INFÂNCIA,
LEI E DEMOCRACIA: UMA "QUESTÃO DE JUSTIÇA”
Emilio García-Méndez
Assessor Regional da Área de Direitos do Unicef para a
América Latina e Caribe.
Minhas
propostas de esclarecimento daquilo que chamo a compreensão paradigmática de
fundo do direito e da Constituição devem ser entendidas como uma contribuição
polêmica, que se dirige, sobretudo, contra o crescente cepticismo jurídico que
parece difundir-se entre meus colegas juristas. e, principalmente, contra esse
realismo, a meu ver falso, que subestima a eficiência social das pressuposições
normativas das práticas jurídicas existentes. “Jurgen
Habermas - "Facticidad y Validez"
Sumário: 1 . A
Convenção e o retomo da democracia na América Latina; 2. Os processos de
reforma legislativa; 3. Direito e realidade: a "contribuição" do
"substancialismo"; 4. Direito e pedagogia:
da discricionariedade à justiça; Direito e autoritarismo; 6. Infância e
democracia; 7. Direito e realidade: a "contribuição" do masoquismo
institucional; 8. Globalização, infância e direitos humanos; 9. Memória do
futuro: A infância, uma questão de justiça.
1. A
convenção e o retorno da democracia na América Latina
Em novembro de 1989, ao cumprir dez anos de trabalhos
preparatórios, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou por unanimidade a
Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. Na data, todos os países
do planeta, com duas únicas exceções, Estados Unidos e Somália[1] , ratificaram esta Convenção. A região
da América Latina e o Caribe foram pioneiros no processo mundial de
ratificações desse tratado internacional, "omnicompreensivo"
dos direitos humanos de todos aqueles que ainda não atingiram os dezoito anos.
Mais ainda, todos os países da América Latina e
o Caribe não só ratificaram a Convenção, mas também a transformaram em
lei nacional mediante um processo de aprovação parlamentar. Na América Latina,
particularmente no contexto da tradição jurídica napoleônica do direito codificado, o processo de transformação da
Convenção em lei nacional gerou uma verdadeira situação de esquizofrenia
jurídica. Esquizofrenia jurídica referente à vigência simultânea de duas leis,
que regulamentando a mesma matéria, resultam de
natureza antagônica: por um lado, a Convenção e pelo outro, as velhas leis de
menores baseadas na doutrina da situação irregular. A inércia
político - cultural, somada a alguns problemas de técnica jurídica processual
determinaram que, no plano judicial, se continuasse com a aplicação maciça
e rotineira das, velhas leis de menores, ao mesmo tempo que a aplicação da
Convenção sé convertia num fato excepcional e fragmentário.
Se as coisas houvessem seguido seu curso "natural",
é provável que a Convenção houvesse permanecido, talvez por muitos anos, como
um "simpático" instrumento do direito internacional. No entanto, o
Brasil mudou o rumo "natural" da história, desencadeando um processo absolutamente participativa do direito, neste
caso, de um novo direito para a infância. Um processo - que dito nas palavras
de Pietro Barcellona - permitiu "redescobrir que
o caráter estruturalmente normativo do ser social é um recurso de poder, porque
a capacidade de produzir normas é uma competência social difusa e não somente
uma prerrogativa dos parlamentos"[2]. Este
processo foi em outra parte analisado de forma detalhada por alguns de seus
principais protagonistas[3].... merece aqui um breve
resumo, sobretudo pelo seu enorme impacto e repercussão fora das fronteiras do
Brasil.
Não parece exagerado afirmar que o processo de transformações
jurídicas que resultou na aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente do
Brasil em 1990, constitui talvez o motivo de maior intercâmbio e integração
que, no campo social, o Brasil teve com o resto da América Latina, pondo fim a
uma longa tradição de mútua ignorância com o resto da região.
Ao descobrir, de forma empírica, a íntima conexão entre os
problemas da infância e os problemas da democracia e, no limiar do processo
popular de construção de uma nova Constituição que indicava com clareza o fim
de um quarto de século de autoritarismo militar, o embrionário movimento de
luta pelos direitos da infância se articulou em volta da preparação de duas
emendas populares a serem introduzidas na nova Constituição (mecanismo previsto
pela própria Convenção Constituinte). O resultado foi a
incorporação à nova Constituição Brasileira, aprovada finalmente em outubro de
1988, de dois artigos básicos para todo o desenvolvimento de um novo tipo de
política social para a infância: a política social pública. O artigo 227
constitui uma admirável síntese da futura Convenção, que na época circulava em
forma de ante projeto entre os movimentos de luta
pelos direitos da infância. O outro artigo decisivo foi o 204 (particularmente
no seu inciso II) que, legitimando a articulação de esforços coordenados entre
governo e sociedade civil, colocava as bases explicitamente jurídicas para a
reformulação de uma política pública, já não mais entendida como mero sinônimo
de política governamental , mas sim como o resultado de uma articulação entre
governo e sociedade civil.[4]
2. Os processos
de reforma legislativa
Que uma reivindicação pela melhoria das condições materiais
da infância se expressasse sob a forma de uma norma jurídica, nada menos que de
caráter constitucional, significava uma dupla ruptura inédita na região. Em
primeiro lugar, uma ruptura com "um sentido jurídico comum" que, na
época de forma aberta e hoje de forma obscura e envergonhada, se expressa na
trilhada frase "na América Latina temos maravilhosas legislações de
menores que infelizmente não se aplicam". Em segundo lugar, uma ruptura
com o acordo tácito de que a Constituição, muito especialmente suas garantias
individuais, invariavelmente consagradas normativamente para todos os habitantes,
não deviam interferir na prática com as tarefas de "compaixão -
repressão" próprias do (não) direito e as políticas de menores. Aprovadas
finalmente a nova Constituição, os artigos 204 e 227 puseram de imediato em .
evidência o caráter flagrantemente inconstitucional da legislação menorista vigente: o código de menores de 1979, dispositivo
central na política social do
autoritarismo militar das décadas passadas.
Estes são, de forma muito rápida e esquemática, os
antecedentes do primeiro processo de reforma legislativa na América Latina no
contexto da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança.
Na realidade se pode dizer que na América Latina houve duas
etapas de reformas jurídicas no que se refere ao direito da infância. Uma primeira
etapa, 1919 a 1939, que introduz a especificação do direito de menores e cria
um novo tipo de institucionalização: a justiça de menores.[5] Uma Segunda etapa
que começa em 1990 e continua aberta e em evolução até nossos dias.
Cumprida a primeira etapa do processo de reformas, desde 1940
a 1990, as poucas mudanças jurídicas ocorridas foram invariavelmente intranscendentais: variações sobre um mesmo assunto para
decidi-lo de forma um pouco mais elegante. O processo de mudança jurídica e
social que os movimentos de luta pelos direitos da infância concretizam no
Brasil em 1990, (mas que reconhece antecedentes imediatos e diretos pelo menos
desde 1986), constitui um exemplo extraordinário de conjunção de três
coordenadas fundamentais: infância, lei e democracia. Neste caso, a experiência
demonstra que os diversos problemas da
infância só podem ser reconstruídos numa perspectiva diferente à
"compaixão - repressão" quando se intersectam com o tema da lei e o
tema da democracia.
