O ADOLESCENTE E A SEXUALIDADE

 

 

Amparo Caridade[1]

Psicóloga. Psicoterapeuta.

 

 

“Crise” no adolescente e no mundo

 

A maior parte dos teóricos descreve a adolescência como sendo uma etapa de crise. Crise de identidade, crise relacional, familiar, crise de auto-estima, de falta de sentido para a vida. A referência maior é a de que esse é um estágio atravessado por conflitos, dúvidas, inquietações e mal-estar. Concebo a crise, como algo que é próprio do sujeito, quando nele se operam intensas transformações. Nesse sentido, a crise da adolescência é expressiva do crescimento que nela se dá; crescimento marcado por desorganizações físicas, hormonais, psíquicas, emocionais e por conseqüentes reorganizações. Toda crise nos coloca diante de emergências, enfrentamentos, superações, desafios. Em culturas orientais, o termo significa “oportunidade e perigo”, veiculando idéias de promessas e receios, que são típicos do que é vivido em um estado emergencial de mudança.

 

Há crises que ocorrem mais proximamente ao sujeito, outras parecem estar na ordem das coisas e do mundo, ou seja, aparentemente elas se dão na externalidade do indivíduo. Na realidade, não se pode separar o sujeito da cultura. Há uma profunda interação entre ambos. Mundo e condição humana completam-se, no entender de H.Arendt, 1993. A cultura impõe suas marcas inclusive nos corpos dos sujeitos. O corpo “é um agente da cultura, [...] um texto da cultura” (Bordo, 1997); é “sede de signos sociais” (Rodrigues, 1986). Por mais que os teóricos mostrem o adolescente como um ser em crise, teremos sempre de compreendê-lo, situando-o  em seu tempo, em sua cultura.

 

A sexualidade vivida pelo adolescente ganha a feição do contexto cultural em que ele se insere. A sexualidade é plasmada pela linguagem e pelos valores vigentes nessa época. Não há uma determinação biológica que mantenha um definitivo acerca do sexual. Nada está definitivamente estabelecido. Costa diz: “Tudo está permanentemente sujeito à revisão, pois cada sociedade inventa a sexualidade que pode inventar” (in Catonné, 1994). Levanto aqui duas interrogações que tentarei explicitar no decorrer do texto.

 

1. Que tipo de cultura está subsidiando o ser adolescente na contemporaneidade?

 

2. Que tipo de sexualidade ele está inventando para situar-se em sua época?

 

Em Sociedade do Espetáculo, Guy Debord (1997) analisa o tipo de sociedade em que vivemos: uma sociedade em que a vida é pobre e na qual os indivíduos são obrigados a contemplar e consumir passivamente imagens de tudo o que lhes falta na vida real. A vida se torna assim uma imensa acumulação de espetáculos. Na medida em que assiste passivamente aos espetáculos, o indivíduo aliena-se, não vive, consome imagens e ilusão ... “Quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo” (idem). A mídia tornou-se imperiosa e impositiva pelo gigantismo da imagem. Já não é preciso ler, pensar, refletir, basta ver.

 

Isso é por excelência alienante, porque nos faz deslizar da condição de seres pensantes a meros expectadores. A lógica da Sociedade do Espetáculo é: “O que aparece é bom, o que é bom aparece”. Disso, Debord deduz que “o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana - isto é, social - como simples aparência”. O autor lamenta que tenhamos deslizado historicamente do SER para o TER e agora, simplesmente para o PARECER. É nesse contexto do aparente, do revelado, do espetacular, que a sexualidade é mostrada e vendida também como mercadoria, compondo nossa cesta básica de ilusões.

 

É no contexto da Cultura do Narcisismo, fragmentada em mínimos eus, terra do “salve-se quem puder”, que o adolescente desenvolve sua sexualidade. Imerso nessa realidade, a ela pode responder, fazendo uso do outro como mero instrumento de satisfação narcísica, objeto descartável após a cota de prazer desejada. O sentido da alteridade vai perdendo força na medida em que a atenção é mantida em relação ao corpo. O afeto, menos valorizado que o desempenho, vai sendo posto à margem. É desse contexto narcísico de satisfação, que emergem a intolerância, a violência, a desconfiança para com o outro. Sem dúvida, esse não é um contexto saudável, psíquica e socialmente, para estréias amorosas e sexuais dos jovens.

