SAÚDE MENTAL E JUSTIÇA:
O ATENDIMENTO A FAMÍLIAS INCESTUOSAS
Gisele Joana Gobbetti
Psicóloga, SP.
Claudio Cohen
Médico, SP
“... O
elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são
criaturas gentis que desejam ser amados e que, no
máximo, podem defender-se quando atacados; pelo contrário, são criaturas entre
cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de
agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um
ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a
satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho
sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de
suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. Homo
homini lupus.” FREUD,
O mal estar na civilização
Neste artigo,
cuja citação acima faz parte, Freud procura mostrar o quanto o indivíduo sofre
frustrações na renúncia de seus desejos a favor da inserção do ser humano na
cultura, que se inicia na família. A vida em sociedade, necessária ao
desenvolvimento do ser humano, traz limitações ao indivíduo e impõe certas
regras para a sua continuidade. A Psicanálise compreende o mundo mental
composto por dois lados: construtivo e destrutivo, sendo que o indivíduo
precisa ser refreado na sua agressividade e impulsividade, pois satisfazer
todos os seus desejos poderia significar o desrespeito a
individualidade do outro, além de impedir a sua própria estruturação mental.
Para lidar com este contexto é que surge
a lei; para impor limites externos aos indivíduos que não internalizaram as
normas da cultura. Enquanto a lei coloca obstáculos concretos frente às
conseqüências do desrespeito ao ser humano, a saúde mental busca compreender as
causas desta falta de limites internos e pode auxiliar na construção destes,
buscando criar um espaço interno para o reconhecimento da organização mental de
cada um.
Dentre vários tipos de violação, está a violência sexual, que tem como características a violência
emocional e social, que perpassam tais atos humanos. Vamos, portanto, tentar
conceituar o abuso sexual.
Inicialmente, deparamo-nos com a
dificuldade em se conceituar o que é sexualidade. A sexualidade humana
constitui-se durante a vida do ser humano e não se encontra restrita apenas a
práticas ligadas aos órgãos sexuais, sendo sua identificação muito complexa.
A busca do prazer sexual pode ser
observada em vários tipos de relações e pode não envolver diretamente nem o
contato físico. Para exemplificar, podemos pensar no exibicionismo, no qual o
indivíduo obtém prazer ao exibir o seu corpo. Podemos ir mais além e pensarmos
na sublimação, na qual o indivíduo lida com a sua sexualidade através, por
exemplo, de manifestações artísticas.
A conceituação de abuso não torna a tarefa
mais fácil. De acordo com seu significado: mau uso, uso errado, excessivo ou injusto (Dicionário Aurélio, 1988), quando
podemos considerar que a sexualidade é utilizada de uma forma “errada” ou
“injusta” ? Quando uma relação sexual passa a ser abusiva e, portanto, mereça a
atenção dos Códigos?
A relação sexual abusiva não pode ser
determinada através do uso da violência física, pois, por exemplo, uma relação
sadomasoquista pode provocar prazer, além de ser consensual. Também estaríamos
admitindo que uma relação sexual que não deixasse marcas físicas não poderia
ser considerada abusiva.
Será que a falta do consentimento para a
relação é o que qualifica uma relação sexual abusiva? Quando podemos ter
clareza de que o consentimento foi dado de forma consciente, ou seja, quando
acreditamos que uma pessoa tem capacidade para discriminar e decidir sobre uma
relação sexual? Uma relação sexual com uma criança, mesmo “consentida”, é mais
facilmente considerada abusiva, mas será que a possibilidade de escolha ou a
validade do consentimento está vinculada a idade
cronológica, que é o parâmetro legal?
Enfim, qual o limite entre uma relação
sexual “normal” e uma relação sexual que viole a liberdade de um indivíduo?
Acreditamos que uma relação sexual
abusiva seja aquela na qual não exista um “relacionamento” no sentido
simbólico, ou seja, uma relação sem a aceitação do outro enquanto sujeito. A
diferenciação que pretendemos fazer aqui entre relação e relacionamento é
equivalente às diferenciações entre sexo e sexualidade e entre instinto e
pulsão.