Isto significa uma rejeição profunda a considerar os temas da
infância desde qualquer perspectiva fragmentada e sobretudo corporativista. A
nova relação infância - lei implica numa profunda revalorização crítica do
sentido e natureza do vínculo entre a condição jurídica e a condição material
da infância.
Mas as transformações da segunda etapa de reformas
legislativas (de 1990 em diante) não se referem só a uma mudança profunda e
substancial nos conteúdos da lei. Trata-se além do mais, de uma mudança nos
mecanismos de produção do direito; de um novo direito para todas as crianças, não só para aquelas em "situação
irregular". A partir da experiência do Brasil, todo o resto das reformas
legislativas (com maior ou menor nível de participação social e com uma melhor
ou pior técnica jurídica), deixaram de ser esotéricas
e clandestinas reuniões de "expertos" que trabalham nos porões dos
Ministérios de Justiça, para converter-se em imensos laboratórios político -
sociais de produção jurídica democrática.
A década de 80 para a América Latina em geral e sua segunda
metade para o Brasil em particular, coincide com a retirada, mais ou menos
organizada, mais ou menos caótica, das ditaduras militares instauradas na
década de 70.
Na América Latina, o complexo, difícil e
contraditório retorno à democracia coincide com o surgimento e difusão
da Convenção. Pela primeira vez, um instrumento com a forma
da lei capta seriamente a atenção dos movimentos sociais, por outro
lado, politicamente enfrentados, em geral, aos governos autoritários. No
entanto, a assimilação deste instrumento legal não foi fácil e não faltaram as
críticas de diferentes tipos. Desde aqueles que afirmavam que qualquer
tentativa de juridificar os direitos da infância
significava na prática negar ou, pelo menos, por uma camisa de força a seus
direitos naturais, até aqueles que viam na Convenção outra mais ou menos sutil
intervenção do imperialismo. Na realidade, os motivos profundos pelos quais a
Convenção consegue finalmente impor-se com tanta intensidade esperam uma
análise mais detalhada. É possível, no entanto, que sua compreensão e aceitação
como instrumento específico dos direitos humanos tenha representado um papel
fundamental na sua instalação sócio - jurídica definitiva. Também é provável
que tenha sido decisiva a intuição de alguns grupos de ativistas sociais, no
sentido de que não é só a democracia a que garante a luta pelos direitos, mas
que é também, e fundamentalmente a luta pelos direitos o
que garante a democracia.[6]
Foi, precisamente, esta "intuição" a que exerceu um
papel importante na primeira incorporação constitucional da Convenção. No
Brasil de fins dos 80, foram juristas com sensibilidade educativa e,
principalmente, educadores com uma altíssima sensibilidade jurídica, os que
instalaram um tipo, felizmente heterodoxo, de luta pelos direitos no campo do
direito. Articulação esta última que abre as bases para a urgente e necessária
reformulação das relações entre pedagogia[7] e
justiça, reestruturação que encontra no texto de Antônio Carlos Comes da Costa
seu melhor exemplo, eximindo-me aqui de posteriores reflexões.
3. Direito e
realidade: a
"contribuição" do"substancialismo"
Como era de esperar, "substancialistas"
de diversos tipos e nostálgicos defensores da (des)
ordem jurídica anterior, ficaram respectivamente marginalizados e confrontados
com este processo. Se os nostálgicos defensores da velha ordem jurídica -
cultivadores vários do cadáver insepulto da doutrina da situação irregular -
não necessitam ser posteriormente explicados, sim, parece-me que aqueles que aqui
denomino "substanciaIistas” merecem uma mais
detalhada explicação. Denomino aqui com o termo "substancialistas"
aqueles que, desde diferentes posições político - ideológicas, subestimam as
capacidades reais, positivas ou negativas, do direito. São os mesmos que
outorgam um caráter automático e inelutavelmente condicionante ao que eles,
arbitrariamente, definem como condições materiais determinantes. Na prática são
aqueles que nos alertam sobre a inutilidade de qualquer reforma que não seja
"profundamente estrutural". São os portadores, conscientes ou
inconscientes, da perspectiva que produz o efeito duplamente perverso da
pobreza. Uma vez como produtora de situações concretas de profundo mal-estar
social e perda da dignidade humana (nos pobres), e outra vez (nos não pobres)
em seu uso instrumental como mau coringa que explica (e sugere) as várias
formas de resignação. "Aqui não se podem respeitar os direitos humanos até
que a pobreza não seja erradicada" é a frase feita do simplismo
que melhor sintetiza a posição "substancialista".
Esta posição esquece que a história crítica do
desenvolvimento social ensina exatamente o contrário: que são precisamente as
formas de resolução pacífica e
respeitosa da dignidade humana dos conflitos sociais e individuais, as condições
sine qua non (ainda que não suficientes) para um desenvolvimento
sustentável que permita uma verdadeira erradicação da pobreza. Os vários
exemplos demonstram que tem sido um investimento maciço em educação (direito
que habilita para o exercício de outros direitos), o que permitiu o
desenvolvimento e a erradicação real da pobreza, e não o
contrário,[8] deveriam, pelo menos, induzir os "substancialistas"
a uma profunda revisão dos seus dogmas, por outro lado, tão inúteis quanto
prejudiciais.
O processo atual de reformas legislativas põe em evidência
que é, precisamente, nessa falta de compreensão da natureza complexa da relação
direito - realidade, onde se estabelece um elemento fundamental para explicar a
fragilidade das instituições e a democracia na América Latina. É sobre a base
deste raciocínio que, muito em especial no campo da infância, a justiça resulta
ser substituída pela piedade e principalmente por aquela bondade paternalista
que tanto repugnava Kant.[9]
O enfoque "substancialista"
se caracteriza por sustentar, objetivamente, uma tosca versão materialista do
direito, herdeira do marxismo mais vulgar. Assim, ao direito, dimensão abstrata
e ideológica, se opõe a ação concreta sobre a
realidade social. O direito, neste caso, deve ser "reflexo fiel da
realidade". Como Funes o memorioso,
do maravilhoso relato de Borges, cujas lembranças de um dia eram tão minuciosas
que duravam exatamente um dia, o enfoque "substancialista"
exige que o direito seja (para não ser abstrato e ideológico) um fiel reflexo
da realidade. Visto sob essa perspectiva, não é de estranhar que se perceba o
direito como algo na realidade supérfluo. Para continuar com Borges, é a
história daquele imperador chinês que queria um mapa perfeitamente fiel de seu
império. Milhares de cartógrafos trabalharam durante anos na confecção do mapa
que acabou tendo o mesmo tamanho que o império e, consequentemente,
se tornou completamente inútil[10]....
