Paulo Afonso Garrido de Paula [1]
Procurador
de Justiça, SP.
Sumário:
1. Perfil Constitucional do Ministério Público. 2. Princípios norteadores do
Estatuto da Criança e do Adolescente. 3. Crianças e adolescentes como sujeitos
de direitos. 4. A natureza indisponível dos direitos da criança e do
adolescente. 5. O Ministério Público e os direitos da criança e do adolescente
6. Obrigatoriedade da intervenção do Ministério Público 7. Extensão da atuação ministerial: a) a intervenção civil na defesa dos interesses individuais, coletivos ou difusos da criança ou adolescente; b) intervenção civil
na defesa da regularidade de entidades e programas de atendimento; c) a instauração de procedimentos administrativos,
sindicâncias, diligências investigatórias e determinação de instauração de
inquérito policial; d) o exercício da função de ombudsman na área da infância e
juventude; e) a fiscalização do processo de escolha dos membros do Conselho
Tutelar; f) a fiscalização do ingresso no cadastro de adoções; g) a
fiscalização de entidades e programas de atendimento; h) a intervenção na área
infracional h.1. da remissão; h.2. promoção e acompanhamento de procedimentos
relativos às infrações atribuídas a adolescentes; h.3. entrevista com
adolescentes privados de liberdade 8. A harmonia entre os Poderes e a
intervenção do Judiciário na validação dos direitos sociais 9. Exemplos de
ações sistêmicas do Ministério Público Paulista para a efetivação dos direitos
da infância e da juventude 10. Remate.
O
Ministério Público está definido na Constituição da República como instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático
e dos interesses sociais e individuais indisponíveis[2].
A
defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis, caracteriza a instituição como verdadeira guardiã
das liberdades públicas e do Estado Democrático de Direito, na medida em que o
exercício de suas atribuições, judiciais ou extrajudiciais, visa, em essência,
o respeito aos fundamentos do modelo social pretendido[3]
e a promoção dos objetivos fundamentais do País[4].
Importante
salientar que na expressão guardião das liberdades públicas
está inserida, também, a defesa dos interesses individuais
indisponíveis, com vistas à concretização de direitos fundamentais da pessoa
humana, cuja falta de atendimento impedem o próprio desenvolvimento coletivo.
O
Ministério Público assenta-se em três princípios fundamentais: unidade,
indivisibilidade e independência funcional[5].
Trata-se, em breve resumo, de instituição única, cujas funções são privativas e
exercidas por representantes que atuam em nome do Ministério Público, gozando
seus membros de plena liberdade no que tange à formação da convicção jurídica e
de ampla autonomia de atuação nos casos que lhe são afetos, sendo tal
independência assegurada pelas garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e
irredutibilidade de vencimentos[6].
O
Estatuto da Criança e do Adolescente está assentado em dois princípios
constitucionais básicos, o da prioridade absoluta e da condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento[7], que visam garantir a
criança ou adolescente a primazia, preferência ou precedência no atendimento de
seus direitos básicos, ante a inequívoca urgência de suas necessidades.
É
importante ter em mente que o destinatário da norma é alguém na condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento, que vivencia um
processo único, mágico e intricado, de rápidas e constantes modificações
físicas, sociais e culturais e que, em pouco tempo, terá atingido a
maturidade adulta, de acordo com as condições que a família, sociedade e Estado
tiverem ofertado.
Outro
princípio, não menos importante é o da participação popular na gestão da
questão relacionada à infância e à juventude[8], de
modo que a comunidade, agindo em conjunto com o poder público, possa participar
da definição de objetivos e iniciativas potencialmente eficazes como forma de
efetivar os direitos das crianças e adolescentes.
A
Constituição de 1988 erigiu crianças e adolescentes à condição de titulares
autônomos de interesses juridicamente tutelados e subordinantes em face da
família, sociedade e Estado, ao afirmar o dever destes últimos em assegurar aos
primeiros, com absoluta prioridade e em atenção à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento, direitos fundamentais, como vida, saúde, educação, dentre
outros.
Coube
ao Estatuto da Criança e do Adolescente disciplinar as principais relações
jurídicas que se desenvolvem entre esses sujeitos de direitos.
Todos
os direitos da criança e do adolescente, sem exceção, são indisponíveis,
compostos de uma parte individual e de outra pública, que os caracterizam como
insuscetíveis de qualquer forma de renúncia ou transação.
A
indisponibilidade decorre da condição especial de seus
titulares - crianças e adolescentes - e da proteção integral a eles
devida, abrangendo a totalidade de seus direitos, estabelecidos também em razão
do interesse social em garantir efetivo atendimento às necessidades básicas da
infância e da juventude.
