O
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O SISTEMA RECURSAL NO PROCESSO PARA
APURAÇÃO DE INFRAÇÃO PENAL: UM PROCESSO GARANTISTA?
Maria Cristina Cardoso Moreira
de Oliveira
Procuradora de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Sumário: 1.O Estatuto da Criança e do Adolescente – 2. A Responsabilidade Penal Juvenil – 3. Sistema Recursal – 4.Do não conhecimento do Recurso de Apelação – 5. Da Renúncia ao Apelo – 6. Conclusões – 7. Bibliografia
1. O
Estatuto da Criança e do Adolescente
Na esteira do texto constitucional de 1988, o Estatuto da
Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990 –
caracterizou-se como verdadeira ruptura com o modelo até então vigente e
orientador do antigo Código de Menores – Lei nº 6.697/79 – que adotava a
Doutrina da Situação Irregular.
Encontrando suas mais recentes raízes na Convenção sobre o
Direito da Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas e na adesão, pelo Brasil dessa Convenção, em 1990, a
Doutrina da Proteção Integral que se baseia no reconhecimento de todos
os direitos da criança e do adolescente e tem por base a satisfação dos
interesses e necessidades das pessoas com até dezoito anos de idade, vislumbra
não apenas questões de ordem civil envolvendo crianças e adolescentes, mas
também de ordem penal, contemplando a prática de atos infracionais
por jovens autores e outorgando-lhes a condição de "sujeitos do
processo", detentores de direitos e obrigações, obedecida, é claro, sua
condição de pessoa em desenvolvimento.
A doutrina da proteção integral, levando em conta o
adolescente infrator estabelece direitos e garantias, postas na Constituição
Federal e na Convenção firmada pelo Brasil, de forma a manter a
inimputabilidade dos menores de dezoito anos de idade, conforme determinado no
artigo 228 da Constituição Federal sem entretanto descuidar da prática do ato infracional praticado pelo adolescente, prevendo, à
semelhança do Código Penal brasileiro, além das medidas socioeducativas
vislumbradas, a privação provisória da liberdade com internamento fechado,
equiparando-a ao regime fechado de cumprimento de pena.
Ao contrário, entretanto, do sistema administrativizado
previsto no direito processual penal relativamente à execução das penas
privativas de liberdade, no que respeita ao cumprimento das medidas socioeducativas de privação da liberdade, o ECA prevê uma série de regramentos que além de procurar
evitá-las ao máximo, restringem-nas também quanto ao período temporal de sua
fixação.
Muito embora não se possam afastar de todo, as
características da instituição meritocrática definida
por Foucault[2], percebe-se uma nítida limitação do
poder de punir estatal, em especial no que diz respeito a utilização de um
processo garantista a ser observado.
2. A
Responsabilidade Penal Juvenil
A "responsabilidade penal juvenil" dos
adolescentes, assim definida por João Batista da Costa Saraiva[3], como meio apto a responsabilizar o
adolescente pela prática dos seus atos, encontra bases doutrinárias na Carta
Política e na Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça
da Juventude, caracterizando-se pela diferenciação das medidas socioeducativas relativamente às penas criminais, quanto ao
aspecto pedagógico e a sua duração.
Refere ainda, o citado autor, que essa "imputabilidade"
frente à legislação especial vem prevista na própria Constituição Federal,
quando dispõe, na segunda parte do artigo 228 – que remete à legislação
especial casos excepcionais como é o do adolescente infrator – sendo que as
medidas previstas como aplicáveis a esses infratores, muito embora possuam
características nitidamente retributivas e socioeducativas traduzem-se em respostas justas, adequadas
e indispensáveis à repressão da delinqüência.
Assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente, hoje com dez
anos de vigência, é considerado uma das mais modernas legislações no âmbito da
proteção dos direitos à criança e ao adolescente em nível mundial, sendo poucas
as legislações que têm disciplinado a matéria com tão grande acuidade.
