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Vistos

 

Trata-se de procedimento iniciado mediante representação do Ministério Público do Estado de São Paulo, com espeque nos artigos 191 e seguintes da Lei Federal 8069/90, para apuração de múltiplas irregularidades na unidade educacional "30" da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor-FEBEM, situada em Franco da Rocha, objetivando a imposição, se o caso, das penalidades aludidas no artigo 97 daquele Diploma Legal.

Consta da peça inicial, em breve síntese, que a unidade de internação em testilha não oferece condições mínimas para o cumprimento da medida de internação nos moldes previstos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo que o seu funcionamento vem sendo marcado por crassa violação de preceitos basilares insertos na legislação constitucional e ordinária pertinentes, a saber:

a) megaunidade com estrutura arquitetônica assemelhada a de presídio de segurança máxima, dotada de celas com características prisionais, inviabilizando que o atendimento dos adolescentes ocorra de forma personalizada e em grupos reduzidos, como expressamente preconiza o artigo 94, III, da Lei 8069/90;

b) precárias condições de higiene, salubridade e habitabilidade da unidade, porquanto dotada de celas de dormir frias, escuras, com forte cheiro de umidade, desprovidas de suficiente ventilação e iluminação (descompasso com o artigo 94, VII, da Lei 8069/90);

c) inexistência de programa pedagógico efetivo, submetendo-se os adolescentes ali internos a situação de ociosidade, já que insuficientes as atividades de escolarização, profissionalização, bem como culturais e de lazer (dissonância com o disposto no artigo 94, X e XI, Lei 8069/90) ;

d) atendimento psicológico e social deficitários, mercê do quadro defasado de profissionais técnicos militantes no local, com prejuízo ao disposto nos artigos 94, XIII e XIV da Lei 8069/90 ;

e) acolhimento de adolescentes das mais diversas regiões do Estado, sem qualquer observância do disposto no artigo 124, VI, da Lei 8069/90, que assegura àqueles jovens o direito de permanecerem internados em localidade próxima das respectivas famílias, dificultando/ inviabilizando a visitação semanal pelos responsáveis e, por consequência, frustrando o trabalho de fortalecimento dos vínculos familiares (artigo 124, VII, Lei 8069/90);

f) inobservância do disposto no artigo 123 do Estatuto da Criança e do Adolescente, porquanto a unidade não contempla rigorosa separação dos adolescentes por critérios de idade, compleição física e gravidade do ato infracional, abrigando tanto adolescentes primários como reincidentes em infrações graves, bem como jovens de diversas faixas etárias, encontrando-se ainda misturados adolescentes de perfil problemático, que apresentam liderança negativa, com outros que não têm o mesmo perfil, gerando o comprometimento de todo o processo sócio-educativo;

g) precariedade das condições de segurança/contenção, ante o extenso histórico de fugas relatadas, em descompasso com o que determina o artigo 125 da Lei 8069/90;

h) deficiências no tocante aos atendimentos médicos, psicológicos, psiquiátricos e odontológicos que, em afronta ao estatuído no artigo 94, IX, da Lei 8069/90, deixaram de ser ministrados aos internos;

i) dinâmica da unidade estritamente repressiva, pois além de se constatar que os adolescentes permaneciam a maior parte do tempo trancados, sem atividades, os internos apresentaram denúncias generalizadas de maus tratos e espancamentos pelos funcionários do local, com as quais a direção da unidade estaria compactuando.

A representação foi instruída com os documentos de fls 35/284.

Proferido o despacho inaugural (fls 286/296), foi recebida a representação ministerial e, com esteio no artigo 193, § 3º da Lei 8069/90, foi concedido o prazo de 30 (trinta) dias para que a FEBEM regularizasse as anomalias descritas na inicial. Na mesma oportunidade, o Juízo impôs liminarmente a medida de afastamento provisório do então dirigente da unidade "30" (Antônio Fernando da Silva), assim o fazendo com arrimo no artigo 191, parágrafo único do citado Diploma Legal.

Ainda por ocasião da decisão inaugural, foi determinada a citação da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) bem como de todos os dirigentes que, na hierarquia administrativa interna da instituição, ocupavam cargos diretivos com plenos poderes para mudar o estado de coisas na unidade de internação ora sob enfoque para que, nos moldes autorizados pelo artigo 192 da Lei 8069/90, apresentassem defesa escrita, no prazo de 10(dez) dias.

A FEBEM interpôs agravo de instrumento e recurso calcado na Lei 8437/92, em sede dos quais o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu por suspender a decisão de afastamento liminar do dirigente da unidade (fls 314/317), bem como aquela que estabeleceu o prazo de 30 (trinta) dias para a remoção das irregularidades na unidade educacional em testilha (fls 827/828).

Devidamente citados (mandados de fls. 319/322), a FEBEM e os demais representados (Presidente da Fundação Estadual, Diretora Técnica da FEBEM bem como os diretores   ) apresentaram defesa, respectivamente a fls. 510/559, 720/727 e fls 388/404, com arguição de matéria preliminar.

O Ministério Público, em réplica, ofertou a manifestação de fls. 776/810.

Instadas as partes a indicarem eventuais provas que ainda pretendessem produzir (fls.821), sobreveio a publicação do Provimento 739/00 do Conselho Superior da Magistratura, estabelecendo que a Corregedoria Permanente sobre as unidades da FEBEM situadas fora da Capital passaria a ser da competência do Juízo da Infância e Juventude da Comarca respectiva. De conseguinte, seguiu-se despacho judicial ordenando a remessa do feito para o Juízo de Franco da Rocha (fls 879).

Ante a notícia de que a unidade "30" houvera passado por reformas, o Juízo de Franco da Rocha ordenou a suspensão do feito pelo prazo de 60 (sessenta) dias, possibilitando que nova inspeção " In loco" fosse realizada pelo Ministério Público, bem como para que a FEBEM esclarecesse sobre eventual hipótese de desativação da unidade (fls. 883).

Novos documentos são juntados aos autos pelo "parquet" (fls. 886/1269.

Seguem-se petições do Ministério Público requerendo que a Equipe Técnica do Departamento de Execuções da Infância e Juventude (DEIJ) realize inspeção no local (fls. 1270/1271 e fls. 1280/1281), pedido deferido a fls. 2176.

No curso da ação, o "parquet" pede , em abril de 2001, o afastamento provisório do dirigente da unidade à época, L. (fls. 1283/1308). O pedido foi apreciado pela decisão de fls. 2318/2326, que acabou por deferir o afastamento provisório do dirigente, pelo prazo de 180 dias, oportunidade em que foi ordenado que se procedesse à sua citação.

Devidamente citado acerca do afastamento provisório, o diretor da unidade educacional "30", L. a, apresentou resposta a fls. 2333/2353.

O relatório  da visita realizada na unidade pelos integrantes da Equipe Técnica do DEIJ está acostado a fls. 2442/2449.

