OS CONSELHOS TUTELARES, COMO ESPAÇOS PÚBLICOS INSTITUCIONAIS PRIVILEGIADOS NA LINHA DA GARANTIA (DEFESA) DOS DIREITOS HUMANOS GERACIONAIS
Wanderlino Nogueira Neto
Generalidades: o Conselho Tutelar, muitas vezes, trabalha demais, mas atuando fora das suas atribuições, isto é, faz pouco da sua missão específica e muito da missão alheia. Tratando-se de órgão público funcionalmente autônomo, de um contencioso administrativo municipal, aplicador de medidas especiais de proteção, o limite de atuação de um Conselho Tutelar está na lei, como qualquer instância pública institucional.
O Estatuto elenca as atribuições dos Conselhos Tutelares de maneira clara, dentro de um contexto de rede, de sistema de "atendimento dos direitos de crianças e adolescentes", onde as atribuições administrativas e competências jurisdicionais estão também claramente explicitadas. Esta é uma marca típica do Estado Democrático de Direito: ao cidadão só vedado faz o que lhe veda a lei e ao Estado só é permitido fazer o que lhe permite a lei.
Assim sendo, os Conselhos Tutelares podem e devem fazer o que o Estatuto e a lei municipal de criação autorizarem. Não podem agir segundo o desejo dos seus integrantes ou dos demais operadores do sistema de garantia de direitos. E, principalmente, não podem atuar para suprir ausências, faltas, omissões de outros órgãos, como, por exemplo, de Vara do Poder Judicial, de Órgão do Ministério Público, de Delegacia de Polícia, de Secretaria Municipal de Ação Social, de Entidades governamentais e não-governamentais de proteção especial ou de socioeducação etc. etc.
Os registros do SIPIA demonstram que vários Conselhos Tutelares estão atuando completamente fora de sua estrada, invadindo as atribuições e competências alheias (às vezes, de boa-fé ou por ignorância).
Tem-se constatado, por exemplo, as seguintes invasões abusivas:
a) autorizações
para crianças e adolescentes viajarem - a competência é exclusiva e indelegável
dos juizes, em todos os casos de viagem, quando se trata de criança e, em casos
de viagens para o exterior, quando se trata de adolescentes;
b) acordos extrajudiciais de alimentos, com recepção de valores de
pensão - trata-se de matéria da competência do Ministério Público
ou do Poder Judiciário (acordo ou ação, extra-judiciais ou judiciais);
c) procedimentos
de investigação de paternidade - a competência é privativa do Poder Judiciário;
d) determinações
de registro civil das pessoas naturais (nascimento e óbito), por meio de
requisições aos Ofícios Judiciais competentes quando o Estatuto prevê apenas a
requisição de certidão do registro, para instruir procedimento apuratório do Conselho Tutelar - a determinação e a
autorização de registro compete a Juiz específico, com competência para
controlar os Registros Públicos;
e) fiscalizações
e autuações infracionais de bares, boates, restaurantes, diversões públicas,
quanto à freqüência de pessoas menores de idade e quanto à venda de bebidas aos
mesmos e as chamadas "blitz" para apreender meninos em
situação de rua – compete ao Conselho Tutelar aplicar medidas de proteção
à criança e ao adolescente nessa situação, requisitando medidas responsabilizadoras contra os abusadores,
de vez que o poder de polícia é atribuído por lei aos órgãos de segurança
pública, aos órgãos próprios de fiscalização da Prefeitura (concessora do
alvará de funcionamento), à Vigilância Sanitária, ao Poder Judiciário (pelos
seus Agentes de Proteção ou Comissários de Vigilância, como a lei estadual de
organização judiciária dispuser), por exemplo;
f) concessão
de guarda, com destituição ou suspensão do poder parental - a definição de
estado, ou seja, a colocação em família substituta (guarda, tutela e adoção) é
da exclusiva competência do Poder Judiciário;
g) atendimento
socioeducativo aos adolescentes em
conflito com a lei (ato infracional) - a matéria é da competência dos
Órgãos de Segurança Pública, do Ministério Público e do Poder Judiciário.
