturado em 24/04/2003.
Módulodeinternamento.http://www.hipernet,ufsc.br/foruns/crianca_e_adolescente/documentos/si_doss.1htm,
capturado em 24/04/2003.
Princípios
orientadores e aplicação. http://www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2282, capturado
em 24/04/2003.
1. Azevedo,
Plauto Faraco. Direito,
justiça social e neoliberalismo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p.
21.
2. Outra questão que tem sido levantada se refere ao
módulo máximo de internamento de um adolescente infrator, fixado em 3 anos, com
limite em 21 anos de idade para sua liberação. A matéria, embora admita
avaliação, merece algumas reflexões frente ao conjunto do sistema penal do
imputável, apresentado como solução ao controle da criminalidade. Deve-se
considerar, por exemplo, que, para um adulto merecer três anos
"fechado", sem perspectiva alguma de atividade externa, sua pena
deverá situar-se em um módulo não inferior a 18 anos de reclusão, eis que
cumpridos 1/6 da pena (que são os mesmos
três anos a que se sujeita o adolescente) terá direito ao benefício. Não se
pode desconsiderar, no caso do adolescente, que três anos na vida de um jovem
de 16 anos representa cerca de 1/5 de sua existência, em uma fase vital de
transformações, na complementação na formação de sua personalidade, onde se faz
o possível a fixação de limites de valores.
Mesmo aqueles jovens de remoto prognóstico de
recuperação merecem tal oportunidade, até porque, adequadamente tratados, são
animadores os resultados obtidos. A experiência que se tem tido nestes mais de
seis anos de Estatuto da criança e do adolescente é altamente satisfatória, a
ponto de se poder afirmar que um índice de 70 a 80% dos jovens adequadamente
atendidos nas medidas sócio-educativas que lhe são impostas,
obtém plenas condições de uma completa em integração social ao final (In:
Módulo de internamento.
http://www.hipernet,ufsc.br/foruns/crianca_e_adolescente/documentos/si_doss.1htm,
capturado em 24/04/2003.
3.
Princípios orientadores e aplicação
http://www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2282,
capturado em 24/04/2003.
4. Há que se ressaltar que o projeto de lei nº
6.923/2002, atualmente em tramitação na Câmara, propõe aumento do prazo de
internação máximo para seis anos, com o limite etário para a perpetuação da
medida, que passa a ser de 24 anos.
5. In: O
novo Código Civil e a responsabilidade do adolescente infrator, p. 2 (mimeo).
6.
Princípios orientadores e aplicação.
ttp://www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2282, capturado em 24/04/2003.
7
Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e
aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense: 2002, p. 124-25.
8 Reale, Miguel. Lições preliminares de direito. São
Paulo: Saraiva, 2002, p. 292.
9 Sotto Maior Neto, Olympio de Sá. 1.2 – SIM À GARANTIA PARA
A INFÂNCIA E JUVENTUDE DO EXERCÍCIO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ELEMENTARES DA
PESSOA HUMANA. NÃO À DIMINUIÇÃO DA IMPUTABILIDADE PENAL (mimeo).
10. "A maioridade civil,
reduzida pelo novo código civil de 21 para 18 anos, não gera a extinção
de medidas sócio-educativas aplicadas pela prática de atos infracionais.
A posição unânime é dos integrantes da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça,
que somente na sessão do julgamento de hoje (2/4) apreciou 10 pedidos de habeas corpus
para jovens que atingiram a maioridade civil, sob alegação de constrangimento
ilegal.
Os magistrados consideram que Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) de forma expressa estabelece o limite temporal de 21 anos
para a aplicação de medidas sócio- educativas, não
trazendo referência alguma à maioridade civil.
Ao denegar habeas corpus na
sessão de hoje, o desembargador Sérgio Fernando Vasconcelos Chaves
destacou que o ECA estabelece um critério lógico para a aplicação de
medidas sócio-educativas, importando a idade em que o ato infracional
ocorreu. "As medidas sócio-educativas têm conteúdo pedagógico, e até os 21
anos considera-se a pessoa em desenvolvimento".
Em voto lavrado em outro pedido impetrado, o
desembargador Luiz Felipe Brasil Santos salientou que "entendimento
diverso conduziria à nefasta impunidade, uma vez que estariam inteiramente
desprovidos de sanção autores de atos infracionais
cometidos às vésperas de implementar 18 anos" (In: maioridade civil não
extingue aplicação de medida sócio-educativa.
http://www.abmp.org.br/noticias.php?origem=2eid-1768, capturado em 24/04/2003).
11. Reale, Miguel. Lições
preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 293.
12. Reale, Miguel. Lições
preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2002.
13. Pastl, Ricardo Moreira
Lins, Procurador de Justiça. Parecer em Habeas Corpus,
número 70005971270 (mimeo).
14 Pastl, Ricardo Moreira
Lins, Procurador de Justiça. Parecer em Habeas Corpus,
número 70005971270 (mimeo).
15. Bobbio,
Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.
Brasília: Editora universidade de Brasília, 1997, p. 86-88.
16. Pastl, Ricardo Moreira
Lins, Procurador de Justiça. Parecer em Habeas Corpus,
número 70005971270 (mimeo).
17.
Azevedo, Plauto Faraco. Direito, justiça social e neoliberalismo. São Paulo : Revista dos
Tribunais, 1999. p. 57-8.
NOTA SOBRE
A AUTORA
Daniella S. Dias é
Doutora em Direito da UFPE, Professora da Graduação e Mestrado da UNAMA,
Professora da Graduação e Mestrado da UFPA e Promotora de Justiça.