EXMO.
SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DO FORO REGIONAL DE
SANTO AMARO
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO
PAULO, através das Promotorias de Justiça de Defesa dos Interesses
Difusos e Coletivos da Infância e Juventude da Capital e da Infância e da
Juventude do Foro Regional de Santo Amaro, pelos signatários, vem,
respeitosamente, à presença de Vossa
Excelência, ajuizar. AÇÃO CIVIL PÚBLICA em face da MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO,
pelos motivos de fato e de direito a seguir aduzidos:
1 ‑ DOS FATOS
1. Em
virtude de notícia veiculada no jornal "Folha de São Paulo", de 20 de
junho de 2001, indicando que cerca de dez mil crianças deixariam de ser
atendidas em creches na região de Santo Amaro por falta de funcionários, para a
otimização das instalações municipais organizadas para tal finalidade foi
instaurado Inquérito Civil Público para apuração dos fatos.
2. No
bojo das investigações, foi ouvida a Diretora da creche "Grajaú 11",
que prestou informações, indicando que o quadro de funcionários da creche não
estava completo, impedindo que a unidade atendesse um maior número de crianças.
Relatou ainda que em 2001 foram contratados servidores por prazo determinado, o
que atenuou o problema.
3.
Atendendo a requisição do Ministério Público, a Diretora da creche encaminhou
lista das crianças que aguardam a disponibilização de vagas na referida
unidade.
4.
Conveniente frisar que, paralelamente, foi instaurado outro Inquérito Civil
Público (105/2001), com o objetivo de apurar a desproporção entre a oferta de
vagas e a demanda por ensino infantil, bem como para determinar a adoção de
providências específicas.
5. Ainda
nesse sentido, foram realizadas várias reuniões com autoridades do Município de
São Paulo, ao longo de quase quatro meses, sem que o Município concordasse com
a subscrição de um Termo de Ajustamento com o Ministério Público do Estado de
São Paulo.
6. Assim,
tendo em conta a legitimidade atribuída ao Ministério Público, nos termos do
art. 201, incisos V e IX, do Estatuto da Criança e do Adolescente, para tutela
de direitos individuais metaindividuais da infância e da juventude, pretende‑se
a garantia do direito ao ensino infantil, nos ciclos pertinentes às respectivas
idades, das seguintes crianças:
A.A.S. 29/01/2001.
…
J.L.N.S. 10/03/1998.
7.
Finalmente, cumpre sublinhar que o acesso ao ensino infantil, mais do que um
imperativo jurídico, é uma determinante educacional, que, segundo os
especialistas, tem reflexos diretos na qualidade do ensino fundamental, quer
diminuindo os índices de evasão escolar, quer melhorando o aproveitamento dos
alunos, inclusive com diminuição acentuada nos níveis de repetência.
8. A
propósito, trecho de reportagem publicada no jornal "O Estado de São
Paulo" (em anexo), de 4 de março de 2002:
Ter acesso à educação infantil é
não só direito como determinante na aprendizagem. Estudo feito a partir da
Pesquisa sobre Padrões de Vida mostrou que dois anos de pré‑escola
aumentam a escolaridade em um Além disso, a criança que teve acesso à creche e
pré‑escola tem mais chance de completar o ensino fundamental, seu nível
de repetência diminui de 3% a 5% a cada ano de pré‑escola e sua renda
tende a ser maior. Segundo especialistas, uma das explicações é que os
primeiros seis anos de vida são decisivos para desenvolver habilidades lógicas,
musicais, emocionais, motoras e de convívio social. (g.n.)
II ‑ DO DIREITO
9. O
direito à educação foi amplamente protegido pela Constituição da República. O
art. 6º alçou‑o à categoria de direito social, incluindo‑o no Titulo
II de nossa Magna Carta, locus dos assim chamados Direitos Fundamentais.
10.
Ocioso sublinhar, nesse sentido, que o status constitucional que lhe foi
conferido prima por algumas conclusões prévias e inafastáveis:
a) cuida‑se
de norma de conformação do sistema, ditando o conteúdo de toda normatização
infraconstitucional;
b) o
direito à educação, enquanto direito fundamental, deve ser objeto da máxima
efetividade, concretizada através de leis, atos normativos e posturas
administrativa que lhe dêem a maior efetividade possível;
c)
comando de aplicabilidade imediata, constituindo‑se, de conseguinte, em
direito público subjetivo dos indivíduos.
11.