Mesmo
os de natureza patrimonial são indisponíveis, valendo lembrar que o Código
Civil, no 386, subordina ao crivo judicial a alienação de bens pertencentes a
menores de 21 anos de idade não emancipados, somente possível
se demonstrada a necessidade ou evidente utilidade do negócio.
O
Ministério Público é o guardião dos interesses sociais e individuais
indisponíveis, incumbindo-lhe, assim, o zelo pelos interesses individuais
(homogêneos ou não) sempre que sua tutela for conveniente para a sociedade,
assim como nas questões que envolvam, mesmo reflexamente, saúde ou segurança da
população, acesso das crianças e adolescentes à educação e o normal
funcionamento dos sistemas econômico, social ou jurídico[9].
Como
defensor constitucional dos direitos da criança e do adolescente, na exata
medida da indisponibilidade desses interesses juridicamente tutelados, seu compromisso
é com a efetividade da norma, de sorte que esta se insira no cotidiano como uma
realidade palpável, passível de ser percebida, apreendida e materialmente
utilizada pelos beneficiários da tutela jurídica.
Para
atingir tal desiderato cuidou o legislador de garantir o acesso de toda criança
ou adolescente ao Ministério Público[10], factível
mediante a criação ou manutenção de serviço de atendimento ao público, de modo
que a população infanto-juvenil, diretamente ou por meio dos pais ou
responsável, ou até mesmo através de representante de entidades de defesa,
possa levar à instituição seus pleitos e reclamações.
Isto
importa em verdadeira função de ouvidor, devendo cuidar o órgão de
execução para a efetivação da precedência de atendimento [11], um dos aspectos
da prioridade absoluta a que se refere o artigo 227, caput, da Constituição Federal.
As
funções do Parquet serão exercidas
nos termos do artigo 200 do Estatuto da Criança e do Adolescente e de acordo
com a organização institucional de cada Ministério Público, sendo que, em
regra, as atribuições afetas à criança e ao
adolescente são conferidas a Promotores de Justiça de Primeira Instância ou de
Primeiro Grau, nominados de Promotores de Justiça da Infância e da Juventude.
O
Promotor de Justiça intervém obrigatoriamente nos processos afetos a crianças e
adolescentes, em decorrência da indisponibilidade que caracteriza o interesse
infanto-juvenil, seja como parte ou como custos
legis, tendo o dever de zelar pela efetivação dos direitos da criança e do
adolescente na exata medida em que a lei os protege.
Como
parte encontra-se extraordinariamente legitimado para substituir a criança ou
adolescente, titular do interesse individual juridicamente tutelado, no pólo
ativo da relação processual[12]. Como substituto
processual[13] defende, em nome da instituição
Ministério Público, qualquer direito da criança e do adolescente que, como
visto, é sempre indisponível.
Como
custos legis o Ministério Público deve
intervir em todos os procedimentos onde estejam em discussão direitos de
menores de 21 anos de idade não emancipados[14],
notadamente direitos da criança ou adolescente cuja aferição integre a
competência da Justiça da Infância e da Juventude[15].
A
obrigatoriedade da sua intervenção constitui-se em pressuposto processual objetivo positivo de validade do processo,
configurando a eventual falta em nulidade absoluta, expressamente cominada[16].
Observe-se que as manifestações do
Ministério Público devem sempre ser fundamentadas[17],
de modo que se possa aquilatar a vinculação de seu representante com os
interesses sociais e individuais indisponíveis que incumbe defender.
Considerando
a amplitude dos direitos da criança e do adolescente, a atuação ministerial
desenvolve-se de diversas formas, seja judicial ou administrativamente,
destacando-se:
a)
a intervenção civil na defesa
dos interesses individuais, coletivos ou difusos da criança
ou adolescente;
b) a intervenção
civil na defesa da regularidade de entidades e programas de atendimento;
c) a instauração
de procedimentos administrativos, sindicâncias, diligências investigatórias e
determinação de instauração de inquérito policial;
d) o exercício da
função de ombudsman na área da infância
e juventude;
e) a fiscalização
do processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar;
f)
a fiscalização do ingresso no cadastro de
adoções; e
g) a fiscalização
de entidades e programas de atendimento
h) a intervenção na área infracional.
a)
Intervenção civil na defesa dos
interesses individuais, coletivos ou difusos da criança ou
adolescente:
Ministério Público
intervém em todos os procedimentos de competência de Justiça da Infância e da
Juventude[18], independentemente da natureza
individual ou coletiva do interesse tutelado.
