DIREITO DO MENOR X DIREITO DA CRIANÇA
Roberto da Silva
Membro da Subcomissão de
Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente da Comissão de
Direitos Humanos da OAB-SP.
Dedicando-me a
estudar o contexto sócio-político e cultural em que se constituiu a tradição de
concubinato, de geração de filhos tidos como ilegítimos, de constituição da
família brasileira, e como conseqüência de tudo isto, do abandono de crianças,
na presente conferência abordarei a evolução da construção jurídica através da
qual o Estado brasileiro pretendeu normatizar a política de assistência à
criança carente, órfã e abandonada.
Os cursos jurídicos ensinam que as fontes do direito são a
natureza, a tradição, os hábitos, os costumes sociais e culturalmente
consagrados. Tendo em mente também que as leis são formuladas, na sua origem,
para assegurar os direitos de um protótipo de homem, que no caso brasileiro
apresentava-se, no início do século, como homem, branco, letrado e
cristão. Sendo assim, a mulher e a
criança tornaram-se tributários destes direitos apenas a partir da relação de
parentesco e de consangüinidade com o varão.
Com estas premissas, teremos oportunidade de ver
que se os conceitos ontológicos fundamentam o capítulo referente à família no
Código Civil Brasileiro, dando origem a um ramo das ciências jurídicas, que é o
Direito de Família, os hábitos e os costumes social e culturalmente aceitos no
Brasil fundamentaram uma legislação paralela, o Direito do Menor, destinada a
legislar sobre aqueles que não se enquadravam dentro do protótipo familiar
concebido pelas elites intelectuais e jurídicas.
Iniciarei esta apresentação comentando os Códigos de Menores de
1927 e o de 1979, ressaltando o tratamento diferenciado reservado à família desestruturada
e precária, incidindo de modo particular sobre os direitos de pátrio poder, de
tutela, de legitimação dos filhos ilegítimos e os instrumentos pelos quais
legitimou-se a figura do juiz como o fiel a normatizar e intermediar as
relações destes pais e de seus filhos com o Estado.
Em seguida abordarei o Estatuto da Criança e do
Adolescente, tido como uma das mais avançadas legislações de proteção à
criança, e darei ênfase à fundamentação que ele recebeu das convenções e dos
tratados internacionais, já na perspectiva de proteção dos direitos humanos,
constituindo-se em um instrumento pelo qual pode se dar a
transição, gradativamente, da tutela da criança e da família em situação de
risco pessoal e social, da figura do juiz para o educador social.
Apresentarei também um breve panorama do estágio atual de
implantação do ECA no país, relatando as principais
conquistas e as principais dificuldades na sua efetivação.
A Construção do
Direito do Menor
Desde 1916 o Brasil possui, ainda em pleno vigor, um
Código Civil, que basicamente regula os direitos individuais, o direito de
propriedade e o Direito de Família.
Na parte referente ao Direito de Família estão
especificadas as obrigações dos pais em relação aos seus filhos, desde o
nascimento até a idade de 21 anos. Dentre tais obrigações estão o direito de
filiação, a sucessão no nome e na herança, a alimentação, a educação e a saúde,
entrando o Estado apenas a título complementar, se faltar a
proteção familiar.
O Código de Menores de 1927, que consolidou toda a
legislação sobre crianças até então emanada por Portugal, pelo Império e pela
República, consagrou um sistema dual no atendimento à criança, atuando
especificamente sobre os chamados efeitos da ausência, que atribui ao Estado a
tutela sobre o órfão, o abandonado e os pais presumidos como ausentes, tornando
disponível os seus direitos de pátrio poder. Os
chamados direitos civis, entendidos como os direitos pertinentes à criança
inserida em uma família padrão, em moldes socialmente aceitáveis, continuou
merecendo a proteção do Código Civil Brasileiro, sem alterações substanciais.
No que se refere à família, a mais significativa das poucas
alterações ocorridas de 1916 para cá foram a normatização do desquite e da
separação judicial, com a aprovação da Lei do Divórcio (n° 6.515/77), aprovada
em 1977, da lavra do Senador Nelson Carneiro e a que regulamentou a
investigação de paternidade (n° 8.560/1992), com o claro propósito de assegurar
os mesmos direitos de filhos legítimos aos filhos concebidos fora do casamento,
ambas significando a consagração em lei de uma prática social e culturalmente
aceita e amplamente difundida.
