CONSIDERAÇÕES SOCIAIS E JURÍDICAS PARA QUE OS MUNICÍPIOS ASSUMAM SUAS OBRIGAÇÕES LEGAIS EM RELAÇÃO AOS MENORES CARENTES
João Barcelos de Souza Júnior
Promotor de Justiça, RS.
1. Exposição de
motivos
Nosso país tem sido palco de inúmeros estudos sobre a miséria humana e a falta
de condições materiais, morais, sentimentais e psicológicas para se criar uma
criança.
O índice de mortalidade infantil é assustador, enquanto que os sobreviventes
dessa cruel tragédia trazem consigo a marca da discriminação. A começar pelo
traço do analfabetismo, segue o da marginalização de comportamento e a falta de
estrutura para um convívio social mais humano e apaziguador. Estas são apenas
algumas das seqüelas que restam aos que insistem em resistir.
Por outro lado, ser um ex-menino de rua sobrevivente pode significar - como é
na maioria dos casos - ser uma pessoa alienada, incapaz de
amar e de criar um filho, deixando o seu próprio em condições muito
piores que aquela a que ele foi relegado, numa crescente evolução da dor social
sem precedentes, a cada nova geração.
Nós, da sociedade, perdemos muito tempo procurando responsáveis, buscando
incessantemente o culpado como forma de aliviar nossas consciências, pois,
havendo para quem apontar, a mente parece se livrar mais facilmente do exame
íntimo de culpa por tudo o que está a acontecer.
Queremos ver o Estado - aqui colocado em sentido genérico, ou seja, quer a
União, o Município, ou o Estado-membro - como o único responsável pelos
desajustes da sociedade, mas somos os primeiros a cobrar dos governantes
melhorias nos locais onde moramos, como o asfaltamento em cima do
paralelepípedo que já reveste a nossa rua, melhor iluminação, praças mais
bonitas etc., esquecendo que o dinheiro é escasso e que temos muitos irmãos
miseráveis cheirando a vala de esgoto aberta na porta de suas casas, e assim
por diante.
Somos os primeiros a coagir o governante, quer municipal, estadual ou federal,
a investir em obras de brilho e não de amor e de humanidade.
Damos preferência a nos lamentar e chorar com os espetáculos de horror da
Etiópia, da Somália, ou ainda do Haiti, passados pela televisão, via satélite,
como forma de nos enganarmos, pois assim compreendemos que a tristeza está
longe, enquanto que uma miséria verdadeira, tão cruel quanto aquelas, se
encontra ao nosso lado, no nosso Nordeste miserável, nas favelas de nossas
capitais, ou nas ruas da grande cidade em que vivemos.
Há quantos anos os miseráveis irmãos dormem embaixo de viadutos e pontes, com
seus filhos famintos e doentes, crianças que poderiam ser nossos próprios
filhos, e somente agora, de pouco para cá, alguns veículos de comunicação
começam a mostrar a realidade de anos, como a existente na grande São Paulo, e
que não é muito diferente da de Porto Alegre, apenas em escala menor.
Parece que o lixo embaixo do tapete começa a ser muito volumoso e não dá mais
para negar, eis que transborda pelas pontas, além de trazer desconforto para
quem pisa sobre ele, pois a irregularidade do plano causa tropeços e
desconforto a todos.
Fala-se em distribuição de renda, em redução de impostos com
maior rigor na fiscalização, em aumento de investimentos estrangeiros em
nosso gigantesco país, mas pouco se discute sobre saúde, sobre educação e sobre
desmarginalização da população inserida dentro do caos
social.
Sem a busca de ressocializar os que
estão fora da sociedade produtiva podemos crescer o quanto quisermos
materialmente, mas um contingente muito grande de famintos e desesperados
continuará a existir, a sofrer e a revidar todos esse sofrimento a quem quer
que transponha seu caminho, mais cedo ou mais tarde, de acordo com as
circunstâncias.
Precisamos de educação, de cultura, mas, sobretudo, para propiciar tudo de bom
que uma sociedade carece, necessitamos de amor ao próximo, dedicação, compaixão
e de trabalho desinteressado.
A quem interessa uma miséria descontrolada como a que temos?
A quem interessa tantos passando fome, morando embaixo de pontes, de viadutos e
de marquises, com seus filhos doentes e muitas vezes roídos por ratos, já que, sem
se alimentarem, passam a servir de alimentos a espécies inferiores da esfera
terrestre?
Certamente a ninguém mais, pois se alguns setores da sociedade possuem
interesse na pobreza de massa, fazendo com que esta sempre exista para lhes
servirem, esses mesmos, por sua vez, não querem algo que lhes fuja ao controle
e que lhes cause o pânico, relativamente comparável ao do médico (o criador) e
o monstro (criatura).
Chega de cobrar, chega de esperar e chega de acusar! Está na hora de todos se
darem as mãos, e na medida das possibilidades de cada
um alcançar o que lhe seja razoável, fazendo com que a sociedade mobilizada
venha a ser o remédio único contra a miséria e o desmando social.
A noção de cidadania é por poucos conhecida, confundindo-se esta com nacionalidade
ou com naturalidade. Não! Ser cidadão é ser capaz de influir no processo
governamental, com seriedade e dedicação. Ser cidadão é colocar a inteligência
em funcionamento em prol da sociedade, sem heroísmo e sem demagogia. Ser
cidadão é saber que o Estado é formado de povo, território e governo, e que
cada elemento destes tem uma função prioritária, e não entender, como de
costume, que o Estado tem de ser trabalhado pelo governo a fim de que este e o
território sirvam ao povo, como se este último tivesse apenas o dever de atuar,
como ser político, gerador de fatos sociais politicamente interessantes à
sociedade, apenas nas eleições.