Nas palavras da pesquisadora Annina
Lahalle[4], a legislação
brasileira é a primeira legislação latino-americana a ter incorporado em seu
texto tanto as regras de proteção e de garantia dos direitos do menor infrator
como as de proteção da criança vítima de abandono ou outra violência.
3. Sistema
Recursal
A despeito de traduzir as mais modernas tendências na outorga
das garantias fundamentais da criança e do adolescente, o Estatuto descuida dos
direitos e garantias individuais do adolescente infrator, quando escolhe o
Código de Processo Civil como orientador do sistema recursal relativamente à
prática do ato infracional criando, com isso, uma evidente infração aos princípios constitucionais
orientadores de um processo penal garantista, se
comparado o adolescente infrator aos criminosos maiores de 18 anos que se vêem
tutelados pelo Código de Processo Penal, no que respeita ao devido processo
legal.
O equivocado paralelismo entre processo civil e processo
penal, mais uma vez se faz presente, descurando, assim, o correspondente
sistema acusatório equiparando-se à concepção de Carl Binding
que adotava o Código de Processo Civil para disciplinar também o processo
penal.
Ao contrário do que pressupõe o direito processual civil –
composição da lide – o ato infracional praticado por
adolescente tem nítido caráter penal e sua apuração, conforme dispõe o
estatuto, obedece, estritamente, aos pressupostos processuais penais básicos –
tanto que a lei em comento repisa os dispositivos do Código de Processo Penal
na determinação do procedimento a ser observado e, ainda, na caracterização de
um direito penal de garantias, autorizador de um sistema processual acusatório.
Na esteira de James Goldschimidt[5], tal procedimento pressupõe a
liberação de cargas probatórias pelas partes , na medida em que tem interesse
na busca da pretensão almejada.
Basta a simples leitura dos artigos que evidenciam a apuração
do ato infracional no Estatuto para que se verifiquem assegurados ao adolescente, um procedimento orientado
por princípios processuais de características garantistas
e, por isso mesmo, característicos de um sistema acusatório. Isso porque,
evidencia-se no Estatuto o fim primeiro de conferir aos adolescentes, ainda que
infratores, e às crianças a garantia dos seus direitos fundamentais, somando-se
aos mesmos, as garantias de submissão a um procedimento justo, adequado, isento
de qualquer resquício ditatorial, em total correspondência com os ditames
Constitucionais[6].
Assim, quer pelo conhecimento do ato infracional
que lhe é atribuído; ou ainda, na interposição da representação pelo Ministério
Público; na determinação da igualdade de partes estabelecendo o contraditório e
a mais ampla defesa; na necessária designação de advogado ao adolescente; ou
ainda, na evidente e indispensável instrumentalidade do processo
correspondente; ou finalmente na característica do juiz – natural e imparcial –
estão presentes no respectivo procedimento, as
características de um sistema acusatório, observando-se, assim, o devido
processo legal previsto na Constituição Federal.
Em que pese o indiscutível e moderno questionamento acerca do
necessário direcionamento do processo penal a um sistema acusatório, reclamado
nas obras de Jacinto de Miranda Coutinho[7] e Salo de Carvalho[8]
desvinculado de resquícios inquisitoriais e voltado à proteção dos interesses
individuais e sociais postos na Constituição e, via de conseqüência
comprometido com a questão da liberdade, como lembra Afrânio Silva Jardim[9] característica de um Estado de
direito, onde a validade e eficácia das normas jurídicas se estabelecem em
vista da leitura constitucional dos direitos fundamentais e sociais
caracterizados como expressão da soberania popular, numa leitura heteropoiética[10]
do ordenamento jurídico, capaz de impedir, do ponto de vista político, o
estabelecimento de um estado totalitário ou absolutista e, ao invés disso
submetendo a vontade do legislador aos interesses de toda uma coletividade, o
Estatuto fica aquém desses questionamentos, elevando ao mesmo patamar e
tratando de maneira assemelhada os recursos que contemplam matéria de ordem
eminentemente civil – guarda, tutela, adoção, ação civil pública, etc.. – e
aqueles que dizem respeito à apuração do ato infracional
do adolescente.
