SE EU SOUBESSE QUE ELE ERA MEU PAI ...
(Direito à identidade genética)
Giselda Maria
Fernandes Novaes Hironaka
Doutora em Direito , SP.
Ouvi recentemente esta frase – “Se eu soubesse que ele era meu pai, minha vida teria sido, quiçá, diferente...” – em um destes especiais canais de televisão a cabo que mostrava uma bela reportagem a respeito dos “filhos de Hollywood”. Aliás, penso que era mesmo assim o nome da seqüência, embora não tenha certeza: “Kids of Hollywood”. Mas enfim, o escopo fundamental da reportagem, como se pode imaginar, era demonstrar como foi a vida, normalmente escrita pelas mais diferentes e desconcertantes formas de angústias e frustrações, de crianças – hoje adultos – que tiveram a má sorte de nascer de famosas pessoas registradas na calçada da fama, mas completamente despreparadas para a assunção da condição de pais e de mães famosos de crianças desprotegidas.
Esta pessoa, cuja
frase tanto me marcou, era a filha, hoje sexagenária, do belíssimo Clark Gable,
o insuperável galã de “...E o vento levou”,
mas que não revelou à criança a verdade que ela procurou, provavelmente, por
toda a sua vida, talvez com grande ansiedade e sofrimento.
O depoimento
daquela senhora – cujo olhar revelava, como o espelho do passado, a sua
fragilidade infantil, a sua decepção adolescente, a sua descrença a respeito da
hipótese de ser feliz – informava, também, que o silêncio a que houvera sido
submetida, a respeito de sua raiz genética paterna, havia sido imposto por sua
mãe, ela também atriz destacada do iluminado ambiente hollywoodiano. Mas, de tudo,
o mais doloroso, pareceu-me, foi o fato de que sua mãe, por ocasião de seu
nascimento – e a gravidez já havia sido devidamente ocultada à imprensa –
entregou-a aos cuidados de um orfanato. Depois de seis meses, segura da
preservação de seu segredo e segura da mantença de sua etérea, ingênua e doce
figura junto ao seu público, a atriz retorna ao orfanato, agora já sem tantos
segredos e subterfúgios, mas, ao contrário, devidamente acompanhada por fotógrafos
e jornalistas para – que espetacular cena, cenários e “script” – “adotar” a criança que houvera sido concebida em seu
próprio ventre...
Mentira sem
paradigma e hipocrisia maior, igual a esta, só se conheceu ao tempo dos
romanos, à época em que os filhos havidos fora do casamento não tinham nenhum
valor, lugar ou direitos, no contexto das famílias de então.
Isto porque,
sabe-se, “no seio das famílias romanas, houve sempre um repúdio à idéia de
filhos ilegítimos, já que estes não podiam desempenhar o papel determinado,
pela religião, ao filho.” (2)
Com efeito, em
Roma, como informa Fustel de Coulanges,
“o laço de sangue isolado não constituía, para o filho, a família; era-lhe
necessário o laço do culto. Ora, o filho nascido de mulher não associada ao
culto do esposo pela cerimônia do casamento, não podia, por si próprio, tomar
parte do culto. Não tinha o direito de oferecer o repasto fúnebre, e a família
não se perpetuaria por seu intermédio”. (Cidade
Antiga). (3)
A farsa romana a
que me referi descortinava-se porque, lembremo-nos, Roma conheceu apenas um
modo destinado a contornar os obstáculos legais para regularizar a situação de
inferioridade à qual eram relegados os filhos espúrios. Este modo era a adoção
e, por meio dela, o filho adentrava a família, não aut natura, mas aut iure,
em condição de igualdade com os demais irmãos.(4)
Contudo, tantos
séculos depois e em terras tão distantes, como é o caso da capital americana do
cinema, o fenômeno se repetiu, para que a criança tivesse sido repudiada não apenas
pelo seu famoso pai, mas também pela sua famosa mãe. Mas, o absurdo maior revela-se pelo fato de
ter sido, ainda, “usada” literalmente pela sua adorável mãe, uma vez que,
instalada a criança no venerando lar da atriz pelas portas da adoção, carreou-lhe
maior fama, contribuindo para aumentar consideravelmente a legião de fãs,
encantados com a “grandeza e o despojamento da alma daquela bela e talentosa
mulher.”
