DA IMPOSSIBILIDADE DOS PROCEDIMENTOS JUDICIAIS VERIFICATÓRIOS DE SITUAÇÃO DE RISCO ONDE SE TEM INSTALADO O CONSELHO TUTELAR

 

 

Márcio Thadeu Silva Marques

1º Secretário da ABMP.

Membro do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude (MP/MA).

Associado do Núcleo Educação para a Justiça.

Associação de Magistrados e Promotores de Justiça.

 

 

Apresentação

 

Trata-se de breve bosquejo sobre os chamados procedimentos verificatórios, ainda admitidos pela praxe forense de alguns Estados, analisando-se sua possibilidade jurídica e sua incompatibilidade com o sistema constitucional de proteção integral previsto com as diretrizes da descentralização político-administrativa e de participação popular (CF, art. 227, § 7º c/c art. 204).

 

O que são os procedimentos verificatórios?

 

Alguns Estados têm admitido a existência de autos iniciados por notícia de repartição policial ou entidade de atendimento, em que a Autoridade Judiciária da Infância e da Juventude determina o processamento como procedimentos verificatórios, com o fito de "verificar" situação de risco (ECA, art. 98), decidindo pela aplicação de medidas protetivas, como as previstas pelos art. 101 e 129 da Lei 8.069/90.

 

Antecedentes do procedimento verificatório e sua visão atual

 

Assim, a peça inaugural, lastreada em despacho judicial, inicia ex officio, o procedimento investigatório. Tal medida ressuscita a providência extinta junto com o antigo Código de Menores, que permitia ao Juiz Menorista a aplicação de medidas tutelares, ora substituídas pelas medidas protetivas, a serem adotadas somente nos casos de situação de risco, expressos no art. 98 do ECA, cabendo-lhes o ditar, apenas pelo Conselho Tutelar, órgão não-jurisdicional, autônomo, escolhido pela sociedade para garantia dos interesses infanto-juvenis (art. 131 c/c 136, I, da Lei 8.069/90), pelo que "fica claro que o Conselho Tutelar assumirá as funções anteriormente exercidas pela Justiça da Infância e da Juventude e pela Polícia Judiciária, relacionadas com os aspectos do atendimento social das crianças e dos adolescentes"[1].

 

Com efeito, somente em duas situações pode o Juiz aplicar as medidas protetivas: 1) na ocorrência do art. 262 do ECA, ante à não implantação do Conselho Tutelar[2]; e, 2) como medida sócio-educativa imprópria, na forma do art. 112, inciso VII, da Lei Estatutária, o que significa dizer que somente poderá assim agir o Juízo, em face do cometimento de ato infracional, matéria estranha às providências da maioria dos documentos de instauração dos ditos procedimentos verificatórios.

 

Por outro lado, quando o Estatuto quis ressalvar o princípio dispositivo da jurisdição infanto-juvenil, assim expressamente o fez, na forma do art. 191 do Diploma de Regência, descabendo qualquer outra forma de instauração procedimental ex officio. O alcance do art. 153 do ECA, invocado como base legal do caderno procedimental em referência, é de que, de moto próprio, pode a Autoridade Judiciária determinar providências necessárias à prestação da jurisdição, como quando determina a produção de provas, ou o próprio interrogatório ad clarificandum[3], pois, não se olvide, o esgrimir da possibilidade de o magistrado agir sem provocação apenas ocorre para atingimento de medida jurisdicional estrita, já tendo se explicitado que as medidas protetivas assim o são, apenas em caráter subsidiário, não em sua generalidade.

 

Repita-se: a atividade de ofício do magistrado estará vinculada à ação investigativa restrita dos fatos, objeto da prestação jurisdicional estrita, abrangendo a jurisdição contenciosa e voluntária[4], como anota Tânia da Silva Pereira[5]:

 

"Essas faculdades atribuídas ao Juiz da Infância e da Juventude estão presentes no Código de Processo Civil, seja no art. 130, quando autoriza o juiz a determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as providências inúteis ou meramente protelatórias, seja no art. 1.107, quando permite ao magistrado investigar livremente os fatos e ordenar de ofício a realização de quaisquer provas nos procedimentos especiais de jurisdição voluntária".

 

A mesma autora comunga do entendimento de que o órgão competente para a aplicação das medidas numeradas nos itens I a VI do art. 101 do ECA é o Conselho Tutelar, excetuada a colocação familiar, exclusiva da autoridade judiciária (arts. 148, III e 148, § 2º, alínea "a", da Lei 8.069/90)[6].

