A
IDADE PENAL MÍNIMA COMO CLÁUSULA PÉTREA E A PROTEÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO CONTRA O RETROCESSO SOCIAL
O dia inteiro pelas ruas anda
Enxovalhando, roto indiferente:
Mãos ao bolso olhar impertinente,
Um machucado chapeuzinho a banda.
Cigarro à boca, modos de quem
manda,
Um dandy de miséria alegremente,
A procurar ocasião somente
Em que tendências bélicas expanda
E tem doze anos só! Uma corola
De flor mal
desabrochada! Ao desditoso
Quem faz a grande, e peregrina
esmola
De arranca-lo a esse trilho
perigoso,
De tira-lo p’ra os bancos de uma escola?!
Do vagabundo faz-se o criminoso!...
AMÉLIA RODRIGUES[1]
Agradecimentos
A elaboração do trabalho
seria impossível sem o apoio de Instituições e pessoas a quem quero externar
meus agradecimentos.
À Escola Superior da
Magistratura, pela iniciativa do convênio com a UNISINOS, que oportunizou a
realização do curso e ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,
pelo incentivo ofertado.
Aos professores, pela visão crítica e modo participativo que imprimiram na transmissão de seus conhecimentos.
Ao orientador, Prof. Dr. Lenio Luiz
Streck, pelo incentivo, compreensão e irrestrito apoio, sem os quais nada seria
possível.
Aos colegas de curso, pelo apoio e
convívio estimulante.
A minha mulher, em especial, pela
incondicionalidade de sua compreensão e carinho.
Aos meus filhos, Gustavo, Juliana,
Carolina e Eduardo, pelas inúmeras horas subtraídas do nosso convívio.
A todos os amigos que, de alguma forma, colaboraram para que o desafio
pudesse ser vencido.
O presente
trabalho procura demonstrar que a idade mínima de imputabilidade penal – 18
anos – estabelecida no artigo 228 da Constituição Federal é regra que não pode
ser modificada, pois matéria integrante do núcleo essencial do texto
constitucional. O Estado Democrático de Direito tem a sua estrutura fundada em
princípios que o orientam para a promoção da dignidade humana, não sendo
admissível a existência de alterações constitucionais que impliquem retrocesso
social. A evolução do processo histórico, que resultou na Constituição de 1988,
aponta para a sua legitimidade como obra de poder constituinte originário, não
sendo possível ao poder reformador, por lhe faltar competência para tanto,
alterar decisão de caráter político, livre e soberanamente adotada. A mudança
de paradigma jurídico para o trato da questão da infância e da juventude só
poderá ser percebida no senso comum teórico e realizada materialmente pela via
hermenêutica. A modificação paradigmática choca-se com um modelo que se
perpetua de muito tempo, sendo necessária a sua desconstrução e posterior
reconstrução pela hermenêutica, para ocorrer a revelação da função
transformadora da atual Carta Política, desvelamento esse que se dará por
intermédio da efetivação da interpretação conforme a normatividade democrática
que preside o Estado Democrático de Direito. Descortina-se que a regra da idade
penal mínima é disposição de caráter híbrido, pois, sendo garantia asseguradora
de direito individual, apresenta-se como condição de possibilidade do pleno
desenvolvimento social da infância e juventude.
The present work tried to demonstrate that the minimum
age of penal imputability, eighteen years old, established in the article 228
of the Federal Constitution, is a rule that cannot be modified. The Democratic State
of Right has its structure grounded in standards which lead it to the human
dignity promotion, in a way that the existence of constitutional changes which
imply social backward motion is not allowed. The historical process evolution,
which had the Constitution of 1988 as a result, leads to its legitimacy as an
original power. It is not possible, therefore, for the reformist power to alter
any political decision free and autonomously adopted since it does not have the
required competency in accomplishing that. The juridical paradigm reform
towards the childhood and youth’s issue will only be realized in the
theoretical common sense, and materially carried out through hermeneutics. The
paradigmatic change contrasts to a model that perpetuates, since a long time
ago, being necessary its disarrangement and later rearrangement through
hermeneutics in order to occur the transforming function revelation of the
present ‘Political Letter’. This disclosure will happen through the fulfillment
of its interpretation according to the democratic standard which presides over
the Democratic State of Right. It becomes evident that the rule regarding the
minimum penal age is a disposition of hybrid aspect and, as it is the guarantee
which assures the individual right, it is also presented as being a condition
of possibility of the childhood and youth’s integral social development.
Sumário
ABSTRACT
INTRODUÇÃO
1 UMA UNIÃO
INDISSOLÚVEL - PRINCÍPIOS E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1.1 Os princípios como
conformadores do Estado Democrático de Direito
1.1.1 Breves notas sobre princípios
e regras
1.1.2 As funções dos princípios na
Constituição
1.2 O surgimento do Estado
Democrático de Direito
1.2.1 A opção terminológica por
direitos fundamentais e sua conceituação no sistema constitucional brasileiro
1.2.2 A evolução do Estado
Democrático de Direito e a emergência histórica dos direitos fundamentais
2 O
FENÔMENO CONSTITUINTE E AS LIMITAÇÕES MATERIAIS DE REFORMA DA CONSTITUIÇÃO
2.1 Poder constituinte originário e
poder reformador: distinções - a constituinte de 1987/1988 como poder
originário
2.1.1 Poder constituinte originário
2.1.2 Poder reformador
2.1.3 A constituinte de 1987/1988 como poder
constituinte originário legítimo
2.2 A delimitação do âmbito de
reforma constitucional, através de emenda, possível ao poder reformador
2.2.1 Reforma, revisão, emenda,
diferenciações
2.2.2 A limitação material de
reforma da Constituição
2.2.2.1 Limites materiais explícitos
2.2.2.2 Limites materiais implícitos
2.2.2.3 Alcance da proteção oriunda
dos limites materiais à reforma constitucional
3 O VELHO E
O NOVO PARADIGMA NA QUESTÃO DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA - A HERMENÊUTICA COMO
MEIO DE SUPERAÇÃO
3.1 O controle sociopenal da
infância e juventude - anotações sobre a trajetória do velho paradigma no
Brasil
3.1.1 Tradição – uma idéia a ser
compreendida e considerada
3.1.2 A evolução legislativa
3.1.3 O novo paradigma – a doutrina
da proteção integral
na Constituição
3.2 O caminho hermenêutico para
efetuar a transição para o novo paradigma
3.2.1 O senso comum teórico dos
juristas
3.2.2 Constituir a Constituição – o
modo de efetivar o novo paradigma
4 A
IMPOSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DA IDADE PENAL MÍNIMA ENQUANTO DIREITO DE
CIDADANIA
4.1 A opção política
4.2 Algumas considerações sobre
direitos fundamentais
4.2.1 O caráter aberto dos direitos
fundamentais
4.2.2 Sintéticas anotações sobre as
funções e classificação dos direitos fundamentais
4.3 O reconhecimento de direito
fundamental fora do catálogo pelo Supremo Tribunal Federal e o caráter híbrido
do artigo 228 da Constituição
4.4 A incidência do princípio do
não-retrocesso social na questão da idade penal mínima
4.5 Os tratados internacionais como
impedientes da modificação da idade de imputabilidade penal
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
OBRAS
CONSULTADAS
O tema a ser abordado neste trabalho é o da idade limite para a
inimputabilidade penal, estabelecida em dezoito anos pelo artigo 228 da
Constituição Federal e a discussão acerca do rebaixamento dessa "idade
limite".
Até o advento da vigente Carta Política, a matéria era objeto de atenção
exclusiva da legislação ordinária, sendo regulada, especificamente, pelo
disposto no artigo 27 do Código Penal. A condução da idade mínima para a
responsabilização penal à categoria de norma constitucional implica,
inquestionavelmente, profunda alteração no enfoque jurídico a ser dispensado à
questão.
Isso
porque, de plano, subtrai a possibilidade de qualquer iniciativa do legislador
infraconstitucional em tratar da matéria e, via de conseqüência, imbrica a
inimputabilidade penal com o contexto principiológico que envolve a
interpretação e aplicação da normativa constitucional. Vale dizer, a constitucionalização
da idade penal mínima importa em radical modificação de sua natureza jurídica.
A partir de
tal constatação, foi feita a opção de tratar a matéria sob o prisma
constitucional especificamente, sem qualquer enfoque maior no Direito Penal ou
em razões outras, que possibilitam o debate a respeito de eleição de
critério(s) para o estabelecimento da idade ideal – ou aceitável – para a
imputabilidade penal.
As
eventuais referências sobre o trato penal ou protetivo a respeito da fixação da
idade penal mínima são feitas de forma sintética e subsidiária, com a
finalidade de situar historicamente a matéria. Para além disso, tais digressões referenciais são manejadas, ainda,
para facilitar a exata compreensão da mudança paradigmática que a Constituição
de 1988 acarretou no âmbito da infância e juventude, da qual a idade penal
mínima é indissociável.
Considerando
que o exame da possibilidade ou imposibilidade de modificação da idade de
imputabilidade penal passa, necessariamente, pela verificação de sua inclusão
entre os direitos fundamentais e a plausibilidade de desconstitucionalização
dos mesmos, procura-se trazer uma visão geral desse entrelaçamento. Sendo
inviável o esgotamento de todas essas questões - por extrapolarem o objetivo da
investigação - são efetuados cortes reducionistas, com o exame dos pontos
entendidos como mais diretamente vinculados com a proposta central do estudo.
Nesse
contexto, diante dos princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito em
que se constitui a República Federativa do Brasil (artigo 1º da Constituição
Federal), procura-se verificar se a idade mínima de responsabilização penal é,
ou não, insuscetível de modificação.
Diante da
realidade brasileira, em que a desigualdade social é um fato incontroverso, por
força do modelo economicista adotado, o debate sobre a idade da imputabilidade
penal ganha corpo, pois o aumento da exclusão social implica o recrudescimento
da criminalidade.
A
discussão, entretanto, por parte daqueles que são favoráveis à diminuição da
idade de responsabilização penal, é permeada de emoção - muitas vezes com forte
exploração pelos meios de comunicação social - sem a consideração do papel que
o Estado Democrático de Direito tem como promotor da dignidade humana.
Aliado a
isso, em decorrência da incompreensão do tratamento a ser conferido à infância
e juventude pelo acolhimento da doutrina da proteção integral na Constituição
de 1988, a possibilidade de alteração do artigo 228 tem recebido aval de operadores jurídicos
dogmáticos, entendendo-se por dogmáticos, importante esclarecer, aqueles
operadores positivistas (ou neopositivistas) que não têm uma visão crítica do
sistema jurídico.
Tendo em
vista esses dados de realidade é que se escolheu a matéria a ser investigada,
visando contribuir para que a discussão sobre a idade de imputabilidade penal
seja enfocada pela ótica constitucional, a partir de uma visão principiológica
que impregna o Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, a presente
pesquisa tem por objetivo centrar o eixo da discussão sobre a idade penal
mínima na esfera constitucional, com o afastamento, à medida do possível, da
manipulação de sentimentos e de uma visão acrítica, tanto no aspecto jurídico
como social.
O método de
abordagem adotado foi o hermenêutico[2], centrando-se a pesquisa na
revisão bibliográfica e documental sobre o assunto.
Para a
redação da dissertação, optou-se por uma estrutura bastante simples,
estabelecendo-se apenas quatro capítulos para o seu desenvolvimento.
No primeiro
capítulo, demonstra-se a vinculação indissociável do Estado Democrático de
Direito com a principiologia que preside e dirige a sua existência.
Começa-se
por apontar a superação do positivismo dogmático em relação aos princípios, com
o reconhecimento de que os mesmos deixaram de ter uma função meramente
subsidiária e supletiva para assumir uma posição de proeminência e
direcionadora do agir do Estado Democrático de Direito. Em seguimento,
apontam-se as diferenças entre as normas – princípios e regras – e a
especificação das finalidades precípuas de cada uma, com tópico específico
sobre as funções dos princípios, explícitos e implícitos, na normativa
constitucional.
Na mesma linha de contextualização do Estado Democrático de Direito, segue
um apanhado histórico de sua evolução e, paralelamente, uma notícia sobre a
emergência dos direitos fundamentais em suas diversas gerações ou dimensões.
Isso, após o lançamento de um conceito sobre o que se entende por direitos
fundamentais.
No segundo capítulo, são delineados o fenômeno do processo constituinte, em
sua perspectiva histórica, e as limitações ao poder de reforma da Constituição.
A partir da Revolução Francesa, que se tem como fonte básica da compreensão
atual da teoria do poder constituinte, é feita a distinção entre poder
constituinte originário e poder reformador (poder constituinte derivado).
Efetuada a diferenciação, demonstra-se a condição de poder originário da
Constituinte de 1987/1988, da qual resultou a vigente Carta Política, com
especial atenção para a circunstância de ter sido uma transição constitucional
pacífica, fenômeno relativamente recente
na história constitucional.
Num segundo
momento do mesmo capítulo, discorre-se sobre as limitações de reforma à
Constituição, tanto no que diz respeito aos impedimentos expressos (cláusulas
pétreas) como aos implícitos, havendo ênfase maior sobre a possibilidade de
modificação constitucional através de emenda, pois diretamente relacionada com
o objetivo central do estudo.
No capítulo
terceiro, é anotada a mudança de paradigma no trato da infância e juventude, em
vista do acolhimento, pela Constituição de 1988, da doutrina da proteção
integral, abandonando-se, no sistema jurídico nacional, a doutrina da situação
irregular, que se apresentava estampada no Código de Menores de 1979.
Visando a
demonstrar o arraigamento da idéia de tratamento da criança e do adolescente
(“menor”) de forma coisificada, pesquisa-se, a partir da realidade européia da
Idade Média, a evolução do controle sociopenal da infância e juventude, com
particular enfoque da evolução legislativa brasileira. Após, é analisado, de
modo genérico, o conteúdo do novo paradigma na área da infância e adolescência
– a doutrina da proteção integral – ressaltando-se a sua relação direta com a
valorização da dignidade humana.
Pela
necessidade de implementação do novo paradigma e de como isso deve ser feito,
perquire-se o que é o senso comum teórico dos juristas, além de sustentar-se
que a superação prática e efetiva da doutrina da situação irregular só poderá
acontecer pela via da hermenêutica crítica, com particular atenção para o papel
que deve desempenhar o Judiciário nesse sentido.
No quarto e
último capítulo, analisa-se o viés político da constitucionalização da idade de
imputabilidade penal, o caráter aberto dos direitos fundamentais na
Constituição de 1988, as funções exercidas pelos direitos fundamentais e sua
classificação. Foi feita a opção de enfrentar alguns pontos referentes aos
direitos fundamentais na parte final do desenvolvimento da dissertação, para
facilitar o dimensionamento do caráter de fundamentabilidade da
inimputabilidade penal.
Ao depois,
é feita análise do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) nº
939, pelo Supremo Tribunal Federal, em face de sua importância para a fixação
de uma orientação jurisprudencial a respeito do exame de constitucionalidade de
emenda constitucional, do alcance das cláusulas de intangibilidade previstas na
Constituição Federal (artigo 60, § 4º) e sobre a possibilidade de localização de
direitos fundamentais fora do catálogo elencado no texto constitucional.
Procura-se,
ainda, salientar a dupla dimensão – ou caráter híbrido – da regra prevista no
artigo 228 da Carta Magna, além de sua imbricação com a proibição de retrocesso
social e com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, tratado
internacional que versa sobre direitos humanos.
A
compreensão da possibilidade de mudança da Constituição, sem que isso implique
a desnaturação de sua essência, passa, necessariamente, pelo exame do papel
fundamental que os princípios exercem no Estado Democrático de Direito.
Considerando
que a finalidade central desta pesquisa diz respeito à verificação da
impossibilidade de modificação da idade penal mínima estabelecida na
Constituição[3], impõe-se, modo prévio, tecer algumas breves
considerações sobre a questão dos princípios.
A abordagem
será feita de modo pontual, para que fiquem assentes as noções mínimas sobre a
matéria – no que interessa especialmente para a investigação. Eis que um exame
mais aprofundado da questão principiológica - pela sua amplitude e complexidade
- extrapola o objetivo estabelecido para o trabalho.
Em
seguimento, noticia-se a evolução do Estado Democrático de Direito e o
surgimento dos direitos fundamentais, com a demonstração do imbricamento entre
o evoluir daquele e a aparição ou emergência destes.
Aristóteles
(Metaphysica), após enumerar seis
significados para princípio, sustentou que causa tem os mesmos significados,
pois todas as causas seriam princípios, e observou o que todos os significados
revelados têm em comum: “em todos Princípio é ponto de partida do ser, do devir
ou do conhecer”.[4]
No Estado
Democrático de Direito - como adiante se verá, a lei tem uma função
transformadora - é da sua essência a instrumentalização da lei para que o
vir-a-ser de uma sociedade justa, solidária, onde a promoção da dignidade
humana seja a razão da própria existência do Estado, torne-se uma realidade. E
só será possível a conformação material do Estado Democrático de Direito se, na
sua origem, houver uma base de princípios que oriente o devir, que possa atuar
como norte seguro para que a sua finalidade seja atingida; que o faça ser,
tornando-o uma realidade e não mais uma promessa não cumprida; e, ainda,
permita que se revele aos intérpretes e operadores do Direito.
Sem que no
ponto de partida do ordenamento jurídico – no caso a Constituição – encontre-se
uma base de princípios – explícitos ou implícitos - que oriente a interpretação
do sistema, que lhe dê uma unidade de sentido, o Estado Democrático de Direito
não se realiza, pois o seu ordenamento transformar-se-á numa junção de
preceitos, desprovido de qualquer capacidade de coordenação do todo.[5]
A evolução
do Direito, com a superação do positivismo dogmático, permitiu que os
princípios deixassem de ser fonte subsidiária – aliás, de último recurso, só
quando todas as possibilidades estivessem esgotadas[6] - para assumir um
papel de centralidade interpretativa e aplicativa no ordenamento jurídico. Ou,
conforme CARVALHO, os princípios têm “importância instrumental à superação da
legalidade rasteira”.[7]
Num outro
enfoque, a valorização dos princípios no nível constitucional permite a
afirmação da centralidade antropológica que o Estado deve ter, servindo para que
a sociedade consiga evoluir do fetichismo econômico que lhe foi imposto.[8]
E como o
Estado Democrático de Direito não pode ser pensado sem ser um Estado
principialista, importante a compreensão do que seja e como é a sua atuação,
isto é, como os princípios revelam e efetivam a Constituição instituidora do
Estado Democrático de Direito.
A grande
complexidade social em que vivemos implica que não se possa mais ver – ou
melhor - não permite que as constituições sejam encaradas como mero meio
regulatório das funções estatais no que se refere a sua organização e como meio
de defesa da sociedade contra o Estado, como sustentado pelo liberalismo
predominante no início do constitucionalismo moderno.
A sociedade
mudou, e a doutrina constitucional também, muito embora não se possa falar na
existência de um pensamento homogêneo a respeito do modo pelo qual a
Constituição deve ser interpretada e aplicada.[9]
A mudança social,
que é histórica, gerou alterações radicais no plano jurídico. As normas
jurídicas, na sua generalidade, deixaram de lado um caráter condicional que as
impregnava, em que tinham, basicamente, o fim de estabelecer uma determinada
conduta de acordo com um padrão que, via de regra, era previamente
estabelecido, e não a partir delas especificamente. A isso era anexada uma
sanção pelo descumprimento do preceito normativo, que era implementada pelo
Estado no caso de não-observância. Em outras palavras, a regra era subsunção do
fato ao padrão legal abstrato anteriormente estabelecido. E, sem isso não havia
força normativa obrigatória.
A evolução
histórica exige uma nova postura. Conforme GUERRA FILHO,
“A
regulação que no presente é requisitada ao Direito assume um caráter
finalístico, e um sentido prospectivo, pois, para enfrentar a imprevisibilidade
das situações a serem reguladas – ao que não se presta o esquema simples de
subsunção de fatos a uma previsão legal abstrata anterior - precisa-se de
normas que determinem objetivos a serem alcançados futuramente, sob as
circunstâncias que então se apresentem”.[10]
Ou seja, os
princípios assumem proeminência no sistema jurídico.[11] E, no Direito
Constitucional, tornam-se ferramentas essenciais para a interpretação e
aplicação da normativa constitucional. O descobrir da importância central dos
princípios traz, como conseqüência, a compreensão de que a Constituição é, no
seu todo, uma norma jurídica obrigatória, com o abandono da classificação em
enunciados preceptivos e programáticos. Em verdade, tal classificação só servia
para afastar qualquer obrigatoriedade aos preceitos ditos programáticos; essa
era a concepção civilista – privatística - dos princípios.
Em apertada
síntese, como um dado certo e preliminar, pode-se afirmar que a importância
reconhecida aos princípios estabeleceu, definitivamente, a força obrigatória de
todas a normas constitucionais (princípios ou regras), independentemente de sua
estrutura.
As normas
jurídicas que formam o ordenamento apresentam duas configurações basilares:
princípios e regras. As duas com força normativa, pois superada a questão da
obrigatoriedade em relação aos princípios, como já referido, e as regras, que,
de um modo geral, são as concretizações dos princípios[12], particularizando-os,
nunca tiveram maior problema em relação a isso, uma vez que enquadráveis no
esquema de subsunção do fato ao padrão legal previamente estabelecido.
A distinção
entre um princípio e uma regra nem sempre se apresenta de forma cristalina,
pois vários são os critérios para uma diferenciação. CANOTILHO, após ressaltar
a complexidade da matéria, enumera critérios que podem ser utilizados para a
distinção:
“a) Grau de abstração: os princípios são normas
com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstração relativamente reduzida.
b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações
concretizadoras (do legislador? Do juiz?), enquanto as regras são suscetíveis de aplicação direta.
c) Caráter de fundamentabilidade no sistema de fontes de direito:
os princípios são normas de natureza ou com um
papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no
sistema das fontes (ex.: princípios constitucionais) ou à sua importância
estruturante dentro do sistema jurídico (ex.: princípio do Estado de Direito).
d) ‘Proximidade’ da ideia de direito: os princípios são ‘standards’ juridicamente vinculantes radicados nas
exigências de ‘justiça’ (Dworkin) ou na ‘ideia de direito’ (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente
funcional.
f) (sic) Natureza normogenética: os princípios são
fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função
normogenética fundamentante”.[13]
De tal rol
enunciativo, pode-se extrair que há uma diferença qualitativa entre os
princípios e as regras.[14]
Segundo
ALEXY, o ponto fundamental para distinção em exame é que os princípios são
normas que determinam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro
das possibilidades jurídicas e fáticas que se apresentam. São, os princípios,
“mandados de otimização” - num conceito amplo de mandado, isto é, abarcando,
também, permissões e proibições. O autor, diz, também, que o âmbito das
possibilidades normativas de otimização do princípio fica na dependência de
princípios e regras que lhe são opostos.[15]
Ainda,
conforme o mesmo doutrinador[16], as regras, por sua vez, são normas que
somente podem ser cumpridas ou não. Se a regra é válida, faz-se exatamente
aquilo que determina, nem mais nem menos. Logo, as regras contêm determinações
no âmbito fático e jurídico, não sendo possível um grau de indeterminação no
seu cumprimento; ou valem e são aplicadas, ou não valem e são afastadas.
Do exposto,
pode-se concluir que os princípios revestem-se de um maior grau de generalidade
e abstração do que as regras. Conseqüência disso, tem-se que o conteúdo dos princípios
tem uma dimensão muito mais axiológica[17] do que o das regras,
revelando os valores jurídicos e políticos do sistema em que vigem.
Cumpre
consignar que, ao se afirmar que os princípios possuem conteúdo que recebe uma maior
influência dos valores, não se está a dizer que as regras operam
independentemente de qualquer apreciação axiológica. Essas também estão na
esfera do dever-ser, e como atuam, no mais da vezes, como a
concreção dos princípios, obviamente, sempre apresentam uma imbricação
valorativa.
A distinção
entre princípios e regras tem a sua importância, pois permite visualizar o
caráter fundante daqueles, exercendo um papel de conformador de uma ordem
jurídica, através da sua função de mandado de otimização. Todavia, como bem
aponta ÁVILA, “a definição de princípios jurídicos e sua distinção
relativamente às regras depende do critério em função do qual a distinção é
estabelecida”.[18] O próprio ALEXY não afasta a possibilidade de que ora
se tenha presente um princípio, ora se tenha uma regra tratando do mesmo
conteúdo normativo, conforme se pode ver quando afirma a inexistência de
princípios absolutos e trata da dignidade humana.[19]
Optou-se
pela fixação de uma distinção entre princípios e regras, com a consciência de
que todo critério distintivo ou classificatório apresenta incertezas, mas que
esse se impõe para que se possa pensar e expressar uma idéia.[20] Em
vista da pesquisa que se procede, pois haverá interesse em saber, no tempo
oportuno, qual a natureza do artigo 228 da Constituição Federal - regra ou um
princípio – a distinção qualitativa atende ao seu fim.
Não se
aprofundará, também, o exame da matéria atinente à colisão de princípios e seu
modo de resolução - via ponderação - ou ao conflito de regras, pois isso
desborda a proposta do trabalho.[21]
No que diz
respeito a isso, sumariamente, importante assinalar que, conforme a lição de
ALEXY, a distinção entre regras e princípios apresenta-se clara nos casos de
colisão de princípios e nos conflitos de regras. Comum às colisões e aos
conflitos – de princípios e regras, respectivamente - a circunstância de que a
aplicação de duas normas independentemente, levam a uma incompatibilidade, isto
é, conduz a resultados incompossíveis, pois acarretam dois juízos concretos e
contraditórios de dever-ser jurídico.
A solução
varia para cada espécie de norma.[22]
Em relação
às regras, assevera ALEXY, o conflito só pode ser solucionado pela introdução,
em uma das regras, de exceção que elimine o conflito, ou pela declaração de
nulidade de uma das regras, e, com isso, seja a mesma expurgada do ordenamento
jurídico. Isso porque uma regra vale ou não vale juridicamente, e sua aplicação
a um caso implica que a sua conseqüência jurídica também deve valer.[23]
De outra
banda, ocorrente a colisão de princípios – quando para um princípio algo está
permitido e para outro está proibido - um dos dois princípios deve ceder frente
ao outro. Isso, entretanto, não significa declarar nulo o princípio que não
venha a ser aplicado, ou que haja necessidade de introduzir no princípio
afastado uma cláusula de exceção. O que
sucede é que em determinadas circunstâncias, um princípio tem
precedência, e, em situação distinta, pode ocorrer o contrário, no que se
refere à prevalência de aplicação. A razão disso decorre de que perante casos
concretos os princípios apresentam pesos diferentes e prevalece a incidência do
de maior peso em cada hipótese.[24]
Em suma,
pode-se afirmar que os conflitos de regras resolvem-se na dimensão da validade,
enquanto a colisão de princípios – que só ocorre entre princípios válidos - tem
lugar fora da dimensão da validade, ou seja, a solução dá-se na dimensão de
peso (valor).[25]
Como
síntese da evolução da questão dos princípios, em vista do caráter parcial
dessas breves observações, adota-se a conclusão de BONAVIDES a respeito do
tema:
“Em resumo,
a teoria dos princípios chega à presente fase do pós-positivismo com os
seguintes resultados já consolidados: a passagem dos princípios da especulação
metafísica e abstrata para o campo concreto e positivo do Direito, com
baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem
jusprivatista (sua antiga inserção nos Códigos) para a órbita juspublicística
(seu ingresso na Constituição); a suspensão da distinção clássica entre
princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia
para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação de sua normatividade; a perda
de seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento definitivo de sua positividade
e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e
princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e, finalmente, por
expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo
de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios”.[26]
Fixado o
critério qualitativo para a diferenciação entre princípios e regras, passa-se a
analisar a função dos princípios como definidores do núcleo essencial da
Constituição.
Uma ordem
constitucional instituidora do Estado Democrático de Direito, necessariamente,
é um sistema normativo aberto, composto de regras e princípios.[27]
Tem de ser um
sistema aberto, pois, face à “intenção” de perenidade de toda Constituição, tal
desiderato jamais seria atingido se não houvesse a possibilidade de atualização
dos conteúdos das normas constitucionais. A normativa constitucional mantém-se
porque aprende com a realidade, incorporando novos sentidos ao seu conteúdo[28]
– que exerce uma função interpretativa/diretiva, que se espalha por todo
ordenamento jurídico. Vale dizer, ao buscar no ser-do-mundo novos significados
de verdade e de realização de justiça – que não são estáticos, pois refletem a
pauta de valores da sociedade que evolui - a Constituição ganha vida e força
para continuar a ser a conformadora do Estado e da vida social.
Não pode,
também, afastar-se da condição de um sistema de princípios e regras. Por
primeiro, porque um sistema constitucional fundado somente em princípios teria
uma grande dimensão axiológica, porém seria de grande indeterminabilidade, em
vista do caráter mais geral e abstrato dos princípios. E sendo um conjunto de
conteúdos abstratos, não exerceria a sua função normativa, pois ficaria quase
que exclusivamente na esfera axiológica (juízos de valor), perdendo a sua
condição deontológica (dever-ser), que é essencial para uma função normativa
que outorgue segurança jurídica. Em segundo lugar, porque a função da regra é
densificar princípios, tornando-os de mais fácil realização ou otimização. Além
disso, um sistema somente de regras padeceria de falta de unidade
interpretativa, pois lhe faltaria o fio condutor de ligação entre as diversas
regras, sendo que tal elo de concatenação é feito pelos princípios.
Os
princípios, como já referido, são os sustentáculos do sistema jurídico,
impregnando-o em seu todo, pois servem para fixar a interpretação e integração
de todas as suas normas.[29]
Os
princípios, ao ordenarem o texto constitucional no que diz respeito aos fins a
serem alcançados pelo Estado e sociedade no Estado Democrático de Direito, dão
o contorno ou a diretriz de conformação do ordenamento jurídico regulado pela
Constituição. Por serem a base da Lei Maior, sem a qual não há um sistema
organizado, funcionam como vetores de interpretação de toda ordem jurídica.
Impossível
pensar em interpretação jurídica constitucional e infraconstitucional válida –
no sentido de ter valia, serventia, aproveitabilidade - que não faça um rebate
da norma a ser interpretada/aplicada com o sistema de princípios que informam o
sistema jurídico. No nível constitucional, para estabelecer qual o princípio
que deve preponderar no caso concreto de aplicação de uma norma; em relação à
normatividade infraconstitucional, para verificação de sua adequação ao sistema
principiológico da Constituição. E, em caso de não estar em conformidade, de
ser afastada a sua incidência, por presente vício insanável, o da inconstitucionalidade.
Os
princípios também dão a unidade sistêmica da Constituição, fazendo a integração
de suas diversas normas, interligando-as em conexões de sentido, pois somente
perante uma estrutura normativa referenciada entre si é que será possível uma
perfeita interpretação, que, necessariamente, tem de ser sistêmica.
E para que
isso seja possível, essencial a compreensão de que a conexão a ser feita é
entre as normas e não entre os textos. Há que se fazer o esclarecimento, pois,
em que pese a corriqueira utilização de texto e norma como sinônimos, trata-se
de realidades distintas.
A norma é o
resultado de uma interpretação, isto é, representa o significado de um texto ou
disposição de norma. Conforme STRECK,
“faço a
distinção entre texto (jurídico) e norma (jurídica). Isto porque o texto,
preceito ou enunciado normativo é alográfico. Não se completa com o sentido que
lhe imprime o legislador. Somente estará completo quando o sentido que ele
expressa é produzido pelo intérprete, como nova forma de expressão. Assim, o
sentido expressado pelo texto já é algo novo,
diferente do texto. É a norma. A interpretação do
Direito faz a conexão entre o aspecto geral do texto normativo
e a sua aplicação particular: ou seja, opera sua inserção
no mundo da vida. As normas resultam sempre da interpretação. É a ordem
jurídica, no seu valor histórico concreto, é um conjunto de interpretações, ou seja,
um conjunto de normas. O conjunto das disposições (textos, enunciados) é uma ordem jurídica apenas potencialmente, é um conjunto de possibilidades, um conjunto de normas potenciais. O significado (ou seja, a norma)
é o resultado da tarefa interpretativa”.[30]
Para além
dessas funções, os princípios funcionam como identificadores do núcleo político
essencial da Constituição.
A
Constituição Federal consigna os princípios fundamentais nos artigos 1º a 4º,
no seu Título I – Dos Princípios Fundamentais.[31] A partir daí, mais o
que contém o seu preâmbulo, é permitido verificar quais são os princípios
explícitos – isto é, expressos na Lei Magna - que são tidos como fundamentais
para a caracterização do núcleo essencial (imodificável, pode-se dizer) da
Constituição.
É certo que
uma Constituição não necessita ter um preâmbulo como um elemento essencial.
Todavia, muitos textos constitucionais apresentam-no, pois o nascimento de uma
Constituição não é algo corriqueiro na vida dos povos. As Constituições são
feitas, normalmente, em momentos de ruptura histórica ou de transições
político-sociais. E, em razão disso, trazem um preâmbulo que expressa o momento
histórico vivenciado pela Nação, não havendo um padrão, critério ou regra para
a sua execução configurativa e, também, de conteúdo.
O preâmbulo
é um texto de conteúdo primordialmente político – muito embora também possa
apresentar disposições de outra ordem - de forte valor simbólico; mas nem por
isso deixa de ter um caráter jurídico; vale dizer, de onde se extraiam
conseqüências normativas.
Tem-se que
o expresso no preâmbulo de um texto constitucional, por integrar esse e ter origem
na mesma fonte – o Poder Constituinte – é Constituição. Aliás, no que se refere
ao caráter formal, inviável qualquer entendimento em sentido contrário.
Ressalta do
preâmbulo da Constituição de 1988[32] o seu caráter principiológico. E
tanto é assim, que do cotejo da declaração preambular com os princípios
fundamentais indicados no Título I – artigos 1º a 4º da Constituição - verifica-se que há grande
confluência de sentidos.
É certo que
os princípios enunciados no preâmbulo não podem ser invocados isoladamente para
a concretização de direitos – e nem se pode alegar inconsitucionalidade por
afronta aos mesmos - pois, conceitual e tecnicamente, a força normativa da
Constituição advém de seu conjunto. Mas nem por isso o preâmbulo perde a sua
significação jurídica, pois a sua leitura no contexto da Constituição também
contribui para a clarificação de qual é o núcleo político intangível da Carta
Política.
Além dos
princípios fundamentais referidos nos artigos do Título I, outros princípios -
ou princípios decorrentes daqueles, que funcionam como explicitação dos
indicados como fundamentais - emergem de distintos locais da Constituição e
também integram o núcleo essencial.
Como
exemplo, podemos citar o princípio da prioridade absoluta que, a família, o Estado
e a sociedade devem conferir à criança e ao adolescente para que tenham um
desenvolvimento pleno e sadio – artigo 227[33].
Sem a menor dúvida, pode-se afirmar que a
proteção normativa outorgada à infância e juventude é uma explicitação do
princípio da dignidade humana. Mas o Constituinte acrescentou um plus, tornou a consecução plena de tal
princípio prioritária em relação à
criança e ao adolescente. E esse acréscimo – mesmo tendo ocorrido fora das
disposições do Título I - erige a total preferência estabelecida como um
princípio fundamental, integrativo do núcleo essencial da Constituição.
Por fim,
importante tecer algumas considerações sobre a possibilidade de princípios
implícitos integrarem o núcleo essencial da Constituição.
A ordem
constitucional não se restringe à soma dos dispositivos descritos na Carta
Magna. Tratando-se de um sistema aberto, perfeitamente possível a localização –
via interpretação, a partir dos valores acolhidos pela Constituição e de seu
sistema - de princípios que não se encontrem enunciados formalmente. A ausência
de referência expressa, entretanto, não lhes retira o status de princípio constitucional.
Logicamente,
tais princípios não podem ser “criados” ao talante de eventual intérprete,
surgindo do nada. A descoberta, necessariamente, passa por uma interpretação
ciosa, que leve em conta todo o sistema constitucional, sendo de extrema
importância, na revelação dos princípios implícitos, o trabalho da doutrina e
da jurisprudência.
Identificado
o princípio implícito – e como exemplos podemos citar: a supremacia do
interesse público, da proporcionalidade - há que se verificar se o mesmo tem
natureza fundamental, essencial para a preservação da Constituição. Presente
tal caráter, sem a menor dúvida que integra o núcleo essencial da Lei Magna.
E sendo um
princípio de estatura constitucional, não há que se falar em hierarquia entre
princípios explícitos ou implícitos. Em sendo assim, pode ocorrer colisão entre
os mesmos, que deverá ser solucionada diante do caso concreto, sem qualquer
consideração sobre ser ou não um princípio explícito.
Passa-se,
agora, ao exame da análise evolutiva do Estado Democrático de Direito e dos
direitos fundamentais que emergiram no decorrer da história.
Após o
exame de caráter mais geral dos princípios, nesta seção, tem-se a visualização
do Estado Democrático de Direito como meio de realização e garantias de
direitos, bem como do dimensionamento dos princípios na sua conformação.
Importante salientar,
também, que a utilização da terminolgia gerações de direitos, quando da notícia
evolutiva do Estado Democrático de Direito, é feita num caráter facilitador da
compreensão do surgimento dos direitos fundamentais. Vale dizer, a
especificação dos direitos fundamentais em gerações é manejada como uma
estratégia de demonstração da evolução histórica de tais direitos, visto que,
sendo todos direitos fundamentais – independentemente da geração a que
pertencem - inexiste hierarquia de precedência de uns sobre os outros.[34]
O certo é que, em situação de colidência de interesses protegidos por direitos
fundamentais distintos, no caso concreto é que se poderá verificar qual deve
preponderar.
Antes de
enfocar a evolução do Estado Democrático de Direito e a emergência dos direitos
fundamentais, justifica-se a adoção do uso da terminologia direitos
fundamentais, em detrimento de várias outras designações. Visando facilitar o
entendimento do significado dos direitos fundamentais, desde logo, fixa-se um
conceito.
Cumpre
salientar que a questão específica dos direitos fundamentais, ainda que de
forma não exaustiva, será retomada no quarto capítulo. Optou-se por isso, já
que a compreensão do caráter de fundamentabilidade dos mesmos está diretamente
ligada à sustentação da impossibilidade de modificação da idade penal mínima e
será em tal capítulo que se tratará mais especificamente disso.
Várias são
as expressões utilizadas para designar os direitos essenciais dos seres humanos, que merecem
relevo constitucional.
