PARA ONDE CAMINHA O DIREITO?

Um estudo acerca das interpretações divergentes quanto à aplicabilidade das medidas sócio-educativas (dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescente), após a vigência do novo Código Civil

 

 

                                                                                Daniella S. Dias

                                                                                                         Promotora de Justiça.

 

 

" A experiência jurídica está a demonstrar ' que os raciocínios jurídicos são inseparáveis de incessantes controvérsias', o que ocorre não só entre os mais eminentes juristas como entre juízes e tribunais mais prestigiosos. Tanto assim é que tais desacordos, encontráveis tanto na doutrina como na jurisprudência, "obrigam, na maioria das vezes, após a eliminação das soluções não razoáveis, à imposição de uma solução através da autoridade, seja a da maioria, seja a das instâncias superiores, critérios que, aliás, na maioria das vezes, se combinam"[1].

 

Há que se considerar que todo sistema normativo deve exprimir lógica e coerência. Destarte, os artigos, parágrafos, incisos e alíneas de qualquer ordenamento legal devem estar intrinsecamente relacionados, revelando as normas jurídicas dentro de um sistema que obedece a uma ordem lógica e coerente, tendo em vista os fins a realizar.

 

O parágrafo de um dispositivo legal, a exemplo, revela uma especificação normativa, cuja atividade interpretativa depende da interpretação e do sentido do caput do artigo ao qual pertence.

 

Iniciando a análise quanto ao tema proposto, observa-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta no artigo 2º a definição legal de criança e adolescente, pois a Lei 8.069/90 tem por objetivo a proteção integral à criança e ao adolescente, e, sob esta perspectiva, é a estes indivíduos que se direciona todo o conjunto de disposições normativas do ECA. No parágrafo 1º do artigo 2º, por sua vez, há especificação normativa que apresenta, excepcionalmente, a possibilidade de atendimento aos adolescentes acima do limite dos 18 anos de idade. Este dispositivo, por sua vez, tem direta concatenação com o capítulo referente à aplicação das medidas sócio-educativas, razão por que aludida regra determina a possibilidade de menores infratores  cumprirem as medidas sócio-educativas após a maioridade.

 

Analisando este dispositivo de forma sistemática com o artigo 121, parágrafo 5º do ECA, referente ao prazo máximo para a liberação compulsória de adolescentes infratores da medida de internação, infere-se a clara possibilidade de o adolescente infrator ter que cumprir as sanções estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente, mesmo após completar a maioridade penal. Isto porque, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, no ano de 1990, nasce um sistema completo e avançado, objetivando a proteção de crianças e adolescentes, permitindo que, a nível jurisdicional, haja a aplicação de medidas sócio-educativas em função da apuração de atos infracionais frente ao órgão jurisdicional.

 

O procedimento referente à elucidação e responsabilização por atos infracionais está calcado nos princípios do contraditório, na garantia de ampla defesa, na igualdade na relação processual, entre outros princípios constitucionais, sendo que, neste referido procedimento judicial, há que existir garantias processuais e constitucionais aos adolescentes a ele submetidos. Ademais, todos os procedimentos regulados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente seguem subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação processual, subtendidas as regras processuais penais e civis. Por conseqüência, nada obsta que as disposições normativas existentes no Estatuto da Criança e Adolescentes sejam aplicadas aos autores de atos descritos como crimes ou contravenções penais, quando ao tempo do fato tais indivíduos não tenham atingido a idade de 18 anos. Neste sentido, ainda que atingida a maioridade penal, há patente possibilidade de aplicação destas medidas, desde que o fato ensejador  da instauração de um procedimento para apuração de ato infracional seja anterior aos 18 anos.

 

Todavia, com o advento do Código Civil, intérpretes têm defendido que suas disposições normativas interferem e modificam a aplicação das regras referentes aos procedimentos para apuração de atos infracionais previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Tendo em vista a diminuição da maioridade civil de 21 para 18 anos, estes autores sustentam não mais existir a possibilidade de aplicação, em caráter excepcional, de medidas sócio-educativas a adolescentes que tenham completado 18 anos de idade. Haveria, segundo este posicionamento doutrinário, uma derrogação dos artigos 2º, parágrafo 1º e 121, parágrafo 5º, em razão das disposições do Código Civil determinarem uma diminuição da maioridade civil de 21 para 18 anos. Em poucas palavras, tendo completado 18 anos de idade, o adolescente infrator, submetido à medida de internação ou qualquer outra medida sócio-educativa, deveria ser compulsoriamente liberado.

 

Não assiste razão a esses doutrinadores.

 

A maioridade civil não tem qualquer relação direta com as sanções previstas e com o limite de idade máximo estipulado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente para a sua aplicação, no que diz respeito a infratores com mais de 18 anos de idade.

 

A entrada em vigor do novo Código Civil, ao apresentar a idade de 18 anos como limite à menoridade civil, não revogou o parágrafo único do artigo 2º, e, por conseqüência, não alterou o prazo legal estipulado para a aplicação da medida de internação que, excepcionalmente, deve ser aplicada até os 21 anos.

 

A redução da maioridade civil não ensejou transformações interpretativas quanto aos objetivos de proteção que o Estatuto da Criança e do Adolescente visa concretizar, mormente se considerarmos que as medidas sócio-educativas têm função pedagógica, objetivando incutir no representando o senso de responsabilidade e avaliação sobre seus atos. A maioridade civil estabelece limites precisos quanto à capacidade civil, e o ECA, por sua vez, objetiva resguardar, proteger o adolescente por meio de vários instrumentos jurídico-processuais, a exemplo das medidas sócio-educativas, razão por que a aplicação das medidas sócio-educativas se estende até os 21 anos em caráter excepcional.

