SENTENÇA    - ACP – CRECHES – SP

 

VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DO FORO REGIONAL XI – PINHEIROS – CAPITAL

 

            O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por seus Promotores de Justiça da Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude da Capital, moveu a presente ação civil pública contra o MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, representado por seu Prefeito Municipal, a fim de obter a condenação do réu a garantir o acesso  universal e gratuito à educação em creche às crianças de zero a três anos e onze meses, na área de jurisdição deste juízo.

 

            Alega o autor, em suma, que o Poder Executivo municipal vem negligenciando a oferta de educação infantil a milhares de crianças, em função da insuficiência de vagas nas creches municipais. Com fundamento em vários dispositivos constitucionais e legais, dentre os quais os artigos 205, 206, I, 208, IV, 211 e 227, todos da Constituição da República, os artigos 4º, 53 e 54, IV, do ECA,  e também os artigos 4º, 5º, 29 e 31 da Lei 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), pretende, o autor, seja obrigado a atender à grande demanda por vagas, sempre insuficientes, de crianças de 0 a 3 anos e 11 meses de idade em creches, a fim de ser atendido o direito subjetivo dos menores  e de seus pais, que na área de jurisdição do Foro Regional de Pinheiros procuram em vão a indispensável educação garantida pela legislação constitucional e infraconstitucional brasileira.

 

            Ressalta a legitimidade ativa do Ministério Público para o ajuizamento e a competência do Juízo da Infância e da Juventude para o conhecimento e processamento desta ação. No mais, reitera que, alem do ensino fundamental, obrigatório e gratuito, também é direito público subjetivo o atendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade, pois faz parte da educação básica; que a educação infantil é facultativa apenas para os pais, conforme a obrigação genérica do Estado que existe para todos os ensinos previstos pelo artigo 4º da Lei 9394/96.       

 

            Ao final, como já exposto, requereu a condenação do Município a prestar o serviço público de educação infantil, em creches, para crianças de zero até três anos e onze meses de idade, em condições de igualdade, cujos pais queiram matriculá-las quer por meio de rede própria, conveniada ou indireta, respeitados os princípios da universalidade e gratuidade, até o ingresso da educação infantil pré-escolar, a partir do ano letivo de 2000. Ou, supletivamente, nos termos do art. 461 do CPC, que seja o Município condenado a pagar as mensalidades escolares, em unidades particulares, aos alunos correspondentes às matrículas reclamadas , pelo prazo em que se verificar a omissão do Estado e prestar pessoalmente a assistência devida à educação pleiteada nesta ação.

 

            Em contestação (fl. 82/90), o réu argüiu inépcia da petição inicial, pelos argumentos de que traz pedido genérico e indeterminado e que falta documento indispensável á propositura da demanda, que comprova a alegada falta de vagas em creches. Aduziu que o pedido é juridicamente impossível, pois que pressupõe descumprimento futuro da legislação e que, por outro lado, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação estabeleceu expressamente o prazo de três anos para que as creches e pré-escolas integrem-se ao sistema de ensino, prazo esse que não se esgotou (art. 89 da Lei 9394/96). Pede, com isso, a extinção do processos nos termos do art. 267, I e VI, do CPC.

 

            No mérito requereu a improcedência da ação, alegando, em resumo, que a constituição da República não lhe atribuiu competência exclusiva, nem privativa, mas apenas prioritária, com relação ao ensino fundamental e infantil, o que foi repetido pelo ECA e pela LDB e que o Município deve dar prioridade ao ensino fundamental, estando ainda em curso o prazo fixado na Lei 9394/96 para a adaptação dos entes públicos às inovações sobre a educação infantil. Não há nos autos prova de que alguma criança não tenha obtido vaga ou mesmo matrícula na pré-escola. Negou a suposta falta de vagas informando que a Secretaria Municipal atende 89.900 crianças em 723 creches que supervisiona.

 

            Sobre a contestação manifestou-se o autor (fls. 93/105) e, na seqüência, vieram aos autos documentos enviados pela Secretaria de Estado (fl. 128, 136, 197/214, etc).

 

            Declarado saneado o feito, sem recurso, em audiência forma inquiridas duas testemunhas (fl. 248 a 252), com encerramento de instrução. Em alegações finais as partes reiteraram seus respectivos argumentos e pedidos (fl. 254/271 e 307/311).

 

            É O RELATÓRIO.

 

            Ficam rejeitadas as questões processuais postas na contestação de fl. 82/90.  

