AGENTES DE PROTEÇÃO DA INFÂNCIA E JUVENTUDE: NECESSIDADE DE SUA COEXISTÊNCIA COM O CONSELHO TUTELAR
Murillo José Digiácomo
Promotor de Justiça Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Estado do Paraná.
Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente e, mais especificamente, com a criação dos conselhos tutelares nele previstos, passaram a surgir questionamentos acerca da necessidade e da própria legalidade da existência da figura do "comissário de menores", cuja atuação era expressamente disciplinada no art. 7º e parágrafo único da Lei nº 6.697/79, o revogado "Código de Menores".
Muito embora a Lei nº 8.069/90 de fato não contemple disposição semelhante, a presença do "comissário", agora chamado de "agente de proteção[1] da infância e juventude"[2], foi expressamente prevista pelo legislador estatutário, como fica patente da leitura do art. 194, caput do referido Diploma Legal, que estabelece a possibilidade de que o procedimento para imposição de penalidade administrativa por infração às normas de proteção à criança e ao adolescente tenha início por "...auto de infração elaborado por SERVIDOR EFETIVO ou VOLUNTÁRIO CREDENCIADO..." (verbis - grifamos), que vem a ser justamente o "agente de proteção" acima referido.
Diante da disposição estatutária acima transcrita, é deveras evidente que a figura do "agente de proteção" não foi banida pela nova legislação, que dentro de seu espírito democrático e descentralizador apenas preferiu deixar a regulamentação da matéria para os demais entes federados[3], que poderão prever sua existência e disciplinar melhor suas atribuições, de acordo com as particularidades locais.
No Estado do Paraná, as atribuições dos "agentes de proteção", bem como sua forma de investidura, posse e outras disposições estão devidamente disciplinadas no Código de Divisão e Organização Judiciária (Lei Estadual nº 7.297/80 e alterações posteriores)[4], mais especificamente em seus arts. 140, inciso IV, 152 a 155 e 169, incisos I a IX. O mesmo Diploma Legal, em seu Título V, Capítulo II e em alguns capítulos do Título VI, ainda prevê expressamente a existência de cargos efetivos de "agentes de proteção" na Comarca da Capital e em várias comarcas do interior.[5]
Grosso modo e tomando-se por base o rol de atribuições contido no citado art. 169 da Lei Estadual nº 7.297/80[6], pode-se dizer que o "agente de proteção" atua como uma espécie de longa manus do Juiz da Infância e Juventude, exercendo basicamente a função de fiscalizar o cumprimento das normas de proteção à criança e ao adolescente existentes (dentre elas as portarias judiciais expedidas na forma do disposto no art. 149 da Lei nº 8.069/90), e ainda realizar diligências ou outras atividades consoante determinação da autoridade judiciária, à qual o agente é subordinado.
A subsistência da figura do "agente de proteção" é praticamente um consenso junto à doutrina, sendo que a respeito do tema PAULO LÚCIO NOGUEIRA, com muita propriedade, afirma que "o Juizado deve contar com um corpo efetivo de comissários (...) para o exercício constante da fiscalização, pois, se esta não for feita com freqüência, não haverá cumprimento das disposições estatutárias, bem como das portarias baixadas, o que tornará o serviço desacreditado" (In O Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Saraiva. São Paulo, 1991, pág. 221).
Já WILSON DONIZETI LIBERATI ressalta que "o 'comissário' ou 'agente de proteção', servidor efetivo ou voluntário credenciado é, por deliberação exclusiva do juiz da infância e juventude, credenciado para desempenhar tarefas que lhe são atribuídas através da portaria judicial. Nela, serão estabelecidos os requisitos para o exercício do cargo, como a gratuidade, idoneidade, atribuição para exercer o serviço de fiscalização, além, é claro, da confiança do juiz”.
"Embora não esteja expresso no Estatuto, o Poder Judiciário poderá manter um quadro de voluntários que servirá de 'suporte' para as funções administrativas do Juizado e as concernentes à fiscalização" (In Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 4ª Edição. Malheiros Editores. São Paulo, 1995, pág. 173).
Claro está, portanto, que os "agentes de proteção da infância e juventude", ao contrário do que pensam alguns, não apenas ainda têm sua atuação contemplada pelo ordenamento jurídico pátrio, como esta é agora, mais do que nunca, fundamental para a plena eficácia do sistema de garantias idealizado pelo legislador estatutário, pois através dele o Juízo da Infância e Juventude se fará onipresente para impedir e/ou reprimir ameaças ou violações de direitos de crianças e adolescentes, no mais puro espírito da PROTEÇÃO INTEGRAL preconizada pelo art. 227, caput da Constituição Federal.
