A NECESSÁRIA MOBILIZAÇÃO DA SOCIEDADE
Murillo José Digiácomo [1]
Promotor de Justiça, PR.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, decorridos mais de 10 (dez) anos desde sua promulgação, ainda vem encontrando sérias dificuldades em sua implantação, até mesmo (e por que não dizer em especial) no que concerne à criação e funcionamento adequado de órgãos e estruturas básicas nele previstos com vista à prometida proteção integral de nossas crianças e adolescentes.
Assim é que ainda convivemos com Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e Tutelares irregulares em sua composição, desprovidos da estrutura necessária a seu adequado funcionamento, total ausência ou insuficiência de programas de atendimento a crianças, adolescentes e famílias, enfim, sem que mesmo os mecanismos básicos de prevenção e proteção previstos pela legislação específica tenham sido implantados de forma minimamente adequada.
Como resultado, nos deparamos com municípios que, apesar de formalmente contarem com seus Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e Tutelar implantados, na verdade não possuem qualquer política de atendimento à criança e ao adolescente, o que atesta a inoperância daquele primeiro e acaba por inviabilizar a atuação deste último Órgão, que não terá para onde encaminhar os casos atendidos.
Tal situação é obviamente inadmissível, haja vista que a materialização e operacionalização do Sistema de Garantias idealizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, com a implantação de uma rede de atendimento que permita a efetiva PROTEÇÃO INTEGRAL à criança e ao adolescente, constitui-se num direito público subjetivo de toda população, em especial de sua parcela infanto-juvenil, posto que amparado pelo princípio constitucional da PRIORIDADE ABSOLUTA insculpido no art.227, caput, de nossa Carta Magna.
A esse direito de toda coletividade corresponde, por óbvio, o dever do Estado (em seu sentido lato[2]) que a serve, que, em se omitindo, coloca em GRAVE SITUAÇÃO DE RISCO todas as crianças e adolescentes do município na forma do previsto no art.98, inciso I, da Lei nº 8.069/90, podendo acarretar na responsabilidade do administrador que para tanto contribui (conforme art.208 da Lei nº 8.069/90, art.1º, inciso XIV do Decreto-Lei nº 201/67 e art.11, caput, da Lei nº 8.429/92) e na intervenção judicial para o fim de compelir o município a cumprir a lei e criar a estrutura de atendimento devida.
Mas para que chegar a tanto?
Diante de comandos legal e constitucional tão cristalinos como aqueles contidos no art.227, caput da Constituição Federal e art.4º, caput e par. único, alíneas "c" e "d" da Lei nº 8.069/90, como pode o administrador público deixar de conferir à área infanto-juvenil o tratamento prioritário - e em regime de prioridade ABSOLUTA de que ela é credora?
Como, aliás, pode a sociedade PERMITIR que o administrador público tenha tamanho descaso para com a área infanto-juvenil, quando, também por mandamento legal e constitucional, ELA PRÓPRIA PARTICIPA (ou ao menos deveria participar) DIRETA E ATIVAMENTE da DEFINIÇÃO da POLÍTICA DE ATENDIMENTO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE?
Devemos partir do princípio de que todas as decisões políticas (na mais "pura" acepção da palavra) que dizem respeito à criança e ao adolescente no município, no Estado Federado e na União, são da competência do Conselho de Direitos do respectivo nível, que afinal, na forma da Lei[3] e da Constituição Federal,[4] se constitui num órgão deliberativo e controlador das ações do próprio Poder Executivo, ações estas que, como dito acima, devem contemplar a criança e o adolescente com a mais absoluta PRIORIDADE.
