CIDADANIA E SEGURANÇA PÚBLICA
Olympio de Sá Sotto Maior Neto
Procurador de Justiça do Ministério Público Estado do Paraná.
“A
verdadeira prevenção da criminalidade é a justa e efetiva distribuição da educação,
saúde, trabalho e salários dignos, é a participação de todos nos benefícios
produzidos pela sociedade, é a Justiça Social” (Roberto Lyra, “príncipe dos
Promotores de Justiça”, 1952).
Inicialmente, quero registrar a minha satisfação em poder contribuir
nas reflexões direcionadas a estabelecer uma cultura da paz, vinculando
segurança pública à democracia e reconhecendo-a como um direito inerente ao
cidadão. Fiz menção ao pensamento de
Roberto Lyra porque, frente à preocupação com o alto índice de criminalidade,
com o aumento da violência quando da prática dos delitos, comparece inafastável
observação crítica acerca da realidade social brasileira. Tenho para mim que a
marca mais significativa de nossa realidade social é exatamente a do contraste,
a da contradição que se estabeleceu entre a existência de um país extremamente rico
e de uma nação absolutamente pobre. Um país que quer ser a 8ª economia do
mundo, mas cuja população se encontra em 64º lugar em qualidade de vida. Um
país que é o 5º maior produtor de alimentos do mundo, mas cuja população é
desnutrida, passa fome, morre de fome. Nós não podemos, portanto, tratar de
segurança pública e cidadania com os olhos voltados às circunstâncias dos
países desenvolvidos, como a Suécia, Inglaterra, França, etc., onde, no que é
significativo, o Estado cumpre seu dever institucional e indelegável de atuar
concretamente na promoção social dos cidadãos. É necessário - e isso eu aprendi
nos meus quase vinte e cinco anos de
Ministério Público - fazer com que a realidade social e a justiça estejam
presentes em todos os momentos da vida do direito. É indispensável
contextualizar a reflexão acerca de segurança pública no Brasil com a realidade
de estarmos indicados, em estatística do
Banco Mundial, como o país campeão mundial das desigualdades sociais, onde 10% dos mais ricos detém 56% do nosso produto interno bruto,
onde 5% dos mais ricos detém 37% do nosso produto interno bruto. Isso
significa, trocando em miúdos, que as riquezas produzidas por todos os brasileiros
não são distribuídas entre todos brasileiros e acabam concentradas nas mãos de
grupos minoritários que se beneficiam da
estrutura social injusta estabelecida no país. Isso significa que se de um lado
da moeda nós temos a concentração absurda de riqueza nas mãos de poucas
pessoas, esta mesma moeda estará cunhada, na sua outra face, com a marca da marginalidade,
com a grande maioria da população à margem dos benefícios produzidos pela
sociedade (e a existência de mais de trinta milhões de brasileiros vivendo em
situação de indigência, abaixo da linha da pobreza). Eu não vou aqui
estabelecer um vínculo indissolúvel entre criminalidade e pobreza. Aliás,
posiciono-me frontalmente contrário ao etiquetamento social advindo dessa
equivocada ligação, como se todo pobre fosse criminoso. A reflexão que gostaria
de fazer, com o propósito de auxiliar na definição de um tipo de segurança
pública para o país, é aquela desenvolvida pela criminologia crítica, na
esteira de que determinadas pessoas experimentam condições reais de vida tão
adversas, insuperáveis pelos métodos tidos como legais ou legítimos, que acabam
impulsionadas no sentido da criminalidade. Então, a primeira ação a ser
desenvolvida pelos que estão efetivamente preocupados com segurança pública
deverá consistir na construção de uma ponte de ouro, que permita a travessia da
marginalidade para a cidadania. Necessário se assegurar a todos a possibilidade
do exercício dos direitos elementares da cidadania e, desse modo, impedir que
outra ponte acabe se estabelecendo entre a marginalidade e a delinqüência.
