REMISSÃO E APLICAÇÃO DE MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA ATRAVÉS DA TRANSAÇÃO

 

 

José Ricardo Vieira de Freitas

Promotor de Justiça no Estado de São Paulo.

 

 

 

Coerente com o texto constitucional de 1988 e com os tratados e documentos internacionais aprovados pela comunidade das nações,[1] o Estatuto da Criança e do Adolescente adotou a doutrina da proteção integral que reconhece direitos peculiares, especiais e específicos em razão da condição de pessoas em desenvolvimento e formação.

 

Na esteira da doutrina da proteção integral é que foram previstas medidas sócio-educativas a serem aplicadas ao adolescente que praticou ato infracional.[2]

 

Três foram as formas previstas em Lei para a aplicação das medidas sócio-educativas que não implicam em privação de liberdade:

a) através de decisão judicial de mérito, em processo contraditório, em virtude de representação oferecida pelo representante do Ministério Público;[3]

b) através da concessão da remissão pela autoridade judicial, que poderá incluir uma das mencionadas medidas;[4]

c) através da concessão da remissão pelo representante do Ministério Público que poderá incluir umas das mencionadas medidas.[5]

 

As formas encontradas pelo legislador procuraram contemplar a agilidade processual de sorte a garantir a efetividade da Justiça Especializada.

 

O próprio Instituto da Remissão, aplicável pelo Promotor de Justiça, mostra uma faceta completamente diferente daquelas existentes na processualística penal. É sabido que no Processo Penal Pátrio sempre foi vigente o princípio da obrigatoriedade da ação pública, enquanto a existência da Remissão pré-processual é a própria prova da vigência do princípio da oportunidade, mitigada pela fundamentação.

 

Ocorre, entretanto, que os Tribunais Pátrios têm entendido não ser possível ao Promotor de Justiça conceder a remissão acumulada com a aplicação de medida sócio-educativa, ainda que tal medida sofra o controle jurisdicional da homologação. O Superior Tribunal de Justiça chegou a editar a súmula de número 108 contendo o mencionado entendimento.

 

A Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por seu turno, tem entendido que não cabe ao Promotor e nem mesmo ao Magistrado a aplicação de medida sócio-educativa sem que haja o contraditório.

 

O primeiro dos argumentos levantados pelos Magistrados Brasileiros, no sentido de indeferir a homologação de remissão concedida pelo Promotor de Justiça cumulada com medida sócio-educativa, é que haveria uma clara interferência do órgão do Ministério Público na função jurisdicional. A competência para aplicar medida sócio-educativa seria única e exclusivamente do Poder Judiciário, a quem é atribuído constitucionalmente a avaliação de provas que possam dar ensejo à aplicação de medidas que impliquem em restrição de direitos, ainda que tais medidas não tenham caráter de pena.

 

O segundo argumento, mais restritivo ainda quanto à aplicação de medidas sócio-educativas, propugna que em um Estado de Direito não há que se falar em aplicação de medidas restritivas de direitos sem que haja o contraditório e a garantia da ampla defesa, sendo assim vedado, não só ao Representante do Ministério Público, mas também ao Juiz aplicar qualquer medida sem que haja a interveniência do advogado, a colheita de provas e a decisão de mérito fundamentada nas provas colhidas.

 

Buscando interpretar os dispositivos contidos no ECA, que prevêem a aplicação de medidas sócio-educativas com a concessão da remissão, ou seja, sem que haja um juízo de responsabilidade, em consonância com os princípios processuais constitucionais, passou-se a defender a tese de que a remissão pré-processual, como forma de exclusão do processo, nada mais é do que uma transação havida entre o dominus liti e o adolescente devidamente representado por seu responsável.

 

A tese, totalmente adequada às novas tendências processuais, encontra respaldo no disposto no artigo 98 da Constituição Federal, que prevê a possibilidade de transação nas infrações penais de pequeno potencial ofensivo.