O agravo de instrumento interposto pela FEBEM contra a decisão que fixou o prazo de 30 (trinta) dias para reformas na unidade teve julgamento de mérito pela Egrégia Primeira vice-presidência em março de 2001, concedendo-se à Fundação Estadual o prazo máximo de 180 dias para que empreendesse as reformas necessárias na unidade "30" ( fls. 2452/2455).

Em face da resposta ofertada pelo representado  L, o Ministério Público apresentou réplica a fls. 2458/2469.

Proferido despacho saneador (fls. 2407/2409), foram rebatidas todas as preliminares invocadas, ocasião em que o Juízo deferiu a produção de prova documental e testemunhal.

Durante a instrução, foram ouvidas em audiência judicial as testemunhas arroladas pelo representado L (fls. 2933 e seguintes).

O órgão ministerial requereu a prorrogação do afastamento provisório de  L.  até sentença  final (fls. 2971/2976). Concedido prazo para que o representado se manifestasse sobre o pleito (fls. 2985/2988), o Juízo de Franco da Rocha houve por bem deferir o pedido ministerial (fls 3203).

O Ministério Público, em alegações finais (fls 3216/3305), após extensas considerações em torno da procedência deste procedimento, requereu, no tocante aos representados que ainda permanecem no quadro funcional da FEBEM ( ), a aplicação da medida de afastamento definitivo de qualquer cargo no âmbito da FEBEM ( artigo 97, I, "c", Lei 8069/90 ) e, em contrapartida, a imposição da medida de fechamento definitivo da unidade educacional "30" da FEBEM, com arrimo no artigo 97, I, "d", daquele Diploma Legal, estabelecendo-se prazo para a desativação da unidade e a consequente transferência dos jovens ali internados para outras unidades educacionais que atendam os requisitos da Lei 8069/90.

A Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor apresentou suas razões finais a fls. 3328/3331, sendo que os representados  A e L   manifestaram-se a fls 3339/3346.

Os demais representados, embora regularmente intimados, deixaram transcorrer "in albis" o prazo para manifestação.

Sobreveio despacho do Juízo de Franco da Rocha (fls 3362) remetendo os autos para este Juízo, mercê do Provimento 786/02 do Conselho Superior da Magistratura, que deslocou novamente para o Departamento de Execuções da Infância e da Juventude a Corregedoria Permanente das unidades da FEBEM de Franco da Rocha.

Os autos aportaram no DEIJ em outubro do ano corrente (fls 3363), seguindo-se a decisão de fls 3365/3367, oportunidade em que, dado o lapso temporal considerável transcorrido desde o ajuizamento da ação, a data da última inspeção judicial realizada ( maio/2000) e as reformas que a FEBEM alegava ter efetuado na unidade durante o curso da ação (fls 3328/3331), o Juízo houve por bem, para assegurar que o julgamento final estivesse calcado na realidade contemporânea da unidade de internação sob enfoque, converter o julgamento em diligência, seguindo-se a realização de nova inspeção judicial " in loco" ( em 30 de outubro de 2002) e a juntada da ata de visita respectiva a fls 3368/3376, bem como do relatório apresentado pelos integrantes da Equipe Técnica do Juízo (fls 3383/3387), que acompanharam os magistrados do DEIJ na aludida inspeção judicial.

O Juízo concedeu regularmente prazo para que as partes se manifestassem sobre a prova acrescida , inclusive sobre os documentos juntados pelo "parquet" a fls 3307/3316 e o acórdão de fls 3319/3323 (decisão de fls 3366, itens "6", "7" e "8").

O Ministério Público ofertou suas razões finais a fls 3388 e verso.

Sobrevém informação da FEBEM (ofício de fls 3450) dando conta do período em que os representados atuaram na direção e supervisão da unidade educacional "30", conforme requisitado no despacho de fls 3365/3367.

A FEBEM apresentou suas derradeiras alegações a fls 3418/3421, sendo que os demais representados, embora regularmente intimados para o mister, não apresentaram qualquer manifestação, conforme certidão constantes dos autos.

É O RELATÓRIO. DECIDO.

Primeiramente, cabe acentuar que todas as preliminares invocadas pelos representados nas respectivas peças de defesa já foram repelidas por ocasião da decisão saneadora de fls 2544/2549.

No mérito, a procedência desta ação é inafastável.

Impende salientar que se cuida de ação fundada em procedimento expressamente previsto nos artigos 191 e seguintes do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal 8069/90), tendo como escopo último a imposição de sanção à entidade e aos dirigentes que comprovadamente descumprem as obrigações impostas pelos artigos 94, 123, 124 e 125 daquele Diploma Legal.

Pois bem. A representação traz descrição cristalina e articulada das irregularidades e anomalias verificadas na unidade de internação "30" da FEBEM, instalada em Franco da Rocha, apresentando correlação clara entre os fatos ali apontados e a obrigação legal , daqueles que se assentam nos cargos de direção da FEBEM, de assegurar o cumprimento dos requisitos básicos estatuídos no Estatuto da Criança e do Adolescente.

De seu turno, os artigos 94, 123, 124 e 125 do Estatuto da Criança e do Adolescente enumeram as obrigações legais mínimas que devem ser atendidas pelas entidades que acolhem adolescentes inseridos em medida de internação. Não tem a Administração do Estado a faculdade de optar ou não pelo seu cumprimento, vale dizer, a atuação do administrador, neste caso, não é discricionária, mas está vinculada ao cumprimento da lei.

Quando estão em jogo direitos fundamentais, mormente aqueles afetos à área da infância e juventude, erigidos como de absoluta prioridade pelo legislador constitucional ( artigo 227, "caput", Constituição Federal) não foi conferido ao administrador margem de liberdade para decidir, segundo critérios de "conveniência e oportunidade", se irá resguardá-los ou não.

O Executivo, portanto, deve sempre sujeitar-se ao império da legalidade. A margem de liberdade conferida à Administração Pública que, na gestão da coisa pública, pode agir segundo critérios de oportunidade e conveniência, não tem o espectro e a dimensão que por vezes pretende ela dar. A atuação do ente público está limitada por princípios constitucionais que norteiam seus passos, elencados no artigo 37 "caput" da Constituição da República, dentre os quais o da estrita legalidade.

De conseguinte, quando o Judiciário intervém para assegurar que sejam preservados direitos fundamentais da pessoa e para exigir o cumprimento da Lei ele não interfere em seara indevida do Executivo, porque foi essa a missão outorgada ao Judiciário pela Constituição. A atuação do Judiciário, em hipóteses tais, decorre do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional inserto no artigo 5 º, inciso XXXV da Constituição da República, pelo que " nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito individual será excluída da apreciação do Poder Judiciário".