 

A ratio legis se revela cristalina: em casos em que o procedimento, em razão da morosidade da justiça ou por sua própria complexidade, alcançar o termo final quando adolescente já tiver completado 18 anos, ainda assim, a legislação permite a aplicação das sanções estipuladas no Estatuto, justamente porque objetiva que o adolescente, em cumprindo estas sanções, possa não mais reincidir em atos delituosos.

 

A medida de internação, por sua vez, prevista no artigo 121, parágrafo 5º, revela algo muito mais importante do que um limite de idade. Como medida excepcionalíssima e de enorme gravidade, deve ser aplicada somente aos casos mais graves, e neste sentido, considerando todos os princípios, objetivos e fundamentos existentes no Estatuto da Criança e do Adolescente, tal medida deverá ter um período limitado de tempo para ser cumprida - no máximo três anos, e que pode estender-se até o limite de 21 anos. Esta é a interpretação lógica do artigo 121 e seus parágrafos, em que o caput  revela o caráter excepcional da internação, e seus artigos, os limites à aplicação da medida, não só como necessidade de proteção à pessoa, à liberdade e à personalidade do infrator, mas também como limite à atuação do Estado quanto à forma e o prazo para aplicação de aludida medida[2].

 

            "Assim, embora qualquer decisão que determine previamente o período de internamento fique cancelada em razão do artigo 121, parágrafo 2º, ECA, não será admitida medida perpétua, pois encontrar-se-ia óbice não só no Estatuto que fixa o prazo máximo de cumprimento, mas também em mandamento constitucional (art. 5º., XLVII, b CF). Ora, se a legislação brasileira sabiamente repeliu o ergástulo no que diz respeito às penas, não haveria lógica em admitir a perpetuidade da medida sócio-educativa que se desnaturaria, tornando-se fonte de desesperança e descrença no sistema" .

 

            "Levando-se em conta os princípios da brevidade e excepcionalidade da internação, tem-se que o limite da medida é a sua necessidade, diante o que dispõe o artigo 2º. do Estatuto da Criança e do Adolescente" (TJSP - HC 26.301.0 - Rel. Yussef Cahali)[3].

 

A lei não disse mais, nem disse menos. Em sua interpretação, podemos vislumbrar que, no que diz respeito à medida de internação, em defesa da dignidade do adolescente e de seu direito de ir e vir, a medida de internação terá um prazo máximo de três anos, e, uma vez completando 21 anos, o menor infrator, submetido à medida, há que ser liberado[4].

 

Deve-se ter o máximo de cuidado para que interpretações gramaticais - que se dizem literais – não colidam com todo o arcabouço jurídico existente em um sistema legal, como é o sistema do Estatuto da Criança e do Adolescente. Interpretações obtusas e colidentes com os valores e princípios constitucionais, como o da dignidade humana, revelam que a corrente doutrinária que objetiva a não aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente aos adolescentes infratores que tenham atingido a idade de 18 anos, contrapõe-se sobremaneira aos valores e objetivos maiores do Estatuto, quais sejam, a ajuda ao menor infrator, a ressocialização e a prevenção de reincidência e da criminalidade.

 

Se não fosse esse o objetivo da lei, por que então o adolescente infrator, uma vez tendo completado a idade de 18 anos, teria ainda que cumprir medidas sócio-educativas relativas à sua atuação quando ainda inimputável? Por que então a possibilidade de menores infratores, após atingir a maioridade penal, terem ainda que cumprir as sanções dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescente?

 

Como bem argumenta Roberto Barbosa Alves, Promotor de Justiça em São Paulo,

 

            "O conceito de ato infracional tem o direito penal como  referência obrigatória:  são atos infracionais todas aquelas condutas descritas como crime ou contravenção penal no Código Penal e na legislação penal (artigo 103 dos ECA). Adotada a  tipicidade geral do ordenamento jurídico, dispensa-se a redação de um código penal juvenil, com tipos penais específicos para os adolescentes.

             Tudo isso comprova que as medidas sócio-educativas não deixam de ter caráter idêntico ao das penas. O legislador preferiu claramente um direito da infância e da juventude de mentalidade penal, ainda que haja tido em conta as características próprias do adolescente como pessoa em desenvolvimento. Esse reconhecimento de responsabilidade nunca significou maior castigo, senão o respeito à identidade do adolescente, através de um processo conveniente e garantista capaz de estimular a ressocialização"[5].

 

No mesmo sentido:

 

            “Posição sustentada na atualidade é a que reconhece o caráter penal das medidas sócio-educativas, pois, em se tratando de defesa de direitos humanos dos adolescentes, ao se reconhecer tal caráter deverá ser observado, especialmente, o critério da estrita legalidade, quando de sua aplicação. A nova posição possui como fontes os documentos de direitos humanos das Nações Unidas: Princípios das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil - (Princípios Orientadores de Riad), especialmente VI - Legislação e Administração da Justiça de Menores), Regras de Beijing e para Proteção dos menores privados de liberdade, que aconselham a garantia a crianças e adolescentes de todos os direitos fundamentais e sociais insertos na Constituição da República"[6].