 

Importante lembrar que a remissão, como exclusão do processo que é, se justifica “quando o interesse de defesa social assume valor inferior àquele representado pelo custo, viabilidade e eficácia do processo”[6]. A Remissão pressupõe o menor potencial ofensivo quando a lei dispõe que: “o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e conseqüências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional.”

 

Ocorre que a tese, com raras exceções, encontrou barreiras nos nossos Tribunais.

 

O principal argumento a contrariar a remissão, cumulada com medida  sócio-educativa, como fruto de uma transação entre partes e homologada pelo Juiz, é que inexiste previsão legal para tal espécie de proceder.

 

O óbice, de rigidez extremada, dada a máxima vênia, parece ter caído definitivamente com o advento da Lei 9.099/95.

 

Dando efetividade ao contido no artigo 98, caput, e inciso primeiro da Constituição Federal, em 26 de setembro de 1995 foi promulgada a Lei Federal 9.099, que dispõe sobre  os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências, facultando ao representante do Ministério Público propor a  transação ao suposto autor da infração penal, desde que preenchidos certos requisitos de ordem objetiva.

 

Desta forma tornou-se possível a transação entre a Justiça Pública e o indivíduo a quem se imputa o cometimento de infração penal, facultando a Lei a imediata aplicação de “penas” restritivas de direitos ou multa[7], sem que tal acordo signifique o reconhecimento da culpabilidade. A última afirmação encontra respaldo na própria lei, que afasta o reconhecimento da reincidência e os possíveis efeitos cíveis.

 

Comentando as sanções aplicadas por força da transação, assim se manifestaram os ilustres doutrinadores Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly:

 

“Com efeito, essassanções especiais” não trazem em si, a nosso ver, o sentido de reprovabilidade ético-jurídica e tampouco se assentam no reconhecimento da culpabilidade do suposto autor do fato. Tanto é verdade que não geram “reincidência”, não constarão das certidões de “antecedentes criminais” (salvo para a não obtenção de novo benefício no prazo de 05 (cinco anos) e muito menos repercutirão na esfera cível para efeito de reparação do ex-delicto (art. 75, §§ 4º e 6º). Não é demais consignar, outrossim, que em nenhum momento, quando trata da transação, a Lei fala em “sentença penal condenatória” ou “condenação”, expressões que traduzem, inequivocamente, a aplicação de uma medida efetivamente penal.[8]

 

Importante retomar a análise do contido no Estatuto da Criança e do Adolescente que, em técnica mais apurada, expõe explicitamente que a remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade.

 

Deve-se ter em mente, ainda, que medida sócio-educativa não é pena e que aquelas que prevêem a privação de liberdade só podem ser aplicadas após o devido processo, em consonância com o disposto no artigo 5º, LIV, da Constituição Federal.

 

Neste ponto, ante a brevidade exigida para este tipo de trabalho, cabe verificar qual a modificação prática que a Lei 9.099/95 trouxe para a interpretação e aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

O artigo 152 do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que aos procedimentos nele regulados aplicam-se, subsidiariamente, as normas gerais previstas na legislação processual pertinente.

 

Antes mesmo do advento da Lei 9.099/95 Julio Fabbrini Mirabete já tratava a remissão, com aplicação de medida sócio-educativa, como uma espécie de transação: A remissão pode ser concedida como perdão puro e simples, sem a aplicação de qualquer medida, ou, a critério do representante do Ministério Público ou da autoridade judiciária, como uma espécie de transação, como mitigação das conseqüências do ato infracional. Nesta última hipótese ocorre a aplicação de medida específica de proteção ou sócio-educativa, excluídas as que implicam privação da liberdade (encaminhamento aos pais ou responsáveis, advertência etc.).[9]

 

Com o advento da “Lei dos Juizados Especiais” parece claro ser cabível a transação entre o representante do Ministério Público e o adolescente a quem se imputa o ato infracional, devidamente acompanhado pelo seu responsável, e representado por advogado.