No âmbito individual,
está o Parquet legitimado para a
promoção e acompanhamento de ações de alimentos, dos procedimentos de suspensão
ou destituição do pátrio poder, dos procedimentos de colocação em família
substituta, devendo intervir, também, nos processos visando o afastamento do
agressor da moradia comum em caso de maus-tratos, opressão ou abuso sexual[19], nos de autorização de viagem[20], bem como em todo e
qualquer feito cuja medida a ser aplicada não corresponda a procedimento
previsto em lei[21].
No que diz respeito à defesa dos direitos difusos ou
coletivos da infância e da juventude, à partir do
advento da Lei da Ação Civil Pública[22] surge organicamente no cenário
jurídico nacional a possibilidade de defesa judicial de interesses coletivos ou
difusos, que adquire, com a Carta de 1.988, status constitucional, sendo a ação civil pública
erigida à categoria de um dos remédios para a defesa de quaisquer interesses
difusos e coletivos[23].
Além da própria Lei da
Ação Civil Pública, a disciplina básica dessas ações coletivas acabou
consolidada no nosso ordenamento através do Estatuto da Criança e do
Adolescente[24] e do Código de Defesa do
Consumidor[25]
O Estatuto da Criança e do Adolescente possibilita ao Promotor de Justiça a instauração do inquérito civil e promoção da ação civil pública para a defesa dos interesses singulares da pessoa humana, ante à indisponibilidade dos direitos individuais dos destinatários da norma.
Quando o Ministério
Público não for parte, atuará obrigatoriamente nos processos ou procedimentos
envolvendo direitos e interesses de que trata o Estatuto da Criança e do
Adolescente, devendo a autoridade judiciária, em qualquer caso, determinar a
intimação pessoal de seu representante[26].
É de ser salientado, uma
vez mais, que a falta de intervenção do Ministério Público acarreta a nulidade
do feito, que será declarada de ofício pelo juiz ou a requerimento de qualquer
interessado[27].
Chegando ao conhecimento
do Promotor de Justiça irregularidade em entidade ou programa de atendimento
destinado a crianças e adolescentes, conhecimento resultante da fiscalização de
ofício ou do apurado em procedimento administrativo, poderá o representante do
Ministério Público buscar a apuração judicial das falhas, com a conseqüente
imposição das sanções previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente[28].
A representação,
contendo o resumo dos fatos indicativos das irregularidades[29],
pode, também, incluir pedido liminar de afastamento provisório do dirigente da
entidade, indicando os motivos que justificam a medida extrema, valendo anotar
que tal cautela tanto concerne a entidades governamentais como não
governamentais, muito embora o afastamento definitivo somente seja possível em
se tratando das primeiras, reclamando, no caso das segundas, procedimento
específico visando a dissolução de sociedade civil[30], mesmo na hipótese do
cometimento de reiteradas infrações que coloquem em risco os direitos
assegurados em lei[31].
O Ministério Público
pode instaurar procedimentos administrativos inominados[32],
visando formar sua convicção a respeito de fatos ensejadores, em tese, de
providências judiciais ou extrajudiciais, sendo-lhe facultado buscar
formalmente, antes mesmo da instauração de um inquérito civil, elementos
embasadores de sua ação, de sorte que sua atuação posterior repouse em justa
causa[33].
Deve ser salientado que
tais procedimentos administrativos se prestam a embasar as funções de
"ombudsman" expressamente reservadas ao Ministério Público na área da
infância e da juventude[34], podendo seu
representante, para instrução desses procedimentos administrativos, expedir
notificações para colher depoimentos ou esclarecimentos, sob pena de condução
coercitiva, requisitar informações, exames, perícias e documentos de qualquer
autoridade, promover inspeções e diligências investigatórias e requisitar
informações e documentos a particulares e instituições privadas.
Como se tratam de
requisições - exigências fundamentadas em lei - o descumprimento implica em
crime de desobediência, sem prejuízo, no caso de notificação para coleta de
depoimentos ou esclarecimentos, da condução coercitiva.
As sindicâncias
previstas no ECA[35] são substitutivas do inquérito
policial, eis que, ao Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública[36],
reserva-se a faculdade de promover diretamente, desde que julgue oportuno e
conveniente, a apuração de crimes contra a criança ou adolescente.
Nessas sindicâncias lhe
é permitido a utilização de todos os meios legais para a obtenção da verdade
real, inclusive as requisições próprias de qualquer procedimento
administrativo, anteriormente tratado, além, é claro, da determinação de
instauração de inquérito policial.
A função de ombudsman vem definida no texto
constitucional, complementado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente,
através do enunciado que estabelece competir ao Ministério Público zelar pelo efetivo respeito aos direitos e
garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas
judiciais e extrajudiciais cabíveis[37].