Buscando discutir esta questão, propomos
analisar o abuso sexual intrafamiliar no âmbito da saúde mental, já que este
foge do alcance de questões puramente legais, que tratam as defesas dos
direitos e a responsabilização, através da punição e reparação, utilizando-se
de categorizações objetivas.
Divergente da crença popular do “cuidado com estranhos” a maioria dos casos de abuso sexual
relatados ocorre entre pessoas conhecidas, sendo mais comum dentro da própria
família. Acredita-se que seja grande a cifra de casos não denunciados, já que
as peculiaridades deste tipo de relação promovem o segredo familiar. Isto quer
dizer que os olhares são desviados para contatos externos ao grupo familiar,
muitas vezes havendo uma falta de cuidado com este último.
Em nosso meio, foi realizada uma pesquisa
no Instituto Médico Legal, onde as vítimas de violência sexual foram
questionadas a respeito de sua relação com o agressor. Da amostra, 49,64%
relataram conhecer o agressor e 22,55% foram vítimas de agressão sexual por
parte de algum parente, sendo que 18,75% delas convivem com o agressor na mesma
casa.(Cohen,C.; Matsuda,N., 1990)
Aqui deparamo-nos exatamente com a lei
mais primitiva do ser humano, que é a proibição do incesto.
Segundo Levi-Strauss, a proibição do
incesto é uma norma estruturante da cultura, estando presente em todos os
grupos humanos, variando apenas o conceito de família e a intensidade da
proibição. Ou seja, todas as culturas fazem algum tipo de restrição quanto à
escolha de parceiros nos relacionamentos sexuais.
Decorre que, por detrás de tamanha
proibição, só possa existir um desejo universal equivalente. Para que, então, o
incesto é proibido?
Várias teorias têm sido utilizadas para
explicar a finalidade desta proibição. Estas podem ser divididas em biológicas,
sociais e psicológicas.
As teorias biológicas concebem um “horror
ao incesto inato” que seria a proteção natural contra os malefícios resultantes
do cruzamento endogâmico. Sabe-se que o cruzamento endogâmico realmente causa
uma diminuição da variabilidade dos gens e, portanto, oferece uma maior chance
de expressão da recessividade. Mas esta pode ser manifestada tanto em doenças
hereditárias quanto em traços benéficos. Além disto, semelhanças genéticas
podem estender-se para além da família, como em um grupo étnico ou de certa
localização geográfica. Por exemplo, há alta incidência de doença de Tay-Sachs
entre judeus Ashkenazicos sem que haja efetivamente cruzamentos dentro de uma
mesma família. (Renshaw, 1984)
Esta explicação também não contempla a
proibição entre parentes por afinidade, como por exemplo, um relacionamento
sexual entre padrasto e enteada. Nota-se que este tipo de proibição é reforçada
em nosso próprio Código Civil em seu art. 1521, já que não permite o casamento
entre:
“I
- Os ascendentes com descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II
- Os afins em linha reta;
III
- O adotante com o cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
IV
- Os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até terceiro grau
inclusive;
V - O
adotado com o filho do adotante.
VI
- as pessoas casadas;
VII
- o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de
homicídio contra o seu consorte”.
Ora, se a possibilidade de ocorrência de
relações incestuosas fosse biologicamente negada, estas não precisariam ser
proibidas por leis sociais, mostrando que a questão não passa pelos aspectos
biológicos e sim por aspectos culturais.
As ciências sociais priorizam a
importância da exogamia. Dentro da linha estruturalista, a proibição do incesto
promove o processo de “culturalização”, permitindo uma estruturação social.
Segundo as teorias psicológicas, a não
atuação do incesto permite a diferenciação de funções dentro da família,
possibilitando o desenvolvimento do indivíduo e da família. A proibição do
incesto seria um fator organizador, demarcando limites.
