LANÇANDO UM OLHAR ECOLÓGICO PARA A QUESTÃO DA INFÂNCIA: RISCOS SOCIOCULTURAIS E OPORTUNIDADES PARA O DESENVOLVIMENTO

 

 

Maria Angela Mattar Yunes

Psicóloga, RS.

 

 

A origem latina da palavra infância traz em suas raízes semânticas a noção de ausência de fala, ou seja, o infante é aquele que não fala (Lajolo, 1997). Isso sugere que  há alguém que fala por ele ou sobre ele, já que não lhe é dado o direito à voz nos discursos alheios. Quem são os alheios? Como definem a infância e as práticas de educação infantil? São perguntas simples que requerem respostas complexas.

 

Percebendo-me como participante ativa de um grupo de alheios e dona de um discurso construído ao longo de meu percurso profissional sobre infância e família, penso em ater-me a apresentar algumas reflexões referentes ao desenvolvimento psicológico da criança. Para tal, recorro à perspectiva ecológica de Urie Bronfenbrenner (1996), e pretendo discutir a dinâmica e a implicação de fatores de risco sociocultural e de oportunidades (Garbarino e Abramowitz, 1992) no desenvolvimento infantil.

 

A abordagem ecológica de Bronfenbrenner:

 

O  modelo ecológico de Bronfenbrenner (1996) tem se convertido num ponto de referência obrigatório para aqueles interessados em desenvolvimento humano. Trata-se de uma perspectiva que se define, basicamente, por privilegiar o contexto e as interações entre o organismo e o ambiente. Uma das maiores contribuições da abordagem ecológica, reside no fato de que ela torna o pesquisador capaz de "pensar ecologicamente" sobre  desenvolvimento, possibilitando que sua atenção seja dirigida não só para o indivíduo e os ambientes imediatos nos quais ele se encontra, mas também, para as interações do indivíduo com os ambientes mais distantes, do qual muitas vezes, ele sequer participa diretamente. Como afirmam Garbarino e Abramowitz (1992): "a ecologia do desenvolvimento humano é o estudo de como toda uma sociedade funciona, criando e educando crianças, que futuramente tomarão seus lugares nesta mesma sociedade." (p. 15) Bronfenbrenner proporciona a compreensão de vários sistemas de influência, desde os mais distais até os mais próximos, que acabam por formar o entorno ecológico do indivíduo. Através de uma linguagem específica de sua abordagem, o autor pressupõe que toda experiência individual se dá no ambiente ecológico, o qual  "é concebido como uma série de estruturas encaixadas, uma dentro da outra, como um conjunto de bonecas russas". (Bronfenbrenner, 1996, p. 5). Um aspecto marcante desta concepção, é que o importante para o desenvolvimento é o ambiente na maneira como é percebido pelo indivíduo, e não como ele existe na realidade objetiva. Portanto, conforme Bronfenbrenner (1996), "os aspectos mais importantes do meio ambiente no curso do crescimento psicológico são, de forma esmagadora, aqueles que têm significado para a pessoa numa dada situação". (p. 9). Estes ambientes são analisados em termos de quatro tipos de sistemas que guardam uma relação inclusiva entre si: o microssistema,  o mesossistema, o exossistema e o macrossistema. O microssistema é o sistema ecológico mais próximo e compreende um conjunto de relações entre a pessoa em desenvolvimento e seu ambiente mais imediato, como por exemplo, a família, a escola, a vizinhança, a igreja, o clube social, etc. O mesossistema refere-se ao conjunto de relações entre dois ou mais microssistemas, dos quais, a pessoa em desenvolvimento, participa  de maneira ativa: as relações família-escola ou escola-igreja, por exemplo. O exossistema compreende aquelas estruturas sociais formais e informais que, mesmo que não contenham a pessoa em desenvolvimento, influem e delimitam o que acontece no ambiente mais próximo: a família extensa, as condições e as experiências de trabalho dos adultos e da família, as amizades, a vizinhança do bairro em geral. E por último, o macrossistema,  que é o sistema mais distante do indivíduo, e inclui os valores culturais, as crenças, as situações e acontecimentos históricos que definem a comunidade onde os outros três sistemas estão inseridos e podem afetá-los: os estereótipos e preconceitos de determinadas sociedades, períodos de grave situação econômica dos países, a globalização.

 

Esta maneira de "olhar" o desenvolvimento humano pode funcionar como uma "máquina de imaginação" (Garbarino e Abramowitz, 1992) que nos permite formular e resolver questões importantes sobre políticas de ação e intervenção social e nos "vacina" contra possíveis generalizações e substantivação de conceitos e achados de pesquisa.