Sobre o tema, é torrencial a jurisprudência. A guisa de exemplo, cite-se julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, nos autos do agravo de instrumento nº 74.599/0-9, relatado pelo ínclito Desembargador Álvaro Lazzarini, em caso semelhante ao que ora se cuida, assim se pronunciou:

"De início deve ser afastada a argüição de violação à regra constitucional de independência dos poderes, até porque a fiscalização das entidades governamentais que se destina ao atendimento a criança e adolescente foi expressamente prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e cometida ao Poder Judiciário, ao Ministério Público e Conselhos Tutelares (art.95), tudo de forma a patrocinar harmônica atuação dos poderes no sentido de garantir os direitos e garantias constitucionais dos destinatários daquela específica norma legal que também dispõe sobre as obrigações carreadas àquelas instituições (art.94)…."

No mesmo diapasão, o teor do acórdão resultante do julgamento de apelação interposta pela FEBEM de sentença proferida por este Departamento de Execuções em procedimento judicial apuratório de irregularidades no âmbito da instituição (Apelação Cível nº 79.666-0/1-00). Seu eminente relator, o Desembargador Mohamed Amaro, assim arrematou a questão:

"…… A aplicação das medidas às entidades e a seus dirigentes decorre de imposição legal (ECA, art.193, § 3º e 4º), após regular procedimento instaurado por portaria da autoridade judiciária ou representação do Ministério Público ou do Conselho Tutelar (ECA, art. 191). Assim, é a lei que fixa a competência do Poder Judiciário para impor medidas administrativas a entidades de atendimento a criança e adolescentes. Não há, pois, de se falar em violação do princípio da independência e da harmonia entre os Poderes, ou em ingerência indevida do Poder Judiciário em atribuições inerentes ao Executivo, pois, a autoridade judiciária, no caso em apreço, tão somente exerceu a função fiscalizadora que lhe foi imposta em lei específica.

Demais, o artigo 97 do Estatuto, estipula as medidas cabíveis às entidades para o caso de descumprimento das medidas elencadas no artigo 94, podendo ser penalizadas, sem prejuízo da responsabilidade civil e criminal de seus dirigentes e prepostos, com advertência, afastamento provisório e definitivo do dirigente, e ainda, fechamento da unidade ou interdição de seu programa…….."

Com efeito, desde a oportunidade da primeira inspeção judicial realizada por este Juízo na unidade educacional "30" de Franco da Rocha, em maio de 2000 (ata de inspeção acostada a fls 3368/3376 dos autos), já se vinha apontando que o local não oferecia condições mínimas para o cumprimento da medida sócio-educativa de internação. O quadro que a realidade então espelhava era caótico, notadamente pelas circunstâncias a seguir resumidamente elencadas:

a) precárias condições de higiene, salubridade e habitabilidade da unidade, porquanto dotada de celas de dormir frias, escuras, com forte cheiro de umidade, desprovidas de suficientes ventilação e iluminação (descompasso com o artigo 94, VII, da Lei 8069/90);

b) inexistência de programa pedagógico efetivo, submetendo-se os adolescentes ali internos a situação de ociosidade, já que insuficientes as atividades de escolarização, profissionalização, bem como culturais e de lazer (dissonância com o disposto no artigo 94, X e XI, Lei 8069/90);

c) atendimento psicológico e social deficitários, mercê do quadro defasado de profissionais técnicos militantes no local, com prejuízo ao disposto nos artigos 94, XIII e XIV da Lei 8069/90 ;

d) acolhimento de adolescentes das mais diversas regiões do Estado, sem qualquer observância do disposto no artigo 124, VI, da Lei 8069/90, que assegura àqueles jovens o direito de permanecerem internados em localidade próxima das respectivas famílias, dificultando/inviabilizando a visitação semanal pelos responsáveis e, por consequência, frustrando o trabalho de fortalecimento dos vínculos familiares (artigo 124, VII, Lei 8069/90);

e) inobservância do disposto no artigo 123 do Estatuto da Criança e do Adolescente, porquanto a unidade não contempla rigorosa separação dos adolescentes por critérios de idade, compleição física e gravidade do ato infracional, abrigando tanto adolescentes primários como reincidentes em infrações graves, bem como jovens de diversas faixas etárias, encontrando-se ainda misturados adolescentes de perfil problemático, que apresentam liderança negativa, com outros que não têm o mesmo perfil, gerando o comprometimento de todo o processo sócio-educativo;

f) precariedade das condições de segurança/contenção, ante o extenso histórico de fugas relatadas, em descompasso com o que determina o artigo 125 da Lei 8069/90;

g) deficiências no tocante aos atendimentos médicos, psicológicos, psiquiátricos e odontológicos que, em afronta ao estatuído no artigo 94, IX, da Lei 8069/90, deixaram de ser ministrados aos internos;

h) dinâmica da unidade estritamente repressiva, pois além de se constatar que os adolescentes permaneciam a maior parte do tempo trancados, sem atividades, os internos apresentaram denúncias generalizadas de maus tratos e espancamentos pelos funcionários do local, com as quais a direção da unidade estaria compactuando. Assim, no tocante ao disposto nos artigos 94, IV e 124, V da Lei 8069/90 ( oferecimento de ambiente de respeito e dignidade ao adolescente), que decorre de princípio basilar inserto no artigo 5º do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, observaram os magistrados, durante a inspeção, que os adolescentes queixavam-se de maus tratos, espancamentos, insurgindo-se contra a forma indigna e aviltante de tratamento a que eram submetidos.

Portanto, as irregularidades e falhas existentes na unidade educacional "30" da FEBEM vêm sendo apontadas, de forma minudente, há mais de (02) dois anos pelos órgãos incumbidos legalmente de sua fiscalização. Contudo, as inspeções técnicas levadas a efeito no transcurso deste procedimento revelaram que, inobstante o significativo lapso de tempo transcorrido, a situação de fato permaneceu praticamente inalterada.