Noberto Bobio, jurista e cientista político italiano, em sua extraordinária
obra intitulada “A Era dos Direitos”, apresenta tese fundamental de que a
efetivação dos direitos humanos, a democracia e a paz social são três momentos
necessários do mesmo movimento histórico: sem a inscrição e a efetivação dos
direitos humanos não há democracia, e sem democracia não existem as condições
mínimas para a solução pacífica dos conflitos sociais. Feita essa anotação, que
entendi conveniente ao propósito de se analisar a realidade brasileira,
acrescentaria o pensamento da existência de uma bandeira maior nessa luta para
a efetivação dos direitos humanos. Refiro-me àquela em prol da materialização
dos direitos relacionados à infância e à juventude. Eu não tenho dúvida de que
a instalação de uma sociedade livre, justa e solidária (que, aliás, é indicada
no texto da nossa Constituição Federal como um dos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil), deve começar pela garantia às crianças e
adolescentes desses denominados direitos elementares da pessoa humana. Prego a
utilização do Estatuto da Criança e do Adolescente como instrumento capaz de
evitar a perda de gerações e gerações de crianças e adolescentes para a marginalidade,
para a subcidadania e, infelizmente,
muitas vezes, para criminalidade.
Um segundo aspecto, que me parece importante abordar, diz
respeito à análise crítica do próprio Direito Penal, assim como das estruturas
governamentais que integram a Justiça Criminal. É fundamental ter em mente que
o Direito Penal Brasileiro, tal qual os outros ramos do nosso
Direito, constitui-se direito desigual. Embora se tenha a noção de que o
Direito corresponde sempre ao interesse geral, à arte do bom e do eqüitativo,
de dar a cada um o que é seu, do justo -
forçoso reconhecer que o nosso Direito Penal é essencialmente desigual
e, por isso mesmo, injusto. Tanto no momento da criminalização primária (da
formação da lei penal) quanto no da criminalização secundária (da aplicação da
lei penal), o Direito Penal Brasileiro é desigual. Quando da elaboração das
leis penais nos deparamos com um tratamento extremamente rigoroso em relação à
denominada criminalidade convencional, em especial no que diz respeito aos
crimes contra o patrimônio e, por outro lado, constata-se a omissão legislativa
(ou sem o idêntico rigor) no pertinente a comportamentos vinculados à
criminalidade não convencional ou do colarinho branco, exatamente onde se faz necessário para proteger os melhores e mais
caros interesses da sociedade. Há muito
tempo está-se aguardando a criminalização dos fatos ilícitos relativos à área
econômica-financeira, ao meio ambiente, às relações de consumo e, em especial,
no que tange ao patrimônio público (incluídos aqui os crimes contra a ordem
tributária) ou o estabelecimento de rigor nas penas para tais delitos, que
possam efetivamente surgir como resposta social a um tipo de criminalidade que
é muito mais danosa do que a convencional (e, também, produtora desta). Em outro
aspecto, dada permanente manipulação ideológica, a sociedade brasileira se
revolta, é capaz de perseguir nas ruas e linchar um batedor de carteiras e, ao
mesmo tempo, convive tranqüilamente com o funcionário público peculatário, o
político corrupto, o industrial sonegador dos impostos que seriam destinados à
efetivação das políticas sociais públicas, como saúde, educação, habitação,
etc. Refletindo também isso, as malhas da Justiça Penal (aqui incluindo
Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário) alcançam – com eficiência e
rigor – os criminosos integrantes das classes populares, mas mantém intangíveis
os facínoras detentores do poder político e econômico. Não raras vezes, pode-se
identificar num único crime do colarinho branco (na esfera econômica-financeira, por exemplo) danosidade social maior que o conjunto das
ações dos “ladrões de galinha” que compõem uma comunidade carcerária (aliás, de
um sistema penitenciário falido, que obriga os presos à solidão extrema ou à
absoluta promiscuidade, vítimas permanentes da violência
física, psíquica, sexual e de
outras formas de degradação do ser humano; de um sistema penitenciário do qual
só se tem uma certeza: que as pessoas de lá retornam para o meio social seres
humanos de pior categoria do que quando entraram). E os criminosos do colarinho
branco estão aí nas colunas sociais, enaltecidos, tratados diferenciadamente,
com privilégios, até junto aos poderes públicos. A visão crítica, portanto,
conduz à conclusão de não ser verdadeiro o raciocínio de que todos os cidadãos
estão protegidos das ofensas causadas aos bens essenciais, assim como todos os
violadores das normas penalmente sancionadas podem converter-se em sujeitos do
processo de criminalização, com idênticas conseqüências punitivas.