Quis o legislador
distinguir as atividades judiciais das extrajudiciais, a fim de reforçar a
legitimidade do Ministério Público para atuar fora do processo, na qualidade de
ombudsman, intermediando a composição
de litígios de modo a evitar a evocação da tutela jurisdicional, podendo seu
representante, no exercício dessa função: a) reduzir a termo as declarações do
reclamante; instaurando o competente procedimento; b) entender-se diretamente
com a pessoa ou autoridade reclamada, em dia, local e horário
previamente notificados ou acertados; e c) efetuar recomendações visando
à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública afetos à criança e ao
adolescente, fixando prazo razoável para sua perfeita adequação[38].
Cabe ao Ministério
Público o importante papel de fiscalizar o processo de escolha dos membros do
Conselho Tutelar[39], “órgão permanente e autônomo,
não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos
direitos da criança e do adolescente[40] ".
Para o exercício desta
função o Promotor de Justiça deve estar atento aos dispositivos inseridos no
Estatuto da Criança e do Adolescente e na lei municipal que instituir o
Conselho Tutelar. A primeira lei estabelece os requisitos básicos e gerais, de
observância obrigatória em todos os municípios brasileiros; a segunda, de
caráter local, além de criar o Conselho Tutelar e estabelecer regras quanto ao
seu funcionamento e organização, deve detalhar o processo de escolha dos
conselheiros, notadamente quanto à sua forma.
O Ministério Público, portanto, deve zelar pelo respeito às condições estabelecidas na lei, de modo que o processo de escolha esteja concorde com as determinações do legislador federal e municipal. No caso de irregularidades, deve previamente encetar medidas administrativas que conduzam à adequação da escolha aos ditames legais, socorrendo-se do Judiciário quando esgotados os meios de recomposição da legalidade e lisura que devem marcar o processo de escolha dos conselheiros tutelares.
A fim de viabilizar o
controle das adoções e democratizar o acesso dos interessados, determinou o
legislador a obrigatoriedade da manutenção de um registro de crianças e
adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na
adoção[41]. A inscrição ou registro, quer dos
adotáveis, quer dos interessados em adoção, é condicionada à satisfação dos
requisitos legais e não prescinde de prévia manifestação do Ministério Público[42].
Quanto se tratar de
inscrição de criança no cadastro de adotáveis é necessário verificar,
basicamente, a ocorrência de causa de extinção ou destituição do pátrio poder
ou a concordância de seus detentores a que o filho seja colocado em família
substituta, hipótese na qual o Promotor de Justiça necessariamente deve
ouvi-los[43]. Já no caso de interessados à adoção
cumpre constatar se podem oferecer ambiente familiar adequado[44]
e se o pleito, genérico, funda-se em motivos legítimos[45].
O Ministério Público tem
a função de fiscalizar as entidades públicas e particulares de atendimento[46], ou seja, aquelas que executam programas de proteção ou
programas sócio-educativos, os primeiros destinados a crianças e adolescentes
privados ou ameaçados de privação de direitos fundamentais e os segundos
destinados a adolescentes autores de atos infracionais.
As principais obrigações
dessas entidades estão arroladas nos artigos 92 a 94 do ECA,
cumprindo ao Promotor de Justiça a verificação do atendimento desses
imperativos legais. Trata-se de atividade disjuntiva do Ministério Público,
encontrando-se também legitimados o Judiciário e o Conselho Tutelar[47], optando o legislador em estabelecer atribuição
concorrente, de sorte a garantir a efetividade da fiscalização.
Verificada a ocorrência
de irregularidades o Ministério Público poderá ingressar com representação,
visando sua apuração judicial e, via de conseqüência, a aplicação das medidas
elencadas no artigo 97 do ECA ou mesmo encetar
iniciativas administrativas, notadamente no exercício da função de ombudsman, tendentes a remoção das
falhas constatadas.
Na atividade
fiscalizatória o representante do
Ministério Público, no exercício de suas funções, terá livre acesso a todo
local onde se encontre criança ou adolescente.
É de ser salientado que o ECA introduziu no ordenamento jurídico pátrio a figura da
chamada ação sócio-educativa pública.
O ato infracional[48] praticado por adolescente tem por conseqüência a
pretensão sócio-educativa, possibilitando ao Estado o direito de fazer atuar as
normas previstas na legislação especial, ou seja, no Estatuto da Criança e do
Adolescente.