É nesse passo que se vai verificar a desconstrução
dos até aqui ressaltados, princípios orientadores de um processo penal
acusatório.
Se nas palavras de Candido Rangel Dinamarco[11], o processo precisa refletir as bases
do regime democrático nele proclamadas, caracterizando-se como o microcosmos
democrático do Estado de Direito, com as conotações da liberdade, igualdade e
contraditório, em clima de legalidade e responsabilidade, a legitimação da
atividade jurisdicional no dizer de Ferrajoli é a
atuação dos juizes na busca do caráter representativo da verdade substancial,
sujeitando-se somente à lei válida, porquanto constitucional[12]. Nessa sujeição
do juiz à Constituição, onde reside o "principal fundamento atual da
legitimação da jurisdição e da independência do poder Judiciário, frente aos
poderes legislativo e executivo"[13]tendo
em vista que os direitos e garantias são de cada um e de todos e sua garantia
exige um juiz terceiro independente que possa intervir para reparar injustiças
sofridas, se evidencia a crise da nova legislação menorista,
como ocorre na atualidade com o próprio direito penal.
Não se pode olvidar, é bem verdade, que o avanço da
legislação menorista relativamente à tutela dos
interesses do adolescente infrator se opera, no novo Estatuto de forma a
evidenciar os princípios da legalidade – orientador de um direito penal garantista – e do devido processo legal, inclusive no que
respeita ao duplo grau de jurisdição – ao contrário do antigo Código de Menores
que, além de aplicação de medidas não devidamente determinadas ou esclarecidas
em seu bojo, previa recursos apenas em nível administrativo, remetendo ao
Conselho da Magistratura o julgamento dos recursos referentes à matéria,
deixando de estabelecer o procedimento digno da preservação dos direitos
fundamentais do adolescente infrator.
Além disso, é indiscutível que a lei se demonstra imbuída de
fazer valer seu espírito garantidor dos princípios postos na Constituição
Federal relativamente a seu público alvo.
Entretanto, é de se ressaltar que o equívoco operado quando
da determinação do procedimento recursal poderia ter sido, desde logo,
dissipado estabelecendo-se um duplo sistema recursal: aquele destinado à
proteção dos interesses e garantias da criança e adolescentes – de caráter
eminentemente civil e por isso mesmo regulado pelo Código de Processo Civil, no
intuito de fazer valer a função do processo civil que é a composição da lide; e
um segundo, que diria respeito aos procedimentos de atos infracionais
– de caráter eminentemente penal e regulado pelo Código de Processo Penal, para
o fim da plena observância dos critérios orientadores do devido processo garantista.
A divisão se impunha. Tanto, que nos artigos reguladores do
procedimento infracional é nítida a preocupação do
legislador para a caracterização daquilo que Luigi Ferrajoli
na sua obra Direito e Razão[14] definiu como
os cinco pilares orientadores de um processo penal garantista,
e tão bem analisados e subdividido, o último, para fins didáticos, por Aury Lopes Júnior in "O fundamento da existência do
processo penal: instrumentalidade garantista"[15].
Esses pilares, de acordo com a subdivisão operada por Aury Lopes Júnior, agora em número de seis – jurisdicionalidade, inderrogabilidade,
separação entre acusador e julgador, presunção de inocência,
contraditório e fundamentração da decisão –
servem de garantia instrumental aos direitos do "imputado" seja ele
menor infrator – responsável pela prática dos atos infracionais
que correspondam a crimes e contravenções – seja maior de dezoito anos – responsável
pela prática dos crimes definidos no Código Penal e em leis especiais – de
forma a minimizar os espaços impróprios da discricionariedade judicial,
oferecendo um sólido fundamento para a independência da magistratura e ao seu
papel de controle da legalidade do poder (idem, ibidem).
É que assim caracterizado o devido processo legal,
constitui-se o mesmo em instrumentalidade das garantias tornando-as efetivas ao
assegurar-lhes o máximo de imparcialidade, verdade e controle[16]. Ademais, verificada essa correlação biunívoca entre garantias
penais e processuais é que se estabelece o nexo específico entre lei e juízo,
em matéria penal.