Quero abrir parênteses para voltar a falar da infância e da
juventude, porque acredito que a instalação de uma sociedade progressivamente
melhor e mais justa (e, assim, mais segura e com menos delitos) dependerá da
atenção que se dê às crianças e aos adolescentes, desde a concepção
(protegendo-se também a gestante e a parturiente), a inserção nas creches, no
sistema educacional (que é o espaço adequado para o seu desenvolvimento), no
ensino profissionalizante, no mercado de trabalho e assim por diante. A
observação agora – também advinda do tratamento desigual a partir do extrato
social a que o indivíduo pertence – diz respeito à matéria pertinente ao tema
do adolescente autor de ato infracional, onde vozes absolutamente equivocadas
fazem o discurso da necessidade da diminuição da imputabilidade penal (para
alguns aos 16, outros para 14 anos), como se a resposta penal, como se a
punição do Direito Penal pudesse vir a superar questões de índole eminentemente
social, relativa à efetivação dos direitos elementares da pessoa humana. Nessa
perspectiva do tratamento desigual, eu posso dar o testemunho, pois fui durante
quase três anos Promotor de Justiça da então Vara de Menores Infratores da
Comarca de Curitiba e presenciava manifestações no sentido de que “nós vamos ouvir hoje um adolescente de alta
periculosidade, vamos pedir reforço à Polícia Militar, porque vamos ouvir um
adolescente multireincidente, verdadeiramente irrecuperável”. Em seguida,
surgia um menino de 14 ou 15 anos, cuja trajetória experimentada o manteve afastado
de qualquer possibilidade de vida digna (sem direito à convivência familiar e
comunitária, à saúde, à educação, etc.), mas com grandes probabilidades de
acabar numa unidade da internação (que, à época, nada mais eram do que
depósitos de crianças e adolescentes indesejados nas suas comunidades). No
outro dia, a mesma pessoa dizia: “Dr.
Olympio, nós vamos ouvir hoje um adolescente filho de uma família muito boa,
que, coitado, nessa fase crítica da adolescência está se comportando de maneira
desajustada; furtou numa loja próxima a sua casa; precisamos compreendê-lo e orientá-lo...”.
Isso acontecia de uma maneira clara e evidente: os nossos filhos passam pela
crise da adolescência (os estudos no campo da psicologia indicam a existência
da chamada “síndrome da adolescência normal”, correspondente a momento crítico
que determina, inclusive, o
insurgimento contra as regras
estabelecidas pela sociedade e é por isso que o ECA se
refere freqüentemente à necessidade de “respeito à condição peculiar de pessoa
em desenvolvimento”). O que se quer então, em relação aos nossos filhos, é o
acompanhamento, a orientação, o auxílio para transposição dessa fase do mundo
da criança para o do adulto. Isso para os nossos filhos, porque para os filhos
dos outros não, esses são de “natureza perversa, de má índole, de alta
periculosidade, irrecuperáveis”. E, ainda mais, pretende-se agora, já a partir
dos 14 ou 16 anos, encaminhá-los para os espaços perversos do sistema
penitenciário, ao invés de propiciar-lhes idênticas possibilidades de ascensão
social.