No lugar de ser um programa de ação futura, e um instrumento
para conseguir o que ainda não existe, se o direito deve refletir a realidade,
então só pode e deve existir quando já não é mais necessário. O resultado deste
raciocínio (incorreto e falso), consiste em confirmar a subestima da função do
direito: outra profecia na qual os "substancialistas"
trabalham incansavelmente para sua auto - realização. Assim, um direito à
educação que reflita a "realidade" deve concluir, por exemplo, que a
educação de qualidade é um direito daquelas crianças cujos pais têm um nível de
renda que permita tal tipo de educação.
Nenhum direito" reflete melhor
a realidade" que aqueles "direitos especiais" que partem,
paradoxalmente, do reconhecimento da
impossibilidade de universalizar na prática as políticas sociais básicas
(saúde e educação para todos). A conquista de benefícios sociais para as
crianças[11] trabalhadoras constitui o melhor dos
exemplos. Com a desculpa e a suposta legitimidade de sua proteção, algumas
pessoas ou instituições promovem a obtenção de benefícios sociais para as
crianças trabalhadoras (seguro médico, por exemplo). Esta posição constitui um
triplo e gravíssimo erro. Em primeiro lugar, do ponto de vista que se poderia
chamar imediatista pragmático, porque normalmente os
recursos que se canalizam através de políticas assistenciais se deduzem ou
subtraem das políticas sociais básicas. Mais "benefícios" para as crianças trabalhadoras significa (a
curto e médio prazo) menos recursos para as crianças nas escolas. Em segundo
lugar, porque a transferência de
benefícios sociais das políticas universais às assistenciais, implica um
aumento geométrico da discricionariedade no manejo destas últimas, que é o
melhor motivo para aumentar, e sobretudo, para legitimar as mil variáveis das
piores práticas do clientilismo político. Num
processo similar mas inverso ao que transformou os súditos em
cidadãos, as proteções "especiais", quando desnecessárias como
neste caso, tendem a transformar - involuindo – os
cidadãos em clientes. Em terceiro lugar, estas "conquistas" vão
consolidando e confirmando uma cultura de apartheid que percebe o trabalho
infantil como uma solução[12] e, as crianças
trabalhadoras, como uma realidade imodificável, equiparável a uma catástrofe
natural.
Deste pensamento desconexo, mas que tem a força da inércia
das coisas e o apoio do "sentido comum" surgiu um novo paradigma: é o
paradigma da ambigüidade.[13]
Frente aos paradigmas instalados e confrontados da situação
irregular e a proteção integral, o paradigma da ambigüidade se apresenta como
uma síntese eclética, apropriada para esta época de "fim das
ideologias". O paradigma da ambigüidade se encontra muito bem representado
por aqueles que, rejeitando de imediato o paradigma da situação irregular, não
conseguem acompanhar - talvez pela diminuição significativa das práticas discricionais e paternalistas no trato com as crianças - as
transformações reais e potenciais que se deduzem da aplicação conseqüente do
paradigma da proteção integral, que considera a criança e o adolescente um
sujeito de direitos, e não menos, de
responsabilidades. Neste ponto me parece importante arriscar uma explicação que
permita entender melhor o por quê da aparição (e difusão) do paradigma da
ambigüidade.
Se consideramos o caráter de
revolução copernicana da mudança de paradigma da
situação irregular à proteção integral, sobretudo no sentido da .diminuição
radical da discricionariedade na cultura e práticas de "proteção"
(lembre-se que a história é muito clara ao mostrar as piores atrocidades contra
a infância cometidas muito mais em nome do amor e da proteção, que em nome
explícito da própria repressão), é necessário admitir que o direito (a
Convenção) desempenhou um papel decisivo na objetivação das relações da
infância com os adultos e com o Estado.[14]
Esta objetividade (entendida como a tendência oposta à discricionariedade),
que se expressa não só por um novo tipo de direito, mas também por um novo tipo
de institucionalização, assim como por novos mecanismos de cumprimento e
exigibilidade, transforma substancialmente o sentido do trabalho dos
especialistas "tradicionais", desde os juristas até os pedagogos[15] para atingir toda a variada gama destes operadores
sociais. Estas transformações se
referem, especialmente, à redução da capacidade omnímoda
para diagnosticar discricionalmente a existência e
características da "disfunção" social ou individual; e muito
especialmente, o sentido e características das medidas, sejam estas jurídicas,
terapêuticas ou sociais. As metáforas da medicina cada vez dão menos conta da
nova situação. O fato de considerar os adolescentes em conflito com a lei
penal, de uma vaga categoria sociológica que comete feitos anti-sociais
(situação irregular), a uma precisa categoria jurídica que comete infrações
penais, típicas, anti jurídicas e culpáveis (proteção
integral), constitui um exemplo bem representativo desta situação.[16]
O novo direito da infância reduz drasticamente os níveis de
discricionariedade, não só jurídica mas também pedagógica. Neste contexto é que
se produz a rejeição aberta ou mascarada dos velhos especialistas ao novo direito
e sua adesão mais ou menos espontânea e objetiva ao paradigma da ambigüidade (é
óbvio que o conceito de velho e novo se refere aqui a uma categoria político -
cultural e não a uma categoria cronológica).
4. Direito e
pedagogia da discrição
à justiça
Convém recordar que na história da "proteção dos
menores", os eufemismos da bondade não conhecem limites. Barnardo, a figura mais relevante no campo da
"proteção" dos "menores da rua e abandonado" na Inglaterra
de fins do século XIX, o expressa com uma clareza que não precisa maiores
comentários. A prática de arrancar (é o único verbo que dá conta literalmente
das verdadeiras metodologias de "proteção") crianças de suas famílias
"inadequadas" e dar-lhes melhores condições de vida, emigrando maciçamente
ao Canadá, eram denominadas com o termo "seqüestro filantrópico"[17]. Com estes precedentes, não cabem dúvidas que o
paradigma da situação irregular foi indiscutivelmente hegemônico durante sete
décadas na América Latina (1919 - 1990).
Aos céticos, com respeito às capacidades do direito para
influenciar sobre a política social, deve-se recordar-lhes
que as leis de menores outorgaram aos juizes (de menores), a capacidade real de
desenhar – e parcialmente executar - as políticas para a infância pobre durante
todo o período de vigência plena da doutrina da situação irregular.
A prova do caráter hegemônico durante pelo menos setenta anos
do paradigma da situação irregular, resulta do fato que as discussões e
confrontos entre os intérpretes da lei (Juízes) e os aplicadores de suas
conseqüências (psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, etc.,), se dava
invariavelmente nos moldes e no estreito âmbito do paradigma hegemônico. O
velho direito e velha pedagogia constituíam, apenas, variações temáticas (e complementares)
da cultura da discricionariedade[18].