Assim sendo, a título de exemplo, a nível de município não é o Prefeito quem irá, sozinho ou em conjunto com o seu gabinete, definir se deve ou não criar determinado programa de atendimento à criança e ao adolescente; destinar mais ou menos recursos para adequar um programa já existente à demanda; conceder ao Conselho Tutelar melhores condições materiais de funcionamento; encaminhar à Câmara Municipal qualquer projeto de lei que verse sobre a área da infância e juventude[5], enfim, tomar qualquer decisão afeta direta ou indiretamente à criança e ao adolescente no município, mas sim o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, ao qual também caberá, a posteriori, fiscalizar e zelar para que a deliberação respectiva seja cumprida, inclusive pelo próprio Prefeito Municipal, que não poderá modificá-la sponte propria.
Vale o registro que o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente não se constitui, como ironizam alguns, numa espécie de "governo paralelo", mas sim é o próprio "governo" (diga-se Poder Público), na medida em que é esse Órgão, e não o "Chefe" do Executivo, quem detém o poder de decisão, assim respaldado nada menos que por disposição constitucional expressa.
Justamente em razão dessa competência (e portanto poder-dever) constitucional conferida ao Conselho de Direitos para deliberar sobre todas as questões relacionadas à criança e ao adolescente, conclui-se por ilegítima toda e qualquer ação nesse sentido tomada pelo "Chefe" do Executivo que não tenha passado pelo crivo daquele Órgão Deliberativo, podendo mesmo importar na prática de ato de improbidade administrativa,[6] na medida em que o "boicote" ou a criação de embaraços, por parte do "Chefe" do Executivo, ao funcionamento e à autoridade do Conselho de Direitos, indubitavelmente afronta, na melhor das hipóteses, os princípios de legalidade e de lealdade às instituições que devem nortear as ações do administrador público.
Nesse contexto, uma vez compreendidas a exata dimensão do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente como instância deliberativa de governo, órgão detentor de significativa parcela da soberania estatal que tem a prerrogativa de elaborar e controlar a execução da política de atendimento à criança e ao adolescente, zelando para que seja cumprido o mandamento constitucional da ABSOLUTA PRIORIDADE à área infanto-juvenil, é necessário garantir seu adequado funcionamento, que somente ocorrerá caso dele faça parte - e atue de forma efetiva (e não apenas figurativa) - a sociedade civil organizada, no mais puro espírito do ideal de democracia participativa preconizado pelo art.1º, parágrafo único, da Constituição Federal que o inspirou.
Desnecessário lembrar que o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente possui uma composição paritária entre governo e sociedade civil, característica que se constitui em verdadeira conditio sine qua non para seu legítimo funcionamento. Qualquer regra ou situação de fato, ainda que amparada na legislação municipal, que venha a burlar ou mesmo a ameaçar essa necessária paridade, padece do vício insanável da inconstitucionalidade, não podendo prevalecer.
O princípio da paridade, que como visto é da própria essência do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, obviamente PRESSUPÕE a mais absoluta INDEPENDÊNCIA da ala representativa da sociedade civil em relação ao governo, na medida em que não pode ser considerado "paritário" um órgão no qual todos os seus integrantes são igualmente nomeados ao talante do "Chefe" do Executivo, sejam a ele subordinados (funcionários públicos municipais), com ele mantenham laços políticos estreitos ou que apresentem qualquer vinculação que coloque em risco a autonomia e isenção daquele que deve exercer o mandato popular na ala não governamental do Órgão Deliberativo.
A existência de alguma espécie de vinculação, seja de ordem política, funcional ou mesmo "moral" entre o conselheiro não governamental e o "Chefe" do Executivo (como ocorre no caso da nomeação daquele por este), acaba comprometendo o desempenho de suas atribuições da forma isenta e absolutamente independente idealizada pela Constituição Federal e legislação ordinária referidas. Com maior gravidade, pode gerar uma verdadeira relação de subordinação e mesmo de dependência entre ambos, na medida em que o conselheiro nomeado que tenha aspiração à recondução, não se sentiria livre para propor deliberações e/ou tomar decisões que desagradassem aquele que, no futuro, ficaria encarregado de tal tarefa.