Segundo a teoria de Freud, os desejos
incestuosos são inerentes ao ser humano, mas a proibição da atuação destes
desejos é necessária para o desenvolvimento do indivíduo e da sociedade. A
proibição do incesto atua como um estruturador do aparelho mental em suas
instâncias: id, ego e superego. É através da repressão dos desejos incestuosos
que se estrutura o superego, instância formada pela internalização da lei,
sendo o ego responsável pela intermediação entre as leis internas e as leis
externas. A proibição do incesto é a lei primordial que permite a
individualização do ser humano e a sua inserção na cultura, delimitando
funções.
O desejo é ainda o que resta destas
explanações. O que acontece quando estes desejos não são reprimidos ou porque
algumas pessoas não conseguem reprimi-los são as principais questões que se
colocam na atuação incestuosa.
Desde 1993, o CEARAS – Centro de Estudos
e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual - vem trabalhando com o atendimento em
saúde mental a famílias em que houve a denúncia de um abuso sexual. O incesto
configura-se como uma particularidade nos casos de abuso sexual, pois o
relacionamento sexual entre membros de uma mesma família, com exceção dos
cônjuges, proporciona a quebra do pacto social do qual depende a estruturação
do indivíduo e da família.
Consideramos que o incesto manifesta-se através do relacionamento sexual entre
pessoas que são membros de uma mesma família (exceto os cônjuges), sendo que a
“família” não é definida apenas pela consangüinidade ou mesmo afinidade, mas,
principalmente, pela “função parental
social” exercida pelas pessoas dentro do
grupo (COHEN, C; GOBBETTI, G.J., 1998).
Considerando a concretização do incesto
como o desrespeito às leis sociais que instituem o funcionamento da família,
acreditamos que a possibilidade de compreensão e tratamento esteja
estreitamente ligada à inserção de uma lei proporcionada pela cultura. Assim,
os pacientes do CEARAS são encaminhados do Fórum, local onde existe um processo
aberto referente à relação incestuosa,
já que a Justiça atua como representante das leis sociais.
A aproximação a estes casos é tarefa árdua, pois mexe com as
motivações e percepções inconscientes de cada indivíduo. A dor emocional
causada pelo conflito entre os desejos do indivíduo e as proibições culturais
faz com que as pessoas tentem racionalizar a questão, depositando o problema no
outro. A forma mais utilizada pela família e pela sociedade (incluindo até os
profissionais de saúde) é estigmatizar um “agressor” e uma “vítima”,
responsabilizando o primeiro, pelo que aconteceu na família e assumindo uma
postura de pena em relação o segundo, por ter sofrido o abuso .
Na nossa experiência clínica, percebemos
que a problemática é muito mais ampla e complexa, havendo o envolvimento de
toda a família numa dinâmica que favorece a existência de uma relação sexual
incestuosa.
O CEARAS é um centro de estudos e
atendimento que lida com questões referentes ao abuso sexual intrafamiliar. Ele
faz parte do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica, Medicina Social e do
Trabalho da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Com os principais objetivos de
atendimento e estudo do tema, o CEARAS busca integrar as áreas de Justiça e de
Saúde Mental na atenção ao abuso sexual
intrafamiliar.
O CEARAS oferece atendimento em saúde
mental a famílias incestuosas encaminhadas pelo Fórum, onde houve uma denúncia
e abertura de um processo. As principais vias de encaminhamento são as Varas da
Infância e Juventude da cidade de São Paulo e, portanto, a maioria das
“vítimas” são crianças e adolescentes.
As famílias que chegam ao CEARAS nem
sempre vem buscando atendimento; são encaminhadas pelo setor técnico
(psicólogos e assistentes sociais judiciários) e, muitas vezes, desconhecem a
função de um atendimento terapêutico em saúde mental.