A reportagem
indica, na continuação, que a dor maior que não foi ultrapassada, sequer vencida,
nem mesmo minorada, foi o fato de terem todos, sua mãe e a sociedade próxima,
permanecido em odioso silêncio a respeito da verdadeira origem daquela criança,
quer pela linhagem a matre, quer pela
linhagem a patre. Parece que, com o tempo lhe foi revelada, não
sei por qual caminho ou forma, sua origem ascendente pelo lado materno, mas
jamais soube, até a morte de Clark Gable, que ele era seu pai biológico. Conta a senhora em questão que, ao completar quinze anos,
encontrou-se com ele, e extasiou-se como qualquer outra adolescente que se
encontrasse na presença de tão famoso e sedutor homem. Ela relata que ele a tratou muito bem, foi atencioso e carinhoso, mas a verdade
não lhe foi revelada.
Esta pessoa, por
toda a vida, andou a procura de seu pai, pois certamente sua fantasia avisava
ao seu inconsciente que se o encontrasse, seus problemas maiores advindos da
horrível rejeição e da hedionda farsa cometida em nome do “amor materno”,
talvez fossem minorados, atenuados, acariciados, chorados, paparicados e,
quiçá, expurgados.
Mas não lhe
disseram e ela viveu assim, desejando encontrar seu pai e desejando que ele
fosse lindo, famoso, sedutor e encantador como o modelo masculino de maior
significação, à época, o famoso ator Clark Gable.
Aquele seu olhar
de hoje, ao qual já me referi antes, e que se marcou na minha memória como
triste e desconsolado olhar; penso que não a abandonará até seu leito de morte.
Nada está a indicar que sua tristeza resida no fato de ter sido afastada da
percepção de seu quinhão hereditário, por ocasião da morte de seu pai
famoso. Não foi o que busquei adivinhar
naquele olhar, senão seu próprio e efetivo interesse de ter tido um pai! Ela, que provavelmente também não teve,
verdadeiramente, uma mãe.
O direito que não
pôde exercer, àquele tempo, certamente foi o direito de buscar a sua identidade
biológica paterna, mas foi, também, o direito de buscar, na figura do pai, o
refúgio e a fortaleza adequados para aqueles seus
momentos em que as feridas precisavam ser lambidas, curadas, e ninguém como ele
poderia melhor fazê-lo.
Penso ser este, em
primeiras palavras, antes e excludentemente de qualquer outra conseqüência ou
derivação de natureza patrimonial, o conteúdo e perfil deste direito da
personalidade que se tem procurado chamar de “direito ao pai”.
Não quero dizer,
com isto, que esta busca ou certeza da paternidade encerre-se apenas em
situação de natureza moral e íntima, correspondente somente à
questão de estado e derivada do direto exercício de um direito da personalidade,
e, com isso, afastar a natural ampliação do campo jurídico no que respeita aos
demais direitos subjetivos e aos deveres decorrentes do estado de
filiação. Não. Mas quero dizer, isto sim, que entendo
possível esta ampliação do campo de valores essenciais, enquanto objeto do
direito em questão, e que as suas conseqüências jurídicas – no plano da
patrimonialização principalmente – têm um caráter apenas secundário, se
contempladas em face da gigantesca extensão do que significa, na essência, este
formidável direito que é o direito de se buscar o pai.
Ou não estará
submersa em razão da conclusão de Caio
Mário da Silva Pereira (5) quando afirma que pouco importa se a perquirição
judicial da paternidade venha ou não seguida de pedido pecuniário; este em nada
afetará a natureza daquela, pela razão muito óbvia – diz o insuperável mestre –
de que na ação investigatória o objeto colimado é a declaração da existência de uma relação de parentesco e, se
conseguido isto, estará finda.
Por isso tudo,
afastada a exclusividade patrimonial como centro e cerne da investigação,
desejo considerar que, se por um lado, está em perfeita repleção de razão João
Baptista Villela (6), ao referir que “pensar que a paternidade possa estar
no coincidir de seqüências genéticas constitui, definitivamente, melancólica
capitulação da racionalidade crítica neste contraditório fim-de-século”, por
outro lado, e como no exercício simples de se verificar a
outra face da moeda, também me parece estar repleta de certeza e de verdade a
idéia de que alguém possa pretender tão apenas investigar a sua
ancestralidade, buscando sua
identidade biológica pela razão
de simplesmente saber-se a si mesmo.