Impõe-se, pois, a conclusão de que no caso do estatuto da
criança e do adolescente, ocorreu a quebra desse nexo específico entre lei e
juízo, restando descaracterizado o principal princípio processual garantista, qual seja, o da jurisdicionalidade.
Sem essa característica, resta desconstruida qualquer
possibilidade de assegurar-se ao adolescente infrator, as garantias tão evidenciadas
no correspondente Estatuto, havendo severa afronta às mesmas, dando margem a
interpretações jurisprudenciais desviadas, com certeza, dos interesses buscados
quando de sua edição, distanciando-se de sua finalidade primeira.
4. Do
não conhecimento do Recurso de Apelação
Uma dessas interpretações, diz respeito ao não conhecimento
dos recursos de apelação cujas razões sejam juntadas em momento posterior ao da
interposição do recurso; ou ainda, daqueles cujas razões não sejam juntadas.
São decisões do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul, as que seguem, sobre a matéria:
" Menor. Apelação: processo infracional.
Nos processos infracionais contra menor, a
sistemática recursal adotada é a do CPC, segundo a qual, as razões de recurso
devem ser apresentadas junto com a petição recursal ou, no máximo, dentro do
respectivo prazo. Não conhecimento: não se conhece de apelo com razões
apresentadas a destempo. Inaplicação do CPP."
(Apelação-Cível nº595.090.036. 7ªCâmara Cível.
Relator Des. Waldemar L. de Freitas Filho.); e"
Processual civil. Apelação sem fundamentação – Não conhecimento. Não se conhece
do recurso de apelação, formulado sem fundamento, por falta de dialeticidade ou razões de inconformidade recursal. Recurso
não conhecido." Apelação-Cível nº 595.111.576.Câmara de Férias Cível.
Relator Des. Celeste Vicente Rovani).
Nesse mesmo sentido, as apelações-cíveis de nº595.154.022 e 596.003.210 da 7ªCâmara Cível; e ainda
595.202.110 e 596.005.926 da 8ª Câmara Cível.
Se o procedimento escolhido pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente correspondesse àquele previsto no Código de Processo Penal, ao
contrário do que verificamos hoje, estaria estabelecido o nexo que vincula ao
direito penal garantista, pois indiscutível., do
ponto de vista do processo penal que qualquer recurso proposto dentro do prazo
legal – é claro que observados os casos de limitação da apelação, quando houver
– acompanhado ou não de razões recursais juntadas tempestiva ou
intempestivamente, são passíveis de conhecimento, como forma
de garantia da jurisdicionalidade, considerada a
jurisdição em seu sentido estrito, qual seja, típico de um estado de
direito, dentro de um sistema processual acusatório, e de um modelo processual
cognoscitivo, garantista, onde se estabelece a
verdade processual, observado, ainda, o princípio da presunção de inocência e
evidenciada a liberdade desse inocente, através da possibilidade da mais ampla
defesa.
Essa jurisdicionalidade que
assegura ao "acusado" o direito de ser julgado por um juiz "natural"
e "imparcial", que não pode declinar de suas funções, nem eximir-se de proferir a correnspondente
sentença, pressupõe a devolução, ao segundo grau de jurisdição, de toda a
matéria decidida no primeiro grau, sendo defeso o não conhecimento do apelo por
falta de motivação, bastando que diga à parte que não se conforma com a decisão
proferida., para ver conhecido seu recurso. É isso que se depreende da leitura
do artigo 599 do Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial:
" O artigo 599 do CPP não determina ao recorrente que, no ato
de interposição, dê a motivação do recurso. No ordenamento procedimental o que
se exige, apenas, e com rigor, é que deixe patente, num lapso de tempo fatal e
improrrogável, , sua inconformidade com a sentença." (Revista dos
Tribunais, 563/349. No mesmo sentido, RT 553/390;544/349; 544/425-6;
574/384;552/350); 556/338.