O descumprimento de quaisquer das obrigações
estipuladas aos pais pelo Código Civil, bem como a "conduta
anti-social" por parte da criança passou a justificar a transferência da
sua tutela dos pais para o Juiz, e conseqüentemente, do Código Civil para o
Código de Menores.
O Código de Menores de 1927 destinava-se a
especificamente a legislar sobre as crianças de 0 a 18 anos, em estado de
abandono, quando não possuíssem moradia certa, tivessem os pais falecidos,
fossem ignorados ou desaparecidos, tivessem sido declarados incapazes,
estivessem presos há mais de dois anos, fossem qualificados como vagabundos,
mendigos, de maus costumes, exercessem trabalhos proibidos, fossem prostitutos
ou economicamente incapazes de suprir as necessidades de sua prole.
O Código denominou estas crianças de
"expostos" (as menores de 7 anos), "abandonados" (as
menores de 18 anos), "vadios" (os atuais meninos de rua),
"mendigos" (os que pedem esmolas ou vendem coisas nas ruas) e
"libertinos" (que freqüentam prostíbulos).
O mesmo Código estabeleceu que os processos de
internação destas crianças e o processo de destituição do pátrio poder seriam gratuitos e deveriam correr em segredo de
justiça, sem possibilidades de veiculação pública de seus dados, de suas fotos
ou de acesso aos seus processos por parte de terceiros.
O Código de Menores também instituiu o
intervencionismo oficial no âmbito da família, dando poderes aos Juizes e aos
Comissários de Menores, pelo Artigo 131, para vistoriarem suas casas e
quaisquer instituições que se ocupassem das crianças já caracterizadas como
"menores".
Como resultado das negociações para erradicar o Sistema
da Roda e a Casa dos Expostos garantiu-se também o segredo de justiça,
reservando-se às entidades de acolhimento de menores e aos cartórios de
registro de pessoas naturais o sigilo em relação aos genitores que quisessem
abandonar os seus filhos, garantindo-se em particular o sigilo da mãe quanto ao
seu estado civil e as condições em que foi gerada a criança.
Pelo seu Artigo 55, o Código de 27 conferiu também ao
Juiz plenos poderes para devolver a criança aos pais, coloca-la sob guarda de
outra família, determinar-lhe a internação até os 18 anos de idade e determinar
qualquer outra medida que achasse conveniente.
Apenas no Artigo 68 o Código ocupou-se do já então
denominado "menor delinqüente", já fazendo a diferenciação entre os
menores de 14 anos e os de 14 completos a 18 anos
incompletos, sempre deixando clara a competência do Juiz para determinar todos
os procedimentos em relação a eles e aos seus pais. Estabeleceu-se também a
obrigatoriedade da separação dos "menores delinqüentes" dos condenados
adultos, mas em 1940 foi promulgado o Código Penal Brasileiro (Decreto-lei n°
2.848/40), consagrando a inimputabilidade criminal do menor de 18 anos de
idade, depois regulamentada pelo Decreto-lei n°3.914/41 e até hoje em vigor.
Aos delinqüentes maiores de 16 anos instituiu-se a
possibilidade da "liberdade vigiada", pela qual a família, ou os
tutores, deveria responsabilizar-se pelo processo de regeneração do menor, com
as obrigações de reparação dos danos causados e de apresentação mensal do menor
em juízo.
O Código de Menores estendeu a autoridade do Juiz
sobre os jovens de 18 a 21 anos de idade, concedendo-lhes atenuantes frente ao
Código Penal, mas determinando o recolhimento em Colônias Correcionais dos
vadios e dos jogadores de capoeira pelo prazo de um até cinco anos.
O Código de 27 estabeleceu como impedimento para o
recebimento ou manutenção destas crianças em casa o fato de qualquer pessoa da
família ter sido condenada pelos Artigos 285 a 293, 298, 300 a 302 do Código
Penal, por ser perigosa ou anti-higiênica, se o número de habitantes fosse
excessivo, e se, por negligência, ignorância, embriaguez, imoralidade ou maus
costumes, fosse incapaz de se encarregar da criança.
O Artigo 48 estabeleceu que passados trinta dias após
a notificação do recolhimento da criança, sem que o pai, a mãe ou tutores se
manifestasse, qualquer pessoa idônea poderia requerer diante do juiz os
direitos de pátrio poder sobre a criança.