A noção de Estado é muito ampla, e todos nós fazemos parte dela, e é ela quem
nos induz a trabalhar, a participar, e a nos sentirmos um pouco governantes
desse nosso imenso território.
Se as iniciativas governamentais estão restritas a poucos
setores, então também devemos nos agitar no sentido de buscar o rompimento dos
interesses centralizados e, ao mesmo tempo, o suprimento das lacunas. Tudo isso
como forma de se dizer não à hipocrisia de quem apenas quer contar com ruas
bonitas, asfalto liso para os automóveis modernos, e toda a parafernália que se
encontra em apenas alguns países do Primeiro Mundo.
Se cobrar não for o suficiente, então devemos iniciar a obra, pois somente
assim se desperta consciências adormecidas no brilhantismo
das grandes obras dos olhos e, ao mesmo tempo, medíocres do coração.
A humanidade se faz com homens, palavras, sentimentos e obras sociais, na busca
de se ajudar os irmãos necessitados. Mas quando estes não encontram para onde
se dirigir, então também nós ficamos desorientados e, não raras vezes,
praticamos crueldades no dia-a-dia, desprezando a quem mais necessita de
atenção.
Nossos pequenos irmãos, famintos de pão e subnutridos de amor, perambulam pelas
ruas de nossa cidade, assim como fazem uma legião de pequenos necessitados
pelas ruas desse nosso país continental.
Necessitamos responder à altura deste momento tão terrível da realidade nacional,
com garra, amor, dedicação e fé, não havendo lugar para desesperança e falta de
persistência.
Soluções existem, mas nenhuma é de fácil trato, muito menos de cômoda
aplicação, todas requerem tempo, recursos e dedicação.
Nossos pequenos irmãos, abandonados pelo mundo, têm de ser recolhidos,
colocados em proteção e ensinados tal qual nossos próprios filhos o são, pois é
necessário formar uma sociedade melhor para que ela venha ser, no amanhã, imune
a este tipo de catástrofe social, e para que aquilo que deva ser visto como tragédia nunca mais seja tratado como imagem natural
inserida na linha do horizonte.
Mas que não se confunda proteção paternal com paternalismo burro, ou
inteligente, dependendo do ângulo e do interesse de quem analisa a miséria humana,
pois nunca falta os que dela se sustentam.
O sofrimento não deve ser aceito, muito menos com
indiferença.
Da visão crítica do então Procurador-Geral do Ministério Público, Exmº Sr. Dr.
Francisco de Assis Cardoso Luçardo, no Congresso
Estadual do Ministério Público do Rio Grande do Sul, realizado em novembro de
1992, na cidade de Santa Maria - RS, pode se extrair, dos anais daquele evento,
vários dados cruéis em nosso país, assim transcritos, em parte:
"Em que sociedade vivemos? Trata-se de uma sociedade
caracterizada pela desigualdade social, provocada por uma estratégia perversa
de modernização. Essa iniqüidade e essa discriminação social podem ser vistas
pelos indicadores de distribuição de renda. Segundo dados do Núcleo de Estudos
Econômicos e Sociais da Unicamp, os 20% mais pobres tiveram, em 1960 e 1980,
sua participação na renda nacional reduzida de 3,9% para 2,8%. Já os 10% mais
ricos passaram de 39,6% para 50,9% da renda nacional. Em 1960, os 50% mais
pobres da população economicamente ativa detinham 16% da renda total, em 1980,
detinham 14,4% e, em 1983, detinham 12,24% da renda total. Visto do ângulo da
pobreza absoluta, o quadro revela-se muito mais grave. Em 1980, 60% das
famílias tinham rendimento de até 3 salários mínimos, ou seja, 37,96% do total
de famílias. Outros dados impressionam: 24% da população de São Paulo moram em
cortiços; 70 milhões de brasileiros sofrem de verminose; há 5 milhões de
brasileiros chagásicos; e 5 milhões sofrem de esquistossomose; a
mortalidade infantil tem sido equiparada à do Sri Lanka e da Malásia. Nossa
população de analfabetos equivale à soma
das populações de Minas Gerais e Rio de Janeiro, sendo que, de cada 100
brasileiros, 26 jamais passaram pelos bancos escolares; 62 não evoluem do
primeiro grau, e dos 12 privilegiados que chegam ao segundo grau, apenas 4 vão
à universidade.”
Uma pesquisa publicada na Folha de São Paulo revela que nem os ratos suportam uma dieta básica, constituída, essencialmente, de feijão,
farinha de mandioca, batata doce e um pouco de carne seca. Os dados são do
Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco. Os ratos que
receberam esta alimentação ficaram com a cabeça grande, corpo pequeno, pele
grossa, sexualidade retardada, magérrimos, com menor
capacidade de aprendizagem e morreram prematuramente.
O lar é o único refúgio que o homem tem na Terra, é o único local em que ele
tem maior tempo para pensar em que obras deve realizar
no dia que vem e erguer seu pensamento a Deus, na companhia de seus familiares,
buscando sempre se aperfeiçoar como gente e como cidadão.