Inicialmente, as famílias passam por uma
triagem, realizada por duas psicólogas,
onde se tenta compreender a situação da família em relação à queixa que motivou a denúncia, para viabilizar o
atendimento. Neste momento é esclarecido à família o tipo de atendimento
realizado pelo CEARAS.
O CEARAS oferecia atendimento em dois
níveis a partir da triagem: individual; para quem cometeu abuso e para quem
sofreu abuso, e familiar; para todos os membros da família. Com a experiência
dos atendimentos, foi ficando cada vez mais claro que a questão do incesto
tinha que ser compreendida como parte de uma dinâmica familiar, não havendo
apenas um culpado e uma vítima e que o atendimento individual, proposto a
priori, para estes, era uma forma de estigmatização.
Notou-se, também, que a dupla
estigmatizada na denúncia como agressor e vítima não eram,
necessariamente, as pessoas com menor possibilidade de utilização de seus
recursos internos, sendo que a possibilidade de confusão ou mesmo
perturbação mental observadas independia destes rótulos. Como exemplo,
poderíamos citar que a mãe, em casos de relações incestuosas pai e filha, ou os
pais, em relações incestuosas entre irmãos, foram percebidos em várias famílias
como figuras centrais na manutenção da dinâmica incestuosa, sendo, às vezes,
necessário um atendimento individualizado para estes, mais do que para a dupla pai e filha, pois investir na estruturação emocional
destes outros membros do grupo familiar parecia, em alguns casos, mais
promissor no sentido de possibilitar mudanças na dinâmica familiar.
Assim, o CEARAS passou a priorizar o
atendimento familiar, dirigido a todos os membros da família que estão
envolvidos afetivamente, não obrigatoriamente a família biológica. A partir
deste, se for percebida a necessidade de atendimento individual para algum
membro da família, este é oferecido paralelamente ao atendimento familiar. A freqüência dos atendimentos é semanal em
todos os níveis, sendo que os mesmos têm uma duração mínima de um semestre e
máxima de um ano e meio. Cada atendimento individual é realizado por um membro
da equipe e o familiar, por um ou dois outros terapeutas, sendo que esta
definição leva em conta a complexidade da família em questão.
A equipe tem supervisões e reuniões, nas
quais são discutidos os atendimentos. Isto implica no fato de todos os membros
da equipe terem conhecimento do andamento de todos os casos. Este fato é
explicitado também às famílias no momento da triagem.
Considerando a atuação dos desejos
incestuosos como o desrespeito às leis sociais, que instituem o funcionamento
da família enquanto célula do tecido social, acreditamos que a possibilidade de
compreensão e tratamento esteja estreitamente ligada à aceitação de uma lei
proporcionada pela cultura. Assim, os pacientes do CEARAS são encaminhados do
Fórum, local onde existe um processo aberto referente à relação incestuosa, já que a Justiça atua
como representante das leis sociais.
O vínculo com o Fórum é baseado na
importância da lei social quando as leis familiares são transgredidas. A
denúncia como pré-requisito ao atendimento deve-se ao fato de que, por um lado,
representa, em algum nível, a possibilidade de busca
de limite externo e a quebra do segredo familiar; este tipo de mudança é uma
forma de viabilizar o processo terapêutico. Por outro lado, na ausência de uma
denúncia judicial, esta deveria ser feita pelos terapeutas que tomam contato
com este tipo de caso envolvendo crianças e adolescentes (como determina o
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLECENTE), comprometendo a formação dos vínculos de
confiança necessários ao atendimento.
A relação
prática do CEARAS com o Fórum, a partir do início dos atendimentos, resume-se
na confecção de relatórios sobre a disponibilidade e necessidade dos
atendimentos para o Juiz responsável pelo caso, se houver um pedido do último.
A implicação
do Sistema Judiciário, no contexto destes atendimentos, é levada em conta tanto
em relação à fantasia provocada nos pacientes do atendimento no CEARAS ser a
salvação contra a prisão dos “agressores”, como no
fato de ser um trabalho conjunto, sendo a atividade do Fórum um suporte
concreto de imposição de limites que a família não tem.