Como bem
observa LOBATO, o conhecimento das particularidades das várias designações dos
direitos inerentes à pessoa humana é útil para “a correta compreensão do
significado jurídico-constitucional dos direitos fundamentais”.[35] A
partir disso, pode-se afirmar, até, que, através da evolução da nomenclatura
utilizada, consegue-se ter uma panorâmica da significância que tais direitos,
paulatinamente, passaram a ter para os ordenamentos constitucionais
positivados. Em outras palavras, as modificações designativas acabam por
espelhar o avanço da sociedade, que, dando maior importância à pessoa humana
como razão última de sua existência, passou a ter como essencial o direito a
uma vida digna para todos.
Em vista da
proposta do presente trabalho, cujo eixo central é examinar um dado específico
que se entende incluído entre os direitos fundamentais, deixa-se de fazer uma
análise dos significados das várias denominações utilizadas - direitos humanos,
direitos do homem, direitos subjetivos públicos, liberdades públicas, direitos
individuais, liberdades fundamentais, direitos humanos fundamentais, além de
outras - e passa-se, tão-somente, a justificar a opção por direitos
fundamentais.
Tratando-se
de pesquisa que tem por escopo o trato do direito constitucional positivo
brasileiro, opta-se pela expressão direitos fundamentais, na esteira de uma
tendência internacional com origem na Alemanha. LUÑO assinala essa tendência,
observando que o designativo direitos fundamentais é utilizado para referir os
direitos humanos positivados na normativa interna dos Estados, enquanto essa
última é mais usual no plano das convenções e declarações internacionais.[36]
Aliás, a
terminologia direitos fundamentais é adotada pela Constituição, que a refere em
seu Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, abrangendo os direitos
inerentes à dignidade do ser humano, como se pode ver dos capítulos que
integram tal título, sem embargo da existência de direitos fundmentais em
outros locais do texto constitucional.
Como
explicita SARLET, tal opção terminológica da Constituição – que tem caráter
inovador na nossa tradição constitucional - açambarca todas as espécies ou
categorias de direitos fundamentais positivados.[37]
Estabelecida
a razão, ainda que sinteticamente, da expressão a ser utilizada, consigna-se
que, cada vez mais, há uma aproximação entre os conteúdos integrantes dos
documentos internacionais de direitos humanos e os direitos fundamentais
positivados nos textos constitucionais dos Estados, especialmente em relação ao
que diz respeito à dignidade humana.
Importante
trazer, desde logo, um conceito, para que se tenha a noção exata de qual o
significado atribuído a direitos fundamentais no curso da investigação.
Adota-se a
definição formulada por SARLET, pois a mesma é abrangente e leva em conta os
aspectos formais e materiais do direitos fundamentais presentes na nossa
Constituição:
“Direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas posições jurídicas
concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional
positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentabilidade em sentido
material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera
de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentabilidade formal), bem
como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados,
agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição
formal (aqui considerada a abertura material do Catálogo)”. [38]
Feitas estas breves considerações introdutórias, passa-se ao exame da
evolução do Estado Democrático de Direito.
O Estado
Democrático de Direito decorre de um processo evolutivo.
Para
compreensão de seu desenvolvimento e conformação, deve-se remontar à origem do
Estado Moderno, entendendo-se esse como: “aquele Estado no qual aparece
unificado um centro de tomada e implementação de tomada de decisões,
caracterizado pelo poder soberano incontrastável sobre um determinado espaço
geográfico – território”.[39] O Estado Moderno apresenta-se com uma base
dúplice. Em uma vertente, temos o Estado Absolutista, em que o rei encarnava o
próprio Estado. A outra vertente é a do Estado Liberal, que é a que interessa –
num corte reducionista, como é o adotado nestas breves notas explicativas –
para que se chegue ao Estado Democrático de Direito.
O
liberalismo, oriundo das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX,
acompanhou e favoreceu o desenvolvimento da economia capitalista. Funda-se o
Estado Liberal, basicamente, na limitação da intervenção estatal, na liberdade
individual e no dogma de que a sociedade regula-se espontaneamente. Ou, em
outras palavras, o Estado restringe a sua atuação aos aspectos de monopolização
da violência física e do poder jurídico, abstendo-se de qualquer intervenção
nos domínios econômico e social, que são considerados estritamente privados.
Há, portanto, no Estado Liberal, a predominância do privado.[40]
O Estado
Liberal – visto exclusivamente na perspectiva de criação de direitos - surgiu
como tentativa de contenção do poder dos monarcas, em decorrência do
fortalecimento da burguesia ascendente, gerando direitos individuais. Vale
dizer, visava a assegurar o indivíduo contra os desmandos do Estado ou dos
governantes.
A nota
básica do Estado Liberal de Direito, portanto, é uma limitação jurídico-legal
negativa. E sua finalidade era a garantia dos cidadãos contra a eventual
atuação do Estado, que viesse a impedir ou constranger a sua ação cotidiana.[41]
Em suma, o
Estado Liberal de Direito veio para estabelecer instrumentos jurídicos que
assegurassem o livre desenvolvimento individual, paralelamente à existência de
restrições impostas ao atuar positivo do Estado.
Surgiram aí
o que se chama de direitos fundamentais de primeira geração. A nota principal
desses é a garantia individual; de regra, implicam uma abstenção do Estado.
E por se
tratar de direitos garantidos pela abstenção (liberdades negativas), são,
atualmente, os mais facilmente efetivados.[42] Ou, melhor dizendo, os
direitos de liberdade tem maior efetividade, pois a sua maior parte “está
consignada em normas constitucionais preceptivas e exeqüíveis por si mesmas e o
seu exercício torna-se possível desde que estas sejam aplicadas”.[43]
Avançando,
chegamos ao Estado Social de Direito, em que, além das garantias individuais
(ideário liberal), agrega-se a questão social. E isso decorre da conjuntura
social que se torna mais complexa, fazendo com que o Estado também passe a
atuar através de uma prestação positiva.
O Estado
Social desenvolveu-se a partir da Revolução Industrial, pois a transformação
social gerada pela mudança dos métodos de produção - desfigurando rapidamente
as cadeias produtivas até então existentes[44], bem como os laços
tradicionais de solidariedade familiar e territorial - acabou obrigando a
intervenção estatal, a fim de solucionar/mitigar os problemas decorrentes da
massificação das necessidades.
É sabido
que a intervenção estatal na solução de questões sociais deu-se por força da
luta da classe trabalhadora que se formou, iniciando-se pela regulação de
direitos atinentes às relações de trabalho, previdência e assistência social.
E, ainda, os problemas decorrentes da formação de aglomerados urbanos –
transporte, saneamento, habitação, educação, etc.[45]
Não se pode
olvidar, entretanto, que a maior intervenção estatal também atendeu aos
interesses do projeto liberal que se redesenhava. Vale dizer, a estruturação do
modelo intervencionista serviu para alavancagem do processo produtivo
industrial, pela assunção, por parte do Estado, de investimentos pesados em
infra-estrutura – v.g.: construção de
estradas, geração de energia, fornecimento de financiamentos para
desenvolvimento de projetos, etc.
O certo é
que a modificação das relações de produção – geradora de conflitos e tensões,
próprios da industrialização e da paulatina organização dos não-detentores dos
meios de produção - fez com que fosse tentado um equilíbrio. Não com o intuito
de gerar igualdade entre todos, mas de manter a litigiosidade social em um
nível de suportabilidade.
É dentro de
tal contexto que emergem os direitos fundamentais de segunda geração, ou seja,
os direitos que implicam uma prestação de natureza positiva do Estado, que
passa a ter uma função promocional social, para assegurar um mínimo de
dignidade ao cidadão.[46]
No Estado
Social de Direito, a lei assume um papel de fazer o Estado agir de uma forma
concreta, facilitando benefícios. Deixa de existir aquela excessiva
centralização no individual, pois “o personagem central passa a ser o grupo que
se corporifica em cada movimento social”[47].
Observa-se
que, tanto no Estado Liberal de Direito como no Estado Social de Direito,
tem-se uma adaptação social sem a modificação básica de sua finalidade.
O Estado
Democrático de Direito, que representa um avanço em relação aos modelos
anteriores – que nem sempre são democráticos - não é uma revolução na estrutura
social. O Estado Democrático de Direito não é uma ruptura, um corte, para um
outro modelo de Estado.
O novo do
Estado Democrático de Direito é a incorporação de novas perspectivas ao Estado
Social de Direito, isto é, sem afastar-se das garantias liberais (direitos
individuais) e da exigência de prestação positiva do Estado (questão social),
ao assumir a feição de democrático, o Estado passa a ter como objetivo a
promoção da igualdade e da solidariedade.
No Estado
Democrático de Direito, não basta mais a limitação e a função promocional, há o
acréscimo da finalidade de tornar presente a perspectiva da igualdade com o
contorno específico de garantir, por intermédio do ordenamento jurídico também,
as condições mínimas de vida para o indivíduo/cidadão e para a comuna.
Como aponta
MORAIS, o Estado Democrático de Direito visa à transformação do status quo, aparecendo a lei como
instrumento de transformação da sociedade, pois é pretendida a reestruturação
das relações sociais.[48]
É no âmbito
do Estado Democrático de Direito que surgem os direitos fundamentais de
terceira geração[49] – direitos de solidariedade; direito ao desenvolvimento
sustentado, à paz e a um ambiente protegido; direito a uma não-perniciosa
manipulação genética – e até de quarta e quinta gerações[50], sem
embargo de reconhecer-se que não há um consenso classificatório em relação aos
direitos integrantes da terceira e subseqüentes gerações.
No Estado
Democrático de Direito, mais que uma mudança de meios ou de substância (e por
isso não representa uma ruptura com o Estado Liberal e com o Estado Social de
Direito), opera-se a modificação de finalidade de sua normatividade.[51]
Isso porque se impregna o Estado, em sua totalidade, do qualificativo
democrático[52], e, por conseqüência, a ordem jurídica que lhe é
integrativa.
A
reestruturação social que preside a finalidade normativa do Estado Democrático
de Direito é a da promoção da igualdade com democracia, e isso, sem dúvida,
passa pela solução dos problemas de uma existência material digna do ser
humano. Solução, por óbvio, que não ocorrerá de forma mágica ou instantânea[53],
mas através da implementação constante – e que necessita de permanente
vigilância para que não ocorra desvirtuamento – dos princípios que norteiam o
Estado Democrático de Direito.
Importante
a consignação dos princípios do Estado Democrático de Direito, pois dão conta
de sua conformação e finalidade. Pela clareza de forma e conteúdo na elencação
de tais princípios, adota-se o disposto por STRECK e MORAIS:[54]
“A – Constitucionalidade: vinculação do Estado Democrático de Direito a uma
Constituição como instrumento básico de garantia jurídica;
B – Organização Democrática da Sociedade;
C – Sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos, seja como
Estado de distância, porque os direitos fundamentais
asseguram ao homem uma autonomia perante os poderes públicos, seja como um Estado antropologicamente amigo, pois respeita a dignidade da
pessoa humana e empenha-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da
solidariedade;
D – Justiça Social como mecanismos corretivos das desigualdades;
E – Igualdade não apenas como possibilidade formal, mas, também, como
articulação de uma sociedade justa;
F- Divisão de Poderes ou de Funções;
G – Legalidade que aparece
como medida de direito, isto é, através de um meio de ordenação racional,
vinculativamente prescritivo, de regras, formas e procedimentos que excluem o
arbítrio e a prepotência;
H – Segurança e Certeza Jurídicas”.
No Estado
Democrático de Direito, passa-se a ter um ordenamento jurídico que fica
comprometido com a realização democrática da justiça social, que deve promover,
de forma participativa, a convivência numa sociedade livre, justa e solidária.
Isso, entretanto, não ocorrerá de uma forma dadivosa, decorrente do atributo
transformador da lei no Estado Democrático de Direito. Advirá, com certeza, da conscientização
- da sociedade em geral e dos operadores jurídicos em especial - do que implica
a qualificação de democrático do Estado. E tal não é pouco, pois, além do risco
de utilização do direito como meio de opressão/manutenção de estruturas e relações
sociais arraigadas, através da dominância do discurso jurídico desconectado da
realidade, há que se suplantar, também, a visão dogmática predominante nos
meios jurídicos nacionais.
A
concretização desse Estado é a oportunidade de alcançar a modernidade prometida
e nunca atingida no Brasil. Em tal modernidade, a ordem jurídica, como agente
transformadora/promovente da integração social dos excluídos tem de estar
impregnada da tensão democrática, sob pena de transformar-se – ou permanecer -
em puro e simples meio de controle social, fundado numa normatividade de
articulação lógico-formal, tão-somente.
E a Carta
Política de 1988 põe ao alcance da sociedade brasileira a possibilidade de
concretização do Estado Democrático de Direito. LEAL bem sintetiza a idéia:
“Pode-se
afirmar que, como referencial jurídico, a Carta de 1988 alargou
significativamente a abrangência dos direitos e garantias fundamentais, e,
desde o seu preâmbulo, prevê a edificação de um Estado Democrático de Direito
no país, com o objetivo de assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos”.[55]
Vale dizer,
ainda, que o Estado Democrático de Direito só se concretizará quando não for
mais possível qualquer consenso autoritário e a vida social for presidida pela
diversidade libertadora da democracia, que tem na Constituição sua fonte
primária de irradiação, já que é a conformadora primeira do Estado. Logo,
essencial que todo operador do direito procure a maximização da efetividade do
texto constitucional, pois o processo de avanço social só acontecerá com a
potencialização do interpretar efetivante das normas constitucionais.
Neste
capítulo, procura-se demonstrar a origem e legitimidade do poder constituinte
para estabelecer um regramento constitucional, diferenciando-o do poder de
reforma, que se entende uma criação daquele.
Feita a
distinção de caráter geral, particulariza-se a situação em referência ao Poder
Constituinte de 1987/1988, que foi o criador de nosso vigente texto
constitucional. Examinado o momento histórico de sua ocorrência, sustenta-se
ter sido o mesmo um autêntico poder constituinte originário, que, portanto, deu
origem a uma Carta Política legítima, pluralista, democrática, que deve ter
seus princípios preservados.
Dentro de
uma perspectiva da necessidade de preservar os avanços sociais conquistados na
conformação do Estado Democrático de Direito brasileiro, são analisados os
limites materiais de reforma à Constituição. A ótica central disso é no sentido
de que as limitações materiais – expressas ou implícitas - têm a finalidade de
preservar a Constituição, salvaguardando-a de reformismos de ocasião, mas sem
que isso venha a servir de entrave à incorporação das mudanças que se fizerem
necessárias, pois a reforma também é um meio de vivificação da ordem
constitucional.
Faz-se
essencial estabelecer a diferença entre poder constituinte originário – que
cria uma Constituição de forma livre e soberana – e poder reformador, que é
instituído/criado pelo poder originário na obra de sua criação. Isso porque,
sendo um derivado, não pode agir de forma a desfigurar ou modificar
completamente a obra (Constituição) originária.
Outra questão
que não pode ser olvidada, em vista da Carta Constitucional de 1988, diz
respeito à demonstração da legitimidade – como poder originário – do
Constituinte de 1987/1988, para que se entenda a impossibilidade de modificação
da idade de responsabilização penal fixada na Lei Maior.
Qualquer
abordagem que se faça da questão constitucional implica, necessariamente, uma
visitação do político e do histórico. É praticamente impossível uma abordagem
puramente formal nesse campo.
Dentro
dessa ótica, impossível um enfoque constitucional no Brasil – como de resto em
toda América Latina – que se afaste da influência do chamado mundo ocidental,
pois a tradição política e cultural dominante, por força da colonização
européia, assim nos insere. E tanto é assim, que, em regra, os direitos dos
povos originários da América são tratados como direito de minoria.
A idéia de
Constituição – como se pode ver da teoria constitucional em nosso meio –
vem/está impregnada de uma idéia já “universalizada” (pelo menos no Ocidente)
de que uma Constituição é o meio pelo qual se dá a conformação do Estado, o
modo de atuação de seus órgãos e os valores políticos-sociais que (pelo menos
em tese) direcionam o Estado. Em termos de América Latina, essencial a ressalva
de que isso pode ocorrer em tese, pois é corriqueiro o descolamento da
Constituição formal/escrita da Constituição “real”.
Como alerta
BOBBIO, muitas vezes, a linguagem dos direitos se apresenta ambígua e utilizada
como mera retórica, pois, solenemente declarados (os direitos), permanecem no
papel, praticamente sem qualquer concretização[56].
Além disso,
são pontos também “universalizados” princípios e conceitos - tanto de ordem
jurídica como política - que tiveram sua formação histórica inicial na Europa.
Cita-se, como exemplo, o conceito de democracia, os princípios que informam
nuclearmente as constituições – dignidade humana, liberdade, igualdade, entre
outros.
Importa,
agora, examinar o conceito de poder constituinte originário e reformador,
fixando suas diferenças para que, adiante, possa-se demonstrar a legitimidade
do Poder Constituinte de 1987/1988 e afirmar-se a presença de limitações
insuperáveis para o constituinte derivado (ou instituído) quando se pensar em
reforma via emenda constitucional.
Numa
abordagem inicial, isto é, despregada da noção de legitimidade democrática,
pode-se dizer, conforme SCHMITT, que poder constituinte é a vontade política
cuja força ou autoridade é capaz de fazer concreta a decisão de conjunto sobre modo
e forma da própria existência política, determinando, desse modo, a existência
de uma unidade política como um todo.[57] Como assevera BONAVIDES, do
ponto de vista formal/instrumental, o poder constituinte sempre existiu e
existirá, pois é o meio através do qual, via Constituição, conforma-se o Estado
e a estrutura da sociedade política.[58]
É inegável
que, para compreender a evolução do que é o poder constituinte, importantes são
o constitucionalismo inglês e o constitucionalismo americano. O primeiro tem
uma evolução histórica de assegurar privilégios e liberdades à nobreza e ao
clero, fazendo com que o governo (o rei) tivesse moderação no agir.
O
constitucionalismo americano, por sua vez, tem como nota básica o
reconhecimento de uma cidadania igualitária – igualdade jurídica entre homens
livres - a salvaguarda da liberdade individual e a sujeição dos poderes de
governo ao consentimento do povo.
CANOTILHO
assim anota as características básicas antes referidas:
“(...) às
‘magnas cartas’ é estranha a dimensão projectante de uma nova ordem criada por
actor abstracto (‘povo’, ‘nação’). Inerente à ‘ordem natural das coisas’
estava, pois, a indisponibilidade da ordem política, a incapacidade de querer,
de construir e de projetar uma ‘ordem nova’, bem como a rejeição de qualquer
corte radical com as estruturas políticas tradicionais”.
...
“(...) o
poder constituinte, no figurino norte americano, transporta uma filosofia garantística. A Constituição não é fundamentalmente um projecto para
o futuro, é uma forma de garantir direitos e de limitar poderes. O próprio
poder constituinte não tem autonomia: serve para criar um corpo rígido de
regras garantidoras de direitos e limitadoras de poderes”. [59]
A origem do
poder constituinte democrático, entretanto, funda-se no constitucionalismo
francês, ao tempo da revolução burguesa de 1789.[60]
A França
pré-revolucionária vivia momentos de ebulição, em que se faziam presentes todos
os ingredientes para que o processo de ascensão da burguesia se manifestasse,
tornando-se o grande centro de irradiação da concepção liberal-burguesa que se
expandiu por todo o mundo.
A situação
geográfica da França, localizada no continente – e não numa ilha, como a
Inglaterra, ou do outro lado do Atlântico, como a América – em muito contribuiu
para que seu movimento revolucionário (que foi realmente inovador) ganhasse
repercussão em todo mundo europeu.
Pode-se
ver, a grosso modo, na gênese do processo revolucionário, um somatório de
elementos. De natureza socioeconômica: o excessivo luxo na corte, o
empobrecimento da nobreza – concomitantemente à acumulação de riquezas por
parte da burguesia - e as dificuldades de obtenção de trabalho em Paris.
Intelectualmente: “novas idéias”, fortemente influenciadas pelo liberalismo
inglês, além de grande prestígio do racionalismo. Cumpre consignar que não cabe
aqui uma investigação histórica de tais condições, pois a finalidade é
demonstrar, tão-somente, a razão pela qual se afirma que a base do que se
entende por poder constituinte democrático surgiu na França. Em razão disso,
far-se-á um corte, adentrando-se, pontualmente, no exame da formulação do
conteúdo teórico do poder constituinte (pouvoir
constituante), o que importa para uma distinção entre poder constituinte
originário e poder constituinte derivado ou, mais precisamente, poder
reformador.
A grande
questão política da Revolução Francesa foi encontrar um novo titular da
soberania - ou poder supremo - em substituição ao rei. Visto que, a partir do
momento em que a monarquia deixava de existir ou, pelo menos, apresentava-se
sem forças como centro de poder político, ocorria uma completa desestruturação
de toda a arquitetura política vigente. E naquele momento histórico, a nobreza
e o clero – dois dos três estamentos oficiais da estrutura social da França –
por suas vinculações com os privilégios que estabeleciam a opressão sobre o
povo e impediam a liberação econômica postulada pela ascendente burguesia, não
tinham legitimidade e força para reivindicar o exercício do monopólio da
soberania.
Conforme
COMPARATO,[61]
“Restava,
pois, aquele que, à míngua de denominação mais precisa, era chamado ‘o terceiro
estamento’ (le Tiers Etat), cuja identidade social
era, por assim dizer, negativa: compunham-no todo aqueles que, excluídos da
nobreza e do clero, não gozavam dos privilégios ligados a estas duas ordens
superiores. O Tiers Etat era, na verdade, um
aglomerado social heterogêneo, formado de um lado pela classe burguesa: o
conjunto de comerciantes de todos os gêneros, os profissionais liberais e os
proprietários urbanos que viviam de renda ou de juros (rentiers ou capitalistes). Era
formado, ademais, pelo enorme grupo social restante, geralmente designado como
o povo (le peuple), isto é, a massa dos
não-proprietários, dos pequenos artesãos, empregados domésticos, operários e
camponeses”.
Por óbvio,
face à grande diversidade de integrantes e interesses do Terceiro Estado, não
seria possível ao mesmo, enquanto um grupo, assumir o exercício da soberania.
Foi a burguesia, em nome do Terceiro Estado quem acabou, de fato, resolvendo o
problema político da titularidade da soberania e, via de conseqüência,
assumindo-a. E fez isso através das idéias de Emmanuel Joseph Sieyès sobre o pouvoir constituante, constantes de sua
obra Qu’est-ce que le Tiers État?, lançada
pouco tempo antes do movimento popular que pôs fim à monarquia na França.
O certo é
que a questão de atribuição/concretização de uma nova soberania – ou poder
supremo – surgiu, ainda que não escancaradamente, desde o início das sessões da
assembléia dos “estamentos gerais do reino” (états généraux du royaume), convocada por Luís XVI. A assembléia
instalou-se, em Versalhes, em 5 de maio de 1789. Por decisão do Conselho do
Rei, os representantes do Terceiro Estado conseguiram a duplicação de seu
número de deputados em relação ao número de representantes do clero e da
nobreza. E, em 10 de junho, os representantes do Tiers État passaram a exigir que as votações não fossem mais por
estamento, mas de forma individualizada – cada cabeça um voto. Em protesto, a
quase totalidade dos representantes do clero e da nobreza deixou de participar
da assembléia, ficando essa plenamente sob o domínio do Terceiro Estado,
surgindo a necessidade de uma denominação para a assembléia que já não era mais
dos “estamentos gerais do reino”[62].
Subjacente
a isso, estava a necessidade de justificar as decisões que viessem a ser
tomadas em assembléia, a fim de que tivessem o reconhecimento de terem sido
emanadas de um órgão com poder de deliberação válido e com poder de obrigar.
Ou, em outras palavras, fazia-se essencial a solução da questão da legitimidade
da assembléia, que só restara, basicamente, com representantes de um estamento
– lo Tiers État.
A resolução
desse problema teórico e também de ordem prática, até certo ponto, foi possível
com o manejo do conceito do pouvoir
constituante, criado por Sieyès,
que tornou mais clara a noção vigente até hoje a respeito do mesmo. Por certo,
a teoria moderna do poder constituinte apresenta-se agregada de indissociável conceito
democrático de legitimação, decorrente de outra visão do que consiste o povo e,
também, de outra perspectiva compreensiva em relação à autonomia e
incondicionamento do poder constituinte. Isso, entretanto, não desmerece a obra
revolucionária de 1789, posto que deve ser vista dentro de seu contexto
histórico e político, sem embargo de que não pode ser olvidado que se tratou de
uma revolução burguesa, em que a burguesia transmudou-se em classe dominante.
O abade de
Chartes, ao fazer suas três clássicas perguntas: “1ª. O que é o Terceiro
Estado? – Tudo; 2ª. O que tem sido ele, até agora, na ordem política? – Nada;
3ª. O que é que ele pede? – Ser alguma coisa”.[63], pretendia demostrar,
em essência, que é o povo (a nação) que deve governar através de seus
representantes. Isto é, o povo[64], único titular da soberania política,
é quem tinha legitimidade para exigir obediência ou estabelecer o comando na
sociedade:
“A nação
existe antes de tudo, ela é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, é a própria
lei. (...) Em cada parte, a Constituição não é obra do poder constituído, mas
do poder constituinte. Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar nada nas
condições de sua delegação”.[65]
Em
essência, a grande originalidade e contribuição de Sieyès foi a
criação/visualização/explicitação[66] da distinção entre o poder
constituinte originário e os poderes constituídos, criados pela obra do poder
constituinte: a Constituição.
O poder
constituinte originário, ao conformar o Estado, disciplinando as competências
de seus órgãos e fornecendo diretrizes para uma nova vida em sociedade pelo
reconhecimento de direitos e fixação de princípios a serem perseguidos, não se
confunde com os poderes que constitui. Na condição de criador, o poder
constituinte originário goza de supremacia, sendo hierarquicamente superior aos
poderes constituídos. A preponderância decorre do exercício da titularidade da
soberania da nação. E na qualidade de representante da nação, o poder
originário tem de ser obedecido e respeitado por todos. Logo, é um poder
autônomo, incondicionado e livre.
A
teorização sobre o poder constituinte, divulgada como tal desde o aparecimento
da obra do abade Sieyès, resulta numa transformação do poder; como diz
BONAVIDES: “Poder essencialmente soberano, o poder constituinte, ao
teorizar-se, marca com toda a expressão e força a metamorfose do poder, que por
ele alcança a máxima institucionalização ou despersonalização”.[67]
Passa-se a
compreender que a soberania é impessoal – dissociada do rei de poderes
absolutos e decorrente de um poder divino – vinculada à nação, única legitimada
para comandar a sociedade. E essa despersonalização do poder é fundamental para
estabelecer as bases da legitimidade do Estado Democrático, pois impõe limite
ao exercício do poder e permite a centralidade normativa em benefício dos
direitos do homem.
É certo que
a doutrina atual – e não poderia ser diferente, pois o contexto histórico é
outro – não acolhe mais a concepção clássica de poder constituinte - autônomo,
livre e incondicionado - de forma pura.
Mas tal
mudança de entendimento não altera a essência estrutural da teoria clássica do
poder constituinte, que ainda continua válida. Em verdade, dá-se novo sentido à
autonomia, liberdade e incondicionalidade, inerentes ao poder constituinte,
haja vista ser inquestionável que um poder constituinte não decorre de um
fenômeno de geração espontânea e, portanto, sofre as influências do processo de
sua formação e das condicionantes de nenhum Estado viver isoladamente:
“(...) se o
poder constituinte se destina a criar uma constituição concebida como
organização e limitação de poder, não se vê como esta ‘vontade de constituição’
pode deixar de condicionar a vontade do criador. Por outro lado, este criador,
este sujeito constituinte, este povo ou nação, é estruturado e obedece a
padrões e modelos de conduta espirituais, culturais, éticos e sociais radicados
na consciência jurídica geral da comunidade e, nesta medida, considerados como
‘vontade do povo’. Além disto, as experiências humanas vão revelando a
indispensabilidade de observância de certos princípios de
justiça que, independentemente da sua configuração (como princípios suprapositivos ou como princípios supralegais mas intra-jurídicos) são compreendidos como limites da liberdade e
omnipotência do poder constituinte. Acresce que um sistema jurídico interno
(nacional ou estadual) não pode estar out da
comunidade internacional. Encontra-se vinculado a princípios de direito
internacional (princípio da independência, princípio da autodeterminação,
princípio da observância de direitos humanos)”.[68]
A evolução
histórica fez com que a compreensão da titularidade do poder constituinte, que
era e continua sendo do povo, não tenha mais o mesmo significado. Na
perspectiva da conformação do Estado Democrático de Direito, há que prevalecer,
necessariamente, um entendimento pluralístico.
O
significado de povo tem der ser abrangente, não podendo ser entendido como a
população de um determinado Estado, num conceito puramente jurídico. O povo, titular
do Poder Constituinte, deve ser mais que uma referência quantitativa que dá
legitimidade democrática a um processo decisório ou delegação para tanto. O
povo é “um elemento pluralista”, que ultrapassa o resultado da soma da
significância individual de cada ser humano de uma delimitada extensão
territorial com caráter de soberania. Povo é, também – além do conjunto de
individualidades pessoais - partido político, interesses agrupados (por
exemplo: uma ONG, uma associação de classe), a opinião científica, correntes
culturais, movimentos sociais etc.[69] Em suma, povo é a sociedade viva
organizada – formal ou informalmente - enquanto geradora de idéias e/ou
concretizadora de atitudes, mais os seus integrantes individualmente, pois
esses podem – no todo ou em parte – não comungar das idéias dos entes que se
organizam no meio social.
Examinada a
estrutura teórica da origem e legitimidade do poder constituinte, bem como
entendida a sua compreensão atual, isto é, como há que se focar, numa visão
democrática, a concepção da titularidade (povo) e o que se entende por
incondicionamento e autonomia, cumpre verificar quem pode introduzir
modificações na obra do poder constituinte originário.
Neste tópico,
será feito exame de qual órgão pode efetuar a reforma da Constituição e dos
motivos que justificam a sua existência, sem adentrar no âmbito das reformas
que lhe são possíveis por intermédio de emendas. As limitações do poder
reformador serão objeto de análise na seção seguinte.
Por uma
questão de rigor técnico de linguagem, é de ser justificada a opção pelo uso da
expressão “poder reformador”.
O poder
constituinte de reforma de uma Constituição tem diversas denominações na
doutrina: poder constituinte derivado, reformador, revisor, instituído,
impróprio, de segundo grau, entre outras. São diversos termos para referir a
mesma realidade, ou seja, a alteração de uma Constituição através da forma nela
mesma prevista.
Tecnicamente
– em que pese a grande aceitação da expressão poder constituinte derivado, de
larga utilização[70] – a melhor denominação é a de poder reformador.
Isso porque o poder constituinte originário, ao elaborar o texto
constitucional, também institui poderes, e, entre tais poderes temos aquele que
– dentro dos limites fixados pelo instituinte – é criado com a finalidade de
proceder alterações na obra do constituinte originário: a Constituição.
Na condição
de poder instituído ou constituído é, por natureza, inferior e subordinado ao poder
criador – o poder constituinte originário. E não pode ser considerado um poder
constituinte derivado, pois, se temos um poder que constitui o ordenamento
jurídico, não se pode falar em “constituinte derivado”, já que, juridicamente,
antes do constituinte originário nada havia.
Como bem
salienta DANTAS[71], até semanticamente, por uma contradição inerente,
utilizar a expressão poder constituinte derivado não é a forma mais técnica de
nominar o poder reformador instituído.
A
necessidade, como dado de realidade, de que o texto constitucional pudesse ser
modificado foi solvida com fulcro no princípio da supremacia da Constituição.
Eis que, sendo a Constituição a obra de um poder constituinte originário,
soberano e ilimitado, juridicamente falando, um poder instituído (subordinado)
não teria capacidade de modificá-la. Salvo se o poder constituinte originário
assim dispusesse quanto ao órgão autorizado a tanto, dentro das condições e
formas que estabelecesse.[72]
A
compreensão da questão jurídica da supremacia da Constituição, que, na
atualidade, é absolutamente tranqüila e não enseja discussões, nem sempre
conseguiu ser vislumbrada.
Somente no
final do século XVIII, passou-se a ter a percepção de que a Constituição tinha
uma normatividade superior à do legislador ordinário, em que as leis comuns
podiam e deviam ficar disponíveis para uma modificação mais constante;
inclusive, como meio de manter o ordenamento jurídico de acordo com as mutações
e exigências sociais. O texto constitucional, entretanto, em vista de sua
finalidade conformadora do Estado – seu principal fim à época – não poderia
estar disponível ao legislador comum, sob pena de fácil descaracterização como
modo de instituição e organização do Estado e ilegitimidade do legislador comum
para isso.
Segundo
BITTENCOURT[73], foi Emmerich de VATTEL quem enunciou o princípio em
comento, nos seguintes termos:
“O povo
pode conferir o exercício do Poder Legislativo a um monarca ou a uma
assembléia, ou a ambos conjuntamente, delegando-lhes a faculdade de elaborar
novas leis ou revogar as anteriores. Indaga-se, todavia, se essa faculdade se
estende até às próprias leis fundamentais, e, se podem modificar a Constituição
do Estado. Os princípios que temos exposto (sic) até aqui
nos conduzem certamente a decidir que a autoridade de tais legisladores não tem
essa extensão, devendo as leis fundamentais ser sagradas para êles, a menos que
a nação lhes tenha outorgado expressamente podêres para modificá-las... Se é da
própria Constituição que derivam os podêres dos legisladores, como podem êstes
modificá-la sem alterar o fundamento de sua autoridade?”
A questão
política de quem teria poderes para modificar a Constituição dividiu-se,
basicamente, no século XVIII, em três posições.[74] A primeira, que
representaria a opinião de Vattel, propugnava pelo consentimento de todos os
cidadãos para que a reforma da Constituição fosse possível. A segunda posição,
sustentada nas idéias de Sieyès, permitia uma reforma de maneira mais
simplificada, pois isso seria possível com base no direito que a nação
conservava de alterar as suas próprias leis. A modificação realizar-se-ia pela
convocação do poder constituinte para que a procedesse, pois ficava em potência
até que fosse convocado pela nação para atuar. E o último posicionamento,
inspirado em Rousseau, era no sentido de que a própria Constituição indicasse a
autoridade que poderia alterá-la, bem como os modos e limites de sua
modificação.[75]
A primeira
Constituição a estabelecer em seu próprio texto a possibilidade de sua alteração,
por emenda, com indicação de quem está autorizado a realizá-la e as condições
em que isso é possível, foi a norte-americana.[76] E como se pode ver do
constitucionalismo moderno, a solução comumente aceita para a viabilização da
existência de um poder reformador, nos sistemas constitucionais rígidos, foi o
de base rousseaniana ou o de “institucionalização da revolução”, se a abordagem
da questão for centrada na doutrina de Locke.
Em suma,
pode-se afirmar que a solução do problema de qual órgão está autorizado a
proceder a reforma de um texto constitucional rígido, resolve-se com base no
princípio da supremacia da Constituição. Eis que o poder constituinte
originário, no exercício de seu poder ilimitado – no sentido jurídico – num ato
de vontade soberana, estabelece as possibilidades de alteração de sua obra
(Constituição), indicando os meios, condições, limites e órgão competente para
tanto, que é o poder reformador.
A
Constituição brasileira reconhece a possibilidade de sua modificação através de
emenda constitucional, atribuindo ao Poder Legislativo ordinário a função de
poder reformador.[77]
Por fim,
cumpre observar que, numa visão política da possibilidade reformatória, o poder
instituído para eventualmente promover modificações na Constituição não é um
poder constituinte. Falta-lhe a condição de originário e ilimitado, pois fica,
necessariamente, adstrito à competência e sujeito às restrições fixadas pelo
poder constituinte – que constituiu, criou a obra que pode ser objeto da
reforma.
Afirmar que
o poder reformador é um poder constituinte é privilegiar uma visão unicamente
jurídico-formal – inviável em matéria constitucional - pois só vê o resultado
formal da produção normativa do poder reformador, já que, nesse aspecto, é
inegável que ele produz regramento de status
constitucional. Ainda assim, elabora norma de caráter constitucional porque
teve tal poder atribuído pelo poder constituinte. Ou seja, sempre está presente
o exercício de uma atividade/atribuição conferida/autorizada por um poder que
lhe precede e o constituiu.
A
compreensão do caráter de poder constituído e jamais de poder constituinte do
poder reformador é essencial, pois permitirá o entendimento das razões pelas
quais esse poder sofre limitações insuperáveis, quando no exercício de seu
poder de reforma da Constituição.
Assentadas
as distinções e características do poder constituinte originário e do poder
reformador instituído, passa-se a analisar o processo gerador da Constituição
de 1988, com o fim de demonstrar que a atual Carta Política é obra de autêntico
poder constituinte originário.
É
imprescindível o exame da legitimidade da constituinte que elaborou a atual
Carta Magna, pois a alegação de não ser o constituinte de 1987/1988 um legítimo
poder constituinte é argumento utilizado para vislumbrar uma maior
possibilidade reformatória do texto constitucional através do poder reformador,
pela tentativa de atribuição de valor menor às chamadas cláusulas pétreas[78].
Vislumbrar
o Poder Constituinte que elaborou a Carta de 1988 como um poder derivado da
Constituição de 1967/1969, sem qualquer legitimidade originária para
estabelecer de forma livre e soberana uma nova ordem, é, no mínimo, falta de
entendimento do fenômeno constitucional moderno. Em outras palavras, é ver, até
os dias de hoje, tão-somente a revolução ou a criação de um novo Estado como
possibilidades de geração de um legítimo poder constituinte.
A forma
mais tradicional de afloramento do poder constituinte é através de revolução.
Todavia, não é a revolução o único modo de instauração de um novo regime
político e que faz, também, surgir a atividade de geração de uma nova
Constituição.[79]
A Carta
Constitucional de 1967/1969 era, inegavelmente, o resultado do autoritarismo
vigente no Brasil. Tinha um conteúdo antidemocrático de tal ordem, que não
seria possível pela via da reforma constitucional – sem uma ruptura estrutural
com o texto constitucional autoritário - implantar um sistema político-jurídico
realmente democrático.
A sociedade
que resistiu à ditadura e lutou pela democratização da vida nacional não se
sentia vinculada – aliás, rechaçava, rejeitava a ordem jurídica constitucional
então em vigor - e não admitia o estabelecimento de uma nova ordem com qualquer
atrelação ao passado antidemocrático. A pretensão de uma transição do
autoritarismo à democracia de forma encadeada e filiada – como se fosse
possível – era o projeto dos grupos ligados à ditadura, tão-somente. Solapada a
base de apoio ao autoritarismo, emergiram as forças democráticas no bojo do
processo constituinte de 1987/1988, e implantou-se, sem qualquer vinculação com
o passado, uma nova ordem jurídica, surgindo o Estado Democrático de Direito
brasileiro.
