DIREITOS E JEITOS DE SER CRIANÇA: UM OLHAR SOBRE A INFÂNCIA INDÍGENA NO RIO UAUPÉS/AM

 

 

Terezinha Weber

CIMI- Regional Norte I.

 

Maria das Dores Carvalho

Zenaide Ferreira Lima

AMARN.

 

Rosa Helena Dias da Silva

Universidade do Amazonas.

 

 

Contextualizando o trabalho: uma breve introdução

 

Este texto apresenta os resultados de um processo de pesquisa-levantamento realizado pelo CIMI (Conselho Indigenista Missionário) – Regional Norte I e AMARN (Associação de Mulheres do Alto Rio Negro) solicitada e apoiada pelo UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância). O trabalho foi construído a partir de observação direta em área e de depoimentos de membros da “comunidade educativa” de três comunidades indígenas da Região conhecida como Triângulo Tukano – Rio Uaupés. São elas: Juquira, Urubucuara e Ipanoré[2]. Realizou-se também entrevista-coletiva com mulheres da AMARN[3] e  elaboração de desenhos com as próprias crianças indígenas das comunidades visitadas. 

 

O foco do estudo centrou-se no povo Tukano (crianças na faixa etária de 0 a 6), procurando demonstrar, através de relatos e exemplos do cotidiano da infância indígena - na sua relação ampla com a sociedade da qual é parte, o que é ser criança na sociedade/cultura estudada, explicitando as concepções e os valores próprios deste modo específico de viver a infância, visando propiciar um diálogo e intercâmbio com as idéias e valores da sociedade não-índia (ocidental).

 

Segundo consta no livro Antes o mundo não existia (UNIRT/FOIRN, 1995),

 

“os povos Tukano orientais são os Tukano, Desana, Tuyuca, Karapanã, Makuná, Siriano, Miriti-Tapuyo, Pira-Tapuyo, Arapaço, Uanano, Cubeo, Bará e Barasana, que vivem ao longo do Rio Uaupés e seus principais afluentes: Tiquié, Papuri, Querari e Cuduiari, no Brasil e Pira-paraná e Apaporis, na Colômbia”.

 

Entendemos por “comunidade educativa” o conjunto de todas as pessoas envolvidas no processo de socialização/educação dos novos membros do grupo[4]. Também relevantes são as dinâmicas, ritos e processos pedagógicos construídos e vivenciados pelo grupo. A Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 20/11/1989) reconhece a importância desta “família ampla” ao afirmar no seu artigo 5º que os Estados membros “respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais ou, onde for o caso, dos membros da família ampliada, ou da comunidade, conforme determinem os costumes locais...”

 

Uma das preocupações que nortearam o processo de elaboração do trabalho foi o desafio de contribuir (através de um maior conhecimento sobre “desenvolvimento infantil” entre os índios) com a mudança de mentalidade frente à temática da diversidade cultural. Como sabemos, a “diferença” e o “direito à diferença” têm sido temas tratados como problemas (com teor de negatividade). Assim, colocamo-nos como tarefa uma inversão nesta maneira de ver a diversidade, passando a entendê-la e assumí-la como um valor: o valor da pluralidade de formas de vida e das diferentes qualidades de “ser-humano” no mundo hoje.

 

A participação da AMARN neste projeto justificou-se por dois ângulos distintos, porém complementares: 1º) a participação da mulher-mãe como uma das principais “agentes sócio-culturais” frente às necessidades infantis, principalmente com relação à delimitação etária definida na pesquisa (0 a 6 anos). Lembremos que nas comunidades indígenas não faz sentido falar de instituições do tipo “creche, parque infantil”...; 2º) a partir das mulheres organizadas em sua Associação, poderíamos criar uma atenção política específica no movimento indígena do Alto Rio Negro, qualificando o debate das políticas públicas em torno da questão da infância e do desenvolvimento infantil num ambiente multicultural. Em síntese, a AMARN é uma parceira de representatividade e legitimação, tanto pelo caráter político como pelo conhecimento privilegiado sobre o tema.

