DO
INQUÉRITO CIVIL COMO INSTRUMENTO PARA O EFETIVO CUMPRIMENTO DO DISPOSTO NOS
ARTIGOS 80 E 81 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
André
Luiz Nogueira da Cunha
Promotor de Justiça de Monte Aprazível, SP.
O Estatuto da Criança e do Adolescente traz restrições ao lazer e ao consumo da criança e do adolescente, decorrentes da idade biológica e do desenvolvimento mental.
O que significa dizer que o legislador garantiu à criança e ao adolescente os direitos ao lazer e ao consumo limitados, indicando expressamente que muitos eventos deverão ser regulamentados, proibindo o consumo de bebidas alcoólicas, dentre outros, impedindo, até mesmo, que os estabelecimentos que exploram comercialmente os jogos de bilhar e sinuca autorizem a entrada dos menores de dezoito anos.
É uma espécie de tradição que o filho adolescente, principalmente do sexo masculino, seja iniciado na bebida alcoólica, no cigarro e no bilhar, pelo próprio pai, ou por um parente mais velho e "experiente".
Em razão da evolução dos costumes, as meninas também têm participado, em menor número, pelo que a experiência demonstra, de tais iniciações, mas são introduzidas por amigas, colegas ou namorados.
Os Promotores de Justiça da Infância e da Juventude têm, portanto, um desafio: como fazer cumprir os artigos 80 e 81, do Estatuto da Criança e do Adolescente, se a própria família incentiva ou não se importa com o vício do álcool, do cigarro e do jogo ? Como fazer cumprir o dispositivo legal, se o comerciante acha natural vender tais produtos e se o proprietário do pequeno bar ("botequim") acha a coisa mais "normal do mundo" ter uma velha mesa de bilhar na porta do estabelecimento, com pleno acesso da criança e do adolescente? Como fazer cumprir as vedações estatutárias, se as Polícias Civil e Militar, e em alguns casos até mesmo alguns Conselhos Tutelares, aceitam como corriqueiro que crianças e adolescentes comprem esses produtos ou joguem bilhar, ainda mais porque se recordam que na infância faziam exatamente o mesmo ? Em suma, como mudar a nossa própria maneira de ver as coisas, pois muitos de nós, hoje Promotores da Infância e da Juventude, já podemos ter tido esse comportamento? A resposta veio em ações praticadas pelo ilustre Promotor de Justiça de Mirassol, Doutor José Heitor dos Santos: a utilização do inquérito civil ou, em algumas situações, do procedimento preparatório de inquérito civil, com sua conclusão em ação civil pública ou compromisso de ajustamento de conduta, objetivando a efetiva aplicação das vedações constantes nos artigos 80 e 81 do ECA.
O trabalho do Doutor José Heitor atualmente encontra-se em fase bastante adiantada, muito mais do que o nosso, pois culminou até mesmo com a modificação da legislação municipal, para constar, além do sancionamento existente no ordenamento jurídico federal (Lei nº 8.069/1990) e estadual (Lei nº 10.501/2000), o sancionamento pelo Executivo Municipal dos estabelecimentos surpreendidos vendendo bebidas alcoólicas aos menores de dezoito anos, com aplicação de multa e, nos casos de reincidência, perda do alvará.
O trabalho que vem sendo desenvolvido em Monte Aprazível, com o auxílio dos Conselhos Tutelares dos Municípios da Comarca (Monte Aprazível, Nipoã, Poloni), tem começado a mostrar seus resultados, não obstante não se tenha ainda uma demonstração estatística dos mesmos.
O foco do trabalho, por ora, é orientar o comerciante sobre a legislação e tentar obter um compromisso de cumprimento da norma, cuidando da bebida alcoólica (art. 81, inciso II, do ECA), do cigarro (o qual foi incluído na regra do art. 81, inciso III, do ECA) e dos jogos de bilhar e sinuca (art. 80, do ECA).
A experiência tem demonstrando que o fato de chamar alguém para "conversar" com o Promotor de Justiça, sobretudo nas pequenas e médias cidades do interior, ainda tem resultados positivos, mormente quando são instados a assumir compromissos formais, como é o caso do termo de compromisso de ajustamento de conduta, o conhecido "TAC".
Ademais, a criança e o adolescente receberam as vedações do álcool e do tabaco em cumprimento ao art. 7º, do mesmo Estatuto, norma garantidora da proteção à saúde.
Tanto a criança quanto o adolescente, como consumidores de lazer que são, têm o direito à correta informação sobre os produtos consumidos, incluindo-se aí a correta informação sobre os produtos que podem, ou não, consumir (art. 71, do Estatuto da Criança e do Adolescente, e art. 6º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor). De igual sorte, seus pais e responsáveis também são destinatários de tais informações, já que muitos desconhecem ou fingem desconhecer a lei. Acreditamos, outrossim, que toda a comunidade é destinatária de tais informações, seja para assegurar uma efetiva obrigatoriedade da lei (art. 3º, da Lei de Introdução do Código Civil), seja para assegurar a participação comunitária e social na proteção da saúde da criança e do adolescente (artigos 4º e 70, do Estatuto da Criança e do Adolescente).
Solicitamos então, às Prefeituras Municipais, a relação dos estabelecimentos comerciais que trabalham com tais produtos, o que também, dependendo da localidade, poderá ser solicitado ao próprio Conselho Tutelar ou às Polícias Civil e Militar.
De posse da relação, preferimos, em um primeiro momento, instaurar um procedimento preparatório de inquérito civil para cada estabelecimento, deixando-se de instaurar o inquérito civil porque, a princípio, não se tem certeza sobre a violação do ECA por parte do comerciante, o que, caso fique comprovado, redundará na instauração de um inquérito civil, pois configurada a lesão ao interesse metaindividual.