A
legitimidade do processo constituinte – mesmo que se critique não ter sido a
Constituição elaborada por um Poder Constituinte exclusivo - numa mirada
histórica, é facilmente apreendível. O estabelecimento da nova ordem decorreu
de uma transição pacífica, sem o colapso de vigência do sistema anterior, por
força da vontade soberana da nação, que não suportava mais viver sob uma ordem
não-democrática, jamais se podendo falar em concessão patrocinada pelo regime
militar.[80]
Ocorreu o
que MIRANDA chama de transição constitucional, em que se faz presente um
dualismo, isto é, “enquanto se prepara a nova Constituição formal, subsiste a
anterior, a termo resolutivo”[81]. E a circunstância de não ter sido uma
constituinte exclusiva e ter origem numa Emenda Constitucional da Constituição
então vigente, em vista do momento histórico que se vivia, sem a menor dúvida,
não possibilita que se desconsidere a existência de um legítimo Poder
Constituinte[82].
JOBIM,
enquanto deputado constituinte, em discurso na sessão da Assembléia Nacional
Constituinte de 03 de março de 1988, bem enfocou a questão, demonstrando que a
Assembléia era um legítimo Poder Constituinte originário, fruto de uma
transição constitucional.
Observou o deputado
que a Constituição de 1969 era incompatível com a idéia de democracia, razão
pela qual a nação exigiu o chamamento de uma constituinte, que resultou na
convocação da Constituinte Congressual, oriunda de um projeto do Executivo[83].
A convocação foi para uma atuação livre e soberana, sem qualquer limitação
material – havendo condicionamento só em relação ao modo de aprovação da Carta
a ser elaborada. Vale dizer, houve a convocação de uma constituinte livre e
incondicionada, numa transposição pacífica para um novo sistema, sem que se
possa falar em reforma do texto da
Constituição
de 1969, pois ausente qualquer espécie de vinculação entre a Carta Política que
deixaria de existir e a que estava por nascer.[84]
Sob outro
enfoque, ainda, pode-se dizer que a Constituição de 1988 representa a
reconstitucionalização – ou a restauração constitucional - do Brasil, sendo a
exceção o período que vai de 1964 até a promulgação da vigente Carta Magna,
período de ruptura constitucional causado pelo golpe militar.[85]
Logo, não é
possível afirmar que a Constituição de 1988 foi realização de um poder
constituinte derivado, criado pela Constituição de 1967, isto é, o Poder
Constituinte de 1987/1988, ao proceder à “restauração” democrática no país
(mesmo que com a incorporação de novas idéias de promoção da igualdade, não
presentes na ordem democrática anterior restaurada), atuou como legítimo e
verdadeiro poder originário, pois baniu do ordenamento jurídico o regramento
constitucional ilegítimo.
A transição
constitucional ocorrida no Brasil, que, como já visto, é modo legítimo e
originário de mudança de regime político, não se apresenta como novidade no
cenário internacional[86], a permitir a geração de dúvida sobre a
qualidade do poder constituinte que gerou a Carta Política de 1988. Eis que é
impossível visualizar o conceito de legitimidade num aspecto exclusivamente
jurídico dogmático de vinculação entre validade e eficácia.[87]
O fenômeno
da transição constitucional é mais difícil de ser fixado (visto, registrado) no
momento em que ocorre e de menor freqüência até um passado recente, fazendo com
que seja menos estudado[88]. Isso, todavia, não é motivo para a negação
da legitimação originária de um poder constituinte. A evolução histórica fez
surgir novas formas de mudança de regime político, afastando o processo
revolucionário como fonte quase exclusiva de geração de poder constituinte
originário.
Em suma, a
Constituinte de 1987/1988 é fruto típico de transição constitucional – ou de
restauração constitucional democrática - caracterizando-se como um legítimo
poder constituinte originário. Eis que a sua vinculação jurídico-formal com a
normatividade constitucional anterior decorreu de uma imposição da nação, sem a
ocorrência de uma revolução violenta para a ruptura da ordem anterior.
Sociologicamente
falando, a sua legitimidade como poder constituinte originário adveio do
descrédito que a ordem anterior merecia do povo (nação), que exigiu a sua
mudança. Utilizando-se a clássica expressão de LASSALE para evidenciar o
descolamento da Constituição escrita dos fatores reais de poder de um país,
pode-se afirmar que a Carta Constitucional de 1967/1969 transformou-se em
simples “folha de papel”[89], visto que dissociada dos interesses das
forças políticas que se insurgiram contra a ditadura militar e terminaram por
predominar no meio social.
Todavia, há
que se ressaltar, a exigência social de mudança não era representada por um
pensamento político-social homogêneo e/ou hegemônico, pois congregava as mais
variadas formas de pensamento. O seu espectro abrangia desde grupos alijados
das benesses do poder político instalado no comando do país – com identificação
ideológica com a ordem então vigente - até correntes políticas que pregavam a
coletivização de todos meios de produção[90].
E como não
havia a possibilidade de predominância de qualquer força – tanto em relação à
ordem vigente como em relação aos grupos que exigiam mudança, ainda que esses
possuíssem maior representatividade social - operou-se uma transição constitucional
pacífica, que, por não trazer em si mesma uma ruptura revolucionária, não gerou
uma obra com predominância ideológica claramente identificável. A Constituição
de 1988 representou o compromisso possível entre forças conservadoras e forças
renovadoras ou progressistas que participaram do processo de estabelecimento de
uma nova ordem jurídica.
Num outro
viés, pode-se verificar a legitimidade da Constituição de 1988 - e, via de
conseqüência, resultado da atuação de poder constituinte originário legítimo –
pelo trato que dá aos direitos fundamentais. Eis que a proteção dos direitos
humanos, centrada na promoção da igualdade pela participação democrática – que
obrigatoriamente se faz presente no texto constitucional do Estado Democrático
de Direito, como é o Brasil – faz a sinergia das duas hipóteses inerentes ao
conceito de legitimidade – “a justificação-explicação de uma ordem de domínio”
e “de fundamentação última da ordem normativa”[91]. Vale dizer, a
existência de estrutura de domínio só é aceitável, legítima, quando fruto da
vontade soberana do povo e seu telos seja
a promoção do ser humano.
É, dito de
outro modo, a constatação da legitimidade do constituinte originário ao
promover a conformação constitucional do “Estado antropologicamente amigo”,
pois justifica a sua existência em razão da efetivação da dignidade humana, com
o fim primordial de promovê-la de todas as formas possíveis. Ou como assenta
PINTO, citando Paul Bastid:
“(...) o
poder constituinte, ao estabelecer o estatuto de
governante e governados, isto é, o domínio de
homens sobre homens, não pode divorciar-se da ideia de que a legitimidade
do poder assenta nos ‘direitos da pessoa humana, sendo os indivíduos
simultaneamente a causa eficiente e a causa final de toda a organização
política”.[92]
É a Carta
Política de 1988 democrática, pluralista e compromissória, apresentando grandes
avanços sociais, mas refletindo a diversidade do poder constituinte originário
material na obra realizada pelo poder constituinte originário formal. Em outras
palavras: representando a Constituição o compromisso possível entre o
conservadorismo e a renovação – face à ausência de homogeneidade política de
determinado grupo - muitos direitos foram reconhecidos no plano retórico, mas
carecendo de meios para a sua implementação. Foi a solução possível, pois
garantiu possibilidade de uma futura efetivação almejada pelas forças
renovadoras/progressistas, mas serviu aos conservadores, à medida que afastou
um mais imediato avanço nas conquistas sociais modificadoras do status quo.
E dessa
ótica – de que a Constituição de 1988 representou o compromisso do possível -
bem como de que a Constituição só ganhará consistência simbólica de
conformadora e promotora da justiça social, no senso comum da nação, quando for
manejada de forma a efetivar direitos, é que se passa a examinar os limites de
reforma da Constituição.
Todo ato de
constituir traz ínsito uma pretensão de perenidade, como se pode verificar
etimologicamente, pois não se constitui algo para que venha a fenecer sem ser
percebido como basilar. Uma Constituição, em especial a de natureza rígida[93],
materializa-se trazendo uma idéia que deve prolongar-se no tempo, sem
modificações constantes.
Uma
Constituição, entretanto, é obra humana e sujeita a imperfeições, além de não
poder ficar indiferente às modificações que se operam no mundo onde atua como
fonte normativa. Ou seja, a possibilidade de ser uma Constituição modificada
apresenta-se como imposição da realidade. A respeito disso, há um consenso
doutrinal.[94]
A rigidez
de um texto constitucional significa:
“garantia contra
mudanças constantes, frequentes e imprevistas ao sabor das maiorias
legislativas transitórias. A rigidez não é um entrave ao desenvolvimento constitucional, pois a Constituição deve poder ser
revista sempre que a sua capacidade reflexiva para captar a realidade constitucional se mostre insuficiente”.[95]
A possibilidade
reformatória é uma necessidade, mas há de ser exercida de forma criteriosa,
ponderada, buscando-se perscrutar as conseqüências que advirão com as
inovações. Há que se ter o cuidado para que as medidas reformatórias não
agridam os princípios basilares do sistema constitucional. Além do que, uma
inclinação muito grande para o exercício da atividade reformatória, como já
disse HESSE [96], abala a “força normativa” da Constituição.
A grande
indagação é saber-se até que ponto pode ser procedida a mudança, sem que ocorra
uma descaracterização de tal monta, que, ao invés de uma modificação, venha a
ser criada uma nova Constituição.
A questão
tem relevância para que se possa delimitar, de modo claro, qual a competência
modificadora do poder reformador, evitando-se a possibilidade da prática de
abusos que venham atender a interesses momentâneos ou de maiorias eventuais que
se formem no Parlamento. Não bastasse isso, o perfeito – ou, pelo menos, algo
próximo - delineamento da possibilidade reformatória da Constituição torna o
controle de inconstitucionalidade de eventual emenda mais seguro; e, também,
mais transparente e compreensível para a sociedade.
A
Constituição brasileira de 1988, como todas as constituições de natureza
rígida, traz, em seu bojo, as possibilidades em que pode ser reformada, tanto
em relação ao procedimento a ser seguido para a modificação como em relação ao
conteúdo material da(s) mudança(s). Considerando o direcionamento central do
presente trabalho, será enfocada somente a questão da amplitude material
reformatória[97], bem como não se adentrará no exame do processo
legislativo constitucional.[98]
No mesmo
passo, importante esclarecer que o enfoque a ser examinado é, tão-somente, o da
modificação constitucional através de emenda, prevista no seu conjunto
permanente de normas. Eis que a possibilidade de revisão constitucional,
estabelecida no artigo 3° dos Atos das Disposições Constitucionais
Transitórias, por já ter decorrido o marco para sua ocorrência, não se afigura
de maior relevância para o objeto desta pesquisa, sem embargo de que, numa
perspectiva histórica do constitucionalismo brasileiro, é um dado importante,
pois pode colaborar para a fixação de diretrizes mais claras para a compreensão
dos limites materiais de reformas constitucionais. Até porque, ainda que com a
predominância doutrinária do entendimento de que a revisão constitucional não
poderia ser ampla e irrestrita, também existiram opiniões em contrário.
As notas que
seguem têm por finalidade apontar as distinções entre reforma, revisão e emenda
– com base na evolução do Direito Constitucional nacional - com o intuito de
deixar bem delimitado o campo de abrangência da emenda constitucional, que é a
forma de modificação que mais interessa à pesquisa que se desenvolve.[99]
Numa
perspectiva histórica do constitucionalismo brasileiro, pode-se afirmar que
reforma é o meio próprio para a modificação de uma Constituição em vigência,
que tem a finalidade de permitir a atualização da normativa constitucional,
incorporando, quando necessário, à Lei Magna as mudanças sociais, mantendo-a em
sintonia com o corpo social que regula. Ou, como menciona AGRA: “tem a
finalidade de evitar os conflitos sociais decorrentes das normas com a
realidade”, pois no momento em que o desenrolar dos fatos sociais fizer uma
norma tornar-se ultrapassada, “sua força normativa sofrerá um decréscimo,”
ocasionando “uma tensão que prejudica a normalidade jurídica”.[100]
Do exame
das Constituições brasileiras, verifica-se que os termos reforma, revisão e
emenda não apresentam uniformidade designativa.
A
Constituição de 1824 só utilizava a expressão reforma nos artigos 174 a 178, ao
tratar das modificações do texto constitucional.[101] A Constituição de
1891 também só consignava a expressão reforma no seu artigo 90, para tratar de
alterações de seu texto.
A
Constituição de 1934, por sua vez – mudando a tradição - admitiu a
possibilidade de emenda e revisão constitucional no seu artigo 178, fixando
requisitos diferenciados para cada uma das espécies.
A Carta
Constitucional outorgada em 1937, em Título denominado “Das Emendas à
Constituição” (artigo 174[102]), falava, de forma ambivalente e carente
de melhor técnica, em “emenda, modificação ou reforma”. O entendimento
doutrinário é de que na Carta de 1937 só era possível a alteração
constitucional através de emenda, pois seu texto não faz qualquer diferenciação
a permitir conclusão diversa.[103]
As
Constituições que se seguiram: 1946 – artigo 217 – e 1967/1969 – artigo 47 - só
estabeleceram alteração de texto constitucional através de emenda.
A atual
Carta Política, a seu turno, traz previsão de modificação constitucional por
emenda e por revisão. Tal afirmação decorre da menção de possibilidade de emenda,
que é versada no Título IV (Das Organizações dos Poderes), Capítulo I (Do Poder
Legislativo), Seção VIII (Do Processo Legislativo), Subseção II (artigos 59 e
60) e da existência de possibilidade de revisão, prevista no artigo 3° dos Atos
das Disposições Constitucionais Transitórias.
Havendo
referência a duas possibilidades de modo de modificação formal da Constituição
– revisão e emenda - pode-se afirmar que esses são os meios previstos na
Constituição de 1988 para a sua reforma. Em outras palavras, considerando o
disposto na Carta Política de 1988, não há como dar-se a mesma significação
para os termos reforma, revisão e emenda à Constituição[104].
A revisão,
estando prevista nos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias,
apresenta-se como um modo excepcional de modificação da Constituição, inclusive
com previsão de acontecer em momento certo, uma única vez, com procedimento
menos rigoroso e simplificado do que o previsto para a emenda constitucional.
A emenda,
por outro lado, tem previsão e regulação no texto permanente da Constituição e
é o meio de alteração permanente da Carta Magna, tendo um procedimento de
tramitação/aprovação mais rigoroso do que o previsto para a revisão.
Como se
viu, no constitucionalismo brasileiro, revisão e emenda não são sinônimos.
Pode-se dizer que a reforma através de revisão é uma exceção, ditada por
conveniência política, apresentando finalidade própria e realizando-se em
condições especiais, enquanto a emenda é o meio ordinário, comum, de reforma
constitucional, podendo ser utilizado a qualquer tempo desde que, por óbvio,
atendidos os requisitos que lhe são impostos pela Constituição.
Em suma, a
reforma é o gênero, enquanto a revisão e a emenda são espécies com finalidades
e procedimentos diferentes, pois aquela é a denominação ampla de toda e
qualquer modificação formal que altere a Constituição, não abrangendo,
entretanto, as chamadas mutações constitucionais, pois essas não modificam o
texto da Lei Maior.
Assentada a
existência de diferenciação entre revisão e emenda no Direito brasileiro,
passa-se a examinar os limites materiais do Poder Reformador na sua competência
de reformar a Constituição através de emenda constitucional – meio permanente
de alteração da Carta Magna - pois a possibilidade de revisão, pela sua
excepcionalidade e já decorrido o tempo de sua ocorrência, não mais pode
acontecer. [105]
Como bem
observa MIRANDA, “o sentido a conferir aos limites materiais de revisão
constitucional tem sido uma vaexata
questio (sic) que há cerca de cem anos divide os constitucionalistas”.[106]
Basicamente, respeitadas as variações que ocorrem, três são os
posicionamentos. Primeiro: fulcra-se no entendimento de que os limites
materiais são da própria natureza de uma Constituição e, via de conseqüência,
não há como pretender a superação dos mesmos. Segundo: não há nenhuma razão
para o reconhecimento de limites materiais reformatórios, pois não há razão
jurídica para sua existência; logo, qualquer limitação material padece de
legitimidade e eficácia. Terceiro: vê qualquer limitação material de reforma
como relativa, pois pode ser superada pelo processo de dupla revisão.[107]
O
entendimento adotado como o correto, em conformidade com a fundamentação que
segue, é o de que os limites materiais de reforma são imprescindíveis, não
sendo possível tê-los como superáveis.
Limites
materiais à reforma da Constituição são impedimentos –explícitos e implícitos -
estabelecidos pelo constituinte originário e insertos no próprio texto
constitucional, que tornam insuscetíveis de modificação determinadas matérias
de seu conteúdo.
A
existência de conteúdos imutáveis numa Constituição tem recebido críticas, sob
a alegação de que não é possível uma Constituição imodificável, pois
acarretaria seu imobilismo, gerando um descompasso normativo com a sociedade e,
por conseqüência, implicando um desprestígio do texto constitucional.[108]
CANOTILHO,
com a força de seu expressar, assim responde à indagação a respeito da
vinculação futura que traz a existência da limitação ao poder de reforma de uma
Constituição:
“A resposta
tem de tomar em consideração a evidência de que nenhuma Constituição pode
conter a vida ou parar o vento com suas mãos. Nenhuma lei constitucional evita
o ruir dos muros dos processos históricos e, consequentemente, as alterações
constitucionais, se ela já perdeu a sua força normativa. Mas há também que
assegurar a possibilidade de as constituições cumprirem a sua tarefa e esta não
é compatível com a completa disponibilidade da Constituição pelos órgãos de
revisão[109], designadamente quando o órgão de revisão é o órgão
legislativo ordinário. (...) Assegurar a continuidade da Constituição num
processo histórico em permanente fluxo implica, necessariamente, a proibição
não só de uma revisão total (desde que
isso não seja admitido pela própria Constituição), mas também de alterações constitucionais aniquiladoras de uma ordem constitucional
histórico-concreta. Se isso acontecer é provável que se esteja perante uma nova
afirmação do poder constituinte mas não perante uma manifestação do poder de
revisão”.[110]
A tentativa
de entender descabida a existência de limites materiais para a reforma de uma
Constituição – que à primeira vista pode impressionar, pois implicaria a
mumificação de seu texto e desconectação da realidade - passa pela
incompreensão da distinção entre poder constituinte originário e poder
constituinte derivado (poder reformador), além de ser apresentada de forma
ambígua.[111]
O poder
constituinte originário é de natureza política, existindo fora da Constituição
e acima dessa – pois o texto constitucional é a obra que realiza. É um poder de
natureza excepcional, manifestando-se somente em momentos de viragem histórica
de um povo. De outra banda, o poder reformador tem natureza eminentemente
jurídica. Inserido na Constituição, tem nessa o contorno de sua atuação, bem
como de sua limitação. É um poder de exercício normal, pois existe para
funcionar nos períodos de normalidade constitucional.[112]
Logo, na
condição de poder instituído ou constituído, o poder reformador sofre
limitações no seu poder de modificação da Constituição. Deve respeitar as
limitações fixadas pelo poder constituinte originário, que são explícitas quando
indicadas no próprio texto (cláusulas pétreas) e, também, as limitações
implícitas, oriundas dos princípios que presidem a Constituição e que existem
pela necessidade de preservação da essência do núcleo político básico da carta
constitucional.
A atividade
reformatória de uma Constituição é um meio de sua vivificação, pois é pela
reforma que se conserva renovando uma carta constitucional. A modificação de um
texto constitucional jamais poderá servir como caminho para o seu fenecimento.
Conforme assevera BONAVIDES,
“o constituinte que transpuser os limites expressos e tácitos de seu
poder de reforma estaria usurpando competência ou praticando ato de subversão e
infidelidade aos mandamentos constitucionais, desferindo, em suma, verdadeiro golpe
de Estado contra a ordem constitucional”.[113]
Em suma, a
finalidade dos limites à reforma da Constituição é impedir a subversão da
Constituição através de reforma constitucional, preservando-se as suas
características e princípios fundamentais e que lhe são estruturantes.
É de
observar-se que, no momento atual brasileiro, a discussão sobre os limites
materiais de reforma da Constituição traz subjacente uma questão ideológica. Os
adeptos do neoliberalismo tentam minimizar o programa de mudança e promoção
social que é inerente à Constituição Cidadã de 1988. No afã liberalizante de
inserção numa economia globalizada, em que o centro de interesse
predominante/hegemônico é o econômico, tentam minimizar as conquistas sociais e
de valoração da dignidade humana que foram insculpidas na Lei Maior. E, para
tanto, procuram afastar, se não todos, pelo menos a grande maioria dos limites
que impedem uma reforma constitucional desnaturadora e o retorno a um Estado
mínimo. Do outro lado, pugnando pela validade e reconhecimento da existência
das limitações que decorrem da própria Constituição – aliás, como já
demonstrado acima - estão os que lutam pela mantença dos avanços sociais
conquistados e pela implantação do Estado Democrático de Direito, com a
efetivação plena – ou pela máxima efetivação possível - dos princípios que
regem a nossa normativa constitucional. É a tradução da posição de que a
globalização – que se apresenta, ao que parece, como uma via sem volta - pode e
deve ser feita com a sua centralidade focada no ser humano, na valoração da
dignidade humana, esteiada na cooperação e solidariedade entre os povos.
Introduzida
a matéria dos limites materiais da reforma constitucional, passa-se a sua
particularização.
Limitações
materiais explícitas - ou expressas, ou cláusulas pétreas, ou cláusulas de
intangibilidade, ou cláusulas de irreformabilidade, ou garantias de eternidade
- são a enunciação constitucional das matérias que não podem ser objeto de
alteração ou, pelo menos, não podem ser modificadas em determinado sentido. Em
outras palavras, são as impossibilidades reformatórias indicadas, modo
expresso, no texto da Constituição.
Conforme
CANOTILHO,
“Limites expressos ou textuais são os limites previstos no
próprio texto constitucional. As constituições selecionam um leque de matérias,
consideradas como o cerne material da ordem constitucional, e furtam essas
matérias às disponibilidades do poder de revisão”.[114]
Numa
retrospectiva das Constituições brasileiras, verifica-se que nunca houve texto
constitucional com elencação tão expressiva de limites expressos para a reforma
constitucional como o da vigente Carta Magna. O rol de limites expressos
encontra-se no artigo 60, § 4º, em que é vedada qualquer deliberação sobre a
forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico; a
separação dos Poderes, e os direitos e garantias individuais.[115]
A
Constituição de 1824 não trazia nenhuma limitação expressa ao poder de reforma
de seu texto. A primeira Constituição republicana, de 1891, em seu artigo 90, §
4º, vedava a abolição da “forma republicana federativa; ou igualdade da
representação dos Estados no Senado”. A Carta de 1934, em seu artigo 178, § 5º,
só estabelecia proibição de alteração a respeito da República e da Federação. A
Constituição de 1937, por sua vez, não trazia nenhuma limitação reformatória
expressa. A Constituição de 1946, no seu artigo 217, § 6º, reintroduziu a
proteção expressa de não-abolição da Federação e da República. E essa mesma impossibilidade
foi assentada na Constituição de 1967/1969, no seu artigo 47, § 1º.
Pode-se
dizer que as limitações expressas ao poder de reforma, insculpidas nos textos
constitucionais, visam à proteção dos princípios básicos e essenciais da
Constituição, bem como as “implicações e desdobramentos” – na expressão de
STRECK - de tais princípios.
Em relação
às vedações expressas, inviável, ao poder reformador, qualquer possibilidade de
alteração. Conforme STRECK,
“O
obstáculo do parágrafo 4º faz desses princípios – que lhe são estruturais,
básicos e fundamentais – rigidíssimos, supraconstitucionais, no sentido de que
não podem ser solapados, reduzidos, diminuídos, mesmo pelos mais conspícuos
poderes constituídos: o Congresso, como órgão de reforma constitucional”.[116]
A questão
da intangibilidade das limitações materiais expressas à reforma da Constituição
– pelo menos enquanto inalteradas, segundo alguns[117] - é matéria
relativamente tranqüila na doutrina, não ensejando maiores dúvidas, eis que
assente terem as cláusulas pétreas, como já dito, escopo de proteção de
conteúdos estruturantes de uma normativa constitucional. A maior controvérsia,
como se verá a seguir, existe em relação aos chamados limites implícitos.
Ainda que
não unânime o entendimento[118], é possível afirmar que, além dos
limites materiais expressos, existem limitações implícitas ao poder de reforma,
as quais, apesar de não-articuladas na Constituição, extraem-se do próprio
texto constitucional, por se relacionarem com princípios fundantes da ordem
constitucional.
Ou, no
dizer de STRECK,
“Além dos
limites formais/explícitos (...) há aqueles que decorrem da sistematicidade da
Carta Política. Tais vedações – implícitas – são limitações de reforma
produzidas pela própria estrutura do discurso pelo qual se expressa a
Constituição. São aquelas que se originam dos paradigmas adotados pelo próprio
sistema jurídico e que definem, com alguma clareza, quais as normas que a ele
pertençam ou possam pertencer”.[119]
De outro
modo, é possível falar que as limitações implícitas são disposições intangíveis
de uma Constituição, aquelas que servem para garantir determinados valores
fundamentais da Constituição, que não devem estar necessariamente expressas ou
em instituições concretas, pois vigem como implícitas, imanentes ou inerentes à
Constituição. A proibição de reforma produz-se a partir do “espírito” ou telos da Constituição, sem uma
proclamação expressa em uma proposição jurídico-constitucional.[120]
Em suma, as
limitações implícitas ao poder de reforma existem para preservar a estrutura
fundante e a relação entre os princípios que balizam uma Constituição,
evitando-se a desnaturação de seu texto.
SCHMITT, ao
reconhecer o caráter político do poder constituinte e distinguindo-o do
legislador constituinte, instituído pela Constituição, introduz a noção de
limites materiais implícitos à reforma da Constituição, visto que a modificação
não se confunde com a supressão da Constituição. A manifestação do constituinte
originário não pode ser modificada pelo legislador instituído com a competência
para reformar a Constituição, pois lhe falta a autoridade (força política) do
poder instituinte para modificar as decisões políticas fundamentais assentadas
na Lei Maior.[121]
O
entendimento de que a dificuldade em estabelecer quais seriam os limites
materiais implícitos de reforma implica a inexistência desses, como bem observa
CANOTILHO, é algo que não se pode aceitar:
“Para esta
doutrina, os limites materiais seriam apenas os expressamente previstos no
texto constitucional; só os limites textuais expressos seriam autênticos limites de revisão. Embora se possa admitir que esta
doutrina tem ainda a seu favor a presunção de modificabilidade de normas
anteriores por normas posteriores do mesmo grau, não devem minimizar-se os
resultados a que ela conduzirá quando levada até às últimas conseqüências. As
constituições que não previssem limites textuais expressos transformar-se-iam
em meras leis provisórias, em constituições em branco (Blanko-Verfassung),
totalmente subordinadas à discricionariedade do poder de revisão. Mas, a
aceitarem-se limites imanentes deduzidos a partir do ‘telos’ constitucional,
então terá de exigir-se que esses limites não sejam meros postulados, mas autênticas imposições da
Constituição, verdadeiros limites impostos por ‘vontade da Constituição’ (Wille der Verfassung)”.[122]
A lição se
aplica para as constituições que apresentam limites materiais expressos, isto
é, também nessas não há como afastar a existência de limites materiais
implícitos. Um exemplo bem elucidará o ponto. A Constituição de 1988
estabelece, expressamente, como imutável a forma federativa do Estado (artigo
60, § 4º, inc. I). Conforme o artigo 1º da Carta Magna, a federação é composta
“pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”.
Ninguém tem dúvida de que o princípio da federação não se limita ao disposto no
artigo primeiro antes referido, mas que se espraia abrangendo todos os
dispositivos que visam a garantir a essência do federalismo reconhecido como
cláusula imutável. Sendo a auto-organização e a autonomia municipal (artigos 29
e 30), entre outros, elementos essenciais para a caracterização da Federação,
inquestionável que tais princípios constituem cláusulas pétreas, mesmo que não
diretamente arrolados no catálogo das cláusulas imutáveis da Constituição.
Logo, qualquer modificação, via reforma constitucional, que suprima a
auto-organização e autonomia dos Municípios, implicará mutilação do princípio
da federação, pois haverá alteração de elemento que lhe é fundamental.
Diante do
que já foi dito sobre os limites materiais implícitos à reforma de uma
Constituição, pode-se concluir que os mesmos só podem ser considerados e
visualizados a partir de uma ordem constitucional determinada.
Seria
impossível tentar delimitar quais são os limites tácitos de reforma da
Constituição de uma maneira abstrata, pois sempre serão variáveis, já que devem
estar de acordo com os princípios fundamentais que cada normativa
constitucional consagrar. Identificadas as vedações implícitas perante uma
Constituição, ficam essas erigidas no mesmo patamar dos limites materiais
expressos, uma vez que também preservam a ordem constitucional de um
desvirtuamento que implique ruptura.[123]
Dentro
dessa ótica vinculativa, com os olhos postos na Constituição de 1988, serão
apontados limites materiais implícitos que podem ser extraídos de nosso
ordenamento constitucional positivo.
Desde logo,
em razão de lição[124] multicitada pela doutrina brasileira, que inclui
os direitos fundamentais entre os limites materiais implícitos à reforma da
Constituição, cumpre consignar que, atualmente, tal não se justifica, pois esses,
na sistemática da Carta Política de 1988, são objeto de cláusula pétrea
expressa – artigo 60, § 4º, inc. IV.
Ante a
ausência de previsão de possibilidade de reforma total[125] da
Constituição, é der ser excluída a hipótese. Isso porque implicaria o
reconhecimento de ter o Poder Reformador capacidade equivalente ao Poder
Constituinte que o instituiu, quando se sabe que tal não ocorre, visto ser o
poder de reforma subordinado e limitado. Além da reforma total, há limitação
implícita de reforma em relação a princípios fundamentais que norteiam a
Constituição, cuja supressão ou modificação poderiam alterar ou destruir a
identidade da ordem constitucional.[126]
É de ser
consignada a percuciente observação de SARLET, no sentido de que, havendo a
efetiva aplicação do princípio da inalterabilidade da identidade da
Constituição,
“até mesmo
a existência de limites expressos parece dispensável, já que os princípios e
direitos fundamentais, assim como as decisões essenciais sobre a forma de
Estado e de governo fatalmente não poderiam ser objeto de abolição ou
esvaziamento”.[127]
Os
princípios fundamentais que estão protegidos pelas limitações implícitas são
aqueles – que juntamente com os que são objeto de cláusula de intangibilidade
expressa - funcionam como fio condutor do sistema constitucional, estruturando
a Constituição no seu todo. Vale dizer, representam o núcleo político da Carta
Magna, consubstanciando as diretrizes de efetivação plena do Estado Democrático
de Direito. Para o exame da matéria referente ao conteúdo do núcleo político
essencial da Constituição, remete-se ao capítulo I, tópico
1.1.2,
local em que foi a questão delineada.
Tradicionalmente,
inclui-se a titularidade do Poder Constituinte e do Poder Reformador entre os
limites tácitos à reforma. A razão para tanto é evitar a flexibilização da
titularidade do Poder Constituinte Originário e do Poder Reformador, pois, isso
ocorrendo, a rigidez e a soberania da Constituição restariam enfraquecidas ou,
até, destruídas. E tanto uma como a outra são essenciais para a estabilidade da
Carta Política.
A
possibilidade de alteração ou supressão dos limites materiais expressos à
reforma, via modificação constitucional pelo Poder Reformador, deve ser
analisada à luz das limitações materiais implícitas, eis que ausente declaração
manifesta a respeito na Constituição.
A pretensão
deve ser rechaçada. As limitações expressas à reforma da Constituição decorrem
diretamente do Poder Constituinte que as estabeleceu, soberanamente e por ato
de vontade.
Admitir-se
que o Poder Reformador, por natureza subordinado e limitado, pode alterar
condições tidas como intangíveis pelo Poder Constituinte Originário implica
colocar o Poder Reformador no mesmo nível do Poder Constituinte. E dessa
equiparação decorreria um reconhecimento para que o Poder de Reforma pudesse
fazer uma alteração total da Constituição, o que, por sua vez, poderia implicar
o desnaturamento ou liquidação da obra do Poder Constituinte.
E, como é
sabido, não há equiparação entre o Constituinte Originário e o Poder
Reformador, pois este é, por natureza, subordinado àquele, não tendo
competência para suprimir ou alterar aquilo que foi estabelecido como
imodificável pelo seu superior e condicionante na obra de sua criação.
A
compreensão da impossibilidade de alteração ou supressão dos limites materiais
expressos, por intermédio de reforma, fica facilitada se for introduzida a
idéia de cláusulas superconstitucionais, que é desenvolvida por VIEIRA:
“Por
superconstitucionais entenda-se um conjunto de princípios normativos
fundamentais que – reconhecidos explícita ou implicitamente pela Constituição -
se encontram em posição hierarquicamente superior em relação aos demais
preceitos da Constituição; esta hierarquia constitucional, contestada pela
maioria da doutrina, pode ser comprovada sob a perspectiva mais comum aos
positivistas, que se refere à impossibilidade de se reformar as chamadas
cláusulas pétreas pelos procedimentos de reforma ordinária da Constituição, e
da possibilidade de se controlar a constitucionalidade de emendas à
Constituição em face destas cláusulas; também de uma perspectiva mais material
da Constituição, através da qual se propugna que as demais cláusulas
constitucionais devem ser interpretadas em conformidade com os princípios
constitucionais (...), particularmente aqueles protegidos por cláusulas
superconstitucionais; uma terceira hipótese, mais radical, é no sentido de que
se poderia propor o controle da constitucionalidade da própria Constituição,
não só de emendas, em face destes princípios fundamentais”.[128]
Existindo
impeditivo de deliberação sobre proposta de emenda “tendente a abolir” os
limites materiais explícitos de reforma, caracterizam-se esses como cláusulas superconstitucionais
que estão em posição hierarquicamente superior a qualquer processo de reforma
constitucional, pois as cláusulas pétreas existem para aumentar a proteção de
princípios fundamentais da Constituição.
CANOTILHO
também entende que não há possibilidade de reforma para as “normas de revisão”,
as quais qualifica como normas superconstitucionais, já que “atestariam a
superioridade do legislador constituinte e a sua violação, mesmo pelo
legislador de revisão, deverá ser considerada como incidindo sobre a própria garantia da Constituição”.[129]
Ainda em
relação à imodificabilidade das cláusulas pétreas expressas, há que se
enfrentar o entendimento de ser isso possível pela possibilidade da dupla
revisão, que encontra adeptos na doutrina brasileira.[130] Tal posição é
defendida por aqueles que sustentam a relatividade dos limites materiais à
reforma da Constituição.
É
reconhecida a existência de limitação material ao poder de reforma, inclusive
sendo entendido que a limitação é necessária. Todavia, não pode ocorrer uma
estagnação evolutiva que impeça futuras modificações que se façam necessárias.
Em tais circunstâncias, o que se exige é um duplo processo, em tempos
sucessivos. Isto é, num primeiro momento, remove-se o limite de revisão.
Posteriormente, substitui-se a norma constitucional visada e que era assegurada
pela cláusula de intangibilidade, suprimida no primeiro processo. Para o
afastamento de um limite material de reforma, então, o que se exige é o
agravamento do processo de reformatório.
A tese não
pode ser aceita, pois, como já referido acima, atenta-se contra a própria
garantia de imutabilidade da Constituição. O certo é que a alteração/supressão
dos limites de reforma através de reforma é indicador de prática de fraude à
Constituição ou de ruptura constitucional.[131]
Após a
realização da consulta plebiscitária, efetuada em abril de 1993, em que o
titular do Poder Constituinte – o povo - manifestou-se de forma direta em favor
da forma republicana de governo e do sistema presidencialista, pode-se dizer
que a República e o Presidencialismo inserem-se entre os limites implícitos de
reforma.[132]
Não tendo o
Constituinte de 1987/1988 incluído tais decisões fundamentais entre as
cláusulas de intangibilidade expressas, mas estabelecendo a realização de
consulta popular a respeito, forçoso concluir que preferiu deixar a decisão
para o titular do Poder Constituinte. Ocorrida a manifestação prevista, a forma
e o sistema de governo deixaram de ser questões disponíveis ao Poder
Reformador.
Delineado o
contorno das vedações implícitas da reforma constitucional, cumpre verificar
qual o âmbito da proteção outorgada pelas limitações materiais reformatórias da
Constituição.
As vedações
expressas (cláusulas pétreas), previstas no artigo 60, § 4º, incisos I a IV, da
Constituição e, também, os limites implícitos conferem proteção contra a
atividade reformadora do texto constitucional. Funcionam como verdadeiras
barreiras às intenções reformistas, salvaguardando os valores fundamentais da
Constituição, pois
“O
processo de mudança constitucional nada tem a ver com as conveniências dos
políticos – os partidos ou chefe do governo – para se soltar dos freios da lei
suprema, visto que a Constituição, enquanto produto de um jogo de forças que se
estabeleceram na Assembléia Nacional Constituinte, tem uma sistematicidade e
uma materialidade que não podem ser ignoradas. A Constituição, em seu sentido
amplo, não é uma máscara do jogo do poder que se possa abandonar quando se
chega lá”.[133]
A grande
questão é visualizar até que ponto as limitações materiais impedem qualquer
modificação na Constituição. E isso tem grande relevância – não para as
situações de puro casuísmo político, em que modificações são pretendidas para
atendimento do governo de plantão ou de algum interesse específico menos sério
– mas para aquelas circunstâncias em que modificações são necessárias para a
adequação da norma à realidade social que avançou. Eis que tais instrumentos de
garantia da Carta Política não podem servir de entrave para o seu
aperfeiçoamento. É necessário chegar a uma posição intermediária: de mantença
da estabilidade com não-impedimento de atualização do texto constitucional.
Para tal,
há que se entender a finalidade da imposição de limites à reforma como a
intenção de manter o núcleo da Constituição. E isso não quer dizer a manutenção
de dispositivo literal da Carta Magna, mas, sim, dos princípios centrais
(nucleares) que permeiam os dispositivos tidos como imutáveis e, também, os
princípios fundantes da ordem constitucional instituída.[134]
Não é
possível estabelecer critérios prévios de verificação, sendo necessária uma aferição
tópica, para apuração da adequação da emenda ao caso concreto. Até porque, em
determinadas hipóteses, a modificação de um preceito que, aparentemente, não
tem conteúdo principiológico ou fundamental, pode ser a expressão da expansão
de garantia de um princípio, e sua alteração ou eliminação, portanto, estar
vedada.
Por fim, é
de ressaltar-se que a redação do § 4º, do artigo 60 assegura, em relação às
limitações expressas, a sua intangibilidade, tanto em relação a sua supressão
como, também, contra as emendas “tendentes a abolir” a limitação. E aqui,
também, é impossível fixar aprioristicamente quando uma disposição tende a
abolir uma disposição de fundo essencial, a sua averiguação há de ser diante da
situação concreta.