No caso de crianças que tivessem sido encaminhadas à famílias substitutas, foi concedida a possibilidade da
legitimação adotiva por cônjuges casados ha mais de cinco anos, por casais que
não pudessem ter filhos ou por viúvos e viúvas, ocasião em que a criança
passaria a ter todos os direitos de filho legítimo e passaria então a reger-se
a sua tutela pelo Código Civil e não mais pelo Código de Menores, isto é, a
inclusão em uma família legalmente constituída e julgada moralmente capaz tinha
o poder de fazer cessar sobre ela a jurisdição do juiz.
O Código Penal, que data de 1940 e também está ainda
em vigor, estabeleceu penas de detenção de seis meses a três anos ao genitor
que abandonasse crianças, aumentou-a para pena de reclusão de um a cinco anos,
se do abandono resultassem lesões corporais de natureza grave, e se o abandono
causasse a morte da criança, a pena era de quatro a doze anos, agravada se o
abandono ocorresse em lugar ermo onde não fosse possível o socorro à criança.
A situação acima retratada caracterizou o que se
convencionou chamar "Doutrina do Direito do Menor", ao mesmo tempo
uma derivação do Direito de Família e uma nova especialização dentro das
ciências jurídicas, que até 1990 chamou-se Direito do Menor e constituiu-se em cadeiras específicas nos
cursos de direito como orientou a organização da magistratura brasileira, com a
criação do Juízo Privativo de Menores (Lei n° 2.059/25), do Conselho de
Assistência e Proteção do Menor (Decreto 3.228/25), do Serviço Social de
Menores (1938) do Serviço de Colocação Familiar (Lei n° 560/49), da figura do
Juiz de Menores, do Comissariado de Menores, do Serviço de Assistência ao
Menor, sendo que os procedimentos de internação foram disciplinados por
provimentos dos Conselhos Superiores da Magistratura em cada Estado brasileiro.
A Doutrina da Situação Irregular
A Doutrina da Situação Irregular, que substituiu a
Doutrina do Direito do Menor, ao ser aprovado o Código de Menores de 1979, é
uma construção doutrinária oriunda do Instituto Interamericano del Niño, órgão da
OEA, do qual o Brasil participa, juntamente com os Estados Unidos, Canadá e os
demais países das Américas. Sua formulação teórica é atribuída ao jurista
argentino Ubaldino Calvento e teve como maior propagador no Brasil o Juiz de
Menores do Rio de Janeiro, Alyrio Cavallieri.
A Associação
Brasileira de Juizes de Menores incorporou tal conceito a partir do seu XIV
Congresso, realizado no Chile em 1973, sob a justificativa de que se adequava à tradição legislativa brasileira,
de só tomar conhecimento da problemática da criança a partir do momento em que
se configurasse estar ela em "situação irregular" junto à família. De
fato, as alterações promovidas no Código de 27 ao longo dos anos,
particularmente pelas leis n° 4.655/65, 5.258/67 e 4.439/68, foram todas no sentido de especificar a natureza do tratamento necessário
ao "menor infrator", distinguindo-o do órfão e do abandonado,
ainda que todos fossem caracterizados como em "situação irregular".
Alyrio Cavallieri foi quem propôs e fez aprovar no
Código de Menores de 79 a substituição das diferentes terminologias pelas quais
se designava a criança, exposto, abandonado, delinqüente, transviado, infrator,
vadio, libertino, etc., reunindo-os todos sob a mesma condição de
"situação irregular".
Sob esta categoria o Código de Menores de 1979 passou
a designar as crianças privadas das condições essenciais de sobrevivência,
mesmo que eventuais, as vítimas de maus tratos e castigos imoderados, as que se
encontrassem em perigo moral, entendida como as que viviam em ambientes
contrários aos bons costumes e as vítimas de exploração por parte de terceiros,
as privadas de representação legal pela ausência dos pais, mesmo que eventual,
as que apresentassem desvios de conduta e as autoras de atos infracionais.
A transição entre os Códigos de 27 e de 79 ocorreu
efetivamente com a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, em
dezembro de 1964, que modelou a criação das Fundações Estaduais do Bem-Estar do
Menor, ainda hoje existente em alguns estados brasileiros.
A criação da Funabem implicou na formulação de
uma Política Nacional do Bem-Estar do Menor, a que teve de
subordinar-se todas as entidades públicas e particulares que prestavam
atendimento à criança e ao adolescente.