 

Inúmeros casos há em que a simples remissão como perdão, desacompanhada de qualquer medida sócio-educativa, se mostra inadequada para a ressocialização do adolescente e, por outro lado, o processo contraditório se mostra uma via longa e inadequada por já se vislumbrar, desde cedo, a desnecessidade, ou mesmo impossibilidade, de aplicação de medida que implique em privação de liberdade.

 

Nesses casos é de todo viável e aconselhável a exclusão do processo por via da transação que, no caso, se deve dar através da remissão acordada pelas partes com a aplicação, desde logo, de uma das medidas restritivas de direitos.

 

A agilização da aplicação da Justiça e a tendência a composição social vêem ao encontro do disposto nas  Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores e também as mais modernas tendências processuais criminais.

 

Por fim resta verificar como seria a adequação da Lei 9.099/95 ao Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

Tendo em vista que há um rito próprio previsto no ECA e limitações mais benéficas aos adolescentes, em relação a possibilidade de transacionar a remissão com aplicação de medida sócio-educativa, e o princípio da subsidiariedade da aplicação das normas processuais outras, resta claro que permanece vigente o rito previsto nos artigos 179 e seguintes do ECA, estabelecendo-se, entretanto, um momento pré-processual em que, após a oitiva informal e entendendo o representante do Ministério Público ser cabível a remissão, formaliza-se, oralmente, a proposta de transação ao adolescente e ao seu representante legal que deverão estar acompanhados de advogado. Aceita a proposta, esta deve ser tomada por termo e assinada pelas partes e pelo advogado e submetida ao Juiz competente para homologação.

 

Importante salientar, por fim, que não há óbice em que o Juiz, exercendo seu poder de cautela, designe audiência para que as partes ratifiquem ou retifiquem o acordo submetido a homologação e que o controle da execução da medida aplicada por força da transação será realizado, sempre, pelo Juiz com intervenção necessária do representante do Ministério Público.

 

Conclusões

 

1)      A Remissão cumulada com aplicação de medida sócio-educativa é possível desde que fruto de transação entre as partes.

 

2)      Resta claro que a remissão, prevista no ECA, tem nítido caráter de transação, em consonância com os ditames da Lei 9.099/95, de modo que, após a oitiva informal e entendendo o representante do Ministério Público ser a mesma cabível, formaliza-se, oralmente, a proposta de transação ao adolescente e ao seu representante legal, que deverão estar acompanhados de advogados.

 

 

3)      Aceita a proposta, esta deve ser tomada por termo e assinada pelas partes e pelo advogado e submetida ao Juiz competente para homologação.

 

4)      O Juiz poderá ainda, tendo por inspiração a Lei 9.099/95, designar audiência para que as partes ratifiquem ou retifiquem o acordo submetido à homologação.

 

 

Notas:

[1] Declaração de Genebra de 1924, Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (Paris 1948), Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de São José, 1964), Regras Mínimas das Nações Unidas a Administração da Justiça da Infância e da Juventude( Res. 40/33 da Assembléia Geral, de 29/11/ 85), Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil (Assembléia Geral da ONU, novembro de 90), Regras Mínimas  das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade (ONU, novembro de 1990) e Convenção sobre o direito da Criança (Assembléia Geral das Nações Unidas de 20/11/ 89).

[2] Artigo 112 do ECA

[3] Artigo 113 do ECA

[4] Artigo 126, § ú, combinado com Artigo 127, ambos do ECA

[5] Artigo  126 combinado com o artigo 127, ambos do ECA.

[6] Paulo Afonso Garrido de Paula, “Direitos de infrator exigem respeito”, (O Estado de São Paulo de 24.4.91, p. 14) citado na obra “Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado”, Coordenadores: Munir Cury e outros, Malheiros Editores, pág. 385/386.

[7] Artigo 76 da Lei 9.099/95.

[8] Juizados Especiais Criminais - Comentários, Editora AIDE, 1ª Edição, página 63.

[9] Estatuto da Criança e do Adolescente comentado - Comentários Jurídicos e Sociais - Coordenadores: Munir Cury, Antônio Fernando do Amaral e Silva, Emílio Garcia Mendez, Malheiros Editores, pág. 386/387.