            Na verdade, o Estado vem se valendo a toda hora dessa expressão, norma programática, para apenas dar uma justificação aparentemente teórica às suas graves omissões e, notadamente ao descumprimento dos comandos constitucionais. Deixa de cumprir a Constituição e, como se uma norma dessa natureza fosse apenas um qualquer e inútil enfeite, um delírio ou um devaneio do constituinte.   

            Longe, portanto, de uma simples quimera o art. 208 da Constituição da República, quando estabelece que “O dever com a educação será efetivado mediante a garantia de ...IV – atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade”.

            Ou seja, as crianças de zero a seis anos têm garantido, por expressa disposição constitucional, o direito, não em tese, não imaginário, não meramente ideal, mas concreto, efetivo, de atendimento em creche e pré-escola.

            Nada mais é necessário se dizer para que um tal direito seja exercido. Nenhuma outra lei ou qualquer medida legislativa é necessária para exeqüibilidade dessa prestação. Está claramente identificada a pessoa obrigada à prestação. Está também precisamente identificado o grupo de cidadãos a quem se dirige a norma. E está, por fim, identificado, da mesma forma com singular clareza, o objeto dessa prestação social.

            Que se dê a tal norma a denominação “programática”. Ou qualquer outra. Mas que isso não sirva de desculpa para se deixar de cumprir a Constituição. Muito menos para se negar a uma criança de tenra idade o direito à creche.

            Isso tudo, aliás, é fruto de uma distorção crônica de valores. Já estamos habituados à omissão do Estado no atendimento às necessidades básicas do cidadão.O cachimbo que, com o tempo, entorta a boca. E na medida em que essa omissão alcança até mesmo os direitos e garantias fundamentais, já nos parece até natural que uma criança não tenha o mesmo direito de ser atendida numa creche. Parece pedir muito. Ainda que esse direito esteja assegurado expressamente na Constituição.

            E como se vê, chega-se por isso ao ponto de se discutir, na justiça, com longos e cansativos debates, com exposição de teses as mais variadas, com ou sem liminares, com recursos e mais recursos, e mais discussões, um direito que, em qualquer outro lugar onde os valores estejam no seu devido lugar, é simples, claro e indiscutível.

            Por outro lado, o fato de o legislador constitucional ter dado destaque à obrigatoriedade e gratuidade do ensino fundamental não pode possibilitar a interpretação extraída pelo Município de que, então, propiciar ensino infantil não é obrigatório para o Estado.

            Como salientou com muita propriedade o representante do MP, o entendimento razoável, na verdade, é no sentido de que o destaque foi assim efetuado porque o ensino fundamental é obrigatório também para os pais, enquanto que o ensino infantil, para eles, é facultativo.

            Entender-se o contrário implicaria afirmar que somente o ensino fundamental, da mesma forma, seria gratuito.

            Não pode ser essa  a interpretação da norma constitucional, sob pena de serem ignorados os princípios norteadores da Constituição, tal como já mencionados (art. 206).

            Como bem adverte TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, “...a pressuposição hermenêutica é a da unidade do sistema jurídico do ordenamento...A primeira e mais importante recomendação, nesse caso, é de que, em tese, qualquer preceito isolado dever ser interpretado em harmonia com os princípios gerais do sistema para que se preserve a coerência do todo” (Introdução ao estudo do direito, 2ª ed., Atlas, 1994, pp. 288-289).

            Também GOMES CANOTILHO, a tratar dos princípios de interpretação da constituição, se refere ao princípio da “unidade da constituição”, explicando que “como ‘ponto de orientação’, ‘guia de discussão’ é fator hermenêutico de decisão’, o princípio da unidade obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar”.

            E fala ainda, logo a seguir, coerente com as idéias já expostas, do princípio da “máxima efetividade”, que consiste na seguinte afirmação: “a uma norma constitucional deve ser atribuída o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas (Thomas), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)” (op. Cit, p.1149).

            Aliás, o que é determinado no art. 208 da Constituição da República é o mínimo que se pode entender como dever estatal em relação à educação, e o que se impõe, especialmente, nos incisos I, II, III e IV são deveres aos quais correspondem as obrigações correlatas de exigência imediata.

            Isso fica ainda mais claro quando as disposições constitucionais são repetidas pelo art. 54 do ECA, que assim dispõe, verbis: “É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:

            IV – atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade.