 

Destarte, as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente jamais tiveram por fim específico proteger civilmente os incapazes, vez que ordenamento jurídico de similar hierarquia já tratava de conceitos precisos como o da capacidade civil. Prova cristalina  de que o objetivo do Estatuto é diverso  revela-se nas situações em que os emancipados, à luz do Código Civil, podem responder por procedimentos de atos infracionais e ser submetidos às sanções estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente. Logo, a aplicação das penalidades do Estatuto não tem relação direta com a capacidade civil, disposta no novo Código, pois o Estatuto considera que pessoas com menos de 18 anos que transgridem o ordenamento jurídico penal devem ser responsabilizadas por seus atos, dentro de um procedimento judicial que leve em conta sobremaneira a idade, a condição biopsicológica e a individualidade destes agentes. Por conseqüência, no que diz respeito à aplicação de medidas sócio-educativas, o Estatuto da Criança e do Adolescente objetiva cominar sanções aos adolescentes infratores para que estas medidas sócio-educativas sejam instrumentos de prevenção a uma criminalidade futura e mesmo forma de reprimir atitudes consideradas ilícitas e reprováveis no seio da sociedade.

 

Por meio da interpretação que limita a aplicação das medidas sócio-educativas aos maiores de 18 anos, ter-se-ia um conjunto de medidas que perderia totalmente o seu sentido e eficácia se, como exemplo, determinado adolescente, na véspera de seu aniversário de 18 anos, tendo assassinado inúmeros indivíduos, ficasse sem responder a um procedimento judicial, vez que o Código Civil estabelecera uma nova faixa etária referente à maioridade civil. Por conseqüência, este indivíduo não estaria sujeito a qualquer tipo de punição, pois nem o ECA nem o Código Penal a ele se aplicariam. Teríamos de um só golpe interpretativo a vigência, mas ineficácia de todo um sistema de proteção aos adolescentes (ECA), e ainda a certeza de impunidade (aos adolescentes infratores) e um convite para o exercício da criminalidade, como profissão!

 

Ressalte-se que, em hermenêutica jurídica, a interpretação restritiva tem por objetivo limitar a incidência da norma, quando o intérprete percebe que, uma vez aplicada, pode produzir efeitos danosos. Trata-se de interpretação que objetiva diminuir o espaço de incidência da norma, justamente porque esta já não se adequa aos anseios e valores que a sociedade quer ver realizar. Nota-se que o tipo de interpretação que ora repudiamos não é uma interpretação restritiva, mas sim uma “interpretação bloqueio”, no dizer de Barroso, pois gera a total ineficácia das medidas sócio-educativas, vez que não permite a concretização dos fins que referidos dispositivos devem realizar: a proteção integral ao adolescente, sua recuperação e prevenção à criminalidade.

 

Este tipo de interpretação fere não só o sentido literal, pois a lei não disse que a referência aos 21 anos estava diretamente relacionada com o limite da maioridade civil, durante a vigência do Código Civil de 1916; fere  o método sistemático, vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente, como um sistema jurídico ordenado, apresenta seus artigos e incisos totalmente concatenados e relacionados aos objetivos e valores dispostos nas idéias de proteção e prevenção de criminalidade para adolescentes em situações de risco. Sob esta perspectiva, a tênue possibilidade de permitir este tipo de interpretação encolherá a importância e a função de todo o arcabouço normativo do Estatuto da Criança e do Adolescente, tendo como conseqüência inevitável a total ruína, a ineficácia das medidas sócio-educativas que, diante da morosidade de nossa justiça e de todas as dificuldades enfrentadas desde a fase investigatória na apuração de atos infracionais, sobremaneira nos municípios menores sem infra-estrutura, acabam por ser aplicadas quando o menor infrator já completou 18 anos de idade.

 

Ademais, há que se considerar que adolescentes infratores, com 17 anos ou no limiar de completar 18, não compreenderão os motivos, a finalidade das medidas sócio-educativas, vez que muitas delas terão que ser suspensas compulsoriamente em razão desta interpretação mais que restritiva que esta nova corrente, de forma equivocada, impõe ao Estatuto da Criança e do Adolescente em razão da maioridade civil.

 

Há que se acrescentar que a provável não aplicação de medidas sócio-educativas a infratores com mais de 18 anos gera a sensação de impunidade e a inexistência de limites para os mesmos, vez que a eles não se aplicará nenhum tipo de sanção. Isto se revelará, no futuro, como  total omissão do Estado diante da atribuição de proteger, acolher e responsabilizar adolescentes quanto aos seus atos.

 

Certamente, num futuro não muito distante, estes adolescentes infratores, sem limites impostos, poderão se tornar futuros criminosos, posto que um ordenamento jurídico avançado, moderno e eficaz, terá sido totalmente encolhido em seu cumprimento, em razão de uma interpretação que não leve em conta o processo teleológico.

 

Para Carlos Maximiliano,

 

            "Toda prescrição legal tem provavelmente um escopo, e presume-se que a este pretenderam corresponder os autores da mesma, isto é, quiseram tornar eficiente, converter em realidade o objetivo  ideado. A regra positiva deve ser entendida de modo que satisfaça aquele  propósito; quando assim se não procedia, construíam a obra do hermeneuta sobre a areia movediça do processo gramatical".

           

A interpretação do Direito deve ser teleológica.

           

            " O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi redigida"[7].

 

 A interpretação teleológica tem em vista considerar que disposições normativas existem em razão de um fim a ser colimado. Neste sentido, o ordenamento jurídico como um todo deve ser interpretado não só em razão da literalidade de seus dispositivos                (interpretação gramatical), mas também em razão do sentido literal conjugado com a própria sistemática dos dispositivos referentes ao ordenamento jurídico, e ainda sempre considerando a finalidade de aplicação desse conjunto normativo.