O que acontece é que se, por um lado, resulta óbvio e
evidente que o novo direito exige uma profunda renovação nas filas dos
operadores jurídicos (juízes, fiscais, defensores), não está tão clara a
extensão e profundidade da renovação necessária no campo dos operadores sociais
(pedagogos, assistentes sociais, psicólogos, etc..). Neste sentido este livro
(muito mais que este artigo) deve ser entendido também como um convite à
reestruturação de um diálogo, articulado e respeitoso, entre os operadores
sociais e os juristas. O "pacto de cavalheiros" entre a corporação
médica e a jurídica que nas décadas de 20 e 30 concluiu com uma
institucionalização híbrida e eclética - a justiça de menores - está absolutamente
esgotado. Uma justiça com as aparências objetivas e abstratas da lei, mas, com
os conteúdos e o funcionamento real de discricionariedade médica, se encontra
em processo de extinção.
Mas, como na bela metáfora de Gramsci para descrever a crise,
também aqui o velho não terminou de morrer e o novo não terminou de nascer. No
entanto, me permitem aqui uma (única) indicação referente à direção que implica
a nova relação entre o direito e a pedagogia. Historicamente, e amparado no
conceito de inter-disciplinaridade, a "velha
pedagogia" tem impregnado cada milímetro do (não) direito de menores.
Psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais, entre outros, têm transitado e
transitam com naturalidade nas instâncias da velha (e nova) justiça para a
infância. Talvez haja chegado a hora de que operadores
da defesa técnica (advogados públicos ou
particulares) comecem a transitar com a mesma naturalidade nos espaços
de tratamento e reabilitação. Para uma pedagogia das garantias (que é a única forma
que a pedagogia pode assumir no contexto do novo direito da infância), a
pertinência jurídica do sujeito de uma medida sócio - educativa constitui o
primeiro requisito para considerar, só posteriormente, a bondade ou maldade
intrínseca da medida pedagógica.
Na reestruturação das relações entre o direito e a pedagogia
cabem perfeitamente as palavras de Antônio Machado no período imediatamente
posterior à Guerra Civil Espanhola: "Temos que inventar até a
verdade".
4. Direito
e autoritarismo
O processo de reformas legislativas que começa a mediados da
década de 80 no Brasil, e se estende até nossos dias a todos os países da
América Latina, deve ser também entendido como um imenso laboratório para a
democracia e para o direito.
Na Europa dos anos 80, muito particularmente na Itália e em
menor medida na França, surge um movimento de uso alternativo do direito que
projetou na América Latina uma certa influência no plano intelectual e
acadêmico, ainda que não no plano da política. O ambiente político onde nasce e
se desenvolve o movimento do uso alternativo do direito (na Europa) poderia de
forma esquemática, sintetizar-se como segue. Num contexto de bloqueio da
situação política caracterizado pela imobilidade do percentual eleitoral dos
partidos progressistas, de uma crescente produção intelectual crítica no campo
do direito e da profissionalização democrática dos operadores da justiça
(concursos públicos e carreira judicial), surge a
proposta de utilizar numa chave diferente à tradicional, o direito existente. A
falta de uma maior base de sustentação política e a incapacidade ou impossibilidade de políticas de alianças,
determinaram a inexistência de condições para a transformação legislativa.
Tratava-se, em outras palavras, de usar, com um conteúdo progressista e
transformador, a discricionariedade própria da função judicial. É a tentativa
de utilização crítica de um direito muitas vezes - razoavelmente democrático ou
a rejeição às interpretações regressivas das normas jurídicas processuais, impostas
e legitimadas pelas várias faces da emergência (máfia, terrorismo, etc.).
No entanto, e provavelmente como conseqüência não desejada, a
utilização crítica do direito por parte de seus operadores (os juizes) levou a
reforçar os níveis de discricionariedade judicial. Resulta pelo menos paradoxal
que Pietro Barcellona, um dos inspiradores do
movimento do uso alternativo do direito há vinte anos, se expresse nos
seguintes termos num escrito muito recente: "a universidade elaborou
teorias legitimadoras de um inadmissível
poder dos juízes. Basta pensar na cada vez mais freqüente afirmativa
sobre a função criativa do juiz e na ênfase sobre um direito vivente como
alternativa à primazia de um legislador confuso e contraditório"[19].
Muito diferente é a situação no contexto latino-americano. Na
América Latina dos 80, não só carecíamos de um direito "razoavelmente
democrático'', mas também contávamos com um direito explicitamente autoritário
e antidemocrático. Esta situação era, particularmente, evidente nas áreas do
(não) direito constitucional e do direito penal. O direito de menores, baseado
na doutrina da situação irregular, não constitui, é lógico, um subproduto das
ditaduras militares dos anos 70, mas se adaptou maravilhosamente a seu projeto "social". A discricionariedade omnímoda do direito de menores legitimada na bondade
protetora de setores fracos e sobre tudo incapazes, constituiu uma fonte
excelente de inspiração para o direito penal e constitucional do autoritarismo.
É por isso que, se hoje o projeto de construção de cidadania da infância
descansa na constitucionalização de seu direito, o projeto regressivo do
autoritarismo, dos anos 70 e 80, de converter cidadãos em súditos, descansava
na "menorização" de todo o direito, muito
especialmente o penal e o constitucional.
Das múltiplas conseqüências perversas, produto dos
autoritarismos dos anos 70 e 80, uma delas se refere a seu impacto negativo
sobre a já frágil cultura do direito na América Latina. Sem dúvida, o
autoritarismo e suas seqüelas exacerbaram todas as tendências negativas que,
sobre tudo no plano das relações direito
- realidade, direito - democracia e direito - cidadania, imperaram e imperam
desde a colonização até nossos dias.
Ainda com o objetivo de destruir a democracia e a condição de
cidadania, os governos autoritários não subestimaram as capacidades técnicas do
direito como instrumento eficiente de dominação[20].
O direito de menores - particularmente em seu caráter de
eficiente instrumento de controle social, especialmente através de sua
conhecida "vocação" para a criminalidade da pobreza, conviveu
comodamente com toda a política do autoritarismo e não só com sua política
social. A discricionariedade omnímoda do direito de
menores, onde a legalidade consistia na mera legitimação do "que acredite
mais conveniente" o responsável de sua aplicação, constituiu uma fonte
excelente de inspiração para o direito penal e constitucional do autoritarismo.
O uso profícuo do direito por parte dos governos autoritários
confirmou aos "substancialistas", no
momento de retorno à democracia, a necessidade de relativizar
as capacidades transformadoras do direito e, principalmente, relativizar a qualidade do vínculo entre direito e
democracia. A necessidade de que o direito só reflita a realidade parece ser a
reação dos que negam por meramente ideológico, um direito diferente à
realidade; em outras palavras, dos que explicitamente negam as possibilidades
do direito como instrumento pedagógico e proposta democrática de transformação
social.
5. Infância
e democracia
O novo direito da infância - adolescência na América Latina
constitui nos fatos (e valha o jogo de palavras, no direito) um desmentido
rotundo às profecias do realismo "substancialista".
