EDUCAÇÃO INFANTIL: ONDE COMEÇA O DIREITO

 

 

Márcio Thadeu Silva Marques[1]

Promotor de Justiça.

 

 

Não é antiga a concepção da maioria dos pais (e de alguns professores) de que, abaixo dos sete anos de idade, atendimento a crianças se resumiria em oferta de creches. Também não é distante a idéia de creche sempre ligada à condição da mulher trabalhadora, tanto que se consolidou em direito social, previsto pelo art. 7o , inciso XXV. O foco, portanto, se fez historicamente centrado na necessidade da disponibilização da mão-de-obra para as atividades produtivas, não no desenvolvimento da criança. Daí o senso comum de que pré-escolas e principalmente as creches são “meros” programas assistenciais.

Mas é a mesma Constituição, a Lei Maior do País, que fixou o ponto de ruptura com o antigo modelo. O art. 208, inciso IV, estabelece que o dever do Estado (Governo) com a Educação será efetivado mediante a garantia, dentre outras, do atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos.

Cuida-se, então, da educação infantil, primeira etapa da educação básica e que tem como finalidade o desenvolvimento da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, art. 29). Sua estrutura resta determinada pelo art. 30 da Lei 9.394/96, que institui em creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade e em pré-escolas, para as crianças de quatro a seis anos de idade.

SOUSA e SILVA advertem que “creches e pré-escolas não são propriamente instituições de ensino, e sim programas multidisciplinares de apoio ao desenvolvimento físico, psíquico, intelectual e social da criança de 0 a 6 anos de idade[2]. De fato, desenvolvimento é a chave da compreensão da importância da educação infantil.

A doutrina da Proteção Integral, expressa na Convenção Universal dos Direitos da Criança e do Adolescente, representa  “nada mais nada menos, do que assegurar todos os direitos fundamentais para todas as crianças e adolescentes sem exceção de espécie alguma”, isto é: sobrevivência, desenvolvimento e integridade[3]. Para o educador ANTONIO CARLOS GOMES DA COSTA, “Todo ser humano nasce com um potencial e tem direito de desenvolvê-lo. Para desenvolver o seu potencial cada pessoa necessita de oportunidade. Aquilo que nos tornamos ao longo da vida depende basicamente de duas coisas: das oportunidades que tivemos e das escolhas que fizemos ao longo das vida. O direito à educação é, portanto, direito de cada criança e de cada adolescente tornar realidade as promessas que trouxe consigo ao vir a este mundo”[4].

A igualdade de oportunidades é indispensável como necessidade básica de aprendizagem, está concebida pela Conferência Mundial sobre Educação para Todos (Jontiem, Tailândia, 1990) como sendo  “conhecimentos, valores e atitudes que as pessoas necessitam para sobreviver, viver com dignidade, continuar aprendendo, melhorar as condições de suas vidas, de suas comunidades e de suas nações”. Propicia-se, então, a aptidão para que as pessoas possam “tomar decisões bem fundadas, adaptar-se a mudança e tomar iniciativas proveitosas, para si mesmas e para os outros”, elegendo “ferramentas essenciais para a aprendizagem, que incluem a leitura, a escrita, a expressão oral, o cálculo e a solução dos problemas[5], também apontando “os conteúdos básicos de aprendizagem, que abrangem aspectos técnicos e práticos”[6].

E qual é o papel da Educação Infantil nessa nova percepção do saber? É que é imprescindível caracterizar a atuação pedagógica da Educação Infantil, não só com a função de contribuir para a escolarização obrigatória, como também valorizando os conhecimentos que as crianças já possuem e oportunizando a aquisição de novos conhecimentos. É a conclusão de KRAMER, citada por ÁVILA:

 

Tendo isso claro, outro ponto é preponderante: o fato de considerar-se a criança como um ser social, com uma história definida, com as relações sociais e culturais estabelecidas nesse contexto. Dessa forma, o currículo de pré-escola deve articular: 1) a realidade sócio-cultural da criança, considerando os conhecimentos que ela já tem; 2) seu desenvolvimento e as características próprias do momento em que está vivendo; 3) os conhecimentos do mundo físico e social[7].