As aberrações pululam, como se vê. Mas, de outra parte, o cumprimento de sua missão legal institucional tem produzido intervenções referenciais e exemplares de Conselhos Tutelares, no país. Intervenções salutares no sentido de fazerem reconhecidos e garantidos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Isso de bom, porém, só acontece quando os Conselhos Tutelares se submetem às leis vigentes e exercem suas atribuições próprias fielmente: elas já são muitas e importantes. Em face disso, necessário se torna imperiosamente que os Conselhos Tutelares conheçam suas atribuições e as exerçam. Mister se faz que os conselheiros tutelares procurem cada vez mais se aprofundar no estudo dessas suas atribuições, uma por uma, avaliando o alcance e as conseqüências delas.
Um órgão incumbido de zelar pelo
cumprimento dos direitos não poderá ser nunca um órgão que margeie a expressão mais nítida do direito, que é a lei. Por melhor
que seja sua intenção, um conselheiro tutelar não pode se considerar acima da
lei.
A potencialização estratégica: o
Conselho Tutelar deve fomentar a valorização e a qualificação das ações de
políticas públicas e deve lutar pela extensão da cidadania de crianças e
adolescentes que atender - As leis
municipais de criação dos Conselhos Tutelares podem (e devem!) atribuir a esses colegiados certas funções que chamaríamos de "atividades de potencialização
estratégica", a se manifestarem em duas linhas:
ü valorização e qualificação das ações de políticas públicas;
ü extensão da cidadania do seu público-alvo (empowerment).
A valorização e qualificação estratégica tem características próprias e está fora do campo do poder deliberativo e coercitivo do Conselho Tutelar - A chamada valorização e qualificação estratégica de políticas públicas implica construir e desenvolver estratégias políticas consagradas pelas Ciências Sociais, tais como: mobilização social, defesa política de interesses (advocacy), empoderamento do usuário (empowerment), parcerização etc. Assim sendo, importante que essas leis municipais, que estabelecem normas especiais (complementares em relação às normas gerais do Estatuto), criem atribuições para o Conselho Tutelar que contemplem essas linhas estratégicas, fazendo-o também potencializador estratégico de políticas, valorizando e qualificando essas políticas, na forma que a lei municipal dispuser, amplamente. Como tal, o Conselho Tutelar atua para deflagrar um processo de reordenamento normativo, de reordenamento institucional e de melhoria da atenção direta à criança e ao adolescente (cfr. GOMES DA COSTA, Antonio Carlos).
Ele se preocupa, por exemplo, em levantar dados, informações e argumentos que tenham validade nos processos de elaboração legislativa, fornecendo esses subsídios ao Poder Executivo nos momentos próprios (sanção-promulgação) ou diretamente ao Poder Legislativo. Ele fornece esses mesmos subsídios, de outro lado, ao Ministério Público, para que promova suas recomendações, acordos de conduta, inquéritos civis e ações civis públicas (ou mandados de segurança). Ou, por fim, pode remeter esse mesmo material - tudo conforme a situação levantada – aos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente (nacional, estadual e municipal) para o desempenho de suas atribuições normalizadoras/formuladoras e controladoras.
A extensão da cidadania tem também suas características próprias, fazendo com o Conselho Tutelar fomente a participação proativa (ou protagônica) do seu público - Como extensores da cidadania, os Conselhos Tutelares, nos limites de sua possibilidade, devem procurar atender e aconselhar crianças, adolescentes, pais e responsáveis a respeito de seus direitos e deveres. (art. 136, I e II – Estatuto). Nessa linha, ele atua como um verdadeiro “balcão-da-cidadania”. Numa fase preliminar, preventiva, assim procederá o Conselho Tutelar, mesmo quando não se justificar uma intervenção mais forte e efetiva sua, isto é, mesmo quando não for o caso da aplicação de medida especial de proteção, ou de representação ao Ministério Público ou de encaminhamento ao Poder Judiciário. Ele deverá fazer o papel de co-construtor da cidadania do seu público-alvo, de extensor da cidadania: cidadão todos o somos, o que ocorre é o que o exercício dessa cidadania precisa ser ampliado, aprofundado, radicalizado, estendido, quando se trata de determinados segmentos da população (índios, negros, mulheres, crianças, jovens, sem-terra e sem-teto, homossexuais etc.). E aí entra o Conselho Tutelar estrategicamente promovendo o empowerment (participação proativa ou protagônica) das crianças e dos adolescentes que atender, de alguma forma.