Isto tudo porque,
segundo penso, e independentemente da apuração ou verificação de conseqüências
outras, que corram ao viés da pretensão-âmago do investigante, existe inscrito
no coração de cada homem, desde sempre e desde a sua autocompreensão, a
respeito de sua origem, um anseio de conhecer a si mesmo melhor, por meio dos
indícios certos e dos indicadores científicos de sua raiz genética. Um direito,
portanto e antes, puramente natural, cujo exercício nem sempre pode sucumbir à
face de construções humanas, ainda que precipuamente bem intencionadas, como é
o caso da mais que famosa e controvertida presunção legal que costumamos
singelamente chamar de “pater is est”.
Mas volto a falar
do “direito ao pai”, este direito
que, além de dotado da anterioridade própria dos direitos encravados na
realidade e na vida dos homens desde sempre, na verdade deve ser lido e pensado
de modo muito mais elástico do que apenas direito ao genitor masculino. O que quero dizer é que recepciono melhor a
idéia de que ele devesse ser compreendido como “direito aos pais”, incluindo-se aí, também e por certo, o direito à
mãe.
Sabemos todos que
a mãe tem estado ao lado de suas crianças em número de vezes sempre muito maior
que os genitores do sexo masculino, conforme demonstram as estatísticas; isto
não se perde de vista, apesar do caso-exemplo ou hipótese-verdade com que
iniciei esta minha locução. Mas bastava
que se conhecesse um único caso, como o da filha de Clark Gable, por exemplo,
para que eu já não pudesse mais estar autorizada a desdenhar o comentário: por direito ao pai deve-se entender o
direito atribuível a alguém de conhecer, conviver, amar e ser amado, de ser
cuidado, alimentado e instruído, de se colocar em situação de aprender e apreender os valores fundamentais da personalidade e da vida
humana, de ser posto a caminhar e a falar, de ser ensinado a viver, a
conviver e a sobreviver, como de resto é o que ocorre – em quase toda a
extensão mencionada – com a grande maioria dos animais que compõem a escala
biológica que habita e vivifica a face da terra.
Raros são os
animais que entregam suas jovens crias à própria sorte, mas quando o fazem, não
os movem razões vazias ou cruéis, senão o costume ancestral que caracteriza a
espécie, hipótese que, nem de longe, assemelha-se à circunstância humana. Os humanos, ao contrário, naturalmente devem
permanecer junto à cria recém nascida, e assim perdura a situação, por um tempo
significativamente maior que nas hipóteses de outros animais.
Entre nós, e sob a
égide dos comandos constitucionais contemporâneos, destaca-se enfaticamente
esta postura nova e expurgatória da filiação unilateral, de sorte a admitir e
facilitar, ao filho, a busca aos seus pais, mediante o exercício de um sadio
direito de estado que tem, como escopo precípuo, o afastamento da discriminação
odiosa, resultante da distinção quanto à origem. Um direito indisponível e tão pleno que está
incumbido, como atributo essencial de sua individualidade, a filhos advindos de
qualquer relacionamento natural entre pessoas que não sejam casadas entre si,
ou que sejam solteiras, ou divorciadas, ou viúvas, ou separadas ou, até mesmo,
que se encontrem vinculadas pelos laços da consangüinidade.
Este é o legítimo
interesse da criança – quer me parecer – o direito que cada um de nós tem de
buscar, se quiser, a verdade a respeito de sua vinculação genética a um homem
ou a uma mulher, ainda que não seja a estes que a sua alma ordene chamar de pai e de mãe.
Mesmo àqueles que
já têm a seu favor reconhecido um estado de filiação que o liga a um – digamos
assim, apesar de acre a palavra e em desconformidade com meu gosto pessoal – outro pai, quer por força de ter sido
havido na constância do casamento de sua mãe, quer por força de um espontâneo
reconhecimento, prefiro circunscrevê-los, ao lado de todos os demais aos quais
falte mesmo a atribuição jurídica de um pai, no rol
dos que podem exercer esta pretensão de buscar o embrionário liame genético,
compreendendo esta busca como o objeto do “direito
ao pai”.