Retornando à seara da criminalização secundária, lembro que
os autores até pouco tempo atrás faziam referência à chamada cifra negra da
criminalidade (que era constituída pelos inúmeros casos de comportamento ilegal
que não chegavam ao conhecimento dos aparelhos estatais encarregados do combate
à criminalidade, ficando assim invisíveis, impunes e sem comparecer às
estatísticas oficiais), sendo que atualmente – e no que é muito pior – dão conta da existência
da denominada cifra dourada da criminalidade (que corresponde a delitos
identificados pela estrutura de repressão criminal e que, mesmo assim, não são
levadas à justiça penal em razão especialmente da corrupção policial). Eu tenho
dito – e espero que isso não esteja ocorrendo aqui no Ceará – que no Paraná,
nós, membros do Poder Judiciário e do Ministério Público (não obstante a pompa
das togas e das becas, o formalismo exagerado das audiências, um extraordinário
sentimento de intangibilidade), participamos de um terrível faz-de-conta, um
teatro que se traveste de Justiça Criminal, pois, na verdade, o Direito Penal
só funciona nos casos em que a Polícia Judiciária deseja que funcione. Exceto
uma ou outra investigação feita diretamente pelo Ministério Público, a Justiça
Criminal só funciona a partir da impulsão dada pela Polícia Judiciária e, de
regra, atingindo as classes populares. Quero dizer que, infelizmente, nos
espaços da investigação policial também se trata desigualmente a pessoa dependendo da sua condição econômica. Eu dou um
exemplo que deverá valer por todos: o Supremo Tribunal Federal tem decisão no
sentido de que, quem já é civilmente identificado, ou seja, possui carteira de
identidade, não precisa ser identificado no curso do inquérito policial,
concluindo que colher em tal circunstância as impressões datiloscópicas do
indiciado constitui constrangimento ilegal. Ao mesmo tempo em que a Corte
Suprema cuida de tal tema, neste exato momento, milhares de brasileiros estão
nos subterrâneos das Delegacias de Polícia sendo torturados para confessar
crimes que, muitas vezes, não cometeram. É hipocrisia da Justiça Penal fazer de
conta que não sabe disso e de que a polícia judiciária desenvolve “métodos
científicos de investigação” que corresponde à roda da tortura, tão em voga na
Idade Média. Daí a importância – quando se trata do funcionamento da Segurança
Pública – de se ultimar os mecanismos necessários à regulamentação do controle
externo da atividade policial pelo Ministério Público.
Enquanto nos calabouços estavam os filhos da classe média, na
época da ditadura militar, vários segmentos sociais – e, especialmente, a Ordem
dos Advogados do Brasil – reclamava o cumprimento de regras elementares à
condição humana para os presos. Quando os filhos da classe média saíram das prisões,
lá permanecendo somente os filhos das classes empobrecidas e despossuídas,
salvo raras exceções (como, diga-se, a OAB do Paraná), ninguém mais intervém
para dar fim ao terror instalado no sistema penitenciário e nas Cadeias
Públicas. Uma coisa é o Direito Penal da academia (onde se pode levar meses ou
anos discutindo a teoria do crime, para se saber se o dolo está no tipo ou na
culpabilidade, numa discussão estéril, inadequada para um país que apresenta
realidade de violação permanente dos direitos humanos) outra é colocar em
prática as regras de garantia - especialmente do devido processo legal - que
interessam a todos os brasileiros.
Do quadro exposto, possível
pugnar-se desde já por uma mutação dos mecanismos de seleção e imunização que
funcionam dentro do sistema penal, dirigindo-os para restringir as lesões a
valores fundamentais da comunidade e despenalizando condutas que digam respeito
a interesses restritos erigidos indevidamente em valores comunitários;
alentando também o reconhecimento que a sentença judicial não é mero ato de
aplicação automática das leis, mas, isto sim, atividade que deve estar
comprometida com a justiça e criadora do próprio direito e, finalmente,
promover sensível substituição das penas privativas de liberdade por formas de
controle social não estigmatizantes.
Falar em controle social significa estabelecer princípio
democrático: é elementar à democracia que todos aqueles que exercem parcela de
soberania do Estado sejam controlados. Inadmissível, portanto, que o Poder
Judiciário, o Ministério Público e a Polícia não queiram submeter-se a controle
externo. A Polícia não quer controle externo, mas é absolutamente necessário
que os seus órgãos restem submetidos a controle, não só o interno (através de
suas Corregedorias que, sabemos, muitas vezes adotam equivocadas linhas
corporativas), mas, também e principalmente, o externo (controle externo
institucional ou controle externo ampliado, que seria esse
controle social indicado como tema da exposição).