Desnecessário dizer que, como a prevenção se constitui num verdadeiro princípio inspirador e norteador de toda Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente, bem como de todo o Estatuto da Criança e do Adolescente, a mera possibilidade de que possa ocorrer a quebra da paridade entre governo e sociedade civil organizada junto ao Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente já determina a intervenção enérgica e imediata da Justiça da Infância e Juventude para impedir que a ameaça se transforme em dano efetivo.
O correto, portanto, é que a escolha dos representantes da sociedade civil que irão compor a ala não governamental do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente ocorra em assembléia das próprias entidades representativas da população, sem qualquer ingerência da ala governamental do Órgão Deliberativo, que deve se limitar a acompanhar o desenrolar do processo respectivo, até mesmo para aferir sua lisura.
Posto isto, a experiência tem demonstrado que, mesmo estando corretamente formado e tendo em sua composição conselheiros não governamentais conscientes de suas prerrogativas legais e constitucionais, o Conselho de Direitos vem encontrando sérias dificuldades em se afirmar como Órgão Deliberativo autônomo que é, continuando na maioria dos casos ainda "atrelado" ao "governante de plantão" e pouco ou nada atendendo aos verdadeiros anseios e interesses da sociedade.
O que falta, então?
Nossa reflexão mais uma vez deve remontar à análise das diretrizes traçadas pela Lei nº 8.069/90 para a política de atendimento à criança e ao adolescente, onde podemos perceber que o legislador já havia previsto essa dificuldade, que existe por razões até mesmo culturais (dentre outros fatores devido à falta de uma prática democrática, fruto amargo dos anos em que vivemos sob o regime ditatorial, e também de uma concepção equivocada do conceito de cidadania, ainda presente em muitos de nós), tendo estabelecido, paralelamente à criação dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente em todos os níveis (art.88, inciso II), a necessária "MOBILIZAÇÃO da opinião pública, no sentido da INDISPENSÁVEL PARTICIPAÇÃO dos diversos segmentos da sociedade" (art.88, inciso VI - verbis).
Tal previsão decorre da elementar constatação de que não basta garantir a existência de um espaço democrático para o exercício do poder pelo povo e para o povo como é caso do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, mas sim é fundamental mobilizar e conscientizar a sociedade para que esse espaço seja efetivamente ocupado, e não se torne, como infelizmente de regra vem ocorrendo com no exemplo dado, um órgão sectário, inoperante (quando não mero "chancelador" das decisões do "governante de plantão"), distante e completamente alheio à sociedade que deveria representar e à realidade que deveria transformar.
No plano ideal, a citada mobilização em torno da nobre e necessária causa da infância e juventude deveria ser promovida pelo próprio Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, porém na sua omissão, ao menos num primeiro momento, deve ficar a cargo dos órgãos e entidades representativos da sociedade - dentre os quais podemos destacar o Conselho Tutelar, e mesmo de cidadãos imbuídos do mais puro espírito cívico e democrático, que devem se unir para defesa da causa.
Essa necessária integração pode ocorrer notadamente através da criação do chamado Fórum de Direitos da Criança e do Adolescente - Fórum DCA, que deve procurar atuar junto aos conselhos comunitários ou associações de bairros, associações de pais e mestres, comunidades religiosas, enfim, onde quer que exista uma representação popular, que deverá ser esclarecida e conclamada a participar das reuniões do próprio Fórum e do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente local, fiscalizando seu funcionamento, propondo e cobrando soluções para os problemas existentes, geralmente relacionados à falta de estrutura do município para o atendimento minimamente adequado de suas crianças e adolescentes.
O Fórum DCA deve ser a voz da sociedade inclusive junto àquelas entidades encarregadas de representá-la dentro do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, pois os integrantes da ala não governamental do citado Órgão Deliberativo não exercem um mandato em nome próprio ou em nome da entidade que ocasionalmente integram, mas sim exercem um mandato popular, que como tal não lhes pertence, razão pela qual não se concebe atuem de forma isolada e distanciada dos diversos segmentos da sociedade cujos interesses deveriam defender.