Por isso, imagino
que este direito da personalidade esteja disponível a um elenco maior de filhos,
além daqueles que se determina chamar de filhos extramatrimoniais, alcançando também os que foram presumidamente
qualificados como filhos matrimoniais, desde que houvessem tido, primeiro, o
cuidado de obter a desconstituição de seu estado, relativamente ao marido de
sua mãe.
Imagino que este
direito, ainda, possa se encontrar disponibilizado àqueles filhos que tenham sido espontaneamente reconhecidos por
pessoa não vinculada biologicamente a eles próprios, bem como pelos filhos
adotivos, assim como pelos havidos por meio de procriação assistida, e ainda,
na abrangente categoria dos extramatrimoniais, também os mais que rejeitados,
os mais que ocultados, os mais que incômodos,
diga-se assim, filhos incestuosos.
Em cada um dos
casos, certamente, concorrerão distintos pressupostos de admissibilidade e, por
via de conseqüência, distintos efeitos outros além do comum a todos os casos,
que é a declaração do estado filial.
Desta forma, em
alguns casos, talvez se devesse promover, antes, a desconstituição do estado
filial anterior, como na hipótese de ocorrência da filiação presumidamente
matrimonial. Se por nenhuma outra razão fosse, seria, ao menos, pelo fato de
que a presunção benéfica apurada pelo legislador no interesse do filho se
desintegraria completamente no momento em que o próprio interessado, até aqui
tão cuidadosamente protegido pelo comando presuntivo da lei, decidisse, por si
mesmo, descortinar a verdade genética a respeito de sua origem. Deve ser dado a ele o direito de fazê-lo, se
assim desejar, como ilação natural de sua condição humana e como inferência
máxima de sua dignidade.
Mesmo na hipótese
de perquirição da origem genética em face de alguém que, não sendo o pai
biológico, nem marido da mãe da criança, tenha operado o reconhecimento da
paternidade, quero entender devesse ocorrer como pressuposto de viabilização da
pretensão, a desconstituição do vínculo parental anteriormente gerado. Nestes
casos, a exigência de atendimento a tal pressuposto se concretizaria por força
de outro fundamento, pois, nesta hipótese, o estabelecimento da filiação não
teria ocorrido como decorrência da presunção atribuível ao legislador, mas
teria ocorrido como conseqüência da escolha perpetrada pelo pai afetivo, que
num gesto de puro amor – quem sabe? – promovera a falsidade jurídica para alcançar o escopo da filiação de fato, mas para ele verdadeira.
Muito dolorosa
esta última hipótese, para ser assim tão serena e descuidadamente tratada? Penso que não, se organizo o raciocínio de
acordo com aquela mesma tônica ou toada de antes, a saber: o direito existe e
se disponibiliza para quem quiser exercê-lo, bastando querer, bastando optar,
se este desejo ou esta opção se consagrarem, verdadeiramente, como o interesse
melhor ou mais adequado do investigante. E então, considerem os senhores, mesmo
sem querer deixar de ter como pai afetivo tão amantíssima pessoa, talvez o
interesse jurídico prevalecente quanto ao exercício do “direito ao pai”, fosse exatamente este que se desdobra na versão “direito à identidade genética”.
Aliás, senhores,
um dos mais bonitos acórdãos a respeito desta amplitude do direito ao pai,
considerando-se a mais vasta e possível extensão do que este direito realmente
signifique, é aquele que teve como relator S.Exa. o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, que reafirma que “saber a
verdade sobre sua paternidade é um legítimo interesse da criança; um direito
humano que nenhuma lei e nenhuma Corte pode frustrar” (7), exatamente porque
refere a uma das mais altas e valoradas expressões da condição e da dignidade
humana.
Prossigamos, para
enfrentar, quiçá, o mais difícil de todos os endereçamentos quando a temática
circunflui o cerne do “direito ao pai”,
para atribuí-lo, também, aos filhos extramatrimoniais incestuosos.
Perguntados de chofre,
responderemos, todos nós – ou a maioria de nós – que eles, é claro, têm
igualmente o direito ao conhecimento de sua ascendência biológica. Respondido, o assunto sempre falece, pois o
constrangimento que o envolve parece conter uma tal espécie de maldição que é
mais conveniente dela não falar tanto.
Enfim, o velho e milenar repúdio que a ordem jurídica perpetrou contra
tais criaturas, havidas de relações incestuosas, esteve impregnado sempre deste
desdém social, ou desta fingida indiferença, quase um
desconhecimento voluntário, que sempre envolveu tão delicado assunto.
