Processo nº 35/98.
Vistos.
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO
PAULO, por sua Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e
Coletivos da Infância e da Juventude da Capital, moveu a presente ação civil
pública contra a FAZENDA DO ESTADO DE
SÃO PAULO, a fim de obter provimento judicial que obrigue a ré, por
seus agentes públicos da Secretaria Estadual de Educação, a cumprir o disposto
no art. 50 dos Atos das Disposições Transitórias da Constituição estadual,
realizado e publicado o censo referido na citada determinação constitucional,
até a data de 31 de dezembro de 1998. Requereu a antecipação da tutela.
Alegou, em
suma, que a disposição contida na Constituição do Estado de São Paulo,
obrigando o Estado e os Municípios a realizarem bienalmente o censo de aferição
dos índices de analfabetismo e a sua relação com a universalização do ensino
fundamental nunca foi cumprida, com desrespeito aos direitos fundamentais da
criança e do adolescente a que se referem os arts. 6º
e 205 da Constituição Federal, art. 4º, seu § único, e art. 54 do ECA e ainda o art. 70, IV, da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação. Defendeu a legitimidade do Ministério Público para a demanda e a
competência da Justiça da Infância.
O pedido de
tutela antecipada foi indeferido (fl. 03) e, citada a Fazenda do Estado,
ofereceu a contestação de fl. 188/194, na qual argüiu a incompetência absoluta
da Justiça da Infância e da Juventude e a carência da ação, por falta de
interesse de agir do autor. Quanto ao mérito requereu a improcedência da ação,
com o argumento de que o art. 50 do Ato das Disposições Transitórias, da
Constituição paulista, estipula até o ano 2000 para a realização do censo, que
foi alterado o art. 60 do ADCT da Constituição Federal, criando o FUNDEF e que
o referido censo foi assumido pelo Ministério da Educação, o qual, na portaria
859/97, determinou a realização de apuração de dados pelo Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais, em atenção ao disposto no art. 208, § 3º, da
CF e da LDB. Aduziu que a Secretaria da Educação não está apta a realizar
censos nem tem competência técnica para a execução de tarefa de tamanha
complexidade, como, por exemplo, o IBGE, que realizou censos educacionais em
1991 e 1996, com suas conclusões objeto de análise no relatório expedido pela
Fundação SEAD.
Sobre a
contestação falou o autor (fl. 211/219).
É O
RELATÓRIO.
Inicialmente
foca esclarecido que as ações civis públicas movidas contra a fazenda do
Estado, nas quais este Juízo tem afirmado sua competência, referem-se à defesa
dos direitos coletivos e difusos da infância e da juventude a que aludem os arts. 148, IV e 208 da lei 8.069/90 (ECA), com a
competência regulada pelo art. 209 do mesmo Estatuto: a) nos casos em que é
possível ser identificado o território, ou local, em que ocorreu ou ocorrerá a ação ou omissão que constitui o fato e o fundamento
jurídico do pedido, dentro do território do Foro Regional XI-Pinheiros;
b) bem assim naquelas hipóteses em que a ação ou omissão não é localizada em um
território de competência específica de um determinado Juízo da Infância e da
Juventude, mas abrange toda a Capital ou todo o território do Estado de São
Paulo, este representado pelo Exmo. Governador do Estado, cujo Governo tem sede
no Palácio dos Bandeirantes, situado na área do Foro Regional XI-Pinheiros.
Está
consolidado o atendimento de que as causas previstas no art. 208 do ECA, e respectivo § único, que visam a defesa dos
direitos a que alude o art. 3º, são de competência material da Vara da Infância
e da Juventude (STJ, R. Esp. 135.695/MG; 122.387/RJ;
67.647/RJ), ainda que figure no pólo passivo a Fazenda do Estado, ou outra
pessoa, porquanto se cuida de competência material regulada por lei federal,
que prevalece sobre a lei de organização judiciária do estado (JTJ 198/34; Ap.
Cível 41.630.0/5-00).
Assim, na
defesa dos direitos que têm as crianças e os adolescentes ao desenvolvimento
físico, mental, espiritual e social, na defesa de seus direitos à vida,
à incolumidade física e psíquica, à preservação de sua estabilidade emocional,
na defesa de seus direitos de pessoa humana e de cidadão (art. 227 da CF e arts. 3º, 7º, etc, do ECA), é da competência das Varas da
Infância e da Juventude conhecer e julgar as demandas ajuizadas pelos
legitimados do art. 210 do Estatuto, em juízo especializado (arts. 145 e 146) que sobrepuja a competência organizada em
razão da pessoa. Em se tratando de direito individual, a competência
territorial é regulada no art. 147 do ECA.
Já nas
hipóteses em que a demanda se dirige contra um ato omissivo ou comissivo,
sempre na defesa dos direitos difusos e coletivos já elencados,
competente é a Vara da Infância em cujo território aconteceu ou acontecerá a
violação do direito a ser protegido (art. 209 do ECA),
ressalvadas apenas as competências da Justiça Federal e dos Tribunais
Superiores.
Nos feitos
em que essa defesa é dirigida contra uma ação ou omissão que abrange o
território de mais de um foro, em que
ocorre o fenômeno da ultraterritorialidade do ato,
quando a ação ou omissão acontece em relação a mais de um Juízo da Infância e
da Juventude da Capital, ou que abrange todo o território do Estado de São
Paulo, a distribuição de tal competência não é expressamente disciplinada em
lei ou norma específica, prevalecendo assim aquela
genérica do art. 94 do CPC, ou seja, é competente o Juízo da Infância e da
Juventude da Comarca de domicílio do réu. E quando é parte passiva a Fazenda do
Estado, o Foro competente é o da Capital, onde tem sede o Governo do Estado
(art. 6º da Constituição do Estado). E no âmbito do território do município da
Capital, competente é o Juízo do Foro Regional onde é situado o Governo do
Estado, no Palácio dos Bandeirantes, ou seja, no Foro Regional de Pinheiros.
