INFÂNCIA EM FAMÍLIA: UM COMPROMISSO DE TODOS

 

 

Helena Martinho[1]
 

 

Todos os dias, quando acordamos e nos olhamos no espelho o que vemos é o resultado de experiências acumuladas durante a vida e, acima de tudo, o legado que nos foi deixado por nossas famílias. Temos os olhos da mãe, o jeito do pai, a teimosia de uma tia, a persistência de um avô. Ao nos tornarmos adultos muito devemos a alguém ou algumas pessoas que nos ajudaram a ser o que somos.

 

Mas o que esperar de um jovem que completa 18 anos e passou sua vida dentro de um abrigo sem nunca ter sido chamado de filho? O que dizer a gerações inteiras que não pertencem a ninguém, viveram sempre sob a tutela de um Estado que deixou o tempo passar enquanto eles cresciam dentro dos abrigos? Como explicar a um adolescente que viu crianças menores, mais brancas, mais saudáveis ganharem um pai e uma mãe através da adoção o motivo dele nunca ter sido escolhido? Qual o compromisso de cada um de nós , profissionais, cidadãos, com esta infância esquecida atrás dos muros das instituições ou entre uma montanha de processos?

 

As respostas a essas perguntas começam a ganhar forma através de ações que envolvem a sociedade civil a partir do momento em que nos colocamos também como responsáveis pela garantia de direitos de cada cidadão. Desde 1998 o Instituto Amigos de Lucas reúne profissionais das mais variadas áreas de conhecimento que decidiram destinar seus saberes ao enfrentamento da situação de abrigagem que durante muito tempo foi vista como uma solução para o problema de crianças e adolescentes em situação de risco. Sem fazer muito barulho e sem oferecer perigo, ao contrário dos adolescentes em conflito com a lei, meninos e meninas abandonados pelas famílias ou retirados delas como medida de proteção crescem dentro dos abrigos privados do direito fundamental de pertencer a alguém, de ser chamado de filho. Rostos, histórias de vida, indivíduos em formação viram números frios em folhas de papel. Em 13 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente continuamos a ter uma imensa dívida com essas gerações rotuladas de "inadotáveis".

 

Trabalhar pelo direito à convivência familiar e comunitária, sem mitos, preconceitos e buscando referenciais de adulto para cada menino e menina institucionalizado é o grande desafio do Programa de Apadrinhamento Afetivo idealizado pelo Instituto Amigos de Lucas e realizado em parceria com o Poder Executivo, o Ministério Público e o Poder Judiciário. Em 2002 cerca de 50 padrinhos e madrinhas passaram por uma capacitação em Porto Alegre e, por afinidade, encontraram seus afilhados e afilhadas. Adolescentes, portadores de necessidades especiais, jovens que cresciam tutelados começaram a descobrir a vida além dos muros da instituição. Voltaram a confiar em adultos que não são os tios e as tias do abrigo. São homens e mulheres que têm um único e grande compromisso com eles: o afeto! O apadrinhamento não envolve recursos financeiros. Ele resgata no ser humano o que há de mais nobre, a capacidade de envolvimento emocional. E cada padrinho e madrinha se torna responsável pelo futuro com ações no presente. Reuniões na escola, encaminhamento para o mundo do trabalho, encontros nos fins de semana, viagens de férias, uma conversa reservada. O compromisso do apadrinhamento é para sempre, mesmo depois que o jovem sair da instituição ao completar 18 anos ele ainda poderá contar com este adulto como um referencial. Nos depoimentos de padrinhos e afilhados pudemos notar que ganham ambos os lados.

 

No segundo semestre de 2003 mais 200 padrinhos e madrinhas foram habilitados. Um novo grupo de crianças e adolescentes terá garantido o direito à convivência familiar e comunitária. E o mais importante disso foi a resposta da sociedade. Chamados para participar, centenas de pessoas na capital e interior do Rio Grande do Sul estão se organizando para implementar o programa de Apadrinhamento Afetivo.

 

Sabemos que esta é uma medida que veio para compensar a negação do direito de crescer em família. Temos claro que é preciso ainda trabalhar por uma nova cultura de adoção onde se busque famílias para as crianças que já existem e não são, necessariamente, bebês, brancos e saudáveis. É fundamental dar prazos aos processos de destituição do pátrio poder. Mas, também, criar programas de desabrigagem para cada criança que entra numa instituição. Este plano começa pelo resgate dos vínculos com a família de origem e com a família ampliada, unificando políticas de assistência social, saúde e educação. Temos que atender as famílias que, muitas vezes, estão abandonadas e por isso abandonam seus filhos. Pais abandonados e maltratados normalmente repetem o modelo de família que conheceram. Romper o ciclo do abandono é urgente quando falamos do nosso compromisso em garantir uma infância em família!

 

Notas:

 

[1] Helena Martinho é jornalista, mãe adotiva e Presidente do Instituto Amigos de Lucas. As reuniões do Grupo de Apoio à Adoção da ONG são abertas à comunidade e acontecem no primeiro sábado de cada mês no Salão da Igreja São Pedro, na Av. Cristóvão Colombo, 1625 em Porto Alegre. Maiores informações pelo telefone (51) 3222-3878 ou pelo email amigoslucas@cpovo.net