            Por outro lado, se assim não fosse, bastaria o art. 206, I, também da Constituição da República – que estatui o princípio da igualdade de condições para acesso e permanência na escola, no que é seguido pelo inciso I do art. 53 do ECA -, para obrigar o estado  a propiciar oferta de ensino infantil à criança que necessita do ensino público, de forma a lhe permitir que possa futuramente ingressar no ensino fundamental, em igualdade de condições com aqueles que têm acesso ao ensino infantil privado.

            Como ressaltou o representante do MP, a Lei p. 394/96 deixa claro que a educação infantil faz parte da educação básica, e tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até os seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social.

            Em reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo, de 13 de julho de 2000, p. C-10, registrou-se a importância do ensino infantil no desenvolvimento da criança. Constatou-se junto a profissionais da área que “as crianças que passaram por creches estão melhor preparadas para alfabetização enquanto outras precisam de trabalho de socialização e desenvolvimento motor... Na creche a partir de um ano, as crianças começam a usar brinquedos, desenhar, trabalhar com massa de modelar, montar brinquedos de pinos grandes e recortar com as mãos... As crianças de 2 e 3 anos fazem dobraduras simples e reconhecem o próprio nome...O trabalho de socialização é reforçado nessa faixa etária”.

            Aliás, para a nossa realidade atual, assegurar o atendimento e creches é medida que se impõe ao Estado também como proteção aos menores que ficam desamparados, enquanto seus pais se vão ao trabalho.

            Com efeito, ficando sem atendimento no sistema de creches, as crianças de zero a três anos e onze meses de idade são prejudicadas, pois muitas vezes suas mães, em geral pessoas carentes de recursos e que precisam trabalhar fora, são obrigadas a deixar suas crianças sozinhas em casa ou em companhia de irmãos mais velhos – também crianças – ou com estranhos. Outras vezes as mães optam por não trabalhar fora, evitando deixar à sorte seus filhos de tenra idade, com o que acabam comprometendo a condição de vida de toda a família, já que se deixa de comprar alimentos, remédios, roupas, etc.

            Portanto, não há dúvida de que se o Estado não está oferecendo as vagas necessárias para que sejam cumpridos os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, está ocorrendo clara violação dos direitos das crianças. E tal situação há de ser corrigida pelo Poder Judiciário.

            E não há que se falar, por conta disso, em interferência indevida de um Poder sobre o outro.

            É que o princípio consagrado no art. 5º, XXXV, da Constituição da República, ao garantir o acesso à justiça quando da lesão ou ameaça de lesão a qualquer direito impõe, sim, o controle dos atos administrativos, ante a imperiosa necessidade de prevalência do império da lei sobre ao arbítrio de quem quer que seja, inclusivo o Executivo.

 

            Na questão da educação, como já mencionado, o Estado não tem discricionariedade. Ao contrário, está vinculado à norma constitucional e às normas infraconstitucionais, que lhe impõem tais deveres como serviços públicos essenciais e relevantes.

 

            De outra parte, quando a norma constitucional coloca a educação como dever do estado, dispõe que a União, os Estados e os Municípios atuarão em regime de colaboração (art. 211), mas, ao mesmo tempo, esclarece que os municípios deverão responsabilizar-se prioritariamente pelo ensino fundamental e pré-escolar (§ 2º).

 

            Isto está claro ainda nos arts. 240 da Constituição do Estado de São Paulo e 201, § 6º, da Lei Orgânica do Município de São Paulo.

 

            A Lei Federal 9394/96, por sua vez, ao estabelecer prazos para adaptação dos entes políticos às inovações sobre educação infantil não autoriza o descumprimento dos dispositivos Constitucionais de eficácia plena.

            Como se vê, o pedido tem amplo embasamento legal.

            Além disso, as provas reunidas no processo são fartas a demonstrar que, lamentavelmente, o Município de São Paulo, com todos os recursos de que dispõe, na vem cumprindo os seus deveres no tocante à educação, em total desprezo aos comandos constitucionais e infraconstitucionais acima já comentados.

            No caso concreto, não obstante a negativa do réu, a própria municipalidade encarregou-se de comprovar as alegações do Ministério Público, por fim corroboradas pelos depoimentos do Conselheiro tutelar R.K.S. e da dirigente de creche S.D.P. (fl. 249 a 251).