E o que dizer de quem não tem lar?
E o que dizer das crianças que não têm família, pais, irmãos etc.?
Quem substitui um lar perdido, ou nunca alcançado?
Para as duas primeiras perguntas muitas respostas podem ser dadas, tanto no
aspecto sentimental, como no humano, ou, ainda, no técnico, psicológico.
No entanto, para a última pergunta uma resposta se impõe, e com certeza.
Somente substitui um lar perdido, ou nunca alcançado, um outro lar, que seja
verdadeiro, fraternal e de paz de espírito.
Temos a felicidade de contar com nossa família e com nosso lar, e por isso
mesmo temos a faculdade conferida por Deus de ajudar o nosso próximo, de também
fazer com que ele reencontre os seus, ou, caso isso não seja possível, que
reencontre um lugar onde possa chamar de casa, e que nela existam pessoas que
estejam prontas a acolhê-lo, a dar-lhe atenções de irmãos.
Casas, lares, meio pelo qual um pequeno ser, abandonado no mundo, tem a
possibilidade de descobrir, ou redescobrir, o convívio fraterno de uma família,
com irmãos de afeto, e não de sangue, que com ele se unirão para buscar uma
nova condição de vida, cultivando valores perdidos, mas indispensáveis para a
vida em sociedade.
Casas Lares, local onde pessoas, outrora marginalizadas, esquecidas pela
sociedade, se transformam em homens e mulheres, sob a direção de uma pessoa
devotada a esse fim, cujo nome pode variar de "Mãe Social" - como nas
Aldeias SOS - a qualquer outro que lhe expresse o verdadeiro valor na sua
magnitude plena.
Casas Lares, modo humano de se receber pequenos abandonados, transformando-os
em verdadeiros filhos, e lhes propiciando uma criação sadia e segura, como da
maioria das famílias de nossa sociedade.
Casas Lares, quantas coisas se poderia dizer dessa expressão que mais parece
ser obra de Deus do que de homens devotados como Hermann
Gmeiner, ou Helmut Kutin, ambos das Aldeias SOS!
O exemplo já existe, resta a nós segui-lo, com devoção e fé.
Necessitamos, para tanto, do auxílio Estatal, e na primeira ordem do Município,
através das Prefeituras e das Câmaras Municipais; do auxílio empresarial,
convocando-se os CDLs e a CICs
para essa luta em glória; convocando-se os clubes de serviços como o Lions Clube e o Rotary; e da
população em geral com convocações de préstimos via órgãos de imprensa,
escolas, igrejas etc.
A todos aqueles que não atenderem o chamado não será
expressada qualquer palavra de angústia ou de mágoa, mas apenas o mais
profundo silêncio.
A todos que responderem será dado presenciar, no futuro próximo, como é bom ter
participado do início de uma transformação social, e como é duro, aos que se
omitiram, ter ficado à margem.
Na opinião de Lígia Costa Leite, do Instituto de Psiquiatria da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, publicado na obra Estatuto da Criança e do
Adolescente Comentado, da Editora Malheiros, 2º edição, p. 260, abaixo
transcrita, há que se mudar o modelo de atendimento ao menor carente no país:
“Uma das mudanças importantes operadas pelo Estatuto está justamente na forma
de atendimento de crianças e adolescentes. Até então, as entidades responsáveis
por esse atendimento tinham como pressuposto básico ‘reformar’ o indivíduo,
modelando-o para se tornar num cidadão exemplar. Para alcançar esse resultado
utilizavam a repressão e a violência, mas não especificamente a física, e sim a
psíquica, ao se romper os elos sociais da vida pregressa das crianças. O que
quero dizer é que não havia preocupação com a educação, com a escolaridade e a
conseqüente profissionalização.”
Esse modelo de "cidadania universal" partia de parâmetros que pouco
ou nada têm em comum com a realidade brasileira, com seu povo e a pluricultura aqui existente. Objetivava-se um esforço de
controlar a vida social, corrigindo e reprimindo o comportamento daqueles que
não se enquadrassem nesse modelo.
Assim, o projeto de Nação Pós-República criou uma série de internatos cujos
nomes demonstravam suas intenções - institutos disciplinares, escolas correcionais,
escolas premunitórias, preventórios
etc. Apesar de todo o esforço dos Poderes Públicos e desejo da elite do País,
esta forma de atendimento fracassou, exigindo uma reformulação na sua base: a
infância hoje é portadora de direitos, e o primeiro deles é o direito à vida.
Surgiu, assim, a preocupação social de que as entidades reavaliem a prática
assistencial e implantem ações tendo como base a educação e o respeito
sócio-cultural.
Esse fracasso muito se deveu ao fato de os jovens geralmente recebidos nessas
entidades fazerem parte de um enorme contingente de excluídos da civilização
brasileira. Herdeiros de escravos, em sua maioria, são portadores de uma
cultura afro-brasileira que vem sendo negada e só se toma aceita como folclore.
Aprenderam a resistir, até inconscientemente, às forma
de dominação cultural e se tornaram invencíveis a essas instituições,
levando-as à inoperância e descrédito.
Reformular a forma de atendimento desses invencíveis é o desafio à sociedade
brasileira e expresso na Lei 8.069/90. Respeitar as diversas culturas e
aprender com elas a lógica social é uma necessidade urgente. Cabe a. nós fazer
cumprir o Estatuto, principalmente na fiscalização quanto à qualidade e forma
de atendimento de nossa infância.