Desde muito longe,
no tempo, a lei já se enunciava de sorte a repugnar e a intolerar os casos de incesto, como ocorreu, por exemplo, no
antiqüíssimo Código de Hamurabi que prescreveu: “Se alguém, depois de seu pai,
se deitar sobre o seio de sua mãe, serão os dois queimados”.
Mas nem sempre
foram, no passado mais remoto, exogâmicas (8) as famílias; ao contrário,
percorreu a história da humanidade uma trajetória bastante longa até que se
estabelecesse a correlação entre fertilidade e sensualidade, a correlação entre
o ato sexual e a procriação, sempre como resultado de uma situação de
experimentação, ou seja, de um conhecimento que se produziu empiricamente. Esta
descoberta, que deve ter sido produzida à volta do quarto ou do quinto milênio
antes de Cristo, provocou imensa mutação nas estruturas sociais, religiosas e
comportamentais da humanidade, de molde a implicar na assunção de regras que
reorganizassem o matrimônio e a procriação, buscando afastar o malefício ou o
desconforto da relação incestuosa, para evitar a impureza e a mácula das
famílias, já que incesto – que deriva do latim incestus – significa impuro, não casto.(9)
No entanto, quer a
mitologia, quer a história, quer a própria Bíblia, estão todas estas fontes a
se referir, à exaustão, a episódios de incesto, alguns famosos como o caso de
Zeus que, disfarçado de serpente, manteve relação sexual com sua mãe Réia, ou
de Cleópatra, que se casou com seu irmão Ptolomeus XII, ou de Abraão, que se
casou com sua meia-irmã Sara, para citar apenas alguns.
Mas, enfim,
pululem à vontade os exemplos históricos, bíblicos ou mitológicos, a verdade é
que há, e houve sempre uma verdadeira aversão e um intranqüilizador temor em
face do incesto, aversão e temor estes profundamente arraigados na natureza
humana. Poder-se-ia dizer que “a
proibição do incesto é, hoje, daqueles freios inibitórios que se encontram
incrustados no nosso ego, os quais automaticamente passamos à nossa
descendência, mesmo sem a averiguação dos seus motivos e conseqüências”. (10)
Verdadeiro tabu,
na linguagem da psicanálise, funciona exatamente assim, quer dizer, como um
tecido normativo não escrito que impõe rigorosa noção de limites e de proibido,
valendo por si só, algumas vezes, como sanção à própria transgressão, pois
costuma atormentar o violador, além do violado, como um eficiente instrumento
de tortura. Mas nem por isso, curiosa e tristemente, é possível afirmar que o
incesto in casu, se dá por uma única
vez, quer dizer, de modo isolado e esporádico. Mas, ao contrário, as
estatísticas mostram que 70% das relações incestuosas têm a duração de mais de
um ano.
Aliás, é sempre o
espantoso mundo das estatísticas aquele que mais nos constrange, pois desperta o sentido para a visão do gigantismo da situação esdrúxula, nem
sempre rara. Assim, e conforme estão alinhados estes dados estatísticos,
recolhidos há cerca de seis ou sete anos (11), [“30% das mulheres que procuram
ajuda psiquiátrica, foram vítimas de incesto; que 5% das crianças enviadas à
terapia, estão vivenciando uma história de incesto; que cerca de 50% das
adolescentes que fugiram de casa foram vítimas de incesto; que 74% dos presos
que estão cumprindo pena por algum crime ou por violação dos costumes, tiveram
algum tipo de envolvimento sexual intrafamiliar...”]
Ora, que questão
difícil é esta de se indagar a respeito de eventual “direito ao pai” deferido a uma criança que tenha sido havida em
decorrência de uma relação sexual incestuosa... e mesmo aquela que tenha sido
vítima do incesto paterno! Em alguns
casos – ou até mesmo na maioria deles, quer me parecer – melhor estaria sendo
realizado o direito se a criança fosse mantida longe de seu genitor, violador
do tabu do incesto por ocasião de sua concepção ou, afora a hipótese de ser
incestuosa a filiação, que houvesse sido ele, no lar, o próprio violador sexual
do filho ou filha.