Através da realização de um quadro geral
de todos os atendimentos do CEARAS do período de junho de 1993 (início de seu
funcionamento) até dezembro de 1999, complementado pela experiência clínica dos
atendimentos (GOBBETTI, 2000), podemos citar aqui algumas características das
famílias incestuosas que nos possibilita analisar a dinâmica destas
famílias.
Dos casos atendidos pelo CEARAS, há uma
diversidade de relações de parentesco entre as pessoas envolvidas diretamente
nas relações sexuais incestuosas, mas notou-se que a maioria das relações
ocorreu entre parentes próximos e consangüíneos, ou seja, entre pais e filhos e
entre irmãos. Tais dados divergem da crença popular de que “famílias em risco”
são as famílias reconstituídas, ou seja, aquelas formadas por novas uniões,
onde a relação entre as pessoas não é confirmada pela consanguinidade.
Na maioria das vezes, a relação sexual
incestuosa ocorreu durante um período extenso; durante meses ou anos, sendo
exceção a ocorrência de apenas um episódio, o que
sugere ser o relacionamento sexual característica do funcionamento da família.
Assim, a duração da relação incestuosa assume uma importância qualitativa, pois
significa não apenas um abuso sexual intrafamiliar prolongado, mas,
principalmente, uma mudança no tipo de relações existentes dentro do grupo
familiar. Uma relação sexual incestuosa que dura mais de um ano, significa que
as pessoas diretamente envolvidas apresentam praticamente uma relação
“conjugal”, seja entre pai e filha ou entre irmãos, por exemplo, é a
demonstração concreta da troca de papéis dentro do grupo familiar.
As relações incestuosas, em sua maioria,
foram permeadas por atos libidinosos diversos da conjunção carnal, sendo que
grande parte destas foram efetivadas através de carícias ou toques. Assim, a
relação incestuosa não envolve, necessariamente, uma relação sexual completa e,
nem mesmo, violência física, o que significa que não deixa marcas concretas
visíveis, e quando denunciadas, dificilmente obterão provas objetivas da
ocorrência através de um exame de corpo de delito nos Institutos Médicos
Legais, o que, para a saúde mental, não diminui a gravidade de suas
conseqüências a seus participantes.
A relação sexual denunciada, geralmente,
não é a única que ocorre, sendo que outras situações abusivas sexualmente são
percebidas dentro da família no decorrer do processo terapêutico. Muitas vezes,
estas não são percebidas como relações abusivas pela família e, às vezes, nem
socialmente.
Nem todos os membros do grupo familiar
participam da relação sexual genital, sugerindo que há uma escolha para este
tipo de atuação e que, para que esta ocorra, devem existir outros tipos de
atuação pelos outros membros da família. Um
exemplo bastante freqüente destas atuações é a participação da mãe,
verificada objetivamente pela dificuldade que apresentam em denunciar o
companheiro, parecendo ser o indício de uma complexa relação, onde há a
impossibilidade de proteção ou cuidado materno aliado à relação incestuosa.
Nestes casos, percebe-se uma grande ambivalência de sentimentos destas crianças
e adolescentes em relação a seus pais (biológicos ou substitutos). Mas se
revelam, muito mais nítidos, sentimentos de raiva ou desprezo em relação às
mães do que aos pais ou padrastos. Na verdade, a criança ou adolescente parece
responsabilizar a mãe pela relação sexual, sentindo mais raiva pela não
interdição do que pelo ato em si.
Na prática clínica dos atendimentos,
podemos observar características como dificuldades de percepção de limites, a
perversão das funções familiares, e baixo nível de simbolização nos membros da
família.
Todas estas características citadas
parecem levar a um quadro que dificulta a percepção em torno da relação
incestuosa, sua conseqüente denúncia e a quebra da dinâmica familiar que
contribui para manter a situação abusiva.