Seguindo a linha de orientação traçada pelo cogitado dispositivo, o art. 205 da
Constituição Federal, em reforço semântico aos aspectos acima enunciados,
prescreve, em tintas fortes, a educação como direito de todos e dever do Estado, acentuando o seu objetivo de
possibilitar o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e a sua qualificação para o trabalho.
12. No
plano específico da educação infantil, embora já houvesse normatividade
suficiente para presumi‑la enquanto direito do indivíduo e dever do
Estado, a Constituição trouxe dispositivo próprio, in verbis:
Ar£ 208. O dever do
Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
...
IV ‑
atendimento em creche e pré‑escola de crianças de zero a seis anos.
13. Tal
enunciado encontra fundamento, ainda uma vez, no art. 4º, inciso IV da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, sendo que o art. 11, inciso V, do mesmo
diploma, trazendo enunciado das competências administrativas do Município em
matéria de educação, indica, de maneira insofismável, mencionada pessoa
jurídica de direito público interno como a encarregada de tal prestação.
14. Segue‑se,
de conseguinte, que a educação infantil, inscrita dentre os deveres do
Município, constitui‑se em direito dos munícipes, reivindicável,
inclusive, pela via judicial.
15.
Dentro desta linha de entendimento, José Afonso da Silva, em magistral incursão
do tema, salienta que a redação do cogitado art. 208 não deixa dúvidas quanto à
extensão da obrigação comum do Poder Público (art. 23, V), que, à evidência,
envolve todas as atividades enumeradas nos incisos I a VII do referido artigo da
Constituição (Curso de Direito Constitucional Positivo, 14ª edição, Malheiros,
pág. 767), inclusive o ensino infantil.
16.
Compreende‑se, deste modo, o entendimento sufragado por nossa
jurisprudência, da qual citamos, como exemplo, a ementa abaixo transcrita,
tirada de v. acórdão relatado pelo eminente Desembargador Fonseca Tavares:
"MENOR ‑ Apelação ‑ Ação civil pública para compelir o Município à abertura de matrículas na rede de ensino infantil a todas as crianças de zero a seis anos de idade, sem exceção Legitimidade do Ministério Público reconhecida ‑ Dever estatal com a educação ‑ Competência municipal para o atendimento em creches e pré-escolas de zero a seis anos ‑ Necessidade que se equivale à obrigatoriedade ‑ Sentença de procedência mantida ‑ Recurso improvido.” (Apelação 63.969.0/2‑00).
17.
Trilhando a mesma linha de coerência, o E. Tribunal de Justiça de São Paulo,
embora sedimentando a improcedência de ação por inadequação do pedido e
insuficiência das provas, repisou que a educação infantil é um direito
constitucional do infante e uma obrigação do Município, como se vê de trecho
tirado de acórdão relatado pelo eminente Desembargador Alvaro Lazzarini:
“A educação como direito de todos
e dever do Estado é preceito constitucional (art. 205). Dentre os princípios
nela estabelecidos há a garantia de oferecimento de creche e pré‑escola a
menores de zero a seis anos.” (inciso IV do art. 208 da Constituição Federal)
“Os preceitos constitucionais espelhados nos arts. 6º e 205
não podem ser tidos por meras peças de figuração. A Constituição Estadual, a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o Estatuto da Criança e do Adolescente
também asseguram a obrigatoriedade do fornecimento da educação escolar composta
tanto da educação básica quanto da superior.”
18.
Verifica‑se que à espécie deve ser aplicado, em toda a sua extensão,
também o disposto no art. 227, caput, da
Constituição Federal, que assegura à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à educação.
19. É
inquestionável, portanto, que a educação infantil inscreve‑se dentre os
chamados direitos subjetivos do indivíduo. No ponto, a orientação precisa do
formulador do conceito examinado, Hans Kelsen, para quem:
"A essência do direito
subjetivo, que é mais do que simples reflexo de um dever jurídico, reside em
que uma norma confere a um indivíduo o poder jurídico de fazer valer, através
de uma ação, o não cumprimento de um dever jurídico”. (Teoria Pura do Direito,
p. 197).
20. O
presente mandamus tem por escopo
assegurar o direito subjetivo de acesso às crianças acima identificadas,
baseado nos dispositivos normativos pertinentes, que atribuem ao Ministério
Público, inclusive, legitimidade para pleitos de caráter individual.
21. A
propósito, o art. 127 da Constituição Federal comete ao Ministério Público o
papel de guardião dos interesses sociais e individuais indisponíveis, dentre os
quais, à evidência, os relacionados à educação.
22.