De modo mais amplo do
que adotado no sistema processual penal, antes do advento da Lei 9.099/99,
quanto ao princípio da obrigatoriedade de propositura da ação penal, o Estatuto
da Criança e do Adolescente, ao instituir a remissão como forma de exclusão do
processo, expressamente adotou o princípio da oportunidade, conferindo ao
titular da ação sócio-educativa a decisão de invocar ou não a tutela
jurisdicional.
A decisão nasce do confronto
dos interesses sociais e individuais tutelados unitariamente pelas normas
insertas no ECA (interessa à sociedade defender-se de
atos infracionais, ainda que praticados por adolescentes, mas também lhe
interessa proteger integralmente o adolescente, ainda que infrator).
Assim, em cada caso
concreto, pode o Ministério Público dispor da ação sócio-educativa pública
através da remissão, concedendo-a como perdão puro e simples, ou, numa espécie
de transação, incluir a aplicação de medida não privativa de liberdade,
excetuando-se, portanto, a semiliberdade e a internação.
Justifica-se a exclusão
da ação sócio-educativa pública, via remissão como perdão puro e simples,
quando o interesse de defesa social assume valor inferior àquele representado
pelo custo, viabilidade e eficácia do processo.
Por outro lado, a
concessão de remissão com inclusão de medida não privativa de liberdade, tem,
notadamente naqueles atos infracionais que ordinariamente não autorizam a
internação[49], o caráter de transação, antecipando a
execução de medida sócio-educativa, sem necessidade de instauração de
procedimento formal de apuração, sendo, portanto, de baixo custo e célere,
desde que o adolescente e seu representante legal concordem com a decisão
ministerial.
Assim, a concessão de
remissão como forma de exclusão do processo constitui-se em instrumento do
Ministério Público para a disposição da ação sócio-educativa pública, de sorte
a alcançar, pela via administrativa, um meio rápido de composição amigável da
lide entre a sociedade e o adolescente, estabelecida com a prática do ato
infracional.
O procedimento de
apuração de ato infracional atribuído a adolescente inicia-se com o oferecimento
de representação pelo Ministério Público, titular da ação sócio-educativa
pública [50]. A representação deverá ser oferecida por petição, que conterá o
breve resumo dos fatos e a classificação do ato infracional e, quando
necessário, o rol de testemunhas, podendo ser deduzida oralmente, em sessão
diária instalada pela autoridade judiciária[51].
Uma vez que aos
procedimentos regulados no Estatuto aplicam-se subsidiariamente as normas
gerais previstas na legislação processual pertinente[52],
é de se buscar no Código de Processo Penal o número máximo de testemunhas
permitido, ou seja, oito em se tratando de ato infracional cuja pena cominada
para adulto seja a reclusão, cinco em se tratando de crime a que não for, ainda
que alternativamente, cominada a pena de reclusão, e três, em se tratando de
contravenção penal [53].
Como a apuração do fato
é feita em juízo, inexistindo a figura do inquérito policial, sendo a
representação instruída com cópia de auto de apreensão, ou boletim de
ocorrência, ou relatório de investigações, estabelece a lei que seu
oferecimento independe de prova pré-constituída de autoria e materialidade,
prova esta a ser produzida no curso do processo.
Figurando o Ministério
Público como parte deverá intervir em todos os atos do procedimento, sendo que
sua falta implicará em nulidade absoluta, a ser declarada de ofício pelo juiz
ou mediante requerimento de qualquer interessado [54].
Poderá também promover o
arquivamento dos autos quando inexistente o fato, ou quando não constituir ele ato infracional ou não for o adolescente seu
autor [55]. A promoção de arquivamento deverá ser feita mediante termo contendo
o resumo dos fatos e a indicação das razões de convicção, ficando sujeita à
homologação judicial [56].
Mais uma vez é mister
frisar que sua qualidade de parte no processo não desnatura sua função
primordial de defensor dos interesses fundamentais do adolescente, ainda que
autor de ato infracional, devendo zelar pelos respeito às garantias do devido
processo legal, especialmente no que concerne ao direito de defesa. Suas
promoções deverão levar em conta o interesse social indisponível relativo à
segurança e os interesses indisponíveis do adolescente, notadamente a
liberdade, de modo que se persiga a solução que melhor atenda à composição do
conflito.
O Ministério Público
intervém obrigatoriamente também em todos incidentes de execução, devendo
manifestar-se previamente a respeito da substituição de toda e qualquer medida
[57], especialmente a medida de internação [58], semiliberdade [59] e liberdade
assistida [60].