Com efeito, da última e recentíssima inspeção judicial realizada, em 30 outubro do ano corrente ( fls. 3368/3376), extraiu-se que:

as dependências da unidade continuavam em situação precária, sem as mínimas condições de higiene e salubridade ( item "2", ata judicial de fls. 3368/3376);

o quadro de técnicos ( assistentes sociais e psicólogos ) permanecia defasado, trazendo prejuízos à regularidade dos atendimentos dispensados aos internos e ao trabalho de estreitamento dos vínculos familiares (artigo 94, V, ECA), conforme item "05" da ata respectiva;

a separação dos adolescentes, na forma preconizada pelo artigo 123 da Lei 8069/90, continuava sendo inobservada, abrigando a unidade tanto adolescentes primários como reincidentes em atos infracionais graves, bem como jovens de diversas faixas etárias, entre 14 a 21 anos incompletos (item "04", ata de inspeção judicial);

a unidade permanecia abrigando jovens provenientes das mais diversas regiões da Capital e do Estado, às avessas do artigo 124, VI, ECA, inviabilizando, por consequência, a visitação semanal pelos responsáveis, dada a distância da unidade e a falta de recursos dos familiares. Constatou-se, na visita de inspeção judicial de outubro de 2002, que aproximadamente 62% da população da unidade é oriunda do Interior do Estado, inclusive de Comarcas longínquas (itens "¨6" e "7" da ata aludida);

a situação de ociosidade apontada nas atas anteriores de inspeção judicial não fora regularizada pois, embora ofertada escolarização aos internos por algumas horas diárias, praticamente o restante do dia os jovens permaneciam trancados nas celas ou no pátio das alas, sem outras atividades pedagógicas complementares, nem tampouco cursos profissionalizantes. Observou-se, portanto, que a atuação da direção e funcionários continuava mais direcionada à contenção e repressão do que à aplicação de proposta pedagógica efetiva ( itens 08 e 09, ata de inspeção citada);

queixas generalizadas dos adolescentes de que recebiam tratamento indigno e vexatório já que, além das agressões praticadas por funcionários da unidade, eram colocados habitualmente, como forma de castigo, na chamada "tranca" (permanência, por dias a fio, em quarto escuro e diminuto, em situação de total isolamento ).

Aliás, na última inspeção judicial realizada, constataram os magistrados deste Departamento de Execuções a situação estarrecedora relatada nos tópicos "10" e "12" da ata de inspeção retroaludida, que ora transcrevo:

"na oportunidade da visita, os magistrados dirigiram-se às celas de dormir dos jovens , tendo notado que grande parte deles estava trancada nos quartos, em total situação de ociosidade, relatando-se que, naquele dia, não tinham ainda saído de seus quartos para quaisquer atividades, em razão do que externavam revolta e descontentamento com a situação a que eram submetidos. Observou-se, assim, desorganização administrativa na direção da unidade, inexistindo sistematização de regras claras e uniformes sobre o tratamento dispensado aos adolescentes ali internados, misturando-se indevidamente adolescentes que ostentavam problemas disciplinares com outros recém-chegados na unidade, todos indistintamente recebendo a mesma forma sancionatória de tratamento : confinamento nas celas e quase total ociosidade….".

Não por outra razão, a conclusão categórica lançada na última inspeção judicial realizada na unidade "30" de Franco da Rocha foi no sentido de que "… não foi observada, em suma, a implantação de qualquer proposta pedagógica ou programa sócio-educativo efetivos no local ( a não ser a incipiente escolarização ), permanecendo praticamente inalterado o "status quo" encontrado nas anteriores visitas de inspeção judicial…( item 15)"

Similarmente, do minudente relatório da visita efetuada pelos integrantes do Setor Técnico do Juízo em outubro de 2002, acostado a fls. 3383/3387, depreende-se que os jovens continuaram sendo submetidos a condições subumanas, sem atividades, trancados em suas celas na maior parte do tempo, sem atendimento técnico adequado pelos assistentes sociais e psicólogos da Fundação, com precárias condições de higiene, sem suficiente atendimento médico, somadas às inúmeras denúncias de uso de violência e agressões físicas por parte da monitoria, provocadoras de ambiente de tensão, ansiedade e agitação vividas pelos adolescentes, com sério prejuízo ao processo reeducativo que deveria estar em curso.

As conclusões apresentadas pelos "experts" do Juízo, no minucioso relatório  descritivo da visita por eles efetuada, deixam claramente evidenciadas as características sombrias que marcam o perfil da unidade "30" de Franco da Rocha:

"……Trata-se de unidade com características prisionais, seja pela estrutura física, seja pela rotina imposta aos internos, condições totalmente inadequadas para o desenvolvimento de um programa efetivo de ressocialização nos termos da legislação vigente………… Assim, a rotina da casa não oferece qualquer possibilidade para que os jovens ocupem seu tempo produtivamente, permanecendo os internos, em sua grande maioria, ociosos e reclusos nas celas, exceto quando são encaminhados a escolarização, sem quaisquer atividades ou perspectivas de mudança na sua situação.

Evidencia-se ainda a ausência de uma proposta unificada e conjunta dos diferentes níveis de atuação, voltados para a efetiva ressocialização dos internos, em conformidade com os artigos 94, 123 e 124 do ECA….." (fls 3383/3387 dos autos).

De forma simétrica, representantes do Ministério Público, durante todo o transcurso deste procedimento, vêm periodicamente efetuando minuciosas inspeções " in loco", de sorte que juntaram aos autos farta documentação, consubstanciada, sobretudo, por procedimentos internos administrativos instaurados com esteio no artigo 201 da Lei 8069/90, para apuração das gravíssimas irregularidades constatadas pelo órgão ministerial em sua diligente fiscalização exercida sobre a unidade em comento. Além dos citados documentos, acostaram aos autos imagens em vídeo e material fotográfico atinentes à situação encontrada na unidade educacional em tela, contendo inúmeros depoimentos de adolescentes que, ouvidos pelo próprio "parquet", denunciaram múltiplas agressões por parte de funcionários da Fundação Estadual atuantes na unidade de Franco da Rocha.

Há clara demonstração, pois, de que os direitos dos adolescentes estão sendo flagrantemente pisoteados, mediante submissão a condições vexatórias e que atentam contra a dignidade humana, até mesmo por conta das graves denúncias de severas agressões contra aqueles jovens, valendo lembrar, sobre a questão, o forte imperativo inserto no artigo 5º da Lei 8069/90, dispondo que "… nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, crueldade e opressão, punido, na forma da lei, qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais…"

Ora, a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor e seus agentes, no considerável tempo transcorrido entre o início da ocupação do local (maio de 2000) até a presente data, tiveram a oportunidade de adequar a unidade aos parâmetros legais ou, ainda, se entendessem que tal adequação não era possível, competia-lhes transferir os adolescentes para outro local apropriado ao cumprimento da medida sócio-educativa de internação.

Contudo, a despeito da unidade de Franco da Rocha ter sido instalada há aproximadamente 02 (dois) anos e meio, sem ainda olvidar que este procedimento foi instaurado em junho de 2000, nenhum avanço foi demonstrado na remoção das gravíssimas irregularidades existentes, conforme já exaustivamente salientado. Muito pelo contrário: a situação de ofensa aos regramentos básicos estabelecidos nos artigos 123, 124 e 125 da Lei 8069/90 perpetuou-se, protraiu-se no tempo, de sorte que o estado de coisas encontrado na unidade da FEBEM ora sob enfoque é indicativo de omissão dos dirigentes no cumprimento das obrigações que lhe são impostas por lei, na medida em que estes têm o dever de agir para coibir violação aos direitos fundamentais dos adolescentes.