Também é importante registrar que a criação e implantação do Conselho Tutelar no município, apesar do disposto no art. 262 da Lei nº 8.069/90 (a contrariu sensu), não deve conduzir à "dispensa", pela autoridade judiciária, dos "agentes de proteção" já credenciados e em atividade, pois seus serviços continuarão sendo necessários para o adequado funcionamento do Juízo da Infância e Juventude.
Com efeito, embora pareça despicienda diante da argumentação anteriormente efetuada, a observação supra tem sua razão de ser na constatação de que, em várias comarcas, após a criação e implantação do Conselho Tutelar: a) houve a "extinção" do corpo de "agentes de proteção" nomeados pelo Juizado da Infância e Juventude e b) os Juízes da Infância e Juventude passaram a utilizar o Conselho Tutelar para o desempenho de funções típicas dos "agentes de proteção", e o que é pior, em muitos casos considerando aqueles como seus subordinados.
Ora, "agentes de proteção" e conselheiros tutelares exercem atribuições distintas (embora em alguns casos assemelhadas e com o objetivo comum de proteção a crianças e adolescentes), devendo ambas figuras coexistir e atuar de forma harmônica e absolutamente independente.
Como vimos, os "agentes de proteção" são uma espécie de longa manus da autoridade judiciária, agindo nos limites do disposto no art. 169 do Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Paraná (Lei Estadual nº 7.297/80) e do que mais constar na portaria judicial que os nomeie[7], valendo a observação feita por ADRIANO MARREY, citado por WILSON DONIZETI LIBERATI: o comissário de menores é representante do juiz de menores, especializado ou não, nas comarcas. É pessoa de confiança, que irá fiscalizar o cumprimento das portarias e ordens de serviço relacionadas com as medidas de prevenção e proteção aos menores. A relevância das funções não equipara o comissário à autoridade, sob o ponto de vista de que possa ser arbitrário nas suas ações, muito menos lhe concede poderes para efetuar prisões, fechar estabelecimentos, encerrar espetáculos públicos, mesmo que estes não estejam funcionando nos moldes da legislação vigente, ou não tenham alvará fornecido pela Vara de Menores (In op. cit., pág. 129).
Assim sendo, temos que o "agente de proteção" exerce suas atribuições de forma VINCULADA e DIRETAMENTE SUBORDINADA à autoridade judiciária que o nomeia ou, no caso do servidor efetivo, perante a qual oficia, tendo, no entanto, atribuições e poderes bastante limitados.
Já o Conselho Tutelar, por expressa definição legal[8], é órgão AUTÔNOMO, não sendo, portanto, de qualquer modo subordinado ao Juiz da Infância e Juventude ou a qualquer outra autoridade no âmbito do município, tendo dentro de sua esfera de atribuições amplos poderes, como melhor veremos a seguir. A investidura dos conselheiros tutelares se dá após processo de escolha conduzido pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, passando os 05 (cinco) mais votados a exercer mandato de 03 (três) anos, que somente perderão em hipóteses restritas, de acordo com a legislação municipal específica.
Os conselheiros tutelares exercem atribuições definidas em Lei Federal[9], gozando assim de parcela da soberania estatal e, portanto, não necessitando de ordem judicial para fazer valer suas deliberações, cujo descumprimento, além de caracterizar a infração administrativa prevista no art. 249 da Lei nº 8.069/90, importa na prática, em tese, do crime de desobediência tipificado no art. 330 do Código Penal.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em várias de suas passagens[10], equiparou o Conselho Tutelar à autoridade judiciária, que sob nenhum pretexto ou circunstância pode valer-se dos serviços daquele órgão como se seu subordinado fosse[11], sendo que caso queira a COLABORAÇÃO do órgão para a realização de determinada atividade, terá de SOLICITAR a intervenção respectiva, em requerimento que passará pelo crivo de sua plenária antes de ser ou não acatado.
Vale observar que tanto o Conselho Tutelar quanto o Juiz da Infância e Juventude são AUTORIDADES PÚBLICAS, com poderes e atribuições assemelhados (e em alguns casos idênticos). Como não há hierarquia entre qualquer delas, eventual tentativa da autoridade judiciária em colocar o Conselho Tutelar em posição de inferioridade será indevida, ilegítima e, dependendo da situação, poderá importar em abuso de poder passível de sanção administrativa (via Corregedoria da Justiça) e mesmo penal.