Um dos direitos do
adolescente privado de liberdade, ou seja, submetido a
medida sócio-educativa denominada internação consiste em "entrevistar-se
pessoalmente com o representante do Ministério Público [61]". Isto implica
na obrigação do Promotor de Justiça de visitar periodicamente os
estabelecimentos de internato, mantendo entrevistas com os adolescentes
internados, de modo a aferir as condições em que se encontram. Constatada
irregularidade que importe em inobservância de direito consignado em lei,
especialmente aqueles relacionados no artigo 124, deve
encetar as iniciativas judiciais ou extrajudiciais que conduzam à remoção do
obstáculo, sem prejuízo, se for o caso, das providências penais.
As ações civis cominatórias por
obrigação de fazer não caracterizam qualquer arranhão ao princípio da harmonia
e independência entre os Poderes.
A Universalidade da Jurisdição, princípio
contemplado no texto da nossa Constituição Federal ao garantir acesso à justiça
quando de lesão ou ameaça a qualquer direito – individual, individual
homogêneo, coletivo ou difuso, público ou privado –
impõe o controle dos atos administrativos, mesmo aqueles praticados dentro da
chamada esfera de discricionariedade, ante a imperiosa necessidade de
prevalência do império da lei sobre o arbítrio de quem quer que seja, inclusive
o Executivo.
Mesmo porque, reitere-se, o
fundamento da discricionariedade é o Dever,
ou o Poder-Dever ou ainda a Competência-Dever da Administração de
agir conforme os ditames do ordenamento jurídico.
No limiar do Terceiro Milênio
nos parece, data maxima venia,
equivocado interpretar a regra da harmonia e independência entre os poderes
exclusivamente à luz das clássicas lições de Montesquieu, que, nos idos de 1748, discorre sobre
a divisão dos poderes antes de uma série de eventos históricos que iriam
transformar, sobretudo, o Estado. As formas de governo foram tratadas consoante
as realidades de uma república incipiente, permeada pelos conceitos de
democracia e aristocracia, e das monarquias e regimes despóticos em crise [62].
Montesquieu enxergou o Poder Judiciário
apenas como aquele que pune os crimes ou
julga as demandas dos particulares [63], chegando a afirmar que dos Três Poderes, de que falamos, o de julgar
é de certo modo nulo. Não restam senão dois [[64] .
Assim, considerando a sociedade
contemporânea, é mister interpretar o princípio da harmonia e independência
entre os poderes à luz das profundas transformações que o Estado, e suas formas
de organização, sofreram ao longo dos anos. O Poder Judiciário, felizmente, já
não é mais aquele retratado por Montesquieu,
bem como já não cabe no Poder Executivo qualquer idéia de despotismo. Os
Poderes do Estado são absolutamente complementares, de modo a atingir os
objetivos previstos no pacto social.
No nosso caso, os poderes são organizados
à luz de uma forma de governo – República – constituída em um Estado
Democrático de Direito [65], tendo fundamentos sólidos, entre os quais a
soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, e objetivos a serem alcançados, como a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária e a promoção do bem de todos [66].
Assim, o Poder Judiciário, através das suas atividades peculiares, insere-se como um dos pilares da República, construído sobre os mesmos fundamentos e igualmente destinado à consecução dos objetivos próprios do Estado, sendo da sua própria essência.
Desta forma, a harmonia entre
os poderes deve ser considerada como Cortesia
no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que se
verifica, primeiramente, a normas a que mutuamente todos têm direito. De outro
lado cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os
órgãos do poder nem sua independência são absolutos. Há interferências
que visam ao estabelecimento de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio
necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o
arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos
governados [67].
J. J. Gomes Canotilho, na clássica obra Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, trata do princípio da separação e
interdependência dos órgãos da soberania
também sob o prisma de uma diretriz fundamental, realçando seu aspecto
moderno de balanço ou controle das funções, a fim de impedir um “superpoder”, com a
conseqüente possibilidade de abusos e desvios, tendo subjacente a idéia de
constituição mista e a exigência de freios e contrapesos [68]. Também ensina que o núcleo essencial do
princípio reside na conclusão de que órgãos especialmente qualificados para o
exercício de certas funções não podem praticar atos que materialmente se
aproximam ou são mesmo característicos de outras funções e da competência de
outros órgãos, sob pena de esvaziamento das funções materiais atribuídas a
outro [69].
Com base nesses pressupostos
afirma que o princípio da separação e interdependência dos órgãos da soberania
tem, assim, uma função de garantia da constituição, pois os esquemas de
responsabilidade e controle entre os vários órgãos transformam-se em relevantes
fatores de observância da constituição [70], defendendo, via princípio da
proteção judiciária, o acesso à justiça para tutela de todos direitos
fundamentais, inclusive os sociais e os subjetivos públicos.