Da mesma sorte, a não apresentação das razões de apelo, pelo
réu, não impede o conhecimento da apelação e seu julgamento. É entendimento pacificado
na jurisprudência pátria, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal do
conhecimento do apelo formulado, mesmo que não acompanhado das razões recursais
devendo o Magistrado de primeiro grau remeter o recurso à superior instância em
cumprimento ao previsto no aludido artigo.
Nesse sentido, decisão oriunda do extinto Tribunal de Alçada
deste Estado, publicada na Revista dos Tribunais de nº678/369:
" Por força do artigo 601 do CPP, subindo apelo sem as razões,
é tido como pleno, posto abranger não só apenamento,
como também, e sobretudo, o mérito, com o que fica assegurada ao apelante a
garantia constitucional da ampla defesa." (No mesmo passo, RTJRS 148/137;
65/108; RT 676/309; JTACRESP 58/235, 68/266)
Não é diferente o que ocorre no caso da juntada extemporânea
das razões recursais, em caso de apelo, constituindo, à luz da jurisprudência,
mera irregularidade que não tem o condão de impedir seu conhecimento.
Dessa feita, verifica-se, conforme entendimento dominante de
nossos Tribunais que com o fim de assegurar a mais ampla defesa ao acusado,
deve o recurso de apelação ser conhecido, desde que proposto dentro do prazo
legal, independente de se fazer acompanhar das correspondentes razões
recursais.
Essa amplitude de defesa, não se verifica no atual sistema
recursal do Código de Processo Civil impedindo, no caso do
ECA, a instrumentalidade garantista relevada
por Ferrajoli no Capítulo X de sua obra e
descaracterizando, assim, um direito penal de garantia, aos adolescentes
infratores.
No caso do Estatuto da Criança e do Adolescente, quando
remete ao Código de Processo Civil, a regulamentação do recurso de apelação,
das decisões que imprimem ao adolescente infrator, medida socioeducativa,
descuida de assegurar a garantia tão relevada em seu texto, dos direitos
fundamentais desse adolescente, numa contradição indiscutível.
Permite, com isso, a descaracterização do devido processo
legal e via de conseqüência a caracterização de um
procedimento de caráter nitidamente inquisitorial, que priva o adolescente
infrator do acesso à justiça e ao reconhecimento das garantias processuais que
lhe são devidas quanto ao asseguramento de seu
direito à liberdade.
A figura do juiz caracterizada no processo penal pátrio como
um órgão super e inter partes, neutro e imparcial é completamente esquecida no
Estatuto, porquanto em face do não conhecimento dos recursos dezarrazoados em razão das regras contidas no Código de
Processo Civil, nega-se ao adolescente – definido como inimputável na Lei Maior
– um direito reconhecido aos, inclusive, penalmente imputáveis, maiores de 18
anos, qual seja, o de ver submetido ao segundo grau de jurisdição o recurso
tempestivamente interposto, independentemente de se fazer acompanhar de razões
recursais, assegurando-se-lhe, assim, o princípio da
ampla defesa, necessário à caracterização do devido processo legal.
Nega-se ao adolescente, saliente-se mais, uma vez, o princípio
da jurisdicionalidade.
5. Da renúncia ao apelo
Peca o Estatuto, também, no que diz respeito à aplicação da
medida socioeducativa ao adolescente infrator, ao
impossibilitar o recurso de apelação, pelo defensor, ou ainda pelo Ministério
Público em caso de renúncia, pelo adolescente, ao recurso.
O direito de renúncia à interposição do recurso, vem previsto
no ECA e permite que o adolescente, quando de sua
intimação da decisão condenatória manifeste seu interesse em não recorrer da
decisão. Essa manifestação pode ser certificada pelo Oficial de Justiça
responsável pela intimação, impedindo a interposição do recurso pela defesa do
adolescente, ou melhor, obstaculizando seu conhecimento, pelo segundo grau de
jurisdição, diante do que dispõe o Código de Processo Civil.