 

Fatores de risco sociocultural:

 

             A análise crítica da história da infância mostra que riscos e todas as espécies de estressores sempre se fizeram presentes em qualquer tempo e lugar. O que varia é a construção social do que se constitui risco (Martineau, 1999) ao longo da história. De maneira geral, fatores de risco relacionam-se com toda a sorte de eventos negativos de vida, e quando presentes, aumentam a probabilidade do indivíduo apresentar problemas físicos, sociais ou emocionais. Alguns exemplos do que vem sendo pesquisado como experiências estressoras ou de risco para o desenvolvimento saudável das crianças são: divórcio dos pais (Emery & Forehand, 1996), perdas de entes próximos (Clark, Pynoos & Goebel, 1996) abuso sexual/físico contra a criança, (Egeland & Brunnquell, 1979), holocausto (Moskovitz, 1983), desastres e catástrofes naturais (Yule, 1994), pobreza (Luthar & Zigler, 1991; Luthar, 1999; Rutter & Madge, 1976), guerras e outras formas de trauma (Goodyer, 1990, Garmezy & Rutter, 1985). Tradicionalmente, estes estressores eram concebidos em termos estáticos, ou seja, na presença de qualquer um deles, já se previa conseqüências indesejáveis. Tomando-se o exemplo da pobreza temos que, embora se  saiba que privação econômica pode ser prejudicial, se esta condição se constituirá em risco ou não, vai depender do comportamento que  se tem em mente e dos mecanismos[1] através dos quais os processos de risco operam seus efeitos negativos na criança (Cowan, Cowan & Schulz, 1996). Portanto, uma condição de risco não pode ser  assumida a priori (Luthar, 1993).  Ao abordar a questão específica de risco sociocultural, refiro-me, mais especificamente, ao processo de "empobrecimento" no mundo das experiências relacionais da criança em seus ambientes ecológicos imediatos (microssistema e mesossistemas) e distantes (exossistemas, macrossistema).

 

Oportunidades e fatores de proteção:

 

Antes de abordar a questão das oportunidades e seu papel no desenvolvimento da criança é preciso esclarecer um conceito correlato denominado, por alguns autores, fator de proteção ou buffer (Cowan, Cowan & Schulz 1996; Rutter, 1985, 1987). Segundo Rutter (1985), "fatores de proteção referem-se a influências que modificam, melhoram ou alteram respostas pessoais a determinados riscos de desadaptação" (p. 600). A característica essencial desses fatores é a modificação catalítica da resposta do indivíduo à situação de risco (Rutter, 1987). Esses fatores podem não apresentar efeito na ausência de um estressor, pois seu papel é o de modificar a resposta do indivíduo em situações adversas mais do que favorecer diretamente o desenvolvimento normal. Rutter (1987) adverte os pesquisadores para não equipararem fatores de proteção com condições de baixo risco. O autor chama a atenção, também, para a distinção que deve ser feita entre fatores de proteção e experiências positivas. A pesquisa nesta área não visa a identificar quais são os fatores que propiciam bem-estar às pessoas,  mas  quais são os processos que as protegem dos mecanismos de risco. Sendo assim, os mecanismos de proteção serão aqueles que numa trajetória de risco, acabam por mudar o curso da vida da pessoa (pontos de virada) para um "final  feliz". Nesse sentido é que faço a relação entre fatores de proteção e oportunidades, sendo que o último conceito vai além da pressuposição da "proteção em situações de risco", mas traz implícito a noção de garantia de um desenvolvimento que maximiza as potencialidades da criança. Nas afirmações de Garbarino e Abramowitz (1992),  é na relação criança-ambiente que deve haver encorajamento material, emocional e social compatíveis com as necessidades e capacidades  consistentes com o momento do ciclo de vida de cada um.

 

Reflexões sobre os conceitos apresentados:

 