            Inépcia da inicial não há, por suposto pedido genérico e indeterminado e por falta de documento indispensável à propositura da demanda. O pedido não pode ser considerado genérico ou indeterminado, pois o que se busca é a obtenção de serviço público específico, ou seja, pede-se que o Município propicie a todas as crianças que residam na jurisdição deste Juízo, e que tenham até três anos e onze meses de idade, atendimento em creches, na forma da ordem constitucional vigente e segundo as disposições legais que regem o assunto.

            Irrelevante o autor não ter mencionado com exatidão o número de vagas necessárias, quantificando a demanda pelo serviço público a ser suprida, pois o objeto imediato da ação e o mediato foram perfeitamente delimitados na petição inicial. De qualquer forma, o art. 286 do CPC permite a formulação de pedido genérico na hipótese dos autos, que se enquadra nos incisos II ou III do mesmo dispositivo. E nem há que se exigir do autor a prova preconstituída dessa quantidade, dessa demanda inatendida, fato que poderá ser objeto de execução de sentença. Não há, pois, falta de documento indispensável ao ajuizamento.

            Também não se trata de pedido juridicamente impossível por se referir ao ano seguinte àquele da propositura da ação. Na verdade, o objeto do pedido consiste em obrigar o Estado a cumprir o seu dever de oferecer ensino infantil em creches a todas as crianças desta área de jurisdição, sob o fundamento de que isso não tem sido observado. A referência ao ano 2000, como termo inicial para a exigência coercitiva dessa prestação não qualifica o pedido como futuro. Aliás, aqui é perfeitamente aplicável o disposto no art. 290 do CPC, já que se trata de obrigação de trato sucessivo. Não é, portanto, caso para extinção do processo sem apreciação do mérito.

            E em relação ao mérito, a exemplo de pronunciamentos judiciais de procedência já expedidos por diversos Juízos da Infância e da Juventude desta Capital, como a brilhante sentença da lavra do eminente Juiz Flávio Cunha da Silva, Titular da Vara da Infância e da Juventude do Foro da Penha, cuja cópia está nos autos (fl. 272/305), o pedido deve ser acolhido pelos exatos e não menos brilhantes argumentos de fato e de direito expostos na petição inicial e nos demais pronunciamentos do autor, o Ministério Público, os quais ficam também fazendo parte integrante desta sentença.

            Em caso análogo, acolhendo o pleito ministerial que visa a defesa do direito da infância em ter escolaridade, a Mma. Juíza Maria Olívia Pinto Esteves Alves, da Vara da Infância e da Juventude do Foro Regional de Santos Amaro, assim apreciou a questão (in Cadernos Jurídicos, Escola Paulista da Magistratura, vol. 2, nº 3, 2001, p.59):

            Como salienta o Prof. JOSÉ AFONSO DA SILVA, a nossa Constituição, em seu art. 205, contém: “...uma declaração fundamental que, combinada com o art. 6º, da mesma Carta, eleva a educação ao nível dos direitos fundamentais do homem. Aí se afirma que a ‘educação é direito de todos’, com o que esse direito é informado pelo princípio da universalidade. Realça-lhe o valor jurídico, por um lado,  a cláusula  - ‘a educação é dever do Estado e da família’ -, constante do mesmo artigo, que completa a situação jurídica subjetiva, ao explicitar o título do dever, da obrigação, contraposto àquele direito à educação e o Estado tem o dever de prestá-la, assim como a família. A norma, assim explicitada – ‘ A educação, direito de todos e dever do Estado e da família...’ (arts. 295 e 227) -  significa, em primeiro lugar, que o Estado tem que aparelhar-se para fornecer, a todos, os serviços educacionais, isto é, oferecer ensino, de acordo com os princípios estatuídos na Constituição (art.206); que ele tem que ampliar mais as possibilidades de que todos venham a exercer igualmente esse direito; e, em segundo lugar, que todas as normas a Constituição, sobre a educação e ensino, hão  que ser interpretadas em função daquela declaração e no sentido de sua plena e efetiva realização(Curso de direito constitucional positivo, grifo não original).

            E como também adverte o i. constitucionalista, o Prof. MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Como as liberdades públicas, os direitos sociais são direitos subjetivos. Entretanto, não são meros poderes de agir – como é típico das liberdades públicas de modo geral – mas sim poderes de ‘exigir’. São direitos de crédito” (Direitos Humanos fundamentais, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 49).

            Ora, o art. 208 da Constituição da República não deixa qualquer dúvida de que, entre o deveres impostos ao estado, para imediato cumprimento, está o “atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade”.