De igual sorte, deve dar respaldo às ações do Conselho Tutelar que extrapolam o âmbito do singelo atendimento individual de casos, fazendo com que o Órgão assuma o desejado papel de "identificador de demandas", que após detectar as maiores deficiências estruturais que a "rede" de atendimento à criança e ao adolescente apresenta, irá provocar o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente no sentido da elaboração de uma POLÍTICA ADEQUADA a solucionar o problema, daí resultando a criação de programas específicos de proteção e voltados aos pais ou responsável.[7]
Uma experiência que tem dado certo diz respeito à realização de reuniões do Fórum DCA "preparatórias" às reuniões do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, nas quais devem obviamente participar os membros do Conselho Tutelar e também da ala não governamental daquele Órgão Deliberativo, que ouvirão os demais segmentos da sociedade e com eles definirão estratégias para uma atuação articulada e uníssona por ocasião do citado evento.
Assim, por ocasião da reunião do Conselho de Direitos, se evitam discussões desnecessárias entre os próprios representantes da sociedade, que já terão uma posição bem definida a defender, evitando ou minimizando a possibilidade de divergências que acabariam por inviabilizar a consecução dos anseios da maioria e fariam prevalecer a vontade do administrador, que nem sempre será a que melhor atende aos interesses de crianças e adolescentes.
A citada reunião prévia poderá servir, inclusive, para inclusão de itens na pauta da reunião do Conselho de Direitos até então não previstos, procurando "amoldar" a atuação do Órgão Deliberativo com as reais necessidades e expectativas da sociedade.
As reuniões do Fórum DCA, preparatórias ou não às reuniões do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, devem ser, por óbvio, amplamente divulgadas e abertas à comunidade em geral, bem como realizadas preferencialmente de forma itinerante (com prévia definição de locais e datas), junto a centros comunitários, escolas e universidades (a mobilização destas, dada sua vocação natural para se tornarem verdadeiros "centros de formação de cidadãos", inclusive por força do enunciado do art.205 da Constituição Federal, é de importância capital), salões paroquiais ou similares, enfim, em espaços comunitários que permitam a participação do cidadão comum e das lideranças comunitárias nas discussões que dizem respeito a suas crianças e adolescentes, de modo a despertar em cada um o espírito cívico e o senso de responsabilidade para com a causa.
Igual orientação vale para as reuniões do próprio Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, ao qual incumbe, como dito acima, a imprescindível tarefa de mobilização e participação da sociedade, que, se ainda não tem o hábito de comparecer espontaneamente ao Órgão, dele deve receber a "visita" e ser incentivada (quando não convocada) a participar, pois "se Maomé não vai à montanha...".
Somente assim se estará cumprindo de forma efetiva um dos mais importantes, porém tantas vezes esquecido, princípios preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, sem o qual a própria operacionalização da Lei fica deveras prejudicada.
Notas
[1] Promotor de Justiça com atribuições junto ao Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Estado do Paraná.
[2] Sem perder de vista, é claro, que a municipalização da política de atendimento à criança e ao adolescente se constitui numa de suas diretrizes, estabelecida pelo art.88, inciso I da Lei nº 8.069/90.
[3] Art.88, inciso II da Lei nº 8.069/90.
[4] Art.227, §7º c/c art.204, ambos de nossa Carta Magna.
[5] Inclusive no que diz respeito à remuneração do Conselho Tutelar.
[6] Por oportuno, vale transcrever a definição de ato de improbidade administrativa contida no art.11, caput da Lei nº 8.429/92: "Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições..." (verbis).
[7] A respeito do tema, vide artigo de minha autoria intitulado "Sugestões e subsídios para elaboração e implantação de políticas de atendimento a crianças, adolescentes, pais e responsáveis", que se encontra publicada na página do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente na Internet, que poderá ser acessada através do site www.mp.pr.gov.br/institucional/capoio/capoca/index.html.