No que diz respeito à Segurança Pública, a Constituição
Federal estabelece expressamente como incumbência institucional do Ministério
Público o controle externo da atividade policial (assim: “Art. 129. São funções
institucionais do Ministério Público (...) VII - exercer o controle externo da
atividade policial, na forma da lei complementar respectiva”). A Lei Orgânica
Nacional do Ministério Público de 1993, portanto, posterior à Constituição e de
caráter complementar a ela, deveria ter regulado o controle externo da
atividade policial pelo Ministério Público, mas o lobby das forças
policiais foi tão grande, de uma maneira tão intensa no Congresso Nacional, que
se concluiu, em dado momento, que a insistência em regulamentar tal matéria
poderia impedir a própria aprovação da Lei Orgânica Nacional do Ministério
Público e dela abriu-se mão na perspectiva de que, nos Estados, as Leis Orgânicas do Ministério Público viessem
a estabelecer os mecanismos para mencionado controle externo, o que,
infelizmente, acabou também não acontecendo. Por isso, fiquei satisfeito quando
obtive a informação de que aqui no Ceará há lei estadual tratando do controle
externo, inclusive com o adequado funcionamento do órgão criado para esse fim.
É evidente que os bons policiais aplaudem a intervenção de um órgão que possa
fazer a necessária depuração de sua instituição. Eu fui Procurador Geral de
Justiça do Estado do Paraná durante quatro anos e tivemos caso de Promotor de
Justiça que foi imediatamente afastado de suas funções quando da notícia de que
o mesmo estava se comportando de maneira incompatível com o cargo, porque o
Ministério Público do Paraná não quer ter em seu quadro Promotor de Justiça que
pratique ilegalidade. Na polícia, os bons policiais, os policiais honestos, por
certo aplaudem essa possibilidade de contar com um órgão como o Ministério
Público - de reconhecida credibilidade e competência - para a realização do
referido controle externo. No Paraná, foi instituída a Promotoria de
Investigação Criminal que, em razão de convênio firmado, atua em conjunto com a
Polícia Militar (o mesmo convênio não teve adesão por parte da Polícia Civil),
especialmente no sentido da identificação desses casos em que exatamente
aqueles a quem o Estado incumbe a preservação da segurança pública transmudam-se em violadores dessa própria ordem, praticando
crimes.
Enquanto a criminalidade se organiza, os aparelhos estatais
destinados à sua repressão atuam de maneira absolutamente desorganizada, quando
não em confronto um com os outros (veja-se: polícia civil e polícia militar ou
Ministério Público).
Mas além do controle institucional levado a cabo pelo
Ministério Público, previsto na Constituição e na Lei Orgânica Nacional do
Ministério Público (e também já em alguns Estados), deve-se pensar igualmente
em formas que importem controle social da Segurança Pública numa perspectiva
mais ampliada e, portanto, não exclusivamente aquele realizado por um órgão
integrante da estrutura organizacional do Estado. Em determinados momentos, é
possível que também falhe (ou se omita) a instituição incumbida do controle
externo, daí a importância da participação também da sociedade em tal tarefa.
Acerca disso, o primeiro pensamento que me veio à mente estava vinculado ao
nosso texto constitucional. É que a Constituição da República, pela primeira
vez na nossa história constitucional, refere-se à chamada democracia
participativa. O parágrafo único, do artigo 1º, da Constituição Federal,
assevera que “todo poder emana do povo,
que o exerce por meio de representantes eleitos (e aí está a democracia representativa)
ou diretamente, nos termos desta
Constituição”. Então, comanda-se no sentido da criação de mecanismos
jurídicos com o objetivo de permitir o exercício direto do poder pelo povo (isto
é, democracia participativa). Quando o legislador constituinte trata da
seguridade social e da assistência social, no artigo 204, inciso II, faz a
menção à “participação da população, por
meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle
das ações em todos os níveis”. Com base nesses princípios constitucionais
(da democracia participativa e da participação da sociedade na formulação de
políticas públicas através de entidades representativas), é que foram
instituídos os Conselhos de Saúde, os Conselhos de Assistência Social e, também,
os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente. Penso eu, então, que o
controle social no que tange à segurança pública poderia igualmente ser
efetivado mediante Conselhos de Segurança Pública. Aqui no Ceará - e lá no
Paraná também - temos experiências de Conselhos Comunitários de Segurança.