Nesse sentido, o art. 90 fala da responsabilidade de cada entidade -
governamental ou não governamental - ao planejar e executar seus programas nas
diversas modalidades, desde a orientação e apoio sócio-familiar até quando a
internação se tornar o último recurso. Sentindo os direitos expressos no art.
227 da CF, esse planejamento e execução deverão assegurar prioridade absoluta
nos direitos à vida, dignidade, respeito, cultura,
lazer, entre outros.
É urgente uma mudança de mentalidade, de modo a intervir no foco de atenção de
cada entidade, tomando o adolescente e mesmo a criança o centro de toda a
atividade. Até agora, as preocupações e atenções acabam girando em torno dos
funcionários e seus benefícios ou privilégios ou da administração burocrática.
É comum se pensar que a criança não sabe agir, pensar ou decidir. Ela é privada
da liberdade, de pensamento e de expressão e acaba se tornando um ser
supérfluo, a não ser para garantir o emprego e a sobrevivência da instituição.
Assim, o art. 90 aponta para uma grande transformação desse quadro e fatalmente
reduzirá em quantidade a "indústria do menor", como se convencionou
chamar Programas como os citados acima. Caberá aos Conselhos Municipais dos
Direitos da Criança e do Adolescente, previstos no art. 88, o
registro de todas essas entidades. Os Conselhos Tutelares, objeto do
art. 131, a partir do registro das entidades, poderão zelar pelo cumprimento
dos direitos definidos nesta lei, garantindo a qualidade em cada entidade e um
resultado que beneficie não apenas a criança ou adolescente, mas a sociedade corno um todo.
O conceito de Casas Lares está inserido nesse novo contexto do Estatuto da
Criança e do Adolescente, pois não visa praticar uma ação de amestrar meninos e
meninas abandonados por suas famílias, com o puro fim de acomodar a preocupação
de alguns setores da sociedade que somente pensam em si, mas a de promover a
cidadania desse contingente de pequenos seres, nossos irmãozinhos necessitados
e desorientados.
2. Opções jurídicas para a edificação
das casas lares
Toda a estrutura deverá ser montada para que cada casa abrigue, no máximo,
cerca de oito menores sob a responsabilidade de uma mãe social, permanecendo o
grupo unido até a idade de progressivo desligamento, formando o vínculo
idêntico ao da família.
Nesse particular, é de se salientar as possibilidades
jurídicas viáveis de se ter uma instituição que congregue casas lares em cada
município, expondo-se o leque de opções, tanto no campo do Direito Público como
no do Direito Privado.
2. 1. Pertencente à administração municipal
direta
As casas lares podem ser obra da administração direta municipal, sendo criadas
por lei que autorize o gasto com pessoal e despesas de funcionamento,
incluindo-se previsão de abertura de vagas para os diversos cargos, bem como o
custo de edificação da sede.
No entanto, quanto ao cargo de "Mãe Social", ou outro nome que se
venha dar, como imaginar concurso público para preencher tais vagas? Como abrir
concurso público para um cargo onde o requisito primeiro é o amor e a dedicação
ao próximo?
Tal problema poderia muito bem ser solucionado com os conhecidos Cargos em
Comissão, demissíveis ad nutum, deixando-se os demais cargos para a via do
concurso público.
Mas existem alguns entraves burocráticos que podem levar o Poder Público
Municipal a não querer edificar, sozinho, tal obra.
O primeiro deles seria a questão da oportunidade política, pois poderia
esbarrar nos interesses políticos que se opõem a uma política social totalmente
dependente do "Estado", gerando toda uma discussão do que seria conveniente
ou não. Também sob esse mesmo prisma, setores políticos poderiam temer o uso
dessa estrutura em proveito próprio de futuros governantes, o que muito bem
poderia ser afastado por uma séria legislação municipal a esse respeito. De
qualquer sorte, convencer do contrário não seria encargo dos mais fáceis.
O segundo seria o aumento da máquina administrativa do Município, pois os
servidores das Casas Lares seriam servidores públicos, com ingresso e
investidura mediante concurso público, gozando de estabilidade após o término
do estágio probatório. Logo, frente à nova onda de terceirização dos serviços,
como forma de se enxugar empresas e entes estatais, seria necessário empreender
o argumento do justo motivo para esse aumento de quadro funcional.
O terceiro seria o fator adaptação com o tipo de trabalho a ser desenvolvido.
Como trabalhar com menores abandonados não é um trabalho
burocrático, requerendo disposição, dedicação, e ao mesmo tempo vocação,
dois anos de estágio probatório poderia ser tempo insuficiente para se avaliar
se a pessoa que está a exercer o serviço apenas suporta tal atividade, na busca
de manter o emprego, ficando o menor sujeito a segundo plano, ou se realmente
trata-se de seu pendor.
Esse terceiro argumento também é contornável, pois bastaria que se fizesse um
concurso que propiciasse o aproveitamento em outra área da mesma Secretaria ou,
quem sabe, até de outra, legalizando a mudança no quadro sem maiores prejuízos,
desde que outro servidor tivesse condições de preencher tal vaga.
2.2. Pertencente à administração
municipal indireta
a) como autarquia municipal: Pode-se pensar em instituir Casas Lares sob a
forma jurídica de autarquia municipal?