            Não se trata de norma programática, mas sim de norma constitucional de plena eficácia, uma vez que o legislador constitucional, ao impor como dever do Estado o atendimento a creches, não exigiu a regulamentação da matéria por legislação complementar.

            E ainda que assim não fosse, ou seja, mesmo admitindo-se que seja uma norma programática, isso não quer dizer, necessariamente, que seja norma vazia de eficácia concreta e imediata. RAUL MACHADO HORTA já observou que “A natureza de norma programática, sua densidade e obrigatoriedade imediata, tem suscitado largo e rico debate doutrinário”.

            E lembra GOMES CANOTILHO, que: “repele a identificação da norma programática a mera intenção declaratória, para convertê-las em ‘simples programas’, em ‘exortações morais’, em ‘apelos ao legislador’, sustentando que, sob tal aspecto comprometedor da eficácia vinculante e imediata, não há normas constitucionais programáticas” (Estudos de direito constitucional, Belo Horizonte: Del Rey, 1995,p. 223).

            De fato, o renomado constitucionalista português afirma, de forma taxativa: “Não há, pois, na constituição, ‘simples declarações (sejam oportunas ou inoportunas, felizes ou desafortunadas, precisas ou indeterminadas) a que não se deva dar valor normativo, e só o seu conteúdo concreto poderá determinar, em cada caso o alcance específico do dito valor’ (GARCIA DE ENTERRIA). Problema diferente é o de saber em que termos uma norma constitucional é susceptível de aplicação direta e em que medida é exeqüível por si mesmo” (Direito constitucional e teoria da constituição, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 1999, p. 1103).

            Com efeito, já a fl. 131 a Prefeitura, por sua Secretaria Municipal de Assistência Social – Supervisão Regional de Butantã/Pinheiros, mostra detalhadamente que a oferta de vagas na rede pública e conveniada de creches, nesta Região, é inferior à procura, ou seja, é insuficiente. Comprova, ainda, que a procura é grande, pois a quantidade de crianças na atendidas aproxima-se daquelas matriculadas.

            Se examinado com atenção o documento (fl. 131), vê-se que a população quer mais vagas, não tem onde matricular seus filhos pequenos, de zero a 3 anos e onze meses, razão pela qual, negada a vaga, vão procurar o Conselho Tutelar, que expede a requisição que quase nunca são atendidas  (cf. depoimento de fl. 249/250).

            A prova da necessidade foi feita, ao contrário do que disse o réu, razão da procedência da presente ação civil pública, na esteira do que já decidiram outros magistrados da Infância e da Juventude desta Capital,  mesmo porque o fato da falta de creches suficientes é fato notório e talvez uma das maiores reivindicações da população pobre desta cidade.

 

            Como relatado na r. sentença antes transcrita, nos autos que tramitaram perante a Vara da Infância e da Juventude de Santo Amaro, a própria Supervisora de Serviço Social da Administração Regional de Santo Amaro, Maria Sylvia de Oliveira Farina de Matos, informa que “as creches da região são insuficientes para atender a demanda da população, existindo extensas filas de espera, o que nos angustia, face à gravidade do problema e carência da população”.

            Mais adiante, a fls. 666/672, consta um gráfico da Supervisora Geral de Planejamento e Controle – FABES/SAS, demonstrando demanda maior que a quantidade de vagas, não só em Santo Amaro, mas em toda a Capital.

             Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE  a presente ação civil pública (Proc. 12/99) movida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO para condenar o MUNICÍPIO DE SÃO PAULO a prestar o serviço público de educação infantil, em creches, a todas as crianças de zero a três anos e onze meses, residentes na área de jurisdição deste juízo, cujos pais queiram matriculá-las, seja através de estabelecimentos próprios, ou através de rede conveniada, ou ainda de forma indireta, respeitados os princípios da universalidade e da gratuidade, até o ingresso na educação infantil pré-escolar, no prazo de sessenta dias, a contar da publicação desta sentença. E ainda, nos termos do art. 461, § 5º, do CPC, caso não se dê o cumprimento desta decisão, fica o Município condenado a pagar as mensalidades correspondentes às matrículas reclamadas enquanto persistir a omissão em prestar a obrigação que lhe é imposta.

            Oportunamente, remetam-se os autos ao E. Tribunal de Justiça para o reexame necessário.

            P.R.I.

            São Paulo, 22 de outubro de 2.001

            RODRIGO LOBATO JUNQUEIRA ENOUT

            Juiz de Direito da Infância e da Juventude