 

Trabalhamos com a categoria “ciclos de vida”, por entender que ela dá conta (de forma mais ampla e integral) das tradicionais divisões em “faixas etárias”. Segundo Meliá (1979), a criança da primeira infância – que vai do nascimento até a idade de andar - não é objeto de especificação sexual. Até lingüisticamente se tem comumente apenas um termo para indicar a criança (menino ou menina). A educação de hábitos motores, o estreito relacionamento com a mãe, são geralmente as principais características da educação para o desenvolvimento infantil neste período. A segunda infância apresenta duas etapas: a imitação da vida do adulto pelo jogo e a imitação pelo trabalho participado.

 

A criança indígena faz “em miniatura” o que o adulto faz. Vive no jogo a vida dos adultos. Aprende as atividades sociais rotineiras, participa da divisão social do trabalho e adquire habilidades de fazer e usar instrumentos e utensílios, de acordo com a divisão de sexo.

 

Dirigimos nosso olhar (tanto nas observações como nas entrevistas)  para o foco principal da pesquisa, que é a temática do desenvolvimento infantil, centrada em três eixos - o das relações; o da participação na vida do povo e o dos direitos infantis - a partir de questões como: concepção e nascimento (parto e aleitamento); relação mãe-criança; relação pai-criança; relação criança-comunidade; relação criança-criança; saúde, doenças e tratamentos; a brincadeira e o jogo enquanto processos pedagógicos de socialização e desenvolvimento; a “correção” (valores, normas, ideais, sanções); o conhecimento e a relação com a natureza; a presença e participação nos rituais e a participação nas atividades da família e da comunidade.

 

 

Sobre o direito de ser criança “no plural”

 

A Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989) chama a atenção para a questão da diversidade cultural ao explicitar, no seu preâmbulo, a idéia de que se tome “em devida conta a importância das tradições e os valores culturais de cada povo para a proteção e o desenvolvimento harmonioso da criança”.

 

A recente campanha do UNICEF (2001) intitulada Diga sim pela criança reforça a necessidade atual de lutas pela garantia do direito de toda criança de “ser livre para crescer com saúde, em paz e com dignidade” e pede aos Estados membros da ONU que defendam ações prioritárias visando, entre outras questões, a não discriminação de nenhuma criança ou adolescente por sua etnia, gênero, posição social e econômica, por ser portadora de deficiência física ou qualquer outra condição.

 

Os participantes do Encuentro de Niñez y Adolescencia Indígena, realizado em 2001, em Quito-Equador[5], explicitam em seu documento final, complexas preocupações ao manifestar

 

“que los cambios que históricamente se han sucedido en el ámbito nacional e internacional relacionados con procesos políticos, económicos, sociales y culturales no han garantizado ni el desarrollo equitativo sostenible, ni el respeto a la identidad cultural de los Pueblos Indígenas de la región”.

 

Reafirmam ainda seu entendimento de que “los Pueblos Indígenas, al inicio de este nuevo milenio continúan viviendo en condiciones de exclusión, discriminación, explotación y genocidio”. Demonstram seu convencimento acerca do presente e do futuro das crianças indígenas dizendo que este hoje e este amanhã  se construirão.

 

“tomando en cuenta el legado del pasado a partir de los compromisos colectivos y acciones de las familias, las comunidades, los pueblos y Estados, que impulsen, promulguen y desarrollen políticas públicas que incidan en la transformación de las condiciones adversas en que se desarrollan  nuestros pueblos”.

 

 

Na parte final do documento, figura dentre as resoluções:

 

“de conformidad con la Convención sobre los Derechos del Niño, generar procesos que permitan profundizar, enriquecer y sistematizar la visión de los Pueblos Indígenas, en particular de la niñez y adolescencia, sobre qué es ser niño y adolescente indígena y que implica ser titular de derechos en el marco de su cultura y en una dinámica de interculturalidad”.

 

 

Sobre um jeito de ser criança: a vida que nasce e se desenvolve no rio Uaupés

 

As questões inicialmente colocadas por UNICEF foram: mas o que é ser criança nas culturas indígenas? As crianças indígenas têm seus direitos assegurados  no cotidiano de suas vidas nas aldeias? Como os povos indígenas concebem e garantem esses direitos? Quais as questões novas que têm sido colocadas como desafio, a partir da situação histórica do contato colonizador e das conseqüentes relações conflituosas com a sociedade majoritária e hegemônica?

 

Partindo do pressuposto de que os povos indígenas garantem atenção integral às suas crianças e concretizam, em seu cotidiano, o conceito de desenvolvimento infantil, veremos algumas concepções e valores próprios deste modo específico de viver a infância.