Desde o Estatuto do Brasil de 1990, até a nova lei de infância da Nicarágua
aprovada no parlamento em março de 1998, todas as leis gestionadas
pelos movimentos de luta pelos direitos da infância têm sido profundamente
negadoras da realidade. Se houvesse sido realizado o "check reality" apregoado pelo
"realismo substancialista", as recorrentes
políticas de ajuste estrutural e as erráticas políticas de segurança produto do
alarme social pela delinqüência juvenil, haveriam determinado que todas estas
leis fossem não tanto (e só) inúteis senão que além do mais impossíveis. Neste
livro se encontram, também para desmentir o "realismo substancialista",
as leis, projetos e anteprojetos "impossíveis" de dezesseis países
que se atreveram a construir normas jurídicas que não refletem a realidade mas
que são muito melhores que a realidade mesma (Exclui-se desta afirmativa o
Código de menores de Colômbia, e por isso o número de países se reduz a
dezesseis). Leis que, se bem que ninguém interpreta como instrumentos mágicos,
e muito menos suficientes para qualquer mudança
profunda nas condições materiais da infância, serviram para ser entendidos como
condição sine qua non da melhoria da situação das crianças e adolescentes
e sobretudo da qualidade de nossa vida democrática. Projetos de lei que
acabaram sendo, na feliz expressão de Antônio Carlos Gomes da Costa,
verdadeiros projetos de sociedade. Talvez seja conveniente recordar aqui que,
neste continente de paradoxos, os que menos fazem são precisamente os homens
"práticos e pragmáticos", e não fazem nada porque empregam todo seu
tempo em explicar-nos "cientificamente" o caráter inelutável do
existente porque o que é, é o único que pode ser e o que não é, liso e claro
não pode ser. Assim como o afirma Alessandro Baratta, neste desprezo da utopia, entendida
particularmente em sua dimensão do que “ainda não é", se encontra a
explicação de uma parte não pouco importante dos problemas da nossa democracia.
Das crianças - continua afirmando Baratta - que não
perderam esta capacidade, porque seu mundo de vida ainda não foi colonizado
pela razão cínica; temos, sem exageros nem demagogias, muitíssimo que aprender[21].
O movimento do novo direito da infância não só espera um
balanço crítico (que oxalá seja externo à sua lógica,
à sua cultura e. a seu funcionamento), senão que também uma profunda reflexão
relativa a suas potenciais conseqüências e a seu
caráter contaminante positivo (e se fosse o caso
negativo) sobre o resto do direito.
6. Direito
e realidades a "contribuição" do masoquismo institucional
Se em algum lugar o pensamento regressivo teve (e em boa
parte tem ainda) um caráter hegemônico é no campo do direito. Faz já alguns
anos (quando imperavam na América Latina governos abertamente autoritários),
ocupei-me especificamente do tema sustentando que a hegemonia jurídica
constituía (também) para os grupos dominantes, uma forma de recuperar o
desgaste, conseqüência das relações abertas de dominação que se exerciam no
plano da política[22]. Mas se a afirmativa anterior
explica em parte as causas da hegemonia jurídica, diz em troca muito pouco a
respeito de seu conteúdo e manifestações concretas.
Em poucas áreas da vida social a hegemonia jurídica
regressiva se manifestou com mais força (e eficiência) que na área da
"política social para os mais necessitados". Mais ainda, não me parece
exagerado repetir que desde 1919, as leis de menores têm conduzido, ideológica
e materialmente, a política para as crianças pobres na América Latina. Ainda
que pareça paradoxal, a hegemonia jurídica do pensamento regressivo se
manifesta (também) na subestima que do direito e do jurídico fazem os setores
que politicamente se auto consideram como
progressistas e - sem dúvida alguma - como modernizadores. Esta perspectiva,
mas sobretudo este problema na América Latina, remete à
muito pouco explorada com seriedade e atenção, relação entre direito e
realidade. É assim que a cultura garantista e
democrática encontra um obstáculo político-cultural considerável em algumas
manifestações - recorrentes - do pensamento "substancialista"
próprio do paradigma da ambigüidade.
A formulação de políticas, ou o que é pior, de propostas
legislativas em função das deficiências, das omissões, das violações,
definitivamente, do que não é, em vez de em função do que deveria ser, teve e
tem conseqüências negativas gravíssimas sobre a cultura dos direitos e sobre a
própria democracia (mutatis mutandi algo
bastante similar se pode dizer das leis e políticas que só se referem aos
excessos intoleráveis). As leis "protetoras" da criança trabalhadora
constituem, como já se mencionou, um bom exemplo de erro elevado à categoria de
política jurídica e social. De fato, as leis "protetoras" tendem
objetivamente a legitimar, consolidar e, sem dúvida, também a reproduzir de
forma ampliada as violações e omissões que a própria lei
protetora pretende paliar.
Relativizar também normativamente,
uma violação aos direitos consagrados numa norma jurídica de classe superior
(exemplo, a Convenção ou a própria Constituição), implica objetivamente em
renunciar ao direito como um instrumento eficaz que assinale o caminho para
reduzir e eliminar injustiças flagrantes e desigualdades intoleráveis. Neste
contexto, flexibilizar de forma "realista" a legislação para
"proteger" a criança trabalhadora, por exemplo, não se diferenciaria política
ou conceitualmente em nada, de suavizar as normas que castigam a violência
policial, utilizando o argumento de sua alta freqüência.
De modo similar que a relação direito - pedagogia, também a
percepção social da relação direito - realidade na América Latina exige uma análise
critica renovada.
A percepção social dominante a respeito da relação direito –
realidade é sobretudo, a história de sombrias profecias que - geralmente - se
auto-realizam A percepção "popular" proporciona alguns exemplos que
merecem uma atenção muito mais séria que a dispensada até agora. Do "se
acata mas não se cumpre” ao “ para os amigos tudo,
para os inimigos a lei" (frase esta última que se atribui a Getúlio
Vargas, mas que na realidade poderia ser de tantos outros), existe uma maciça
continuidade negativa que, curiosamente quase nunca aparece manifesta nas
análises que explicam os problemas e fragilidade de nossas democracias. À
análise das funções específicas do direito como mecanismo co-ativo de
integração social no contexto dos governos autoritários[23]
não se seguiu até agora, uma análise similar em condições democráticas.
O pensamento "substancialista"
contribuiu para consolidar a visão de uma relação perversa entre direito e
realidade. A percepção dominante da relação entre condições materiais e
condições jurídicas da infância; oferece um exemplo que merece uma menção mais
explícita e profunda.
A experiência dos processos de reforma legislativa destes
últimos anos (...) demonstra que, enquanto num pais
convivem condições materiais da infância graves e preocupantes (desnutrição,
mortalidade infantil, detenções ilegais e arbitrárias, etc.), com condições
jurídicas similares, quer dizer, com leis velhas e desprestigiadas (negadora do
direito, carentes de garantias ou inclusive tecnicamente vergonhosas), a
"opinião pública" (que como se sabe, muitas vezes é a menos pública
das opiniões), tende a ignorá-la, neste caso, correspondência entre direito e
realidade. No entanto apenas um país onde as condições materiais da infância
são graves aprova uma lei democrática em seu processo de produção e garantista em seu conteúdo, começa um
processo brutal de exigências de natureza quase milagrosas à. nova lei.