À evidência, não colhem as teses exculpatórias lançadas pela Fundação Estadual que, mais uma vez, pretende subtrair-se ao cumprimento de seu dever legal, alegando que houve "justa causa" para a transferência emergencial dos adolescentes à unidade de Franco da Rocha, decorrente de rebelião e destruição de unidades sediadas no "Complexo Tatuapé" da FEBEM no ano de 2000.

Se é verdade que a Fundação Estadual pode eleger este ou aquele local para que adolescentes cumpram a medida sócio-educativa de internação, a opção feita não a isenta de submeter-se aos imperativos da lei, pois continuará sempre adstrita ao cumprimento dos requisitos expressamente previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, que devem nortear a conduta das entidades que desenvolvem programas de internação.

Ao Judiciário cabe, no exercício do seu poder de fiscalização das unidades de internação, averiguar se a unidade e condições existentes estão ou não em consonância com os requisitos insculpidos nos artigos 94, 123, 124 e 125 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim não fosse, toda e qualquer conduta e comportamento da Administração estaria legitimado, sempre sob o manto da discricionariedade. Seria a liberdade irrestrita, a total arbitrariedade do Administrador Público que, alegando dificuldades ou situação emergenciais, subtrair-se-ia com facilidade ao cumprimento da lei.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, em vigor desde os idos de 1990, preconiza claramente a descentralização do atendimento em pequenas unidades como diretriz básica a ser adotada pelo Estado. A FEBEM, há anos, vem se escudando no mesmo argumento: alega dificuldades por conta dos prazos de licitação a que está sujeita para realização de obras e reformas de suas unidades bem como, por outro lado, dificuldades para construir novas unidades pela Capital e Interior.

Ora, não se pode admitir que, em mais de 12 anos de vigência da Lei Federal 8069/90, a FEBEM, na condição de Fundação Pública constituída para disponibilizar atendimento adequado ao jovens inseridos em medidas sócio-educativas, ainda persista em empregar invariavelmente as mesmas desculpas para deixar de cumprir o seu papel legal.

Vale lembrar, sobre a questão, as significativas palavras do insígne Desembargador Cunha Bueno que, nos autos da Apelação Cível nº 32.465.0/0, assim se pronunciou:

"… Ora, ou a Legislação que protege o adolescente é cumprida ou não é. Não há se alegar dificuldades no seu atendimento, o que consiste verdadeira admissão da inobservância da lei…"

Destarte, tendo ficado sobejamente demonstrado que a unidade educacional "30" de Franco da Rocha vem sendo palco a cenário de desrespeito e de ofensas a princípios básicos estabelecidos na Constituição da República e na Lei Federal 8069/90, em detrimento dos direitos fundamentais dos adolescentes ali internados, privando os jovens que ali permanecem de serem beneficiados com a implementação de processo reeducativo pleno e eficaz a que fariam jus, a procedência da ação emerge de forma cristalina.

Insofismável é, portanto, a responsabilidade da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor e de seus agentes, cabendo ao Juízo examinar quais medidas, dentre aquelas previstas no artigo 97, I, da Lei 8069/90, se afiguram mais adequadas no caso vertente.

O documento de fls. 3393 indica que o Sr.  B, citado para a ação na qualidade de Presidente da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, já não mais integra os quadros da FEBEM a qualquer título, esvaziando a possibilidade, na hipótese de procedência da ação, de aplicação judicial das sanções estatuídas no artigo 97, I, da Lei 8069/90, vez que já completamente desligado da instituição o citado dirigente.

Similar é a situação da dirigente  L , encartada no pólo passivo, uma vez que, à época da instauração deste procedimento, assentava-se nos escalões superiores da FEBEM, atuando como Diretora Técnica da Fundação, noticiando o documento de fls 3393 que não mais ocupa qualquer cargo no âmbito da instituição. Assim, igualmente esvaziou-se para ela a utilidade deste processo, já que resultaria totalmente inócua, em sede de sentença, eventual aplicação das medidas previstas no artigo 97, I, da Lei 8069/90.

Destarte, ambos os representados supracitados devem, mercê do disposto no artigo 267, VI e § 3º do Código de Processo Civil, ser excluídos da pólo passivo desta ação, extinguindo-se o processo para eles sem julgamento do mérito.

Diversa, contudo, é a situação dos demais dirigentes que figuraram como representados neste procedimento.

O dirigente  .... assentou-se no cargo de direção da unidade em comento de julho de 2000 a maio de 2001 (documento de fls 3450).

Com efeito, o dirigente tinha o dever de agir para coibir/obstar a continuidade da calamitosa situação daquela unidade. Contudo, nos (10) dez meses que atuou na gestão da unidade não demonstrou quaisquer ação concretas para fazer cessar a marcante violação de direitos fundamentais em marcha no local, permitindo, com sua omissão, que fosse perpetuado o quadro de irregularidades existentes.

Revelou, pois, aquele dirigente, verdadeira desídia na administração da unidade em comento, uma vez que tinha plenas condições de influir para alterar a realidade de fato da unidade de internação que lhe estava subordinada, mas nada fez.

Cabe consignar que a inclusão do representado L no pólo passivo da ação decorreu de decisão judicial proferida pelo Juízo da Infância Juventude de Franco da Rocha (fls 2318/2326). Sobreleva destacar que foram conferidas ao representado, no curso do processo, todas as garantias constitucionais do contraditório e da mais ampla defesa, uma vez que foi regularmente citado para a ação e teve ampla oportunidade para defender-se dos fatos que lhe foram imputados. Não merece guarida, portanto, a impugnação da defesa quanto à sua inclusão no pólo passivo, discussão essa já exaustivamente enfrentada pelo Juízo de Franco de Rocha quando proferida a decisão saneadora de fls 2544/2549.

No tocante ao representado  F, permaneceu no cargo de dirigente geral de todas as unidades do "Complexo de Franco da Rocha" desde setembro de 1999 até março de 2002 ( conforme documento de fls 3450), tendo sob sua supervisão e subordinação a unidade "30" ora enfocada. Na hierarquia administrativa interna da FEBEM, tinha o dever de agir para coibir a continuidade da calamitosa situação em curso naquela unidade. Contudo, quedou-se inerte, em clara demonstração de negligência e omissão, deixando de tomar medidas concretas para superar as irregularidades e arbitrariedades alhures elencadas.

Demais disso, F não conta com antecedentes judiciais favoráveis, revelando a certidão de fls 3390 que tal representado já exercera anteriormente cargos de direção/supervisão em outra unidade da FEBEM e, como decorrência, figurou no pólo passivo de processo judicial que tramitou perante este Juízo (PA 21/99), também calcado nos artigos 191 e seguintes da Lei 8069/90, tendo sofrido, por sentença prolatada em novembro de 2000, mercê dos fatos tratados naqueles autos, a imposição da medida de afastamento definitivo no tocante ao exercício de cargos de direção no âmbito da FEBEM (artigo 97, I, "c", Estatuto da Criança e do Adolescente).