 

Assumimos a concepção de desenvolvimento infantil enquanto processo amplo e integral de “tornar-se pessoa” (de aprender a viver) dentro de determinadas condições e contextos socioculturais. Ou seja, envolvendo tanto questões relativas à assistência e ao cuidado, como de saúde e educação, numa perspectiva de integralidade humana, como já demonstrou Vigostsky (1993), em seu livro Linguagem e pensamento. Nesta ótica, o desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e espiritual não são aspectos isolados da vida das crianças mas sim partes de um mesmo conjunto/totalidade. Entendemos que, desta forma, poderíamos melhor observar e conhecer uma experiência humana de diversidade acerca do desafio frente a garantia dos direitos da criança – a criança entendida não como um “projeto de adulto” mas como sujeito de direitos.

 

A região do Alto Rio Negro, local da presente pesquisa, caracteriza-se por sua constituição pluriétnica. Lá habitam mais de uma dezena de povos que possuem dinâmicas culturais próprias de relacionamento entre si. As informações acerca do número de povos do Rio Negro oscilam, dependendo das fontes de pesquisa. O livro Antes o mundo não existia, já citado, em sua página 7, registra que “a região do Rio Negro é o habitat tradicional de dezoito povos indígenas, oriundos de três famílias lingüísticas (Arawak, Tukano oriental e Maku)”. A antropóloga e pesquisadora Marta Maria Azevedo registra o número de 22 povos, segundo Relatório do IV Encontro Nacional de Educação – ANE/Cimi, dez/1997.

 

Segundo relato de Marta Maria Azevedo, 

 

o Rio Negro é uma região caracterizada pela exogamia lingüística. É uma realidade única no Brasil. Na organização social dos Tukano, um homem Desano, por exemplo, só pode casar com uma mulher de outro povo, considerando o ‘povo-língua’. Os povos rionegrinos têm um tipo de estrutura social que também é única no Brasil. Possuem diferentes graus de hierarquia (quase como se fossem ‘castas’). É o que chamamos, na antropologia,  de sib: linhagem que tem uma valorização hierárquica dentro de cada povo, que se define através de um reconhecimento de um ancestral comum. Por exemplo, entre os Tukano, existem 25 sibs determinados. Os sibs são chamados de ‘graus’ pelos índios. Na hierarquia, o grau mais alto é o dois, já que o sib um não existe mais. Isso opera um tipo de estrutura sócio-política na região e um tipo de especialização nas relações intergrupais. Os povos do Rio Negro são patrilineares e patrilocais, ou seja, quando uma mulher se casa, ela passa a habitar a aldeia do marido. O grupo local é formado pelo homem mais velho casado e os seus filhos homens casados. Se esse casal tem uma filha, quando ela se casar, vai morar em outro grupo local. A criança fala sempre a língua do pai.

 

Desta forma, respeitando a diversidade interna de povos e suas relações interétnicas, o estudo colocou ênfase no povo Tukano, adotando uma abordagem e perspectiva pluri e intercultural, tomando o cuidado de registrar as fontes, identificando os depoimentos ou observações relativas a outros povos.

 

 

Os cuidados com os pequenos: gravidez, parto e aleitamento

 

O processo de educação e de cuidados com o bem-estar da criança começa muito antes do próprio nascimento. Vejamos alguns depoimentos colhidos durante as visitas nas comunidades[6]:

 

“Nós todos tivemos pais e agora somos nós que temos filhos e família, formando novas famílias e tendo filhos. Vamos contar o que a gente faz, como educamos os filhos. Todos nós temos experiência de cuidar dos filhos e é com esta experiência que vamos contar para vocês. Os costumes dos índios, desde que a criança nasce, já é cuidada com muito carinho e atenção, com benzimentos e remédios caseiros tradicionais. A criança - desde a nascença - a gente já começa a acompanhar a vida dela. Agora vamos contar como é de 0 a 6 anos” (Benjamim Carvalho - Tukano, líder da comunidade de Juquira).