No exercício destas atribuições, o Conselho Tutelar estará zelando pelo atendimento dos direitos de crianças e adolescentes (art. 131 – Estatuto), de maneira bem concreta. São, assim, típicas atividades desse tipo de ação potencializadora estratégica:
§
palestras, conferências, debates em escolas,
associações comunitárias etc.;
§
participação em programas radiofônicos ou
televisivos;
§
participação em campanhas de marketing social
(distribuição de folders, cartazes etc.);
§
participação em eventos públicos, reuniões de
instâncias de articulação (fóruns, frentes etc.);
§
help
disk para orientação inicial, por telefone ou pessoalmente, de pessoas que
tenham dúvidas a respeito de direitos e deveres de crianças, adolescentes, seus
pais e responsáveis
§
etc.
O cuidado maior nessa linha é de se evitar que o Conselho Tutelar invada, sob essa justificativa ampla, as atribuições dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, das Câmaras de Vereadores, dos Órgãos de coordenação e execução de políticas sociais (Secretarias da Assistência, Social, da Educação, da Saúde etc.), do Ministério Público, do Poder Judiciário, dos órgãos policiais – como está freqüentemente acontecendo. Ou que as atividades do Conselho Tutelar se reduzam a isso, não exercendo ele suas demais atividades, resumindo-se a esse papel potencializador estratégico – mobilizador e capacitador, principalmente.
A proteção de crianças
e adolescentes com direitos ameaçados ou violados é a atividade mais importante
de um Conselho Tutelar e se manifesta com a aplicação de Medidas Especiais de
Proteção, previstas no Estatuto - Aqui está a mais importante e efetiva das
atividades de um Conselho Tutelar, isto é, quando ele presta proteção especial
a crianças e adolescentes credores de direito, isto é, com seus direitos
ameaçados ou violados, quando ele luta pelo reconhecimento e pela garantia
desses direitos. Um Conselho Tutelar
que não aplique Medidas Especiais de Proteção não tem funcionamento efetivo,
como o Estatuto propõe. Pode praticar inúmeras outras atividades importantes,
mas, sem a prática desta, ele deixa de cumprir sua missão maior.
Natureza das Medidas Especiais de Proteção: são atos
decisórios e requisitórios, emanados de um contencioso administrativo, que
dependem de execução de serviços e programas públicos (nas áreas de educação,
saúde, assistência social, trabalho, segurança pública etc.) - Muitas vezes, certos operadores do Sistema de Garantia dos
Direitos da Criança e do Adolescente (juizes, promotores, delegados de polícia,
defensores públicos, dirigentes de órgãos públicos e de organizações
representativas da sociedade etc.) e mesmo o público, em geral, imaginam que,
quando o Conselho Tutelar atua, ele na verdade está na obrigação de “proteger” crianças e adolescentes,
diretamente – o Conselho Tutelar se confundiria com um órgão de execução das
políticas de assistência social (mais vezes!), de saúde, de educação, de
proteção no trabalho, de segurança pública etc. Os Conselhos Tutelares
estariam, pois, à disposição dos juizes, promotores e outras autoridades
públicas para darem execução a decisões desses. Como se esses colegiados não
tivessem competência originária para apreciar uma situação de violação ou
ameaça de direitos e aplicar uma medida jurídica de reconhecimento e garantia
de direitos. Em verdade, é isso que o Estatuto prevê para os Conselhos
Tutelares: um contencioso administrativo, um órgão não jurisdicional de solução
de conflitos de interesses.
Na verdade, o Conselho Tutelar não
executa nenhum programa ou serviço público. Ele requisita esse atendimento ao
órgão próprio do poder Público. Os mais consagrados comentaristas do Estatuto
reconhecem que o Conselho Tutelar foi criado para exercer antigas funções do
Juiz de Menores e não para serem órgãos de execução, serviço
de retaguarda para outros órgãos.
