ABRIGO: INCLUSÃO OU APARTHEIDT?

  

 

Délcio Antônio Agliardi
Professor e Consultor para Projetos Sociais.
Especialista em Direito Comunitário: Infância e Juventude, FESMP/RS.

 

  

"A injustiça é relativamente fácil de aturar; é a justiça que fere."

H. L. Mencken – Jornalista Americano

 

Unir a prática à teoria, e vice-versa, tem sido sempre uma preocupação dos agentes sociais (pedagogos, psicólogos, sociólogos, assistentes sociais, juízes, administradores de programas, conselheiros tutelares, agentes da saúde, etc.) comprometidos com um mundo melhor.

 

Com efeito, as transformações econômicas, sociais e jurídicas ocorridas na última década apresentaram novos paradigmas, forjaram valores, criaram novas idéias, permitiram recriar imagens e códigos e deverão implicar numa mudança profunda da prática.

 

No campo da legislação específica para crianças e adolescentes, houve um expressivo avanço. O Brasil, em 1989, adere à Convenção Internacional pelos Direitos da Criança e promulga o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. Segundo Irma Rizzini (1993), O Estatuto da Criança e do Adolescente reserva uma participação importante das ciências, através de seus representantes, em todo o processo de atendimento à criança, inclusive na Justiça da Infância e da Juventude. Nós, representantes das ciências humanas, sociais, jurídicas e da saúde, devemos estar atentos às funções a nós reservadas, de forma a não insistirmos na prática excludente que historicamente temos exercido na nossa prática profissional junto a este grupo.

 

O nosso convívio com as injustiças sociais é antigo. Quase faz parte do nosso DNA. Está impregnado no nosso cotidiano e, por mais que nos cause indignação, temos uma vaga - quase inconsciente - sensação de que este mal, tão velho quanto o homem, não pode ser vencido. Quem somos nós, pobres mortais, para exterminá-lo?

 

Ao mesmo tempo, algo nos impele a clamar por justiça. Porque ela é a única arma capaz de ferir – e porque não extirpar - o câncer da desigualdade, através da promoção das mudanças de hábitos, usos e costumes. Só que a luta pela justiça também fere a ordem da vida a que estamos acostumados.

 

Privilegiado pelo exercício da função pública de Conselheiro Tutelar de Caxias do Sul/RS, no período de 1992 a 1998, participei da gênesis do ECA. Junto com uma multidão de brasileiros - dispostos a ferir e a se deixar ferir pela justiça - dei os primeiros passos em direção à mobilização da opinião pública para que o ECA fosse aplicado. Nessa trajetória, cruzei com legiões de crianças que passam toda ou parte da infância longe dos pais.

 

Até aqui, nenhuma revelação extraordinária, talvez. Contudo, era assustador constatar que muitos genitores, especialmente as mães (registre-se que eram as que mais atendiam às notificações) acreditavam que o filho seria melhor criado no abrigo ou com uma família de melhores posses. Estavam dispostas – e achavam esta injustiça natural – a entregar os filhos, a energia e a alma nesta luta desigual pela sobrevivência.

 

Sabemos que esses filhos passam por conflitos difíceis no âmbito familiar e social. Sobreviver e desenvolver-se é uma incógnita. A escolarização é problemática. A violência doméstica é uma realidade. O que acontece então?

 

Na seqüência, estes prisioneiros sociais lotavam os abrigos e, mais tarde, os presídios (Rizzini, 1993). Os prisioneiros da fome, das doenças e das ruas tornavam-se presidiários de cela. Isso segue acontecendo a cada hora do dia, a cada dia do mês, a cada mês do ano, a cada ano da década, a cada década do século. É trágico constatar que este novo século, prenhe de esperanças para a humanidade, ainda não foi ferido pela justiça, embora, com o ECA, já apresente escoriações.

 

Segundo Kosminski (1993), os dados gerais sobre o Brasil chamam a atenção para duas questões: a grande proporção de população jovem e a grave situação de pobreza familiar da população infanto-juvenil.

 

Desta forma, a situação de pobreza em que vive essa grande parcela da população agrava e fragiliza a luta pela sobrevivência em família. Tudo indica que é preciso um empenho muito grande dos governos, da sociedade e da família para formulação e deliberação de políticas públicas efetivas para uma grande fatia da população.

 

Segundo Rizzini (1993), as soluções são sempre difíceis tanto aqui em nosso país como em outros. O importante, entretanto, é se ter diretrizes para iniciar projetos distintos que tenham seriedade de objetivos e acompanhar seu desenvolvimento.

O ECA é uma lei que também é um projeto. Tornou-se um projeto de sociedade. Pelo ECA não é mais possível retirar das famílias fragilizadas seus filhos e transformá-los em órfãos de pais vivos (Costa, 1992). É um instrumento, se bem usado, capaz de evitar a perda dos filhos por pobreza.

 

Surge o abrigo como uma medida de inclusão – não como máscara do apartheidt - destinado a crianças e adolescentes que não têm onde morar, não podem viver com seus pais, os laços de parentesco, amizade e vizinhança estão suspensos e ameaçados. O regime de abrigo, de acordo com o Estatuto, consiste em organizar um lar para pequeno grupo de crianças, numa casa pequena, discreta, acolhedora, sob a responsabilidade de um guardião (parágrafo único do artigo 92 do ECA).

 

Em outros termos, o ABRIGO foi criado como programa de proteção para garantir um lugar transitório enquanto se encontre uma alternativa para a criança pelo resgate da situação familiar ou pela colocação em família substituta, garantindo, desta forma, a convivência familiar e comunitária.

 

Quer dizer, enquanto a criança permanece cumprindo a medida de proteção (incluída entre os que gozam de direitos), os encarregados pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança, providenciarão resgatar sua família ou colocá-la em família substituta, garantindo acesso à moradia, à escola, ao lazer, aos bens de consumo, enfim, ao direito de ter direitos.

 

Enfim, é necessário continuar indagando: E nós? Estamos empunhando a arma da justiça na guerra contra o Apartheid social? Estamos realmente lutando pela inclusão das nossas crianças e adolescentes ou de suas famílias? Ou o nosso couro – calejado pela convivência com a injustiça – ainda está ileso?

 

Referências Bibliográficas

KOSMINSKI, Ethel Volfzon. Crianças e Adolescentes Pobres – Um estudo dos indicadores sociais utilizados no Brasil (1993). Centro latino-americano, da Universidade de Münster.

ALTOÉ, Sônia. Do Internato à Prisão: Quem São os Presidiários Egressos de Estabelecimentos de Assistência à Criança e ao Adolescente? In: Rizzini, Irma. A criança no Brasil Hoje (1993). Rio de Janeiro: Editora Sta. Úrsula.

RIZZINI, Irma (1993). O elogio do científico: a construção do "menor" na prática jurídica. In: Rizzini, Irma. A criança no Brasil Hoje. Rio de Janeiro, Editora Sta. Úrsula.

COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Diversos Textos (1995). O Município em Defesa da Infância e da Juventude. Brasília: UNICEF.