 

 “Antes do nascimento, do parto, no tempo da gravidez é que se inicia a educação e cuidados com a criança através de benzimento da criança e da mãe, para que o filho ou a filha nasça sadia. Procuramos o benzedor que saiba benzer bem. Através do benzimento, a criança nasce bem, sem doença. Ajuda também para que a mãe não sofra no parto e não tenha complicação. Já benze tudo: o lugar também. Após o nascimento, também benze. Quando o casal vai tomar banho também benze. Benze tudo: antes de nascer e depois do parto. Depois do primeiro banho também benze. Também a alimentação é benzida. Assim é que nossos filhos nascem. Fazemos assim para eles não adoecer. Tem vezes que o benzedor não acerta, que não consegue curar. Às vezes também o benzedor não está perto, não tem ninguém e passa uma dificuldade muito grande para nascer. Os pais ficam desesperados. Antigamente só tinha benzedor. Hoje em dia temos também o Agente de Saúde”. (Idalino Fontes Vieira, Tukano da Comunidade de Juquira).

 

“Depois que nasce cortam o umbigo da criança. Dura seis dias e sara o umbigo. Para não infeccionar ou sair o umbigo, tem que benzer urucum para passar no umbigo. Antes de tomar banho, tem um uso especial de cigarro, breu, fazendo defumação até o porto - local do banho. As crianças param de mamar aos 3 anos. Podemos reparar que as crianças, quando são sadias, elas brincam muito e são felizes e muito danadas. A partir de 3 anos a menina já começa a ajudar a mãe fazendo coisas leves. O menino também ajuda o pai e a mãe” (Benjamim Carvalho, Tukano de Juquira).

 

 “Nossos filhos têm que educar com calma, sem estar gritando com eles. Quando os pais educam com gritos, falando alto, com raiva, as crianças já sentem. Desde a barriga, na gravidez, já podemos educar os filhos. Já vai falando com a criança. Com dois, três anos, já pode mandar fazer as coisas mais leves e eles já vão assumindo seus trabalhos” (Lázaro Vieira, Tukano de Juquira).

 

 “Desde criança nós, a mulher da gente cuidava bem da criança. Depois do parto, o marido ajuda a cuidar da esposa, prepara alimentos para dar para ela. Sempre tratei bem minha mulher depois do parto. Outros homens também cuidam bem porque a mulher ainda não pode fazer muita coisa, pegar quentura depois do parto. Com um certo tempo, a criança já pode ser levada para a roça. Em cada roça eu fazia a casinha, tinha rede da criança e levava os brinquedos deles. Por isso, a criança já acostuma logo cedo a fazer os trabalhos” (Nelson, Tariano de Urubuquara).

 

Quando a criança nasce, já tem um nome, o pajé já dá um nome, é ele que benze. O segundo filho já é outro nome, o terceiro filho já é outro. É assim! O homem também tem resguardo. Quando eles vão tomar banho, é no igarapé, não é no rio. Benze toda comida: beiju, peixe, os animais também. Se não benze, ele [a criança] fica doente, é o encanto. Então tudo isso nós temos cuidado, principalmente no parto, a pessoa não vai tomar banho à toa” (Depoimento coletivo durante entrevista na AMARN).

 

 

Vivendo e aprendendo: a força pedagógica do exemplo, do trabalho e das brincadeiras

 

Ao enfocarmos a questão do “como se aprende a viver”, percebemos que, mesmo dentro da diversidade de conteúdos e formas construídos pelos povos indígenas, podem ser observados aspectos que se repetem. Assim, esta recorrência (de atitudes, de modos de atuar, de práticas e valores) sugere serem estas algumas das  características gerais da educação para o desenvolvimento da criança indígena: aprende-se a viver dentro da vida cotidiana; adquirem-se os conhecimentos necessários para a vida, com o pai, a mãe e a comunidade; aprende-se pelo exemplo e pela experimentação. A tradição cultural dos antepassados é valor fundamental e base do fazer pedagógico; preserva-se a tradição da oralidade; valoriza-se o trabalho, como meio educativo e como inserção na vida do grupo; o valor fundamental da terra é afirmado constantemente; aprende-se a conhecer e respeitar a natureza.

 

Destacam-se, como princípios da ação pedagógica para o desenvolvimento infantil, a liberdade, a alegria e o prazer de viver. O que podemos perceber no contato direto com a realidade indígena e através de relatos de diferentes experiências, é que a criança aprende brincando, num clima de ampla liberdade, e que o trabalho possui significado diferente do que entendemos em nossa sociedade.

 

Agemiro Fontes, Tariano da comunidade de Ipanoré, fala da liberdade que as crianças têm na aldeia, de viver na comunidade.