A resposta se impõe positiva, pelo menos no campo teórico, mas isso não quer
dizer que seja a melhor forma de se estabelecer essa prestação de serviço
público.
Aproximando-se da boa doutrina, mas com os defeitos de redação e omitindo a
personalidade de Direito Público, que é essencial, o Decreto-lei 200/67 assim
conceitua autarquia: "Serviço autônomo, criado por lei, com personalidade
jurídica, patrimônio e receita próprios para executar atividades típicas da
Administração pública que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão
administrativa e financeira descentralizada" (art. 5°, I).
Portanto, para se começar a falar em autarquia é sempre necessário ter em mente
os seguintes pontos:
- possui personalidade jurídica de Direito Público, e,
portanto, goza de todos os privilégios da entidade matriz;
- possui autonomia administrativa embora sofra o controle
da entidade matriz. Logo, para ser autônomo tem de ter receita própria, e
gestão de suas despesas desvinculada da entidade matriz.
Ora, pensando-se em instituir Casas Lares, para atender os
menores abandonados nos municípios, os requisitos da autarquia, em quase tudo,
vão ao encontro de tal fim, assim:
- pode ser instituída pelo município, através de lei própria, para que passe a
exercer atividade que lhe é própria, ou seja, o atendimento dos menores
abandonados;
- como irá fazer em nome do município, nada mais justo do que gozar dos
privilégios deste, exercendo as atividades como ente autônomo, por possuir
personalidade jurídica de Direito Público;
- como é instituída para ser autônoma, deve contar com
receita própria. E aqui o grande problema! Como imaginar que a atividade da
casa lar venha gerar receita, a menos que um bom número de
colaboradores mensais depositem suas doações?
Outra forma de receita, por exemplo, seria a instituição de um imposto com
destinação específica, ou ainda, sempre por lei, a criação de uma contribuição
voluntária agregada à arrecadação de outros tributos municipais ou estaduais.
Esta agregação não teria como finalidade outra coisa que não o fixar de uma
data base para o recolhimento, já que voluntária.
Mas, de qualquer sorte, esse entrave não deve parar aqui a avaliação da
possibilidade das Casas Lares serem instituídas por meio de autarquia
municipal, até porque alguma idéia, surgida de uma discussão séria sobre o
assunto, pode vir a superar a problemática que ora se coloca.
Como a autarquia é uma pessoa jurídica de Direito Público, embora integrante da
administração indireta, seu quadro de pessoal pertence ao regime jurídico único
dos servidores, sendo portanto servidores públicos da mesma forma como os integrantes
da administração direta.
Por serem servidores públicos, após o estágio probatório passam a gozar de
estabilidade.
Mas como seria criada a autarquia?
A autarquia municipal seria criada, instituída por Lei Municipal, através de
projeto de lei encaminhado pelo Executivo Municipal, o qual destinaria o
patrimônio inicial mínimo para o seu bom funcionamento, transferindo-o a esta,
cujos bens passariam a incorporar o ativo dessa nova pessoa jurídica de Direito
Público.
Uma vez criada por lei, com a previsão de suas atividades, estaria a autarquia
pronta para entrar em funcionamento, pelo menos no campo legal, pois sendo uma
pessoa jurídica de Direito Público sua existência não depende de inscrição e
registro dos estatutos em órgão próprio, pois ganhou vida no momento em que o
texto legal entrou em vigor.
Havendo lei, a organização da autarquia municipal se faz por decreto, que
aprova o regulamento ou estatuto da entidade, e daí por diante sua implantação
se completa por atos da diretoria, na forma regulamentar ou estatutária,
independente de quaisquer registros públicos.
Os bens e rendas da autarquia são considerados patrimônio público, mas com
destinação especial e administração própria. Por causa dessa destinação
especial é que os bens da autarquia podem ser utilizados, onerados, ou
alienados independentemente de autorização legislativa, bastando que a lei que
a criou assim disponha.
O orçamento da autarquia deve, formalmente, obedecer ao do município.
Os contratos da autarquia far-se-ão por meio de licitação, da mesma forma como
é exigido para o município.
O pessoal da autarquia será formado por meio de licitação, da mesma forma como
é exigido para o município.
Por ser forma de descentralizar a prestação desse relevante serviço, que seria
típico do município, mais precisamente da administração direta, não tem o
Executivo Municipal um controle ilimitado sob os atos da mesma, mas um controle
de cima para baixo, ou seja, é restrito aos atos da administração superior e
limitado aos termos da lei que o estabelece.
Sendo esta autarquia prestadora de serviço público descentralizado, não se acha
integrada na estrutura orgânica do Executivo, nem hierarquizada a qualquer
chefia, mas tão somente vinculada à administração direta, compondo
separadamente a administração indireta com outras entidades que o município
venha a possuir. Por esse motivo, não se sujeita a um controle hierárquico mas
a um controle finalístico, atenuado, normalmente de
legalidade e excepcionalmente de mérito, visando unicamente a mantê-las dentro
de suas finalidades institucionais, enquadradas no plano global da
administração.
Esse breve quadro sobre a possibilidade de se instituir as Casas Lares sob
forma de autarquia não tem a pretensão de dar aula de Direito Administrativo,
mas simplesmente colocar, de forma crítica, como poderia a administração direta
do município instituir mais um serviço sem que seus problemas passem,
obrigatoriamente, pela mesa do Prefeito.
b) como fundação pública municipal: Pode se instituir Casas Lares sob a forma
jurídica de fundação pública municipal?