 

O adolescente contemporâneo vive sua sexualidade em meio às referências que invadem seu imaginário. Ele é ator integrante do espetacular de nossa cultura. Como tal, é continuamente convocado a consumir imagens mais que a refletir, a elaborar, ou a pensar. Com isso é empurrado a permanecer na periferia de si mesmo, e nesse embotamento reflexivo, é difícil construir projetos pessoais, que lhe possibilitem reconhecer-se como alguém de valor. Sem projetos, fica sem motivo para valorizar a si mesmo e a vida. Na autodesvalorização, ele banaliza também o outro. A prática clínica vem identificando um incremento dessa banalização do eu e da vida, através dos sintomas que trata. É cada vez maior a presença de depressões, fobias, pânico e tentativas de suicídio, que vêm apresentando-se em camadas cada vez mais jovens da população. Ao meu ver, isso é expressivo de um mal estar, de uma autodesvalorização, de uma menos valia e da falta de sentido e de valor para a vida. Não é de admirar a frieza com que brincam de Roleta Russa, ou fazem sexo sem preservativo. Não é apenas a vida em seu fio trágico, é a vida em seu pouco valer.

 

Em “O Mal-Estar da Pós-Modernidade”, Bauman,1998, diz:

 

“Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais”.

 

Embora Bauman não tenha referido-se à questão das DSTs ou da Aids, sua reflexão nos faz pensar, que o homem pós-moderno busca sua provisão de prazer e felicidade num contexto de mínima segurança. A Aids é a marca da insegurança que ronda a ração de prazer que nos é possível conquistar. Esse é o contexto pós-moderno da vivência do sexo: liberdade e insegurança.

 

 

 

A sexualidade do adolescente

 

Descobrir a vida é tarefa muito excitante. Sou tentada a recorrer à imagem de um beija-flor, para dizer que o adolescente é alguém que experimenta sua sexualidade na rapidez, na leveza e na diversidade. Tenho receio de que a imagem não seja adequada, dada a pouca leveza da vida contemporânea.

 

Contudo devo admitir, que é pulsão beija-flor, a que anima seu investimento sexual. Num veloz bater de asas o beija-flor colhe o néctar de muitas flores, sem se deter em nenhuma especificamente, mas sem desrespeito algum, sem violação, sem estupros. Diria que cumpre apenas seu fazer e estar em seu mundo “passarinhal”. Que tipo de vínculo ele estabelecerá com cada flor? Ninguém pergunta por isso, ninguém interroga, avalia ou julga. Pelo contrário, um sentimento de encanto é trazido por sua graciosa presença.

 

Embora no humano, isso seja muito diferente, mais que julgar os adolescentes, melhor seria compreender o que fazem e sob que ética o fazem. A prática do ficar parece-me expressiva disso que chamo de pulsão beija-flor. Na ética adolescente, ficar significa não ficar, não ter compromisso com amanhã, não criar vínculos definitivos. É, pois, não ficando quando ficam, que eles ensaiam, descobrem, experimentam, conhecem sensações, sem os “pudores” de outras gerações. Em pesquisa realizada na UNICAP (Caridade, A; Figueiredo, A.K.de; Gomes, M.B.e Jullierme,M.,1999) com estudantes dos diversos cursos, identificamos vários sentidos para o ficar, na experiência das pessoas da amostra: ora ele representa uma marca do tempo, como a superficialização típica da pós modernidade, ora pode significar um caminho de conhecimento para se chegar ao namoro, ora pode representar um exercício de liberdade, ou ainda é algo visto como muito relativo por deixar quase sempre uma experiência de vazio depois da ficada. O que se observou é que o ficar (para a amostra) expressa uma nova forma de relação, uma ética para os relacionamentos provisórios, típicos dos tempos de rapidez. Faz parte da regra, que nada fique depois do ficar.