 

“Não é como na cidade, onde tem ladrão, não tem roubo de criança. Aqui as crianças correm por aí, brincam e a gente não tem preocupação. Criança anda livre aqui, anda nas capoeira, toma banho. Crianças convivem conosco pela festa, comem conosco, comem o peixe que a gente moqueia. Quando a gente traz cá estas coisas da roça, elas comem e assim por diante. As crianças já de 7 anos prá cima já andam pescando por aí e têm esta liberdade. Pescam mandí e outros peixes. No dia da festa eles convivem conosco também e comem junto e aí eles ficam lá fora brincando entre as crianças. Depois andam jogando bola e todo o tipo de brinquedo”.

 

Segundo Meliá (1979),

“as sociedades indígenas brasileiras, como, aliás, muitas outras sociedades em todo o mundo, se educaram perfeitamente durante séculos sem recorrer à alfabetização, conseguindo, com meios quase que exclusivamente orais, criar e transmitir uma rica herança cultural. (...) Também se pensou, com freqüência, que a educação indígena é simplesmente utilitária, orientada somente à sobrevivência, sem tempo nem interesse para a cultura. (...) o índio está educado para o prazer de viver e o seu  'tempo de cultura', dedicado a rituais, jogo ou simples gracejos, é mais extenso e intenso do que aqueles das sociedades modernas que trabalham para comer. O índio trabalha para viver”.

 

A criança indígena participa ativamente, e de forma integrada, da vida da comunidade. Ou seja, de todos os seus momentos, incluindo tanto as festas e rituais como as atividades produtivas - ou propriamente de trabalho: como caça, pesca, roça, entre outros. Esse “acompanhar” a vida do grupo é parte intrínseca do processo de formação. Novamente, com Meliá, vemos que

 

“a criança indígena faz em miniatura o que o adulto faz. Vive no jogo a vida dos adultos. Aprende as atividades sociais rotineiras, participa da divisão social do trabalho e adquire as habilidades de usar e fazer instrumentos e utensílios de seu trabalho, de acordo com sua idade e a divisão de sexo”.

 

Contrariamente, segundo Jean Chateau (1987), em seu livro O jogo e a criança, nas sociedades de tradição ocidental, a criança logo percebe que o trabalho que lhe é permitido pelos adultos “é uma tarefa menor”, sem utilidade realmente expressiva e da qual ela tem pouca autonomia (“é vigiada de perto”; “não pode fazer sozinha”). Duas idéias centrais elaboradas por Chateau são: “é por ser estranha ao mundo do trabalho que a criança se afirma através do jogo”;  “participar das tarefas adultas é sonho de toda a criança”.

 

Como se sabe, o jogo e a brincadeira são elementos  importantes na educação infantil.

“A originalidade aqui é que o índio, já desde pequeno, brinca de trabalhar. Seu brinquedo é, conforme o sexo, o instrumento de trabalho do pai ou da mãe. O índio, que brincou de trabalhar, depois vai trabalhar brincando. O seu jogo é  brinquedo que não lhe deu ilusões, que depois a vida lhe negará. Pequenos arcos e flechas nas mãos de um menino ou pequenos cestos dependurados na cabeça de uma menina, que vai com a mãe buscar mandioca na roça, são cenas que têm encantado qualquer visitante de uma aldeia indígena” (Meliá, 1979).

 

Pudemos conferir a pertinência das idéias elaboradas por Meliá durante as observações que fizemos na ocasião da estadia nas comunidades. Em dois lugares (Ipanoré e Juquira), tivemos a oportunidade de presenciar o dia do “trabalho comunitário” – que é um dia na semana no qual há mutirão (trabalho coletivo). As crianças, mesmo as de mais tenra idade, participam deste momento, dando sua contribuição efetiva, dentro de sua capacidade. Em Ipanoré, meninos pequenos ajudaram no trabalho de capina do espaço em torno do Centro Comunitário, utilizando-se de pequenos terçados. Em Juquira, logo pela manhã, crianças de todas as idades estavam na beira do rio participando alegremente da tarefa de carnear um bezerro que havia sido morto por morcegos na noite anterior.