Pois bem. Dentre as medidas expressamente previstas no artigo 97, I, da Lei Federal 8069/90, passíveis de serem aplicadas pelo Judiciário às entidades de atendimento, extrai-se que um dos aspectos da tutela judicial de mérito perseguida em ações deste naipe é a imposição de sanção aos dirigentes que comprovadamente descumprem obrigações dos artigos 94, 123, 12 e 125 daquele Diploma Legal. No caso em apreço, tendo em conta o comportamento omisso dos dirigentes citados, que deixaram de exercer efetivo controle sobre a unidade ora sob enfoque, subtraindo-se ao exercício do poder-dever legal de agir para sanar as gravíssimas irregularidades que se estenderam e se agravaram , a outra solução não se pode chegar senão a de impor àqueles dirigentes - justamente pela ineficiência e omissão na administração da unidade de internação em voga, com nefastos desdobramentos para os adolescentes ali internos - a medida de afastamento definitivo de qualquer cargo de direção na FEBEM (artigo 97, I, "c", Lei 8069/90).

Tal medida se mostra adequada e necessária no caso vertente, pois o espiríto do legislador, ao prever a possibilidade do Judiciário aplicar ao dirigente o afastamento definitivo, foi o de coibir que dirigentes que ( por ação ou por omissão) violam os comandos legais insertos no Estatuto da Criança e do Adolescente, sejam mantidos em quaisquer cargos de direção em entidades de atendimento a adolescentes.

A propósito, sobre a plausibilidade do afastamento do exercício de cargos diretivos no âmbito da FEBEM, cai como luva recente acórdão do E. Tribunal de Justiça de São Paulo que julgou decisão deste Departamento impondo o afastamento de dirigentes militantes naquela instituição. Trago à baila excertos do julgado extraído dos autos da Apelação Cível nº 84.553-0/8-00, relatada pelo Desembargador Mohamed Amaro:

" ………..A prova dos autos indica que a recorrente FEBEM, por seus servidores que detinham poderes para participar da execução da medida de internação e a quem foi igualmente aplicada a medida de afastamento definitivo, executava as medidas sócio-educativas na unidade em condições desrespeitosas e atentatórias à dignidade dos internos, violando seus direitos fundamentais.

A alegação dos dirigentes da Fundação, segundo a qual apenas o presidente da FEBEM representa a instituição, não pode ser aceita, pois se refere a coisa diversa. Uma coisa é a representação da fundação, outra é a atribuição, para diversos servidores, entre os quais os apelantes, de competência administrativa para execução das medidas de internação, com atividades pedagógicas mínimas e com a adoção de providências necessárias para a garantia da higidez física e mental dos internos, coibindo qualquer forma de violência contra os adolescentes. Se o servidor tem competência para tal, mas não o faz, pratica a infração administrativa, o que implica a imposição de sanção. Assim, nenhum reparo merece a sentença quanto ao afastamento definitivo imposto aos apelantes. A medida é de ser aplicada aos servidores da FEBEM que demonstraram inaptidão para o trabalho em instituição de execução de medida sócio-educativa de internação…….."

Por derradeiro, deve ser analisada a situação da representado  A.

Em primeiro lugar, caber destacar que não estão em discussão, no bojo destes autos, eventuais ações ou omissões do representado durante a sua exígua gestão na unidade educacional "30", até porque assumiu a direção do local, conforme consta dos autos, em 24 de maio de 2000, tendo sido realizada a inspeção judicial que apurou as irregularidades descritas na representação logo no dia seguinte (25 de maio de 2000), de tal sorte que o representado permaneceu pouquíssimos dias à testa da unidade antes de ser proferida a decisão inicial que lhe impôs o afastamento liminar.

Há de ressaltar-se, portanto, que o afastamento liminar e provisório do representado foi determinado com base nos argumentos expostos na decisão inaugural de fls 286/296, máxime porque pendiam contra ele sérias acusações no sentido de que compactuava com a prática de agressões, maus-tratos e espancamentos contra adolescentes, perfil aquele que seria incompatível com a função por ele exercida à época, qual seja, a de dirigente de uma unidade educacional da FEBEM.

Na oportunidade, o Juízo, sem realizar qualquer prejulgamento em torno dos fatos alegados, mas unicamente tendo em mira que a permanência do representado à testa da unidade durante o curso da instrução, diante da possibilidade de serem verdadeiros os sérios fatos contra ele articulados, poderia comprometer o regular funcionamento da unidade e até mesmo sujeitá-la a potencial risco de fechamento em sentença final de mérito, houve por bem, de forma preventiva, impor liminarmente o seu afastamento provisório quanto ao exercício de cargos de direção no âmbito da FEBEM.

Na hipótese dos autos, portanto, bastou para a concessão da tutela liminar (afastamento provisório do diretor) a prova pré-constituída juntada com a representação. Estavam indubitavelmente presentes o "fumus boni iuris" e o " periculum im mora".

Contudo, os pressupostos que autorizam o deferimento da medida liminar, de cunho provisório e cautelar, são diversos daqueles exigidos para a concessão da tutela definitiva.

A tutela definitiva apenas poderá ser deferida se estiver lastreada em prova judicial robusta, colhida sob o crivo do contraditório, cercada da mais ampla defesa, não mais bastando, nesta fase, a mera "fumaça do bom direito".

No caso "sub judice", embora de indiscutível gravidade os fatos atribuídos ao representado, tanto que alicerçaram o seu afastamento liminar, não se pode olvidar que as acusações que pesam contra ele basicamente foram produzidas em inquérito policial ora em andamento, bem como em processo criminal ainda não julgado, atualmente em curso perante a 15ª Vara Criminal da Capital (doctos de fls 3307/3316).

Evidentemente, figurar o representado  A como réu em processo criminal no qual se lhe imputa participação ativa em crime de tortura em unidade da FEBEM (processo supra referido) representa indício forte de perfil incompatível com a função de dirigente de unidade educacional da FEBEM. Contudo, ao que se tem notícia, referida ação não foi ainda julgada, sequer se sabendo se a instrução foi concluída, já que não foram juntados a estes autos quaisquer depoimentos testemunhais colhidos perante o Juízo Criminal que, porventura, incriminassem o representado.

Portanto, os indícios que pesam contra o representado, apesar de serem fortes, são insuficientes para servirem de supedâneo à imposição da medida prevista no artigo 97, I, "c" da Lei 8069/90 (afastamento definitivo de cargos de direção no âmbito da instituição), cuja aplicação não pode prescindir da existência de prova judicial sólida, colhida sob o crivo do contraditório, acerca dos fatos imputados ao dirigente.

