A IMPORTÂNCIA DA CRECHE PARA O PROCESSO DE INSERÇÃO SOCIAL E PARA O INGRESSO DA CRIANÇA NA CULTURA

 

 

Fernando Lefèvre*

Prof. Dr. do Departamento de Prática de Saúde Pública da

 Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

 

 

Natureza, Cultura e Educação

 

Entre nós, brasileiros, mesmo hoje em dia, o simples fato de uma criança nascer não lhe garante nada. Uma criança pobre (se for negra ou parda, pior) que nasce, é registrada e/ou batizada, recebe um nome (Rai­mundo ou Sebastião, por exemplo) e uma nacionalidade - brasileira - está ainda muito perto da natureza e muito distante da cultura. Como afirma TURNER (1989), a propósito das sociedades tradicionais, dentre as quais nos incluímos (pelo menos em boa parte): "En las sociedades tradicionales, el hecho de nacer no constituye una garan­tia imediata de membresía social: se tiene que ser transladado de la naturaleza a la cultura por médio de los rituales de inclusión social. (...) Nacer no es garantia última de la calidad de miembro cultural de la sociedad, desde el momento en que el infanticídio era ampliamente praticado, ya sea implícita o explicitamente, en Ia mayoria de las sociedades tradicionales de subsistência" (p. 247-248).

 

Como comentário lateral poder-se-ia dizer que, por certo, o infanticídio não é, entre nós, sempre, praticado abertamente. Quando isso ocorre - como no caso do episódio da Candelária - admite-se que houve um certo exagero ou um acidente de percurso.


 

 

As Creches como Instrumento de Ingresso Discreto na Cultura

 

Podemos colocar que hoje, entre nós, a educação da criança pequena em estabelecimentos do tipo creche ou escola maternal constitui um macro-ritual de inclusão social.

Desta forma, a luta por creches, enquanto movimento social, sobretudo nas periferias das grandes cidades brasileiras, pode ser vista como um início de disposição, por parte dos segmentos populares, de sair da natureza para começar a ingressar na cultura. Mas se trata, segundo nossa experiência no estudo e no trato com o tema, de algo bastante embrionário.

 

Com efeito, as creches, em nosso país são, enquanto aquisições sociais recentes, ainda muito atreladas a reivindicações populares ligadas à necessidade de guardar temporariamente crianças para que suas mães possam ser plenamente incorporadas ao mercado de trabalho.

 

Ora, quando um direito - o de ter seus filhos protegidos ou afastados da rua (ou, nos termos de TURNER, da natureza) quando a mãe trabalha - está ainda, em termos quantitativos e qualitativos, longe de ser alcançado, a sobreposição de outro direito - o de ter seus filhos, além de guardados, educados e desenvolvidos - só pode aparecer como impertinente e intempestivo.

 

Acrescente-se a isso o fato de que o próprio trabalho da mulher sendo também visto e experienciado entre nós, enquanto ingresso no mundo da cultura, como um direito recente acaba, no imaginário da mãe, do marido, da família, da comunidade e do funcionário da creche, dando lugar a um grave conflito de papéis na medida em que a mãe que trabalha não consegue ver e viver, de forma integrada, seus papéis sociais - de mãe, de mulher e de trabalhadora - experimentando, ao contrário, sentimentos desagregadores e conflitivos já que não consegue ser, por inteiro, nem mãe, nem trabalhadora, nem mulher ou companheira. Por outro lado, apenas e simplesmente por ter decidido colocar seu filho sob os cuidados da instituição, é também vista, freqüentemente, pelo funcionário, como negligente em relação a seu papel de mãe; ou merecedora de gozar do direito de ter seu filho cuidado na creche apenas e quando estiver exercendo seu papel de trabalhadora.

 

Por essas e por outras razões, o assim chamado componente pedagógico - que mais apropriadamente poderíamos chamar de componente de promoção do desenvolvimento — da atividade das creches, sobretudo daquelas que atingem as populações dos estratos sociais mais subalternizados, tende a ser colocado num segundo plano, tanto na prática de trabalho quanto no imaginário da população e dos próprios funcionários.

 

Sair da rua, da natureza, para entrar na cultura, quando se trata de criança pobre é, entre nós, um movi­mento social ainda bastante imerso no campo prático e imaginário do paternalismo caritativo protecionista, de caráter eminentemente negativo.

 

 

Paternalismo e Negatividade

 

O que vem a ser isso?

 

Caso imaginemos o problema do ingresso da criança brasileira pobre na cultura, ou sua saída da natureza, em termos de um processo do tipo tradição => modernidade, podemos colocar que, no mais primário nível desta escala, ocupando uma posição quase natural, temos como imagem-tipo aquela família rural/favelizada com a mãe pequena, magra e embuchada cercada por crianças, também magras, de várias idades. Neste contexto impera o darwinismo mais bruto, com "Deus" ou o destino levando os anjinhos e deixando que sobrevivam, por sua própria conta, apenas os mais aptos.