Na obra Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado-
comentários jurídicos e sociais, Nelson Néry Júnior
ao comentar o artigo 198 do Estatuto reputa impossível, em face da renúncia do
adolescente, o conhecimento do recurso interposto por sua defesa[17], porquanto essa renúncia é
impeditiva do conhecimento do recurso.
Não atenta, entretanto, o processualista civil, para os critérios de
efetividade dessa renúncia ou seja, das condições ou capacidade processual de
seu autor ao afirmá-la.
A regra que contempla a referida renúncia deve ser,
entretanto, declarada inconstitucional, em se tratando o adolescente infrator de
pessoa com idade inferior a vinte e um anos e, portanto, incapaz de avaliar a
real extensão da aplicação da sentença condenatória e, mais ainda, das medidas socioeducativas impostas, mormente a de internação ou semiliberdade, de nítido caráter sancionatório
que pode se estender por período de até três anos. Ademais, a possível
incapacidade do adolescente em evidenciar a possibilidade da aplicação de uma
medida de internação, quando em realidade outra medida se impunha, como
critério apto a evitar a internação, conforme disposto no artigo 122 do ECA, não é de pronto afastada.
A esse respeito, Emílio García Mendez,
na obra citada evidencia que o aspecto mais importante do artigo 122 se
encontra no §2º que. literalmente, inverte o ônus da prova, obrigando a
autoridade judicial a demonstrar que não existe outra medida mais adequada que
a internação. Mesmo na hipótese dos incisos I e II do referido artigo, a
privação da liberdade deve ser evitada existindo, antes dela, outras medidas de
caráter mais adequado[18].
No mesmo sentido e com referencia às medidas de semiliberdade, Alessandro Baratta[19] assevera: "Deve-se, portanto,
considerar válido, também para a semi-liberdade o limite de aplicabilidade
estabelecido para a internação com os incisos I, II e III do "caput"
do artigo 122 em relação à gravidade das infrações.
Há que se questionar, à luz desses argumentos
interpretativos, como poderá o adolescente avaliar o princípio da excepcionalidade previsto na legislação especial e
determinar sua renúncia ao recurso, mediante simples manifestação ao oficial de
justiça, sem que seja assistido por curador, ou ainda, ouvido em juízo sobre
essa renúncia? Como poderá dispor de uma ampla avaliação da sentença que lhe
aplicou uma medida de internação ou semi-liberdade?
À toda evidência, o dispositivo fere
as garantias individuais do adolescente infrator, impossibilitando, inclusive
ao órgão do Ministério Público, que ao ver afastado seu pedido relativamente à
"absolvição" do adolescente infrator, tenha reconhecido seu recurso
de apelação ante a renúncia do adolescente a esse direito.
Segundo evidencia Zaffaroni[20] em comentários aos artigos 207 e 206
do ECA, as conseqüências do processo são limitações ao princípio da inocência,
demonstrando-se de considerável gravidade quando referentes a um adulto, e em
grau muito mais elevado, quando se refere ao adolescente infrator,
constituindo-se em medida estigmatizante que afeta a
auto-estima e faz aflorar a conduta desviante.
Dessa feita, mais uma razão se encontra em destaque de modo a
evidenciar a real necessidade da interposição do recurso de apelação em favor
do adolescente infrator não apenas porque não possui as condições necessárias
para avaliar o que pode ou não ser favorável à sua pessoa, mas principalmente
em obediência aos princípios constitucionais da mais ampla defesa e da
presunção de inocência, reconhecidos quando da instauração do devido processo
legal.
Conforme se verifica do Código de Processo Penal brasileiro
em caso de renúncia de recurso pelo réu maior de 21 anos, esta deverá ser
tomada por termo perante o próprio juiz ou por petição própria. No caso,
entretanto dos réus cuja idade situa-se entre 18 e 21 anos e, portanto
caracterizada a menoridade do agente, a renúncia não impede a propositura da
correspondente apelação pela defesa, tendo em vista a não compreensão, pelo
agente, da extensão de sua condenação, pelo que impõe-se
a efetiva avaliação da necessidade de interposição de recurso ou não, por parte
de seu defensor, como critério apto a assegurar a ampla defesa e, via de
conseqüência, o princípio da jurisdicionalidade.