A leitura do art.136 do Estatuto
seria suficiente para confirmar esse entendimento: ali estão as atribuições
típicas do Conselho Tutelar. O Estatuto, em nenhum momento, o faz executor de
programa ou serviço, fá-lo órgão de atendimento direto. Aliás, só
excepcionalmente o Estatuto faz algo semelhante, quando, no inciso VI do
artigo 136, atipicamente, lhe comete a função de “providenciar medida estabelecida pela
autoridade judiciária, dentre as previstas nos artigos 101, de I a VI, para o
adolescente autor de ato infracional”. De qualquer maneira, mesmo aí, ele
não executa a medida aplicada pelo juiz, ele intermedeia, ele ratifica a
decisão judicial e toma as providências cabíveis (requisição de serviços, por
exemplo).O Estatuto explicita bem essa hipótese de ratificação da decisão
judicial em caso de adolescentes em conflito com a lei.. Assim, não há que se
falar em Conselho Tutelar exercendo aí funções assemelhadas a de “equipe multiprofissional”
ou de “agente de proteção” das Varas
da Infância e da Juventude, como abusivamente isso está acontecendo. Essas
distorções tanto partem de alguns juizes que, na falta de apoio técnico no
campo próprio do Poder Judiciário (como o Estatuto determina nos seus artigos
150 e 151) usam dos serviços, distorcidamente, dos
Conselhos Tutelares, quanto elas partem de alguns conselheiros tutelares que,
para fugirem do pouco caso ou da oposição de determinados Prefeitos, abdicam de
sua autonomia funcional. Reforçando esse entendimento, é de se lembrar que o
Estatuto prevê, no seu art. 262, que “enquanto
não instalados os Conselhos Tutelares, as atribuições a eles conferidas serão
exercidas pela autoridade judiciária” – isso mostra a semelhança
(não-igualdade) de funções entre o contencioso judicial (Vara da Infância e da
Juventude) e o contencioso administrativo (Conselho Tutelar), sem nenhum traço
de subordinação de um ao outro.
Conteúdo: proteção, como medida premial - As Medidas Especiais de Proteção, aplicadas a crianças e adolescentes com seus direitos violados ou ameaçados (art. 136, comb com art. 98 – Estatuto cit.), têm natureza eminentemente premial. Nunca sancionatórias, punitivas. Nesse sentido, ensina L. XAVIER DE CASTRO (in "Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado" – artigo 99 - Ed. Malheiros), referindo-se às medidas de proteção especial, aplicáveis pelo Conselho Tutelar: "Estes instrumentos não poderão ser compreendidos como castigo ou pena; nem tampouco, ter o caráter de 'aliviar' a responsabilidade jurídica daqueles que estão causando danos à criança e ao adolescente". Por exemplo, não existe nenhum respaldo legal para um Conselho Tutelar apreender crianças e adolescentes, colocá-las em celas, coagi-las a praticar nenhum ato, destituir o poder parental dos seus pais etc. etc.
A advertência, por exemplo, não existe para ser aplicada pelo Conselho Tutelar a crianças e adolescentes, a título de medida de proteção. Ela existe como medida socioeducativa aplicada por juiz a adolescente infrator, e como medida responsabilizadora aplicada pelo Conselho Tutelar a pais e responsáveis. A juíza CONCEIÇÃO MOUSNIER (in "Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado" – artigo 101 - Ed. Malheiros), apesar de não concordar com a limitação do Estatuto nesse ponto, reconhece claramente: "Andou bem a lei em não estender à criança infratora, menor de 12 anos, com pouca idade, as medidas mais severas previstas nos incs. II a VI do art. 112. Quanto à medida de advertência, porém, o legislador melhor agiria, se a tivesse prescrito também para a criança infratora". Traduzindo: mesmo os que advogam a advertência como medida especial de proteção reconhecem que o Estatuto não a prevê e, portanto, vedada está sua aplicação.
As medidas de proteção especial, previstas no Estatuto, no art. 101, são “benefícios” concedidos a pessoas em condições peculiares de desenvolvimento e não “seres inferiores”, fracos, vítimas, desajustados. Mas, nossa cultura popular e mesmo institucional está indelevelmente marcada pela concepção autoritária e patriarcalista de que se protege um mais fraco... “castigando”, infligindo sofrimento, ou pelo menos vitimizando.
O público-alvo do Conselho Tutelar é composto por todas as crianças e adolescentes que estejam na situação de "credores de direito", isto é, que tenham quaisquer de seus direitos ameaçados ou violados e não as crianças e os adolescente em situação de risco, isto é, vulnerabilizados sociais - Um verdadeiro mito se criou, com o passar dos tempos, de que a Política de Promoção dos Direitos de Crianças e Adolescentes, prevista no Estatuto, tinha como seu público-alvo, "crianças e adolescentes em situação de risco pessoal ou social". Mais especificamente: aventou-se que as Medidas Especiais de Proteção deveriam ser aplicadas a crianças e adolescentes nessa situação de vulnerabilidade social. O Estatuto não pode ser invocando para justificar essa interpretação do Estatuto e essa abrangência da Política de Promoção dos Direitos Humanos Geracionais. Em nenhum dispositivo dessa lei se utiliza tal expressão ("situação de risco"). O seu art. 98 é claríssimo em determinar que tais medidas são "aplicáveis a crianças e adolescentes sempre que os direitos previstos nesta lei forem ameaçados ou violados (...) por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, (...) por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável (...) em razão de sua conduta".