Confesso que no Paraná não funcionam adequadamente porque, não raras vezes, o
próprio Conselho Comunitário é quem exige uma atuação da polícia com maior
rigor, muitas vezes até ultrapassando os limites da legalidade. Há tempos atrás
o Conselho Comunitário de Segurança de Curitiba que, não sei como, acabou
composto em sua grande maioria por proprietários das lojas do centro da cidade,
tinha reivindicação permanente para se retirar das ruas, através dos chamados arrastões
(ou seja, das práticas ilegais dos arrastões), as pessoas que atrapalhavam o
comércio, colocando-se assim em funcionamento o olho clínico do policial a
partir da aparência da condição econômica da pessoa. O que há de mais absurdo
na prática dos arrastões é que a atividade da polícia acaba se constituindo em
criminalização da pobreza: os pobres, os mal vestidos, os desempregados, os
pretos, etc. são os objetos do camburão social. O maior estelionatário (de
terno e gravata) pode estar no local do pente-fino que jamais vai ser
incomodado pela polícia. Curitiba já teve o slogan de cidade bela e
justa, depois cidade ecológica e o Conselho Comunitário de
Segurança queria a retirada das ruas (insista-se, mesmo que de maneira
ilegal) das pessoas que - feias - destoavam de tais propostas. Quer dizer, a
preocupação se resumia à pseudo-incompatibilidade da cidade ecológica, terceira
em qualidade de vida do mundo, com as crianças e adultos que estavam nas ruas
sobrevivendo através da esmola degradante ou no remexer do lixo da metrópole de
primeiro mundo, o que, por óbvio, não se tratava de medida de segurança
pública.
Os Conselhos de Segurança Pública que imagino – exatamente na
perspectiva de controle social – deveriam ter, em primeiro lugar, caráter
deliberativo, serem os órgãos formuladores da política de Segurança Pública nos
vários níveis (vale dizer, municipal, estadual e federal). Não podem apresentar
apenas caráter consultivo ou opinativo e, assim, virar instância palpiteira,
mas sim cumprir o papel de deliberar acerca da política pública relativa à
segurança, assim como controlar as ações governamentais em todos os níveis.
Para tanto, os conselheiros devem possuir mandato, período dentro do qual não
podem ser destituídos, de molde a garantir independência de atuação.
Fundamental também é que esses Conselhos tenham composição paritária, ou seja,
integrados por representantes do poder público (da área de Segurança Pública e
afins) e, em igual número, por representantes de entidades da sociedade civil
com atuação nessa mesma esfera (como os Centros de Defesa dos Direitos Humanos,
as Pastorais de Segurança e Carcerária, enfim todas os organismos e movimentos
populares que objetivam evitar ilegalidades ou discriminações decorrentes de
raça, cor, credo, sexo, gênero, etc.). Obviamente que os controladores das
ações governamentais não podem ser indicados pelos controlados (isto é, os
governantes). Em se tratando de espaço para efetivo controle social, a própria
sociedade – através de assembléia das referidas entidades – é que deve indicar
seus representantes, marcando a escolha por processo genuinamente democrático e
que importará no compromisso do conselheiro não só com a instituição a que
pertence mas, também, com o conjunto dos organismos sociais.
Espero que, com as reflexões aqui feitas, tenha cumprido o
papel de atiçador das idéias, trazendo elementos para colaborar com o debate
que em seguida se dará. Ainda, anoto que no Paraná também a Ordem dos Advogados
do Brasil instituiu uma comissão com o objetivo específico de acompanhamento
das questões relativas à segurança pública (e das práticas ilegais advindas dos
próprios integrantes do sistema estatal de segurança). De idêntica importância
seria a participação da Defensória Pública, porque não raras vezes - ou em quase
todas as vezes - a extorsão policial, a corrupção
policial tem a conivência (quando não a participação direta) de um advogado,
que aceita fazer as vezes do advogado de porta de cadeia e auxilia na coação à
pessoa que está presa para o pagamento da propina indevida ou, então, na
liberação ilegal de um criminoso. Daí, a importância da intervenção positiva da
Ordem dos Advogados e da Defensória Pública no combate às práticas
desenvolvidas por policiais criminosos.