Concebida para ter autonomia financeira e
administrativa, a Funabem incorporou toda a estrutura do Serviço de Assistência
ao Menor existente nos estados, incluindo o atendimento tanto aos carentes e
abandonados quanto aos infratores.
É preciso entender que a Funabem e as Febens estaduais
foram concebidas no bojo de uma ampla reforma, entendida como conquista da
Revolução de 64, que incluiu a outorga de uma nova Constituição em setembro do
mesmo ano, a decretação de vários atos institucionais, como o AI-5, e por
orientação do governo e das agências americanas, a reforma do sistema
educacional brasileiro a partir dos acordos MEC/USAID, e posteriormente, a
reforma do ensino universitário em 1968, com o objetivo deliberado de
constituir barreiras ideológicas, culturais e institucionais à expansão da
ideologia marxista, que então estava em voga em todo o continente
sul-americano.
A questão do menor passou a ser tratada no âmbito da
doutrina de Segurança Nacional, cuja matriz brasileira foi a Escola Superior de
Guerra e teve como matriz americana o National College War e a sua National
Security Act, de 1947.
A criação de uma fundação nacional foi um projeto cultivado desde
a realização da 1a Semana de Estudos dos Problemas de Menores, que se sucederam
depois pelos anos de 49, 50, 51, 52, 53, 56, 57, 59, 70, 71 e 73 sob o
patrocínio do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o que ocorreu também
no Rio de Janeiro a partir de 1955.
Submetida à Câmara dos Deputados em 1961, a proposta
foi rejeitada. Em 1964, um filho do então Ministro da Justiça Milton Campos,
foi barbaramente assassinado por adolescentes moradores nos morros do Rio de
Janeiro e o próprio Ministro, juntamente com outros juristas do Rio de Janeiro,
convenceram o presidente General Humberto Castelo Branco a criar, por decreto,
a almejada fundação nacional.
Esboçada dentro do espírito da Doutrina da Segurança
Nacional, a formulação teórica da Escola Superior de Guerra, que se constituiu
no norteador das ações dos governos militares, a Funabem propunha-se a resolver
um problema nacional, pois nas palavras de seu primeiro presidente, o médico
Mário Altefender,... "cada vez mais se acentuava a necessidade da
elaboração de uma nova política, cuja execução fosse entregue a um órgão
federal, fazendo desaparecer a idéia de que cada um pode resolver seus
problemas locais, estanques, quase pessoais, sem pensar na Nação, como que
ignorando a existência de 22 Estados e territórios e que tudo se chama Brasil"
(In: Anais da X Semana de Estudos do Problema do Menor, São Paulo, 1971:476).
A tônica do seu discurso insistia em que... "o
problema do menor, diretamente ligado ao problema da família, tendo como
agravantes fatores que todos nós conhecemos [...] como a explosão demográfica,
o problema da saúde, a deficiente alimentação, a migração, o subemprego, a
falta de religião, o desrespeito à autoridade, a ignorância da pátria, o
problema do menor não pode ser solucionado com a idéia ingênua de construir
abrigos. Infelizmente ainda se percebe no Brasil a influência dessa detestável política.
Questões como mendicância, abandono de menores, delinqüência, ainda são tomados
como existentes porque os Juizes de Menores e a polícia são ineficientes".(idem)
Com esta percepção quanto à problemática, o menor
passou a figurar em lugar de destaque na Doutrina da Segurança Nacional,
passando a ser efetivamente tratado como um problema de ordem estratégica,
saindo da esfera de competência do Poder Judiciário e passando diretamente à
esfera de competência do Poder Executivo.
A concepção arquitetônica e pedagógica das unidades da Funabem e
das Febens inspirou-se, como parecia óbvio naquele momento, no modelo americano
desenvolvido, dentre outros, por Donald W. Winnicott, para atendimento de
crianças evacuadas ou tornadas órfãs em virtude da Segunda Guerra Mundial.
Segundo este psiquiatra e psicanalista americano
"essas crianças [nossos menores] em tempos de paz, podem ser
classificadas em duas amplas categorias: crianças cujos lares não existem ou
cujos pais não conseguem estabelecer uma base para o desenvolvimento delas, e
crianças que têm um lar, mas nele, um pai ou uma mãe mentalmente doente.