Não poderia
deixar-se de anotar que, para fins de controle de constitucionalidade, há uma
equiparação entre emenda supressiva de dispositivo e aquela que veicula uma
tendência abolidora de preceito assegurado por cláusula pétrea explícita, isso
porque ambas as hipóteses são proibidas expressamente pela Constituição.
O trato
jurídico da questão da infância e juventude – para ficarmos no campo específico
do Direito, pois a matéria, inegavelmente, extrapola esse âmbito - pode ser
estudado sob o prisma da crise paradigmática. De um lado, temos o que vai
convencionalmente ser chamado de velho paradigma e representa toda a produção
legislativa e seu suporte teórico a respeito da “menoridade”, que se estende
até a promulgação da Constituição de 1988. E, a partir daí, surge o novo
paradigma, quando ocorre uma (r)evolução conceitual e normativa no tratamento
dos interesses das crianças e adolescentes.
A
utilização da teoria dos paradigmas bem se amolda à questão, pois, a grosso
modo, até o advento da vigente Carta Política, havia uma certeza jurídica
baseada no binômio proteção-repressão da infância “desajustada” aos padrões
estabelecidos pela elite social. Introduziu-se, por intermédio do texto
constitucional, uma nova realidade jurídica democrática e emancipadora, em
conformidade com o Estado Democrático de Direito – que precisa ser
materialmente efetivada – em que deixa de existir o “menor desajustado” e passa
a merecer atenção legal a infância e juventude como um todo, independentemente
de qualquer condição social ou adjetivação qualificadora.
A ruptura
que ocorreu desestabilizou o saber instituído, pois alterou os referenciais
básicos institucionalizados e arraigados no senso comum da sociedade e, em
especial, dos operadores jurídicos. E a não-aceitação da mudança de modelo por
operadores do Direito e parte da sociedade faz com que se instaure uma crise
paradigmática, em que a resistência às mudanças se faz, também, pela tentativa
de modificação/supressão de conquistas alcançadas, como, por exemplo, a
constitucionalização da idade fixadora da inimputabilidade penal.
CARVALHO
bem explicita a ocorrência de uma crise paradigmática, como a que se passa no
plano da questão jurídica da infância e juventude:
“Ao estar
consolidado no universo da comunidade, o paradigma passa a ser irrefletidamente
repassado aos demais pesquisadores por meio de um específico modo de reprodução
do saber. (...) Todavia, a partir do momento em que a comunidade científica
identifica objetos estranhos que não deveriam ali estar sendo estudados ou que
suas respostas não correspondem à expectativa do grupo, estamos diante de uma
‘crise paradigmática’. A crise se processa no interior do universo de análise
pré-constituído, pois se percebe que elementos que deveriam ser objeto de
pesquisa estão fora da lupa deste parâmetro oficial de realização de ciência
que não mais consegue responder satisfatoriamente aos interesses da comunidade.
Há crise paradigmática neste momento intermediário em que o paradigma vigente
não consensualiza mais a comunidade científica e o novo modelo instrumental
ainda não logrou plena aceitação, ou não atingiu processo aceitável de
maturidade”.[135]
Dentro
dessa perspectiva de choque de modelos, procurar-se-á demonstrar a evolução do
velho paradigma no Direito brasileiro até se chegar à doutrina da situação
irregular, que é a que se encontra mais arraigada no senso comum da atualidade.
Após, em
linhas gerais, far-se-á uma explanação sobre a doutrina da proteção integral,
que representa o novo paradigma e foi plasmada na Constituição, na esteira das
idéias que originaram a Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os
direitos da criança.
Fixados os
pontos de distinção entre os dois modelos, será visto o modo de superação do
antigo paradigma, que só pode ocorrer pela via hermenêutica, por intermédio da
desconstrução do velho modelo que ainda domina o imaginário simbólico dos
juristas e construção da nova realidade a ser desvelada a partir da Constituição,
que deve ser interpretada de acordo com os princípios norteadores do Estado
Democrático de Direito.
A compreensão
do que foi/é o velho paradigma jurídico[136] no trato da questão do
“menor” fica mais facilmente compreensível com uma mirada histórica, em
especial na legislação menorista, mesmo que restrita e pontual, como será a
realizada. Isso porque, do trato conferido à infância no decorrer do tempo –
especialmente em relação às crianças das classes menos favorecidas – será
possível observar que sempre houve um tratamento legal de “objeto de direito” e
não de sujeito de direito, como se passou a reconhecer a partir do advento da
Constituição de 1988.
A
verificação demonstrará que, apesar do discurso da plena responsabilidade dos
adolescentes – e até de crianças[137] - em decorrência do livre acesso a
informações no mundo (pós)moderno a pretensão de modificação da idade penal
mínima não representa nenhum avanço ou adequação à realidade, não passando do
mais puro retrocesso institucional e político. E apresenta-se de modo tão
escancarado, que até a retórica discursiva é a mesma.[138]
O
entendimento ou o visualizar de que a infância, como um período especial de
formação do ser humano, merece um tratamento diferenciado – inclusive do
sistema jurídico - é algo relativamente recente na história do mundo ocidental.
E, talvez em decorrência disso a literatura sobre o tratamento penal da criança
no transcorrer da história seja escassa, enquanto em relação ao jovem a
pesquisa no campo sociojurídico-penal é mais abundante.
Conforme
outro entendimento, sustentado por MÉNDEZ, a falta bibliográfica histórica em
relação à criança explica-se pela confusão na utilização dos termos jovem ou
menor como representativos de mesma categoria, sendo possível, então, concluir
que os estudos sobre jovens e sistema penal englobam, também, o trato relativo
às crianças.[139]
Tentando
situar o surgimento da infância como categoria que passa a ter relevância na
evolução da humanidade, adota-se a perspectiva histórica, que entende o seu
surgimento como “resultado da complexa construção social que responde tanto a
condicionamentos de caráter estrutural quanto a sucessivas revoluções no plano
dos sentimentos”.[140]
Nessa
linha, aceita-se a tese sustentada por ARIÈS, em profundo estudo histórico
realizado sobre a infância na sociedade tradicional (Idade Média), de que, até
mais para o final do século XVII, não existia a compreensão da infância – ou do
sentimento da infância - como é observado hoje. A criança, superada a fase
inicial de dependência física inafastável, adentrava diretamente para o mundo
adulto, onde lhe eram passados valores, conhecimentos, e ocorria a sua
socialização.[141] O trabalho tem forte fundamentação no exame das artes
do período medievo, em particular na pintura, em que o pesquisador procurou
observar a evolução do tratamento destinado às crianças para chegar as suas
conclusões, após cruzamento com outras fontes de pesquisa.
Segundo
ARIÈS, somente a partir do século XVII é que se iniciou um processo de mudança
da situação da infância, quando a escola passa a substituir a aprendizagem como
meio de educação e a criança deixa de ser misturada com os adultos e de
“aprender a vida diretamente”, passando a ser isolada – no colégio – antes de
ser liberada para o mundo. Esse é o início do processo de escolarização, que
anda junto com o processo de enclausuramento das crianças.[142]
A partir
disso, inicia-se o processo de criação da nova categoria, de acordo com MÉNDEZ:
“Nesse
processo de descoberta-invenção da infância, a vergonha e a ordem constituem
dois sentimentos de caráter contrapostos que ajudam a modelar um sujeito a quem
a escola dará forma definitiva. A escola, organizada sob três princípios
fundamentais, que são a vigilância permanente, a obrigação de denunciar e a
imposição de penas corporais, cumprirá, juntamente com a família, a dupla
tarefa de prolongar o período da infância, arrancando a criança do mundo dos
adultos. É o nascimento de uma nova categoria”.[143]
Outra
questão significativa para o evidenciar histórico da afirmação da infância como
uma categoria diferenciada do adulto é a que se refere ao fim da prática do
infanticídio. Provavelmente, em uma continuidade histórica, ainda que
não-declarada e bem conectada de forma expressa com a antiga Roma - onde as
crianças recém-nascidas eram expostas nas portas do palácio imperial e as
não-eleitas eram mortas - por longo tempo, na Idade Média, o infanticídio teve
uma representatividade quantitativa importante e, ainda que proibido, era
tolerado. E isso persistiu até o final do século XVII.[144]
Do exposto,
pode-se concluir: a) a categoria da infância surgiu quando começou a ocorrer a
separação da criança do mundo adulto, com a atribuição da tarefa da educação à
escola; b) junto com a escolarização da criança, começou a ocorrer a
preservação da vida infantil; c) a descoberta da criança produziu, também, os
sentimentos de ordem e vergonha.
E ao
descobrir da infância, com as características de sua separação do mundo adulto,
escolarização através da segregação e com métodos rígidos de disciplina, inclusive
de castigos corporais, mas com preservação de sua vida, denominar-se-á tradição.
Pelo pensar
através da tradição, chega-se ao conceito de criança corrompida, isto é, a
criança que não se amolda à educação escolar ou que dela não faz parte.
Procurou-se
fixar o momento inicial da formação da categoria infância e os métodos
utilizados para a sua educação a partir daí, calcados na disciplina rígida e no
enclausuramento/segregação, por se ter a certeza de que o imaginário simbólico
do senso comum da sociedade está povoado de sentidos que advêm da tradição,
obviamente que sofisticados pela evolução dos costumes, do progresso científico
e surgimento de novas teorias de preservação e valorização da infância.
A tradição,
de uma maneira quase atávica, ganha força no imaginário simbólico quando se
trata de solver problemas que se apresentam próximos, mas as suas
causas/conseqüências – ou a materialização/visualização das mesmas – mostram-se
de forma despersonalizada. Vale dizer, quando a sociedade se sente acuada pela
violência recrudescente de uma infância e adolescência marginalizada[145]
- que não tem o rosto próximo de suas crianças e adolescentes ou de seus
“iguais” – intuitivamente soluciona o problema com base na tradição. Isto é,
pensa na educação que deve ser dada ao “inadequado social” para que venha a se
tornar um igual, mas que deverá ser feita de forma segregada, até que ocorra o
aprendizado e possa aquele voltar ao convívio social. A questão do sentimento e
da afetividade, de extrema importância no trato com a infância, por se
apresentar o “desviante” de forma despersonalizada e de certa forma distante,
fica reservada somente para a infância e juventude próxima, ou seja, do núcleo
familiar-afetivo ou dos iguais.
Num
raciocínio generalizante, pode-se afirmar que até o advento da Constituição de
1988 toda a legislação menorista tinha na sua base uma essência de tradição, já
que sempre teve por objeto o comportamento da infância e juventude anormal
(corrompida), operando com a dicotomia normal/anormal. Interessante observar,
ainda, que o controle social, mesmo que apresentado com um discurso de proteção
da “menoridade”, antes de constituir um direito, é resultado de uma imposição.
Estabelecida
a premissa básica do velho paradigma – pensar nos moldes da tradição – passa-se
a uma breve recapitulação da evolução da legislação menorista brasileira.
Do
descobrimento do Brasil até 1830, a regulação da conduta penal “dos menores”
dava-se pelo disposto nas Ordenações Filipinas, que tinham o mesmo espírito das
demais legislações da época, operando com a possibilidade de diminuição da pena
a ser imposta no caso de cometimento de delito por autor com idade entre
dezessete e vinte anos e vedando a aplicação de pena capital para os menores de
dezessete anos.[146]
O certo é
que, na ausência de uma maior compreensão da categoria infância, até 1639,
nunca houve manifestação de interesse oficial em favor da proteção das
crianças, conforme informa MONCORVO FILHO:
“O anno de
1693 marca a primeira demonstração official pela protecção directa á infancia.
Refere-se ella ao amparo das creancinhas desherdadas da sorte no Rio de
Janeiro.
...
Abandonados
ao principio os nossos expóstos á caridade do povo, que os recebia e criava em
suas casas, fazendo delles muitas vezes seus escravos; expóstos outras vezes
nas praças e ruas á ferocidade dos animaes e ás intemperies do tempo, sem que
ainda as autoridades cuidassem delles; só mereceram a attenção de El Rei em
1693 que, por carta regia de 12 de Dezembro do mesmo anno ordenou que fôssem
alimentadas pelos bens do Conselho”.[147]
No Brasil,
a preocupação específica em tratar da questão da infância e juventude faz-se
presente a partir da metade do século XIX, que se caracterizou como um período
histórico bastante atribulado da vida nacional. Numa perspectiva conjuntural,
foi esse período marcado pelo grande crescimento das cidades maiores, com o fim
da escravatura, surgindo a força de trabalho livre que iria prover de
mão-de-obra a industrialização emergente. Paralelamente e em decorrência disso,
dá-se um ascendente empobrecimento de significativo contigente da população,
fazendo aflorar o problema da “delinqüência de menores”, vagabundagem e
violência. E, desde logo, esses problemas foram associados com a pobreza.
O Código
Criminal do Império (1830), em seu artigo 10, estabelece que os menores de
catorze anos “não se julgarão criminosos”[148], acrescentando o artigo
13: “se se provar que os menores de quatorze annos, que tiverem commetido
crimes, obraram com discernimento, deverão ser recolhidos ás Casas de Correção
pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda á idade
de dezasete annos”. Entre catorze e dezessete anos, estavam os “menores”
sujeitos à pena de cumplicidade, ou seja, dois terços do que cabia ao adulto, e
os maiores de dezessete e menores de vinte e um anos eram beneficiados com a
atenuante da menoridade.
O Código
Penal da República, de 1890, guardava alguma similitude com o anterior, reconhecia
a inimputabilidade absoluta dos menores de nove anos incompletos e dos maiores
de nove a catorze anos, desde que agissem sem discernimento. Para aqueles que
atuassem conscientemente, determinava o recolhimento em estabelecimentos
disciplinares industriais, pelo período que fixasse o juiz, não podendo
ultrapassar, entretanto, o limite da idade de dezessete anos. Estabelecia,
ainda, para os infratores entre dezessete e vinte e um anos, a atenuação
obrigatória da pena a ser imposta.
O grande
diferencial da nova lei penal foi o de incorporar a pedagogia do trabalho coato
como meio de “regeneração” dos “menores” infratores, pois a segregação não
seria mais feita em casa de correção, de caráter puramente disciplinar. A
internação deveria ser cumprida em uma instituição de caráter disciplinar industrial.
Foi a
atualização da legislação ao novo espírito que reconheceu a legitimidade da
intervenção estatal direta para que o Estado atendesse aos seus fins. E, dentro
dessa ótica, deveria o Estado promover, através de estabelecimentos
correcionais de labor, o encaminhamento ao trabalho honesto, capaz de assegurar
o futuro, e, também, servir como meio de preservar a corrupção da infância e
adolescência, além de proteger a sociedade dos maus elementos.[149]
Cumpre
ressaltar que, na ausência de “Casa de Correção” (Código Penal de 1830) ou de
“Instituição disciplinar industrial” (Código Penal de 1890), os “menores”
sempre foram jogados às prisões de adultos, com todas as conseqüências
decorrentes da inserção no sistema penitenciário.
Uma palavra
impõe-se a respeito da condição de aplicabilidade de pena aos “menores” por
força da teoria do discernimento. Como era de se esperar, tal circunstância
gerava grande polêmica, pois alto era o grau de indeterminação do conceito de
discernimento. A definição mais comum era de que “o discernimento é aquela
madureza de juízo, que coloca o indivíduo em posição de apreciar com retidão e
critério as suas próprias ações”.[150]
Como se vê,
a tentativa que se fazia de definir um conteúdo para discernimento também
apresentava um grau enorme de subjetividade e indeterminação, podendo-se dizer
que, em verdade, nada esclarecia, pois só remetia para a subjetividade mais
profunda. O que é, objetivamente, a “madureza de juízo” referida? Qual o
conteúdo da “posição” permissora da apreciação reta e criteriosa das próprias
ações?
Em suma,
pode-se afirmar que a teoria do discernimento[151] não apresentava
critérios claros para a sua densificação, pois, como se vê da definição então
correntia para discernimento, era a mesma vazia de qualquer conteúdo a priori, devendo o conceito ser apurado
diante de cada fato concreto, cabendo à jurisprudência estabelecer se o “menor”
tinha obrado com discernimento.[152]
A partir da
iniciativa norte-americana, mais precisamente do Estado de Illinois, em 1899,
onde foi criado o primeiro tribunal de menores, a idéia ganhou a Europa, onde
praticamente todos os países, no período de 1905 a 1921, criaram seus tribunais
de menores.
No Brasil,
nas duas primeiras décadas do século XX, fortes eram as críticas pela
não-diferenciação no tratamento dado às crianças e adultos delinqüentes.
Procurava-se uma solução que coibisse o delito e, ao mesmo tempo, evitasse que
o contato entre o adulto criminoso e o “menor” inserisse este definitivamente
no mundo do crime. Ou, em outras palavras, ocorria uma ambigüidade: por um
lado, a infância e adolescência em estado de vadiagem e criminalidade, geravam
medo e repressão, e, por outro, isso suscitava preocupação – pelo menos discursivamente
– em mitigar suas carências, a fim de evitar que viessem os “menores” a
ingressar na delinqüência.
Desde
então, essa dubiedade entre assistência e punição – pão e palmatória – passa a
impregnar as soluções legislativas para as questões da “menoridade”. Nesse
contexto, a idéia da criação dos tribunais de menores e de um código específico
para tratar da infância e juventude anormal - quer seja pela delinqüência ou
por estar em situação de desvalia - ganha corpo.
Em 1927, é
criado o primeiro Código de Menores do Brasil – Decreto n.º 17.943, de
12.10.1927 – que ficou conhecido como o Código Mello Matos, em homenagem ao seu
elaborador, José Cândido de Albuquerque de Mello Matos, que veio a ser o
primeiro Juiz de Menores do Brasil.
O primeiro
Código de Menores sistematiza a ação da tutela e da coerção – com fins de
reeducação – que o Estado brasileiro passa a adotar em relação à menoridade. Ou
seja, em síntese, pode-se dizer que os “menores” foram classificados/definidos
enquanto delinqüentes (efeito) e abandonados (causa).
A primeira
legislação codificada não vê a infância e a juventude como sujeitos de(o)
direito, pois tem nítido caráter tutelar, criando a figura do Juiz de Menores,
ao qual cabe – em nome do Estado – a tutela e assistência dos “menores”. Ao
Juizado de Menores são atribuídas múltiplas funções, pois açambarca a área
penal, civil e trabalhista, além de exercer funções administrativas em relação
à infância e juventude. A nota básica do Código Mello Matos é a regulação do
“menor” vadio (corrompido) e do “menor” trabalhador, que, via de regra,
tinham/tem origem nas camadas mais pobres da população.
Ainda que
se possa ver o primeiro Código de Menores como um avanço[153] em relação
à situação anterior, pois passa a menoridade a ter uma atenção especial e
ordenada, em que se manifesta uma preocupação de consideração com o estado
físico, moral e mental do “menor”, bem como com a situação social, moral e
econômica de sua família (pais), continua-se operando com a categorização
estigmatizante de normal/anormal. Propõe-se a intervenção estatal, de forma
mais organizada, visando a um atuar mais incisivo, pois o problema do “menor” é
percebido em escala crescente de periculosidade, face ao aumento do abandono e
delinqüência que se apresentam.
Após o Código
de Mello Matos, sucedem-se vários textos legislativos de significância para a
menoridade. Pode-se citar, já no Estado Novo – período de 1937 a 1945 – a
ampliação da idade da imputabilidade penal para dezoito anos com a vigência do
Código Penal de 1940. O Decreto-lei n.º 2.024, de 17.02.1940, que “fixa as
bases de organização da proteção à maternidade, à infância e à adolescência em
todo país”. É criado, também, o Departamento Nacional da Criança (DNC),
diretamente vinculado ao gabinete do ministro do Ministério da Educação e
Saúde.
Em 1941,
por intermédio do Decreto-lei n.º 3.799, subordinado ao Ministério da Justiça e
ao Juizado de Menores do Distrito Federal, é instituído o Serviço de
Assistência a Menores (SAM). Tal órgão funciona sem qualquer vinculação com o
Departamento Nacional da Criança e adota uma política de criação de
instituições totais. Segundo PEREIRA JÚNIOR,
“(...) O
SAM segue a lógica do sistema penitenciário adulto. Parte da premissa, apontada
no Código de Mello Matos, de que o ‘menor’ (delinquente ou abandonado)
necessita passar por um processo de ressocialização, pautado na coerção, para
que as distorções fossem corrigidas, possibilitando sua reintegração na
sociedade. Corresponde, portanto, a uma instrumentalização da máquina do Estado
para cumprir as determinações penais do Código de Menores”.[154]
O Código
Mello Matos foi objeto de revisão, visando a sua atualização, com o novo Código
Penal (1940), sendo procedida essa revisão através do Decreto-lei n.º 6.026/43.
As modificações introduzidas pautaram-se “na noção de periculosidade,
abandonando a categoria ‘delinquente’ para utilizar a de ‘infrator’, o que vem
a cristalizar de vez a visão da menoridade como caso de polícia”.[155]
O Estado Novo,
também na área da infância e juventude, teve uma política baseada no
autoritarismo, assistencialismo, clientelismo e paternalismo que o
caracterizaram. Isso não implicou uma mudança central do conteúdo da política
instaurada com o Código de Menores de 1927. Houve, isso sim, uma acomodação do
Código ao que determinou o Código Penal de 1940 como instituidor de uma nova
ordem penal. O certo é que, na essência, nada mudou, pois a menoridade
continuou sendo pensada e vista como potencialmente perigosa à sociedade, a
qual precisava defender-se ou ser protegida contra a ameaça.
Depois do
golpe militar de 1964, surgiu uma nova proposta para a infância e juventude, a
Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM), criada pela Lei n.º 4.513, de
1º.12.1964. A visão do “menor” passava a ter outro eixo, deixava de ser
centrada no perigo social, assumindo o seu lugar a perspectiva da criança
carente e abandonada. O assistencialismo ganha prioridade em relação à punição.
Há o reforço da ótica de que a anormalidade do comportamento do “menor” é
decorrente de sua pauperização e desestrutura familiar, que são os problemas a
merecer solução prioritária.
Instituiu-se
um sistema centralizador e vertical de atendimento da criança e juventude, em
que o órgão nacional de controle e orientação era a Fundação Nacional de
Bem-Estar do Menor – FUNABEM – que substituiu o SAM e deveria promover a
correção de suas falhas estruturais. Tal não aconteceu, permanecendo a FUNABEM
trabalhando na mesma lógica carcerária que a antecedeu e baseando a sua ação no
determinado pelo Código Mello Matos.
Nos anos
setenta do século XX, o “menor” é colocado em evidência, pois o recrudescimento
das desigualdades sociais originadas no modelo econômico implantado pelo regime
militar acaba por fazer das ruas – pelo menos nas grandes metrópoles do país –
um espaço alternativo de sobrevivência da infância e adolescência, bem como
para adultos excluídos do sistema. Em decorrência disso, possível assegurar
que, de forma definitiva, cristaliza-se no senso comum a associação entre
pobreza e violência/criminalidade urbana.
Dentro
desse quadro, a discussão sobre o problema do “menor” vai ganhando contornos
totalmente estigmatizantes, pois a procura é de uma solução para “o problema” e
não para a infância e juventude. Encaminha-se a questão para a adoção da
doutrina da situação irregular, que impregna praticamente todas as legislações
menoristas da América Latina de então.
Em 1979,
entra em vigor o novo Código de Menores – Lei n.º 6.697, de 10.10.1979, que se
funda na chamada doutrina da situação irregular.
Em linhas
gerais, conforme MÉNDEZ, todas as legislações que adotam a doutrina da situação
irregular apresentam as seguintes características centrais:
“a) Essas leis pressupõem a existência de profunda divisão no
interior da categoria infância: crianças-adolescentes e menores (entendendo-se
pelos últimos o universo dos excluídos da escola, da família, da saúde etc.).
Como conseqüência, essas leis, que são exclusivamente para menores, tendem
objetivamente a consolidar as divisões aludidas dentro do universo da infância;
b) Centralização do poder de decisão na figura do juiz de
menores com competência onímoda e discricional;
c) Judicialização dos problemas vinculados à infância em
situação de risco, com clara tendência de patologizar situações de origem
estrutural;
d) Impunidade (com base na arbitrariedade normativamente
reconhecida) para tratamento dos conflitos de natureza penal. Essa impunidade
se traduz na possibilidade de se declarar juridicamente irrelevante os delitos
graves cometidos por adolescentes pertencentes às classes sociais média e alta;
e) Criminalização da pobreza, dispondo de internações que
constituem verdadeiras privações de liberdade, por motivos vinculados à mera falta
ou carência de recursos materiais;
f) Consideração da infância, na melhor das hipóteses, como
objeto de proteção;
g) Negação explícita e sistemática dos princípios básicos e
elementares do direito até mesmo dos contemplados na própria Constituição Nacional
como direito de todos os habitantes; e
h) Construção sistemática da semântica eufemística que
condiciona o funcionamento do sistema à não-verificação empírica de suas
conseqüências reais”.[156]
Pelas notas
básicas da doutrina da situação irregular, verifica-se que a mesma está
embebida na idéia de tradição, mantendo a operação do sistema na dicotomia
normal (infância fora de situação irregular)/anormal (“menor” em situação
irregular).
O
arraigamento dessa discriminação estigmatizante é grande, sendo, de regra,
chamado de “menor” a infância ou adolescência em conflito com a lei ou
marginalizada do sistema, enquanto a denominação criança é referencial dos
inseridos no sistema.
No velho
paradigma, não se vê a infância como sujeito de direitos. É, isso sim, o objeto
do direito. Reconhecida a sua situação irregular – cuja caracterização é ampla,
abrangendo as categorias de material e/ou moralmente abandonado, nada deixando
de ser potencialmente irregular – oportuniza-se uma solução individual, a ser
decidida pelo juiz, que age discricionariamente como “um bom pai de família” à
procura do melhor para seu filho!
O que
deveria ser um sistema legal de regras aplicáveis, gerando certeza e segurança
jurídica, não passa de um conjunto de recomendações/possibilidades postas à
disposição do juiz para que escolha qual a melhor solução para cada caso.[157]
Comumente
se diz que o grande marco de mudança paradigmática da questão da infância no Brasil
foi o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente. Entretanto, tal
afirmação é equívoca.
A Lei n.º
8.069/1990 nada mais é do que a integração legislativa do que estabelece a
Constituição Federal de 1988, no seu artigo 227, que introduziu em nosso país a
doutrina da proteção integral. Logo, possível afirmar que, desde a vigência da
atual Carta Política, toda a legislação menorista que contrariava os princípios
constitucionais fixados para a infância e juventude restou derrogada. E assim
é, pois, sendo o Estado Democrático de Direito um Estado principialista, não há
como subsistir normativa legal que contrarie os princípios que o presidem.[158]
Imperativo
esse esclarecimento, ainda que para dizer o óbvio, pois é a falta de clareza ou
compreensão do papel representado pela Constituição no Estado Democrático de
Direito que leva a equívocos interpretativos tendentes a minimizar a efetivação
do texto constitucional.
Durante o
processo constituinte, fruto de um intenso debate que se processava no país desde
os anos oitenta do século passado, predominou o entendimento de que a nova
Constituição deveria incorporar os diversos aspectos de proteção da infância e
adolescência que consubstanciavam diversos documentos internacionais
específicos e tinham como linha básica a proteção dos direitos humanos.
O conteúdo
do artigo 227 da Constituição é reconhecido como veiculador da síntese da
doutrina da proteção integral, que restou plasmada na Convenção Internacional
dos Direitos da Criança, aprovada por unanimidade pela Assembléia Geral da
Organização das Nações Unidas (ONU), em 20.11.1989.
A doutrina
da proteção integral tem como antecedente direto a Declaração dos Direitos da
Criança (1959), condensando-se em quatro documentos internacionais
fundamentais: a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, as Regras
Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil (Regras de
Beijing), as Regras Mínimas das Nações Unidas para os Jovens Privados de
Liberdade e as Diretrizes das Nações Unidas para a Administração da Justiça
Juvenil (Diretrizes de Riad).
A doutrina
da proteção integral, acolhida pela Carta Política de 1988, representa a
verdadeira mudança de paradigma, pois implica a modificação do enfoque.
Passa-se “do menor objeto de compaixão-repressão à infância-adolescência como sujeito pleno de direitos”.[159]
A preocupação deixa de ser com o “menor” delinqüente-abandonado, para existir
em relação a toda infância, à qual é assegurado, de forma prioritária, o
exercício de seus direitos básicos e fundamentais, face à condição de ser
humano em desenvolvimento.
Em outras
palavras, a visão agora é de toda população infanto-juvenil, que deverá ter
seus direitos garantidos, afastando-se o foco de segregação e repressão da
doutrina da situação irregular.
O alvo de
ação não será mais o “menor” desviante, pois não é a criança que precisa de
controle e reintegração, uma vez que não se encontra irregular. A
irregularidade, agora, está nas condições precárias para a sua sobrevivência e
desrespeito de seus direitos fundamentais. A ordem é agir para assegurar à
criança condições de uma vida digna, e para isso deverá estar voltada a ação do
Estado, da família e da sociedade.
No campo da
infração penal, não mais subsiste a ótica criminalizadora do Código de Menores.
Assegura-se a existência de um procedimento para apuração de atos infracionais,
em que é assegurado o amplo direito de defesa, sem uma preconcepção do “menor”
como infrator potencial a ser ressocializado. Acaba o estigma e a lógica da segregação
como meta. A privação de liberdade passa a ser excepcional. Em caso de ser
aplicada, deve-se sempre levar em conta a condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento do adolescente que vier a ser submetido a uma medida de tal
espécie.
É dentro
desse contexto de acolhimento da doutrina da proteção integral, que assegura
direitos à infância e juventude e, no campo da infração penal, estabelece a
apuração de eventual responsabilidade dentro de um sistema que oferece
garantias processuais, que a Constituição plasmou a idade da inimputabilidade
em dezoito anos.
Visando a
demonstrar que o Brasil não se encontra em descompasso com o mundo – ao
contrário do que se apregoa amiudemente – ao ter estabelecido a idade de
responsabilidade penal em dezoito anos, apresenta-se um quadro comparativo com
diversos países.
No quadro,
quando foi possível a obtenção de dados, apresenta-se a idade da
responsabilidade penal juvenil, isto é, a partir de que idade há apuração de
infração penal cometida por adolescente. No Brasil, de acordo com o
estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente, a idade da
responsabilidade penal juvenil é de doze anos.
PAÍS |
IDADE DA RESPONSABILIDADE PENAL JUVENIL |
MAIORIDADE PENAL (IMPUTABILIDADE PENAL) |
Alemanha |
14 |
18-21* |
Argentina |
16 |
18 |
Arkansas/EUA |
|
21 |
Áustria |
14 |
19 |
Bélgica |
16 |
18 |
Bolívia |
12 |
16 |
Bulgária |
14 |
18 |
Califórnia/EUA |
|
21 |
Chile |
14 |
18 |
Colômbia |
12 |
18 |
Costa Rica |
12 |
18 |
Dinamarca |
15 |
18-21* |
Egito |
|
15 |
Espanha |
12 |
18-21* |
França |
13 |
18 |
Grécia |
13 |
18 |
Holanda |
12 |
18 |
Hungria |
14 |
18 |
Índia |
|
15 |
Inglaterra |
7-15 |
18 |
Itália |
14 |
18 |
Paraguai |
|
15 |
Peru |
12 |
18 |
Polônia |
13 |
17 |
Portugal |
|
16-21* |
Romênia |
16 |
18-21* |
Suécia |
15 |
18 |
Suíça |
7-15 |
18-25* |
Uruguai |
14 |
18 |
Wyoming/EUA |
|
19**21*** |
* Entre as
idades apontadas, aplica-se legislação especial para o jovem adulto.
** Sexo masculino.
*** Sexo
feminino.[160]
Agora, em
linhas gerais, sem qualquer pretensão de esgotamento da matéria, procurar-se-á
demonstrar que a superação do velho paradigma na questão da infância e
juventude só é possível através da hermenêutica. Vale dizer, a
efetivação/materialização dos direitos fundamentais assegurados à infância e
juventude, de modo especial pela Constituição,[161] depende da
compreensão de que houve uma real mudança de diretriz no trato da matéria: a
infância e juventude deixou de ser objeto de direito para se tornar sujeito de
direitos.
À primeira
vista, tal afirmação aparece como paradoxal, pois, como já visto, a doutrina da
proteção integral (novo paradigma) foi objetivamente acolhida pela Constituição
de 1988. E, se já se fez norma, tem força obrigatória e deve ser cumprida. É o
óbvio. Ocorre, entretanto, como diz STRECK: “A obviedade somente exsurgirá
‘como’ obviedade a partir de seu des-velamento (algo como algo)”.[162]
Sem que se
demonstre, descubra-se, revele-se o que diz a Constituição na sua dimensão
transformadora, como norteadora/conformadora do Estado Democrático de Direito,
o novo paradigma não se traduzirá numa realidade praticada. Isso porque a dogmática
jurídica do neopositivismo, ainda dominante, arrima-se em conceitos (jurídicos)
e preconcepções do mundo ideologicamente imbricados com os interesses de
preservação do status quo, que acabam
por retirar do Direito a sua possibilidade modificadora.
No caso
específico da criança e do adolescente, o abandono dos conceitos arraigados –
vale dizer, a aceitação do novo paradigma expresso na Carta Magna – apresenta
maior dificuldade. E assim é, pois faz parte do imaginário simbólico dos
operadores do Direito o tratar de crianças e adolescentes de forma coisificada,
sem o reconhecimento de que são titulares de direitos e garantias.
A longa
tradição em ver a questão “menorista” na ótica da doutrina da situação irregular,
em que a intervenção estatal se dava pelo dispor dos “menores” material ou
moralmente abandonados, exige um esforço redobrado para fazer emergir da
Constituição a compreensão de que crianças e adolescentes devem ser
compreendidos como cidadãos merecedores de prioridade absoluta por parte da
família, da sociedade e do Estado, pois são pessoas em desenvolvimento.
Nesse viés,
tratar-se-á de esclarecer, sucintamente, o que constitui o senso comum teórico
dos operadores do Direito e como a dogmática jurídica é instrumento
insuficiente para realizar a transição de paradigma na questão da infância e
juventude, que só poderá ser efetuada por intermédio de uma hermenêutica
crítica. O enfoque do acontecer hermenêutico, é bom que se diga, será centrado
no modo pelo qual deve atuar o Poder Judiciário para a efetivação da
Constituição e, via de conseqüência, consolidação do Estado Democrático de
Direito.
Difunde-se
e assim se encontra disseminado no imaginário social - ainda que não de forma
absoluta, mas seguramente de forma majoritária – que o Direito é um sistema
lógico, em que a ocorrência de eventuais contradições é natural e solvida pela
própria lógica do sistema. Obtém-se tal entendimento no campo da dogmática jurídica,[163]
através do senso – ou sentido – comum teórico dos juristas.[164]
O senso
comum teórico é o conjunto de influências que os operadores do Direito recebem
na sua prática diária, “numa espécie de corpus
de representações”.[165] Ou, conforme WARAT,
“(...)
senso comum teórico dos juristas designa as condições implícitas de produção,
circulação das verdades nas diferentes práticas de enunciação e escritura do
Direito.
....
Nas
atividades cotidianas – teóricas, práticas e acadêmicas – os juristas encontram-se
fortemente influenciados por uma constelação de representações, imagens,
pré-conceitos, crenças, ficções, hábitos de censura enunciativa, metáforas,
estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente seus atos
de decisão e enunciação”.[166]
De um modo
geral, estuda-se e pratica-se o Direito a partir de um conjunto de saberes
acumulados e preestabelecidos, tidos como verdadeiros e que acabam não sendo
questionados, muito embora não se os tenha como inquestionáveis. São, na verdade,
pré-dados que envolvem os operadores e acabam sendo aceitos sem maior reflexão.
É como uma racionalidade subjacente, que “aparece de vários modos e maneiras e
configura a instância de pré-compreensão do conteúdo e os efeitos dos discursos
de verdade do Direito”.[167]
Em vista
disso, pode-se dizer, na esteira de WARAT e STRECK, que a produção cotidiana do
jurista por si só não tem significado. Apresenta-se como significante em razão
do conteúdo que lhe agrega o senso comum teórico, no momento em que essa
produção é dada ao conhecimento. Vale dizer, o seu significado, que advém do
senso comum teórico, traz uma carga
axiológica dos saberes que veicula de forma reprodutiva. Todavia, em que
pese transmitir valores, não traz qualquer compreensão ou explicação sobre os
mesmos.
É, em
essência, uma reprodução valorativa acrítica, que não gera a possibilidade de
modificação, pois tende a paralisar qualquer atividade crítica ou criadora do
operador do Direito, levando-o a um “conformismo”. Essa aceitação paralisante,
então, facilita a diluição dos paradoxos que emergem de uma sociedade plena de
conflitos e contradições.[168]
Se a
mudança de paradigma[169] na questão da infância e juventude não for
percebida como algo realmente novo, corre o risco de ser absorvida pelo senso
comum teórico e daí ganhar uma transmissão de significância preconcebida e
operada com categorias da doutrina da situação irregular.
E se tal
acontecer, mais uma vez não cumprirá a lei a sua função transformadora, pois
haverá um descolamento da realidade fática – que, no caso, precisa de uma
grande e efetiva modificação[170] - do sentido determinado pela nova
ordem, que, sem dúvida, é inovador e promovente da dignidade humana.
Pela desconstrução
dos velhos conceitos da doutrina da situação irregular, com a introdução das
diretrizes fixadas pelo novo paradigma da proteção integral no imaginário
simbólico dos juristas, é que se atingirá a transformação a que se propõe a lei
no Estado Democrático de Direito.
Há que se
mudar as pré-compreensões na esfera da infância e juventude, aparelhando os
operadores jurídicos com um ferramental que encaminhe para uma efetivação do
entendimento de que as crianças e adolescentes não são mais objeto de tutela,
mas sujeitos de direitos.
Essa
modificação, entretanto, não se dará através da dogmática jurídica
neopositivista. Uma dogmática não-questionadora - que vê o Direito como a lei,
como o texto dos códigos, que não perscruta princípios, pois entende o Direito
como simples meio de controle social - jamais operará qualquer mudança. E isso
porque cumpre um papel ideológico de manutenção de privilégios, mantendo as
coisas da forma em que se encontram.
Em termos
jurídicos, o problema que se apresenta para a efetivação do novo paradigma da
infância e juventude é como trazê-lo à compreensão dos operadores do Direito.
Existe uma grande dificuldade em realizar a função conformadora do texto
constitucional, isto é, trazer para a prática jurídica, com reflexo efetivo no
meio social, a transformação que a lei pode/deve fazer.