 

A corrente a favor da interpretação que objetiva a não aplicação de medidas sócio- educativas a adolescentes infratores quando completarem 18 anos vai de encontro à interpretação  teleológica porquanto não considera que os artigos 2º, parágrafo 1º e 121, parágrafo 5º, têm concatenadas às suas disposições normativas, valores e objetivos aos fundamentos do ECA, que objetivam sua integral proteção de crianças e adolescentes. E isto não é levado em conta por esta corrente.

 

Não se deve olvidar que a norma é texto frio, sem vida, o intérprete é que a revela, que lhe dá expressão, e é por meio de uma interpretação coerente, consistente e adequada aos anseios sociais que se deve pautar toda a atuação dos Promotores de Justiça e Juízes da Infância e da Juventude.

 

Como afirma Reale, o Direito "é uma das expressões basilares do espírito humano em seu incessante processo de objetivação ordenadora e racional do mundo em que vivemos, representando sistemas de respostas sucessivas aos problemas que se põem através da história"[8].

 

Com base neste excerto, que analisa a função e o fim do Direito, podemos constatar que foi justamente em função de se buscar uma mudança no tratamento aos adolescentes, tratados de forma estigmatizada, em que a reclusão, o internamento e demais sanções não advinham de um devido processo legal e não estavam assentes as garantias e princípios orientadores para sua melhor qualidade de vida, que, diante de reivindicações consistentes e necessárias, estabeleceu-se procedimento judicial que objetiva resguardar a dignidade do infrator e as garantias básicas para sua proteção, como previsto no ECA.

O que ora se objetiva,  impedindo a aplicação do instituto da internação e de outras medidas sócio-educativas, é nada mais nada menos do que ir de encontro à função do Direito: a realização da justiça, tendo sempre em vista a pauta valorativa que reflete e absorve os anseios da própria sociedade.

 

É em razão de posições incoerentes, como a por nós refutada, que a ABMP se posicionou claramente contra a não aplicação em caráter excepcional de medidas sócio-educativas a adolescentes infratores que tenham completado a idade de 18 anos.

 

Sob esta mesma perspectiva, e trazendo ao debate qual a nossa função enquanto intérpretes do Direito, e neste sentido responsáveis quanto à interpretação e aplicação das normas, que se faz interessante descrever a posição do Procurador de Justiça, Olympio de Sá Sotto Maior Neto, do Ministério Público do Estado do Paraná, que, ao se posicionar favoravelmente à garantia para a infância e juventude do exercício de direitos elementares da pessoa humana, e neste sentido, posicionado-se contra a diminuição da imputabilidade penal, assim afirma:

 

            "A lição mais importante que aprendi nestes meus quase 23 anos de Ministério Público foi a de que a realidade social e a justiça devem estar presentes em todos momentos da vida do Direito. A atuação do jurista despreocupada com esses conteúdos se traduz em comportamento profissional meramente burocrático, que, antes de ter o condão de auxiliar na construção de nova ordem social,  apresenta efeito contrário, auxiliando na manutenção do status quo - injusto - vigente. Neste aspecto, assente-se que nossa atividade profissional, centrada apenas na proposta de responder às conseqüência dos atos criminosos, significa parca colaboração para o propósito de ver instalada uma sociedade progressivamente melhor e mais justa. Tão-só encaminhar para as cadeias públicas ou para o sistema de segregação oficial os autores de fatos criminosos não auxilia em nada - afora uma imaginada prevenção geral - à tarefa de impedir ou prevenir a prática de novos delitos. Daí a preocupação com a realidade social brasileira ser o ponto central da reflexão vinculada à violência praticada por e contra crianças e adolescentes, conjugando-se o pensamento de que nossa infância e juventude (e suas famílias ) estão visceralmente ligados a uma situação de miserabilidade. Segundo estatísticas do IBGE, cerca de 56% (cinquenta e seis por cento) dos brasileiros integram famílias cuja renda per capta é inferior a meio salário mínimo (que, diga-se, mesmo quando percebido por inteiro se mostra insuficiente para atender às necessidades básicas do trabalhador e de sua família, correspondendo hoje, inclusive, a 18% (dezoito por cento) do seu valor real quando instituído em 1940). Vale lembrar que existe no país cerca de 30 milhões de pessoas (cidadãos?!) vivendo em situação de indigência, ou seja, abaixo da linha de pobreza. Nesse quadro social evidente, resta que o primeiro enfrentamento no sentido de evitar a criminalidade e a violência infantil-juvenil deve buscar a superação da condição de marginal (insista-se, à margem dos benefícios produzidos pela sociedade) infelizmente vivenciada pela maioria das crianças e adolescentes brasileiros. Evitando-se a marginalidade, além de se estar cumprindo os ditames do Estatuto da Criança e do Adolescente (assim como de todos os demais documentos internacionais pertinentes aos direitos fundamentais das crianças e adolescentes), certamente se estará impedindo o aumento do índice de delinqüência infanto-juvenil. No momento em que o Poder Público responder concretamente ao seu dever institucional de assegurar a todas as crianças e adolescentes - com prioridade absoluta - o exercício dos direitos elementares da cidadania, indiscutivelmente caminharemos para contexto real inibidor da marginalidade e, de conseqüência, determinante de efetiva prevenção à criminalidade"[9].

 

Aduz-se que interpretações coerentes com a realidade social brasileira e que objetivam a proteção integral aos adolescentes e a prevenção à criminalidade se fazem presentes também em tribunais superiores[10], o que corrobora o pensamento de Miguel Reale, ao afirmar que:

 

"O trabalho do intérprete, longe de reduzir-se a uma passiva adaptação a um texto, representa um trabalho construtivo de natureza axiológica, não só por se ter de captar o significado do preceito, correlacionando-o com outros da lei, mas também porque se deve ter presentes os da mesma espécie existentes em outras leis: a sistemática jurídica, além de ser lógico-formal, é também axiológica ou valorativa"[11].