 

Creio que, de um modo geral, esta imagem-tipo não corresponde mais ao destino que o brasileiro médio imaginaria para as crianças brasileiras pobres.

 

Creio sim que este destino situa-se num outro ponto da escala tradição-modernidade; creio ademais que, para este mesmo brasileiro médio, a criança pobre não deve sair deste lugar social.

 

Que lugar é este?

 

A hipótese é que não se trata de um lugar positivo ou, se se preferir, que se trata de um lugar social negativo.

 

Este lugar negativo é a não-rua, o não-cheirar-cola, o não-crack, o não-trombadinha, o não-alcoólatra.

 

No espaço concreto da creche (e no tempo do trabalho da mãe) é produzido este lugar ou esta localização social negativa, destinado à criança pobre. Por certo há, para esta mesma criança, um projeto vagamente educativo que decorre, mecanicamente, deste negativismo social original: afinal, o não-trombadinha precisa ser alguma coisa; são então produzidos os projetos de mecânico, pedreiro, boy, auxiliares variados, marceneiros, jogadores de futebol, passistas de escola de samba, que são papéis negativos porque destinados não a configurar um ator social positivo mas a conjurar o perigo que representam, no imaginário de cada brasileiro, os atores sociais negativos: o delinqüente, o ladrão, o traficante, etc.

 

Somos, até para as nossas atuais cabeças coroadas, uma sociedade estruturalmente excludente (um interessante indicador nesse sentido é o verdadeiro pânico que se apossa de nossas elites quando a massa, iludida pelo plano econômico do momento, ameaça ingressar no chamado mercado de consumo); e, para este tipo de formação social, a educação dos pobres será sempre um projeto compensatório. O discurso mais ou menos velado é este:

 

para que o Brasil cresça e se desenvolva é preciso "excluir" muitos para poder "incluir" uns poucos a mais;como os "excluídos" podem, em razão desta exclusão, tornar-se agressivos, deve-se desenvolver programas educativos de caráter compensatório.

 

 

 

A Creche como Instrumento na Luta contra a Exclusão

 

A educação da criança pobre pequena tem algo de explicitamente subversivo na medida em que ela aparece facilmente, para o menos engajado dos profissionais, como uma empresa essencialmente destinada a forjar um "sujeito epistemológico" ou cognoscente que qualquer ser humano pode, em princípio, vir a ser, entendido como um "criador de si mesmo e do mundo num processo de interações sujeito-objeto" (DOLLE, 1978, p. 73).

 

Esta possibilidade ou virtualidade deve ser explorada ao máximo.

 

Com efeito, hoje em dia poucos acreditam, firmemente, no sangue azul ou, no nosso caso, que as crianças já venham programadas, do útero, em termos de possibilidades de desenvolvimento, segundo a origem social de seus pais. Em outras palavras, poucos de nós acreditam, hoje, convictamente, que "criança pobre já nasce meio burrinha".

 

Ora, o jogo, a luta, o desafio prático e ideológico para uma sociedade contraditória como a nossa - na medida em que perpassada, ao mesmo tempo, por um movimento perverso de exclusão e por uma inegável criatividade e abertura social - no campo da educação de crianças pequenas em creches, consiste em combater, com afinco e persistência, o movimento de produção, pela creche, do não-trombadinha-marceneiro, propugnando, positivamente, para o despertar do sujeito epistêmico que existe - e que aparece muito claramente na criança pequena - em todo ser humano.

 

Produzir, por exemplo, não-trombadinhas aparece-nos como fazendo parte de um movimento de exclusão ou, se se preferir, de inclusão subalterna, na medida em que não se trata de gestar crianças para que realizem plena, mas sim subalternamente, as suas potencialidades de desenvolvimento, notadamente enquanto sujeitos cognoscentes.

 

Na creche, a criança pequena pobre brasileira pode, ainda, entrar, com os dois pés, no mundo da cultura.

 

Na creche, a criança pobre brasileira ainda tem chances de ver alterado seu destino, historicamente marcado pela exclusão, com ou sem compensação.

 

A partir daí são muito fortes as chances dos dados já terem sido jogados.

 

LEFÈVRE, F. A Importância da Creche para o Processo de Inserção Social e para o Ingresso da Criança na Cultura. Rev. Brás. Cresc. Dês. Hum., São Paulo, IV(2), 1994.

 

 

*Coordenador Científico do Centro de Estudos do Crescimento e do Desenvolvimento do Ser Humano. End: Av. Dr. Arnaldo 715, sala 21, São Paulo - SP, CEP01246-904 Fone/Fax: (011) 851.3572

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

DOLLE, J. M. Para compreender Jean Piaget. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.

TURNER, B. El cuerpo y Ia sociedad. México, Fundo de Cultura Económica, 1989.