Em resumo, quando o Poder
Jurisdicional valida um direito qualquer, ainda que o descumprimento tente ser
exculpado pela discricionariedade administrativa, está exclusivamente cumprindo
seu papel como Poder Soberano do Estado, afirmando o primado do Direito e
garantindo a eficácia da Constituição.
Não está substituindo a
Administração nas funções de sua competência; está, mesmo na clássica concepção
de jurisdição, substituindo apenas as partes em conflito no exercício regular
do seu poder constitucional de fazer atuar o direito objetivo.
Como exemplo de ações
sistêmicas, pode-se apontar as iniciativas encetadas
pelo Ministério Público de São Paulo, na defesa intransigente dos direitos da
criança e do adolescente, nas mais diversas áreas de proteção, destacando-se,
dentre tais iniciativas:
9.1. A
criação de um Grupo Especial de Trabalho para a implementação da regionalização
do atendimento ao adolescente infrator no Estado de São Paulo, composto por
Promotores de Justiça de todo Estado, com vistas a equacionar os problemas enfrentados pelos
adolescentes submetidos às medidas sócio-educativas, envolvidas as
diversas instâncias institucionais [71], desdobrando-se as atividades em várias
reuniões regionais, instauração de 22 inquéritos civis e propositura de 07
ações civis públicas, visando compelir o Estado à implantação de unidades
regionais de atendimento ao adolescente autor de ato infracional.
9.2. A
criação do Grupo Especial de Trabalho para assegurar a efetivação dos direitos
referentes à dignidade e ao respeito de crianças e adolescentes,
especificamente no tocante a preservação de sua imagem e a exposição nas redes
de Televisão, culminando com a elaboração de diversos textos pelos Promotores
de Justiça integrantes do grupo, cuja revisão encontra-se em fase final para
posterior publicação.
9.3.
Implementação do acesso e permanência de crianças e adolescentes no ensino
fundamental, através de ações civis públicas e mandados de
segurança individuais, visando compelir o estado a garantir a oferta de
vagas na rede pública de ensino.
9.4. A
criação de uma home-page do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de
Justiça da Infância e da Juventude, onde são apresentadas diversas matérias de
interesse da área específica de atuação, subsidiando a atuação dos Promotores
de Justiça, além de conter informações sobre a rede de atendimento da criança e
do adolescente, com acesso amplo.
9.5. Elaboração
do boletim informativo, remetido aos Promotores de Justiça do Estado, aos demais
Ministérios Públicos e aos diversos setores da sociedade civil, comprometidos
com o atendimento dos direitos infanto-juvenis, contendo notícias acerca das
iniciativas tendentes à proteção devida aos destinatários do
ECA.
9.6. A
criação do ícone “Medidas Sócio-educativas de Qualidade”, visando dar
publicidade às ações civis públicas e demais iniciativas dos Promotores de
Justiça da Infância e da Juventude no âmbito do Estado de São Paulo, tendentes
à efetivação dos direitos da criança e do adolescente.
Tais exemplos, a par de tantos outros realizados pelos demais Ministérios
Públicos, seja no combate à evasão escolar, no combate à exploração da
mão-de-obra infanto-juvenil, na implementação de políticas educacionais
mínimas, além de servirem de precedentes importantes para firmar-se no Brasil a
idéia da proteção integral exercida por meio das ações coletivas, caracterizam
verdadeiro incentivo para que os operadores do direito mantenham-se na defesa
intransigente dos direitos da criança e do adolescente.
O Ministério Público, dentro do sistema de garantias jurídicas da infância e da juventude e integrante da rede de proteção especial, vem se firmando como instrumento primordial na efetivação dos direitos da criança e do adolescente, na exata medida em que defende imparcialmente seus interesses, ou seja, na expressão desejada pelo legislador.
Isto, em um Estado Democrático de Direito, onde a lei, legitimamente elaborada, define condições essenciais para a atualização das potencialidades da pessoa humana, representa uma alavanca importante na remoção das desigualdades. Os interesses sociais e individuais indisponíveis representam a soma dos elementos materiais e culturais que o ser humano pode dispor no caminho de seu existir, assegurados pelo Estado através de políticas sociais básicas, como salário, alimentação, habitação, saúde, educação, desenvolvidas sob a égide da democracia e da liberdade.
O Ministério Público, seja
atuando administrativamente, seja promovendo as ações civis necessárias à defesa
judicial dos interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à infância e
juventude, pode auxiliar que a maioria miserável transponha a marginalidade
para a cidadania, exercitando efetivamente seus direitos, quer porque sejam
respeitados por todos, quer porque encontrem no Poder
Judiciário a efetivação negada no cotidiano.