Crianças como essas apresentam-se em nossas clínicas
em tempos de paz, e verificamos que necessitam justamente do que precisavam as
crianças que, durante a guerra, eram difíceis de alojar. Seu ambiente familiar
as frustrara. Digamos que o que essas crianças precisam é de estabilidade
ambiental, cuidados individuais e continuidade desses cuidados. Estamos
pressupondo um padrão comum de cuidados físicos"
Orientado por esse pensamento, instituiu-se o sistema
de internação de carentes e abandonados até os 18 anos e no tratamento dos
infratores substituiu-se a "política dos portões abertos" pela
"política dos muros retentores", sob a justificativa, apresentada pelo
Grupo de Trabalho do Tribunal de Justiça de são Paulo, que propôs a criação das
unidades de infratores, de que era necessária tranqüilidade para o trabalho
dos técnicos e dos especialistas das várias modalidades profissionais. Para
possibilitar isso, o mesmo GT recomendou que para essas unidades “...fossem contratados inspetores de alunos, monitores ou
atendentes jovens e vigorosos (com um mínimo de escolaridade), a presença de
guarda permanente (reedição do sistema penitenciário), correlacionamento policial
perfeito (o mesmo tratamento para menores e adultos), que houvesse compreensão
política (para justificar a necessidade de isolamento das instituições totais)
e, sobretudo, confiança social (para que não houvesse ingerência no que
acontecia dentro dos muros das instituições).
Ao mesmo tempo em que o sistema educacional brasileiro
foi afetado pela Doutrina da Segurança Nacional, com a introdução de elementos
curriculares que reforçassem os sentimentos de patriotismo e de nacionalismo, a
educação das crianças e adolescentes sob a tutela da Funabem/Febem passou a ser
feita segundo os preceitos do militarismo, com ênfase na segurança, na
disciplina e na obediência.
É importante ressaltar que os princípios da Declaração
de Genebra sobre os Direitos da Criança, de 1924, não teve nenhuma repercussão
na redação final do Código de Menores de 1927. Da mesma forma os legisladores
brasileiros não foram sensíveis aos princípios já consagrados na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948, na Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem, de 1948 e no Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, que
obrigou os países signatários a adotarem em seu direito interno os princípios
da Convenção, figurando ali a proteção à família e os direitos da criança, assim
como a Declaração sobre os Direitos da Criança, adotada pela ONU em 20 de
novembro de 1959, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais acima citados,
ambos de 1966, não tiveram nenhuma influência significativa na redação final do
Código de Menores de 1979, ainda que o Brasil fosse sensível à agenda de
discussões da Organização dos Estados Americanos, como ficou patente na adoção
da doutrina da Proteção Integral.
É que entre as décadas de 20 e 70 formava-se no
Brasil, sobretudo dentro do Poder Judiciário, uma "escola menorista",
que dialogava com os países sul-americanos e mostrava-se sensível apenas às
discussões travadas no âmbito da Organização dos Estados Americanos.
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos,
não obstante ter sido aprovado pela ONU em 16 de dezembro de 1966, só foi
ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, quando o Estatuto da Criança e
do Adolescente, já aprovado, passou a incorporar as regras previstas nos
artigos 2°, 14, 17, 23 e 24 do Pacto, que condenavam o tratamento diferenciado
para crianças em razão da forma como fora concebido, de sua origem social ou de
sua condição econômica, preceitos estes presentes no sistema dual enunciado
pela subordinação de crianças ora ao Código Civil ora ao Código de Menores,
segundo a sua composição familiar e origem social.
As mesmas objeções existiam em
relação ao artigo 10° do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, de 1966, também só ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de
1992.
A Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada em
20 de novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990,
portando depois da aprovação do ECA, é o mais completo
tratado internacional sobre os direitos da criança, colocando-a, ao longo de
seus 54 artigos, em posição de absoluta prioridade na formulação de políticas
sociais e na destinação de recursos públicos.
A Doutrina da Proteção Integral
A Doutrina da Proteção Integral do Menor foi
enunciada inicialmente na Declaração dos Direitos da Criança, em 1959, mas o 8° Congresso da Associação Internacional de Juizes de
Menores (Genebra, 1959) posicionou-se no sentido de que não era função do Poder
Judiciário assegurar à criança direitos tão amplos como o direito ao nome, à
nacionalidade, à saúde, à educação, ao lazer e ao tratamento médico dos
deficientes.
A posição majoritária, defendida por
Alyrio Cavallieri, e que redundou na adoção da Doutrina da Situação Irregular,
era no sentido de a Justiça de Menores limitar-se à aplicação do Direito do
Menor, relegando os Direitos da Criança para a competência do Poder Executivo.