Questões éticas no trabalho da saúde em
conjunto com a justiça
O trabalho do CEARAS está vinculado
estritamente ao trabalho do Fórum; esta vinculação traz questões éticas, que
necessitam ser trabalhadas em dois âmbitos: dentro do
CEARAS e entre as instituições envolvidas.
Interinstitucionalmente
podemos destacar dois
aspectos: a demanda para a terapia e o trabalho conjunto com a Justiça.
No primeiro aspecto, temos a principal
questão: qual é a demanda para a terapia de uma família na qual existem membros
do grupo ameaçados pela possibilidade de reclusão ou perda de guarda de filhos
encaminhada do Fórum para o CEARAS? Além disso, as famílias que chegam ao
Fórum, geralmente, pertencem a uma classe sócio-econômica baixa, havendo
concretamente carências primárias para a subsistência. Pode haver demanda para
um trabalho em saúde mental, quando existem pressões legais referentes a
punições e a questões anteriores de subsistência concreta?
Na prática, percebemos que são raros os
casos que já tem uma demanda própria para a terapia; na maioria deles, as
pessoas nem conhecem a função de um atendimento em saúde mental e, visto a
outras necessidades concretas presentes, nem reconhecem a sua necessidade,
chegando ao CEARAS porque o “Fórum mandou”.
O encaminhamento dos pacientes pelas
Varas de Infância e Juventude pode gerar a fantasia de que o CEARAS faz parte
do sistema judiciário e que, portanto, as verbalizações sobre a relação
incestuosa possam comprometê-los legalmente. Isto causa, muitas vezes, a
negação da relação abusiva tanto por parte das pessoas que são denunciadas,
quanto por parte das crianças e adolescentes envolvidos que temem as
conseqüências da punição dos pais ou responsáveis recebidas através do sistema
judiciário, o que torna ainda mais difícil o trabalho terapêutico.
A confusão, característica destas
famílias, também auxilia na dificuldade de
compreensão de que o Fórum e o CEARAS são dois serviços com funções
distintas. Observamos que a despersonalização dos profissionais dos serviços é
freqüente; os pacientes trocam ou não lembram nomes, nem sabem a quem recorrer
com questões práticas relativas a cada um dos serviços. Por exemplo, é comum
que os pacientes peçam no Fórum para alterar a freqüência ou os dias de
atendimento no CEARAS e solicitem aos terapeutas do CEARAS que decidam sobre
uma disputa de guarda.
Percebemos que a confusão faz parte
também dos profissionais, pois limitar as funções terapêuticas do CEARAS é um
trabalho constante da equipe e, só a partir deste, é possível trabalhar com os
profissionais do Fórum com esta diferenciação de funções dos profissionais de
mesma categoria. Ou seja, psicólogos e assistentes sociais tem funções
distintas nos dois serviços. A clientela é diferenciada; enquanto para o
CEARAS, a clientela são os pacientes, para o Fórum, a clientela é a Justiça,
representada pela figura do juiz.
A equipe técnica do Fórum também tem o
interesse de promover o bem estar da criança e do adolescente e,
conseqüentemente, da família, mas efetua isto através de procedimentos periciais,
que servirão de instrumento para o juiz, juntamente com o restante do processo,
decidir sobre as medidas judiciais que favorecerão esta clientela. A equipe do
CEARAS realiza o trabalho que pode fazer parte destas medidas: o encaminhamento
para tratamento da família.
Desta forma, entendendo que o tratamento
em saúde mental dependa da criação de um vínculo de confiança entre terapeuta e
paciente, todas as informações recebidas pelas pessoas em terapia não são, de
forma alguma, passadas para o Fórum, pois esta quebra de sigilo resultaria no
término do tratamento. Delimitar estas funções, pericial e de saúde, da qual
depende o trabalho dos dois serviços, é uma tarefa que vem sendo realizada pelo
CEARAS, através de visitas ao Fórum, com reuniões com a equipe técnica e com os
Juizes e Promotores, quando estes têm esta disponibilidade, e também da
realização de eventos, como Jornadas que propõem este tipo de
discussão destinadas ao público de ambas as áreas.