 

Esse tipo de conduta descompromissada do adolescente, inquieta nosso olhar adulto, perturba nossas juras de amor eterno, confunde nossas promessas de fidelidade tipo, “até que a morte nos separe”. Pergunto, porém: não há descompromisso também por parte dos governantes em relação aos cidadãos, dos pais em relação aos filhos, dos educadores em relação aos seus alunos, de uns em relação aos outros? O modelo parece apenas repetir-se na conduta dos jovens que, sem hipocrisia, assumem que é bom ficar, sem compromisso.

 

É claro que isso tem conseqüências. Conhecemos as dificuldades psíquicas e sociais resultantes do descompromisso de pais e governantes, sobre seus filhos e cidadãos. Na Sociedade do Espetáculo que privilegia a aparência e o consumo, é provável que a eleição do outro, na relação erótica, seja, sobretudo a eleição de seu corpo, enquanto lugar de prazer. Há um risco sim de banalização do outro e de seu corpo, a violência e a posse podem instalar-se, e ao invés de partilha poderemos ter coisificação. Mas, quantos adultos em sagrados matrimônios, não coisificam o outro, banalizam seus parceiros, violentam seus corpos? Esse questionamento não deve servir de base à legitimação de comportamentos perversos em adolescentes, mas possibilitar que adultos revejam suas práticas antes de julgar éticas adolescentes que se baseiam em outros referenciais. Além disso, é importante lembrar, que o apelo a esse tipo de consumo sexual é gravemente estimulado pela mídia. Continuamente corpos “bonitos” são expostos e servem ao consumo voyeur, à venda de qualquer produto, ou à determinação de um padrão de beleza. Essa exposição deixa mensagens equivocadas: o prazer é possível com um corpo bonito; desejável é apenas o corpo jovem e bonito que é mostrado; a pessoa vale o corpo que tem; o padrão de beleza é aquele que é mostrado; a pessoa tem valor de mercado, vale pelo que parece.

 

Não há nenhuma dúvida, o sexo está liberado em nossos dias. Liberado e exposto. Saiu da privacidade, da intimidade da casa para a rua, para as telas, para a luz do dia. Desembaraçou-se dos direitos e deveres, dos laços, obrigações e direitos adquiridos. “Nada resulta do encontro sexual, salvo o próprio sexo e as sensações que acompanham o encontro; o sexo, pode-se dizer, saiu da casa familiar para a rua...” diz Bauman (1998). Essa é a sexualidade que vem sendo estimulada, insinuada: o exibicionismo de corpos, o voyeurismo de contemplá-los, e o fetichismo de consumí-los. Uma sexualidade vivida no corpo não na pessoa. Mais desempenho e sensação que sentimento. Mais uso do outro do que partilha. Mais quantidade que qualidade. Essa é a sexualidade que nossos adolescentes são estimulados a inventar.

 

Pais e filhos na “aldeia global”

 

Que limites deveriam ser colocados à pulsão beija-flor de nosso adolescente? No pássaro uma ordenação natural o protege de beijar flores que sejam carnívoras ou venenosas. Essa defesa está em seu código genético. No humano o limite seria ético. Essa é uma condição que se aprende, inicialmente, no próprio contexto familiar. É lá que se aprende a respeitar o outro, a tolerar as diferenças, a valorizar a vida e as pessoas, a viver com dignidade. A sociedade também educa/deseduca eticamente, quando expõe uma sexualidade desumanizada, ou quando mostra suas faces sadias e perversas, como se não houvesse diferença entre elas. A mídia parece viver um gozo publicitário em torno do sexo, da violência e do sofrimento contemporâneo. Como uma esponja, o adolescente vai absorvendo esse mal-estar, esses modelos sociais e sexuais.