Nas décadas de 60 e 70
Juizados de Menores como o de São Paulo atuaram
hegemonicamente na área da criança, legislando, normatizando e criando as
estruturas de atendimento. No Rio de Janeiro o Juizado não assumia as funções
executivas e em todos os estados brasileiros havia esta indefinição quanto ao
que era da competência do Direito da Criança e do Direito do Menor,
misturando-se nos juizados as funções executivas e judiciárias.
A criação da Funabem e das Febens estaduais
deslindou apenas uma das questões: o Juizado de Menores passou a ocupar-se exclusivamente
do Direito do Menor, com ênfase nos infratores, e as fundações assumiram os
encargos de formulação e execução das políticas de atendimento. Antes desta
definição a política de atendimento ao menor era, de acordo com o Estado,
centralizada ora na Secretaria da Justiça, na Secretaria da Segurança Pública
ou na Secretaria da Promoção Social, até que, no início da década de 80, com a
grande vitória eleitoral do PMDB, fomentou-se a criação de uma Secretaria do
Menor ou algo equivalente nos Estados.
Continuavam indefinidas ainda as competências quanto aos Direitos
da Criança e aos Direitos do Menor, sem o quê não seria possível a adoção da Doutrina da Proteção Integral.
Foi a conjuntura interna do país na segunda metade da
década de 80, mais do que todas as Declarações e Convenções internacionais, que
sinalizou com as condições propícias à adoção da Doutrina da Proteção Integral.
O grande movimento pela democratização do país
colocou na ordem do dia a pauta dos direitos humanos, que basicamente
significava um veemente repúdio a tudo o que advinha do Regime Militar.
O reordenamento jurídico do país deu-se pelo
Movimento Nacional Constituinte e pela promulgação de uma Constituição Federal
em 1988. A marca do reordenamento jurídico foi a "remoção do entulho
autoritário" e a preocupação que norteou os constituintes e as pressões
dos movimentos populares e da sociedade organizada foi no sentido de assegurar
a inclusão, aprovação e manutenção de diversos dispositivos que colocassem o
cidadão a salvo das arbitrariedades do Estado e dos Governos.
O Artigo 226 incorporou todos os preceitos das Cartas
Internacionais de 45, 48, 51, 59, 66, 68, 69 e 79, no que se refere a proteção à mulher e à família, mas foi no Artigo 227, ao
exigir uma lei específica que o regulamentasse, que possibilitou, através do
Estatuto da Criança e do Adolescente, finalmente aprovado em 13 de julho de
1990, que o constituinte incorporou como obrigação da família, da sociedade e
do Estado, assegurar, com absoluta prioridade, os direitos da criança e do
adolescente.
Criança, até 12 anos, e adolescente, até 18, são
então definidos como "pessoas em fase de desenvolvimento",
eliminou-se a rotulação de "menor", "infrator",
"carente", "abandonado", etc., classificando-os todos como
crianças e adolescentes em situação de risco.
A legislação específica (o ECA), depois
normatizou a atuação do Poder Judiciário na defesa destes direitos, atribuiu ao
Ministério Público e aos Conselhos Tutelares a promoção e a fiscalização dos mesmos
direitos e aos Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais a atribuição de
formularem as políticas nacionais, estaduais e municipais para a criança e o
adolescente. Mesmo no ECA, a Justiça da
Infância e da Juventude e o juiz continuaram com a possibilidade de intervenção
junto à família e à criança nos casos típicos de Direito Processual Civil e
Direito Processual Penal, como a guarda, tutela, adoção, investigação de
paternidade e maus-tratos.
O juiz passou a ser obrigatoriamente assessorado
por uma equipe interprofissional, que no Código de 79 ficava ao seu arbítrio
consultar ou não. A equipe técnica (normalmente composta por um psicólogo e um
assistente social, no mínimo), tem o mesmo status científico, pois tanto o juiz
quanto o psicólogo e o assistente social são bacharéis, mas o
ECA ainda fez uma concessão ao Poder Judiciário, atribuindo maior
autoridade ao juiz, quando eu entendo que ali está configurado um conselho de
sentença que impediria definitivamente que as decisões relativas à criança fossem
tomadas por uma única pessoa.
Farei a seguir uma breve exposição do estágio atual da
implantação do ECA, dos Conselhos Tutelares e
Municipais no Brasil, situando as suas conquistas e dificuldades.
