CRIANÇAS E ADOLESCENTES SÃO CIDADÃOS?
Mário Volpi
Oficial de projetos do UNICEF.
Formado em filosofia e mestre em políticas sociais.
Nos últimos anos houve uma profunda transformação no campo dos direitos da criança e do adolescente em nosso país.
Esta transformação diz respeito ao reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos legítimos referendados formal e juridicamente por todas as instituições da sociedade.
O fato de serem reconhecidos juridicamente não representou, infelizmente, uma mudança na sua vida cotidiana, permanecendo uma distância, em muitos casos astronômica, entre o direito e a realidade. Entretanto, o fato de sairmos de uma coerência entre lei e realidade (o antigo Código de Menores era tão ruim quanto a realidade: não assegurava direitos; não respeitava a criança como pessoa humana; não a protegia das arbitrariedades; e não a concebia como um sujeito capaz e em desenvolvimento) para um situação paradoxal de termos uma lei protetora de direitos, que assegura a cidadania, e uma realidade onde a violação de direitos ainda persiste, coloca-nos diante de um grande desafio: melhorar a realidade sem piorar a lei.
Passados 11 anos da aprovação e entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente, muitas avaliações já foram feitas sobre o quanto crianças e adolescentes conquistaram de cidadania. Entretanto, parece-nos oportuno ampliar estas avaliações a partir de um conceito mais completo de cidadania que implica a garantia de, pelo menos, três dimensões:
a) o direito de ter direitos;
b) o direito de usufruir no cotidiano os direitos assegurados na lei; e
c) o direito de construir a cada dia novos direitos.
No aspecto legal, jurídico e formal, houve um significativo avanço somente pelo fato de que todas as crianças e adolescentes tenham sido promovidos de “menores” a sujeitos de direitos com prerrogativas específicas diante da lei por sua condição especial de pessoa em desenvolvimento.
Desde a Constituição Brasileira (1988), a Convenção do Direito da Criança da ONU (1989), o ECA (1990), A Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (LDB, 1996) até as assinaturas recentes de Acordos Internacionais de Direitos Humanos, Desenvolvimento Social, Relações de Trabalho e diversos outros instrumentos nacionais e internacionais, ficou assegurado o aspecto formal de cidadania, o direito de ter direitos. Seja como aluno de uma escola, como destinatário de um programa de assistência social, como aprendiz num curso de iniciação para o trabalho, ou simplesmente como cidadão brasileiro ou cidadão de um país membro das Nações Unidas, todas as crianças e adolescentes têm formalmente garantido o direito de ter direitos.
Um segundo aspecto da cidadania, e certamente o mais importante, é a garantia no cotidiano dos direitos assegurados na lei. Neste sentido, os indicadores sociais da última década apresentaram mudanças significativas e positivas em aspectos quantitativos, mas mantêm graves problemas nos aspectos qualitativos.
No campo da educação, o acesso ao ensino fundamental assegura a matrícula de 96% das crianças na escola; as vagas nas creches e na pré-escola foram ampliadas; cresceu a demanda pelo ensino médio, e em muitos municípios programas de ações complementares à escola foram implementados. Em relação à saúde, a cobertura dos programas foi ampliada com cobertura de 100% na vacinação de crianças em muitos municípios, por exemplo. A redução da mortalidade infantil, o aumento de programas direcionados à saúde dos adolescentes e diminuição de mortes por causas simples são outros exemplos de uma certa melhora quantitativa nesta área.
Mais especificamente no campo do trabalho infantil houve redução de crianças exploradas no trabalho e a ampliação de programas tipo “bolsa-escola”. O tema da exploração sexual e dos maus tratos também apresentou uma melhor abordagem, havendo, ainda que isoladas, políticas específicas para o enfrentamento da problemática. Haveria ainda uma série de indicadores que nos ajudariam a perceber uma leve expansão na oferta de serviços e benefícios às crianças e adolescentes do país.
No entanto, esta expansão na oferta de serviços não se faz acompanhar numa melhoria da qualidade das políticas para a infância. Persistem na educação graves indicadores de reprovação, abandono e defasagem na relação entre série e idade dos alunos do ensino público. Na base destes indicadores estão causas como falta de valorização dos professores, inadequação metodológica e falta de recursos de investimentos em pesquisa, capacitação e desenvolvimento de uma escola mais democrática, pluralista e criativa. As disparidades regionais e a concentração da política da saúde no trio médico, hospital e remédio impediu uma atenção especial às crianças e adolescentes no seu contexto comunitário, excluindo e/ou dificultando o acesso àquelas das zonas rurais, dos cinturões de pobreza e das comunidades mais pobres. A inexistência de políticas de cultura, esporte e lazer universais, com acesso assegurado inclusive aos mais empobrecidos, gera uma total falta de oportunidades para o desenvolvimento das habilidades pessoais, comunitárias e da identidade cultural dos diferentes grupos da sociedade.
Políticas de emprego e renda têm um impacto limitado na promoção da família como o espaço básico de proteção da criança, sendo que o desemprego e a baixa renda têm se transformado em elementos que corroboram para o aumento dos conflitos e da violência doméstica. No aspecto qualitativo é preciso destacar ainda que as diferenças de gênero e
etnia não foram enfrentadas com eficácia pelas políticas públicas. As crianças excluídas continuam sendo as negras, as meninas sofrem mais fortemente a violência dos adultos, e as regiões mais pobres do país continuam sem políticas reparadoras (no sentido de reduzir os danos das políticas discriminatórias e de exclusão social) ou de equalização.
Não faltam, portanto, elementos analíticos para demonstrar que o problema da qualidade das políticas para a infância encerra uma grave violação de direitos que amplia a distância entre os direitos assegurados na lei e os direitos concretizados na prática.
A construção de novos direitos, o terceiro aspecto citado em nosso conceito inicial de cidadania, tem esbarrado neste paradoxo que é o fato de termos direitos que estão na lei mas são violados no dia-a-dia. Mesmo assim, importantes iniciativas denominadas de protagonismo de crianças e adolescentes têm se desenvolvido em todo o país revelando um grande potencial desses novos sujeitos de direitos que aos poucos vão se firmando como atores sociais capazes de produzir novas relações sociais e desacomodam a relação vertical entre adultos e não adultos. Embora não tenha produzido novos direitos específicos, a participação de crianças e adolescentes nos processos de avaliação, sugestão e gestão de programas a eles destinados tem sido uma força fundamental para assegurar seus próprios direitos no dia-a-dia, condição essencial para consolidá-los e produzir novos. Por isso, num balanço preliminar, podemos afirmar que crianças e adolescentes ainda não são plenamente tratados como cidadãos. Mais que uma afirmação desalentadora, esta constatação deve servir para impulsionar processos de melhorias de qualidade das políticas públicas e ampliar os espaços de participação de crianças e adolescentes na sociedade como forma de construir cidadania plena.