 

Também o próximo depoimento traz expressivas informações sobre o processo do “aprender a viver vivendo...”:

 

Todo o processo da mulher, a mãe já ensinava para elas. Quando crescer, elas precisam saber. Com oito anos e seis anos, elas já sabiam fazer tudo: fazia o beijú, a farinha, carregar lenha, e tudo as minhas filhas sabiam. Isso que é prá ensinar. Se o pai não ensinar essas coisas, os filhos depois não sabem fazer essas coisas e enfrentam muitas dificuldades. Por isso, hoje em dia minhas filhas não acham essas dificuldades - ensinamos desde criança. Assim que criei minhas filhas. A parte do menino também ele sempre acompanhou o pai desde pequeno. Ele largou o pai só quando foi para a escola estudar. Ensinei a pescar. Tipiti e peneira ainda não ensinei a fazer. Pescaria já segue por ele mesmo. Isso é que é nosso ensinamento. Quando o homem não pesca, passa fome. Nossos filhos é para educar, ensinar a trabalhar. As crianças, desde pequeno, tem que se preparar para frente. Quando não educar, não sabem trabalhar quando crescer” (Tarcísio Vasconcelos, Tariano de Urubuquara).

 

Ao falar especificamente da educação das crianças do povo Kaiowá (no Mato Grosso do Sul), Meliá nos mostra que:

 

no primeiro período (de um a três anos), é sobretudo a comunidade  que atua sobre a criança, aprovando ou rechaçando suas atividades ou comunicando-lhes através do jogo e de exemplos da própria vida, atitudes e valores. De três a cinco anos, a criançada constitui uma verdadeira minisociedade, onde a vida adulta é imitada em todas as atividades diárias, até as religiosas. O respeito que os pais têm para a criança, o modo de falar com ela, quase nos pareciam exagerados. O adulto considera o papel da criança na sociedade com muita seriedade. O que não quer dizer que as relações entre eles sejam tensas ou tristes. Adulto brinca com criança e criança brinca com adulto”.

 

Vejamos um depoimento de membro das comunidades rionegrinas sobre o exposto acima por Meliá:

 

“Os filhos maiores já me ajudam a fazer os trabalhos ralando e espremendo mandioca. Outros já brincam. Sempre falo para as filhas que o pai foi para pescaria e elas têm que estar prontas com o beijú quando ele voltar. Elas começam a ajudar a limpar a mandioca no ‘aturá’. Com isso, como mãe, fico satisfeita de ver que meus filhos me ajudam” (Maria Clarice Martins, Dessana de Juquira).

 

 

O conhecimento da natureza[7]

 

Quanto à questão do conhecimento da natureza, vamos ver alguns autores que têm trabalhado esta temática. Em seu texto O impacto da conservação da biodiversidade sobre os povos indígenas, Andrew Gray (1995) coloca que:

 

“os povos indígenas têm uma vasta riqueza de conhecimentos relativos a seu ambiente, construída ao longo de séculos. Este conhecimento não inclui somente informações sobre diferentes espécies de animais e plantas, seus comportamentos e suas utilidades, mas também informações sobre o modo como aspectos do universo se inter-relacionam”.

 

E vai além, ao afirmar que, para os povos indígenas,

 

“o conhecimento do ambiente depende de contatos com o mundo invisível dos espíritos que desempenham um papel fundamental na garantia da reprodução da sociedade, da cultura e do ambiente. (...) Para eles, o conhecimento é simultaneamente material e espiritual e os seres humanos geralmente não estão separados daquilo que os povos não-índios concebem como o 'mundo natural'”.

 

Também Eduardo Viveiros de Castro (1995) nos traz idéias acerca desta relação - sociedades indígenas/natureza/saber.

 

“A relação entre os povos indígenas e a floresta é mediada decisivamente por suas formas de organização sociopolítica. A natureza é natureza para uma sociedade determinada, fora da qual se reduz a uma abstração vazia. Dessocializar tal saber é expropriá-lo e inutilizá-lo praticamente”.

 

Este autor procura destacar que as relações que se estabelecem entre homens e natureza não são naturais mas sim imediatamente sociais. Este aspecto eminentemente social (das relações entre sociedades e natureza) “recebe um reconhecimento explícito nas culturas indígenas, em contraste com a concepção objetivante de natureza entendida pela modernidade ocidental”.