 

Não entendendo suficientes as argumentações até então realizadas, deve-se considerar as disposições normativas constitucionais no que diz respeito à proteção à criança e ao adolescente, pois a Constituição Federal revela o plano normativo supremo, que determina e origina as competências e interpretações de todas as expressões normativas, que da norma constitucional recebem validade.

 

Do ponto de vista lógico e formal, a Constituição Federal é a norma basilar de todo o ordenamento jurídico, que torna possível a vivência do Estado Democrático de Direito, pois traça determinações principiológicas que influenciam a interpretação e a experiência do Direito como um conjunto de regras gradativas e hierarquicamente conectadas, por conseqüência normas  entre si logicamente concatenadas, revelando-se a coerência e a subordinação entre elas.

 

Diante da concepção lógico-normativa do sistema jurídico, em que a coerência do sistema normativo com a ordem constitucional é condição sine qua non para sua validade, ajunta-se a questão da tridimensionalidade do ordenamento jurídico, que revela serem as normas "momento culminante de um processo" (Reale), que jamais estarão separadas dos fatos, razão de ser de sua criação, e ainda, que em sua origem há conjunto valorativo que justifica a sua razão de ser.

 

Com base nestas assertivas, verifica-se que a Constituição Federal, em capítulo específico, destinado à família, à criança, ao adolescente e ao idoso, determina:

 

Artigo 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

 

"O ordenamento jurídico, enquanto expressão de uma experiência social e histórica, é constituído por múltiplos complexos normativos entre si relacionados.Tais complexos normativos acham-se em contínua transformação, havendo um que se põe como círculo envolvente dos demais: é o complexo normativo constitucional"[12], que condiciona a vigência e eficácia, assim como revela os caminhos interpretativos das demais normas jurídicas.

 

Sob esta perspectiva, o ordenamento constitucional, por meio do artigo 227, apresenta conteúdo principiológico que deve ser observado quando da interpretação e aplicação de outros complexo normativos, como são o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

Por si só, o caput do artigo 227 apresenta o conjunto de direitos e garantias fundamentais que o Estado há que concretizar, seja por meio de posturas passivas, seja por meio de ações que priorizem a vida, a saúde, a alimentação, a educação, o lazer, a liberdade e cultura, em suma, conjunto de atuações estatais que concretizem a dignidade humana.

 

O valor dignidade humana está expresso enquanto princípio fundamental, arcabouço do sistema jurídico constitucional, assim como previsto especificamente no capítulo que trata da infância e juventude, determinando a atuação dos agentes estatais, dos legisladores e aplicadores das normas no sentido de garantir o que dispõe o caput do artigo 226.

 

Em seus parágrafos, há um que de forma determinante apresenta a proteção especial às crianças e adolescentes, e especificamente aos adolescentes, a garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, e igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica (art. 226, parágrafo 3º., IV do CF). Há ainda a necessidade de obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa de liberdade, referindo-se,  in casu, à medida de internação (226, parágrafo 3º., V, CF).

 

Há ainda, em dispositivo diverso, norma de grande influência sobre os ordenamentos infraconstitucionais. Trata-se da inimputabilidade dos menores de 18 anos de idade, sujeitos que estão às normas da legislação especial.

 

Estas disposições constitucionais, em sua interpretação, por si só seriam suficientes para demonstrar que os menores de 18 anos sujeitam-se a uma legislação específica, e neste sentido, todo e qualquer tipo de atuação, a esta legislação específica deve estar subordinada, o que revela, em consonância com o parágrafo 3º, IV, que o procedimento para apuração de atos infracionais deve estar disposto em legislação que objetiva sobretudo a concretização dos valores e direitos insertos no caput do artigo 226 CF.

 

Se dispositivos constitucionais apresentam a possibilidade de punição para adolescentes infratores e de tomada de atitudes que objetivam a sua proteção por meio de uma legislação especial, não teria sentido a aplicação do Código Civil no que diz respeito à maioridade civil, criando óbice à aplicação de medidas sócio-educativas. A aplicação do Código Civil geraria uma interpretação de bloqueio, colidente com os dispositivos constitucionais acima apresentados, uma vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente é a legislação apropriada para a garantia dos direitos da criança e do adolescente.

 

Sintetiza Roberto Barbosa Alves que o ECA,

 

“construído sobre a doutrina da proteção integral, exige obediência estrita à condição peculiar de seus destinatários e à garantia de prioridade absoluta (artigos 1º., 4º. e 6º.). Assim, ‘como as principais relações jurídicas entre o mundo infanto-juvenil e o mundo adulto encontram-se disciplinadas no micro-sistema criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a elas são aplicáveis às normas nele previstas. Somente deve incidir as normas do Código Civil, do Código de Processo Civil, etc., quando houver lacuna no Estatuto da Criança e do Adolescente, e mesmo assim se não forem compatíveis com os seus princípios fundamentais"(Garrido de Paula, Paulo Afonso. Direito da criança e do adolescente e tutela jurisdicional diferenciada. São Paulo, RT, 2002, p. 83)[13].

 

Ademais, o Código Civil é a legislação que deve ser aplicada em caráter subsidiário, que reforça ainda mais o nosso posicionamento no sentido de que o Estatuto da Criança e do Adolescente é o ordenamento legal a ser aplicado a  todos os adolescentes submetidos a medidas sócio-educativas.