 

É certo que não só a pré-escola, mas também a creche, devem atender à primeira infância de forma a inserir as dimensões piagetianas da ação da criança com a reflexão em interação com seus pares em todos os estágios: seja no período sensório-motor, de zero a dois anos, em que necessitam as crianças de desenvolvimento intelecto-afetivo intimamente ligado na relação do indivíduo com o meio (movimentando-se no espaço – engatinhar, rolar, arrastar-se ... - agir com os objetos e conviver com pessoas que as cercam, inclusive para o desenvolvimento da linguagem com outros falantes da língua materna); seja na formação do símbolo na criança, construindo a relação significante e significado, etapa posterior[8]. Conforme o filósofo JACOB BRONOWSKI, toda epistemologia[9] é baseada na forma de percepção do mundo, própria dos sentidos, notadamente a visão, que deve ser precocemente estimulada, a partir mesmo de uma atuação pedagógica, pois

 

“as nossas capacidades quanto às formas de memória e de imaginação, de simbolismos e de símbolos, estão todas condicionadas ao sentido da visão”, sendo indissociável da capacidade humana “a exclusiva de imaginar, de fazer planos e de fazer todas as outras coisas que geralmente estão incluídas na expressãolivre arbítrio”, que é, “na verdade, a visualização de alternativas e a capacidade de escolha entre elas[10].

 

Mesmo nos lares vicinais, alternativas às creches herdadas da praxe da família extensa, que envolve o “cuidar dos filhos de parentas ou vizinhas”, tem-se a essencialidade de que a educação abranja os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais (LDB, art 1o).

Há de se fazer, pois, da experiência da Educação Infantil um vigoroso instrumento de combate à grande mazela da educação nacional: o fracasso escolar que indevidamente tornou “socialmente aceitável” a chamada “cultura da repetência”:

 

“Isso acontece quando interiorizamos noções amplamente divulgadas sobre o normal desenvolvimento de uma criança. Os cuidados começam ainda na barriga da mãe, portanto o pré-natal é uma obrigação. O parto em condições adequadas é o passo seguinte. Depois, são necessários cuidados com a vacinação, aleitamento materno, água e alimentação adequadas, soro caseiro (quando necessário), acompanhamento do peso, creche (para assegurar a estimulação precoce) e pré-escola (para preparar o momento da alfabetização).

Na vida das crianças das periferias urbanas e áreas rurais empobrecidas, no entanto, uma parcela muito pequena dessas condições estão presentes. É precisamente este fato que leva a grande maioria das pessoas a descrer da educabilidade desses meninos e meninas. Eles passam a ser vistos como não detentores dos pré-requisitos do sucesso escolar na primeira série. Daí, não causar estranheza o fato de elas fracassarem. Trata-se afinal de contas, de alguma coisa de ‘cientificamente’ previsível.

(omissis)

A percepção desse quadro, no interior da cultura da repetência, faz com que a maioria das pessoas proceda à uma redução automática das condições de trabalho do professor às condições de ensino. A tradução disto é que o ensino não pode melhorar, enquanto os trabalhadores da educação não forem atendidos em seus pleitos e reivindicações.

Esses dois reducionismos (condições de vida dos alunos = condições de aprendizagem e condições de trabalhos dos professores = condições de ensino) levam a uma cultura da impotência e de ressentimento, gerando um equilíbrio de soma zero, um equilíbrio trágico.

 

E como pode a Educação Infantil contribuir para mudar esse quadro se não é considerada “direito público subjetivo[11]? Há, de pronto, um equívoco nesta consideração. Embora não esteja explicitado como tal pelo art. 208, 1o da Constituição Federal, o direito à educação infantil é um direito público subjetivo, embora não seja obrigatório. É que, como registrado logo no inicio do texto, o direito à creche e pré-escola é um direito social dos trabalhadores  (CF, art. 7o, inciso XXV), portanto, direito fundamental. Além disso e sem prejuízo dessa primeira conclusão, a Educação Infantil é a parte da educação básica e não mais espécie de programa de apoio sócio-familiar, deixando a caracterização de política de assistência social de caráter supletivo e assumindo a relevância de política social básica, o que a exclui de um viés segmentário e torna imperiosa sua oferta universal. O fato de não ser obrigatória matrícula não torna o Município isento de garantir a vaga a todos que optarem pelo atendimento em creches e pré-escolas.