As situações de vulnerabilidade social (situações de risco) são típicas da Política de Assistência Social, isto é, justificam a intervenção assistencial, através dos seus benefícios e das suas ações continuadas, próprios. Ensina VANDA ENGELS (in "Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado” – artigo 98 – Ed. Malheiros) a respeito da universalidade dessa Política de Garantia dos Direitos, apontando um primeiro segmento: "Seriam, pois, sujeitos-alvos das medidas de proteção todas as crianças que, por omissão destes dois agentes (sociedade e Estado), tivessem aqueles direitos ameaçados ou violados. Crianças e jovens com a saúde ou a própria vida ameaçadas pelas condições de pobreza, desnutrição e insalubridade ambiental, sem acesso a uma assistência médica de qualidade; fora da escola ou submetidos a um processo educacional que os leva ao fracasso escolar, à estigmatização e à exclusão, inseridos num trabalho que os explora e afastados do convívio familiar e comunitário, da escola e do lazer.” E explica mais a autora, apontando outro segmento: "Comporiam esse conjunto, por um lado, crianças e adolescentes vítimas históricas de políticas econômicas concentradoras de renda e de políticas sociais incompetentes em sua tarefa de assegurar a todos os cidadãos seus direitos sociais básicos. (...) Estariam neste grupo também, por outro lado, crianças cujas famílias se omitem do dever de assisti-las e educá-las, praticam maus-tratos, opressão ou abuso sexual ou simplesmente as abandonam.” Finalmente ENGELS descreve o terceiro segmento do público-alvo para as Medidas Especiais de Proteção: "Surge, porém, na letra da lei, entre os responsáveis pela ameaça dos direitos da criança, um terceiro agente – ela própria, em função de sua conduta. Reconhece a legislação que a criança e o adolescente, em função de uma dada conduta – crime ou contravenção – reconhecida como ato infracional, possam vir a ter direitos ameaçados ou violados".
O Conselho Tutelar é
responsável também pela aplicação de Medidas Especiais de Proteção a crianças
em conflito com a lei, já que elas não são responsáveis por seus atos infracionais,
nem recebem Medidas Socioeducativas - O Estatuto
da Criança e do Adolescente só reconhece como responsável pela prática de
crimes e contravenções penais (a que chama infrações) o adolescente, isto é,
aqueles com 12 anos completos. E assim sendo, só os
adolescentes podem ser responsabilizados e sancionados pela prática de
crimes e contravenções, como autores de atos infracionais, aos quais o juiz
competente aplicará uma Medida Socioeducativa
(internação, semiliberdade, liberdade assistida etc.). As crianças (menos de 12 anos) não são submetidas ao Juiz da
Infância e da Juventude, para o procedimento de ato infracional previsto no
Estatuto, nem receberão nunca uma Medida Socioeducativa
(nem advertência!). Elas deverão ser atendidas pelo Conselho Tutelar, que lhes
aplicará Medidas Especiais de Proteção, previstas no art. 136 do Estatuto.
O Conselho Tutelar tem uma participação bastante limitada no processo judicial de apuração de ato infracional atribuído a adolescente, não sendo competente para apurar os fatos nem aplicar medidas socioeducativas - O Conselho Tutelar só participa secundariamente do procedimento judicial de apuração do ato infracional atribuído a adolescente, quando o juiz da causa, constatando que o adolescente, além de se imputar a ele a prática de um ato infracional, igualmente tem qualquer dos seus direitos ameaçados ou violados e se encontra também enquadrado nas hipóteses do art. 98 do Estatuto, isto é, quando o juiz reconhece que esse adolescente necessita igualmente ou de apoio e orientação familiar, ou de apoio médico e psicossocial, ou de tratamento médico, hospitalar ou ambulatorial, ou matrícula escolar etc. (art. 101 – Estatuto citado). Nesse caso, o artigo 136, VI, do Estatuto estabelece que cabe ao juiz aplicar também uma medida de proteção e determinar que o Conselho Tutelar competente atue: "...providenciar a medida estabelecida pela autoridade judiciária, dentre as previstas no art. 101, de I a VI, para o adolescente autor de ato infracional". O Conselho Tutelar aí está dando execução a uma decisão do Juiz da Infância e da Juventude, uma vez que esse colegiado não tem competência alguma para intervir na apuração de ato infracional atribuído a adolescente - matéria judicial processual.