A resposta se impõe positiva, e muito mais próxima da realidade do que sob a
forma de autarquia, pois as Casas Lares ficariam muito melhor estruturadas se
fossem criadas como fundação pública municipal.
Fundação é uma universalidade de bens personalizada, em atenção ao seu fim, o
que lhe dá unidade.
Figura constante da nova Carta Constitucional, até então reconhecidamente
apenas como de Direito Privado, a fundação pública é uma pessoa jurídica de
Direito Público, criada por lei específica da entidade matriz e estruturada por
decreto, independentemente de qualquer registro.
Seus contratos têm de ser precedidos de licitação.
Seu orçamento tem de ser formalmente idêntico ao do
município.
Os dirigentes da fundação, ou dirigente, são investidos no cargo na forma que a
lei ou o estatuto estabelecer, ficando o pessoal sujeito ao regime jurídico
único do município.
Ao contrário da autarquia - e talvez aqui o motivo de se adaptar melhor ao fim
que se busca -, não necessitam de receita própria e são normalmente mantidas
pela entidade matriz.
Esse ponto é importantíssimo, pois como geralmente as fundações públicas são
instituídas para desenvolver atividade relacionada à educação, cultura,
pesquisa, assistência social etc., tomando por base um patrimônio finalisticamente dirigido à atividade-fim, não seria crível
que se exigisse o seu auto-sustento, pois quase nenhuma distinção teria da
autarquia.
Também, da mesma maneira como se fosse instituída como autarquia, a real adaptação
do pessoal seria questão delicada, pois o estágio probatório poderia não bem
revelar quem está realmente disposto a trabalhar em atividade tão delicada.
c) como entidade paraestatal: Poderia se instituir Casas Lares sob alguma das
formas de entidade paraestatal, ou seja, Empresa Pública, Sociedade de Economia
Mista, ou Serviços Sociais?
A resposta se impõe negativa se o pensamento for voltado à criação de empresa
pública ou sociedade de economia mista, pois o Estado, ao instituí-las, o faz
para desenvolver atividades tipicamente econômicas, fazendo concorrência à
iniciativa privada, ou até monopolizando.
Mas também é possível se pensar em criar entidade paraestatal para desenvolver
atividade não econômica, mas de interesse coletivo, quando então o Estado, no
caso Estado-município, é livre para escolher a forma que melhor se lhe
afigurar, pois não estará criando uma entidade para operar na concorrência do
direito privado.
Assim, poderia o poder público municipal criar uma entidade chamada SESAM (Serviço
Social de Apoio ao Menor) onde toda a estrutura seria montada na idéia de Casas
Lares, e longe da visão empresarial.
O objetivo dessa entidade seria o atendimento ao menor abandonado ou órfão, e
cuja família se perdeu, passando a atendê-lo sob a filosofia de ser sua nova
casa.
O patrimônio dessa entidade seria oriundo de recursos públicos.
A receita dessa entidade seria oriunda de recursos públicos,
previamente prevista na lei que a criar.
Salvo os cargos de diretoria, ou cargo, o pessoal não pertenceria ao regime
único do município, mas seria empregado da atividade privada, sujeito ao regime
da CLT, com facilidade de contratação e dispensa, pois se trata de uma pessoa
jurídica de direito privado.
No entanto, quanto à contratação de obras, serviços e compras, haverá a
necessidade de licitação apesar do caráter privado dessa entidade paraestatal,
pois assim exige a Lei Federal 8.666/93, mas que poderá vir a ser modificada,
eis que este diploma legal é por demais contestado por ter causado sérios entraves
burocráticos.
d) como fundação privada: Pela nova Constituição Federal, e pelo entendimento
desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal, a menos que se crie uma Fundação
instituída por uma entidade privada - por exemplo, alguma indústria instituindo
a fundação das casas lares do município -, de nada se distinguiria da fundação
pública se fosse instituída pelo município. A respeito, transcreva-se a lição
do Professor Hely Lopes Meirelles, na sua maravilhosa
obra Direito Administrativo Brasileiro, da Editora Malheiros, p. 316 da 19º
edição:
"...Ultimamente, porém, pelo fato de
o Poder Público vir instituindo fundações para prossecução dos objetivos de
interesse coletivo - educação, ensino, pesquisa, assistência social etc. - com
personificação de bens bíblicos e, em alguns casos, fornecendo subsídios
orçamentários para sua para sua manutenção, passou-se a atribuir personalidade
pública a essas entidades, a ponto de a própria Constituição da República de
1988, encampando a doutrina existente, ter instituído as denominadas fundações
públicas, ora chamando-as de "fundações
instituídas e mantidas pelo Poder Público" (arts.
71, II, III e IV; 169, parágrafo único; 150, § 2º, 22, XXVII), ora de
"fundação pública" (arts. 37, XIX, e 19 das
"Disposições Transitórias"), ora, simplesmente, "fundação" (art.
163, II).
Com esse tratamento, a Carta da República transformou essas fundações em
entidades de Direito Público, integrantes da Administração Indireta, ao lado
das autarquias e das entidades paraestatais. Nesse sentido, já decidiu o STF,
embora na vigência da Constituição anterior, que "tais fundações são
espécie do gênero autarquia". Não entendemos como uma entidade (fundação)
possa ser espécie de outra (autarquia) sem se confundirem nos
seus conceitos. Todavia, a prevalecer essa orientação jurisprudencial,
aplicando-se às fundações públicas todas as normas, direitos e restrições
pertinentes às autarquias, não louvamos essa inovação constitucional nem o
entendimento do STF, que trará, certamente, sérios problemas para a
Administração, com a mudança de sua personalidade jurídica de Direito Privado
para Direito Público, eliminando com isso a fiscalização do Ministério Público
para manter somente a do Tribunal de Contas.