A perspectiva ecológica associada aos conceitos de risco sociocultural e oportunidades nos ajudam a apontar certas vicissitudes da infância brasileira. Em um país como o Brasil, onde a mídia divulga que "cerca de 50 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da miséria"[2], é lógico para alguns de nós pensar no elevado número de crianças vivendo a infância em situação de risco. É de conhecimento público que em certas regiões do Brasil, os riscos são de tal amplitude que as crianças, ou nascem mortas ou não sobrevivem fisicamente ao primeiro ano de vida. Outras, com um pouco mais de sorte, apenas sobrevivem, mas com poucas oportunidades de viver uma infância digna. Nesta lógica, os riscos e conspirações que existem nos micro-, meso-, exo-, e macroníveis do entorno ecológico, são quase que imediatamente associados à situação de pobreza per se, o que parece perfeitamente natural. No entanto, se tomarmos a risca os conceitos de risco sociocultural e oportunidades, veremos que é preconceituoso pensar que esses conceitos fazem sentido apenas para pensar o desenvolvimento de crianças de baixa renda. A abordagem ecológica de Bronfenbrenner (1996) nos ensina a avaliar as fontes de risco sociocultural e oportunidades nos diferentes ambientes e classes sociais, bem como levar em conta a maneira como a própria criança integra e percebe suas experiências nos sistemas que influenciam o seu desenvolvimento, modificando-os, ao mesmo tempo, que é transformada por eles. Nesta ótica, não é apenas a pobreza sócio-econômica que atinge o desenvolvimento das nossas crianças. A pobreza social, ou melhor, a pobreza relacional, pode provocar "estragos" na formação da identidade e no desenvolvimento psicológico do indivíduo, o que transcende o fenômeno das classes sociais. A privação social pode estar nos vários sistemas do espaço ecológico, tomado por relacionamentos capazes de minar, dia após dia, o desenvolvimento das  nossas crianças, ou então, na simples ausência de interações com um ou mais adultos que queiram o bem incondicional das crianças que estão sob seus cuidados (Bronfenbrenner, 1991). Relações superficiais ou abusivas, com base em estereótipos e expectativas idealizadas, podem ser identificadas nas práticas educativas de famílias, de escolas ou da cultura regional. Isso não é exclusividade de determinadas classes sociais. Criança "pobre" é aquela desprotegida por sua família, por sua professora, pela cultura da escola, pela rede de apoio social ou pelos governantes, enquanto que a criança "rica" é aquela cuja vida é permeada pela diversidade de relações duradouras com pais, professores e pessoas inseridas numa rede de ambientes que nutrem e se preocupam com seu desenvolvimento. É preciso refletir usando nossa "máquina de imaginação" e discutir programas voltados para práticas de educação e desenvolvimento, que minimizem riscos e maximizem oportunidades na vida de nossas crianças. Todas elas têm direito à infância...

 

Referências Bibliográficas

 

Bronfenbrenner, U. (1991). What do families do. Family Affairs, 4 (1-2), 1-6.

Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados, Porto Alegre, Artes Médicas.

Bronfenbrenner, U. & Morris, P. A.(1998). The ecology of developmental process. Em R. M. Lerner (ed.). Handbook of Child Psychology: Theoretical models of human development, 5ª edição, 1, 993-1028

Clark, D.C., Pynoos, R. S. and Goebel, A. E. (1996). Mechanisms and process of adolescent bereavement, Stress, Risk and Resilience in Children and Adolescents: Processes, Mechanisms and Interventions. Eds. Robert J. Haggerty et al. New York: Cambridge University Press, 100-146.

Cowan, P. A , Cowan, P.C. & Schulz, M. S. (1996) Thinking about risk and resilience in families. Em E. M. Hetherington & E. A. Bleachman (Orgs.), Stress, coping and resiliency in children and families, (pp. 1-38). New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates.

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Emery, R. E. & Forehand, R. (1996). Parental divorce and children's well-being: A focus on resilience. Em  Robert J. Haggerty (Ed.). Stress, Risk and Resilience in Children and Adolescents: Processes, Mechanisms and Interventions. New York, Cambridge University Press, 64-99.

Garbarino, J.  & Abramowitz, R. H. (1992)  Sociocultural Risk and opportunity, Em James Garbarino (Ed.), Children and Families in the Social Environment, 2nd Edition. New York, Aldine de Gruyter, 35-70.

Garmezy, N. & Rutter, M. (Eds.). (1983). Stress, coping and development in children. New York: McGraw-Hill.

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Goodyer, I. M. (1990). Life experiences, development and childhood psychopathology, Chichester, Wiley.

Lajolo M. (1997). Infância de papel e tinta. Em Marcos Cezar de Freitas (Org.), História Social da Infância no Brasil, São Paulo, Editôra Cortez, 225-246.

Luthar , S. S. (1991) Vulnerability and resilience: a study of high-risk adolescents. Child Development, 62, 600-616.

Luthar, S. S. & Zigler, E. (1991). Vulnerability and competence: A review of research on resilience in childhood. American Journal of Orthopsychiatry, 61, 6-22.

 

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Luthar , S.S. (1999). Poverty and children's adjustment,Developmental Clinical Psychology and Psychiatry, Vol 41, Thousand Oaks, London, New Delhi, Sage Publications, Inc.

Martineau, S. (1999). Rewriting resilience: A critical discourse analysis of childhood resilience and the politics of teaching resilience to "kids at risk", Tese de doutorado apresentada na The University of British Columbia, Canada.

Moskovitz, S. (1983). Love despite hate: Child Survivors of the Holocaust and their adult lives. New York: Schocken Books.

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Notas:

 

[1] Cowan, Cowan e Schulz (1996) tratam desta questão conceitual brevemente e apresentam uma clara definição de mecanismo: "Mecanismos são processos que ligam riscos às suas conseqüências, propiciando o entendimento na variabilidade destas conseqüências" (p. 16). Segundo os autores,  os mecanismos podem operar de duas maneiras para fazer esta vinculação risco-conseqüência: como mediadores ou moderadores. Um mecanismo mediador é dinâmico e não diretamente observável. O mecanismo moderador amplifica, reduz ou muda a direção da correlação entre riscos e respostas.

[2]  Informação divulgada no dia 9 de julho de 2001 no Jornal Nacional da Rede Globo.