 

É essa, ainda, a conclusão de atualizada jurisprudência:

 

"Quaisquer providências em favor de crianças e de adolescentes devem ser providas através de procedimentos próprios e não por meio de infindável 'acompanhamento', sem forma ou figura de Juízo. Desse modo, ou os menores necessitam de correção ou proteção efetiva, através de alguma das providências preconizadas na lei de regência, ou a situação é regular, sendo inaplicável o Estatuto. Na primeira hipótese, há o MP de ingressar com a medida judicial tendente à solução da questão, até porque, mero acompanhamento da situação de criança e adolescente independe as providências judiciais, considerando as prerrogativas que o art. 201 do Estatuto lhe atribuiu nesse sentido, acórdão desta E. Câmara Especial, no AI 19.236-0" (TJSP - C. Esp. - Ap. 23.547-0 Rel. Yussef Cahali - j. 25.5.95).

 

De fato, como já foi anotado no texto "Melhor interesse da criança: do subjetivismo ao garantismo"[7], hodiernamente, por força mesmo de uma nova normativa internacional[8], se desjurisdicionalizou o problema, estabelecendo-se um regime de co-responsabilidade entre a Sociedade, a Família e o Estado, em caráter de prioridade absoluta, com o fim de garantir a proteção integral de crianças e adolescentes, pugnando pela concreção de seus direitos e colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227 da CR), surgindo um novo sistema, assim admitido pelo Desembargador Antonio Fernado do Amaral e Silva:

 

 “No novo modelo, a cada ator o seu papel. Nada de eufemismos ou mitos. O juiz surge como o magistrado que previne e compõe litígios. O Ministério Público é o fiscal da lei, titular da ação de pretensão sócio-educativa. O advogado aparece como causídico, defensor do jovem. As questões de pobreza e assistência social deixam os juizados e passam à responsabilidade das administrações locais, com os Conselhos Tutelares” (O Judiciário e os novos paradigmas conceituais e normativos da infância e da juventude, in: Ensaios jurídicos: o direito em revista, obra coletiva coordenada por Ricardo Bustamante e Paulo César Sodré. Rio de Janeiro, IBAJ, 1.996.p. 446).

 

Mesmo as atividades administrativas dessa nova Justiça devem obedecer a regras claras, precisas e previamente conhecidas, com parâmetros definidos em lei, assegurado sempre o devido processo legal, fazendo valer o princípio de isonomia pela norma estatal positivada (art. 5º da CR), assegurando-se-lhes a aplicação do princípio da legalidade, id est, o de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, da Carta Federal), pelo que, na hipótese, é inadmissível o prosseguir na aplicação de medidas de proteção por órgão não legitimado ordinariamente para tanto, mormente por ser esse mesmo órgão desviado de sua função primeira - o Juizado - aquele encarregado da sublime missão de prestar a tutela jurisdicional de reexame destas medidas, na forma do art. 137 do ECA.

 

Discorrendo sobre esse novo papel do Judiciário, Edson Sêda[9], prêmio Criança e Paz do UNICEF (1.995), assim comenta a imperiosidade de se retomar, para o órgão julgador, sua mais nobre missão, qual seja, a de dirimir conflitos, notadamente, aqueles que envolvem interesse muito além do plano subjetivo, individual, os relativos aos reclames coletivos e difusos da população infanto-juvenil:

 

"O Poder Judiciário se habituou, desde a década de vinte (quando foi criada, na América Latina, a Doutrina da Situação Irregular), a exercer uma forma discricionária de autoridade, porque a velha doutrina da situação irregular abolira princípios gerais de Direito, na aplicação do que se chamava de Direito do Menor.

 

Isso quer dizer o seguinte: princípios que todo juiz deve acatar no julgamento de conflitos de outras áreas do Direito (conflitos civis, comerciais, penais, administrativos, constitucionais) passaram a não valer na área de ação dos antigos Juízes de Menores.

 

O novo Direito restaurou os princípios gerais. Três são os aspectos alterativos a serem considerados, para que as novas funções sejam plenamente cumpridas. O primeiro, é que se encontra restaurado o princípio segundo o qual o juiz não vai à procura de causa para julgar, conforme sua vontade e seu arbítrio pessoal. Não. O juiz somente pode julgar as causas que são a ele levadas pela família, pela sociedade ou pelo Estado, na forma prevista pela Legislação em vigor.