Mas é de se voltar à questão do parágrafo anterior, já devidamente revista e revistada; como pode a Educação Infantil contribuir para mudar o quadro de cultura da repetência? Primeiro, a Educação Infantil é.possivelmente a porta de ingresso na educação escolar mais apta a proporcionar a interação entre a Família e a Escola, justamente pela via mais socialmente conhecida e incorporada: a da creche. Segundo, o indivíduo mais precocemente inserido na escolarização formal tem a possibilidade de mais cedo passar por todos os ritos iniciais de adaptação, reduzindo resistências por parte dos alunos e dos professores. Mais: considerando a educação infantil como a primeira etapa de escolarização, tem-se a incorporação do valor escola pelas famílias, em um ambiente sem competição e sem as conseqüências de uma avaliação que premie ou puna pelo rendimento, preservando a auto-estima do aluno e tornando-o apto a enfrentar a etapa seguinte (LDB, Art. 31. Na Educação Infantil a avaliação far-se-á mediante acompanhamento e registro do seu desenvolvimento, sem objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino fundamental).

Para que isso ocorra, é necessário garantir a possibilidade de acesso universal à Educação Infantil bem como a atividade pedagógica como sua essência[12]. Para o primeiro problema, a alegação recorrente é de que, cabendo a Educação Infantil prioritariamente ao Município[13]”, não dispõe estas unidades de recursos para sua manutenção, tal qual ocorre com o ensino fundamental, através do FUNDEF. Quanto à outra questão, percebe-se a forte resistência, inobstante o comando imperativo do art. 89 da Lei 9.394/96[14], à assunção pelos sistemas de educação das creches e pré-escolas existentes desde a publicação da norma até três anos após[15]. São, assim, os dois grandes desafios à consolidação da importância da Educação Infantil que devem ser enfrentados pela sociedade, exigindo sua concreção, em todos os aspectos relacionados por ÁVILA:

“Fazem-se urgentes, também, pressões sociais, neste momento, para que a Constituição de 1988 e a nova LDB sejam devidamente implementadas no que diz respeito à educação infantil. A legislação deverá assegurar a qualificação adequada e atualização de profissionais, a existência de uma assessoria multidisciplinar competente e uma gestão administrativa democrática que permita a construção de uma proposta pedagógica em cada instituição de educação infantil fundamentada em estudos teóricos consistentes que possibilitam a organização de uma prática, que se apoie na compreensão de quem é esta criança concreta, do que ela precisa, como se desenvolve e quais as condições necessárias para que ocorra seu desenvolvimento[16].

 

Educação Infantil não é depositar crianças em locais que cultuam a monotonia e o silêncio disciplinador da inação para garantir a mão-de-obra de suas mães. Educação Infantil não pode ser apenas para a mãe que trabalha. Educação Infantil é assegurar á criança, desde antes do primeiro ano de vida, a possibilidade de uma formação integral, auxiliando a Família no contato inicial com o mundo extra-uterino, para que se consolide, como obrigação comum a todos, que lugar de criança é na escola, aprendendo[17].

 

“Criança é para estar na escola

com toda inocência sua,

não para ser analfabeta, doente, faminta e nua,

como fantasmas assombrando

os transeuntes da rua[18].

 

Algumas questões para refletir:

Monitorando, para uma pesquisa, creches gaúchas, pesquisadoras da UFRGS colheram as seguintes cenas:

CENA O2 – “As crianças, em número de quinze, estão nos berços que ocupam quase todo espaço disponível da sala. Não há lugar para ficarem fora dos berços. As duas atendentes acham difícil organizar uma forma de levá-las ao pátio. Ficam confinadas na sala e, principalmente, nos berços, deitadas ou sentadas, à espera das rotinas de higiene e alimentação. Se postas no chão, ficam nos estreitos corredores entre os berços e não podem ser vistas pelas atendentes, uma vez que os berços são muito altos”.

CENA 03: “As crianças estão tristes, andam atrás das atenções das atendentes, e seguidamente, referem-se aos pais. São obrigadas a cumprir o horário do sono. Mesmo que não consigam dormir, devem ficar quietas. São acompanhadas, nesta hora, pelas atendentes que também dormem cerca de três horas e meia. As crianças do berçário ficam basicamente confinadas nos berços e carrinhos. As trocas de fraldas ocorrem duas vezes ao dia, em horários determinados. Os brinquedos são poucos e quebrados.”