 

Como argumenta o Procurador de Justiça Ricardo Moreira Lins Pastl,

 

"as normas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente possuem caráter manifestamente protetivos aos interesses dos adolescentes, pautado na doutrina da proteção integral, de forma a oportunizar uma almejada possibilidade de educação e ressocialização, dada a prática nociva de atos infracionais, através da aplicação de medidas sócio-educativas, inclusive após completar a maioridade penal, mas desde que o fato tenha sido cometido antes desta (artigo 104 do Estatuto da Criança e Adolescente), atendendo a esta condição peculiar dos destinatários da norma, de pessoas em formação.

             Nesta senda, saliente-se que o procedimento para aplicação de medidas sócio-educativas existe visando, em primeiro lugar, o próprio interesse do adolescente a sua reinserção na comunidade, na vida em sociedade, como modo de afirmar o primeiro ditame consagrado no Estatuto da Criança e do Adolescente, que é, como referido, da proteção integral à criança e ao adolescente, em consonância com a ‘Convenção sobre os direitos da criança’, aprovada em 10/11/1989, da qual o Brasil foi um dos signatários, conforme Decreto legislativo nº 28, de 14/91/1990 "[14].

           

Em razão de sua aplicação de forma subsidiária, não há razão para a alegação de uma provável antinomia entre diplomas legais (Código Civil e ECA), pois antinomia reside na existência de normas com igual hierarquia que apresentam dispositivos colidentes.

 

Para solucionar o problema no ordenamento jurídico, pois este não pode apresentar lacunas ou deixar de produzir soluções para problema apresentados, existem formas para resolução de antinomias.

Para Bobbio, antinomia é

 

"aquela situação na qual são colocadas em existência duas normas, das quais uma obriga e a outra proíbe, ou uma obriga e a outra permite, ou uma proíbe e a outra permite o mesmo comportamento. Mas a definição não está completa. Para que possa ocorrer antinomia são necessárias duas condições que, embora óbvias, devem ser explicitadas.

             1) As duas normas devem pertencer ao mesmo ordenamento. O problema de uma antinomia entre duas normas pertencentes a diferentes ordenamentos nasce quando elas não são independentes entre si, mas se encontram em um relacionamento qualquer que pode ser de coordenação ou de subordinação".

                                               (...)

            2) As duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade. Distinguem-se  quatro âmbitos de validade de uma norma: temporal, espacial, pessoal e material. Não constituem antinomia duas normas que não coincidem com respeito a:

a) validade temporal: " É proibido fumar das 5 às 7 " não é incompatível com : " É permitido fumar das 7 às 9 ";

b) validade espacial: " É proibido fumar na sala de cinema" não é incompatível com : " É permitido fumar na sala de espera";

c) validade pessoal: " É proibido, a menor de 18 anos, fumar" não é incompatível com " É permitido aos adultos fumar";

d) validade material: " É proibido fumar charutos " não é incompatível com "É permitido fumar cigarros"[15].

 

Com base nesta citação, podemos, a priori, concluir que não há entre o ECA e o Código Civil qualquer relação de coordenação ou de subordinação. O novo Código Civil não tratou especificamente da aplicação de medidas sócio-educativas, muito menos realizou qualquer referência ao ECA a revelar qualquer relação entre os ordenamentos, razão maior para afirmar a independência entre os ordenamentos legais.

 

Ademais, há que se verificar se o Estatuto e o Código Civil têm o mesmo âmbito de validade.

 

Mais uma vez, com base nas lições de Norberto Bobbio, podemos verificar que a possível antinomia residiria no âmbito de validade pessoal, ou seja, que o Estatuto e o Código Civil dispusessem determinações normativas colidentes quanto à aplicação de medidas sócio-educativas aos menores de 18 anos.

 

Observa-se que o Código Civil  apenas estabeleceu nova faixa etária para a maioridade civil (18 anos), coincidindo com a maioridade penal. O legislador optou transformar a capacidade de exercício para 18 anos, momento em que os maiores de 18 anos passam a poder responder por seus atos e contrair direitos e obrigações. No entanto, não há qualquer disposição normativa no Código Civil que trate das medidas sócio-educativas existentes no Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, não há qualquer dispositivo que mencione a não aplicação da legislação específica, o que revela a inexistência de qualquer relação de subordinação ou de dependência entre os ordenamentos acima aludidos.

 

O que se deduz é que o Código Civil tratou tão somente de estipular a maioridade civil, não fazendo qualquer alusão ao Estatuto da Criança e do Adolescente, e, por conseqüência, não fazendo qualquer alusão à aplicação em caráter excepcional das medidas sócio-educativas (aos menores infratores) até os 21 anos de idade, assim como não fez qualquer alusão ao Código Penal, quando apresenta como minorante a idade de 21 anos, para a dosimetria da pena.

 

Isto nos leva a crer que não há qualquer antinomia jurídica entre o Código Civil e o ECA, pois não são ordenamentos incompatíveis que estejam disputando o mesmo âmbito de validade. Ademais, vale lembrar mais uma vez que a Constituição Federal, como ordenamento que define o âmbito de validade das demais normas, tratou de determinar que adolescentes e crianças devem ser regidos por ordenamento legal específico, razão por que não haveria motivos para que o Código Civil dispusesse acerca da aplicação de medidas sócio educativas.

 

Vale, contudo, por amor à argumentação, salientar o disposto no artigo 2º, parágrafo segundo da Lei de Introdução ao Código Civil, que afirma: "A lei nova, quer estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior".