Incumbe à
hermenêutica a tarefa de demonstrar que a Constituição obriga a um agir
vinculado ao que ela dispõe, e para isso é necessário descobrir o seu sentido.
Não necessariamente “um sentido”, mas que exista “um sentido de Constituição”.[171]
Para o
descobrimento disso, entretanto, é necessário verificar a razão pela qual a
Constituição, como já dito, apesar de ter força obrigatória, apresenta um alto
grau de inefetividade. A Carta Política de 1988, inegavelmente, é um novo
modelo de Direito, mas continua sendo visto com velhos olhos, isto é, os
operadores jurídicos continuam operando como se nada tivesse mudado, reproduzindo
interpretações e conceitos vinculados à velha ordem.[172]
Tal maneira
de operar o Direito também passa pela utilização de conceitos advindos da
hermenêutica clássica, concebida como técnica de interpretação. E nessa, a
linguagem é utilizada como um condutor de significados e corretas exegeses das
normas, o qual se interpõe como terceira coisa entre sujeito e objeto. Conforme
STRECK, trata-se de uma resistência à mudança do paradigma
hermenêutico-interpretativo de sujeito-objeto para sujeito-sujeito:
“Não é
temerário afirmar que o Direito – entendido através de sua intrumentalização (a
dogmática jurídica) – é uma trincheira que resiste (teimosa-mente) a essa viragem hermenêutica. O rompimento com a
dualidade sujeito-objeto, e a conseqüente morte do sujeito, assustam a
comunidade jurídica. Ora, a linguagem não é uma terceira coisa que se interpõe
entre o sujeito e o objeto. Antes e mais do que isto, a linguagem é condição de
ser-no-mundo, porque já é precedida por um compreender
que nasce da auto-explicitação do nosso modo-de-ser. É nele, pois, que se funda
toda a hermenêutica”.[173]
Dito isso,
pode-se afirmar que o sentido da Constituição é constituir, não é um
instrumento ou ferramenta. E constitui não porque se trata de uma Lei
Fundamental que assume o seu papel no mundo, mas porque nascida do processo
constituinte como algo que deve acontecer, de onde deve surgir a sociedade nova
que conforma com seus princípios e regras de natureza cogente.
Logo, a
efetivação do novo paradigma da infância e da juventude só se impõe pela
hermenêutica, pois será por intermédio dela que se revelará a sua
obrigatoriedade de assegurar aos cidadãos menores de dezoito anos um
desenvolvimento social calcado na prioridade absoluta, que advém da força
normativa da Constituição.
No Estado
Democrático de Direito, para que ocorra a efetividade material da Constituição,
reserva-se ao Poder Judiciário um especial papel. Isso porque tende a ocorrer
um deslocamento do centro de decisões para o Judiciário.[174] A inércia
do Executivo em cumprir as políticas públicas e os programas sociais que lhe
são impostos pela Consituição, entre as quais as referentes à infância e
juventude em caráter prioritário, bem como a desídia do Legislativo, pode ser
suprimida pelo Judiciário, bastando que, para tanto, sejam manejados
(efetivamente) os instrumentos jurídicos que se encontram na Carta Política.[175]
Contextualizando.
Exigida a manifestação do Judiciário no campo da infância e adolescência e
sendo ele confrontado com a inércia do Poder Executivo em implementar as
diretrizes constitucionais, impõe-se descobrir o sentido da Constituição na
questão. Entende-se que isso se inicia pela rejeição de qualquer prática
relacionada com o velho paradigma (doutrina da situação irregular), isto é, que
não trate a infância e juventude como sujeito de direitos e não atenda ao dever
de promoção da dignidade humana.
Incumbe ao
juiz desvelar o conteúdo da Constituição. Para atingir tal desiderato, primeiro
tem que descobrir/ver as irregularidades existentes no mundo real enquanto
irregularidades, ver o ser-no-mundo. E, descobrindo-as, tratá-las como
situações irregulares que são. Isto é, ver que irregulares estão o Estado, a
sociedade ou família que não cumprem com a prioridade de atendimento que devem
ter crianças e adolescentes[176]. E, ao descobrir isso, fazer valer a
Constituição, impondo a execução de suas normas promoventes da igualdade e da
dignidade humana.
Isso,
entretanto, só será possível quando houver consciência de que o juiz não pode
estar preso a um dogmatismo fechado, acrítico e que não procura ver a
realidade, pois, no Estado Democrático de Direito, tem ele uma missão social a
cumprir. Deve transformar-se
“num ator
dotado de competências hermenêuticas menos rígidas e consciente de que, a
partir do momento em que o direito deixou de ter como função apenas controlar e
conservar a sociedade, passando também a desempenhar funções de direção e
transformação social, inexistem possibilidades práticas para a eficácia de
sistemas jurídicos ‘fechados’ e completos”.[177]
Em suma, a
Constituição só será efetivada se todos os operadores do Direito - o juiz em
especial – assumirem que a hermenêutica é muito mais que uma técnica de
interpretação dirigida à compreensão de fatos concretos à luz de normas gerais,
abstratas e impessoais, em que o juiz opera como simples realizador de uma
função subsunçora. A hermenêutica deve ser assumida metodologicamente como um
saber conectado à realidade e às exigências históricas de renovação da
aplicação do Direito, pois interpretação jurídica é indissociável de aplicação.
É
necessário, diante da Constituição de 1988, que instituiu um novo paradigma,
que o intérprete sinta a “angústia do estranhamento”, na feliz expressão de
STRECK. Ou, em outras palavras, experimente a ansiedade que o novo traz. Mas,
para descobrir/compreender o novo, é essencial o abandono de preconcepções,
pré-dados – desvencilhar-se do corpus de
representações que povoa o imaginário – e ver o novo como novo e com todas
as suas possibilidades: “Compreender é
estabelecer espaços para poder e deixar ver. Compreender é ser-em; é poder
estar-aí”.[178]
Neste capítulo,
tendo como suporte de fundo as idéias até agora desenvolvidas e mais algumas
considerações sobre direitos fundamentais – centradas nos aspectos mais
diretamente relacionados com o objeto da investigação – declinar-se-á,
pontualmente, os motivos pelos quais se entende impossível a modificação da
idade penal mínima, com especial atenção para a tendência da Suprema Corte em
valorizar as cláusulas pétreas.
Os
defensores da diminuição da idade da imputabilidade penal cometem um grande
equívoco, não reconhecendo que a sua
fixação foi uma opção política do Constituinte de 1987/1988. Logo, toda e
qualquer discussão com base na teoria do discernimento, como vem sendo travada,
é desfocada. O critério para estabelecer a idade penal mínima foi político, não
tendo relação com a capacidade ou incapacidade de entendimento.
Aceitar-se
que a fixação constitucional da imputabilidade penal baseia-se na falta de
compreensão do caráter ilícito ou anti-social de uma conduta criminosa implica
em equiparar adolescentes a insanos mentais, e isso, à evidência, é algo que
padece de um mínimo de coerência. Ninguém tem dúvida de que o jovem e mesmo a
criança têm plena capacidade de entender que é reprovável furtar, danificar,
matar, etc.
Também não
se pode falar na adoção, pelo Constituinte, de um critério puramente biológico.
A decisão foi no sentido de valorização da dignidade humana de todas as pessoas
menores de dezoito anos, de acordo com a tendência internacional de
reconhecimento jurídico da doutrina da proteção integral, que acabou
consubstanciada na Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Em outras
palavras, sendo o Estado Democrático de Direito presidido, entre outros, pelo
princípio da dignidade da pessoa humana, a fixação da imputabilidade penal aos
dezoito anos representa o seu compromisso com a valorização da adolescência,
por reconhecer tratar-se de uma fase especial do desenvolvimento do ser humano.
E sendo uma
opção política, sequer se pode falar que a idade penal mínima não deveria ter
sido erigida à condição de norma constitucional, pois não existe um critério
certo para definir o que pode/deve ou não ser constitucionalizado, até porque,
em uma democracia pluralista, tudo tem
potencial político.
Aliás, o
discurso para redução da idade de responsabilidade penal é essencialmente
político. Trabalha-se com o mito de que aumentando o número de clientes
potenciais do sistema penitenciário haverá uma diminuição dos delitos cometidos
por adolescentes, por força de um pretenso efeito intimidador e fim da
impunidade.
Os
argumentos são falaciosos e, na verdade, encobertam uma opção ideológica por um
Estado mínimo. Não existe nenhuma base séria para a afirmação de que o aumento de
penalização diminui a criminalidade. Se assim fosse, onde é adotada a pena de
morte ter-se-ia a redução da prática de crimes e não há notícia de que isso
esteja acontecendo. No Brasil mesmo se verifica isso, pois as estatísticas
estão a demonstrar que desde o advento da Lei dos Crimes Hediondos – que é de
1990 - em que foram agravadas penas e condições de execução das mesmas não
ocorreu a diminuição da criminalidade que tal lei quis coibir. Por outro lado,
os adolescentes infratores não restam impunes pelos atos delituosos que
cometem. Há previsão de responsabilização, inclusive com privação de liberdade.[179]
De mais a
mais, o atendimento ao clamor para a diminuição da idade de imputabilidade, na
prática, só viria a alcançar os marginalizados, pois, como desassistidos em
suas necessidades essencias pelo Estado, representam a maioria dos adolescentes
que entra em conflito com a lei.[180]
A ótica,
dentro do novo modelo implantado pela Constituição, é a de exigir que o Estado
cumpra com sua obrigação de garantir um desenvolvimento sadio à infância e
adolescência, pois, com certeza, havendo o devido atendimento, ocorrerá uma
sensível diminuição da criminalidade juvenil. Oportunize-se uma existência
digna, que os resultados aparecerão.
A intenção
de modificação da idade penal mínima enquadra-se, certamente, no contexto da
crise pela qual passam a sociedade, a democracia e a cidadania, em decorrência
da globalização econômica. O projeto de mundialização tem priorizado o
econômico, pelo menos no Brasil, onde o neoliberalismo tem apresentado grande
força e fôlego. Muito dessa força, é verdade, advém da situação periférica do
país, geradora de uma grande dependência dos centros industrializados, que, por
isso, acabam impondo a prevalência de seus interesses. E fazem isso por
intermédio das elites locais, que estão mais interessadas em preservar
interesses próprios.
Não
interessa, ao projeto de globalização econômica em curso, a existência de um
Estado forte e promotor da igualdade social, pois isso acabaria criando uma
consciência de cidadania, que, muito provavelmente, viria a questionar o modelo
que pretende ser hegemônico.
Por tudo
isso, é de se reconhecer que andou bem o Constituinte em trazer para a Lei
Maior a questão da idade da imputabilidade penal, pois, sendo uma opção
política de valorização da dignidade humana, assegurou-lhe o status próprio.
Os direitos
fundamentais exercem papel de capital importância no Estado Democrático de
Direito. Isso porque os direitos fundamentais são a principal garantia de que o
Estado, através de seu sistema jurídico e político, promoverá a proteção do
cidadão enquanto individualidade e, também, a solidariedade social, visando a
um pleno desenvolvimento da comunidade como um todo. Em outras palavras, os
direitos fundamentais garantem o respeito dos direitos individuais e a promoção
social baseada na valorização da dignidade humana, cumprindo a função de
descortinar o horizonte emancipatório a alcançar no Estado Democrático de
Direito, o que decorre do seu compromisso antropológico.
Por força
do papel que desempenham, os direitos fundamentais gozam, em nosso ordenamento,
de um reforço de efetividade[181], pois, de acordo com o § 1º do artgo
5º da Constituição, “as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata”. Tal disposição implica uma “juridicidade
reforçada”, que é uma característica comum e diferenciada dos direitos
fundamentais[182]. Além disso, são os direitos fundamentais protegidos
contra a possibilidade de extirpação da Constituição, já que protegidos pela
intangibilidade fixada no artigo 60, § 4º, inciso IV, da Lei Maior.
Os direitos
fundamentais tomaram assento constitucional – presidindo a normatividade do
Estado Democrático de Direito – não de forma graciosa. Tal posição foi
alcançada depois de muita luta, em cada momento histórico, para que fosse
reconhecido o direito que hoje se encontra entendido como fundamental. Ou,
conforme PINTO,
“A história
constitucional ensina-nos também que os direitos humanos só acedem à
institucionalização ao preço de muita luta por parte daquelas forças que,
usando a terminologia de A. Heller, são portadoras das ‘necessidades radiciais’
(os ‘sujeitos da história’) – luta dirigida contra aqueles que, em cada momento
histórico, protagonizam o papel de ‘inimigos’ (Castro Cid) de tais direitos,
seja o poder absoluto do Estado, sejam os poderes privados que emergem da
liberdade económica, etc.”.[183]
Em vista
disso, é possível afirmar que os direitos fundamentais têm origem histórica,
não decorrendo de nenhuma circunstância metafísica inerente ao ser humano. Sem
embargo da reconhecida importância das concepções jusnaturalistas no
desenvolvimento da luta histórica pela afirmação dos direitos fundamentais.
O processo
histórico-evolutivo e o reconhecimento universalizado - que se consubstancia
nas declarações de direitos de caráter internacional - demonstram que os
direitos fundamentais representam um patrimônio cultural comum da humanidade.[184]
E tanto é
assim, que esse reconhecimento universal passou a ser decisivo para a
incorporação dos direitos fundamentais nas ordens constitucionais positivas. E
o grau de incorporação de direitos fundamentais em uma Constituição serve como
critério aferidor da legitimidade da ordem constitucional, pois indica a
dimensão da centralidade no ser humano que tem um Estado.
O processo
histórico-evolutivo dos direitos fundamentais também demonstra a sua concepção
materialmente aberta, pois sempre permite a emergência de novos direitos ou a
agregação de novos conteúdos aos já existentes, que passam a ter uma nova
conotação.[185]
A
Constituição Federal, conforme se vê do § 2º do artigo 5º,[186] abriga o
caráter materialmente aberto dos direitos fundamentais, pois permite localizar
tais direitos em todo o seu texto, e não só aqueles que estão elencados no
catálogo que apresenta (Título II). Além disso, autoriza o reconhecimento de
outros direitos fundamentais que não se encontram no texto constitucional
(direitos materialmente fundamentais), desde que decorram do regime e
princípios por ela adotados, bem como de tratados internacionais dos quais o
Brasil seja parte. Vale dizer, o rol de direitos fundamentais elencados na
Constituição não é exaustivo, permitindo a localização de outros.
Algumas críticas são feitas ao catálogo de direitos fundamentais constante
na Constituição (Título II), e contra a possibilidade de uma maior abertura
para o reconhecimento de outros que não os elencados na Carta Magna.
No que diz respeito aos catalogados, ainda que se possa, em algumas
situações, ter como aceitáveis as críticas,[187] pois realmente foram
incluídos dispositivos que não se caracterizam como direitos fundamentais – v.g., o inciso XLIII do artigo 5º [188]
- não há como afastar, pelo menos formalmente, o caráter de fundamental dos
dispositivos assim consagrados pela Constituição.
Por outro lado, em relação à abertura do sistema de direitos fundamentais,
sustentam os críticos a necessidade de uma interpretação restritiva, pois a
rotulação das mais diversas situações como direitos fundamentais leva a uma
banalização de tal categoria de direitos. E isso acaba gerando um desprestígio
desses direitos, pois não serão assegurados a todos os direitos fundamentais
reconhecidos uma garantia de eficácia, fazendo com que percam a sua força e
prestígio.
Ocorre que a questão da abertura dos direitos fundamentais não se resume a
uma circunstância de interpretação (restritiva ou ampliativa). Com efeito, como
já visto, os direitos fundamentais são históricos e resultam de um processo de
conquista dos seres humanos, e correlacionam-se com as necessidades concretas
de cada sociedade em um determinado momento de sua existência. As necessidades
surgem – especialmente num mundo cambiante como o atual – implicando a
valoração deste ou daquele bem jurídico, que passa a ter relevância e acaba
sendo considerado fundamental. Vê-se isso, na atualidade, com mais clareza, em
relação à genética, pois as pesquisas científicas avançam em velocidade
vertiginosa, e ainda não se definiram, de forma clara, critérios para que as
modificações genéticas que se apresentam possíveis ou viabilizáveis venham em
favor de todos os seres humanos e não como mais um fator de desigualdade
social.
Dentro desse contexto, por óbvio, a pretensão de reconhecer-se um direito
não incluído na Constituição como fundamental somente através de uma
interpretação restritiva implicaria o afastamento do sistema jurídico da
realidade, o que em nada contribuiria para a valoração da dignidade humana, que
é um princípio fundamental e norteador do Estado Democrático de Direito, além
de retirar ou, pelo menos, minimizar a função transformadora do Direito.
Logo, para o reconhecimento de um direito fundamental fora do catálogo,
essencial o estabelecimento de critério para sua identificação, e isso se faz
possível pelo exame do conteúdo de
cada direito, para verificação de sua fundamentabilidade.
A fundamentabilidade material de um direito decorre de sua imbricação
direta com a pessoa humana, valorizando a sua dignidade; e resulta, também, “da
concepção de Constituição dominante, da idéia de Direito, do sentimento
jurídico coletivo”.[189] É importante observar que se uma Constituição –
nem formal e nem materialmente – valoriza os direitos fundamentais, por não
procurar a concreção da dignidade humana, o problema não são os direitos
fundamentais, mas a Constituição que é deficiente, a denotar que o Estado
padece de essencial falta de centralidade antropológica, que, provavelmente,
tem origem na ausência de um regime político democrático a presidi-lo.
O certo é que o princípio da dignidade humana sempre está no centro, ou
vinculado, à existência de um direito fundamental fora do catálogo, quer em
outro lugar da Constituição, quer se trate de um direito fundamental
não-escrito, mesmo que isso não seja de forma exclusiva, “já que em diversos
casos outros referenciais podem ser utilizados”.[190]
No que interessa especificamente para a investigação em curso, importante
ressaltar que a verificação de estar uma posição jurídica, de forma direta,
relacionada ou sustentada – no que diz respeito à sua proteção essencial – pela
dignidade humana, implica reconhecer que se está frente a um direito
fundamental. Sem embargo da necessária cautela na sua detectação, que sempre
deverá ser feita de forma individualizada e considerando o caso concreto.[191]
E segue SARLET - depois de informar que o princípio da dignidade da pessoa humana
serve como critério justificador de fundamentabilidade material de direitos
positivados no texto constitucional fora do catálogo e de direitos implícitos -
afirmando que o mesmo princípio ampara o reconhecimento de direitos
fundamentais autônomos. Isso porque
“nada impede – em que pese as respeitáveis opiniões em contrário – que do
princípio da dignidade da pessoa humana se possam deduzir autonomamente – sem
qualquer referência direta a outro direito fundamental – posições
jurídico-subjetivas fundamentais”.[192]
Pode-se concluir, portanto, que o princípio da dignidade da pessoa humana é
valor-referência da Constituição, podendo ser visualizado como o catalisador
(dando o tom de fundamentabilidade a uma posição jurídica) de todos os direitos
fundamentais materiais. E como a catálise implica a modificação de uma reação,
em que um dos elementos (o catalisador) não se altera no processo, todos os
direitos fundamentais materiais exteriorizam-se pela dignidade da pessoa humana
– ainda que não de forma exclusiva - tornando-se indissociáveis da mesma.
Os direitos
fundamentais exercem uma série de funções no ordenamento jurídico, em vista da
dúplice perspectiva em que podem ser visualizados: jurídico-objetiva e
jurídico-subjetiva.[193] Em razão do reconhecimento da
multifuncionalidade dos direitos fundamentais, resta ultrapassada a compreensão
dos direitos fundamentais com a única função de direitos de defesa contra os
poderes públicos, e, também, não podem ser entendidos como sendo só direitos
subjetivos públicos.
Em vista do
seu caráter multifuncional, pode-se, inicialmente, classificar os direitos
fundamentais em dois grandes grupos: a) direitos de defesa e b) direitos a
prestações fáticas e jurídicas, sendo que o grupo de direitos a prestações pode
ser dividido em dois sub-grupos: direitos a prestações em sentido amplo –
açambarcando direitos à proteção e direitos à participação na organização e
procedimento – e direitos a prestações em sentido estrito.[194]
Na matriz
liberal clássica, os direitos fundamentais constituem, primordialmente,
direitos de defesa do indivíduo contra o Estado, visando à preservação da
liberdade pessoal e da propriedade. Contemporaneamente, entretanto, já não há
uma correspondência estrita com a concepção original, muito embora esses
direitos continuem desempehando papel de importância, pois numa ordem
democrática não estão os cidadãos livres de sofrerem constrangimentos oriundos
do poder.[195]
Ou, no
dizer de CANOTILHO, os direitos de defesa
“(1)
constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para
os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera
jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de
exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir
omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte
dos mesmos (liberdade negativa)”.[196]
Em suma, os direitos fundamentais de defesa são, precipuamente, direitos
negativos, pois visam a uma conduta omissiva – de não intervenção – de seus
destinatários, que podem ser o Poder Público e os particulares (em relação aos
particulares é o que se chama de eficácia “horizontal” dos direitos
fundamentais).[197]
São os direitos de defesa de grande amplitude, pois abrangem, para além dos
ditos direitos de liberdade, a igualdade perante a lei, o direito à vida, o
direito de propriedade e todos os direitos fundamentais que tenham por escopo
principal proteger contra ingerências descabidas. Logo, possível dizer que os
direitos de defesa protegem uma livre manifestação da personalidade.
Enquadram-se entre os direitos fundamentais de defesa, também, as garantias
fundamentais, “os direitos políticos, proteção da intimidade e da vida privada,
parte dos direitos sociais e até mesmo os novos direitos contra manipulações
genéticas e a assim denominada liberdade de informática e o direito a
autodeterminação informativa”.[198]
Os direitos fundamentais, como direitos a prestações, são aqueles que
impõem ao Estado a obrigação de disponibilizar os meios materiais e implementar
as condições de fato que permitam o gozo efetivo das liberdades fundamentais,
isto é, os direitos a prestações, em essência, têm a finalidade de assegurar a
liberdade por meio do Poder Público, pois implicam o fornecimento de prestações
jurídicas e materiais que assegurem uma existência digna ao cidadão, tanto no
que se refere a alcançar isso quanto mantê-la assim. Daí decorre que os
direitos a prestações comportam uma visualização estrita e ampla.
Em sentido amplo, os direitos a prestações correspondem aos direitos
fundamentais propriamente ou predominantemente prestacionais e que não
constituam direitos de defesa. De acordo com ALEXY, os direitos a prestações
são a contrapartida exata do conceito dos direitos de defesa que exigem uma
abstenção do Estado, enquanto os direitos a prestações implicam um
comportamento ativo do Poder Público.[199] Nessa categoria situam-se os
direitos a uma prestação normativa, abrangendo direitos à proteção e
participação na organização e procedimento.
Os direitos à proteção são aqueles em que o titular do direito fundamental perante
o Estado pode exigir deste a outorga de uma proteção (garantia) contra
ingerência de terceiros. São direitos cujo objeto pode ter um espectro bem
distinto, estendendo-se desde a proteção de uma norma penal até a proteção
frente aos perigos da utilização pacífica da energia nuclear.[200]
Os direitos à organização e ao procedimento, por sua vez, designam,
conforme MENDES,
“todos aqueles direitos fundamentais que dependem, na sua realização, tanto
de providências estatais com vistas à criação e conformação de órgãos setores,
ou repartições (direito à organização), como de outras, normalmente de índole
normativa, destinadas a ordenar a fruição de determinados direitos ou
garantias, como é o caso das garantias processuais-constitucionais (direito de
acesso à justiça; direito de proteção judiciária; direito de defesa)”.[201]
Os direitos a prestações, em sentido estrito, são aqueles que autorizam o
cidadão a obter algo (prestação material) através do Estado: saúde, educação,
assistência previdenciária, etc.
Os direitos a prestações também são classificados, por outra perspectiva,
como direitos originários e direitos derivados, abrangendo os direitos a
prestações em sentido amplo e em sentido restrito. São originários quando a
pretensão à prestação deriva diretamente de dispositivo constitucional. Os
direitos derivados dependem da existência prévia de um sistema de prestações e
caracterizam-se pelo direito de exigir e obter igual participação nas
prestações criadas (v.g.: atendimento
hospitalar nos que existem à disposição da comunidade).
Feitas essas breves anotações sobre os direitos fundamentais, pode-se
afirmar que a doutrina da proteção integral acolhida pela Constituição – artigo
227 e parágrafos – apresenta caráter de fundamentabilidade, pois tem por escopo
valorizar a dignidade humana da infância e adolescência, fazendo isso de forma
reforçada, já que reconhece a essa categoria de cidadãos (crianças e
adolescentes, rectius menores de
dezoito anos) absoluta prioridade no
atendimento de suas necessidades. E a regulação é essencialmente reconhecedora
de direitos a prestações, tanto em sentido amplo como em sentido restrito.
A idade
penal mínima é autêntico direito fundamental localizado fora do catálogo
elencado pela Constituição no Título II, pois inequivocamente vinculado ao
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
Não só em
sede doutrinária há o reconhecimento de direitos fundamentais fora do catálogo
e com caráter de cláusula pétrea, pois o Supremo Tribunal Federal já deixou
isso assentado, ao apreciar a Ação Direta de Incontitucionalidade nº 939/93,
questionadora da constitucionalidade da Emenda Costitucional nº 3, de
17.03.1993[202], que instituía a arrecadação do Imposto Provisório sobre
Movimentações Financeira – IPMF – a partir de agosto daquele ano[203],
conforme estabeleceu a Lei Complementar nº 77, de 13.07.1993, que também foi
objeto de argüição de inconstitucionalidade.
Foi
sustentado, no que interessa para o presente, que havia violação: a) do
princípio da anterioridade, considerado garantia individual do contribuinte,
que não poderia ser objeto de supressão (art. 150, III, b, art. 5º, § 2º e art. 60, § 4º, IV); e, b) do princípio da
imunidade tributária recíproca, que é garantia da Federação (art. 150, VI, a e art. 60, § 4º, I).
Os
Ministros do Supremo reconheceram a inconstitucionalidade da Emenda, que não
respeitava a imunidade recíproca entre os entes da Federação, bem como excluiu
da tributação as demais entidades ou empresas referidas nas alíneas a, b,
c e d do inc. VI, do artigo 150 da Constituição Federal. No que se refere
ao princípio da anterioridade, o Tribunal entendeu que essa era uma garantia
constituconal do contribuinte, devendo ser reconhecida como cláusula pétrea,
logo não podendo ser excepcionada ou afastada.
Interessa
ver mais de perto a questão do tratamento dado ao princípio da anterioridade[204],
pois é importante para o objetivo deste trabalho, já que se pode entender a
idade penal mínima como uma garantia individual fundamental (direito-garantia).
A Emenda foi
defendida pelo Advocacia-Geral da União e pela Consultoria Jurídica do
Ministério da Fazenda. Em linhas gerais, sustentaram que a emenda não poderia
ser tida como inconstitucional, pois compatível com a Constituição, mesmo que
limitando direitos, uma vez que não tendia à abolição dos mesmos e, portanto,
não atingia o cerne inalterável de qualquer direito, que é o objeto da cláusula
de intangibilidade. Havia, segundo o Governo, só a ampliação de limites já
reconhecidos na própria Lei Maior. Além do que, o disposto no artigo 60, § 4º,
IV, não abrange todos os direitos e garantias expressos na Constituição, nem os
decorrentes do regime e princípios por ela adotados, ou de tratados
internacionais de que o Brasil seja parte, sob pena de haver uma petrificação
do texto constitucional. Somente os direitos e garantias que são essenciais à
liberdade humana é que não podem ser modificados através de emenda, e o
princípio da anterioridade não se inclui entre esses.
O Supremo
Tribunal Federal, por maioria, reconheceu que a cobrança do imposto no mesmo
ano de sua instituição, mesmo que havendo ressalva em tal sentido na Emenda,
implicava violação ao princípio da anterioridade, que é direito individual
garantido por cláusula pétrea (artigo 60, § 4º, inc. IV), pois o artigo 5º, §
2º da Carta Magna autoriza a localização de direitos e garantias fora do
capítulo em que se localizam os direitos e garantias catalogados na
Constituição.
O debate
foi centralizado na questão da natureza do princípio da anterioridade, isto é,
se constituía, ou não, um direito individual.
Examina-se,
agora, parte da argumentação esgrimida no julgamento, pois interessante para a
hipótese que se analisa nesta pesquisa. Além do que, foi a primeira vez que o
Supremo Tribunal Federal discutiu a respeito de constitucionalidade de uma
emenda constitucional e confrontou-a com limites materiais de revisão.[205]
O Relator,
Ministro Sydney Sanches, reconheceu a possibilidade de existência de direitos e
garantias fundamentais fora do catálogo, anotando que,
“entre
esses direitos e garantias individuais, estão pela extensão contida no § 2º, do
art. 5º e pela especificação feita no art. 150, III, ‘b’, a garantia ao
contribuinte de que a União não criará nem cobrará tributos, ‘no mesmo
exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou
aumentou’. (...) a violação, quanto a esse ponto, ao princípio da garantia
individual do contribuinte, que nem por Emenda Constitucional se pode afrontar,
ainda que temporariamente, em face dos referidos § 2º do art. 5º, artigos 150,
III, ‘b’ e 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal. Nem me parece que,
além das exceções ao princípio da anterioridade, previstas no no § 1º do art.
150, pela Constituição originária, outras pudessem ser estabelecidas por emenda
constitucional, ou seja, pela Constituição derivada. Se não se entender assim,
o princípio e a garantia individual tributária, que ele encerra, ficariam
esvaziados, mediante novas e sucessivas emendas constitucionais, alargando as
exceções, seja para impostos previstos no texto originário, seja para os não
previstos”.[206]
Merece ser
destacada, também, a manifestação do Ministro Marco Aurélio, que considerou a
regra da anterioridade como uma garantia individual, ressaltando que a
existência de exceções feitas pelo Constituinte originário não autoriza o Poder
Reformador a produzir outras exceções:
“(...) não
temos, como garantias constitucionais, apenas o rol do artigo 5º da Lei Básica
de 1988. Em outros artigos da Carta encontramos, também, princípios e garantias
do cidadão, nesse embate diário que trava com o Estado, e o objetivo maior da
Constituição é justamente proporcionar uma certa igualação das forças
envolvidas – as do Estado e as de cada cidadão considerado de per se. A
demonstração inequívoca da procedência desse entendimento está no § 2º do
artigo 5º: (...)as exceções a esses direitos, insertas na própria Carta, apenas
os confirmam, e ninguém coloca em dúvida, por exemplo, que a propriedade é um
direito do cidadão; no entanto, esse direito está mitigado pela regra
insculpida no inciso XXIV do artigo 5º, que cuida da desapropriação. Ninguém
duvida, também, que a exclusão da pena de morte é um direito, é um direito
previsto no rol do artigo 5º e está excepcionado por regra insculpida na própria alínea ‘a’ do inciso XLVII do artigo 5º,
admitindo-se-a em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84, inciso
XIX. (...) A Corte, ao enfrentar o pedido de concessão de liminar, teve
presente que a anterioridade encerra uma garantia constitucional, e não vejo,
em face apenas de a Carta conter algumas exceções a esse princípio, como
esvaziá-lo, como colocá-lo em plano secundário a ponto de dizer da
impertinência do inciso IV do § 4º do artigo 60, ou, até mesmo, num passo um
pouco mais largo, assentar que não se está diante de uma garantia
constitucional, (...) como está previsto, com todas as letras, na alínea ‘b’ do
inciso III do artigo 150 da Carta: (...) houve a opção pelo legislador
constituinte de 1988 e, com ela, tivemos o esgotamento das exceções, porque
taxativamente fixadas na Carta. Os dispositivos são numeros (sic) clausus, não apenas exemplificativos. Fora das hipóteses
excepcionadas cabe observar, com rigor, a anterioridade”.[207]
O Ministro
Carlos Velloso, na mesma linha, entendeu pacífica a possibilidade de existência
de direitos fundamentais fora do catálogo e que também estão protegidos pela
cláusula de intangibilidade, fazendo um acréscimo de que esses não se referem
somente a direitos individuais:
“É sabido,
hoje, que a doutrina dos direitos fundamentais não compreende, apenas, direitos
e garantias individuais, mas, também, direitos e garantias sociais, direitos
atinentes à nacionalidade e direitos políticos. Este quadro todo compõe a
teoria dos direitos fundamentais. Hoje não falamos, apenas, em direitos
individuais, assim direitos de primeira geração. Já falamos em direitos de
primeira, de segunda, de terceira e até quarta geração.
O mundo
evoluiu, e assim, também, o Direito.
É certo que
é respeitável o argumento, mais metajurídico do que jurídico, propriamente, no
sentido de que o raciocínio abrangente da matéria – a matéria dos direitos e
garantias individuais – sem distinguir direitos e garantias individuais de
primeira classe e direitos e garantias de 2ª classe, poderia impedir uma maior
reforma constitucional. O argumento, entretanto, não deve impressionar. O que
acontece é que o constituinte originário quis proteger e preservar a sua obra,
a sua criatura, que é a Constituição. As reformas constitucionais precipitadas,
ao sabor de conveniências políticas, não levam a nada, geram a insegurança
jurídica e a insegurança jurídica traz a infelicidade para o povo. É natural,
portanto, que o constituinte originário, desejando preservar a sua obra, crie
dificuldades para a alteração da Constituição”.[208]
Dentre os
votos vencedores, por fim, é de ser ressaltado o do Ministro Celso de Mello,
que enfatiza a necessidade de as emendas respeitarem os princípios que presidem
a Constituição:
“O
princípio da anterioridade da lei tributária, além de constituir limitação ao
poder impositivo do Estado, representa um dos direitos fundamentais mais
relevantes outorgados pela Carta da República ao universo dos contribuintes.
Não desconheço que se cuida, como qualquer outro direito, de prerrogativa de
caráter meramente relativo, posto que as normas constitucionais originárias já contemplam hipóteses que lhe excepcionam a
atuação.
Note-se,
porém, que as derrogações a esse postualdo emanam de preceitos editados por
órgão exercente de funções constitucionais primárias: a
Assembléia Nacional Constituinte. As exceções a esse princípio foram
estabelecidas, portanto, pelo próprio poder constituinte originário, que não sofre, em função da própria natureza dessa magna
prerrogativa estatal, as limitações materiais e tampouco as restrições
jurídicas impostas ao poder reformador. (...)
O respeito
incondicional aos princípios constitucionais evidencia-se como dever inderrogável do Poder Público. A ofensa do Estado a esses valores
– que desempenham, enquanto categorias fundamentais que são, um papel subordinante na própria configuração dos direitos individuais ou
coletivos – introduz um perigoso fator de desequilíbrio sistêmico e rompe, por
completo, a harmonia que deve presidir as relações, sempre tão estruturalmente
desiguais, entre as pessoas e o Poder.(...)
É preciso
não perder de perspectiva que as emendas constitucionais podem revelar-se
incompatíveis, também elas, com o texto da
Constituição a que aderem. Daí, a sua plena sindicabilidade jurisdicional, especialmente
em face do núcleo temático protegido pela cláusula de imutabilidade inscrita no
art. 60, § 4º, da Carta Federal.
As
denominadas cláusulas pétreas
representam, na realidade, categorias normativas subordinantes que, achando-se
pré-excluídas, por decisão da Assembléia Nacional Constituinte, do poder de
reforma do Congresso Nacional, evidenciam-se como temas insuscetíveis de
modificação pela via do poder constituinte derivado.(...)
O poder
reformador, portanto, é um poder derivado e subordinado às prescrições
jurídicas condicionantes que, estabelecidas com absoluta
supremacia pelo texto da Lei Fundamental do Estado, pautam, necessariamente, a ação do Parlamento no exercício dessa competência
institucional”.[209]
O Supremo
Tribunal Federal, quando do julgamento da ADIn nº 939, exerceu o papel de
guardião da Constituição e impediu que o sistema de direitos e garantias
fundamentais fosse descaracterizado. Especial relevância teve o julgamento,
pois serviu como balizador da impossibilidade de descaracterização paulatina do
texto constitucional, além de fixar, com clareza, que as chamadas cláusulas
pétreas exercem importante papel na manutenção da unidade sistêmica da
Constituição.
Fazendo uma
suma da posição majoritária adotada no julgamento da ADIn 939[210],
pode-se assentar que: a) restou inquestionável a possibilidade da existência de
direitos fundamentais fora do catálogo; b) a unidade sistêmica da Constituição
deve ser preservada, pois os princípios e direitos fundamentais apresentam
íntima ligação, não podendo ocorrer uma visão da Constituição que não abranja o
seu todo, devendo haver respeito incondicional aos princípios que informam a
Carta Magna; c) os limites materiais de reforma não podem ser minimizados pela
existência de exceções previstas no próprio texto constitucional; d) todas as
exceções feitas pelo Constituinte originário são no exercício de uma
competência incondicionada e que não se transfere ao Poder Reformador, pois
este é, por natureza, subordinado; e) a abrangência da cláusula de
intagibilidade do art. 60, § 4º, IV é ampla, pois vai além dos direitos e
garantias estritamente pessoais, açambarcando, pelo menos, os chamados direitos
de primeira e segunda gerações ou dimensões; f) a possibilidade de alteração do
núcleo essencial de direito fundamental que constitui cláusula pétrea tem de
ser vista de forma restritiva, sob pena de esvaziamento do direito por novas e
sucessivas reformas; g) toda emenda constitucional, por não emanar de poder
originário, é suscetível de controle de constitucionalidade.
O Supremo
Tribunal Federal, sem a menor dúvida, agiu na defesa da Constituição, tratando
de preservá-la de uma modificação desfigurante, pois patente a pretensão de
esvaziamento dos limites materiais reformatórios. Foi muito clara a posição
adotada em relação à chamada erosão constitucional, pois ficou sobejamente
assentado que não é possível reforma que tenda a abolir uma posição jurídica
fundamental, entendendo-se isso como qualquer prática que vise a minimizar o
alcance da proteção outorgada pelas cláusulas pétreas.
Em outras
palavras, a Corte Maior apontou a necessidade de preservar-se a obra do
Constituinte originário, único legitimado a excepcionar a incidência de
princípios ou garantias instituídas em favor do cidadão. Entender de modo
contrário seria fazer letra morta da disposição que veda a deliberação a
respeito de emenda que tenda à abolição de direito fundamental.
A
preservação da obra originária do Poder Constituinte não implica risco de ruptura da ordem constitucional.