Portanto, ou alguma entidade privada institui a fundação privada, contando com
a aprovação de uma Lei Municipal que obrigue o município a destinar recursos
para seu funcionamento, caso em que se teria uma verdadeira parceria entre o
público e o privado, ou a proposta se resumiria à fundação pública, nada
adiantando denominar-se de outra forma.
Sendo a fundação privada pessoa jurídica de Direito Privado, nada há que se
ressalvar quanto à sua organização patrimonial e pessoal,
tratando-se de verdadeira entidade privada, só que com um patrimônio finalisticamente dirigido a um fim, mas assim só poderia
ser encarada se não instituída pelo Poder Público.
3. Participação privada através do fundo dos direitos da criança e do
adolescente
Convém salientar a forma como o setor privado poderá participar dessa edificação de cunho social, pelo menos a forma básica.
Diga-se de passagem, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 260,
criou o mecanismo necessário para que essa participação, verdadeira integração
entre o capital privado e os programas públicos, se desse através da figura do
Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, que é administrado pelo
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.
A respeito do assunto, é de se trazer à colação o comentário do Juiz da 2º Vara
da Infância e da Juventude de Recife-PE, publicado na obra Estatuto da Criança
e do Adolescente Comentado, Editora Malheiros, 2º ed. p. 768, assim transcrito:
"A falta de um suporte financeiro ou
a insuficiência de dotações para implantação das propostas contidas em uma lei,
segundo os teóricos, representa a principal das razões pelas quais, muitas
vezes, legislações avançadas, de bom conteúdo e de boa técnica legislativa, não
conseguem a plena eficácia, ou como dizem no linguajar comum, são as famosas "leis que não pegam". A crônica falta de recursos
para programas de natureza social tem levado alguns governantes, no mais das
vezes bem intencionados, a buscar a geração de receitas de parcela de
arrecadação de loterias (esportiva, federal, estaduais, raspadinhas,
loto, sena etc. ), chegando-se ao extremo de, em um Estado da Federação, o
então governador haver feito acordo com os banqueiros do "jogo do
bicho", instituindo um, por assim dizer, "imposto
extra-oficial", na forma da construção de uma creche por mês, em troca da
não atuação da Polícia contra a contravenção. De um lado, o numerário obtido
tem-se mostrado insuficiente, enquanto, de outro, seu efeito pedagógico é
nefasto, pois em maior ou menor escala estimula a prática dos justamente
denominados "jogos de azar".
Apenas alguns dias após ter completado um ano de vigência, a redação original
dada ao caput do art. 260 do Estatuto foi modificada pela Lei 8.242 de
12.10.91, que também incluiu no texto mais dois parágrafos, fato que por si só
abona a tese de necessidade de um adequado suporte financeiro para que a Lei
vigore em toda sua plenitude. A redação original tratava da possibilidade de
abatimento da renda bruta de 100% das doações feitas aos Fundos dos Direitos da
Criança e do Adolescente, cuidando o legislador de distinguir abatimentos feitos por pessoas jurídicas e físicas, estabelecendo um
limite percentual máximo para cada caso. A formulação inicial tomava por base
tradicionais incentivos fiscais utilizados nos tributos das três esferas de
governo, embora nunca para a área social, e na Lei de incentivo à cultura, e
representa mecanismo de excepcional relevância para a solução do problema. A
partir de 16.10.91, com o advento da Lei 8.242/91, tal situação foi modificada
sobremaneira, pois doravante a hipótese legal é de dedução do imposto devido do
total das doações feitas, mas obedecidos os limites estabelecidos em decreto
pelo Presidente da República. É de se dizer que, sem dúvida, deve o Executivo
Federal ter tido alguns problemas de monta com a disposição original. Caso
houvesse àquela época vetado o dispositivo, poderia ter sido acusado de
inviabilizar financeiramente que a lei fosse posta em prática. Não o vetando,
como ocorreu, restava o evidente conflito entre a política fiscal e tributária
de reduzir incentivos setoriais e regionais, especialmente de limitar ao máximo
possível as deduções cedulares, com a necessidade de
se gerar recursos específicos para a resolução do problema das crianças e dos
adolescentes carentes, sem os inconvenientes das fontes financeiras mencionadas
no início do comentário. Dessa contradição resultam situações como a de a
Receita Federal haver incluído no Formulário de Declarações de Rendimentos de
1991 (ano-base 1990) a dedução relativa à "doação Estatuto da
Criança", ao mesmo tempo em que o Fundo Nacional para a Criança e o
Adolescente, desaguadouro obrigatório de tais doações, não era instituído.