As solicitações da autoridade judiciária, embora devam ser objeto de consideração e, sempre que possível, de acatamento por parte do Conselho Tutelar (pois todos lutam pela mesma causa: o bem-estar de crianças e adolescentes, que para ser alcançado deverá contar com a participação e empenho de todos), devem ser devidamente analisadas em conjunto com os demais casos atendidos pelo órgão, a quem compete estabelecer os critérios de conveniência, oportunidade e prioridade para atendimento.
A prática tem demonstrado que, em muitos casos, o Juízo da Infância e Juventude utiliza o Conselho Tutelar para realização de "estudos sociais" e outras diligências tendentes a instruir feitos em andamento. Solicitações dessa natureza não se justificam, pois, em primeiro, lugar o Conselho Tutelar, via de regra, não é composto por pessoas tecnicamente habilitadas a realizar estudos dessa natureza, tendo assim pouca ou nenhuma valia o "parecer" apresentado, e em segundo, porque o cumprimento dessas atividades absolutamente ATÍPICAS e totalmente FORA DO ÂMBITO DE SUAS ATRIBUIÇÕES faz com que o Conselho Tutelar não possa desempenhar a contento seu relevante mister, causando assim prejuízos a toda população.
Importante não perder de vista que, longe de realizar diretamente estudos sociais e/ou outras diligências que demandem conhecimento técnico, o Conselho Tutelar deve contar com uma equipe interprofissional permanentemente à sua disposição[12], ou então poderá REQUISITAR ao município a intervenção de servidores habilitados a fazê-lo, ex vi do disposto no art. 136, inciso III, alínea "a" da Lei nº 8.069/90.
Claro está, portanto, que para os objetivos acima mencionados, não deve a autoridade judiciária socorrer-se do Conselho Tutelar (salvo para utilizar equipe multidisciplinar que este tenha à sua disposição), mas sim buscar a intervenção de pessoas habilitadas a elaborar pareceres técnicos idôneos, que realmente atendam aos fins a que se destinam, pois apenas a título de exemplo, de nada valerá um "estudo social" realizado por um leigo.
Nos demais casos, salta também aos olhos a inconveniência (para dizer o menos) da utilização do Conselho Tutelar pela autoridade judiciária, ainda que em regime de estrita colaboração, para realização de diligências rotineiras tão necessárias para instruir feitos que se encontram em tramitação junto à Vara da Infância e Juventude[13], pois se estas não demandam conhecimento técnico, poderão perfeitamente ser realizadas por outras pessoas (inclusive e especialmente pelos "agentes de proteção" nomeados), sem a necessidade de comprometer as demais atividades do órgão tutelar, que se agir como desejado pela legislação, de forma PREVENTIVA e ITINERANTE, por certo terá considerável demanda a atender no seu cotidiano.
A exposição supra deixa clara a necessidade da criação e/ou manutenção, em cada município, de um corpo de "agentes de proteção da infância e juventude", composto de um número razoável de voluntários da confiança do Juiz da Infância e Juventude, que ficarão à sua disposição para a realização das diligências que não demandam conhecimento técnico e outras relacionadas na citada Lei Estadual nº 7.297/80 (e alterações posteriores), devendo tais agentes procurar atuar sempre em regime de colaboração com o Conselho Tutelar e demais órgãos de defesa dos direitos de crianças e adolescentes existentes no município.
Em não havendo um serviço próprio diretamente subordinado ao Juizado, para os "estudos sociais" e outras diligências onde o conhecimento técnico se faz necessário, deverá a autoridade judiciária buscar a intervenção de servidores públicos que tenham habilitação específica nas áreas respectivas, ou, então, socorrer-se das equipes do Serviço Auxiliar da Infância (SAI), lotadas nas comarcas contíguas, tal qual previsto nos itens 8.5.3, 8.5.4 e 8.5.4.1 do Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Paraná (Provimento nº 07/96).
Apenas assim se estará garantindo a correta aplicação da lei, com a utilização de todas as estruturas idealizadas para o adequado funcionamento do sistema de garantias preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, com o que todos, em especial a população infanto-juvenil, serão beneficiados.
Devemos sempre lembrar que, com a criação e implantação do Conselho Tutelar, o município passa a contar com um órgão especializado na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, que em boa parte dos casos irá substituir por completo a atuação da autoridade judiciária, à qual caberá, em tomando conhecimento da ocorrência de alguma das situações previstas no art. 98 da Lei nº 8.069/90 que demandem a aplicação de medidas de proteção a crianças, adolescentes e pais ou responsável, limitar-se a encaminhar o caso para atendimento pelo referido Conselho[14], que por sua vez deverá tomar as providências necessárias para contornar o problema.