Duas questões estão, todavia, surgindo na prática, ao arrepio da lei e que merecem se provoque uma discussão jurídica em torno delas:
a) Há Conselhos Tutelares usurpando a função judicante, apurando a prática de atos infracionais, que se configuram como crime ou contravenção, quando praticados por adolescentes, inclusive aplicando a medida socioeducativa de advertência. Quando no SIPIA se pede o registro da prática de atos infracionais por adolescentes quer-se apenas que se registre que o Conselho Tutelar recebeu notícia do crime (infração) e a remeteu de imediato ao Ministério Público e/ou Juiz. Além do mais, um Conselho Tutelar pode também acompanhar o acautelamento do adolescente apreendido em flagrante na Delegacia de Polícia, para evitar que sofra torturas ou coisas semelhantes. Nunca substituir o delegado de polícia, o promotor de justiça e o juiz da infância e da juventude, na apuração de ato infracional e no seu sancionamento!
b) Alguns magistrados estão aplicando medida de abrigo em
entidade a adolescentes aos quais se atribui a prática de ato infracional (em
processo), depois de esgotado o prazo de 45 dias da internação provisória, ou a
aplicam ao final do processo, quando é aplicada medida socioeducativa
em meio aberto, substituindo, assim, o atendimento assistencial ao egresso previsto
no Estatuto, mas de outra natureza. O Estatuto expressamente proíbe isso, ao
prever que, no caso do artigo 136, VI, só as medidas previstas nos incisos I a
VI do artigo 101 são aplicáveis nessa hipótese, isto é, o Estatuto exclui as
medidas dos incisos VII e VIII ("abrigo
em entidade" e "colocação
familiar").
O sancionamento administrativo de pais e responsáveis - O Estatuto prevê também que o Conselho Tutelar é competente
para aplicar medidas responsabilizadoras, de caráter
orientador e sancionador, a pais e responsável por infrações às normas do
Estatuto. Nesse rol está, por exemplo, a advertência. Não se tratando de medida premial, de benefício protetivo,
mas sim de verdadeira sanção
administrativa, entendo, salvo melhor juízo, que não pode o Conselho
Tutelar aplicar qualquer dessas medidas a pais e responsáveis, sem respeitar o
disposto na Constituição federal, no tocante à garantia da ampla defesa e do
contraditório: trata-se de um litígio, de um possível conflito de interesses
dos pais ou responsável e da criança ou adolescente.
"Se esses pais simplesmente resolverem não acatar a decisão do Conselho
Tutelar eles estarão sujeitos a multa por infração administrativa pelo artigo
249 do Estatuto: 'Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao
pátrio poder ou decorrentes da guarda ou tutela, bem assim determinação da
autoridade judiciária ou do conselho tutelar. Pena: multa de 3 a 20 salários de
referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência'" – assim
ensinam a respeito dessas Medidas DONIZETI e CYRINO (obra citada). E, com isso,
mais alicerça o entendimento de que essas medidas, aplicáveis a pais e
responsável, não têm a mesma natureza puramente premial
das Medidas Especiais de Proteção, aplicáveis a crianças e adolescentes.
Assessoramento ao poder público, no campo da orçamentação - Os Conselhos Tutelares devem anualmente apresentar ao Prefeito subsídios (dados, informações e análises) para a elaboração da Proposta Orçamentária do Município, advogando a alocação de recursos para a criação ou manutenção/fortalecimento de serviços e programas específicos para atendimento dos direitos de crianças e adolescentes, especialmente os previstos no Estatuto (arts. 87, III a V, e 90). Esse oferecimento de subsídios deve ser feito numa linha de assessoramento, isto é, numa linha consultiva, sem poder vinculante.
Raramente, nos relatórios do SIPIA, encontra-se o registro de que o Conselho Tutelar tenha cumprido essa sua obrigação legal. Mais das vezes os conselheiros muito se queixam da falta da chamada “retaguarda” para atender suas requisições, isto é, de serviços e programas nas “áreas da saúde, educação, trabalho, serviço social, previdência e segurança pública” para atenderem os direitos violados e ameaçados de crianças e adolescentes. Um gesto concreto, construtivo na busca da solução, seria tornar a orçamentação pública mais participativa. E esse assessoramento dos Conselhos Tutelares seria um bom instrumento nesse sentido. É importante, pois, que os conselheiros tutelares se capacitem para exercer, regular e sistematicamente, essa função no seu município.