 

Se não os educamos eticamente, poderão tornar-se meros e inescrupulosos consumidores de corpos ao invés de partilharem afeto e prazer. Em termos sexuais, ético seria aquilo que é bom e vivido em mão dupla, que atende ao interesse de ambos, que não violenta ninguém. Ou como diz Costa: “Em matéria de sexo, “bom” é tudo aquilo que possa tornar-nos mais autônomos nas escolhas que fazemos, respeitando as escolhas do outro; “mau” é tudo o que compromete essa liberdade de escolher”, (in Catonné, 1994). Referindo-se ao crescimento do adolescente, Winnicott, 1975, diz que esse crescimento “é também questão de um entrelaçamento altamente complexo com o meio ambiente facilitante. Se a família ainda tem disponibilidade para ser usada, ela o é em grande escala, mas se não mais se encontra disponível para esse fim,... torna-se necessária então a existência de pequenas unidades sociais, para conter o processo de crescimento adolescente”. Fica evidente a importância tanto do contexto familiar como do social, que devem ser facilitadores do processo de desenvolvimento.

 

Inquieto em seu “adolescer”, o jovem se depara com a falta de lei dos pais que já não sabem como agir nesse mundo pós-moderno. Sem a ordem da casa, com uma grande “liberdade” e num contexto de muita insegurança, o que lhe servirá de bússola? Como nós adultos, pais e profissionais, podemos ser um “ambiente facilitante” e não complicador de seu crescimento?

 

Embora cada caso seja singular, algumas atitudes podem ser pensadas. Talvez devamos ser mais transparentes, verdadeiros conosco, com nossas práticas, já que, enquanto adultos funcionamos para eles como espelhos. Afastando os véus de nossa hipocrisia adulta, podemos contatar nossos sentimentos, e estabelecer relações mais claras com os adolescentes, porque, sem culpa e sem fragilidades, teremos de estabelecer os limites que se fazem necessários. Nisso não temos PARECER seguros, apenas temos SER o que somos. Podemos também aprender algumas coisas com eles. Em segundo lugar é necessário abertura, disponibilidade interna para compreender como vivem sua sexualidade, sob que ética o fazem e como inserem sentimento nessas práticas. Para isto, é preciso abrir canais de expressão, facilitar, provocar, acolher o que deles procede como iniciativas positivas. Ouvir suas idéias, seus projetos é o respeito que lhes devemos. Lembro de uma experiência na universidade, quando solicitei aos alunos que criassem sua própria avaliação. Foi uma eclosão de criatividade que até hoje me emociona. Criaram poemas, peças de teatro, coreografias, murais, músicas, pinturas, tudo a partir dos teóricos que foram estudados. A sala tornou-se um palco revelador de uma boniteza que até então eu não tinha visto neles. Depois disso criaram um movimento que chamaram de PSI ARTE. Hoje eles invadem não só a universidade, mas as instituições, hospitais, ruas e até a mídia, mostrando a psicologia com arte. Tenho certeza de que os jovens têm seus belos caminhos (sexuais inclusive), que ainda não conhecemos.

 

Referências Bibliográficas

 

ARENDT,H.- A Condição Humana. Forense Universitária. R.J. 1993

 

BAUMAN, Z.- O Mal Estar da Pós-Modernidade. J.Zahar Ed. R.J. 1998

 

CARIDADE e outros - Anais do VII Congresso Brasileiro de Sexualidade Humana. R.J. 26 a 29 de maio de 1999.

 

COSTA,J.F.- in CATONNÉ,J.F.- A Sexualidade ontem e hoje. Prefácio. Cortez.SP.1994

 

DEBORD,G.- A Sociedade do Espetáculo. Contraponto. R.J. 1998

 

JAGGAR,A e BORDO,S.- Gênero, Corpo e Conhecimento. Rosa dos Tempos. RJ. 1997

 

RODRIGUES,J.C.- Tabu do corpo. Dois Pontos. R.J.. 1986

 

WINNICOTT,D.W.- O Brincar e a Realidade. Imago. R.J. 1975

 

 

[1] Amparo Caridade - Psicóloga. Psicoterapeuta, Mestra em Antropologia. Professora Adjunta da Universidade Católica de PE - Unicap. Livro publicado: Sexualidade - Corpo e Metáfora. Editora Iglu, 1997. Diversos artigos publicados em revistas brasileiras. Membro do Conselho Editorial da Revista da SBRASH - Sociedade Brasileira de Sexualidade Humana.

 

[2]  Texto extraído em:  http://www.bireme.br/bvs/adolec/P/cadernos/capitulo/cap20/cap20.htm