A força do Ministério Público,
emprestada à criança e ao adolescente, equilibra suas relações com o mundo
adulto, fazendo-os sujeitos de direitos.
NOTAS ESPECIAIS
[1] Paulo Afonso Garrido de Paula é Procurador de Justiça e
Professor Regente da Cadeira de Direito da Criança e do Adolescente da PUC/SP.
É um dos autores do anteprojeto que deu origem ao Estatuto da Criança e do
Adolescente.
[2]
Artigo 127, caput.
[3]
Soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e
da livre iniciativa e pluralismo político - Constituição, art. 1º
[4]
Construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantia do
desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e da marginalidade e redução
das desigualdades sociais e regionais, promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de
discriminação - Constituição, art. 3º
[5]
Artigo 127, §1° da C.F.
[6]
Artigo 128, § 5° da C.F.
[7]
Artigo 227, caput e § 3°, IV, da C.F.
[8]
Artigo 227, § 3°, 7° c.c. artigo 204, II da C. F.
[9]
Súmula nº 7 do Conselho Superior do Ministério Público.
[10]
Artigo 141 do ECA
[11]
Artigo 4º, parágrafo único, alínea b, do ECA
[12]
Artigo 201, V, do ECA
[13]
Artigo 6°, do C.P.C.
[14]
Artigo 82, I, do C.P.C.
[15]
Artigos 201, inciso III, última figura, e 202, do ECA.
[16]
Artigos 84 e 246 do Código de Processo Civil e 204 do ECA.
[17]
Artigo 205, do ECA.
[18]
Artigo 148 e 149, do ECA.
[19]
Artigo 130, do ECA.
[20]
Artigos 83 a 85, do ECA.
[21]
Artigo 153, do ECA.
[22]
Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985
[23]
Artigo 129, III.
[24]
Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1.990
[25]
8.078, de 11 de setembro de 1.990
[26]
Artigos 202 e 203, do ECA.
[27]
Artigo 204, do ECA.
[28]
Artigo 97, do ECA.
[29]
Artigo 191, do ECA.
[30]
Decreto-Lei n° 41, de 18.11.66.
[31]
Artigo 97.
[32]
Artigo 201, IV, do ECA.
[33]
Tais procedimentos podem ser autuados como pedido de providências, investigação
prévia ou outros destinados à coleta de elementos preparatórios justificadores
de suas subseqüentes ações
[34]
Nos termos da referência contida na alínea "a", do § 5º, do artigo
201 do ECA.
[35]
Artigo 201, VII, do ECA.
[36]
Artigo 129, I, da C.F.
[37]
Artigo 129, II da C.F. e 201, VIII, do ECA.
[38]
Artigo 201, § 5º, do ECA.
[39]
Artigo 139, do ECA.
[40]
Artigo 131, do ECA.
[41]
Artigo 50, caput, do ECA.
[42]
Artigo 50, § 1°, do ECA.
[43]
Artigo 161, do ECA.
[44]
Artigo 29, do ECA.
[45]
Artigo 43, do ECA.
[46]
Artigo 90, do ECA.
[47]
Artigo 95, do ECA.
[48]
Artigo 103, do ECA
[49]
Artigo 122, do ECA
[50]
Artigo 182, do ECA
[51]
Artigo 182, §1°, do ECA.
[52]
Artigo 152, do ECA.
[53]
Artigos 398, 539 e 533, do C.P.P.
[54]
Artigo 204, do ECA.
[55]
Artigo 180, I, do ECA.
[56]
Artigo 181, do ECA.
[57]
Artigos 113 e 99, do ECA.
[58]
Artigo 121, § 6°, do ECA.
[59]
Artigo 102, § 2°, do ECA.
[60]Artigo 118, §2°, do ECA.
[61]
Artigo 124, I, do ECA.
[62]
Cf. O Espírito das Leis, Montesquieu, Introdução, Tradução e Notas
de Pedro Viera Mota, Editora Saraiva, 6ª ed., 1999.
[63] Ob. cit., p. 25
[64] Ob. cit., p. 27,
[65] Artigo 1°, da CF.
[66]
Artigo 3°, I e V, da C.F.
[67]
José Afonso da Silva, Direito Constitucional Positivo, Editora Revista dos
Tribunais, 1ª pd., p. 101.
[68]
Ob. cit., Editora Almedina,
Coimbra, 3ª ed., 1999, ps. 513/514.
[69] Ob. cit., p. 517.
[70] Ob. cit., p. 825.
[71] Procuradoria-Geral de Justiça, Conselho Superior do
Ministério Público, Promotorias de Justiça e Centro de Apoio Operacional