O Conselho Tutelar não executa diretamente suas Medidas Especiais de Proteção ou as Medidas Aplicáveis a Pais e Responsável, mas promove, indica, determina que suas decisões devem ser obrigatoriamente executadas pelas entidades governamentais e não-governamentais que prestam serviços ou desenvolvem programas/projetos de atendimento dos direitos de crianças e adolescentes - Para promover a execução de suas deliberações colegiadas, o Conselho Tutelar tem o poder de:
(a) requisitar, formalmente, por escrito, serviços públicos nas áreas da saúde, educação, serviço social (assistência social), previdência, trabalho e segurança pública;
(b) representar junto à autoridade judiciária, nos casos de descumprimento injustificado de suas deliberações, solicitando as necessárias providências para garantir a executoriedade da sua deliberação desrespeitada.
Ainda, para garantir a possibilidade de aplicar Medidas
Especiais de Proteção, o Conselho Tutelar, durante o procedimento apuratório da situação de violação ou ameaça de direito,
poderá expedir notificações dirigidas
a determinadas pessoas para prestarem declarações, expedir requisições de documentos etc.
O Conselho Tutelar
encaminha um caso ao Juiz da Infância e da Juventude inicialmente, quando a
matéria não é da competência do colegiado. - DONIZETI e CYRINO (obra multicitada) ensinam com clareza: "(...) todos os
casos que envolvam questões litigiosas, contraditórias, contenciosas, de
conflito de interesses, com a destituição do poder parental, como a guarda, a
tutela, a adoção e as enumeradas nos artigos 148 e 149 do Estatuto, ao chegarem
ao conhecimento do Conselho Tutelar, deverão ser encaminhadas à Justiça da
Infância e da Juventude, onde os interessados terão orientação certa da solução
de seus problemas". Muitas
vezes, um conselheiro tutelar decide intervir (até mesmo só fazendo uma
orientação) em certos casos que são da estrita competência do Poder Judiciário,
pensando que está "ajudando" a população, mas sua intervenção, mesmo
de boa-fé, poderá ter efeitos desastrosos, criando uma falsa expectativa na
população e a frustrando em relação ao Conselho Tutelar. Se a questão não diz
respeito a sua esfera de atribuição, nada tem o conselheiro tutelar de ser
"porta-voz" do juiz ou "assessor jurídico" de quem o
procura, por exemplo, para resolver questões de investigação de paternidade,
guarda de filhos, partilha de bens, alimentos, prática de crimes etc.
O Conselho Tutelar
encaminha um caso ao Juiz da Infância e da Juventude igualmente quando sua
decisão for descumprida pelo dirigente do órgão público ao qual se dirigiu uma
requisição do colegiado - Essa matéria já foi analisada atrás, como forma
de garantir o cumprimento de suas decisões.
O encaminhamento ao Promotor de Justiça (Ministério Público) não pode ser injustificado e como uma forma de o Conselho Tutelar se desobrigar do cumprimento de sua missão institucional, mas sim quando for obrigado por lei a fazer uma determinada comunicação ou representação formal a esse órgão público-ministerial - O Conselho Tutelar está obrigado a comunicar - oficialmente, de imediato, por escrito e justificativamente - ao Promotor da Infância e da Juventude local (ou àquele que responda pela função, caso ausente o titular ou vago o cargo, na cidade em que estiver), quando ele, Conselho, tomar conhecimento de todo e qualquer fato que se configure como crime ou infração administrativa contra crianças e adolescentes, previstos no Código Penal ou no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Às vezes, o Conselho Tutelar, quando tem dificuldades para atender uma determinada Criança ou Adolescente ou para aplicar-lhe uma Medida Especial de Proteção, ele "faz um encaminhamento" (sic) ao Ministério Público, mais das vezes indevido, pois o faz fora dos casos previstos no Estatuto e fugindo do exercício de suas funções. O Ministério Público não é um "padrinho", um "protetor" do Conselho Tutelar, a ser chamado em casos em que a atuação era para ser do Conselho Tutelar. Nem o Ministério Público é "órgão de execução ou de atendimento direto". Ele tem sua função constitucional e legal que precisa ser respeitada.