 

Para Gunter Kroemer, em seu texto “Estudo da reciprocidade” (2001),

 

“as terras indígenas são a expressão mais concreta de experiências espirituais de interação entre o homem e natureza. A realidade natural é igualmente uma realidade sobrenatural e social. É a natureza que fornece os meios de subsistência, simbolizada por entidades dotadas de vontades e poderes sobrenaturais. Estas são organizadas num sistema de parentesco análogo ao domínio humano com as quais as pessoas procuram estabelecer relações simbólicas de complementaridade e obrigações recíprocas. A terra simboliza espaço de memória, de culto, de realização plena de vida. É uma visão integrada da vida”.

 

Tal questão foi comprovada anteriormente neste trabalho, em especial nos depoimentos em que o ato de benzer a água e os caminhos é decisivo para o desenvolvimento infantil.

 

 

Conflitos e contradições na complexa relação ontem-hoje

 

A consciência das contradições e complexidade dos problemas e desafios enfrentados na realidade histórica vivida, acrescentou (para a maioria dos povos, como é o caso aqui estudado) aos conhecimentos tradicionais a urgente necessidade de entender a dinâmica da sociedade majoritária, assim como de ter o domínio sob novos saberes, que os ajudem no encaminhamento das novas situações. Esse processo, na maioria das vezes, é permeado por conflitos/tensões e dominação, exercidos por parte da nossa sociedade. Daí o fato de que, ao falarem sobre o hoje, venham à tona expressões que denotam angústias, sentimento de lamento - uma espécie de “saudade” de um passado não vivido. É como se aflorasse uma certa “nostalgia”, um desejo de “retorno às origens” que, como se sabe, já não são as mesmas.

 

Suess (1987) em seu instigante artigo “O menor bem amparado: a criança indígena” problematiza a questão do contato afirmando que

 

“as sociedades indígenas que conseguem viver longe e diferente da chamada sociedade nacional não conhecem o problema do menor abandonado. A preservação dos valores autóctones dos povos indígenas, sobretudo o seu espírito comunitário, é proporcional à sua distância da sociedade ocidentalizada”.

 

Trechos de relatos, a seguir, feitos por mulheres associadas à AMARN[8], ilustram essa situação:

 

 “A minha infância foi isso: lá na aldeia a gente... eu me criei junto com as meninas, só a turma de mulheres. Não tinha menino.  Quando depois de adulta que conheci assim... a vida dos adultos. Fui com dez anos pro internato. Aqui na cidade, já é diferente, porque eu tenho um filho, que eu tive aqui depois de adulta. Prá criar, é muito diferente. Eles precisam de roupa, precisa de calçado, precisa de ir prá escola... Todo dia pede um centavo... Pra nós a vida é dura aqui, mas a gente já acostumou aqui na cidade. É o jeito agüentar essa vida, ? Não é que eu não queira voltar prá minha terra... Porque eu não tenho condições de trabalhar na roça. Lá, a gente só  vivia da roça” (Deolinda, em entrevista-coletiva na AMARN).

 

A gente sempre, até hoje, discute como a infância da gente cresceu tão livre, tão despreocupado, sem preconceito, sem se preocupar com a história. Então, essa comparação com a vida atual... Eu me preocupo com os meus filhos, por isso, digo: - Ah! meus filhos, no meu tempo não tinha esse perigo de droga, de estupro, eu nunca tive medo, apesar da cidade era escura, como o apagão agora. Não tinha luz, você andava de noite tranqüila, sem medo de assalto, sem medo de estupro, sem medo de droga. Agora mudou, a infância das crianças de hoje, mesmo sendo no interior pequeno é perigoso. Então a infância das crianças de hoje corre risco... A nossa foi tão diferente, foi tranqüila. Então é uma diferença muito grande da vida passada com a atual”. (Dora, em entrevista-coletiva na AMARN).

 