Ao arremate, resta apenas dizer que a atuação dos órgãos acima relacionados (notadamente Conselho Tutelar, Juiz da Infância e Juventude e "agentes de proteção"), pode ser complementada por outros órgãos e entidades existentes no município[15], sendo que para evitar lacunas, antagonismos e paralelismos, todos devem se reunir periodicamente a fim de avaliar a sistemática de atendimento adotada, aprimorando-a cada vez mais, sendo certo que o foro adequado para tais reuniões não é outro senão o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, ao qual poderão ser formuladas diretamente reivindicações visando a melhora na política de atendimento para a área infanto-juvenil, que como sabemos este órgão tem a missão constitucional de elaborar.
Reafirmando o que já dissemos em manifestações anteriores, devemos sempre lutar para uma melhor estruturação dos municípios, de modo que estes possam cumprir a contento a diretriz contida no art. 88, inciso I da Lei nº 8.069/90 com a PRIORIDADE ABSOLUTA exigida pelo art. 227, caput da Constituição Federal.
Notas:
[1]
Também denominado "comissário de vigilância".
[2]
Designação mais adequada por romper em definitivo com
o estigma causado pelo termo "menor", banido por completo da nova
legislação, bem como com a expressão "comissário", de conotação policialesca (e, portanto, inadequada), deixando claro que
sua atuação será sempre em favor da criança ou do adolescente.
[3]
Valendo lembrar que, nos termos do disposto no art.
24, inciso XV da Constituição Federal, a União, os Estados e o Distrito Federal
têm competência concorrente para legislar sobre normas de proteção à infância e
juventude.
[4]
Em especial as promovidas pela Lei Estadual nº
11.374/96, que alterou a designação do "agente de proteção" de
"comissário de menores" para "Comissário de Vigilância da Vara
da Infância e Juventude".
[5] Existe ainda referência aos "agentes de proteção" no
Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Paraná
(Provimento nº 07/96), que em seus itens 8.1.2 e 8.1.4 dispõe ser o
"Registro de Compromisso de Comissários" um livro de uso facultativo
pelos ofícios da Infância e Juventude.
[6]
Que, no entanto, devem ser interpretadas e exercidas à luz dos princípios sobre
os quais se assenta a Lei nº 8.069/90, em especial o da PROTEÇÃO INTEGRAL à
criança e ao adolescente.
[7]
Que, no entanto, deve seguir os parâmetros da citada norma estadual e Estatuto
da Criança e do Adolescente, o qual obviamente não pode afrontar.
[8]
Contida no art. 131 da Lei nº 8.069/90.
[9] Arts. 25, 136, 191 e 194 da Lei nº
8.069/90.
[10]
Vide art. 236, em que o embargo ou impedimento da atuação tanto do membro do
Conselho Tutelar quanto do Juiz da Infância e Juventude caracteriza a mesma
infração penal, o art. 249, em que o descumprimento de determinação de qualquer
das citadas autoridades caracteriza a mesma infração administrativa e, é claro,
o próprio art. 262, que na inexistência de Conselho Tutelar no município,
confere suas atribuições ao Juiz da Infância e Juventude.
[11] A atribuição contida no art. 136, inciso VI da Lei nº 8.069/90 não
importa em qualquer quebra da autonomia e independência do Conselho Tutelar,
sendo apenas resultante da incompetência deste órgão em atender o adolescente
infrator, e a possibilidade de revisão judicial das decisões do Conselho
Tutelar, estabelecida pelo art. 137 do mesmo Diploma Legal é apenas decorrência
natural do princípio da inevitabilidade da jurisdição, insculpido
no art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, fazendo parte do sistema de
"freios e contrapesos" que dá sustentáculo ao regime democrático.
[12] Equipe técnica esta, indispensável ao adequado funcionamento do
Conselho Tutelar e, portanto, cuja contratação e manutenção encontra respaldo
no art. 134, parágrafo único da Lei nº 8.069/90 - vide também matéria publicada
nos Cadernos do Ministério Público V. 2, N. 11, pág. 45.
[13] E em alguns casos junto à Vara da Família, dada regra de definição
de competência estabelecida pelo art. 148, parágrafo único da Lei nº 8.069/90,
notadamente nos casos de guarda e suspensão/destituição do pátrio poder em que
não há situação de risco envolvendo a criança ou o adolescente.
[14]
Salvo se, de plano, verificar a real possibilidade da aplicação das medidas
previstas nos arts. 101, inciso VIII e 129, incisos
VIII, IX e X, que são de competência exclusiva da autoridade judiciária, caso
em que deverá encaminhar as peças informativas ao Ministério Público para a
deflagração do procedimento respectivo.
[15] Do tipo "SOS criança", serviços que atendam o disposto no
art. 87, incisos I e II da Lei nº 8.069/90 etc.