Relembrando que o
direito ao qual nos referimos hoje, enquanto direito da personalidade, é de lata
extensão, de conteúdo plural, de proporção vária, que ele se compõe de
múltiplos subdireitos, faculdades ou faces de um espectro maior, escalonados em
matizes e graduações distintas, e considerando que por força desta
multiplicidade, o seu titular pode exercê-lo por partes, independentemente de
atrair, de uma só vez, todo o extenso rol de suas peculiaridades, talvez não
fosse tão arriscado considerar que o filho incestuoso, como por hipótese se
está a examinar, exercesse seu “direito
ao pai”, se assim desejasse, apenas no que dissesse respeito a um interesse
exclusivamente colimado.
Por isso, tenho
pensado que seja possível incluir entre as múltiplas faculdades que compõem a
vasta essência deste direito, mais esta, que é a referente ao direito de escolher
ou selecionar os aspectos que quer ver exercidos, limitando a extensão do campo
de incidência do exercício, para buscar, no “direito ao pai”, aquilo que importar diretamente ao interesse
jurídico em questão.
Assim, se o filho
pretender o conhecimento de sua ancestralidade genética, poderá obtê-lo,
independentemente de se disponibilizar ao exercício do direito de ser visitado,
por exemplo, ou de conviver com qualquer de seus genitores, se a convivência
lhe causar mais estragos que benefícios, como é o caso de tantas hipóteses da
vida real, entre elas, e por certo, aquilo que se vinha considerando antes, a
respeito dos filhos do incesto.
Enfim, senhores,
estas são as idéias, ainda mal alinhavadas, que trago para que as debatamos,
pois um direito grande, vital e essencial como este –
o “direito ao pai” – só terá o seu
perfil e meandros perfeitamente delimitados se houver, como agora, provocação
com a semeadura de idéias.
Encerro
relembrando a situação de todos os filhos que têm “direito ao pai” – de uma forma ou de outra e conforme a expressão
do direito que pretendam exercer – para regravar, em minhas preocupações,
estórias como a da sexagenária filha de Clark Gable que teve a coragem de
descortinar ao mundo a sua dor, suas frustrações e seus anseios, bem como a de
todos os demais filhos, matrimoniais ou extramatrimoniais, e entre estes os
incestuosos, os quais, por vezes, não têm a mesma coragem de expor as entranhas
de seu sofrimento.
Encerro ouvindo,
sempre em meu cérebro ouvindo, o clamor destes filhos: “Ah, se eu soubesse que ele era meu pai...”
E isto me comove.
Notas:
(1) Cf.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. “Dos
filhos havidos fora do casamento”, in Revista Jurídica da FADAP –
Faculdade de Direito da Alta Paulista, nº 1, 1998, ps. 167- 185.
(2)
Idem.
(3) Idem.
(4) PEREIRA, Caio Mário da Silva. “Reconhecimento de paternidade e seus efeitos”, 5ª ed., Ed.
Forense, 1996, p. 52-53.
(5)
VILLELA, João Baptista. “O modelo
constitucional da filiação: verdade e superstições.”, in Revista Brasileira de
Direito de Família (IBDFAM), nº 2,
jul/ago/set 1999, ps. 121- 142.
(6) REsp. nº 4.987-RJ,
rel.Min.Sálvio de Figueiredo, STJ, 4ª T., por
maioria, DJU de 28/10/91, RSTJ 26/378.
(7) Diz-se exogâmica a sociedade em
que os matrimônios se efetuam com membros de tribos estranhas ou, se dentro da
mesma tribo, com os membros de outras famílias ou de outro clã. O contrário se diz endogâmica.
(8) Sobre o incesto, do ponto de
vista da psicanálise, cf. COHEN, Cláudio, “O
incesto – um desejo”, Casa do Psicólogo Livraria e
Editora Ltda., São Paulo, 1993; e sobre as origens e história da paternidade,
cf. DUPUIS, Jacques, “Em nome do pai: uma
história da paternidade”, Martins Fontes, São Paulo, 1990.
(9) GAVIÃO DE ALMEIDA, José Luiz, “Filiação incestuosa – reconhecimento”,
tese oferecida à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 1985,
para a obtenção do grau de Mestre.
(10) COHEN, Cláudio, “O
incesto...”, cit., Introdução.
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professora-doutora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP e da Faculdade de Direito de Bauru. Diretora da Região Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.