Só explicitando estas questões e
internalizando os limites destas funções é que podemos realizar o trabalho
terapêutico, que, inicialmente, baseia-se na sensibilização da família para o
atendimento em saúde mental. Acreditamos que isto possa ser feito e que seja
necessário, pois a saúde mental também é
uma questão de subsistência, já que está implicada nas possibilidades da vida
prática.
As
questões intrainstitucionais baseiam-se no nosso modelo de atendimento: o
atendimento a famílias e os atendimentos individuais, realizados por uma equipe
de terapeutas que tem supervisão em conjunto.
Um dos principais aspectos deste trabalho
é a forma de lidar com informações recebidas dentro do serviço, mas não dentro
do respectivo atendimento, no qual tais informações poderiam ser trabalhadas.
Por exemplo, as terapeutas da família têm uma informação de um membro do grupo,
através da supervisão de seu atendimento individual, desconhecida do restante
da família. O conhecimento de tal informação, se não for bem trabalhado, pode
formar "conluios" dentro da terapia familiar; o terapeuta pode acabar
participando de segredos não compartilhados por todos os membros do grupo.
Além disto, uma outra dificuldade é
delimitar qual o grupo familiar que vai ser atendido, já que a nossa definição
de família não é formada por um critério objetivo. E depois da equipe compor o
grupo familiar que seria beneficiado pela terapia, como agir quando há recusa
de algum membro do grupo em participar? Ou ainda, quando a sessão pode ser
realizada quando faltam um ou mais membros do grupo familiar?
O que temos claro é que não existem
critérios objetivos gerais e que estas questões devem ser trabalhadas em cada
atendimento em particular, de modo que não se perca o foco de um atendimento em
saúde mental, já que este é um dos grandes riscos deste tipo de trabalho.
A sexualidade humana, um aspecto primordial das interações
humanas, como os outros, necessita ser regulamentada pela Justiça, para que se
preserve o respeito ao indivíduo. Observando o fenômeno de forma objetiva, a
Justiça lida com estas restrições à sexualidade, inicialmente, através da
criação de normas, que nem sempre permitem a resolução de situações
conflitantes. Para complementar esta observação, é necessária também a
intervenção da Saúde Mental, que busca avaliar os aspectos subjetivos destas
interações, tão presentes e determinantes nas relações humanas.
O abuso sexual intrafamiliar, a forma mais comum dos casos
de abuso sexual relatados, constitui-se num problema de grande importância,
tanto no âmbito social quanto no individual. A forma utilizada para lidar com
estes casos, como, por exemplo, a que tipo de serviço recorrer, quem deve ser
tratado e quem deve ser punido, ainda é, insuficientemente, conhecida até por
profissionais das áreas afins.
Não consideramos
possível atribuir a atuação do incesto ao funcionamento mental de um ou dois
indivíduos, pois como em qualquer outra situação na qual seres humanos estejam
envolvidos, é resultado de interações de todo o grupo. Encarar alguns
indivíduos como agressores e outros como vítimas, na intenção de exclusão dos
primeiros, nada mais é do que o reflexo de uma sociedade paternalista que faz
esta cisão entre “bom” e “mau”, projetando os aspectos “maus” nos rotulados
“agressores”, afastando, assim, a angústia gerada pelos próprios desejos
oriundos das fantasias edípicas.
A relação
sexual incestuosa pode ser encarada como prazerosa e, portanto, necessita de
uma proibição social para que os desejos incestuosos sejam reprimidos e possam,
posteriormente, ser elaborados, evitando-se a atuação. O prazer envolvido na
relação sexual incestuosa parece estar ligado mais à pulsão de destruição que
impede a possibilidade de organização social, pois a atuação incestuosa implica
numa compulsão à repetição, estando estas relações a serviço de preservar a
desestruturação familiar.