Revelar-se-ia temerária a imposição da pena de afastamento definitivo sem prova judicial conclusiva de seu concreto e efetivo envolvimento nos fatos que lhe são atribuídos. Afinal, há princípios constitucionais que não podem ser esquecidos. Condenar o representado, em sentença judicial, à medida de afastamento definitivo ( artigo 97, I, "c", Lei 8069/90) unicamente com base em elementos produzidos em sede de inquérito policial e processo criminal em andamento atentaria contra o princípio constitucional da presunção de inocência.

Em verdade, imprescindível teria sido que, no curso da instrução deste processo, houvesse se realizado a colheita de prova judicial em torno dos fatos que são atribuídos ao representado, o que lamentavelmente não ocorreu.

Destarte, por considerar insuficiente o arcabouço probatório produzido nestes autos, outra solução não resta senão a de impor o decreto de improcedência no tocante ao representado  A

Tal circunstância, contudo, não impedirá que a atuação do representado, para os fins dos artigos 191 e seguintes da Lei 8069/90, seja apurada em processo futuro e distinto desde que, na eventual condição de dirigente, surjam novos fatos indicativos de sua responsabilidade, até porque a entidade governamental de atendimento (FEBEM) e seus dirigentes estão sujeitos à fiscalização permanente deste Departamento de Execuções (Provimentos 739/00 e 786/02 do Conselho Superior da Magistratura) .

Derradeiramente, no que diz respeito à Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, a medida pleiteada pelo órgão ministerial - o fechamento da unidade educacional - afigura-se realmente imperiosa.

Não bastasse a expressa previsão legal que autoriza a imposição judicial da medida de fechamento (artigo 97, I, "d", Lei 8069/90), é torrencial a jurisprudência de nossos Tribunais que confirma a efetiva possibilidade de sua aplicação. O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em análise recursal de decisão proferida por este Departamento de Execuções em sede de procedimento instaurado para apuração de irregularidades na chamada "Unidade de Atendimento Inicial" da FEBEM (UAI), enfrentou o tema de modo a espancar quaisquer dúvidas. Destaco os seguintes tópicos do V. acórdão, resultante do julgamento da Apelação Cível nº 83.292-0/9-00, relatado pelo eminente Desembargador Borelli Machado:

"………..A tese de defesa desenvolvida pela apelante vem, basicamente, esculpida na impossibilidade do Poder Judiciário, por meio de tutela jurisdicional, intervir na atuação discricionária da Administração Pública, posto que, com isso, violaria o princípio constitucional da Independência dos Poderes. A questão tem sido suscitada com certa freqüência em ações de competência da Câmara Especial, cuja finalidade é a imposição de obrigação de fazer à Administração Pública a fim de que sejam satisfeitos direitos e garantias conferidas às crianças e aos adolescentes, tanto pela Constituição Federal quanto pelo estatuto da Criança e do Adolescente. Em suma, nestes casos, imputa-se omissão do Estado em garantir, de forma concreta, o atendimento adequado de direitos e garantias de que são titulares as crianças e os adolescentes, proporcionando, de outro lado, segurança e tranqüilidade à sociedade.

Seria extremamente cômodo negar-se tal possibilidade sob o argumento de que a concessão de tutela específica em face da Administração Pública implicaria indevida intervenção do Poder Judiciário na atuação discricionária garantida, também constitucionalmente, à Administração Pública. O poder discricionário, delimitado por Hely Lopes Meirelles como aquele que o Direito concede à Administração, de modo explícito ou implícito, para praticar atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo (Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo, 17ª edição: Malheiros Editores, 1992, p.102), não pode, por certo, servir de escudo ao Administrador, legitimando o descumprimento de deveres impostos à Administração e, conseqüentemente, desrespeitando direitos subjetivos dos cidadãos.

Bem por isso, é função essencial do Poder Judiciário, por intermédio da atividade jurisdicional, reconhecer os direitos subjetivos dos jurisdicionados e lhes conceder tutela útil e efetiva. No caso em testilha, a possibilidade de atuação do Poder Judiciário de modo a impor medida aflitiva ao Administrador é ainda mais flagrante. Isto porque foi o Juízo da Infância e da Juventude, por expressa previsão legal, investido do poder de fiscalização sobre as entidades governamentais e não governamentais que se dedicam ao atendimento dos direitos da criança e do adolescente.

Dispõe o artigo 95 do ECA que "as entidades governamentais e não governamentais, referidas no artigo 90, serão fiscalizadas pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público e pelos Conselhos Tutelares". E, entre as medidas a serem adotadas no caso de desrespeito das obrigações impostas por lei, estabelece-se a possibilidade de fechamento da unidade de atendimento governamental ou interdição do programa (artigo 97, I, "d", do ECA), por ato judicial e após o trâmite de processo em que se garantem os princípios do contraditório e da ampla defesa (artigos 191 a 193 do ECA). Fácil perceber que, na hipótese, a alegada ingerência do Poder Judiciário no Poder Executivo decorre, acima de tudo, de expressa previsão normativa.

Assim, a prevalecer o entendimento esposado pela apelante estar-se-ia admitindo, por absurdo, a inconstitucionalidade de grande parte dos preceitos legais contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente no tocante à política de atendimento das crianças e dos adolescentes.

Conclui-se, portanto, pela total viabilidade do provimento jurisdicional dado pelo Departamento de Execuções da Infância e da Juventude……

Diante de tão graves e reiteradas irregularidades mantidas pela entidade de atendimento governamental, não se poderia esperar do órgão fiscalizador medida que não tivesse conteúdo contundente. Correta, na oportunidade, a adoção da medida de fechamento……."

Com efeito, a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) deixou de promover as reformas e obras necessárias à regularização das graves anomalias verificadas na unidade de internação em testilha, conforme lhe competia, inobstante as inúmeras oportunidades conferidas. Não pode alegar que lhe faltou tempo para tanto, pois em seu favor teve o longo período de dois anos e meio, já que existente a unidade educacional de Franco da Rocha como unidade de internação de adolescentes desde maio de 2000.

A unidade "30" de Franco da Rocha, apesar de rotulada "educacional", trata-se, em verdade, de um grande complexo prisional, com dependências e estrutura arquitetônica assemelhadas a de um presídio de segurança máxima.

A inserção de adolescentes submetidos a medida de internação em estabelecimentos carcerários fere inúmeros princípios norteadores do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como desrespeita resoluções do CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) e do CONDEPE ( Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente), órgãos responsáveis pela fixação das diretrizes das políticas públicas na área da infância e juventude (artigo 88, II, Lei 8069/90).

Por primeiro, insta relembrar que o Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza como diretriz fundamental que o processo de recuperação dos adolescentes ocorra em unidades de pequeno porte, com número reduzido de jovens. Tal é o mandamento expresso no artigo 94, III, da Lei 8069/90, "in verbis":

"Art. 94. As entidade que desenvolvem programas de internação têm as seguintes obrigações, entre outras:
…………………………………………………
III- oferecer atendimento personalizado, em pequenas unidades e grupos reduzidos………………………………….."