O fato de que a nova lei proponha condições materiais muito
melhores que as existentes é suficiente para sua condenação como utópica. Mas
utópica não no sentido positivo de E.Bloch, que entende a utopia como '"o que ainda não é", mas utópica no sentido de depreciavelmente impossível. Utopia negativa se refere - geralmente - à impraticabilidade da lei pela ausência (total) de recursos de todo
tipo, especialmente financeiros. Como se .os orçamentos, por outra parte quase sempre “sensíveis” à clientela eleitoral,
fossem imunes a qualquer tipo de pressão social.
Neste contexto, há um "sentido comum latino-americano"
que se aproxima muito ao que - com uma certa ironia, ainda que não muita - se
poderia denominar de masoquismo institucional. A reação imediata frente a uma
boa lei se expressa, muitas vezes, na frase "esta lei é demasiado boa para nós, essa é uma lei para Suíça ou para
Suécia".
Uma visão como esta comete - como mínimo - um duplo erro. Em
primeiro lugar, subestima tanto o potencial caráter pedagógico da lei, quanto
sua condição de instrumento decisivo na construção da cidadania, sobretudo quando
é utilizado como ferramenta técnico - política de
transformação social. Em segundo lugar, este "realismo" antiutopista dá como certo o caráter imodificável que o
capitalismo selvagem do ajuste estrutural assumiu: derrubada da política social
e controle férreo das conseqüências do darwinismo social instaurado. Esta
percepção não só é incorreta. Desde qualquer perspectiva conseqüente com a
consolidação plena de uma verdadeira democracia, além de tudo é falsa. A
subestima do papel estratégico do direito num processo de mudança social não é
principalmente conseqüência da fragilidade da democracia e suas instituições. É
a fragilidade da democracia e suas instituições que são o resultado da
subestima das capacidades do direito como forma democraticamente privilegiada
de assegurar a justiça e a paz social. Por isso não me parece exagerado afirmar
que, se não detivermos no plano político, jurídico e cultural, os avanços
"realistas" do "substancialismo",
corremos o risco de regressar à situação que existia antes da Revolução
Francesa, quando o exercício efetivo dos direitos fundamentais dependia -
explicitamente - das condições materiais[24]. É dizer,
a uma situação (ideal para os "substancialistas"),
na qual o direito refletia fielmente a realidade.
7. Globalização,
infância e direitos humanos
A década dos anos 90 foi uma década de mudanças muito
profundas em todos os âmbitos imagináveis. O processo de globalização modificou
radicalmente o compromisso histórico entre Estado e mercado[25]
mais precisamente, rompeu-se a inserção no mercado de trabalho como fundamento
da cidadania, esta última base do funcionamento da democracia moderna[26].
Mas se por um lado o fundamento da cidadania não está mais
primordialmente referenciado a um mercado de trabalho cada vez mais volátil, no
âmbito da democracia seu fundamento - sobretudo a partir do descrédito com que
as democracias "populares" marcaram qualquer projeto de soberania
popular - foi se deslocando cada vez com mais força ao plano dos direitos
fundamentais do homem[27].
A compreensão dos efeitos reais da globalização, sobretudo no
plano social, exige o abandono de qualquer forma de aproximação maniqueísta ao
problema. Além do mais, se as bases da cidadania e a democracia se encontram
num processo profundo de reformulação, a categoria infância está longe de ser
uma variável independente ou passiva com respeito a ditas transformações. A
Convenção não é só uma carta magna dos direitos humanos da infância
adolescência; é também, a base jurídica concreta para restabelecer um conceito
de cidadania mais de acordo com os tempos.
Se por um lado a "mão invisível do mercado" se
encarregou de destruir a "certeza" do trabalho como fundamento da
cidadania, por outro lado, " a mão visível do
direito" está se encarregando de destruir a outra "certeza" que
equiparava e restringia o conceito de cidadania ao mero exercício de alguns
direitos políticos. Basta por agora este exemplo para mostrar o caráter
profundamente contraditório das tendências que emergem do processo de
globalização.
Em extraordinário artigo, Alessando
Baratta explica como a Convenção constitui ao mesmo
tempo causa e efeito de uma nova reestruturação do pacto social. Se, como é
sabido, o pacto social da modernidade se baseou, muito particularmente, na
exclusão dos não cidadãos (não proprietários, estrangeiros, mulheres e
crianças), com cada crise e ruptura de dito pacto original, a pressão social e
o direito desempenharam um papel fundamental na ampliação de suas bases de
sustentação. Parece-me importante recordar aqui que o "direito", que
teve um papel fundamental nos movimentos de reestruturação do pacto, não foi só
o direito constitucional, mas também o civil e o de "menores",
termo este último com o qual em realidade ainda se denominam os diversos
estatutos de incapacidade da infância.
Do mesmo modo que para a mulher[28],
também a incapacidade política da infância está precedida por uma incapacidade
civil, que por sua vez se baseia e legitima numa ampla série de incapacidades
"naturais", que o direto de menores só se tomou o trabalho de
"reconhecer" e outorgar status "científico". Mas se o
direito autoritário cumpriu um papel fundamental na legitimação das técnicas de
exclusão, é necessário conhecer esse direito um pouco mais, não só no seu
conteúdo mas também na sua forma. Se o conteúdo do direito autoritário se deixa
reconhecer por quem quer que seja de forma .clara e explícita, não sucede o
mesmo com sua forma. A forma autoritária do direto remete a seu casuísmo
concreto, que no caso do direito de menores se refere à proteção específica de
pessoas pertencentes a determinadas categorias (crianças vítimas de abusos
sexuais, maltratados, da rua, trabalhadores, privados de liberdade, etc.)[29]. Pelo contrário, a forma emancipativa
e construtora de cidadania para todos faz referência ao caráter abstrato e
geral da lei.
Norberto Bobbio expressa de forma
medianamente clara esta "sutil" diferença entre forma e conteúdo
quando afirma:
"Que
a junção igualadora da lei dependa de sua natureza de
norma geral que tem por destinatários no só um indivíduo mas também uma classe
de indivíduos que
pode ser constituída da
totalidade dos membros do
grupo social, está
fora de discussão. Justamente por
causa de sua generalidade uma lei, qualquer que esta seja, e portanto
independentemente de seu conteúdo, não consente, pelo menos no
âmbito da categoria de sujeitos aos quais se dirige,
nem o privilégio, quer dizer, as disposições
a favor de
urna só pessoa,
nem a discriminação, quer dizer
as disposições contra uma só pessoa. Que logo
existam leis igualitárias
e leis inigualitárias é
outro problema.: um problema relativo não à forma da lei, mas sim a seu
conteúdo"[30].