Pelo contrário, atua no sentido de demonstrar ser possível a efetivação plena
do Estado Democrático de Direito, pois traz a certeza – ou pelo menos a
esperança - de que os direitos inseridos
na Constituição são passíveis de realização e de que em uma sociedade injusta,
como a brasileira, há chance de a lei exercer uma função tranformadora.[211]
Pode-se
proclamar, agora – também no plano da jurisprudência - que a fundamentabilidade
material de um direito na Constituição não depende de uma posição topológica
(inserção no catálogo), pois localizável em qualquer parte do texto
constitucional. A sua caracterização depende da relevância que lhe foi
atribuída e da sua imbricação com direito ou princípio que integre o núcleo
essencial da Carta Magna. E se a Corte Constitucional assim agiu ao apreciar
uma questão de matéria tributária, com muito mais razão, não deixará de
reconhecer a impossibilidade de supressão de qualquer direito fundamental que
seja diretamente vinculado ao princípio da dignidade da pessoa humana.
O artigo
228, ao estabelecer a idade mínima para a imputabilidade penal, assegura a
todos os cidadãos menores de dezoito anos uma posição jurídica subjetiva, qual
seja, a condição de inimputável diante do sistema penal. E tal posição, por sua
vez, gera uma posição jurídica objetiva: a de ter a condição de inimputável
respeitada pelo Estado.
Num enfoque
do ponto de vista individual de todo cidadão menor de dezoito anos, trata-se de
garantia asseguradora, em última análise, do direito de liberdade. É, em verdade,
uma explicitação do alcance que tem o direito de liberdade em relação aos
menores de dezoito anos. Exerce uma típica função de defesa contra o Estado,
que fica proibido de proceder a persecução penal.
Trata-se,
portanto, de garantia individual, com caráter de fundamentabilidade, pois
diretamente ligada ao exercício do direito de liberdade de todo cidadão menor
de dezoito anos. E não se pode olvidar que a liberdade sempre está vinculada ao
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, especialmente em relação
às crianças e adolescentes, pois foram reconhecidos como merecedores de
absoluta prioridade da atenção da família, da sociedade e do Estado, em face da
peculiar condição de seres humanos em desenvolvimento.
Se o
Constituinte optou pela demarcação da imputabilidade penal aos dezoito anos,
estabelecendo um maior grau de liberdade perante o Estado até tal idade, fê-lo
de forma livre e soberana, não cabendo ao Poder Reformador a possibilidade de
restringir a liberdade, pois afetaria diretamente o núcleo essencial do direito
de liberdade, no que diz respeito ao cidadão com idade inferior ao limite
consignado na Carta Magna.
Ademais, ao
fixar a idade de imputabilidade penal, o Poder Constituinte não deixou de
estabelecer um regime de sujeição próprio para os que são tidos como
inimputáveis, pois determinou a sujeição dos mesmos “às normas da legislação
especial”. O artigo 228, portanto, tem um conteúdo negativo – subtração ao
sistema penal – e um conteúdo positivo – sujeição à legislação especial. Daí,
forçoso concluir que o Constituinte regrou todas as hipóteses relacionadas à
esfera penal em relação aos cidadãos menores de dezoito anos.
Ao assim
agir, o Constituinte originário cerrou todas as possibilidades de alteração do
regime de sujeição penal daqueles que foram considerados inimputáveis, pois o
regramento a respeito foi total e assegurador de uma posição jurídica
fundamental, eis que valorizadora da dignidade humana. E se o Constituinte não deixou qualquer
possibilidade de ser aberta exceção ou ser feita restrição, não se pode
atribuir tal competência ao Poder Reformador.[212]
É certo,
portanto, que a regra do artigo 228 é uma garantia de direito individual, de
caráter fundamental, pois asseguradora do direito de liberdade dos cidadãos menores
de dezoito anos, que impõe um agir negativo para o Estado. Logo, é insuscetível
de modificação pela via da emenda constitucional.
Num outro
enfoque, possível ver essa mesma regra como condição de exercício dos direitos
reconhecidos no artigo 227 da Constituição Federal.
As
obrigações para com a infância e adolescência estão diretamente vinculadas com
a plena promoção da dignidade humana de tal categoria de cidadãos. A Lei Maior
determina um atendimento amplo e digno a todas crianças e adolescentes, nas
mais diversas áreas, a fim de que se tornem, na idade adulta, cidadãos
conscientes e socialmente integrados. Vale dizer, não se quer uma infância e
juventude marginalizada, pois isso gerará cidadãos adultos excluídos do
processo social, e, assim, não cumprirá o Estado Democrático de Direito a sua
função de promover a dignidade, a igualdade e a solidariedade.
Dentro
dessa ótica, inegável que a inimputabilidade penal até os dezoito anos de idade
integra o direito de livre desenvolvimento da personalidade, pois permite uma
abertura maior de proteção ao ser humano em desenvolvimento e formação.
A idade de
imputabilidade penal fixada na Lei Maior, portanto, tem um caráter híbrido – ou
uma dupla dimensão. É, por um lado, garantia do direito individual de liberdade
dos menores de dezoito anos, e, de outra banda, ao balizar até quando vai a
adolescência, estabelece condição de possibilidade para ser titular dos
direitos a prestações – nos sentidos amplo e restrito - em caráter
preferencial, que são assegurados às crianças e adolescentes pela doutrina da
proteção integral acolhida pela ordem constitucional.
Coarctar a
plena possibilidade de desenvolvimento individual e social, instituída por
livre e soberana vontade do Poder Constituinte em favor de todos os cidadãos menores de dezoito anos, implica cometer agressão
contra o conteúdo de dignidade humana dos direitos assegurados aos mesmos. E
isso, à evidência – além de atingir direito fundamental que é garantido por
cláusula pétrea – apresenta-se em absoluta desconformidade com a idéia de
Estado Democrático de Direito.
É inviável,
no Estado Democrático de Direito, qualquer possibilidade de interpretação que
não se harmonize com os princípios que o conformam, pois a lei e sua aplicação
(e aplicar é interpretar) não podem, em nenhum momento, afastar-se de uma
finalidade transformadora da realidade e promotora da dignidade humana.
Importante
salientar que a função transformadora da lei e a promoção da dignidade humana
são de caráter permanente no Estado Democrático de Direito, pois uma situação
ideal - em que nada mais tenha de ser modificado - jamais ocorrerá. As
necessidades humanas variam em cada momento histórico, e novas conquistas – ou
novos direitos – sempre se apresentam e precisam tornar-se realidade.
Em vista
disso é que se impõe a afirmação de que a impossibilidade de modificação da
idade penal mínima, por se tratar de direito fundamental, já que indissociável
do princípio da dignidade da pessoa humana e asseguradora de direitos dos
menores de dezoito anos, não é pura questão circunstancial, conforme tem sido
afirmado.[213]
Pensar a
idade como núcleo essencial do direito à inimputabilidade penal, salvo melhor
juízo, é um equívoco. O núcleo essencial está vinculado ao conteúdo do direito,
e esse, no que concerne à idade penal mínima, diz respeito a sua vinculação com
a dignidade humana.[214]
Não
bastasse isso, aceitar-se a modificação da idade penal mínima, desde que
mudasse o estado atual do sistema carcerário, seria desconsiderar a existência
do princípio do não-retrocesso social e tal não é possível, pois implica o
afastar-se da principiologia do Estado Democrático de Direito.
O princípio
do não-retrocesso social passou a ter aplicação no campo dos direitos sociais –
mais diretamente em relação aos direitos a prestações em sentido estrito, ainda
que não exclusivamente – visando a impossibilitar que direitos fundamentais
implementados, ou delineados no tocante a sua
efetivação, viessem a ser suprimidos ou diminuídos.
Isso
porque, representando os direitos fundamentais implementados uma conquista, não
se faz possível um retrocesso prejudicial ao pleno exercício – ou exercício parcial
– de uma posição jurídica fundamental alcançada para fruição. Funciona a
proibição de retrocesso como uma eficácia impediente de retrogradação do
desenvolvimento atingido, sendo passível - a supressão ou diminuição do direito
fundamental – de ter a sua inconstitucionalidade reconhecida.
Conforme
CANOTILHO, o princípio da vedação de retrocesso social pode assim ser
enunciado:
“o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado
através de medidas legislativas (‘lei de segurança social’, ‘lei do subsídio do
desemprego’, ‘lei do serviço de saúde’) deve considerar-se constitucionalmente
garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a
criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzem na prática
numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse núcleo
essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente
auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado”.[215]
A Corte
Constitucional de Portugal, em julgamento paradigmático – Acórdão 39/84,
julgado em 11.04.1984 - ao apreciar a revogação da lei que estabelecia a
mudança do sistema de saúde previsto na Constituição, ainda que se tratasse de
diretrizes fundamentais para a instituição do sistema, entendeu que isso não
era possível, pois representava um retrocesso social, caracterizando
inconstitucionalidade por conflitar com a garantia de direito à saúde, previsto
no artigo 65 da Constituição da República Portuguesa.
A Corte foi
taxativa no reconhecimento da impossibilidade de retrocesso social:
“Quando a tarefa constitucional consiste na criação de um determinado
serviço público (como acontece com o Serviço Nacional de Saúde) e ele seja
efectivamente criado, então a sua existência passa gozar de proteção constitucional,
já que a sua abolição implicaria um atentado a uma garantia institucional de um
direito fundamental e, logo, um atentado ao próprio direito fundamental”[216].
E adiante,
é ressaltada a obrigação negativa do Estado em se abster de atentar contra o
direito fundamental que já se implementava:
“(...) a
partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas
constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito
constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa
obrigação, positiva, para se transformar (ou passar) também a ser uma obrigação
negativa. O estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito
social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada
ao direito social”.[217]
Em suma,
ficou devidamente plasmado que o princípio do não-retrocesso social garante uma
posição jurídica fundamental contra a possibilidade de desaparecimento ou
diminuição da mesma, em decorrência de um agir atentatório por parte do Estado,
visto que implementado – ou iniciando a ser efetivado – um direito fundamental
a prestações surge para o Estado ter a obrigação negativa de não piorar a
situação do titular da posição jurídica fundamental, sob pena de ofender ao próprio
direito fundamental.
Em que pese
consagrado o princípio do não-retrocesso social quando do tratamento de
questões atinentes a direitos a prestações, em especial em sentido estrito,
inexiste qualquer óbice de aplicá-lo em relação a todo e qualquer direito
fundamental. Vale dizer, a proibição de retrocesso incide sempre que, no âmbito do Estado Democrático de Direito,
proceda-se de modo a suprimir ou diminuir uma posição jurídica materialmente
fundamental.
E assim é,
pois, em se tratando de direito que tem o seu caráter de fundamentabilidade
material reconhecido, não há que se falar em qualquer diferenciação, hierarquia
ou preferência. Quer sejam direitos de defesa, quer sejam direitos a
prestações, todos são direitos fundamentais igualmente. E eventual
preponderância de uma posição jurídica
fundamental sobre outra é decorrência de caso concreto, mas jamais na condição
de que um direito fundamental vá aniquilar ou menoscabar outra posição jurídica
fundamental.
O que se
pode dizer, com certeza, é que, “no plano normativo, a eficácia impeditiva de
retrocesso fornece diques contra a mera revogação de normas que consagram
direitos fundamentais, ou contra a substituição daquelas por outras menos
generosas para com estes”.[218]
Em vista do
exposto, verifica-se que há impossibilidade da modificação da idade de
imputabilidade penal também pela incidência da proibição de retrocesso social.
Fixada a
idade penal mímina em dezoito anos, ficou assegurada a todos os cidadãos com
idade inferior a essa uma posição jurídica subjetiva de caráter fundamental
(ser inimputável perante o sistema penal), asseguradora de seu direito de
liberdade. Modificar tal situação, sem a menor dúvida, implicaria uma agressão
ao próprio direito de liberdade do menor de dezoito anos, pois haveria
supressão ou, pelo menos, diminuição de uma parcela de seu direito de liberade.
A
diminuição da idade penal mínima também agrediria o conteúdo de dignidade
humana do direito de os adolescentes merecerem absoluta prioridade no desenvolvimento
de sua personalidade (artigo 227), pois os excluídos da condição de
inimputáveis não mais fariam jus a qualquer atenção especial e diferenciada.
Isso
implicaria atingir o núcleo essencial do direito de liberdade e de serem
considerados prioritários para a sociedade, num evidente retrocesso social em
relação a direitos já reconhecidos. E não havendo tal possibilidade no Estado
Democrático de Direito, inviável, portanto, qualquer possibilidade de redução
da idade de imputabilidade penal.
A partir da
Constituição de 1988, intensifica-se a interação e conjugação do direito
internacional e do direito interno, que fortalecem a sistemática de proteção
dos direitos fundamentais, com uma principiologia e lógica próprias, fundadas
no princípio da primazia dos direitos humanos.
Apesar
disso, pouca atenção tem sido dada para a questão da impossibilidade de
modificação da idade penal, por força do disposto no § 2º do artigo 5º da
Constituição Federal, na parte que trata de direitos fundamentais oriundos de
tratados[219] internacionais de que o Brasil é parte.
Trata-se,
entretanto, de uma abordagem importante e que é olvidada pela inexistência de
uma prática de relacionar o direito internacional e o direito interno.[220]
Vivemos em
um mundo globalizado – quer gostemos ou não disso – e, cada vez mais, há uma
interação entre direito interno e direito internacional. O tradicional conceito
de soberania e autonomia do Poder Constituinte – conforme já referido – sofre
uma mitigação em decorrência da integração cada vez maior dos Estados. Na visão
de MELLO,
“Inicialmente
queremos lembrar que o Estado não existe sem um contexto internacional. Não há
estado isolado. A própria noção de Estado depende da existência de uma
sociedade internacional. Ora, só há Constituição onde há Estado. Assim sendo a
Constituição depende também da sociedade internacional. Ao se falar em
soberania do Poder Constituinte se está falando em soberania ‘relativa’ e quer
dizer que tal poder não se encontra subordinado a qualquer norma de D. Interno,
mas ele se encontra subordinado ao DIP de onde advém a própria noção de
soberania do Estado”.[221]
A
introdução na Carta Magna da doutrina da proteção integral e, também, da
fixação da imputabilidade penal aos dezoito anos, decorreu da internalização da
vertente protetora dos direitos humanos de caráter internacional, dos quais a
proteção da criança e do adolescente é uma das facetas. Tanto é assim, que o
disposto no artigo 227 é reconhecido como síntese das diretrizes fixadas pela
Convenção Internacional dos Direitos da Criança[222]. O Brasil, ao
ratificar a Convenção - e fez isso sem qualquer ressalva de reserva[223]
- assumiu a obrigação de cumpri-la integralmente.
Vale dizer,
é vedado ao Estado brasileiro tomar qualquer iniciativa que venha a tornar
ineficaz ou contrariar qualquer dispositivo da Convenção sobre os Direitos da
Criança, que, entre nós, por força do § 2º do artigo 5º, tem status de norma constitucional. Isso
porque a Carta Magna de 1988, na esteira de outras Constituições, passou a
considerar as normas de tratados de direitos humanos como de hierarquia
constitucional.
O tratado
em referência, inequivocamente, tem conteúdo de proteção dos direitos humanos.
A Convenção, em seu artigo 41,[224] estabelece que nenhum de seus
signatários poderá tornar sua normativa interna mais gravosa em vista do que
dispõe o tratado. Conforme SARAIVA,
“Demais, a pretensão
de redução viola o disposto no art. 41 da Convenção das Nações Unidas de
Direito da Criança, onde está implícito que os signatários não tornarão mais
gravosa a lei interna de seus países, em face do contexto normativo da
Convenção”.[225]
Ora, em
caso de eventual modificação da idade penal mínima, estará o Brasil a
descumprir o que foi estabelecido no tratado que se comprometeu a a cumprir. E o descumprimento implica a
responsabilização internacional do Estado violador.[226]
Pode-se
concluir, portanto, que, enquanto o Brasil for Estado-parte da Convenção
Internacional dos Direitos da Criança, em respeito ao que estabelece a
Constituição, que conferiu estatura constitucional aos direitos e garantias
decorrentes de tratados internacionais de que o Brasil seja parte, fica
inviabilizada qualquer possibilidade de alteração da idade penal mínima.[227]
O enfoque
aqui brevemente referenciado está a merecer mais atenção, pois representa uma
grande possibilidade de efetivação de direitos fundamentais, além de melhor
intrumentalizar resistência às tentativas de supressão de posições jurídicas
fundamentais, haja vista que um melhor manejo da interação – na área de
direitos humanos e, portanto, de regra, fundamentais - entre direito
internacional e direito interno pode resultar num reforço para a implementação
plena – ou pelo menos um pouco mais efetiva - do Estado Democrático de Direito.
Há que se
reconhecer que existe uma certa deficiência na aceitação da abertura externa do
ordenamento constitucional brasileiro, tanto por parte da doutrina mais
tradicional como em relação à jurisprudência.
Predomina,
ainda, no Supremo Trbunal Federal, o entendimento de que as normas oriundas de
tratados internacionais equiparam-se às leis ordinárias, como se pode ver, por exemplo,
do não-reconhecimento da impossibilibidade de prisão por dívida para
depositário infiel – autorizada pela Constituição, artigo 5º, inciso LXVII - e
vedada pela Convenção Americana de Direitos Humanos[228] (Pacto de San
José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário.
No decorrer da investigação, pois foi a mesma permeada por uma
visão/compreensão hermenêutica, ainda que nem sempre explícita, demonstrou-se
que qualquer exegese de norma constitucional deverá, obrigatoriamente, ser
procedida por intermédio da valoração dos princípios que norteiam o Estado
Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil.
Vale dizer, é inviável qualquer interpretação que não passe por um rebate
principiológico, ou seja, só é possível a aplicação/interpretação da lei (lato sensu) em consonância com os
princípios constitucionais que dão a conformação do Estado Democrático de
Direito.
Isso porque
não se admite mais uma função meramente programática para um princípio constitucional.
Pelo abandono do positivismo dogmático, adquiriram os princípios uma
centralidade interpretativa e aplicativa
dentro do sistema jurídico.
Na dimensão
interpretativa, possibilitam identificar a conexão de sentidos que deve haver
no ordenamento jurídico constitucional, fazendo a concatenação entre suas
normas. No viés aplicativo, os princípios funcionam como meio de superação da
legalidade literal ou rasteira, direcionando a compreensão do caráter
transformador e promovente da justiça social da lei, essência do Estado Democrático de Direito –
ou do Estado Social e Democrático, como preferem outros.
E assim é,
pois só se justifica o existir do Estado – “domínio de homens sobre homens” –
porque a razão única de sua existência e finalidade é o ser humano. O Estado
que não tenha por fim a promoção da dignidade
humana – ou, se preferido, a realização dos direitos fundamentais – não
tem razão de ser, padecendo, numa contextualização política, de falta de legitimidade,
autorizativa do exercício do direito de resistência por parte de seu povo,
visando a sua adequação de finalidade.
Para a
identificação dos princípios dirigentes e das funções que exercem no Estado
Democrático de Direito, importante ter-se presente duas noções. Primeira, de
que as normas jurídicas configuram-se basicamente em princípios e regras. E a segunda é a de que texto (legal) não tem o
mesmo significado que norma (jurídica).
Os
princípios apresentam um maior grau de abstração do que as regras,
necessitando, de um modo geral, de uma mediação concretizadora, para
determinação de seu grau de aplicabilidade. As regras, em razão de possuírem um
baixo grau de abstração, são aplicadas diretamente. Os princípios têm um
caráter de fundamentabilidade no sistema constitucional, estruturando-o e,
portanto, com forte conteúdo axiológico. Servem de fundamento para as regras,
que, por sua vez, podem ter um conteúdo meramente funcional. Vale dizer, os
princípios são “mandados de otimização”, determinando que algo seja efetivado
na maior medida possível, enquanto as regras apresentam determinações de âmbito
fático-jurídico, não sendo possível grau de indeterminação no seu cumprimento.
Importante anotar que a vinculação de uma regra a um princípio fundamental,
especialmente em relação ao da dignidade da pessoa humana, faz com que possa
ser dimensionada como um direito fundamental e, portanto, goze do reforço de
efetividade em sua aplicação (art. 5º, § 1º da Constituição Federal), bem como
fique protegida contra a possibilidade de supressão ou modificação por
intermédio de reforma constitucional.
Conforme
mencionado, importante ter clara a distinção entre texto e norma, pois essa é o
resultado da interpretação feita do texto legal. A norma é o resultante do
processo de dar vida - inserindo na realidade concreta - a uma disposição,
preceito ou enunciado normativo. E isso é feito pela transformação, via
interpretação, do ordenamento jurídico potencial (dispositivos legais) em uma
realidade jurídico-aplicativa concreta.
A partir da
visualização de como identificar um princípio fundamental no Estado Democrático
de Direito, observa-se que a sua principiologia tem um caráter aberto, não se
restringindo aos expressamente previstos como tais na Constituição (Título I,
arts. 1º ao 4º). Há possibilidade de localização de princípios fundamentais em
outros locais da Carta Constitucional, bem como outros sem assento no texto
constitucional, mas que decorram da interpretação de suas normas (princípios
materialmente fundamentais).
A
legitimidade de um processo constituinte, do qual resulte a elaboração de uma
Constituição reconhecida, por uma comunidade, como apta a fazer o desenho do modelo de Estado e
indicar diretrizes para a vida em sociedade, depende de sua representatividade.
Representividade
essa que decorre do exercício da soberania pelo seu titular, o povo. A
compreensão atual de povo, em decorrência da evolução do processo
civilizatório, é assentada muito mais num caráter – ou elemento – pluralista do
que na soma de individualidades pessoais de um determinado espaço geográfico.
Vale dizer, nas democracias contemporâneas, a concepção de povo é arrimada na
pluralidade das forças sociais, políticas e culturais que influenciam o
processo constituinte, tanto de forma prévia como durante o seu
desenvolvimento.
No mesmo
passo, a concepção clássica de Poder Constituinte – autônomo, livre e
incondicionado – ganha nova interpretação. Isso porque não se admite mais que
um poder de natureza política, concebido para fazer uma Constituição que
organize e imponha limitações ao poder (através da asseguração de direitos aos
cidadãos), possa agir de forma desvinculada da “vontade de constituição” que
lhe deu origem. Na diversidade libertadora da democracia, o compromisso com a
vontade do povo instituidor do processo constituinte é inarredável,
efetivando-se, por intermédio da incorporação à Constituição a ser criada,
aquilo que se pode chamar de consciência jurídica comunitária, ou seja, o
“sentimento” de justiça e os valores que estruturam a sociedade. Além disso, em
razão de nenhum Estado viver isoladamente, a obra do poder constituinte – a
Constituição – não pode desconsiderar os princípios de direito internacional,
como, por exemplo, o princípio de respeito aos direitos humanos.
As mitigações
sofridas na concepção moderna do Poder Costituinte, entretanto, não o
desnaturam como poder originário com competência para organizar juridicamente o
Estado. As restrições que lhe são impostas, à evidência, são de ordem política,
pois vinculadas à exigência de que tenha um caráter democrático.
Na
perspectiva jurídica, o Poder Constituinte permanece livre, soberano e
incondicionado, disso decorrendo a sua condição de poder originário,
hierarquicamente superior aos órgãos que cria. Logo, ao instituir o Poder
Reformador, o Poder Constiuinte faz nascer um poder limitado e jungido às
atribuições e competências que lhe conferir.
Sendo o
Poder de Reforma instituído por outro que lhe é superior, não pode extrapolar a
competência reformatória que lhe foi outorgada, sob pena de usurpação. Não pode
um poder constituído pretender mudar a essência da obra de seu criador, pois a
sua razão de existir é exatamente preservar a perenidade daquela, visto que
pensar uma Constituição como imutável é algo que se choca com a realidade.
Uma Constituição, como obra humana que é, sempre apresentará imperfeições,
além de não poder ficar indiferente às modificações que se operam no mundo em
que exerce a sua função direcionadora. Logo, a possibilidade de sua reforma é
imperativa, até para que não venha a perder a sua “força normativa”. A reforma
constitucional é meio de vivificação da Constituição, pois permite a sua
atualização e adequação à realidade. Entretanto, a atividade reformatória, por
limitada, não pode transformar-se num meio de desnaturação da vontade do
Constituinte originário, sob pena de ser cometida fraude contra a Constituição.
A impossibilidade de reforma irrestrita tem por finalidade a preservação do
núcleo essencial da Constituição, impedindo que ocorra a perda de sua conexão
de sentidos, que é o que lhe dá unidade sistêmica.
Exatamente
por isso, o Constituinte fixa na sua obra os limites de sua reforma. São
explícitos, quando constam no texto constitucional as matérias e conteúdos que
não podem ser modificados. São implícitos, quando não-articulados de modo
expresso, mas podem ser extraídos do texto da Constituição, por se relacionarem
com princípios fundamentais/estruturantes da normativa constitucional.
Compreendendo-se
o fenômeno constituinte, com a devida atualização oriunda do processo
civilizatório da humanidade, constata-se que a revolução – meio tradicional de
geração de um processo constituinte – não é mais a única forma de produzir uma
Constituição legítima. A transição constitucional pode ocorrer de forma
pacífica. E isso se dá quando uma ordem instituída não for mais aceita pelo
povo, que, dentro de um contexto histórico próprio, força a derrocada da velha
ordem, substituindo-a por outra que atenda aos anseios da sociedade.
O processo
constituinte de 1987/1988, do qual resultou a Carta Política vigente, é típico
caso de transição constitucional pacífica, pois houve a emergência de uma nova
ordem constitucional democrática e pluralista, que não apresenta nenhuma
vinculação com o regime de força que estava instaurado no país.
Via de
conseqüência, possível afirmar que a Carta Magna atual é fruto de legítimo
Poder Constituinte originário, com legitimação absoluta para impor limites ao
Poder Reformador que instituiu, a fim de preservar as conquistas civilizatórias
que representam a conformação do Estado como um Estado Democrático de Direito.
Na área da
infância e juventude, a Constituição de 1988 implicou verdadeira (r)evolução paradigmática.
Suprimiu a chamada
doutrina da situação irregular, em que a preocupação era com o “menor
desajustado” e o tratamento dispensado era objetificante. Vale dizer, o “menor”
era objeto de tutela, de cunho elevadamente discricionário, a fim de que se
ajustasse a uma normalidade nem sempre bem delineada, pois variando de acordo
com a concepção disso do responsável pelo seu processo de “ajustamento social”.
Ao
introduzir no ordenamento jurídico pátrio a doutrina da proteção integral, que
tem caráter promocional da dignidade humana, passou a tratar da infância e
juventude como um todo, preocupando-se com todos
os cidadãos menores de dezoito anos, sem fazer qualquer diferenciação entre
normal/anormal. Passou-se do “menor” objeto de compaixão e repressão para uma
situação de reconhecimento da infância e juventude como sujeito de direitos.
A
Constituição, ao determinar prioridade absoluta na concretização das condições
de uma existência digna para a infância e juventude, estabelece que a promoção da
dignidade humana dessa categoria de cidadãos tem natureza fundamental, posto
que visceralmente ligada ao princípio da dignidade humana.
A mudança
de paradigma promovida pela Constituição, entretanto, até agora – especialmente
em relação à responsabilidade do Estado – não tem sido efetivada da forma
esperada.
E isso
acontece porque a velha ordem (doutrina da situação irregular) encontra-se
arraigada no imaginário simbólico de significativa parte da sociedade, bem como
no de grande número de operadores do Direito. Essa difuculdade é decorrente, no
que se refere aos juristas, de uma visão dogmática acrítica do novo que
representou para o Direito a Carta Política de 1988. Continua-se operando como
se nada de diferente existisse no campo jurídico, interpretando-se a legislação
infraconstitucional como de validade intrínseca, e, de regra, as poucas
referências que se fazem à Constituição, são para reconhecer na mesma um
conjunto de normas meramente programáticas.
A
compreensão da mudança paradigmática – em especial na área da infância e juventude,
muito embora as constatações feitas sirvam, de um modo geral, para todos os
campos do Direito – só ocorrerá através da hermenêutica.
Para tanto,
por mais paradoxal que pareça, pois a Constituição tem vigência desde 1988, há
que se iniciar pelo óbvio: fazer ver que o regramento constitucional é norma de
força obrigatória e deve ser cumprido/efetivado. E isso se impõe, pois, como
proclama STRECK insistentemente: “a obviedade somente surgirá ‘como’ obviedade
a partir de seu des-velamento (algo como algo)”.
Pela via
hermenêutica, há que se revelar o sentido da Constituição, que é o de
“constituir” uma nova ordem. Não pela circunstância de ser a Lei Maior do país,
mas porque originária de um processo constituinte e, portanto, como algo que
deve “acontecer” - ser constituído materialmente – fazendo surgir a nova
sociedade que emoldura através de seus princípios e regras de força
obrigatória. Em outras palavras, tem de haver a transformação da vontade do
povo – representada na Constituição e elaborada pelo Poder com legitimidade
para isso – em realidade prática e efetiva.
E na
efetivação do Estado Democrático de Direito – inclusa aí a plena implementação
do novo paradigma traçado para a infância e juventude –especial
responsabilidade incumbe ao Judiciário. Isso porque, sendo a Constituição
dirigente da atividade estatal e, portanto, plena em determinações a serem
cumpridas pelo Executivo e Legislativo a fim de que o Estado cumpra a sua
função de promoção de justiça social, havendo a inércia desses Poderes e sendo
o Judiciário provocado a cumprir a sua função jurisdicional, deve agir no
sentido de obrigar ao atendimento dos direitos não realizados.
É claro que
isso deve ser feito com os olhos postos na “reserva do possível”, já que a demanda – real e potencial – pela efetivação
de direitos que implicam prestações positivas do Estado é enorme. Todavia, esse
não é o enfoque principal a ser observado.
Com efeito,
na condição de aplicador da lei, ao Estado-Juiz incumbe revelar o conteúdo da
Constituição, impondo-a como norma de força cogente. E isso não exige uma
grande dose de ousadia ou inovação, basta ver o novo como novo e aplicar, em
sua totalidade, as normas (princípios e regras) que emergem da Constituição em
vigor. Para tanto, basta não ficar preso a um dogmatismo acrítico e procurar
ver a realidade. E, é de se convir, exigir isso de quem tem por função fazer
cumprir a lei não é nada de demasiado.
O Supremo
Tribunal Federal, quando do julgamento da ADIn nº 939, que versava sobre a
inconstitucionalidade da Emenda Constitucional que instituiu o IPMF, delineou o
seu entendimento sobre a possibilidade de existência de direito fundamental
fora do catálogo previsto na Constituição. Foi reconhecido o caráter
materialmente aberto dos direitos fundamentais, posto que podem ser localizados
em qualquer local do texto constitucional (e até fora dele), sempre que
presente uma posição de fundamentabilidade no conteúdo do direito. Ocorreu, com
isso, o acolhimento jurisprudencial da posição da doutrina majoritária.
Para além
disso, a Corte Constitucional – ainda que o resultado do julgamento não tenha
sido unânime – reconheceu que a Constituição é uma unidade sistêmica, em que há
um entrelaçamento entre princípios e direitos fundamentais, devendo haver um
respeito incondicional aos princípios informativos da Carta Política. Foi
ressaltado, também, que os limites à reforma constitucional devem ser
observados, pois visam a assegurar a obra do Poder Constituinte, não cabendo ao
Poder Reformador agir para desnaturar os direitos e garantias fundamentais
insculpidos na Constituição, razão pela qual a pretensão reformatória que possa atingir o núcleo essencial de
direito protegido por cláusula de intangibilidade deve, necessariamente, ter uma
apreciação restritiva.
A Corte Maior, inequivocamente, agiu em defesa da Constituição,
resguardando-a de mutilação deformadora, e, o que é principal, trouxe um norte
jurisprudencial seguro, no sentido da necessidade de preservação da obra
originária do Poder Constituinte.
Houve o reconhecimento, pela Corte Constitucional, de que a opção política
da Constituinte de 1987/1988 deve ser
respeitada, o que implica poder dizer-se
que apontou na direção da plena e efetiva implementação do Estado Democrático
de Direito.
Sendo a regra
que estabelece a idade da imputabilidade penal uma opção política do
Constituinte, tanto que a erigiu à condição de norma constitucional, deve assim
ser respeitada, visto que a sua constitucionalização implicou na mudança de sua
natureza jurídica.
Apresenta-se
como um direito de defesa da liberdade de todo cidadão menor de dezoito anos de
idade, a exigir uma abstenção do Estado, qual seja, a de não promover a
persecução penal. Nessa ótica, é garantia (direito-garantia) de direito
individual, cuja condição de claúsula pétrea tem expressa (e literal) previsão
constitucional (artigo 60, § 4º, inc. IV).
Por outra
dimensão, apresenta-se como condição de possibilidade do pleno exercício à
fruição dos direitos a prestações – garantes de um pleno desenvolvimento social
– outorgados à infância e juventude pelo artigo 227 e parágrafos da Lei Maior.
E assim é, pois a idade da maioridade penal é que demarca o limite da
adolescência. Diminuída, implicaria afastar da condição de adolescente uma
parcela dos cidadãos menores de dezoito anos.
O artigo
228 da Constituição é regra de imbricação direta com o princípio da dignidade
humana, pois preservadora do direito de liberdade, caracterizando-se como
autêntico direito fundamental. Logo, pela proibição de retrocesso da posição
jurídica outorgada, no que se refere ao seu conteúdo de dignidade humana, é
insuscetível de qualquer modificação. Além do que, uma interpretação desse
artigo conforme o Estado Democrático de Direito afasta toda e qualquer
possibilidade de que sofra alteração.
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Notas:
Trabalho apresentado na Universidade do Vale Do Rio Dos Sinos, Centro De
Ciências Jurídicas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em Direito. Nível
Mestrado. Prof. Orientador: Dr. Lenio Luiz Streck, São
Leopoldo, junho de 2001.
[1] RODRIGUES, Amélia. O vagabundo. In: Álbum das meninas. Revista literária e educativa dedicada às jovens brasileiras, em circulação em 1898. Com o soneto, trazia-se às jovens a preocupação recorrente da sociedade paulistana de então: o enorme número de “menores” criminosos que constantemente ameaçavam a ordem pública e tranqüilidade das famílias.
[2] Ver nesse sentido, STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, em especial as notas introdutórias.
[3] Constituição Federal, Artigo 228 – “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”.
[4] Conforme ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, p. 792.
[5] Tratando-se a questão dos princípios,
matéria que enseja grande controvérsia classificatória, esclarece-se que não se
tem “princípio” como algo que só está no início, na base. Os Princípios
ultrapassam um mero ponto de partida, pois envolvem, com suas irradiações de
sentidos, todo o processo de criação e aplicação do Direito. Nesse sentido,
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio
constitucional da igualdade, p. 18-9: “Por isso o sistema constitucional é
concebido e dinamizado sobre pilares que têm natureza de esteios da construção
jurídica que sobre ela se elabora e diretrizes que conduzem o seu entendimento
e sua aplicação. Estes pilares fundamentais que, inseridos no sistema
constitucional, formam-lhe as bases e definem-lhes os contornos e os matizes
são os princípios constitucionais, sem os quais não se faz simétrica e
integrada a construção jurídica”.
[6] O artigo 4º, da Lei de Introdução ao
Código Civil, assim dispõe: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de
acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Na mesma
linha, o contido no artigo 126, do Código de Processo Civil: “O juiz não se
exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No
julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais, não as havendo,
recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito”. BONAVIDES,
Paulo. Curso de direito constitucional,
p. 264, em preciosa manifestação, bem situa a questão: “Os princípios baixaram
primeiro das alturas montanhosas e metafísicas de suas primeiras formulações
filosóficas para a planície normativa do Direito Civil. Transitando daí para as
Constituições, noutro passo largo, subiram ao degrau mais alto da hierarquia
normativa”.
[7] CARVALHO, Amilton Bueno de. Lei para que(m)?, p. 1. O autor observa
que a aplicação efetiva dos princípios é restrita: “Muito menor do que o
esperado em busca de dar racionalidade (leia-se, justiça) à ordem (im)positva”.
Ao discorrer sobre a motivação disso, traz um alerta que deve ser seriamente
considerado por quem pretende uma plena efetivação da Constituição: “É que – ao
meu sentir – nós, operadores jurídicos, enquanto regra, somos
positivistas-legalistas. Trabalhamos com a hipótese subsunçora da lei ao fato.
Parece-me que o alto grau de abstração, próprio dos princípios, gera pânico:
carrega a falsa idéia de insegurança. É que nosso senso comum é forjado à
aplicação da norma visível que exige mínimo – às vezes nenhum – esforço
intelectual. Não somos ‘programados’ para abstração – exige criação e não mera
repetição do saber manualesco. Ao abstrair, torna-se impossível encontrar
modelo já fabricado: somos forçados ao novo. Não logramos, pois, descobrir o
invisível que está por detrás da realidade aparente, como ensina Michel Mialle,
(...) e tudo fica – cansativamente – como está: a nossa empolada retórica é
mesmice espetacular!” (p. 8-9).
[8] BUARQUE, Cristovam. A desordem do progresso: o fim da era dos economistas e a
construção do futuro, p. 83-4: “De todas as deformações que o enfoque econômico
e a visão desenvolvimentista produziram no entendimento do processo social, a
mais grave é decorrente do fetichismo de como o problema civilizatório foi
transformado em um problema da economia. A deformação se torna mais grave na
medida que permeia toda a sociedade, que passa a se ver como espelho da
economia. Os problemas sociais e aqueles vinculados diretamente à essência do
processo humano deixam de ter uma identidade própria, e são apropriados pela
realidade única da economia. Influenciada por anos de primazia do econômico, a
sociedade cai na armadilha de considerar as dificuldades econômicas como sendo
seus verdadeiros problemas fins. Desaparecem como problemas enfáticos o nível
de desnutrição, a deseducação, a falta de cultura e de saúde; tornam-se
problemas básicos a dívida externa, a inflação, a crise energética, a taxa de
juros”.
[9] No Brasil, sem a menor dúvida, forte a corrente liberal que, em
pugna constante, bate-se para que o espírito liberal predomine na compreensão
da Lei Maior; quer seja por uma interpretação, no mais das vezes, de negativa
da Carta Magna, ou pelo esforço de sua conformação, via reforma constitucional,
a de um Estado Mínimo.
[10] GUERRA FILHO, Willis Santiago (coord.).
Direitos fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade. In: Dos direitos humanos aos direitos
fundamentais, p. 17.
[11] A presença de um determinado princípio
num ordenamento jurídico – de forma explícita ou implícita – vai depender,
sempre, de seu acolhimento em tal sistema, pois nem todos princípios vigem de
forma universal e igual nos diversos ordenamentos: “Em cada ordenamento
jurídico subjazem determinados princípios. Cuida-se de princípios – princípios
gerais do direito (isto é, desse direito) – que, embora não enunciados em texto
escrito, em cada ordenamento estão contemplados, em estado de latência. (...)
Tais princípios, em estado de latência existente sob cada ordenamento, isto é,
sob cada direito posto, repousam no direito pressuposto que a ele corresponda.