Mais uma vez, repise-se, o evidente descompasso do Estatuto
da Criança e do Adolescente com relação à adoção do sistema recursal do Código
de Processo Civil relativamente aos procedimentos de prática de atos infracionais por adolescentes. Esse procedimento, além de
imprestável ao processo penal de garantias sequer se presta a limitar o poder
estatal na sua tendência antigarantista, ou ainda
legitimá-lo na preservação e promoção dos direitos voltados à satisfação dos
interesses da sociedade.
6.
Conclusões
Na esteira das observações acima gizadas,
é bom que se questione o real direcionamento do Estatuto da Criança e do
Adolescente, especialmente na garantia dos direito individuais e fundamentais
do adolescente infrator, observando-se os princípios penais garantistas
orientadores de um processo penal garantista que se
impõem na determinação do procedimento de apuração da infração penal praticada
por adolescente. A indevida adoção de um sistema recursal orientado por
princípios processuais civis, além de quebrar com a hierarquia dos direitos
individuais reconhecidos na norma Constitucional – no caso concreto, a
desigualdade perante a lei – servem ao abandono de um processo penal garantista.
Urge, pois, que se restabeleça, contrariamente à situação
criada com a adoção do procedimento processual civil previstas no ECA, um redimensionamento acerca da regulamentação dos
recursos de apelação que digam respeito ao procedimento de apuração do ato infracional, outorgando-lhe características e
regulamentação previstas no Código de Processo Penal que, nesse particular se
demonstra mais benéfico ao adolescente infrator, como demonstra quando do
tratamento dos criminosos comuns.
Essa adequação servirá para retomar, no procedimento menorista, o devido processo legal, à semelhança de um
modelo garantista e preocupado com a realização da
justiça.
7. Bibliografia
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Notas
[1] Mestranda
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Sul.
[2] Foucault,
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[3] Saraiva,
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[4] Lahalle, Annina. Estatuto da Criança e do
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[5] Goldschmidt,
James. Principio Generales del Proceso – Problemas juridicos
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[6] Prado,
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[7] Coutinho,
Jacinto Miranda. Separata ITEC!, ano I, nº4, p.01.
[8] Carvalho, Salo de. Aplicação da Pena e Garantismo.
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janeiro, 2001.
[9] Jardim,
Afrânio Silva. Bases Constitucionais para um Processo Penal Democrático in
Direito Processual Penal, 7ªed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, p.317.
[10] Cademartori, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem, garantista. Liraria do Advogado,
Porto Alegre, 1999, p. 162.
[11] Dinamarco, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do processo,
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[12] Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón – Teoria
des garantismo Penal, 4ªed.Editoril
Trotta. Madrid,2000, p. 69)
[13] Ferrajoli,
Luigi. O Direito como Sistema de Garantias in O Novo em Direito e
Política. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1997, p.
101.
[14] Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal, 4ªed. Editorial Trotta,Madrid,
2000, p.372.
[15] Lopes Jr,
Aury Celso L. O fundamento da exist~encia
do processo Penal: instrumentalidade garantista.
Revista da Ajuris, nº76,
Associação dos Juízes do rio Grande do Sul. Porto Alegre, dezembro de 1999,
pg.208.
[16] Ferrajoli,
Luigi. Derecho y razón. P. 537.
[17] Estatuto da Criança e do Adolescente
Comentado - Comentários Jurídicos e Sociais. Coordenadores: Munir Cury, Antônio
Fernando do Amaral e Silva e Emílio García Mendez.
3ªed. Malheiros, SP., 2000, pp. 614/615.
[18] Mendez, Emilio García – UNICEF/América do Sul.
Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 3ªed. Malheiros, SP, 2000, pp.
402/403.).
[19] Baratta, Alessandro. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado.
3ªed. Malheiros, SP, 2000, pp. 394/395.
[20] Zaffaroni, Raùl Eugênio. Estatuto da Criança
e do Adolescente Comentado. 3ªed. Malheiros, p. 683.