Não por outra razão é que o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), em plena harmonia com o legislador federal, ao regulamentar a execução da medida sócio-educativa de internação prevista na Lei 8069/90, preconizou como política de atendimento em sua Resolução 46, de 29/10/96 que "…nas unidades de internação será atendido um número de adolescentes não superior a quarenta…".

Contudo, em total descompasso com os preceitos legais e as deliberações dos órgãos competentes, a megaunidade "30" de Franco da Rocha vem hoje abrigando mais de 300 (trezentos) adolescentes (por ocasião da inspeção judicial de outubro/2002, registrava-se a população de 337 jovens), o que inviabiliza a implementação de qualquer proposta pedagógica ou reeducativa eficaz aos adolescentes que ali se encontram custodiados.

Em segundo lugar, conclui-se inarredavelmente que manter adolescentes em grandes estabelecimentos prisionais, tais como o de Franco da Rocha, é tornar letra morta a disposição contida no artigo 185 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Afinal, se o legislador quis, de forma tão peremptória, impedir a permanência de adolescentes em distritos policiais, por prazo maior de cinco dias, logicamente viu como absurda e inadmissível a hipótese de cumprirem medida sócio-educativa de internação em locais que, apesar de supostamente educacionais, mascaram verdadeiro regime presidiário, de mero confinamento e ociosidade, desprovidos de qualquer programa sócio-educativo eficiente.

Em verdade, não é a primeira vez que o Executivo investe, de forma equivocada, na construção de um grande complexo para internação de adolescentes e colhe consequências amargas por ter se desviado dos imperativos legais. Basta recorrermos à história dos grandes complexos da FEBEM, dotados de dinâmica prisional e estritamente repressiva, que serviram de palco a uma série de violação de direitos fundamentais durante o período em que funcionaram como unidade para cumprimento de medida de internação.

Não podem ser esquecidos os acontecimentos que marcaram a história da FEBEM nos últimos três anos , máxime a insistência do Executivo em manter algumas de suas megaunidades que, apenas depois de finais trágicos (rebeliões, mortes de adolescentes e funcionários e total destruição das dependências) acabaram, de forma inevitável, desativadas pela Administração Pública Estadual. Unidades daquele porte e caracterizadas pela sua prevalente dinâmica prisional , voltadas apenas ao confinamento e ao uso da violência como forma de contenção, só podem estar fadadas à extinção.

Aquela foi a cruel história que marcou os grandes complexos prisionais da FEBEM (Imigrantes, Parelheiros, Cadeião de Pinheiros, Cadeião de Santo André, dentre outros ), cujas realidades observadas à época em nada diferem do que hoje se vê nos grandes complexos da FEBEM de Franco da Rocha.

Contudo, a despeito de todos os processos judiciais que tramitaram por este Departamento de Execuções, em que a FEBEM figurou como ré, e das penalidades que sobre ela recairam, inclusive medidas de advertência e o fechamento de algumas de suas megaunidades, novamente a mesma dinâmica agora se reproduz na unidade de Franco da Rocha. Insiste a instituição no mesmo equívoco, em reproduzir modelo prisional fadado ao insucesso.

A unidade "30" de Franco da Rocha, como decorrência de sua própria inadequação estrutural, inviabiliza a execução de qualquer proposta reeducativa bem sucedida. Em suma: Não se observa em andamento, naquele local, qualquer trabalho voltado à recuperação dos adolescentes. Muito ao contrário: as anomalias atingiram ali proporções exorbitantes, submetendo-se os jovens internados a situação vexatória, degradante, valendo-se de dinâmica puramente repressiva, marcada pelo uso da violência, desprovida de qualquer caráter reeducativo, o que apenas contribui para acirrar nos internos sentimento de revolta pela forma brutal que são tratados.

Ora, desde os idos de 1973 a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor-FEBEM, instituída por lei, tem o encargo de executar, no Estado de São Paulo, as medidas sócio-educativas aplicadas a adolescentes. Não se poderia cuidar, portanto, de uma instituição inexperiente no trato da questão. Indesculpável que, da experiência de tantos anos, aliada às inúmeras sentenças judicias que teve contra si, insista no mesmo erro, violando direitos fundamentais expressos no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Manter adolescentes sujeitos ao cumprimento de medida sócio-educativa de internação em situação de mero confinamento, ociosidade e segregação punitiva, sem a implantação de atividades pedagógicas mínimas e das providências necessárias para garantia da higidez física e mental de seus internos é violar direitos basilares insculpidos na Constituição Federal e na Lei Federal 8069/90, não podendo o Judiciário, no exercício diuturno da fiscalização sobre as entidades de atendimento, compactuar com tal política de desrespeito a direitos fundamentais garantidos pela legislação pátria.

Destarte, a manifesta inadequação da unidade aliada à circunstância de que as graves irregularidades existentes não foram removidas são fatores que demandam a aplicação da medida de fechamento definitivo da unidade, conquanto não se presta à finalidade para a qual foi erguida, descumprindo, de forma contumaz, as obrigações que peremptoriamente foram impostas pela legislação federal regente da matéria.

Ante todas as razões expendidas, hei por bem :

JULGAR PROCEDENTE a representação para o fim de:

a) aplicar à Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor- FEBEM a medida de fechamento definitivo da unidade educacional "30", situada em Franco da Rocha, assim o fazendo com espeque no artigo 97, I, "d" da Lei Federal 8069/90, estabelecendo o prazo máximo de 90 (noventa) dias para a total desativação, prazo esse reputado suficiente para que a entidade promova a transferência dos adolescentes ali internados à unidades adequadas, que atendam os requisitos da Lei Federal 8069/90;

b) impor aos dirigentes   F e L  com arrimo no artigo 97, I, "c" da Lei 8069/90, e por todos os argumentos já expostos, a medida de afastamento definitivo no tocante ao exercício de cargos de direção no âmbito da FEBEM, em quaisquer dos setores da instituição;

2) JULGAR EXTINTO o processo sem exame do mérito para os representados B e L , já que não mais integram os quadros funcionais da FEBEM (artigo 267, VI e § 3º do Código de Processo Civil);

3) JULGAR IMPROCEDENTE a ação em relação ao representado  A, tendo em conta a insuficiência das provas carreadas aos autos.

Fixo o prazo de 05 (cinco) dias para que a atual Senhora Presidente da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor providencie o afastamento dos dirigentes aludidos, caso ainda ocupem quaisquer cargos diretivos na seara da instituição, quer em Franco da Rocha quer em outras unidades.

Para tanto, expeça-se desde logo mandado para intimação pessoal da Sra. Presidente da FEBEM, a partir do que iniciar-se-á o cômputo dos prazos estabelecidos nos itens "a" e "b" do tópico 1 retro.

P.R.I.C.

São Paulo, 17 de dezembro de 2002.

 

 

Mônica Ribeiro de Souza Paukoski
Juíza de Direito