A repressão
dos desejos incestuosos é necessária à estruturação mental do indivíduo. O
limite a este tipo de relação inicialmente é social e deve ser tratado por duas
instâncias: a da justiça e a da saúde mental. Ou seja, não basta uma proibição
legitimada por um código, mas também necessita de um tratamento, onde os
objetivos principais devam ser a reconstituição da capacidade de simbolização
dos envolvidos.
A
concretização das fantasias sexuais incestuosas é apenas o sintoma, ou a
manifestação social da família incestuosa. A principal violência das relações
incestuosas é a não diferenciação das funções familiares. Assim, a família
“permite” a atuação das fantasias incestuosas, e, os profissionais de saúde mental
precisam estar atentos para não participar desta dinâmica, que é um “convite às
atuações”.
BERENSTEIN, I. Família e doença mental. São Paulo,
Escuta, 1988.
BOLLAS, C. Forças do destino. Rio de Janeiro,
Imago, 1992.
BRASIL. Código Civil. 26. ed. São
Paulo, Saraiva, 1976.
BRASIL. Código Penal. 27. ed. São Paulo, Saraiva, 1989.
COHEN, C.
O incesto e a psicopatologia forense: um
estudo de medicina social. São Paulo, 1992. Tese (Doutorado) - Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo.
COHEN, C. O incesto um desejo. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1993.
COHEN, C.;
FERRAZ, F.C.; SEGRE, M. Saúde mental,
crime e justiça. São Paulo, EDUSP,
1996.
COHEN, C.;
GOBBETTI, G. J. “Abuso sexual intrafamiliar.” Revista Brasileira de Ciências Criminais. v. 6, n. 24, p. 235-43,
1998.
COHEN, C.;
GOBBETTI, G. J. “A prática pericial nos
crimes sexuais: uma proposta de análise psicobiológica”. Trabalho
apresentado no 15 World Congress of Sexology – World Association for Sexology –
24 a 28 de junho de 2001 – Palais des Congrès - Paris
COHEN, C.;
MATSUDA, N. E. “Crimes Sexuais e sexologia forense: um estudo analítico.” Revista Paulista de Medicina, v.109,
p.157-64, 1991.
FERREIRA, A.
B. H. Novo dicionário Aurélio 2. ed.
São Paulo, Nova Fronteira, 1986.
FORWARD, S.;
BUCK, C. A traição da inocência: o
incesto e a sua devastação. Rio de Janeiro, Rocco, 1989.
FREUD,
S. Obras
psicológicas completas. Rio de Janeiro, Imago, 1980. v. 7.
FREUD, S. (1930) O mal estar
na civilização. In: FREUD, S. Obras psicológicas
completas. Rio de Janeiro, Imago, 1980, v. 21.
GOBBETTI, G.J. Incesto
e saúde mental: uma compreensão psicanalítica sobre a dinâmica das famílias
incestuosas. São Paulo,
2000. Dissertação (Mestrado) - Faculdade
de Medicina da USP.
GOBBETTI,
G.J.; COHEN, C. “Caracterização do abuso
sexual intrafamiliar através de dados elaborados no CEARAS” in LEVISKY,
D.L.(org.) Adolescência e violência: ações comunitárias na prevenção
“conhecendo, articulando, integrando e multiplicando” São Paulo, Casa do
Psicólogo, 2001.
KLEIN, M
(1930) A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego In: KLEIN, M. Contribuições à psicanálise
São Paulo, Mestre Jou, 1981, p. 295-313.
LAPLANCHE,
J.; PONTALIS, J.B. Vocabulário da
Psicanálise. São Paulo, Martins Fontes, 1988.
LÉVI-STRAUSS,
C. Le strutture elementari della
parentela. Milano, Feltrinelli, 1969.
RENSHAW, D.
C. Incesto: compreensão e tratamento. São
Paulo, Roca, 1984.
SEGRE, M.; COHEN, C. Bioética. São
Paulo, EDUSP, 1995.