É preciso entender que o ECA, como
a constituição e os demais dispositivos de garantia das liberdades individuais
dela derivados possui um certo ranço revanchista em relação à cultura
autoritária que o Brasil viveu sob o regime militar.
O ECA inaugurou uma
nova ordem jurídica e institucional para o trato das questões da criança e do
adolescente, estabelecendo limites à ação do Estado, do Juiz, da Polícia, das
Empresas, dos adultos e mesmo dos pais, mas não foi capaz ainda de alterar
significativamente a realidade da criança e do adolescente. A mudança de
nomenclatura, substituindo os rótulos pejorativos de "menor",
"infrator", "abandonado" e etc., estabeleceu a cultura do
"politicamente correto", mas quem estava nas ruas ou nas instituições
antes do ECA, hoje, se adulto, está no Sistema
Penitenciário ou continua sendo portador das marcas e dos estigmas incorporados
durante a infância.
Parcela significativa da sociedade brasileira
cultiva o sentimento de que o ECA, ao estabelecer
limites ao exercício da autoridade familiar, jurídica, institucional e policial
sobre a criança e o adolescente, reforçou
também a impunidade aos delitos cometidos por eles.
Neste sentido, as distorções mais visíveis na
interpretação e aplicação do ECA é o uso que adultos,
quadrilhas criminosas e o tráfico organizado passaram a fazer da criança e do
adolescente, iniciando-os precocemente nas lides delinqüenciais. Crianças e
adolescentes são recrutados por adultos e por quadrilhas para fazerem os seus
trabalhos sujos, tipo ser o portador da droga e das armas ou exercer a
vigilância armada nos locais de tráfico. O resultado desta distorção foi o
recrudescimento do extermínio de crianças e de adolescentes por parte da
polícia e dos grupos de justiceiros, geralmente composto por policiais pagos
por comerciantes das periferias das grandes cidades e os clamores da sociedade
no sentido de redução da maioridade penal para os 16 anos.
O Código Civil Brasileiro define a maioridade civil
aos 18 anos e a maioridade jurídica aos 21. A maioridade eleitoral é
estabelecida, opcionalmente, aos 16 anos, a maioridade trabalhista aos 14 anos
e o Código Penal Brasileiro estipula a maioridade penal também aos 18
anos. Crianças menores de 12 anos
autoras de ato infracional, de qualquer tipo, o ECA
manda o Conselho Tutelar aplicar medidas de proteção e medidas sócio-educativas
e aos maiores de 14 até 18 anos, o juiz pode aplicar medidas de internação pelo
período máximo de três anos, liberdade assistida e semiliberdade. Os mesmos
crimes, se praticados por adolescentes ou por adultos, podem receber penas de 3
ou 30 anos, e é neste sentido que se dá a distorção quanto à utilização de
adolescentes por parte de adultos, de quadrilhas e de gangues.
Este é, em síntese, o quadro atual do pensamento
jurídico-assintencial brasileiro no que se refere à criança e aos adolescentes
órfãos, abandonados ou que cometem atos infracionais.
REFERÊNCIA:
AVALIERI,
Alyrio. Direito do Menor. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1978.
SÃO
PAULO. Governo do Estado de São Paulo. Direitos da Criança e do Adolescente.
São Paulo: IMESP, 1994.
MARTINS,
Roberto R. Segurança Nacional. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
OLIVEIRA,
Juarez. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1988.
PROCURADORIA
GERAL DO ESTADO. Instrumentos Internacionais de Proteção dos Direitos
Humanos. São Paulo: PGE, 1996.
BRASIL.
Congresso.Senado Federal. Código de Menores. 2ª ed. Brasília: Senado,
1984.
SILVA,
Roberto da. Os Filhos do Governo: A Formação da Identidade Criminosa em Crianças
Órfãs e Abandonadas. São Paulo: Ática,
1997.
TEIXEIRA,
Antonio L. Meireles. Código Civil.
3ª ed. São Paulo: Rideel, 1995.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Anais da X Semana
de Estudos sobre Problemas de Menores. São Paulo: TJ, 1971.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Anais da XI Semana
de Estudos sobre Problemas de Menores São Paulo: TJ, 1972.
WINNICOTT, Donald W. Privação e Delinqüência.São Paulo:
Martins Fontes, 1987.
Fonte
Retirado do
Site: www.neofito.com.br