Como uma última análise, trago a necessidade do
desenvolvimento de uma cultura da legalidade, que deve ser iniciada nos bancos
escolares do ensino fundamental e médio, mas especialmente contemplada nas
Faculdades de Direito e nas Escolas de Polícia (Escola de Polícia Civil e
Academias da Polícia Militar). E quando me refiro a tal cultura da legalidade
quero falar de uma educação formadora do respeito à dignidade do homem e aos
direitos humanos, de modo a não permitir, inclusive, que os meios de comunicação
social continuem fazendo manipulação ideológica no sentido de vincular a
efetivação dos direitos humanos exclusivamente àquelas pessoas que cometeram
crimes e que são algozes da sociedade. Uma política de direitos humanos que
possa inserir no coração e nas mentes de todos os brasileiros o respeito pelo
ser humano e a busca da vida digna para todos os brasileiros.
Em relação aos meios de comunicação social, não tenho dúvida
de que deles devemos cobrar os programas de finalidades educativas, artísticas,
culturais e informativas, como estabelece a Constituição Federal. Nós vivemos
duro período de ditadura militar, onde foi suprimida a liberdade de expressão,
assim como a liberdade de imprensa e não nos separamos mais desses fantasmas
criados pelo arbítrio, que hoje precisam ser exorcizados para permitir o
controle social do que é produzido pelos meios de comunicação em massa. Aliás,
no Brasil se preserva muito bem a liberdade de empresa; sob a capa cômoda da
liberdade de imprensa, preserva-se a liberdade do dono da empresa, ou seja, o
controle que não se quer que a sociedade faça, o dono da empresa de comunicação
faz. Nós temos um exemplo clássico a ser citado, que é o da
relação da Rede Globo de Televisão com o
ex-Governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola, que ficou anos e anos
sem aparecer em dita cadeia de televisão, porque houve ali a prevalência da
liberdade de empresa em detrimento da liberdade de imprensa. E nós – e nossos
filhos – somos obrigados a conviver com programas que estimulam não só a aversão
aos direitos humanos, como fazem verdadeira apologia do crime, encaminhando o
pensamento brasileiro não no sentido da fraternidade (inclusive no que toca à
devida solidariedade em relação às pessoas que se encontram sem terra, sem
saúde, sem educação, sem alimentação, enfim sem oportunidade de vida digna),
mas para a prática de atos criminosos, incentivando a própria polícia a atuar
de forma ilegal. Está na hora de pensarmos mecanismos de auto-regulamentação
dos meios de comunicação de social e, também, de controle social das
respectivas programações.
Termino fazendo a leitura de poema da autoria de um grupo de
meninos e meninas de rua, integrantes de uma comunidade pobre de Curitiba, a
Comunidade Profeta Elias. O especial do poema é que essas crianças, num
determinado momento histórico, não quiseram mais ser meros
espectadores da história, não quiseram mais ser meras vítimas da
sociedade injusta em que vivem e resolveram interferir positivamente na
realidade social. Resolveram se transformar em sujeitos da história,
construtores de uma nova ordem social. Os meninos passaram a atuar dessa forma
porque ingressaram no Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua,
organizaram-se e politizaram-se. Porque politizados alcançaram ter a
compreensão do papel que podem desempenhar na busca da tão almejada igualdade
de oportunidades para todos. Eu gostaria que esse poema, que a voz dos meninos
de rua da Comunidade Profeta Elias pudesse ficar como emblema desta minha
manifestação e objeto de reflexão para esta plenária, inclusive quando se
pensar no tema segurança pública. Diz o poema: “Nós também queremos viver, nós também amamos a vida. Para vocês
escola, para nós pedir esmola. Para vocês vida bela, para nós morar na favela.
Para vocês academia, para nós delegacia. Para vocês forró, para nós mocó. Para
vocês avião, para nós camburão. Para vocês coca-cola, para nós cheirar cola.
Para vocês piscina, para nós chacina. Para vocês muita emoção, para nós catar
papelão. Para vocês conhecer a lua, para nós morar na rua. Para vocês, está bom, felicidade, mas para nós igualdade. Nós também queremos
viver, nós também amamos a vida”.