Por ocasião dos primeiros entendimentos entre o Governo Federal e a sociedade
civil organizada para a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e
do Adolescente já ficava clara a necessidade de se aproveitar o mesmo processo
legislativo para se instituir o Fundo antes aludido. Neste sentido, inúmeros
anteprojetos foram elaborados, seja pelo Ministério da Ação Social, Fórum DCA,
reunião interministerial, até resultar no envio ao Congresso, pelo Executivo,
do Projeto 514-D/91, havendo aprovação na Câmara de um substitutivo proposto
por parlamentares por sugestão do Fórum DCA. Até o estágio de tramitação no
Senado para posterior regresso à Câmara, em razão de apresentação do texto do
art. 260 do Estatuto, fato que, praticamente, só ocorreu quando da fase da
"redação final".
Ao leigo pode parecer que não houve maiores alterações com o fato de se trocar abatimento de renda bruta de um percentual prefixado das doações havidas por dedução do imposto devido em percentual ainda não definido. Se é verdadeira a afirmativa de que não se pode dizer que houve redução de recursos potencialmente arrecadáveis em tese, poderiam até ser superiores, a depender do percentual fixado pela Presidência da República - não menos verdade que resultará uma maior burocracia para captação de doações, já que agora, em especial no tocante às pessoas jurídicas, se fará tão importante o contato com os contadores das empresas como com os empresários, pois sempre será mais difícil, às épocas em que ocorrem as doações, se prever o imposto devido no exercício subseqüente, inclusive pelas constantes modificações de política econômica, fiscal etc., do que fazer a previsão da renda bruta no mesmo exercício.
De toda sorte, ficou preservada a fórmula séria de geração de recursos, além da
certeza de que agora não há óbices no Executivo para implantação das medidas, e
que o êxito na captação de doações dependerá exclusivamente da mobilização,
criatividade e competência dos agentes envolvidos.
Cabe destacar que o legislador teve a preocupação de ressaltar que essas
deduções não se sujeitam a outros limites e não podem ser consideradas como
excludentes ou redutores de outros benefícios, abatimentos e deduções antes
concedidos, em especial as doações feitas a entidades de utilidade pública.
Sem esta cautela, é bem provável que haveria imensas dificuldades em se
identificar contribuintes para os Fundos, em especial entre as pessoas
jurídicas, seja pela excessiva carga tributária, seja porque muitas delas já
têm compromissos anteriores sobre doações dedutíveis de Imposto de Renda.
É de se ver que as doações devem ser feitas a Fundos controlados pelos
Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente, sendo estes Conselhos, e não os governos
(Federal, Estaduais e Municipais), como muitos pensam, os gestores dos Fundos e
a quem competirá definir as prioridades locais e o montante dos recursos destinados
a cada empreendimento, minimizando assim riscos de "politicagem" ou
favorecimentos, os quais têm como única limitação legal a obrigação de destinar
parcela do numerário para incentivo ao acolhimento de órfãos ou abandonados.
Nada impede que a Administração Pública, a critério do respectivo Conselho,
seja órgão executor de projetos utilizando recursos do Fundo, mas jamais terá o
poder de escolher quais deverão ser ou não executados e em que ordem de
prioridade...
Como se vê, o mecanismo criado para buscar recursos junto à iniciativa privada
não é perfeito. mas é perfeitamente passível de ser posto em prática, bastando
para tanto um mero processo de conscientização dos empresários de cada cidade,
coisa que não será muito difícil de se alcançar, por dois motivos:
- primeiro, porque é ele dedutível do Imposto devido, não
havendo aumento de despesas para a empresa, e não encontra limitação em outras
doações já feitas a outros setores;
- segundo, porque em havendo obra social passa a haver confiança, e em havendo
confiança todos passam a exercer a cidadania de forma segura, buscando soluções
sociais, ao contrário do mero paternalismo ou clientelismo, tão comuns em nossa
realidade política atual.
Mas resta ainda uma crítica quanto ao fundo. Basta lembrarmos da legião de famintos que temos em nossas ruas, e em grande parte de menores, que logo chegamos à conclusão de que o 1% do imposto devido deveria sempre ser destinado ao município para este tipo de obra, e não ser apenas uma possibilidade do empresário querer ou não destiná-lo. Nossos carentes não deveriam ficar à mercê da boa vontade dos outros, ainda mais quando isso não traz aumento de despesas.
Conclusão
Seria muito confortável para todos se o Poder Público, no caso o municipal,
tivesse a total iniciativa de resolver o problema do menor abandonado,
comprando a idéia de edificar, sozinho, um projeto como o que aqui se trata.
No entanto, convém frisar que, se por um lado não toma ele
a iniciativa total, consorciado com outros setores da sociedade, poderia ser
não só um grande parceiro como o carro-chefe da atividade social a desenvolver,
oferecendo o seu respaldo econômico e político em prol de um serviço exercido
por particular em favor da sociedade, portanto de interesse público relevante.
O consórcio entre os vários setores da sociedade, respaldado pelo ente
municipal, contando com a eficiência de um bom serviço terceirizado, pode ser a
chave da solução do problema e, ao mesmo tempo, o modelo de solução para todo o
país.
Por derradeiro, é de ser salientado que o município não pode descurar que a
obrigação de atender os menores carentes é sua, por preceito legal instituído
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu art. 88, inc. I, onde prevê a
municipalização do atendimento.
Tal regra faz com que o município seja o carro-chefe na busca da solução, como
anteriormente já foi dito, e não simplesmente o solucionador único da
problemática.
Aliás, é sempre mais vantajoso, para sociedade, que as parcerias sejam
buscadas, pois desta forma nenhuma primazia se imporá, muito menos a do
prefeito, ainda mais em se tratando de obra tão importante para nossos dias.