Se o direito de menores cumpriu um papel (regressivo)
fundamental, entre outras coisas por legitimar as exceções às garantias que o
direito constitucional oferece a todos os seres humanos, um novo tipo de
direito constitucional inspirado na Convenção abre as portas para uma nova
reformulação do pacto social, com todas as crianças e adolescentes como sujeitos
ativos do novo pacto. Valha como exemplo técnico jurídico o histórico artigo
aprovado em junho de 1998 pela Convenção Constituinte do Equador, consagrado na nova Constituição Nacional.
Desvinculando o conceito de cidadania da estreita compreensão que o reduz a um
mero sinônimo de direito ao sufrágio, o artigo 6 da Constituição Política do
Equador estabelece:
"Os
equatorianos são por nascimento ou naturalização .Todos os equatorianos são
cidadãos e como tais gozam dos direitos estabelecidos nesta Constituição, que
se exercerá nos casos e com os requisitos
que determina a lei ".
Estou convencido que a importância desta nova reestruturação
do conceito de cidadania dificilmente possa ser subestimada.
De seu sentido original, revolucionário em relação à velha
ordem feudal que só reconhecia súditos, mas excludente
de toda categoria diferente do macho branco, proprietário e não estrangeiro, o
conteúdo real do conceito de cidadania pode ser entendido também como um
termômetro da democracia.
Tal como corretamente o sugere Luigo
Ferrajoli[31] , a
idéia e prática dos direitos humanos constitui sem dúvida o instrumento mais
eficiente para fechar progressivamente a brecha que separa os direitos de
(todos) os homens dos direitos de (alguns) cidadãos. Precisamente por isso, não
é ocioso - nem muito menos "ideológico" - entender a Convenção e toda
a série de leis e projetos (...), como instrumentos específicos de direitos
humanos de todas as crianças e dos adolescentes. Neste caso a tarefa de
reconstrução da dignidade humana é dupla. Não se trata só de fechar a brecha
entre "homens" e cidadãos; trata-se também de fechar a brecha – para
começar jurídica - entre crianças e "menores". Neste sentido e sem
nenhum exagero, este segundo processo de reformas legislativas deve ser
entendido (também) como a Revolução Francesa que com duzentos anos de atraso
chega a todas as crianças e adolescentes.
8. Memória
do futuro: a infância uma questão
de justiça
Durante sete décadas (1919-1990), as leis de menores foram
muito mais que uma epiderme ideológica e mero símbolo de um processo de criminalização da pobreza. As leis de menores foram um
instrumento determinante no desenho e execução da política social para a
infância pobre.
As leis de menores foram um instrumento (legal) determinante
para legitimar a alimentação coativa das políticas assistenciais. A polícia -
em cumprimento das leis de menores e simultaneamente em flagrante violação dos
direitos e garantias individuais consagradas em todas as Constituições da
região - converteu-se de fato no provedor majoritário e habitual da clientela
das chamadas instituições de "proteção" ou de "bem estar".
Até a aparição do Estatuto da Criança e do Adolescente do
Brasil em 1990, a "legalidade minorista" e
as políticas assistenciais caminharam na mesma direção. É só a partir de 1990,
que a lei e o assistencialismo clientelista tomaram
caminhos opostos. Também por este motivo é que as novas leis da infância não
refletem simplesmente a realidade, mas sim que são muito melhor que ela.
Nos últimos anos assistimos na América Latina uma diminuição
considerável na qualidade e quantidade das políticas sociais básicas (saúde e
educação), que inclusive certos formalismos não conseguem dissimular. Para dar
só um exemplo, o acesso praticamente "universal" à educação primária
se tem obtido através de duas "variáveis de ajuste" que, por outra
parte, a médio prazo só contribuíram para agravar
ulteriormente a situação: a redução das
horas de aula e o salário dos professores. À diminuição das políticas sociais
básicas seguiu-se um aumento das chamadas políticas assistenciais ou
compensatórias, fenômeno que de forma errada alguns (eu mesmo entre eles)
atribuíram pressurosamente à mera diminuição do volume do gasto social. Mas se
por um lado assistimos a esta tendência preocupante e negativa desde o ponto de vista de construção de
cidadania, pelo outro, o novo direito para a infância tende invariavelmente (para dize-lo de forma esquemática e resumida) à separação nítida
entre problemas sociais e problemas especificamente vinculados à violação da
lei penal. De um (não) direito da compaixão - repressão,
se tem avançado para um direito das garantias.
É precisamente neste
último ponto onde se cruza o tema da infância,
não só com o terna da lei, mas também muito
especialmente com o tema maior da democracia.
O que acontece é que o deterioro e a diminuição da qualidade
e quantidade das políticas sociais básicas não se deixa explicar por meros
motivos econômicos. Além das dificuldades crescentes para a determinação do
volume real do gasto social, a tendência assinalada anteriormente se verifica
inclusive na - paradoxal - situação de aumento do gasto social. "O gasto
social se tomou sumamente sensível aos ciclos eleitorais" se afirma elegantemente num excelente artigo sobre o
assunto[32]. É que o aumento da cobertura das políticas
assistenciais e a diminuição das políticas sociais básicas parece
explicar-se com uma lógica muito mais política que econômica. Também
aqui o conceito de discricionariedade resulta central para entender este
fenômeno. Enquanto as políticas sociais básicas tendem a ser
percebidas como uma obrigação do Estado das quais os cidadãos, enquanto
tais, se sentem credores de um direito, as políticas assistenciais resultam
muito mais percebidas como prerrogativas de um governo (quando não de um
partido) frente às quais o cidadão se transforma em cliente e o serviço em
dádiva.
Possivelmente resulta mais claro agora entender que qualquer
redução dos âmbitos da discricionariedade resulta diretamente proporcional ao
aumento dos espaços reais da democracia. A história e a experiência confirmam
que não existe um só exemplo consistente que demonstre que a discricionariedade (predomínio de qualquer
tipo de condição subjetiva) tenha efetivamente funcionado (tal como deveria
ser, se nos ativermos a seu discurso declarado) em beneficio dos setores mais
fracos ou vulneráveis. Em conclusão, a focalização que é a forma
"tecnicamente natural" que assumem as políticas assistenciais, quando
não resulta estritamente necessária, se converte não só em parte dos problemas
que afligem a política social senão que o que é ainda muito pior, num sério
problema para o próprio desenvolvimento democrático.
Só se tomamos em consideração os séculos transcorridos na
história da "proteção" da infância, não resulta difícil dar-se conta
que o processo de construção de sua cidadania apenas está começando com
exemplos que seria um grave erro subestimar, como o da recente Constituição
equatoriana. O enfoque esquizofrênico da compaixão - repressão perdura ainda
hoje em muitas cabeças e em algumas poucas leis; do que não cabe dúvida é de
que o presente e o futuro da infância já são uma questão de justiça.