Comentar os casos à luz  da LDB e do ECA (arts. 7o; 15; 16, do V e VII; 17, 18, 53, II e seu parágrafo único 54, IV; 56, I e II; 57 e 245). Há lesão aos direitos dos alunos? O que fazer? Quem faz?

 

Notas:

[1] Promotor de Justiça do Estado do Maranhão

[2] SOUZA, Paulo Nathanael Pereira de; SILVA, Eurides Brito. Como entender e aplicar a nova LDB. São Paulo: Pioneira, 1997. p. 127.

[3] COSTA, Antonio Carlos Gomes da. A educação como direito in: BRANCHER, Leonardo Narciso; RODRIGUES, Maristela Marques; VIEIRA, Alessandra Gonçalves (Orgs.) O direito é aprender. Brasília: FUNDAESCOLA/PROJETO NORDESTE;MEC, 1999. p. 17.

[4] Id. Ibid., p. 18.

[5] PACTO PELA INFÂNCIA. Educação para todos – O desafio Brasileiro. Brasília, 1994. p. 12.

[6] d. Ibid.

[7] ÁVILA, Ivany Souza. Avaliação da qualidade do atendimento oferecido em creches e pré-escolas no Rio Grande do Sul. In: ÁVILA, Ivany Souza; XAVIER, Maria Luisa Menino (Orgs.) Plano de atenção à infância:objetivos e metas na área pedagógica. Porto Alegre: Mediação, 1997. p. 10.

[8] ÁVILA, Ivany Souza et al. Cenas do cotidiano das creches: um tempo de monotonia. In: Id. Ibid. p. 27/31.

[9] Teoria das ciências, segundo o AURÉLIO (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 215). Filosofia natural, e que se busca entender os processos cognitivos, isto é, os processos do conhecimento.

[10] BRONOWSKI, Jacob. As origens do conhecimento e da imaginação. Brasília: Editora da UNB, 1997.

[11]  “Direito Público subjetivo quer dizer direito fundamental da pessoa” cf. NOGUEIRA, Madza Julita; CECCON, Claudius. Todos pela educação no Município. Brasília: UNICEF/CECIP, 1993. p. 9.

[12] Embora possa ser hoje a escola um local de proteção especial (ver, por ex., os arts. 56 e incisos e 245 do ECA), atuando com outros agentes do sistema de atendimento, como os Conselhos Tutelares, sua primeira missão é de efetivamente funcionar como instituição própria ao ensino, como processo formativo.

[13] LDB: Art. 11. Os Municípios incumbir-se-ão de:

I – Organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituição oficias dos seus sistemas de ensino, integrando-os às políticas e planos educacionais da União e dos Estados;

II – exercer ação redistributiva em relação às suas escolas;

III – baixar normas complementares para seu sistema de ensino;

IV – autorizar, credenciar e supervisionar os estabelecimentos do seu sistema de ensino;

V – oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino.

[14] LDB: Art. 89. As creches e pré-escolas existentes ou que venham a ser criadas deverão, no prazo de três anos, a contar da publicação desta Lei, integrar-se ao respectivo sistema de ensino.

[15] É óbvio que o atendimento de educação infantil, notadamente na fase de creches, demanda intervenções específicas de áreas outras, fora da pasta da Educação, como a saúde, por exemplo. Isso é perfeitamente possível e até desejável, com forma de gestão compartilhada. O que é, entretanto, imprescindível, é a atuação pedagógica do atendimento.

[16] ÁVILA, Ivany Souza. Op. Cit., p. 21.

[17] O papel dos operadores do sistema jurídico, através de interlocução, pode ser de fortalecimento da base legal do discurso para as esferas políticas de decisão pelas instâncias técnicas que buscam a efetiva implantação da Educação infantil consoante a LDB, bem como de compelir a Administração, seja por Compromisso de Ajustamento, seja por força de ação judicial, à plenitude da norma legal de orientação pedagógica dessa Educação.

[18] PANELLAS, Oliveira de. In: NOGUEIRA, Madza Julita; CECCON, Claudius. Todos pela educação no Município. Brasília: UNICEF/CECIP, 1993. p. 9.