Quanto à
suposta falta de interesse de agir do Ministério Público, referida a fl. 190,
fica afastada, porque, já ultrapassado o prazo ali referido, 31/12/98, é certo
que a providência reclamada nesta demanda não foi realizada, com a elaboração
do censo a que alude o art. 50 do ADCT da Constituição do Estado de São Paulo,
que assim está redigido:
Até o ano de 2000, bienalmente, o Estado e
os Municípios promoverão e publicarão censos que aferirão os índices de
analfabetismo e sua relação com a universalização do ensino fundamental, de
conformidade com o preceito estabelecido no art. 60, do Ato das Disposições
Transitórias da Constituição Federal.
Este o
dever que o legislador Constituinte impôs à administração pública do Estado de
São Paulo, na defesa de um dos fundamentais direitos da pessoa humana, que é o
de ser educada e instruída pelo Estado, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho
(cf. arts. 6º e 205 da Constituição Federal).
Determinou
a Constituição paulista, à época de sua promulgação em 5 de outubro de 1989,
que fosse bienalmente realizado o levantamento censitário dos índices de
analfabetismo e da relação entre tais índices com a universalização do ensino
fundamental, para os fins do art. 60 do ADCT da Constituição Federal, que por
sua vez era assim redigido até o advento da EC 14/96:
Nos dez primeiros anos da
promulgação da Constituição, o Poder Público desenvolverá esforços, com a
mobilização de todos os setores organizados da sociedade e com a aplicação de,
pelo menos, cinqüenta por cento dos recursos a que se refere o art. 212 da
Constituição, para eliminar o analfabetismo e universalizar o ensino
fundamental.
Em 1996
foi alterada a redação do mesmo art. 60 da CF, que em seu § 1º previu a criação
do FUNDEF - Fundo de manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de
Valorização do Magistério, destinado
exclusivamente à manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental (cf. caput, § 2º, § 5º).
Continua o
art. 60 da CF tratar do mesmo objeto, do ensino fundamental, com a mesma
finalidade, a erradicação do analfabetismo e o desenvolvimento da instrução
destinada aos alunos de 1ª à 4ª séries:
Nos dez primeiros anos da
promulgação desta Emenda, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
destinarão não menos de sessenta por cento dos recursos a que se refere o caput do art. 212 da Constituição
Federal, à manutenção e ao desenvolvimento do ensino fundamental, com o
objetivo de assegurar a universalização de seu atendimento e a remuneração
condigna do magistério.
Em suma,
embora alterada a redação do art. 60 do ADCT da Constituição Federal, em nada
foi modificado o seu sentido teleológico, apenas tratando de instrumentalizar o Poder Público federal,
municipal e estadual com recursos necessários à manutenção e desenvolvimento do
ensino fundamental em todas as esferas da administração pública, com a criação
do FUNDEF e distribuição eqüitativa de tais recursos segundo o
contingente de alunos matriculados nas respectivas redes de ensino fundamental
(§ 2º).
Remanesce
íntegra, portanto, a determinação do art. 50 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado de São Paulo,
inteiramente recepcionada pela Emenda Constitucional 14/96 à Constituição
Federal.
Não se pode
aceitar o argumento segundo o qual o Ministério da Educação e Cultura (MEC)
aproveita os dados de pesquisas, estatísticas e levantamentos realizados pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, para finalidade diversa
daquela referida no mandamento da Constituição paulista. A indigitada Portaria
859/97, do MEC, transcrita a fl. 191/192, alude a coeficientes para a distribuição dos recursos do Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, para
a distribuição dos recursos recolhidos ao FUNDEF, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios. Não trata de censo para a verificação da quantidade
de analfabetos, de excluídos do ensino fundamental, da progressão dos alunos
inseridos na rede mantida pelo Governo do Estado e a relação com a
universalização do ensino fundamental público e privado.
Também não
é aceito o argumento de que a administração pública estadual
ou a Secretaria Estadual de Educação não são aparelhados para a
realização e “execução de tarefa de tamanha complexidade” (fl. 192).
Para a
execução desse importantíssimo levantamento, determinado da
Constituição do Estado, existem órgãos públicos e particulares aptos,
que poderão ser contratados, com ou sem licitação conforme o caso, pelo Governo
do Estado.
Passados os
dez primeiros anos sem que nenhum levantamento fosse feito, pois a respeito não
existe notícia nos autos, já é tempo de ser elaborado o primeiro, antes da
chegada do ano 2000 a que alude o mesmo art. 50 do ADCT da Constituição
paulista.
Ante o
exposto JULGO PROCEDENTE a presente ação movida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO contra a FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO,
para condenar a ré ao cumprimento da obrigação de fazer contida no art. 50 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado de
São Paulo, promovendo e publicando censos que aferirão os índices de
analfabetismo e sua relação com a universalização do ensino fundamental, até o
dia 31 de dezembro de 1999. Custas e despesas pelo Estado.
Decorrido o prazo para os recursos voluntários, com ou sem interposição deles, remetam-se os autos ao Egrégio Tribunal de Justiça, para o reexame necessário pela Colenda Câmara Especial.
P.R.I.
São Paulo, 07 de maio de 1999.
Rodrigo Lobato Junqueira Enout
Juiz de Direito