Neste direito pressuposto os encontramos ou não encontramos; de lá os
resgatamos, se nele preexistirem. (...) Cumpre distinguirmos, pois, os
princípios positivados pelo direito posto (direito positivo) e aqueles que,
embora nele não expressamente enunciados, existem, em estado de latência, sob o
ordenamento positivo, no direito pressuposto”. GRAU, Eros Roberto. A ordem
econômica na Constituição de 1988, p. 102-3.
[12] Cumpre esclarecer, desde já, que a
concretização dos princípios através das regras não implica uma relação direta
entre determinado princípio e uma regra. Tal concretização pode vir mediada por
outros menos genéricos ou subprincípios, até ser densificado por uma regra.
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal, p. 42-3:
“Dentro do sistema jurídico, os princípios passam por um processo de
concretização sucessiva, através de princípios mais específicos e
subprincípios, até adquirirem o grau de densidade de regras. Tal concretização
não se dá através de um simples processo lógico-formal (...) O que ocorre, na
verdade, é um procedimento dialético, no qual cada subprincípio em que se
desdobra o princípio original adiciona a este novas dimensões e possibilidades,
subsistindo o princípio original no papel de vetor exegético dos cânones mais
específicos”.
[13] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da
Constituição, p. 1086-87.
[14] Esta é a posição de ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, p.
83-7, ao examinar os critérios tradicionais para distinção entre regras e
princípios, concluindo que “(...) la diferencia entre reglas y principios es cualitativa
y no de grado. Toda norma es o bien una regla o un
principio”.
[15] Idem, p. 86.
[16] Idem, p. 87.
[17] É inequívoco que os princípios
apresentam-se imbricados com valores, muito embora não sejam da mesma categoria.
Os valores têm caráter nitidamente axiológico – de juízos de valor. Os
princípios, por sua vez, como “mandados de otimização” (isto é, de realização
possível, como já visto), estão no nível deontológico – do dever ser. Para um
exame acurado do ponto, ver ALEXY, Robert. Op.
cit., p. 138 e ss.
[18] ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a
redefinição do dever de proporcionalidade, p. 154. Na mesma linha,
GUASTINI, que, após enumerar cinco modos - sendo que alguns com subdivisões -
de diferenciação de princípios e regras (que refere como normas) - conclui que
“(...) la interpretación es capaz de transformar los principios em normas y las
normas en principos. De esta forma, la distinción entre normas y
principios se desvanece completamente. Ya no podrá decirse, al nivel de la
teoría del derecho que, el derecho está compuesto de normas y principios.
Únicamente se podrá decir, al nivel de la metajurisprudencia descriptiva o de
historia de las doctrinas jurídicas que, algunos juristas interpretan ciertas
disposiones como normas y otras como principios”. GUASTINI, Ricardo. Distinguiendo. Estudios de teoría y
metateoría del derecho, p. 147.
[19]
ALEXY, Robert. Op. cit., p. 105-9.
[20] UNGER, Roberto Mangabeira. Conhecimento e política, p. 44: “O ato
de pensar e a linguagem dependem do uso de categorias. Precisamos classificar
para pensar e para falar. Mas não podemos estar certos de que algo neste mundo
corresponde às categorias que usamos. Nossas concepções sobre a ciência e a natureza
parecem implicar que acreditamos tanto em que as nossas classificações possam
ser verdadeiras quanto em que possam ser falsas”.
[21] Para uma visão panorâmica da matéria,
entre outros, ver SARMENTO, Daniel. Op.
cit.,Também, com outra perspectiva, ÁVILA, Humberto Bergmann. Op. cit.
[22]
ALEXY, Robert. Op. cit., p. 87.
[23]
ALEXY, Robert. Op. cit., p. 88.
[24] Idem, p. 89.
[25] Idem, ibidem. “Los
conflitos de reglas se llevan a cabo en la dimensión de la validez; la colisión
de principios – como sólo pueden entrar en colisión principios válidos – tiene
lugar más allá de la dimensión de la validez, en la dimensión del peso”.
[26] BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 265.
[27] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p.
1085.
[28] Importante consignar que a aprendizagem
atualizadora dos princípios tem limites. A renovação de atualização não pode
ser utilizada como um meio de promover uma ruptura da ordem constitucional,
transformando-se num modo sorrateiro e ilegítimo de reforma constitucional. Tem
de ficar nos limites da tarefa de interpretação, tão-somente, sem
transformar-se em maneira de subverter a ordem constitucional legítima.
[29] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 1090: “Consideram-se princípios jurídicos fundamentais os princípios historicamente objetivados e
progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma
recepção expressa ou implícita no texto constitucional. Pertencem à ordem
jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação,
integração, conhecimento e aplicação do direito positivo”.
[30] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 18. No mesmo sentido, ver, também: GRAU, Eros Roberto.
Op. cit., p. 164.
[31] “Artigo 1º- A República Federativa do Brasil, formada pela União indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político”. “Parágrafo único - Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição”. “Artigo 2º- São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. “Artigo 3º- Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. “Artigo 4º- A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I – independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político”. “Parágrafo único - a República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.
[32] “Nós, representantes do povo brasileiro,
reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado
Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL”.
[33] “Artigo 227 – É dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
[34] Não se desconhece a crítica à opção de
visualizar a evolução dos direitos fundamentais em gerações, ao invés de falar
em dimensões de tais direitos. Ocorre que se entende que a idéia de geração bem
traduz o processo evolutivo-histórico e sucessivo do surgimento dos direitos
fundamentais. Tem-se que “os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam
são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias,
caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e
nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos.
p. 5. Além do que, é sabido que os
direitos fundamentais mudam de conteúdo em cada momento histórico, pois o
processo de emergência dos mesmos é cumulativo e complementar.
[35]
LOBATO, Anderson Cavalcante. O reconhecimento e as
garantias constitucionais dos direitos fundamentais, p. 145.
[36]
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos humanos,
estado de derecho y constitucion, p. 31.
[37] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p.
30.
[38]
SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p.
80.
[39] STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, Jose Luis
Bolzan de. Ciência política e teoria
geral do estado, p. 93.
[40] Para uma compreensão ampla da questão
sobre público/privado, ver BOBBIO, Norberto. A grande dicotomia:
público/privado. In: Estado, governo,
sociedade; por uma teoria geral da política, p. 13-31.
[41] MORAIS, José Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses
trans-individuais, p. 72.
[42] Cumpre salientar que nem todas as
liberdades são garantidas somente pela abstenção do Estado. Existem liberdades
que exigem um agir positivo do Estado, garantindo o exercício da mesma; v.g.: a liberdade religiosa, em que o
Estado, além de permitir a liberdade de crença, também tem de assegurar as
condições necessárias para a sua prática. Vide MIRANDA, Jorge. Os direitos fundamentais – sua dimensão
individual e social, p. 202.
[43] Idem, p. 204.
[44] A tecnologia introduzida, através da
estruturação do processo fabril, criou uma regularidade de produção antes
inocorrente, pois esta ficava dependente/condicionada a variáveis da natureza
(clima) e do ritmo de labor estabelecido pelos artesãos/produtores.
[45] Observa-se que o viés aqui adotado é da
notícia da evolução do Estado Liberal para o Estado Social, em grandes
pinceladas, sem a fixação do enfoque nos atores que impulsionaram a mudança,
como também poderia ser feito. Para tanto, vide MORAIS, José Luis Bolzan de. A subjetividade do tempo. Uma
perspectiva transdisciplinar do direito e da democracia, p. 27: “Ocorre, nestes
tempos de Revolução Industrial, uma transformação completa nos modos de vida
incrustrados no contexto social. Estabelece-se um rearranjo no processo
produtivo que incorpora ‘a disciplina, a monotonia, as horas e as condições de
trabalho; a perda do tempo livre e do lazer; a redução do homem ao status de instrumento’, entre outras
coisas”.
[46] Volta-se a ressaltar que se traz uma
visão panorâmica e geral da emergência histórica dos direitos fundamentais. Tal
ressalva é importante, pois à luz do ordenamento constitucional positivo
brasileiro, os direitos fundamentais sociais – de regra identificados pela doutrina
como direitos de segunda geração ou dimensão – não se constituem somente de
direitos a uma prestação positiva do Estado. V.g.: direito de greve, art. 9º, da Constituição Federal; proibição
de discriminação em relação a salário e critério de admissão para o trabalhador
portador de deficiência, art. 7º, inc. XXXI, da Carta Magna; direito de livre
associação sindical, art. 8º da Carta Política. Em tais casos é exigida uma
omissão dos destinatários – Estado ou particular – a fim de assegurar o
exercício desses direitos pelos trabalhadores. Em suma, pode-se afirmar que, em
relação ao nosso sistema constitucional, os direitos fundamentais sociais não
se restringem a prestações positivas.
[47] MORAIS, José Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses trans-individuais,
p. 80.
[48] MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 83.
[49] “São os direitos humanos de terceira
geração aqueles que ultrapassam em seus limites subjetivos a figura de um
indivíduo, de um grupo, ou de um determinado Estado. Aprofundam, como já
salientado, o seu conteúdo genérico, tendo como destinatário direto e indireto
o gênero humano. O seu asseguramento ou a sua violação atingem inarredavelmente
este conjunto indeterminado de indivíduos”. Idem, p. 166.
[50] Conforme P. Bonavides, a democracia
afigura-se como um direito fundamental de quarta geração, pois deve ser de
“aplicação compulsiva”, já que é o “mais fundamental dos direitos políticos” –
positivado em Constituições e Tratados – e “de observância necessária, por
conseguinte, tanto na vida interna como externa dos Estados”. BONAVIDES, Paulo.
Teoria do estado, p. 350. Depois,
também, já acrescentando a informação e o pluralismo como direitos de quarta
geração. Idem. Curso de Direito
Constitucional, p. 525. ALCEBÍADES JÚNIOR, José. Cidadania e novos
direitos. In: O novo em direito e
política, p. 193: refere direitos de quinta geração relacionados com o
desenvolvimento da cibernética.
[51] STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis
Bolzan de. Op. cit., p. 91.
[52] Definir/conceituar democracia é algo difícil e complexo, que, em vista da finalidade deste trabalho, não será investigado. Interessa, no entanto, consignar que se trabalha com a idéia de democracia como algo necessariamente imbricado no seu conteúdo histórico, com o sentido de uma forma de sociedade que é “precisamente o privilégio da invenção quotidiana [da sociedade], a exaltação de seus antagonismos e formas de resistência às práticas de dominação. Ela precisa, para constituir-se, do reconhecimento de um território simbólico coletivamente constituído como negação de um lugar a priori, e como rebelião a um delito social julgado previsível”. WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito, III, p. 102.
[53] Cabe anotar que um dos argumentos mais
utilizados pelos que lutam por constantes reformas da Constituição brasileira,
com a intenção da implantação plena do neoliberalismo no país, é de que a Carta
Magna de 1988 é um grande conjunto de promessas irrealizáveis, devendo ser
“limpa” das utopias e tornar-se algo concretizável. Ora, a “concretização”
pretendida nada mais é do que manter o status
quo de pura predominância econômica, com término de qualquer normatividade
que possibilite/obrigue o Estado a promover a inclusão social. É, em essência,
a pretensão de negação do Estado Democrático de Direito, com retorno ao Estado
Liberal Individualista.
[54] STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis
Bolzan de. Op. cit., p. 90.
[55] LEAL, Rogério Gesta. Direitos humanos no Brasil: desafios à
democracia, p. 131.
[56] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 9.
[57]
SCHMITT, Carl. Teoría de la constitución,
p. 93-4: “Poder constituyente es la voluntad política cuya fuerza o autoridad
es capaz de adoptar la concreta decisión de conjunto sobre modo y forma de propria
existencia política, determinando así la existencia de la unidad política como
un todo”. Cumpre
observar que a Teoria da Constituição de Carl Schmitt é obra que faz arguta
crítica ao Estado Liberal, examinando as contradições decorrentes da assunção
do poder pela burguesia. Por óbvio, não se pode esquecer que o autor introduz
um fundo ideológico subjacente – de todo reprovável, posto que tinha convicções
políticas nazistas. A compreensão disso, que faz com que Schmitt não consiga
trazer para suas reflexões um sentido pluralístico democrático e concentre-se
na exaltação de um estado nacional homogêneo, isto é, que não reconhece como de
validade intrínseca os direitos das minorias, não invalida que a obra seja
aproveitada enquanto crítica objetiva, profunda e histórica do
constitucionalismo liberal-burguês.
[58] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 122.
[59] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p.
65-6.
[60] Consigna-se o fundamentado entendimento de Oscar Vilhena Vieira de que a teoria constituinte norte-americana é mais sofisticada e democrática que a concepção formulada por Sieyès, pois esteia a supremacia da Constituição “em um somatório de razões, que associa valores substantivos, modelo de deliberação e processo de ratificação – ou seja: conjuga justificações valorativas, de racionalidade procedimental e majoritária”. VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. Um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma, p. 58-9.
[61] COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos,
p. 123.
[62] A questão da denominação da assembléia
foi resolvida, também, com base nas idéias de Sieyès – que adiante serão
explicitadas – ficando os deputados do Terceiro Estado reunidos em uma Assembléia Nacional.
[63] SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa: que é o terceiro
estado, p. 51.
[64] Mais precisamente, conforme SCHMITT, Carl. Op. cit., p. 95-6: a nação, pois já existia, na França, uma consciência de existência política como tal, conformada como um Estado desde a monarquia absolutista. Tal constatação só tem sentido no viés liberal do que seja uma nação; mas em sede de revolução burguesa, como foi à francesa, a observação é absolutamente pertinente.
[65] SIEYÈS, Emmanuel Joseph. Op. cit., p. 94.
[66] Impõe-se a consignação da tríade de possibilidades, pois os norte-americanos – sem a clareza teórico-conceitual expressa por Sieyès – já haviam feito a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos, no curso do processo que culminou com a Constituição de 1787 (isto é, da Constituição de uma confederação até a formação da federação).
[67] BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 122.
[68] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p.
77.
[69] Entendimento estruturado com base em
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica
constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:
contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição,
p. 37 e passim. Conforme, também,
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit.,
p. 71: “(...) o povo, nas democracias actuais, concebe-se como uma ‘grandeza
pluralística’ (P. Häberle), ou seja, como uma pluralidade de forças culturais,
sociais e políticas, tais como partidos, grupos, igrejas, associações,
personalidades, decisivamente influenciadoras da formação de ‘opiniões’,
‘vontades’, ‘correntes’ ou ‘sensibilidades’ políticas nos momentos
preconstituintes e nos procedimentos constituintes”.
[70] Está tão disseminado o uso de tal denominação na doutrina, por força da tradição, que acaba por não gerar qualquer dúvida de significação, já que o seu conteúdo é o de referência inequívoca ao poder reformador.
[71] DANTAS, Ivo. O valor da Constituição (do controle da constitucionalidade como
garantia da supralegalidade constitucional), p. 170-1: Apesar de alguns
autores referirem-se à existência de um (Poder Constituinte Originário) e de um
(Poder Constituinte Derivado), tais expressões não nos satisfazem, dentre
outros motivos, por trazerem em si contradições, até mesmo de ordem semântica.
(...) ou estamos diante de um Poder
Constituinte (necessariamente originário e juridicamente ilimitado), ou
estamos diante de um Poder Constituído de
Reforma (necessariamente derivado e juridicamente limitado). Em outras
palavras: enquanto o primeiro precede ao ordenamento jurídico, trazendo em si
uma natureza de poder de facto, o
segundo – Poder de Reforma – existe dentro do próprio ordenamento, por opção do
constituinte, tendo em vista a necessidade de adaptar-se o texto a novas
situações, realidades e valores sociais. Tal previsão pelo ordenamento
jurídico-constitucional, lhe dá uma natureza de poder de jure constituído, pois. Também, entre outros, pugnam pela
denominação poder reformador: SAMPAIO, Nelson de Souza. O poder de reforma constitucional, p. 109; AGRA, Walber de Moura. Fraudes à Constituição: um atentado ao
poder reformador, p. 125.
[72] SALDANHA, Nelson. Formação da teoria constitucional, p. 143: “(...) a compreensão do
alcance técnico deste princípio, inserido na feitura mesmo dos textos constitucionais,
que levou à idéia de rigidez
constitucional, correspondente à existência, nas constituições, de dispositivos
concernentes à reforma delas próprias: competência, alcance, procedimento”.
[73] BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional da
constitucionalidade das leis, p. 65-6.
[74] Conforme SALDANHA, Nelson. Op. cit., p. 144, com base no
entendimento de A. Esmein, que cita.
[75] Também na mesma linha de entendimento,
BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. Op.
cit., p. 67-8, com o esclarecimento de que a enunciação precisa da terceira
posição deve ser atribuída a Rousseau “nos seus estudos sobre a reforma do
governo da Polônia”. Ainda, BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 174-75, quando explana sobre o surgimento da reforma
constitucional.
[76] Para uma visão histórica de como a
possibilidade reformatória, via emenda, foi introduzida na Constituição
norte-americana, ver VIEIRA, Oscar Vilhena. Op.
cit., p. 60 e ss. Muito interessante, também, a idéia sustentada de que a
possibilidade de reforma prevista na própria Constituição, pode ser vista como
a institucionalização da revolução, visão essa baseada na “alternativa
lockeana” de que qualquer correção na Constituição só poderia ser feita com
recurso à revolução.
[77] A matéria atinente à alteração da Carta
Política, via emenda, pelo Poder Reformador instituído, está regulada no artigo
60 e parágrafos da Constituição Federal. A possibilidade de revisão da
Constituição de 1988, prevista no artigo 3º dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias – cuja possibilidade de ocorrência se deu em 1993
- também tinha previsão de ser procedida pelo Congresso Nacional, só que
reunido em sessão unicameral e com quorum de aprovação menor (maioria absoluta
dos membros do Congresso Nacional).
[78] Argumenta-se que a Constituinte de
1987/1988 era, tão-somente, o Congresso Nacional com poderes especiais para
reforma, conforme se vê da Emenda n° 26/85 à Constituição de 1967/1969: “Esta
Emenda n.° 26/85 alterou o processo de emenda previsto na Constituição então
vigente, com isso autorizando o Congresso Nacional a assumir a feição de
‘Constituinte’, simplificando o procedimento (maioria absoluta dos membros do
Congresso para a aprovação e não maioria de dois terços de cada Casa), e,
sobretudo, suprimindo as ‘cláusulas pétreas’ consagradas na Constituição de
1967, na Emenda n.° 1/69, art. 47, § 1°. Nem por sombra aparece nesse processo
político-jurídico o poder inicial de organizar a nação que é o verdadeiro poder
constituinte. (...) as ‘cláusulas pétreas’ em vigor vieram de uma reforma
constitucional, tendo sido obra do poder constituinte derivado. Ora, o que o
poder derivado estabelece, poder derivado pode mudar”. FERREIRA FILHO, Manoel
Gonçalves. Significação e alcance das
“cláusulas pétreas”, p. 9.
[79] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Constituição e
inconstitucionalidade II, p. 76: “Não
é, com efeito, todos os dias que uma comunidade política adota um novo sistema
constitucional, fixa um sentido para a ação do seu poder, assume um novo
sentido; é apenas em tempos de ‘viragem histórica’, em épocas de crise, em
ocasiões privilegiadas irrepetíveis em que é possível ou imperativo escolher. E
estas ocasiões não podem ser catalogadas a
priori; somente podem ser apontados seus resultados típicos – a formação de
um Estado ex-novo, a sua restauração,
a transformação da estrutura do Estado, a mudança de um regime político. Poder
constituinte equivale à capacidade de escolher entre um ou outro rumo, nessas
circunstâncias. E nele consiste o conteúdo essencial da soberania (na ordem
interna), pois, como ensina a doutrina mais autorizada, soberania significa
faculdade originária de livre regência da comunidade política mediante a
instituição de um poder e a definição de seu estatuto jurídico”.
[80] E tanto é assim que desde o golpe de 1964 houve resistência e luta pelo retorno à democracia, obrigando o poder militar a fazer uso dos Atos Institucionais para implantação plena da ditadura. Por algum tempo, especialmente após a edição do Ato Institucional n.º 5, com certeza, o instrumento mais autoritário da história política brasileira, houve uma diminuição da resistência democrática pelo recrudescimento da repressão política. Todavia, a partir de 1982, com a eleição dos Governadores dos Estados, a luta pela restauração democrática tomou novo fôlego, ganhando as ruas, e em 1984, de forma nunca vista no Brasil, tivemos a mobilização popular para a eleição direta do Presidente da República. Tal perspectiva restou frustrada naquele momento, mas o processo de redemocratização apresentava-se irreversível e passou a acontecer pelos meios estabelecidos pela própria ditadura para garantir a sua sobrevivência, sendo Tancredo Neves eleito Presidente da República pela via indireta. Buscavam as forças democráticas, dentro do possível, fazer avançar o processo de restauração da democracia. Tancredo Neves morreu antes de assumir a Presidência da República, mas nem a posse do Vice-Presidente eleito, José Sarney - figura que historicamente sempre esteve vinculada com o que havia de mais retrógrado em termos políticos e fora sustentáculo civil da ditadura militar - foi capaz de frear a marcha para a democracia exigida pela nação. O clamor social por mudanças, pelo enterro da ordem autoritária que se instalara em 1964, fez com que fosse convocada uma constituinte congressual através da Emenda Constitucional n.º 26, promulgada em 27 de novembro de 1985.
[81] MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 87.
[82] MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 88-9: “(...) na transição constitucional se observam
as competências e as formas de agir instituídas: o Rei absoluto, por o ser,
pode autolimitar-se, tal como uma assembléia pode ser autorizada por uma lei
formalmente conforme com a Constituição previgente a decretar uma nova
Constituição. Dir-se-á que, de qualquer sorte, existe desvio ou excesso de
poder, visto que um órgão criado por certa Constituição está vedado, por
natureza, suprimi-la ou destruí-la. Mas esse desvio de poder só se dá do prisma da Constituição anterior;
não do prisma da nova Constituição, que, precisamente, surge com a decisão de
abrir caminho ou deixar caminho aberto à mudança de regime. E nisto consiste –
em paralelo com o que se verifica com a revolução – o exercício do poder
constituinte originário. Em última análise, uma transição constitucional produz-se porque a velha legitimidade se
encontra em crise e justifica-se
porque emerge uma nova legitimidade. E é a nova legitimidade ou idéia de
Direito que obsta à arguição de qualquer vício no processo e que, doravante,
vai não só impor-se como fundamento de legalidade mas ainda obter efetividade”.
[83] A Emenda Constitucional n.º 26/85, no
que interessa para o exame da questão, está assim lavrada: “Art. 1º. Os Membros
da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão, unicameralmente, em
Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de
1987, na sede do Congresso Nacional. (...) Art. 3º. A Constituição será
promulgada depois da aprovação de seu texto, em dois turnos de discussão e
votação, pela maioria absoluta dos Membros da Assembléia Nacional
Constituinte”.
[84] JOBIM, Nelson. Poder constituinte originário e poder constituinte derivado, p.
5-6: As estruturas e os paradigmas da Carta de 1969 são incompatíveis com as
concepções democráticas, mormente quanto à regulamentação do Estado em suas
relações com a sociedade. Por isso, e exatamente por isso, a Nação clamara pela
convocação da Assembléia Nacional Constituinte, porque tinha presente a
impossível tarefa de extrair do ventre do autoritarismo um modelo democrático
de convivência social. E assim, o Congresso Nacional de 1985, na esteira de um
projeto oriundo do Executivo, convoca a Assembléia Nacional, para que esta,
integrada pelos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, escreva a
nova Constituição, livre e soberanamente. Note-se que o Congresso Nacional de
1985, com a competência que lhe outorgou a Carta de 1969, convocou esta
Assembléia Nacional com a finalidade explícita de criar, sem limitações
materiais de qualquer natureza, uma nova Constituição. As únicas limitações
contidas no ato convocatório dizem com temas procedimentais: a aprovação da
nova Carta dar-se-á por maioria absoluta e em dois turnos de votação. (...) um
poder constituinte, livre e soberano – incondicionado, portanto – emerge, sem o
colapso do sistema anterior e no bojo de uma transição pacífica. O ato
convocatório não atribuiu ao Congresso Nacional de 1987 o poder de reformar
totalmente a Carta de 1969. Aliás, o ato convocatório não modificou em nada a
Carta Constitucional de 1969 quanto aos poderes de emenda do Congresso
Nacional. Manteve-os íntegros. (...) Podemos agora afirmar, sem medo algum, que
esta Assembléia Nacional é um poder
cuja legitimidade decisória não decorre da Carta de 1969, porque não sujeita
aos paradigmas desta, nem mesmo aos seus procedimentos. Não somos um poder com
a competência de produzir normas
constitucionais. Somos, isto sim, um poder
com a força de produzir uma Constituição. É esta Assembléia um poder
constituinte originário porque tem a força de criar um sistema de normas
constitucionais ‘por via diferente das que a Constituição atual autoriza e à
margem das limitações que fixa’. (...) Com a promulgação e vigência da nova
Constituição, derrogada estará a Carta de 1969.
[85] RUSCHEL, Ruy Ruben. Direito constitucional em tempos de crise, p. 160: “O fato de sua
convocatória ter emanado de uma emenda interposta à Carta de 1967-1969 (a
Emenda n.º 26, de 27-11-1985) não impediu que funcionasse como Assembléia
Nacional Constituinte livre e soberana. Esta restou de ruptura
constitucional, sim, mas ocorrida em 1964 (aliás repetida sucessivas vezes)
provocada pelo acesso dos militares ao poder, e não em 1985-88. O período que
se estendeu de 1964 a 1988 pode considerar-se um hiato constitucional,
como o chamaria Ivo Dantas (Poder
Constituinte e Revolução, Ed. Rio, 1977, p. 36). Com efeito, a Carta de
1967 nunca serviu de apoio a um legítimo estado de direito, nascida que foi de
uma imposição (Ato Institucional n.º 4) e posteriormente sujeita a constantes
violações. O movimento contra o farisaísmo dessa Carta teve o objetivo claro de
reconstitucionalizar o país, dando-lhe uma Constituição que a rigor não tinha.
Dizer que a Constituição Cidadã nasceu de uma costela da Milica
(Carta de 1967) representa apego exagerado à forma”.
[86] Exemplificativamente, pode-se citar a
passagem da IV para a V República na França, em 1958; a redemocratização do
Chile após a Ditadura Pinochet, entre 1988 e 1990; a mudança do regime de
segregação racial na África do Sul, que, em 1994, teve a primeira eleição com a
participação igualitária da população negra.
[87] WOLKMER, Antônio Carlos. Uma nova conceituação crítica de
legitimidade, p. 31: “(...) a construção crítica de uma legitimidade
democrática que venha fundamentar o Poder político e o Direito justo tem seu
ponto de referência deslocado da antiga lógica de legitimação, calcada na
legalidade tecnoformal para uma legitimidade instituinte, formada no
justo consenso da comunidade e num sistema de valores aceitos e compartilhados
por todos. Não se trata mais de identificar e reduzir o conceito de
legitimidade ao aspecto simplesmente jurídico, ou seja, a estrita vinculação
com a validade e eficácia enquanto produção de efeitos normativos. Numa cultura
jurídica pluralista, democrática e participativa, a legitimidade não se funda
na legalidade positiva, mas resulta da consensualidade das práticas sociais
instituintes e das necessidades reconhecidas como reais, justas e
éticas ”.
[88] MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 85.
[89] LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição, p. 59-60: “Onde a Constituição escrita não corresponder à real, irrompe inevitavelmente um
conflito que é impossível evitar e no qual, mais dia menos dia, a Constituição
escrita, a folha de papel, sucumbirá
necessariamente, perante a Constituição real, a das verdadeiras forças vitais
do país”. É de observar-se que LASSALE, na obra antes referida, logrou
explicitar a fundamentação sociológica das constituições, tornando claro que
essa se baseia nos fatores reais/efetivos de poder de uma sociedade.
[90] Pode-se afirmar que a sociedade que
impôs o fim do regime militar representava o poder constituinte originário
material (fatores reais de poder preponderantes no meio social) e que é a fonte
de legitimidade da Constituinte de 1987/1988, independentemente do modo pelo
qual houve a sua convocação.
[91] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do
legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais
programáticas, p. 15.
[92] PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral. Os limites do poder constituinte e a
legitimação material da Constituição, p. 142.
[93] Conforme SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo,
p. 45-6: “Rígida é a Constituição somente alterável mediante
processos, solenidades e exigências formais específicas, diferentes e mais
difíceis que os de formação das leis ordinárias ou complementares. Ao
contrário, a Constituição é flexível quando pode ser livremente
modificada pelo legislador segundo o mesmo processo de elaboração das leis
ordinárias. Na verdade, a própria lei ordinária contrastante muda o texto
constitucional. Semi-rígida é a Constituição que contém uma parte rígida
e outra flexível, como fora a Constituição do Império do Brasil, à vista de seu
art. 178”.
[94] V.g.:
MELO, Oswaldo Aranha Bandeira de. A
teoria das constituições rígidas, p. 40-1: “As Constituições, como obras,
não podem ser perfeitas; demais, a sociedade evolve, pois, certos preceitos
convenientes em determinadas situações sociais e políticas já se não amoldam
exatamente a outras, e surge, naturalmente, a necessidade de reformá-las, para
não ficarem sendo objetos de museu de antigüidades. Impossível se admitirem
leis imutáveis em todas as suas disposições”. Também, BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 173-74: “A imutabilidade
constitucional, tese absurda, colide com a vida, que é mudança, movimento,
renovação, progresso, rotatividade. Adotá-la equivaleria a cerrar todos os
caminhos à reforma pacífica do sistema político, entregando à revolução e ao
golpe de Estado a solução das crises. A força e a violência, tomadas assim por
árbitro das refregas constitucionais, fariam cedo o descrédito da lei
fundamental”.
[95] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da
Constituição, p. 211.
[96] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição, p. 22: “Igualmente perigosa para
a força normativa da Constituição afigura-se a tendência para a freqüente
revisão constitucional sob a alegação de suposta e inarredável necessidade
política. Cada reforma constitucional expressa a idéia de que, efetiva ou
aparentemente, atribui-se maior valor às exigências de índole fática do que à
ordem normativa vigente. Os precedentes aqui são, por isso, particularmente
preocupantes. A freqüência das reformas constitucionais abala a confiança na
sua inquebrantabilidade, debilitando a sua força normativa. A estabilidade
constitui condição fundamental da eficácia da Constituição”.
[97] Como a pesquisa procura demonstrar que é
inviável a modificação da idade penal mínima, que tem expressa consignação
constitucional e enquanto lá constar não deixará de gerar seus efeitos, não
será feita uma análise da chamada mutação constitucional informal, ou seja,
daquela mudança que se opera gradualmente no tempo e modifica a Constituição de
modo informal, sem alteração de seu texto. Tal
modificação se dá pela interpretação, usos, costumes, etc.: “En la mutación constitucional, por outro
lado, se produce una transformación en la realidad de la configuración del
poder político, de la estructura social o del equilibrio de interesses, sin que
quede actualizada dicha transfomación en el documento constitucional: el texto
de la constitución permanece intacto”. LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución, p. 165.
[98] A regulação da matéria atinente ao
processo de emenda está contida no artigo 60 da Constituição, que tem a
seguinte redação: Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante
proposta: I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do
Senado Federal; II – do Presidente da República; III – de mais da metade das
Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma
delas, pela maioria relativa de seus membros. § 1º - A Constituição não poderá
ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de
estado de sítio. § 2º - A proposta será discutida e votada em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em
ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. § 3º - A emenda à
Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado
Federal, com o respectivo número de ordem. § 4º - Não será objeto de
deliberação a proposta tendente a abolir: I – a forma federativa do Estado; II
– o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais. § 5º A matéria constante de proposta
de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova
proposta na mesma sessão legislativa.
[99] Para uma visão panorâmica histórica dos
procedimentos de reforma das Constituições brasileiras, ver: VIEIRA, Oscar
Vilhena. Op.
cit., p. 116-25.
[100] AGRA, Walber de Moura. Op. cit., p.
133.
[101] Interessante observar que a Constituição
de 1824, em seu artigo 178, estabelecia o que era matéria de ordem
constitucional e estava sujeita ao procedimento especial instituído para
reforma da Constituição: “Art. 178. É só Constitucional o que diz respeito aos
limites e atribuições respectivas dos Poderes Políticos e aos Direitos
Políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o que não é Constitucional pode ser
alterado sem as formalidades referidas pelas Legislaturas ordinárias”.
[102] “Art. 174. A Constituição pode ser
emendada, modificada ou reformulada por iniciativa do Presidente da República,
ou da Câmara dos Deputados. § 1º O projeto de iniciativa do Presidente da
República será votado em bloco, por maioria ordinária de votos da Câmara dos
Deputados e do Conselho Federal, sem modificações ou com as propostas pelo
Presidente da República, ou que tiverem a sua aquiescência, se sugeridas por
qualquer das Câmaras. § 2º O projeto de emenda, modificação ou reforma da
Constituição de iniciativa da Câmara dos Deputados, exige, para ser aprovado, o
voto da maioria dos membros de uma e outra Câmara. § 3º O projeto de emenda,
modificação ou reforma da Constituição, (...)”. O artigo antes transcrito é o
de redação original, que sofreu modificação pela Lei Constitucional n.º 9, de
28.02.1945, mas sem alterar a parte em que há referência à “emenda, modificação
ou reforma”, que é o que interessa para o tema que se desenvolve.
[103] MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967, p. 143-44: “Na Constituição de
1937, a terminologia era ambígua; e mais que ambígua: equívoca. O Título era Das
emendas à Constituição, o que fazia crer-se no sentido de emenda
como o do conceito geral, abrangente de quaisquer modificações ou alterações do
texto constitucional, do mínimo ao máximo de mudança permitida, dentro da ordem
constitucional. Mas o art. 174 logo nos apontava três conceitos, repetidamente,
como se fossem indispensáveis ao bom entendimento dos seus princípios: emenda,
modificação, reforma”.
[104] Há que se consignar que tal
entendimento não é pacífico, havendo posicionamento de que o termo revisão,
no constitucionalismo brasileiro, não tem acepção técnica. Ou seja, não
tem significado diverso ao de emenda. Vide: RUSCHEL, Ruy Ruben. Op. cit., p. 161-62. No mesmo sentido,
identificando, numa acepção ampliativa, reforma, revisão e emenda como conceitos
que se identificam, FERREIRA, Luiz Pinto. Curso de direito constitucional, p. 333.
[105] Para uma visão crítica da questão da
revisão constitucional, ver STRECK, Lenio Luiz. Constituição: limites e perspectivas da revisão.
[106] MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 190.
[107] A explicitação do que seja a dupla
revisão será feita no tópico em que se tratar dos limites implícitos de forma
específica.
[108] LOEWENSTEIN, Karl. Op. cit., p. 192, faz crítica de outra ordem à existência de
limites à reforma. Aduz que tais vedações não apresentam nenhum
efeito prático em momentos históricos de crise: “En general, sería de señalar que las disposiciones de intagibilidad
incorporadas a una constitucion pueden suponer en tiempos normales una luz roja
útil frente a mayorías deseosas de enmiendas constitucionales – y según la
experiencia tampoco existe para esto una garantía completa - pero com ello en
absoluto se puede decir que dichos preceptos se hallen inmunizados contra toda
revisión. En un desarrollo normal de la dinámica política puede ser que hasta
cierto punto se mantengan firmes, pero en épocas de crisis son tan sólo pedazos
de papel barridos por el viento de la realidad política”.
[109] A palavra “revisão” vem utilizada como
sinônimo de reforma; aliás, como é comumente usada na doutrina estrangeira.
Vale dizer, não se dá a tal termo o mesmo conteúdo significativo que,
majoritariamente, é conferido no constitucionalismo brasileiro.
[110] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 995.
[111] BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 178.
[112] Na mesma linha, também, MOREIRA, Vital.
Constituição e revisão constitucional,
p. 103: “Na verdade, os limites de revisão constitucional partem de dois
pressupostos, que hoje são indiscutíveis na teoria constitucional: a) uma Constituição não é uma lei
qualquer, um mero conjunto de preceitos reguladores do processo político, mas
sim a lei fundamental da sociedade
política e do Estado, que não pode ser alterada nos seus aspectos essenciais
sob pena de subversão da própria colectividade política; b) o poder de revisão constitucional é um poder derivado do poder constituinte e a ele submetido, sendo a sua
função não a de renovar o poder constituinte, alterando livremente a Constituição,
mas sim a de defender e preservar a
Constituição, mantendo a sua identidade originária e introduzindo as alterações
e os ajustamentos que se revelem necessários para reforçar a vitalidade da
Constituição”.
[113] BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 178.
[114] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 994.
[115] Segundo VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. cit., p. 134-35, a existência de rol
tão extensivo justifica-se pela circunstância de que o quorum de três quintos para aprovação de emenda constitucional, “dissociado
de outros mecanismos que diminuam os ímpetos reformistas, certamente abre a
possibilidade de constantes mudanças no texto da Constituição. (...) Caso essa
flexibilização não viesse acompanhada de uma expansão das cláusulas limitativas
do poder de reforma, poderia gerar situações de absoluta fragilidade do cerne
básico da Constituição, que organiza o Estado Democrático de Direito. Daí surge
a importância absoluta não apenas dos dispositivos que estabelecem os limites
materiais ao poder de reforma, como de sua adequada compreensão e aplicação”.
[116] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 32-3.
[117] MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 198-99. Também, FERREIRA
FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 8, 10.
[118] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 8, por exemplo, apresenta
restrições a uma existência clara de limites imanentes ao poder de reforma de
texto constitucional. Vê dificuldade na localização de um núcleo fundamental de
uma Constituição quando essa não expressar limites a sua reforma, e, por conseqüência,
assentar-se quais os limites implícitos a uma reforma é algo bastante difícil.
Em existindo expressamente limite à reforma – pela indicação de qual o núcleo
fundamental, que se apura pelas cláusulas pétreas - sustenta ser impossível
conceber a existência de limite implícito: “A lógica parece excluí-lo. Difícil
é admitir que o constituinte ao enunciar o núcleo intangível da Constituição o
haja feito de modo incompleto, deixando em silêncio uma parte dele, como que
para excitar a capacidade investigatória dos juristas”.
[119] STRECK, Lenio
Luiz. Op. cit.,
p. 38.
[120]
LOEWENSTEIN, Karl. Op. cit., p. 189.
[121]
SCHMITT, Carl. Op. cit., p. 109, 119.
É de
observar-se que SCHMITT admite que, em determinadas situações, pode o poder
constituinte – que sempre está presente em estado de latência – operar com a
aparência de poder reformador.