 

Este dispositivo normativo, que objetiva prevenir qualquer conflito entre  normas, apresenta solução específica, demonstrando que lei geral nova não tem o condão de revogar a lei especial, mais antiga. Em outras palavras, o Código Civil, por ser ordenamento legal que objetiva tratar das relações entre pessoas no seio social, não tem por atribuição tratar dos adolescentes e crianças, nem muito menos tem por pretensão trazer novas disposições normativas referentes aos procedimentos por atos infracionais. Assim, evidente fica que o Código Civil tem vigência e eficácia e que trouxe inovações quando à maioridade civil. Todavia, não traz qualquer determinação que interfira na aplicação e na interpretação do Estatuto da Criança e do Adolescente como um todo.

 

Como bem argumenta Pastl,

 

"para que se cogitasse da ocorrência de revogação do texto legal menorista pelo Código Civil brasileiro, imperioso seria, por primeiro, que esta disposição moderna houvesse modificado diretamente a pretérita, ou, ainda, que contivesse disposições com esta conflitantes ou colidentes (pela disciplina distintas, v.g.), o que não se observa na espécie.

             Acontece que o novo Código Civil não tratou, justamente pela especificidade da temática, do ato infracional, do respectivo procedimento para a sua apuração e menos ainda da aplicação ou da execução das medidas sócio-educativas. Tampouco se pode extrair, pelo exame dos diversos diplomas legais, que as disposições gerais contidas na lei civil fundamental ora renovada sejam incompatíveis com as regras especiais do Estatuto da Criança e do Adolescente - mesmo porque a eventual incompatibilidade implícita entre duas normas não se presume, devendo, na dúvida, ser consideradas conciliáveis -, o que retira qualquer plausibilidade na compreensão acerca da revogação desta.

            Se a lei nova houvesse criado sobre o assunto da infância e juventude um sistema completo e diferente do estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, estupefação não existiria de que todo o sistema teria sido afastado"[16].

 

Concluindo, descabido a corrente que objetiva dar uma interpretação restritiva e “encolhedora” ao Estatuto da Criança e do Adolescente, pois “lex posterior generalis non derrogat legi priori speciali”.

 

Temos que ter, como “operadores do direito”, a responsabilidade e sensatez para interpretar o ordenamentos jurídico, atividade que devemos realizar, considerando sempre as diretrizes constitucionais. Certamente, se posições doutrinárias como a que contestamos tomarem espaço no meio jurídico, no futuro, observaremos o recrudescimento dos debates e argumentos a favor da diminuição da maioridade penal, justamente pela falta de prevenção da criminalidade, que é um dos objetivos do ECA.

 

Necessitamos de uma postura coerente com as atribuições que atualmente o Ministério Público e o Poder Judiciário detêm. Não podemos virar as costas para a sociedade e para as necessidades e anseios que dela provêm. Devemos assumir uma posição que objetiva a realização dos direitos e garantias fundamentais das crianças e dos adolescentes. Precisamos ter a serenidade e perspicácia para interpretar o ordenamento jurídico consoante os problemas sociais.

 

Como bem argumenta Plauto Faraco de Azevedo:

 

"Diante da situação atual, degradante da condição humana, não pode a Ciência Jurídica repousar no formalismo conceitual, fechando os olhos à realidade. Quanto mais nesta apoiar-se, comprometendo-se com a realização da solidariedade humana, tanto mais autêntica será. Necessita a Ciência do Direito ultrapassar o "puramente" jurídico, auscultando o pulsar da vida, que está a reclamar nova configuração político-jurídica, inspirada pela ética da solidariedade, em que o homem reencontre o humano, em si e no semelhante, não obstante o clamor, orquestrado pela "grande" mídia, em favor de um neoliberalismo economicista, divorciado da moral, centrado no lucro e benefício de poucos, em detrimento da maioria, falazmente identificado com a modernidade. Para que o jurista possa assumir posição consentânea com sua responsabilidade, no grave quadro que se configura, tem que ser capaz de ir além da formação positivista, que o quer operando como máquina de articulação e encadeamento de conceitos, em nome de uma inventada "neutralidade científica" de seu saber. O Direito não é ciência especulativa, mas prática, ensejando efeitos sociais dramáticos. O exame atento e crítico da história do direito demonstra que o esforço dos juristas tem buscado "conciliar as técnicas do raciocínio jurídico com a justiça", ou ao menos com a aceitabilidade das decisões, o que prova "a insuficiência, no Direito, de um raciocínio puramente formal, satisfeito com controlar a correção das inferências, sem realizar juízo de valor sobre a conclusão". Os conceitos, de que se serve a linguagem, tanto jurídica quanto vulgar, desservem sua função quando obscurecem a realidade a que aludem, ao invés de iluminá-la"[17].

 

Que possamos melhor compreender os textos jurídicos e melhor aplicá-los em conexão com a nossa realidade!

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALVES, Roberto Barbosa. O novo Código Civil e a responsabilidade do adolescente infrator, p. 2 (mimeo).

 

AZEVEDO, Plauto Faraco. Direito, justiça social e neoliberalismo. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999.

 

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

 

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense: 2002

 

PASTL, Ricardo Moreira Lins. Parecer em Habeas Corpus, número 70005971270 (mimeo)

 

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2002.

 

SOTTO MAIOR NETO, Olympio de Sá. 1.2 – SIM À GARANTIA PARA A INFÂNCIA E JUVENTUDE DO EXERCÍCIO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ELEMENTARES DA PESSOA HUMANA. NÃO À DIMINUIÇÃO DA IMPUTABILIDADE PENAL (mimeo).