Instaurado formalmente o procedimento, determinamos a notificação do proprietário, que, comparecendo na Promotoria, é orientado sobre as vedações do Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo convidado a celebrar compromisso de ajustamento de conduta, com a obrigação de, dependendo do produto com o qual trabalha, não vender bebidas alcoólicas nem cigarros aos menores de dezoito anos, bem como não permitir que joguem bilhar ou sinuca, colocando as mesas em locais afastados do público infantil e juvenil. O proprietário compromete-se ainda a afixar o cartaz previsto na Lei Estadual nº 10.501/2000 e um outro cartaz, no mesmo tamanho das propagandas costumeiras de cervejas e cigarros, contendo, conforme as circunstâncias, os seguintes dizeres: "Por força do Estatuto da Criança e do Adolescente, estou proibido de vender bebidas alcoólicas, cigarros e fichas de bilhar ou sinuca, aos menores de dezoito anos de idade". O compromisso celebrado prevê multa diária, geralmente no valor de um salário mínimo por dia de não afixação do cartaz, e multa de um salário mínimo por produto indevidamente entregue à criança e ao adolescente. De início, prevíamos que a multa seria paga ao Fundo Estadual dos Interesses Difusos, conforme a legislação prevê. No entanto, ultimamente estamos prevendo nos compromissos de ajustamento de conduta que o dinheiro das multas vá para o Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, o que tem sido muito bem recebido pelos Conselhos Municipais.
Posteriormente, em razão do volume de serviço obtido com tal tarefa, bem como pela demora de se estabelecer contato com cada um dos estabelecimentos separadamente, foi operacionalizado um procedimento preparatório de inquérito civil com todos os estabelecimentos de cada Município que ainda não haviam sido investigados, realizando uma única audiência para o compromisso de ajustamento de conduta. Aos ausentes, o procedimento é desmembrado, continuando a tramitar para nova tentativa de acordo ou ajuizamento de ação civil pública de natureza cognitiva.
Com o compromisso realizado, arquiva-se o procedimento investigatório, enviando-o ao Egrégio Conselho Superior do Ministério Público, que tem homologado tais expedientes.
No despacho de arquivamento e determinação de envio ao Conselho Superior, determinamos também o envio de ofícios, com cópia do compromisso, ao Conselho Tutelar e às Polícias Civil e Militar, para ciência, fiscalização e eventuais providências.
Caso o comerciante não compareça à audiência, antes do ajuizamento da ação civil pública de conhecimento, visando a cominação de obrigações de fazer exatamente iguais àquelas assumidas no compromisso de ajustamento de conduta, determinamos vistoria do Conselho Tutelar no local, para aferir os produtos comercializados e a disposição da mesa de bilhar. Com a resposta, geralmente notificamos, ainda mais uma vez, o comerciante, dando-lhe nova chance de assunção do compromisso extrajudicial.
Caso não seja possível, pela segunda vez, a celebração do pacto extrajudicial, optaríamos pelo ajuizamento da ação civil pública cognitiva, o que ainda não foi feito, porque todos têm aceitado o compromisso.
Por vezes, o Ministério Público participa da fiscalização efetuada pelo Conselho Tutelar acerca do cumprimento dos TAC's.
Quando há descumprimento, noticiado pelos órgãos de fiscalização, ou descoberto em procedimentos corriqueiros em trâmite pela Egrégia Vara da Infância e da Juventude, como, por exemplo, na oitiva informal de adolescentes infratores, que acabam por "denunciar" algum comerciante que lhes vendera os produtos proibidos no compromisso de ajustamento de conduta, o caminho é o ajuizamento da ação de execução por quantia certa contra devedor solvente, cobrando-se a multa diária.
Se a hipótese for de não afixação do cartaz ou não retirada da mesa de bilhar, também é possível o ajuizamento de ação de execução de obrigação de fazer.
Quando há notícia da venda de bebidas ou cigarros, temos ainda requisitado inquérito policial para apurar o fato, ou, se os elementos de convicção já existirem, denunciar o infrator, tipificando a conduta no art. 243, do Estatuto da Criança e do Adolescente, por considerarmos o tipo mais específico em relação ao outro que trata do mesmo assunto, não obstante a doutrina mais abalizada e a jurisprudência na sua maioria entenderem correta a tipificação, no caso de bebida alcoólica, na figura contravencional (art. 63, I, da Lei das Contravenções Penais). Quanto ao não cumprimento das obrigações referentes ao jogo de bilhar ou sinuca, além da medida cível executória, temos também representado ao Egrégio Juízo da Infância e da Juventude, pela infração administrativa do art. 258, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Em todas as medidas judiciais, o sucesso, em 1ª instância, foi atingido, mas ainda não obtivemos resposta do 2º grau, em razão de recursos interpostos.
O trabalho, temos consciência, é longo e difícil, até porque as drogas lícitas e o jogo de bilhar são bastante aceitáveis na sociedade, constituindo muitas vezes até mesmo um modo de inserção do jovem, do adolescente e do pré-adolescente (criança ainda) na sociedade e na comunidade.
É um trabalho, como costumamos dizer, de "formiguinha", já que, pelo exemplo do colega José Heitor, verificamos que demorará ao menos uns dez anos para atingir os seus objetivos. Mas, por enquanto, achamos que é a melhor maneira de dar efetividade aos artigos 80 e 81 do Estatuto, sob pena de constituírem, infelizmente, o melhor exemplo, do que a teoria do direito não aceita, de revogação da lei pelo costume ("esta lei não pegou...").
O próximo passo, no nosso pensar, será tentar em Monte Aprazível, daqui em diante, efetivar os incisos I, IV, V e VI, do artigo 81, do ECA, nos mesmos moldes aqui tratados.