“Porque lá no interior, não tinha nem esse costume, nem essa cultura, nem essa vida. Mas tem outra, de outra cultura. Lá a gente vive, não é como aqui na cidade, não. Porque na cidade a vivência é muito diferente. É vivência do branco. Porque que lá onde eu nasci, eu me criei, a gente vivia só de pesca, só de roça, só de caça, só de plantio, só. Lá já existia a escolinha no povoado. A gente tinha a escola-centro, em Iarauetê. Lá na escolinha eles aprendiam até a 4ª série. Daí, da 4ª série, vinha pro centro. Lá se formava em 8ª série. Lá aprendiam muitas coisas. Aprendia a raspar mandioca, tirar mandioca mole e muitas coisas. Aquele gurizinho, neném, ele sempre saía pra pescar com o pai dele. Aprendia com o pai... Lá pra nós, antigo mesmo, meus bisavós, meus pais mesmo contavam as histórias. Era o pai que contava mais as histórias, porque a mãe... lá já casavam com outras tribos, não era assim da mesma tribo. Sabe porque tem diferença pra cá pra cidade? É que olha aí, eu morando no mato, ? Quando a gente fica morando na beira do rio, claro que a gente pode ter esse costume: anda de canoazinha de manhã, aí o nosso filho vai atrás da gente... Mas nós quando moramos aí no centro da cidade, aí fica difícil. Quando vem pra cá prá Manaus não tem como; os aparelhos que usam, televisão... É muito diferente sim. No tempo que a gente morava lá no interior, a gente tinha outro costume, outra cultura. A gente gostava daquele sistema, daquela vivência... (Depoimento dos homens durante entrevista-coletiva na AMARN).

 

 

Para não acabar esta conversa... que precisa continuar!

 

Encerramos com um pronunciamento que toca na questão do importante (e não programado) “movimento interno” de reflexão coletiva provocado pela própria participação das comunidades na pesquisa:

 

“Esta equipe veio aqui para escutar estas coisas. É bom para nós também porque lembramos de novo como é nossa vida e quais as fases que passamos desde pequeno. As crianças é que vão desenhar o que mais elas gostam. Tem menino que gosta de tomar banho, outro gosta de brincar, outro gosta de ir na pescaria, jogar bola. Isto é o trabalho da criança pequena. Depois de 8 anos para cima, o menino vai seguir o serviço do homem adulto, que o principal é a pescaria. A mulher também vai plantar roçado, mandioca, batata, fazer beijú e caxiri, é o dever da mulher. Quando o rapaz já está começando a se formar, já vai se preocupando na parte da cultura, benzimento. Aí os pais já começam a repassar isto para os filhos. Tem muita coisa bonita no nosso costume. Um exemplo é quando a mulher não tem leite no peito, o homem benze. A equipe está relembrando nós de muitas coisas importantes, e isto é muito bom para esta comunidade” (Tarcísio Vasconcelos, Tariano de Urubuqurara).

 

 

Notas

 

[1] Participaram da equipe de trabalho Terezinha Weber, pelo CIMI- Regional Norte I; Maria das Dores Carvalho e Zenaide Ferreira Lima, pela AMARN e Rosa Helena Dias da Silva, pela Universidade do Amazonas.

[2] A equipe esteve presente nas comunidades entre os dias  22 e 26/08/ 2001.

[3] Realizada em 03/06/2001 e revisada em reunião do dia 29/07/2001.

[4] Conforme Meliá, em estudo da ANE – Articulação Nacional de Educação, Cimi, 1996, que teve como tema “Metodologia de Pesquisa das Pedagogias Indígenas”.

[5] O encontro foi organizado por Unicef, nos dias 12 e 13 de julho de 2001,  sendo que participaram representantes de organizações indígenas do Brasil, México, Guatemala, Guiana, Equador, Perú, Bolívia e Colômbia.

[6] As entrevistas foram gravadas, com consentimento das comunidades, na língua Tukano e traduzidas por Maria das Dores e Zenaide (participantes da AMARN).

[7] Este tópico é parte da tese de doutorado intitulada A autonomia como valor e a articulação de possibilidades – Um estudo do movimento de professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, a partir de seus encontros anuais, de autoria de Rosa Helena Dias da Silva publicada por  Abya-Yala, Quito-Ecuador, 1998.

[8] Criada em 1984, essa Associação reúne hoje 41 mulheres indígenas, em especial originárias da região do Alto Rio Negro. Grande parte destas mulheres veio para Manaus para trabalhar como domésticas e/ou buscando oportunidade de continuidade de sua escolarização. Muitas vieram a Manaus por influência de missionários católicos e também dos militares. Todos os finais de semana elas se reúnem para confeccionar artesanato, conversar sobre os problemas comuns e estabelecer/fortalecer suas relações (de apoio e solidariedade interna). Têm também participado ativamente do movimento indígena mais amplo, seja através da FOIRN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, seja em intercâmbio com a COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira.

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

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MELIÁ, Bartomeu. Educação Indígena e Alfabetização. São Paulo: Loyola, 1979.

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