 

Em outras palavras, o juiz só pode exercer suas funções jurisdicionais, se for devidamente provocado em sua jurisdição. Provoca a jurisdição quem a lei diz ter competência para isso. Esse juiz não tem mais competência legal para provocar a própria jurisdição.

 

O segundo aspecto alterativo é que, na apreciação das causas em que estejam em jogo a ameaça ou violação de direitos de ou por crianças e adolescentes, não cabe ao juiz, de forma discricionária, dizer qual é o melhor interesse da criança ou do adolescente. A lei vinculou a vontade do juiz a critérios rígidos presentes na lei para evitar arbitrariedades.

 

O terceiro aspecto alterativo é o que vincula as decisões do juiz ao direito de defesa dos acusados, segundo procedimentos objetivamente descritos na lei para a apuração dos fato que envolvem a imputação de um ato infracional a qualquer adolescente.

 

A segunda providência, para alterar a antiga forma de atuação judicial, é o juiz deixar de editar portarias como se fosse um legislador.

 

A terceira providência é o Judiciário deixar de executar programas. O Estatuto é claro, os programas são de proteção para as vítimas e sócio-educativos para os vitimadores. E ambos são executados por entidades governamentais (do âmbito do Executivo) ou não-governamentais (do âmbito da sociedade civil). O juiz apenas decide e suas decisões são cumpridas pelas entidades que planejam, executam e mantêm os programas (artigo 90 do Estatuto)".

 

Conclusões

 

Ante todo o exposto, é inegável que há insanáveis vícios em relação à instauração desse procedimento verificatório: 1) A impossibilidade jurídica do pedido, id est, da aplicação de medida protetiva pela Vara da Infância, em estando instalado o Conselho Tutelar local, a quem compete, de ordinário, essa atribuição; 2) A ilegitimidade ativa, in casu, a não previsão legal de instauração ex officio de procedimento, à exceção daquela descrita pelo art. 191 do ECA, de hipótese diversa desta espécie de autos; e, 3) A base legal invocada, o art. 153 do ECA, não se presta ao fim proposto na portaria inaugural.

 

 

Notas:

 

[1] LIBERATI, Wilson Donizeti; CYRINO, Públio Caio Bessa. Conselhos e fundos no Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo, Malheiros, 1.997. p. 144.

 

[2] "A competência originária para as atribuições do ECA é do Conselho Tutelar; a subsidiária é da Justiça da Infância e da Juventude, por determinação do art. 262 do Estatuto, que dispõe: ‘Enquanto não instalados os Conselhos Tutelares, as atribuições a eles conferidas serão exercidas pela autoridade judiciária’" (LIBERATI & CYRINO. Op. cit., p. 178)

 

[3] A figura é citada na obra "Dever de Esclarecimento e Complementação no Processo Civil", de Elício de Cresci Sobrinho (Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editora, 1988), consistindo na possibilidade judicial de se interrogar os litigantes, na hipótese dos artigos 340, I, e 342 do CPC, em que o magistrado lhes solicita que exponham "oralmente, seus pontos de vista sobre a causa, seus argumentos elucidativos", sem interferência direta de seus advogados, não se tratando da fase conciliatória, mas da condução ativa de debates esclarecedores, quando o "juiz modula a oralidade pelo parâmetro da eqüidade, rompendo com o formalismo estrito, impondo os deveres processuais com justo equilíbrio", pois é lícito ao julgador atuar "in suplementum, especialmente se lhe cabe conhecer de ofício certas matérias", como as nulidades absolutas, v.g. (op.cit., pp. 116-117).

 

[4] Se se entende a jurisdição voluntária como a constituição jurídica de atos particulares por órgão jurisdicional, para a segurança dos interessados, o exemplo para a aplicação do art. 153 estaria no procedimento para a autorização de viagem por longo período (art. 83, § 2º, do ECA).

 

[5] Direito da criança e do adolescente: uma proposta interdisciplinar. Rio de Janeiro, Renovar, 1996. p. 423.

 

[6] id.ibid., p. 555.

 

[7] MARQUES, Márcio Thadeu. O melhor interesse da criança: do subjetivismo ao garantismo. In: PEREIRA, Tânia da Silva (Org.). O melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro, Renovar, 2000. pp. 469-470.

 

[8] Como, e.g., a CONVENÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.

 

[9] A proteção integral: um relato sobre o cumprimento do novo direito da criança e do adolescente na América Latina. São Paulo, Adês, 1997. pp. 126-127.