 

Maioridade civil não extingue aplicação de medida sócio-educativa. http:// www.abmp.org.br/noticias.php?origem=2eid-1768, capturado em 24/04/2003.

 

Módulodeinternamento.http://www.hipernet,ufsc.br/foruns/crianca_e_adolescente/documentos/si_doss.1htm, capturado em 24/04/2003.

 

Princípios orientadores e aplicação. http://www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2282, capturado em 24/04/2003.

 

 

NOTAS

 

1. Azevedo, Plauto Faraco. Direito, justiça social e neoliberalismo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 21.

 

2. Outra questão que tem sido levantada se refere ao módulo máximo de internamento de um adolescente infrator, fixado em 3 anos, com limite em 21 anos de idade para sua liberação. A matéria, embora admita avaliação, merece algumas reflexões frente ao conjunto do sistema penal do imputável, apresentado como solução ao controle da criminalidade. Deve-se considerar, por exemplo, que, para um adulto merecer três anos "fechado", sem perspectiva alguma de atividade externa, sua pena deverá situar-se em um módulo não inferior a 18 anos de reclusão, eis que cumpridos 1/6 da pena  (que são os mesmos três anos a que se sujeita o adolescente) terá direito ao benefício. Não se pode desconsiderar, no caso do adolescente, que três anos na vida de um jovem de 16 anos representa cerca de 1/5 de sua existência, em uma fase vital de transformações, na complementação na formação de sua personalidade, onde se faz o possível a fixação de limites de valores.

Mesmo aqueles jovens de remoto prognóstico de recuperação merecem tal oportunidade, até porque, adequadamente tratados, são animadores os resultados obtidos. A experiência que se tem tido nestes mais de seis anos de Estatuto da criança e do adolescente é altamente satisfatória, a ponto de se poder afirmar que um índice de 70 a 80% dos jovens adequadamente atendidos nas medidas sócio-educativas que lhe são impostas, obtém plenas condições de uma completa em integração social ao final (In: Módulo  de internamento.

 http://www.hipernet,ufsc.br/foruns/crianca_e_adolescente/documentos/si_doss.1htm, capturado em 24/04/2003.

 

3. Princípios orientadores e aplicação

http://www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2282, capturado em 24/04/2003.

 

 

4. Há que se ressaltar que o projeto de lei nº 6.923/2002, atualmente em tramitação na Câmara, propõe aumento do prazo de internação máximo para seis anos, com o limite etário para a perpetuação da medida, que passa a ser de 24 anos.

 

5.  In: O novo Código Civil e a responsabilidade do adolescente infrator, p. 2 (mimeo).

 

6.  Princípios orientadores e aplicação. ttp://www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2282, capturado em 24/04/2003.

 

7 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense: 2002, p. 124-25.

 

8  Reale, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 292.

 

9 Sotto Maior Neto, Olympio de Sá. 1.2 – SIM À GARANTIA PARA A INFÂNCIA E JUVENTUDE DO EXERCÍCIO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ELEMENTARES DA PESSOA HUMANA. NÃO À DIMINUIÇÃO DA IMPUTABILIDADE PENAL (mimeo).

 

10. "A maioridade civil, reduzida pelo novo código civil de 21 para 18 anos, não gera a extinção de medidas sócio-educativas aplicadas pela prática de atos infracionais. A posição unânime é dos integrantes da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, que somente na sessão do julgamento de hoje (2/4) apreciou 10 pedidos de habeas corpus para jovens que atingiram a maioridade civil, sob alegação de constrangimento ilegal.

Os magistrados consideram que Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de forma expressa estabelece o limite temporal de 21 anos para a aplicação de medidas sócio- educativas, não trazendo referência alguma à maioridade civil.

Ao denegar habeas corpus na sessão de hoje, o desembargador Sérgio Fernando Vasconcelos Chaves destacou que o ECA estabelece um critério lógico para a aplicação de medidas sócio-educativas, importando a idade em que o ato infracional ocorreu. "As medidas sócio-educativas têm conteúdo pedagógico, e até os 21 anos considera-se a pessoa em desenvolvimento".

Em voto lavrado em outro pedido impetrado, o desembargador Luiz Felipe Brasil Santos salientou que "entendimento diverso conduziria à nefasta impunidade, uma vez que estariam inteiramente desprovidos de sanção autores de atos infracionais cometidos às vésperas de implementar 18 anos" (In: maioridade civil não extingue aplicação de medida sócio-educativa. http://www.abmp.org.br/noticias.php?origem=2eid-1768, capturado em 24/04/2003).

 

11. Reale, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 293.

 

12. Reale, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2002.

 

13. Pastl, Ricardo Moreira Lins, Procurador de Justiça. Parecer em Habeas Corpus, número 70005971270 (mimeo).

 

14 Pastl, Ricardo Moreira Lins, Procurador de Justiça. Parecer em Habeas Corpus, número 70005971270 (mimeo).

 

15.  Bobbio, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora universidade de Brasília, 1997, p. 86-88.

 

16. Pastl, Ricardo Moreira Lins, Procurador de Justiça. Parecer em Habeas Corpus, número 70005971270 (mimeo).

 

17. Azevedo, Plauto Faraco. Direito, justiça social e neoliberalismo. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999. p. 57-8.

 

 

NOTA SOBRE A AUTORA

 

Daniella S. Dias é Doutora em Direito da UFPE, Professora da Graduação e Mestrado da UNAMA, Professora da Graduação e Mestrado da UFPA e Promotora de Justiça.