Notas
[1] Por ter enfrentado este problema
inúmeras vezes nos últimos tempos em debates e discussões, parece-me
interessante apresentar aqui Lima nota explicativa. No caso de Somália, o
motivo é óbvio. Faz muitos anos que a guerra civil fez desaparecer todo
vestígio do governo central e muito mais do Estado. A Somália se tornou
puramente geografia e não consegue constituir-se como sujeito do direito
internacional. O caso dos Estados Unidos é muito mais complexo e requer uma
explicação que, a meu ver, remete a três motivos de natureza diversa: a) o
primeiro, se vincula com uma tradição jurídica do direito anglo - saxônico - profundamente reforçada em oposição ao bloco
soviético nos anos da guerra fria - que privilegia os direitos e garantias
individuais, isto é, o direito como um instrumento eficaz para restringir a
área de intervenção do Estado na vida dos indivíduos. (Uma tradição que resiste
à transformação para normas exigíveis) de aspectos vinculados à área econômica
- social (saúde, trabalho, moradia, etc.). Neste sentido, é preciso não
esquecer que a CIDN é também um catálogo de
direitos econômicos e sociais. b) o segundo motivo se refere a uma
imagem (falsa mas eficiente para conquistar credibilidade) que grupos
conservadores, geralmente de caráter religioso, propagaram, no sentido de que a
CIDN destrói completamente a autoridade dos pais sobre os filhos. Esta
percepção é totalmente falsa. No entanto, o que é verdade é que a CIDN reduz
drasticamente as relações de discrição entre pais e filhos. Neste sentido, é precisamente
que a CIDN reformula radicalmente as relações das crianças, não só com o
Estado, mas também com os adultos; e; c) o terceiro motivo, de natureza
eminentemente simbólica, não deixa por isso de ser sumamente importante e se
vincula estreitamente com os temas de segurança urbana e delinqüência juvenil.
Na maioria dos estados dos Estados Unidos, quando um adolescente maior de 14
anos (em vários estados esta idade é ainda inferior), comete um delito muito
grave é julgado e sentenciado, podendo, inclusive ser condenado à pena de
morte, que se executa uma vez cumprida a maioridade. A ratificação da CIDN
faria com que esta última situação fosse, desde o ponto de vista político
e,jurídico, impossível, ou pelo menos enormemente complicada.
[2] BARCELLONA,pietro,
Política e passioni, Bollati
Boringhieri, TURIM, 1997, PÁG.61.
[3] Além da considerável quantidade
de bibliografia em português, para os leitores de fala castelhana, se recomenda muito especialmente os trabalhos de Edson Seda (1992) e
Antônio Carlos Gomes da Costa (1992).
[4] O art.227 estabelece, “É dever da
família, da sociedade e do estado assegurar à criança e ao adolescente, com
prioridade absoluta, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à
recreação, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão...”. Por sua parte, o art. 204 estabelece: “As ações
governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do
orçamento de seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e
organizadas com base nos seguintes princípios... II. Participação da população,
por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no
controle das ações em todos os níveis.
[5] Para uma análise bastante exautiva desta primeira etapa, mas que só abrange cinco
países da região (Argentina, Colômbia, Costa Rica, Uruguai e Venezuela) cfr. E. Garcia–Méndez – E. Carranza (1990). Para uma análise mais global referente a toda
América Latina, cfr. E. Garcia-Méndez
(1997, pp45 e 55).
[6] Sobre este ponto específico da
relação direito-democracia, cfr, L. Ferrajoli (1989, especialmente p. 992)
[7] O conceito de “pedagogia” está
particularmente referenciado a uma necessária reformulação crítica que, em
situação de garantia, deverá realizar a educação e os educadores, sobretudo –
ainda que não exclusivamente – em situações vinculadas ao conflito dos
adolescentes com a lei penal.
[8] Sobre este ponto específico que
explica como o investimento em educação, nos países hoje desenvolvidos,
precedeu e possibilitou o desenvolvimento econômico, cfr.
M. Weiner (1991, em especial pp. 109-151).
[9] Sobre este ponto que remete
também à discrepância, governo dos homens Vs..
governo da lei cfr. N. Bobbio
(1995), especialmente pp 182 e 183.
[10] Sobre este ponto, e muito
especialmente sobre o uso da metáfora da cartografia, cfr.
B. de Souza Santos (1991, pp213 e 55).
[11] Se utiliza aqui o termo
“criança” no preciso sentido jurídico que lhe outorga o novo direito da
infância na América Latina para designar menores de 12 ou 13 anos. Acima deste
limite, as novas leis os reconhecem como adolescentes.
[12] De forma brilhante, Antônio Carlos Gomes da Costa,
assinala que um dos principais problemas do trabalho infantil consiste
justamente em não ser percebido como tal. Gomes da Costa continua afirmando que
as sociedades estão preparadas, no melhor dos casos, para enfrentar problemas e
não para enfrentar “soluções”. Ainda que soe paradoxal, para enfrentar o tema
do trabalho juvenil ainda devemos realizar mais esforços, principalmente no
plano político-cultural, para que a sociedade o perceba como um problema.
[13] Sobre este ponto, cfr. O
trabalho de Antônio Carlos Gomes da Costa (1998) – Pedagogia e Justiça.
[14] Sobre o novo direito da infância e, particularmente, a
CIDN, entendido como uma reformulação radical das relações entre as crianças e
os adultos, e, as crianças e o estado, cfr.; o
excelente trabalho de Miguel Cillero sobre “O
Interesse Superior da Criança”.
[15] Refiro-me aqui ao educador, entendido este em seu
sentido mais amplo.
[16]Cfr. García-Méndez, Emilio, 1997, pags.
209-227.
[17] Cunningham, Hugh, Storia dell
infanzia, XVI-XX Secolo, IL
Mulino Bolonia, 1997, p.
183.
[18] Cfr. E. García-Méndez,
1997b, pp 27-32.
[19] Barcellona,
Pietro, 1997, pag. 40.
[20] Para uma análise mais detalhada sobre as funções
específicas do direito no contexto dos autoritarismos dos 70 e dos 80, E. Garzón Valdés (1993), E. García-Méndez (1987) N. Lechner
(1997).
[21] Cfr. O artigo de Alessandro Baratta sobre “Infância e Democracia”.
[22] (E. García-Méndez, 1987, pp 231-242)
[23] Cfr. entre outros (n. Lechner, 1977, E. Garzon Valdés 1993).
[24] Sobre este ponto em especial, cfr.
S. Rodota (1997), especialmente pp
130-131).
[25] Pietro, Barcellona,
1997, p.49.
[26] (U.Beck, 1997, pp.21-25).
[27] Esta é uma explanção realizada
por A Touraine (1992), citado por S. Rodota (1997, p.7).
[28] Para uma análise mais detalhada sobre este problema mas
com relação à mulher cfr. O excelente livro de G. Zincone (1992).
[29] Ver tendências a juridificar
categorias como estas, no livro segundo do Código da Família e do menor do
Panamá.
[30] Cfr. Norberto Bobbio, 1995, pp 176-177.
[31] Ferrajoli, Luigi, 1994, pp.
263-292.
[32] Cfr. Bustelo.
E – Minujin. A, 1997