Percorrendo a mesma orientação, o art. 129, II de nossa Lex Major comete ao
Parquet a missão de "zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e
dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição,
promovendo as medidas necessárias a sua garantia”.
23. Fiel
a estas diretrizes da Constituição da República, o art. 201, inciso V, do
Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe sobre a legitimidade do Ministério
Público para a proteção de direitos individuais, difusos ou coletivos
relacionados à infância e adolescência.
24. Na
mesma esteira, o inciso IX do indigitado artigo 201, prescreve incumbir ao
Ministério Público a utilização dos remédios constitucionais para defesa dos
direitos protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, exteriorizando,
em homenagem ao princípio da efetividade da tutela, a possibilidade de utilização
de todos os meios processuais adequados para a concretização dos direitos
previstos no referido Estatuto.
25. Como
se observa, o ordenamento jurídico é rico em princípios e regras que tornam
inequívoco o cabimento e a pertinência da presente medida, como instrumento de
salvaguarda deste superlativo valor constitucional: a educação infantil.
III ‑ DO CABIMENTO DA LIMINAR
26. Como
afiançado, o direito de acesso ao ensino infantil é assegurado pela Magna
Carta, sendo certo que a oferta respectiva, dentro da partição de competências
trazida pela Lei Federal nº 9.394/96, é do Poder Público Municipal.
27.
Prescindível dizer que aguardar todo o trâmite processual implicará no
impedimento de que as crianças acima arroladas possam ter efetivo acesso ao ensino
infantil, pois à época da prolação da sentença todas elas seguramente terão
idade para cursar já nível superior de ensino.
28. À
evidência que o processo supõe efetividade: sem ela, o Poder Judiciário seria
inerte ante os desmandos e ilegalidades ocorridos no seio social, pois Justiça
tardia é negativa de Justiça.
29.
Atento a mencionada situação, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu
art. 213, § 1º, autoriza o Magistrado a conceder a tutela liminarmente sempre
que relevante
o fundamento da demanda e houver justificado receito de ineficácia do
provimento final.
30. E a
hipótese dos autos: todas as crianças acima arroladas estão impedidas de
exercer direito fundamental, consubstanciado no acesso ao ensino infantil, por
omissão da Requerida, o que materializa a relevância da demanda.
31.
Aguardar‑se o desfecho da demanda, após longa instrução, certamente
tomará ineficaz o provimento final, pois ao menos a maior parte das crianças
discriminadas terá atingido idade adequada a níveis superiores de ensino,
deixando a ação carente de objeto e negando prestação jurisdicional
indispensável para o sadio desenvolvimento dos infantes.
32. Mercê
de tais ponderações, curiais o cabimento e a pertinência da concessão de tutela
liminar na hipótese, sob pena de conceder‑se placet a histórica e reiterada omissão da Requerida.
IV ‑ DO PEDIDO
33.
Diante do exposto, requer‑se:
a) a concessão liminar da
tutela, com a finalidade de determinar‑se à Requerida que proceda à
matrícula de todas as crianças acima arroladas em unidade de ensino infantil
adequada à respectiva faixa etária, localizada em distância não superior a dois
quilômetros do domicílio ou do endereço de trabalho fornecido pelos pais e/ou
responsáveis legais, comunicando e comprovando nos autos as medidas adotadas,
para tal finalidade no prazo improrrogável de 30 (trinta) dias;
b) seja a
Secretária Municipal de Educação notificada pessoalmente da tutela concedida,
para implementação das providências pertinentes, no prazo acima apontado, sem
prejuízo da notificação do representante legal da ré;
c) seja a
Municipalidade citada, para que, querendo, conteste a presente ação, sob pena
de confissão quanto à matéria de fato, prosseguindo‑se até final
julgamento, quando a ação será julgada procedente, tomando definitivo o
provimento requerido no item "a" da presente ação.
34. O
autor fará prova do alegado por todos os meios de prova em direito permitidos,
inclusive a testemunhal, a documental, a diligencial, a pericial, etc.
Dá‑se à causa,
para efeitos fiscais, o valor de R$ 1.000,00 (um mil reais).
São Paulo, 09 de abril de 2002.
Vidal Serrano Nunes Júnior
Promotor de Justiça
Motauri Ciocchetti de Souza
Promotor de Justiça
Maria Cristina de B. L. Garreta Prats
Promotora de Justiça
Wanderleya Lenci
Promotora de Justiça
Thaís Brito Laurentiff Rodrigues
Estagiária do Ministério
Público