[122] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 996. Em seguimento, acrescenta exemplo em que mesmo havendo limites expressos, como no caso da Constituição de Portugal, artigo 288 - aliás, com longo rol - não há como afastar a existência de limites implícitos, indicando, como cláusula de intangibilidade não-expressa, a integridade do território (artigo 5º) e o próprio artigo 288.
[123] SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 352: “(...) há que se dar
razão aos que sustentam que a construção de uma teoria dos limites implícitos à
reforma constitucional apenas pode ser efetuada à luz de determinada ordem
constitucional (isto é, do direito constitucional positivo), no sentido de que
as limitações implícitas deveriam ser deduzidas diretamente da Constituição,
considerando-se especialmente os princípios cuja abolição ou restrição poderia
implicar a ruptura da própria ordem constitucional. Na medida em que
diretamente extraídos de uma Constituição concreta, aos limites materiais
implícitos pode ser atribuída a mesma força jurídica dos limites expressos,
razão pela qual asseguram à Constituição, ao menos em princípio, o mesmo nível
de proteção”. No mesmo sentido. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 995: “A idéia de limitação
do poder de revisão, no sentido apontado, não pode divorciar-se das conexões de sentido captadas no texto
constitucional. Desta forma, os limites materiais devem encontrar um mínimo de
recepção no texto constitucional, ou seja, devem ser limites textuais implícitos”.
[124] SAMPAIO, Nelson de Souza. Op. cit., p. 95.
[125] As Constituições da Suíça e da Áustria
são exemplos de textos constitucionais que permitem a sua modificação total.
Conforme MENDES, Gilmar Ferreira. Limites da revisão: cláusulas pétreas ou
garantias de eternidade – possibilidade jurídica de sua superação. AJURIS, p. 253.
[126] BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 179, alerta para o cuidado que se deve ter com
reformas parciais “que, removendo um simples artigo da Constituição, podem
revogar princípios básicos e abalar os alicerces a todo o sistema
constitucional, (...) Trata-se em verdade de reformas totais, feitas por meio
de reformas parciais. Urge precatar-se contra essa espécie de revisões que,
sendo formalmente parciais, examinadas, todavia, pelo critério material,
ab-rogam a Constituição, de modo que se fazem equivalentes a uma reforma total,
pela mudança de conteúdo, princípio, espírito e fundamento da lei
constitucional. (...) configurando-se assim o fenômeno político que os
publicistas consignam debaixo da designação de fraude à Constituição.
São freqüentes os exemplos históricos dessa prática abusiva de violação da
Constituição, em que as formas se resguardam para mais facilmente alterar-se o
fundo ou a base dos valores professados”.
[127]
SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p.
352.
[128] VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. cit., p. 20-1.
[129] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 997.
[130] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 10.
[131] MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 198-99, que vem aprofundando a questão da dupla revisão, não deixa de reconhecer que a sua tese, em sendo atingido pela dupla revisão um princípio nuclear – passível de modificação na sua posição – pode levar à transposição da reforma para a transição constitucional. E essa pode ser meio de mudança de direcionamento da ordem constitucional conformadora de um Estado, mas que desborda o campo da reforma constitucional. Para uma idéia do fenômeno da chamada transição constitucional, ver o tópico 2.1.3 deste capítulo.
[132]
SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p.
352-3.
[133] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 38.
[134] MOREIRA, Vital. Op. cit., p. 105, manifestando-se em defesa da imodificabilidade de
qualquer dispositivo protegido por cláusula de intangibilidade da Constituição
de Portugal, antes da revisão de 1982, opunha-se a qualquer interpretação
visualizadora de alguma possibilidade de alteração, não entendendo ser possível
uma modificação que preservasse os princípios: “(...) o artigo 290º não se
limita a garantir apenas princípios –
como por vezes se ouve dizer - de tal modo que a revisão constitucional ficaria
com a liberdade de alterar ou restringir os regimes e as soluções
constitucionais, se entendesse que o ‘princípio’ ainda ficaria com sentido
útil. Tal interpretação poderia conduzir à inutilização
de tal artigo, deixando os princípios reduzidos, na prática, a pouco mais que
nada”.
[135] CARVALHO, Salo de. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no
Brasil, p. 15.
[136] Paradigma, aliás, que representa
fielmente o pensamento enraizado no imaginário simbólico de grande parte da
sociedade. Talvez, aí, a razão da maior dificuldade na aceitação da mudança de
paradigma e o forte apoio social para um retornar paradigmático, em que se
inicia ou pretende consolidar uma tendência com a diminuição da idade de
imputabilidade penal fixada constitucionalmente em 18 anos.
[137] Há proposta de Emenda Constitucional,
de autoria do Deputado Alberto Fraga (PMDB/DF), em tramitação na Câmara dos
Deputados, para reduzir a idade de imputabilidade penal para onze anos de
idade! De acordo com o artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei
n.º 8069, de 13.07.1990, considera-se criança a pessoa até doze anos de idade
incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.
[138] O discurso de criminalização do agir
adolescente, antes como agora, sempre foi o de preservar a “sociedade e
famílias sadias” do convívio com a infância delinqüente - filha da pobreza – e
permitir a sua “regeneração” ou não-ingresso na criminalidade através da
segregação. Tal retórica, representativa do pensamento de uma elite
desinteressada em atacar as causas da existência de uma infância e juventude
desprovida de qualquer política pública séria de socialização, mascara uma
grande preocupação: proteger o patrimônio desses “elementos nocivos”.
[139] MÉNDEZ, Emilio García. Infância e cidadania na América Latina,
p. 45. O autor chama atenção, ainda, na mesma página, para a circunstância de
que a confusão no uso dos termos criança-jovem é quase sistemática, com a
característica de que, quando se fala em proteção, essa se refere, de regra, à
criança, e “a delinqüência é quase sempre juvenil”.
[140]
MÉNDEZ, Emilio García. Op. cit., p.
46.
[141] ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família, p. 10: A duração da
infância era reduzida ao seu período mais frágil, enquanto o filhote do homem
ainda não conseguia bastar-se; a criança então, mal adquiria algum desembaraço
físico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos.
De criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em homem jovem, sem
passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem praticadas antes da Idade
Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades evoluídas de hoje. A
transmissão dos valores e dos conhecimentos, e de modo mais geral, a
socialização da criança, não eram, portanto, nem asseguradas nem controladas
pela família. A criança se afastava logo de seus pais, e pode-se dizer que
durante séculos, a educação foi garantida pela aprendizagem graças à
convivência da criança ou do jovem com os adultos. A criança aprendia as coisas
que devia saber ajudando os adultos a fazê-las. A passagem da criança pela
família e pela sociedade era muito breve e muito insignificante para que
tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar a sensibilidade.
[142]
ARIÈS, Philippe. Op. cit., p. 11.
[143]
MÉNDEZ, Emilio García. Op. cit., p.
46.
[144] ARIÈS,
Philippe. Op. cit., p. 17: “O infanticídio era um crime
severamente punido. No entanto, era praticado em segredo, correntemente,
talvez, camuflado, sob a forma de um acidente: as crianças morriam asfixiadas
naturalmente na cama dos pais, onde dormiam. Não se fazia nada para
conservá-las ou para salvá-las. (...) a diminuição da mortalidade infantil
observada no século XVIII não pode ser explicada por razões médicas e
higiênicas: simplesmente, as pessoas pararam de deixar morrer ou de ajudar a
morrer as crianças que não queriam conservar. (...) O fato de ajudar a natureza
a fazer desaparecer criaturas tão pouco dotadas de um ser suficiente não era
confessado, mas tampouco era considerado com vergonha. Fazia parte das coisas
moralmente neutras, condenadas pela ética da Igreja e do Estado, mas praticadas
em segredo, numa semiconsciência, no limite da vontade, do esquecimento e da
falta de jeito”.
[145] E aqui se há de entender a palavra
marginalizada não como uma conotação ou característica de uma conduta pessoal
ou com um conteúdo moral. A marginalização em referência é a que diz respeito a
um processo de relação social, gerador e reprodutor de desigualdades.
[146] MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito penal da emoção: a inimputabilidade
do menor, p. 25.
[147] MONCORVO FILHO, Arthur. Histórico da proteção à infância no Brasil: 1500
– 1922, p. 32. Noticia o autor, ainda, que a determinação real foi
desconsiderada, pois a situação de descaso com os expostos permaneceu a mesma
na Capitania do Rio de Janeiro. Só em 1738, por iniciativa de um particular -
Romão de Mattos Duarte – é que se construiu a “Casa dos Expostos”, popularmente
denominada Roda. A esse tempo, a cidade do Rio de Janeiro já contava com cerca
de 200.000 habitantes. Idem, p. 33.
[148] Isto é, fixou-se a idade da
responsabilização penal em 14 anos.
[149] MOTTA, Candido N. Nogueira da. Os menores delinqüentes e o seu tratamento
no Estado de S. Paulo, p. 31-2: “É
preciso alêm de tudo, não esquecer que a conservação da ordem social é uma das
essenciaes missões do Estado. Essa missão elle realisa por meio da prevenção,
da coação e da repressão. E assim como é prudência, particular e publica, no
dizer de Puglia, prevenir lesões ao direito, assim o poder social tem o dever
de impedir, tanto quanto lhe fôr possivel, as lesões áquelles direitos que tem
obrigação de tutellar, independentemente da vontade do particular. Isto elle
faz, exercendo a funcção de prevenção, que suppõe o emprego de todos os meios
necessarios para impedir a violação das leis juridicas, que perturba
profundamente a ordem social. Ora, é innegavel que, protegendo a infancia
abandonada, guiando os seus passos, encaminhando-a para o trabalho honesto,
capaz de assegurar o seu futuro, o Estado, se por um lado preserva essa
infancia das más tendencias, por outro previne a sociedade contra os máus
elementos”.
[150] SANTOS, Marco Antonio Cabral dos;
PRIORE, Maria Del (org.). Criança e criminalidade no início do século. In: História das crianças no Brasil, p. 217.
[151] No Brasil atual, a fixação da idade da
responsabilidade penal aos 18 anos é decisão política, tomada livre e
soberanamente pelo Poder Constituinte. A opção foi claramente de natureza
política, fugindo-se da subjetividade que sempre acompanha a adoção do critério
do discernimento para a imputabilidade penal. E foi sábio o Constituinte, pois
a condição subjetiva – quer caiba a decisão ao juiz, exclusivamente, ou a este
com o auxílio de técnicos (psiquiatras, por exemplo) – nesta situação é
perigosa, pois sempre – ou quase sempre - vai depender da visão ideológica do
mundo do apreciador da condição de imputabilidade. E em sede de preservação do
direito de liberdade, há que se ter uma normatização clara, objetiva e de
aplicação geral. A afirmação mais ou menos corrente – pelo menos entre aqueles
que advogam o retorno do critério do discernimento para a verificação da
imputabilidade - de que exames psiquiátricos podem medir, com precisão, o grau
de responsabilidade do indivíduo sobre um fato delituoso praticado, é uma
falácia. Nenhum teste psicológico ou psiquiátrico para apuração de “grau de
discernimento de responsabilidade” é isento de subjetividade, pois inúmeras são
as variáveis para consideração, desde as que se referem ao examinando como em
relação aos critérios de apreciação do resultado adotados pelo examinador. Não
se trata de uma ciência exata, logo não se pode falar em resultado certo e
absoluto. Sem embargo de que retornar ao critério do discernimento representa
um retrocesso em termos de garantia de direito, que não se afina com o Estado
Democrático de Direito.
[152] “O maior de nove anos e menor de 14,
que procurou ocultar o crime e destruir-lhe os vestígios, prova que obrou com
discernimento e, portanto, é responsável” (Ac. do Trib. de Justiça de São
Paulo, de 12.05.1893. In: Gazeta Jurídica, v. 3, p. 301). Ainda: “obra sem
discernimento a criança de dez anos, que em um jardim público, e em companhia
de outros menores, atira uma pedra em um indivíduo, produzindo neste um
ferimento de natureza grave” (Ac. do Trib. de Justiça de São Paulo, de
13.07.1904. In: São Paulo Judiciário,
v. 5, p. 181). Apud SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Op. cit., p. 217.
[153] E realmente ocorreram progressos com o
advento do Código de Mello Matos. Exemplificativamente: aboliu formalmente a roda
dos expostos; trouxe a possibilidade de perda ou suspensão do pátrio poder pelo
cometimento de faltas pelos pais; os abandonados passam a ter a possibilidade
de serem dados em guarda; os menores de 14 anos não podem mais ser submetidos a
processo penal, terminando com a confusa questão do discernimento; há proibição
de trabalho do menor de 12 anos; é vedado o trabalho insalubre e noturno aos
menores de 18 anos.
[154] PEREIRA JÚNIOR, Almir; BEZERRA, Jaerson
Lucas; HERING, Rosana (org.). Um país que mascara o seu rosto. In: Os impasses da cidadania: infância e
adolescência no Brasil, p. 19. No mesmo sentido, PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da criança e do adolescente: uma
proposta interdisciplinar, p. 18: “O SAM
ficou marcado por seus métodos inadequados e pela repressão institucional à
criança e ao jovem”.
[155] PEREIRA JÚNIOR, Almir. Op. cit., p.
19.
[156] MÉNDEZ, Emilio García. Op. cit., p. 26.
[157] MACHADO, Antonio Luiz Ribeiro. Código de menores comentado, p. 10: “O
juiz de menores, portanto, não pode ser apenas um técnico aplicador da lei, mas
também um conselheiro compreensivo e profundamente humano. Dentro dessa linha
de orientação é que o Código não se prende a formalismos sacramentais e
regimentais, visando a propiciar ao juiz que o aplica grande maleabilidade e
iniciativa nos procedimentos para que possa assegurar, acima de tudo, os reais
interesses do menor”.
[158] Como já visto, não mais subsiste a
classificação de normas constitucionais meramente programáticas.
[159] MÉNDEZ, Emilio García. Op. cit., p. 91.
[160] Planilha montada com base em quadro
apresentado por SARAIVA, João Batista da Costa, em Curso de Atualização para
Magistrados; MÉNDEZ, Emilio García, BELOFF, Mary (compiladores). Infancia, ley y democracia en
América Latina. Análisis crítico del panorama legislativo en el
marco de la Convención Internacional sobre los derechos del niño (1990-1999),
t. I, II;SARAIVA, João Batista da Costa. Adolescente e
ato infracional: garantias processuais e medidas socioeducativas, p. 119-20; e Estudo comparativo da legislação que trata
do menor delinqüente, elaborado pela Consultoria Legislativa do Senado
Federal.
[161] Fala-se em modo especial, em vista do
que dispõe o artigo 227 da Constituição Federal, pois todos os direitos
fundamentais garantidos pelo texto constitucional são também garantidos aos
cidadãos menores de 18 anos. Na verdade, por se reconhecer que infância e
juventude implicam momentos especiais do desenvolvimento do ser humano,
estabeleceu-se uma prioridade absoluta no atendimento de suas necessidades
essenciais, sem qualquer possibilidade de exclusão de outros direitos
fundamentais.
[162] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma
exploração hermenêutica da construção do direito, p. 289.
[163] Importante esclarecer que as
referências que se fizer à dogmática jurídica dizem respeito à dogmática
positivista (ou neopositivista), que não vislumbra problemas ou possibilidade
de questionamento em relação ao sistema jurídico. Até porque se entende que uma
dogmática crítica, aprofundadora das possibilidades teóricas do Estado
Democrático de Direito, mostra-se útil para encaminhar construtivamente o
conhecimento jurídico, ao fornecer ferramental para as pré-compreensões dos que
operam com o Direito.
[164] A expressão “senso (ou sentido) comum
teórico dos juristas” foi criada por Luiz Alberto Warat, que usa em algumas
obras o termo senso e em outras sentido, sem mudança do conteúdo da expressão.
[165] STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do júri: símbolos e rituais, p.
46.
[166] WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito I, p. 13.
[167] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 46. No mesmo sentido WARAT,
Luiz Alberto. Introdução geral ao direito
II, p. 75-6: “Entendo por
racionalidade subjacente o modo de funcionamento social do discurso jurídico,
guiado por efeitos pré-compreensivos de sentido, que vão transformando o
sentido comum teórico em um princípio de controle da validade e da verdade do
discurso jurídico. O sentido comum teórico notifica, desta forma, ‘o lugar
secreto’ das verdades jurídicas”.
[168] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 47.
[169] Há que se esclarecer – e talvez já
devesse ter sido feito antes – que, ao se falar na introdução de um novo
paradigma, não se pretende com isso cristalizar uma idéia, tornando-a um dogma,
abandonando-se o ideal científico de questionar, de pensar o impensado, de
refletir sobre certezas para que possam ser aprimoradas ou modificadas.
Pretende-se que haja o reconhecimento da existência de um novo paradigma no momento
atual e que o mesmo se torne hegemônico por ter fundamento para tanto
(representa a concepção integradora da infância estabelecida pelo Estado
Democrático de Direito). Se a evolução da compreensão principiológica do Estado
Democrático de Direito levar a novos caminhos, a outro paradigma ou ao
aprimoramento do que se apresenta, deverá ser acolhido.
[170] E tanto é assim, que os motins e
rebeliões em estabelecimentos de internação de adolescentes infratores revelam
que, na realidade, pouca ou quase nenhuma modificação aconteceu nas condições
de cumprimento das medidas de privação de liberdade. A superlotação,
maus-tratos, humilhações, enfim, desrespeito à dignidade dos adolescentes
internados continua a acontecer, como se nada tivesse mudado. Ou melhor, e
alguma coisa mudou?
[171] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma
exploração hermenêutica da construção do Direito, p. 282.
[172] Impõe-se reconhecer que parte do Poder Judiciário
tem parcela de responsabilidade em relação a isso. Talvez por dificuldade em
ver a nova ordem como algo que deveria ser encarado “com novos olhos” - ou por
comodidade ou por convicção ideológica - continuou a aplicar o direito da forma
que fazia antes, centrado na legislação infraconstitucional. Não houve um
esforço geral para que o novo texto constitucional viesse a permear/impregnar
toda a aplicação do direito no momento da prestação jurisdicional. E a
efetividade de uma Constituição é um processo aberto, de participação, de
garimpagem de sua adequação social, com base nos princípios que norteiam o
Estado Democrático de Direito. Não havendo a abertura necessária para a
compreensão da nova ordem instituída, corre-se o risco da morte inercial do texto
constitucional, decorrente do descrédito da sociedade em sua aplicabilidade,
abrindo-se uma porta larga para uma interpretação puramente de manutenção de um status quo preexistente. O próprio legislador constituinte, de
certa forma, contribuiu para que a CF/88, no Judiciário como um todo, não fosse
recepcionada como um novo paradigma de aplicação do direito. Isso porque, ao
manter o Supremo Tribunal Federal – a Corte Constitucional – com a mesma
composição que tinha na época da promulgação da Constituição, acabou por
determinar que a nova ordem jurídica fosse interpretada por juízes que não
tinham um compromisso com as novidades introduzidas no ordenamento
constitucional. E a falta de um compromisso maior do STF com a efetivação da
nova ordem constitucional, sem a menor dúvida, em decorrência da organização
judiciária hierarquizada – cortes superiores e inferiores – em muito colaborou
para que a Constituição não ganhasse a efetividade que deveria ter e era
desejada pela sociedade. No mesmo sentido, BARROSO. Luís Roberto. O poder
judiciário, os direitos fundamentais e a concretização da justiça: balanço e
perspectivas. In: Anais do seminário
democracia e justiça: o poder judiciário na construção do estado de direito, p. 326-27: O constituinte de 1988 tomou,
sem maior debate, a decisão grave de manter o Supremo Tribunal Federal com a
composição que tinha, na época da promulgação da Carta de 1988. Não é
desimportante este fato, porque a Constituição de 1988, a nova ordem
constitucional brasileira, que sucedeu à da ditadura militar – um modelo
fracassado - teve como principais intérpretes um conjunto de juízes que, por
maior que fosse a sua probidade pessoal e o seu conhecimento técnico, tinham o
seu título de investidura ligado ao regime anterior, ligados ao regime militar.
E ainda que isto não importe em depreciá-los, por natural, significa que a
Constituição de 1988 foi interpretada por homens que não tinham compromisso com
a nova ordem, mas sim por homens que tinham compromisso com a velha
ordem. E disto resultou que o Supremo Tribunal Federal, em matéria de
interpretação da Constituição: 1) reeditou, burocraticamente, grande parte da
jurisprudência que produzira anteriormente; 2) alimentou espantosa má vontade
contra inúmeras inovações introduzidas pelo Texto Constitucional de 1988.
[173] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 273.
[174] GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiése do Direito na sociedade
pós-moderna: introdução a uma teoria social sistêmica, p. 36: “(...) o
centro de decisões politicamente relevantes, no Estado Democrático
contemporâneo, sofre um sensível deslocamento do Legislativo e Executivo em
direção ao Judiciário. O processo judicial que se instaura mediante a
propositura de determinadas ações, especialmente aquelas de natureza coletiva e/ou
de dimensão constitucional – ação popular, ação civil pública, mandado de
injunção, etc. – torna-se um instrumento privilegiado de participação política
e exercício permanente da cidadania”.
[175] Claro que não se está vendo o agir do
Judiciário como a solução para todos os problemas do país. Sustenta-se que uma
atuação mais corajosa e efetiva do Judiciário em muito contribuiria para a
implementação do Estado Democrático de Direito. A respeito, didática e
esclarecedora a manifestação de STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 44-5: “O Estado Democrático de Direito depende(ria)
muito mais de uma ação concreta do Judiciário do que de procedimentos
legislativos e administrativos. Claro que tal assertiva pode e deve ser
relativizada, mormente porque não se pode esperar que o Judiciário seja a
solução (mágica) dos problemas sociais. O que ocorre é que, se no processo
constituinte optou-se por um Estado intervencionista, visando a uma sociedade
mais justa, com erradicação da pobreza etc., dever-se-ia esperar que o Poder Executivo e o Legislativo cumprissem
tais programas especificados na Constituição. Acontece que a Constituição
não está sendo cumprida. As normas-programa da Lei Maior não estão sendo
implementadas. Por isso, na falta de políticas públicas cumpridoras dos ditames
do Estado Democrático de Direito, surge o
Judiciário como instrumento para o resgate dos direitos não realizados. Por
isso a inexorabilidade desse ‘sensível
deslocamento’ antes especificado”.
[176] As crianças e adolescentes, na doutrina
da proteção integral, são sujeitos de direitos. Se estiverem sendo
negligenciados pelo Estado ou abandonados pelos pais, jamais estarão numa
situação irregular, de ilegalidade. Na irregularidade, na ilegalidade estarão o
Estado, a família e a sociedade que não cumprem a sua obrigação constitucional.
E aos mais refratários em ver isso, recorda-se a regra processual – artigo 335,
do CPC – que determina a observação do que ordinariamente acontece.
[177] FARIA, José Eduardo. Justiça e conflito: os juízes em face dos
novos movimentos sociais. p. 42.
[178] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 276.
[179] A “sensação de impunidade”, sentida
pela sociedade, decorre de uma má percepção da realidade, no que diz respeito
aos adolescentes em conflito com a lei. Mudou o sistema, como já explicitado.
Antes, o jovem infrator não tinha nenhum direito assegurado, era objeto de
medidas “protetivas”, que iriam tirá-lo da “situação irregular” em que se
encontrava. Agora, com a doutrina da proteção integral, inclusive na esfera
penal, aos adolescentes são assegurados todos os direitos inerentes à ampla
defesa, pois o que norteia o sistema é o garantismo, que vem transposto do
Direito Penal para a seara da infância e juventude. Não há impunidade do ponto
de vista legal, há asseguração de direitos processuais, pois só poderá ocorrer
a imposição de alguma medida sócio-educativa após a comprovação da
responsabilidade do infrator.
[180] Busca-se a preservação do aparelho
estatal para o atendimento dos mais favorecidos, afastando o Estado de suas
obrigações sociais para com os marginalizados. O cunho ideológico dessa postura
é evidente, pois representa um retorno ao Estado mínimo, que, na atualidade,
tem a forma do neoliberalismo.
[181] É de falar-se em reforço, pois, como já
assentado, todas as normas constitucionais devem ser concretizadas, obtendo-se
de sua aplicação a máxima efetividade possível.
[182] Conforme SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 77.
[183] PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral. Op. cit., p. 145.
[184] A circunstância de negar-se uma
fundamentação puramente metafísica e transcendente dos direitos fundamentais,
optando-se pelo reconhecimento de sua historicidade, não tem o condão de
afastar sua condição de patrimônio comum da humanidade. Ao contrário, pois o
reconhecimento de direitos comuns na história de várias e distintas sociedades
é que vai gerando uma identidade que acaba universalizando-se. E isso também
vale para o aperfeiçoamento de direitos já reconhecidos e para o surgimento de
novos direitos, pois são aprimorados ou criados/construídos em uma sociedade e
daí irradiam-se para as outras, até que, pela universalização, também se
integram (os aperfeiçoamentos e/ou novos direitos) ao patrimônio comum de toda
a humanidade.
[185] Como exemplo clássico, pode-se citar o
direito de propriedade, que, de um direito absoluto e pleno, hoje tem o seu
exercício condicionado à função social. Em área mais diretamente relacionada ao
trabalho, tem-se a modificação do pátrio poder: de uma concepção que o entendia
como poder absoluto do pai, evoluiu até o que hoje se tem chamado de “pátrio
dever”, que deve ser exercido em conformidade com o previsto no artigo 227, caput, da Carta Magna. A norma
constitucional estabelece responsabilidades para a família, Estado e sociedade,
ampliando o conceito de responsabilidade paterna, podendo qualquer um dos
co-responsáveis pelo desenvolvimento sadio da infância e adolescência exigir
dos demais o cumprimento de suas obrigações. Logo, pode ocorrer a primazia do
Estado ou da sociedade em relação ao pátrio poder que não for exercido na forma
do Texto Maior.
[186] “Art. 5º (...) § 2º - Os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime
e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”.
[187] Muito embora não se possa esquecer do
momento histórico que vivia o país quando da criação da vigente Carta Política,
que acabou tendo reflexos na formulação do texto constitucional. Saía-se de um período
de exceção, em que as liberdades estavam sufocadas e dominava a sociedade um
desejo de que isso nunca mais voltasse a acontecer. Além disso, foi um processo
que teve ampla participação, em que os atores sociais procuraram assegurar a
preservação de seus interesses ou direitos na Constituição, de modo a
resguardá-los de ataques mais diretos de seus antagonistas. Isso porque, tendo
havido uma transição constitucional pacífica, não ocorreu uma hegemonia de
grupos ou interesses a direcionar o trabalho constituinte.
[188] “Art. 5º - inc. XLIII – a lei
considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática
de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e
os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os
executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
[189] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Direitos fundamentais, IV, p. 10.
[190] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos
fundamentais, p. 101.
[191] Idem, p. 101.
[192] SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 102. Anota,
ainda, o doutrinador: “que o princípio da dignidade da pessoa humana, em
relação aos direitos fundamentais, pode assumir, mas apenas em certo sentido, a
feição de lex generalis, já que,
sendo suficiente o recurso a determinado direito fundamental (por sua vez já
impregnado de dignidade), inexiste, em princípio, razão para invocar-se
autonomamente a dignidade da pessoa humana, que, no entanto, não pode ser
considerada como sendo de aplicação meramente subsidiária, até mesmo pelo fato
de que uma agressão a determinado direito fundamental simultaneamente poderá
constituir ofensa ao seu conteúdo em dignidade”. Op. cit., p.
103.
[193]
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Los derechos
fundamentales, p. 25: “En el horizonte del constitucionalismo actual los
derechos fundamentales desempeñan, por tanto, una doble función: en el plano subjetivo siguen actuando como garantías
de la libertad individual, si bien a este papel clásico se aúna ahora la
defensa de los aspectos sociales y colectivos de la subjetividad, mientras que
en el objetivo han asumido una
dimensión institucional a partir de la cual su contenido debe funcionalizarse
para la consecución de los fines y valores constitucionalmente proclamados”.
[194] As noções que se traz sobre as
classificações dos direitos fundamentais foram desenvolvidas com base nas
lições de SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Os Direitos fundamentais sociais na
Constituição de 1988. In: O direito público em tempos de crise, p.
140-9.
[195] HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha,
p. 235: “Em uma ordem liberal constitucional são necessários tais direitos de
defesa, porque também a democracia é domínio de pessoas sobre pessoas, que está
sujeito às tentações do abuso de poder, e porque poderes estatais, também no
estado de direito, podem fazer injustiça. Asseguramento eficaz da liberdade e
igualdade do particular torna, por conseguinte, mais além da configuração das
ordens objetivas da democracia e do estado de direito, necessária à garantia de
direitos subjetivos à liberdade e igualdade”.
[196] CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Op. cit., p. 383.
[197] Para um exame da eficácia privada dos
direitos fundamentais: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Direitos fundamentais e
direito privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares
aos direitos fundamentais. In: A
Constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado.
[198]
SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Os Direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988. In: O direito público em tempos de crise, p.
143.
[199]
ALEXY, Robert. Op. cit., p. 427.
[200] Idem. p., 435-6.
[201] MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade,
p. 44.
[202] A EC, no que interessa para o exame,
foi assim redigida: “(...) Art. 2º - A União poderá instituir, nos termos de
lei complementar, com vigência até 31 de dezembro de 1994, imposto sobre
movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza
financeira. (...) § 2º Ao imposto que trata este artigo não se aplica o art.
150, III, b, e VI, nem o disposto no
§ 5º do art. 153 da Constituição”.
[203] Importante consignar que a posição
adotada pelo Tribunal Maior espancou qualquer dúvida sobre a possibilidade de
argüir a inconstitucionalidade de emenda que viole princípio ou garantia
constitucional. Eis que tal questão era matéria controversa, pois parte da
doutrina não admitia inconstitucionalidade de norma também formalmente
constitucional, como a produzida por emenda à Constituição. O Acórdão, quanto a
isso, está assim ementado: “Uma Emenda
Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação
à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo
Tribunal Federal, cuja função precípua é de guarda da Constituição (art. 102,
I, ‘a’, da C.F.)”.
[204] O chamado princípio da anterioridade, a
rigor, é uma regra, pois visa a assegurar o princípio da segurança jurídica.
[205] O único questionamento pretérito foi em
relação à reforma constitucional de 1926, que ocorreu na vigência de estado de
sítio. Todavia, a Constituição então vigente (1891) não continha qualquer
limite circunstancial ao poder de reforma.
[206] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADIn
n.º 939-7. CNTC, Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Ministro Sydney Sanches. 15 de dez. de 1993. Avulso, p. 81-2.
[207] BRASIL. Ac. cit. p. 101-3. Interessante
consignar que o Min. Marco Aurélio foi o único a acolher integralmente a ADIn,
para reconhecer a inconstitucionalidade de toda EC 3/93 e da LC 77/93.
[208] BRASIL. AC. cit., p. 117-18.
[209] BRASIL. AC. cit., p. 124-5 e 136-8
[210] O argumento básico dos votos vencidos
foi no sentido de que as limitações ao poder de reforma, cuja finalidade é dar
estabilidade à Constituição, não podem servir para engessar qualquer
possibilidade reformatória, sob pena de – ao invés da estabilidade pretendida –
caminhar-se para um processo de ruptura da Constituição, pela ocorrência de
descompasso com as necessidades históricas da comunidade. O Ministro Sepúlveda
Pertence, seguindo esta mesma linha, introduziu a idéia de que, para a
verificação de uma inclinação de mudança que tenda a abolir direitos e garantias
individuais, é necessário um exame de cunho axiológico - no contexto da Lei
Maior - dos direitos e garantias nela existentes. E, a partir dessa valoração,
constatar a magnitude do direito ou garantia, para ver se é pertinente o
reconhecimento de sua perenidade. No caso – segundo seu entendimento - não
presente a condição de imutável, pois visaria, tão-somente, ao resguardo de um
princípio de ordem administrativa e financeira.
[211] E sendo a lei manejada com um cunho
emancipatório, haverá a valorização da dignidade humana e o Estado cumprirá a
sua missão de promoção social.
[212] Essa é a lógica que se extrai do
julgamento da ADIn nº 939, se houve o reconhecimento de que a existência de
exceções ao princípio da anterioridade - fixadas pelo Constituinte - não
autorizava a criação de novas restrições através de emenda. Logo, com muito
mais razão, em situação em que nada foi ressalvado pelo Constituinte, não se
poderá admitir modificação de uma posição jurídica vinculada ao núcleo
essencial do direito de liberdade dos cidadãos menores de dezoito anos.
[213] CORRÊA, Márcia Milhomens Sirotheau. Caráter fundamental da inimputabilidade na
Constituição, p. 245: “(...) tomando como ponto de partida a realidade do
sistema carcerário brasileiro, defendemos a posição de que hoje o núcleo essencial do direito à inimputabilidade penal
estende-se até o limite de dezoito anos de idade. Nada obsta, porém, que, uma
vez modificada a realidade que serve de horizonte para nossa conclusão, esse
limite possa ser reduzido”.
[214] Ainda que se sustente que a questão da
idade da imputabilidade só possa ser estabelecida após uma ponderação entre os
interesses envolvidos, no caso brasileiro a mudança se apresenta inviável. Na
espécie, basicamente, a ponderação teria de ocorrer entre o interesse à
segurança da sociedade e o interesse – até de natureza individual, pela
garantia do direito de liberdade – dos menores de 18 anos. Tal ponderação, entretanto, só seria possível depois que
houvesse a plena implementação dos direitos fundamentais da adolescência,
assegurados pelo art. 227 da Constituição. Não se pode pretender mudar – ou
ponderar – em relação a posições jurídicas fundamentais que não tenham sido
implementadas/efetivadas. Podem mudar as condições do sistema penitenciário, mas,
se não houver asseguração dos direitos fundamentais dos menores de 18 anos, não
há como se fazer qualquer ponderação. Aceitar-se a ponderação seria, na
prática, a mais absoluta negação da teoria da proteção integral acolhida pela
Lei Maior, pois se estaria tratando os menores de 18 anos como se estivessem
numa situação irregular – delinqüindo – enquanto a irregularidade é do Estado
que não promove(u), como lhe incumbe(ia), a dignidade humana da infância e
adolescência. E num país onde cinqüenta milhões de pessoas vivem abaixo da
linha de pobreza, muito se terá de fazer até que se possa pensar em ponderar em
relação aos direitos fundamentais dos menores de 18 anos. Só é possível
ponderação entre posições jurídicas fundamentais que se encontrem em situação
de equilíbrio.
[215]
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op.
cit., p. 327.
[216] MIRANDA, Jorge. Jurisprudência constitucional escolhida. v. I, p. 921.
[217]
Idem, p. 922.
[218]
ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos fundamentais e suas
características, p. 156.
[219] Impõe-se um esclarecimento sobre o que
se deve entender por tratado, a fim de que não ocorra uma discussão semântica
de pouca relevância. Tratado é todo acordo formal concluído entre sujeitos de
direito internacional público, destinado a produzir efeitos jurídicos e que dá
cobertura legal ao seu próprio conteúdo, por força do efeito de compromisso e
cogência que tem por finalidade produzir. O uso na Constituição dos termos
tratados e convenções pode passar aos menos avisados a idéia que se trata de
coisas diversas. Todavia, no uso atual, tanto uma como outra expressão tem o
mesmo significado. São, também, “variantes terminológicas de tratado, concebíveis em português: acordo, ajuste, arranjo, ata, ato, carta,
código, compromisso, constituição, contrato, convenção, convênio, declaração,
estatuto, memorando, pacto, protocolo e regulamento”.
Conforme REZEK, José Francisco. Direito
internacional público: curso elementar, p. 14-7.
[220] E isso tem recebido severas críticas
dos juristas dedicados ao Direito Internacional. V.g., MELLO, Celso Albuquerque de. TORRES. Ricardo Lobo (org.). O §
2º do art. 5º da Constituição Federal. In: Teoria
dos direitos fundamentais, p. 18: “O que se pode dizer é que os
constitucionalistas brasileiros de um modo geral ignoram o Direito
Internacional Público e não sabem aplicá-los (sic). Não há por parte deles
nenhuma menção a questão das relações entre o DI e D. Interno. Ou, ainda, não
se referem ao ‘status’ das normas dos tratados dos Direitos Humanos perante o
D. Interno. Eles se esqueceram até de verificarem os Anais da Constituinte onde
veriam que havia alguma novidade, vez que, como já afirmamos, é uma proposição
do internacionalista Cançado Trindade”.
[221] MELLO, Celso Albuquerque de. Op. cit., p. 20.
[222] Importante esclarecer que a Convenção
Internacional sobre os Direitos da Criança não faz qualquer distinção entre
criança e adolescente, pois em seu artigo primeiro consigna: “... entende-se
por criança todo ser humano menor de 18 anos, salvo se, em conformidade com a
lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”.
[223] Muito embora a possibilidade de reserva
em tratado de proteção de direitos humanos seja uma questão discutível. É,
realmente, matéria complexa e que ainda não tem regulamentação internacional
própria, aplicando-se o que estabelecem as Convenções de Viena sobre Direitos
dos Tratados (1969 e 1986). Ocorre que nas duas Convenções sobre Tratados a
possibilidade de reserva parte da premissa de um certo equilíbrio entre os
Estados acordantes. O regramento é tipicamente voluntarista e contratualista.
Quando se trata de direitos humanos, a relação não se dá entre Estados, mas
entre estes e os seres humanos que vivem sob sua jurisdição. Logo, as
premissas, necessariamente, devem ser diferentes. Conforme TRINDADE, Antônio
Augusto Cançado. Tratado de direito
internacional dos direitos humanos. v. II, p. 157.
[224] “Artigo 41 – Nada do estipulado na
presente Convenção afetará as disposições que sejam mais convenientes para a
realização dos direitos da criança e que podem constar: a) das leis de um
Estado-parte; b) das normas de Direito Internacional vigente para esse Estado”.
[225] SARAIVA, João Batista da Costa. Op. cit., p. 24.
[226] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. p. 81:
“Considerando o processo de elaboração dos tratados e reiterando a concepção de
que apresentam força jurídica obrigatória e vinculante, resta concluir que a
violação de um tratado implica em violação de obrigações assumidas no âmbito
internacional. O descumprimento de tais deveres implica, portanto, em
responsabilização internacional do Estado violador”. Sobre o modo de
responsabilizar o Estado que não cumpra Tratado de Proteção de Direitos
Humanos, ver: TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. v. I, p.
439.
[227] Para uma visão da hipótese em que
ocorrer denúncia de tratado versando sobre direitos humanos do qual o Brasil
seja parte, e proposta de mudança de interpretação do modo pela qual se opera a
denúncia, ver: PIOVESAN, Flávia. Op. cit. p.
99-100.
[228] “Artigo 7º - Direito à liberdade
pessoal (...) 7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita
os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de
inadimplemento de obrigação alimentar.”