PEQUENOS APRENDIZES DESCOBREM NA SALA DE AULA A ARCA DO TESOURO

 

 

 

Tudo começa ali, naquele espaço que parece enorme quando somos crianças, decorado com murais de nossos desenhos e garranchos de textos guardados como relíquia quando nos tornamos adultos. Da infância até o final da adolescência, a sala de aula é nosso segundo lar. É lá que nossa personalidade se delineia, nossa visão de mundo se amplia e nosso destino como pessoas e profissionais começa a ser selado. Na interação com os colegas de classe, na orientação e no exemplo do professor, no conhecimento que sugamos dos livros. É também na sala de aula que se forja uma economia competitiva e uma sociedade mais justa.

 

No Brasil, entre 10% e 35% dos alunos de primeira e quarta série do ensino fundamental continuam sem saber ler e escrever depois de três anos na escola. Fruto óbvio da inadequação do ensino, o analfabetismo pune as crianças brasileiras com o difícil recomeço todos os anos, o complexo de inferioridade e a insegurança em relação a suas capacidades. Adotado como política pública pelo estado de Goiás há dois anos, o programa de alfabetização Se Liga Goiás tem devolvido a milhares de crianças das quatro primeiras séries do ensino fundamental a esperança no futuro. Os alunos são diagnosticados por testes e encaminhados para uma classe especial de no máximo 25 integrantes e professores capacitados para estimulá-los nos avanços e apoiá-los nas dificuldades. O Programa tem a duração de um ano. E, em geral, as crianças não apenas são promovidas, como saltam mais de uma série escolar. O custo de cada aluno é de cerca de  R$86,00 ao ano.

        

O Programa Se Liga Goiás utiliza como referencial o método Dom Bosco. A partir de palavras-chaves e desenhos da vivência e do contexto do aluno, da familiarização com letras e sílabas a cada aula, procura-se incentivar a associação de idéias e o raciocínio, desafiar a elaboração do pensamento e a criatividade da turma. Nas escolas públicas de Goiás, as carteiras estão sempre ocupadas. Há crianças, moradoras das zonas rurais, que encaram até três horas de estrada de barro, dentro de um ônibus, para poder estudar. Esta força de vontade deve-se à crença, outrora perdida, de que são capazes de aprender.  E ninguém poderá mais tirar isso delas. 

 

Se Liga Goiás

Crianças atendidas: 11.434,

Educadores envolvidos: 548

Municípios atingidos: 242

Aliados estratégicos: Governo do Estado de Goiás e Nokia.

 

Se Liga Brasil: (estimativas)

Crianças atendidas: 15.891 crianças

Educadores envolvidos: 759

Municípios atingidos: 25 municípios de 17 estados.

 

       Agora, eu leio até bula de remédio!

 

“Eu bombei três anos a primeira série. Só em 2001, consegui passar para a segunda série. Tenho fé em Deus que eu vou aprender a ler e escrever direitinho, entrar para o programa Acelera, recuperar o que perdi e passar para a quinta série. Eu quero muito me formar, fazer alguma coisa de útil da minha vida para poder cuidar da minha mãe e do meu irmão. Minha mãe largou do meu pai quando eu tinha cinco anos porque ele bebia. Fui morar com meu pai e minha tia num sítio. Vivi quatro anos ajudando meu pai na roça. Todo mundo achava que eu não ia ser nada na vida porque eu caí de bicicleta e bati com a cabeça. Queria estudar, mas a tia dizia que a escola não prestava. Ela nunca tinha ido à escola e achava que não fazia falta. Eu também não tinha registro de nascimento para me matricular na escola.

 

Com nove anos, fui morar com a minha mãe e ela me botou na escola. Só que eu não conseguia aprender e os meninos e meninas gozavam de mim. Eu achava que nunca ia passar de ano porque eu era burro, pelo menos é o que todo mundo dizia. Eu não conseguia nem falar as sílabas. Por exemplo, eu falava nha no lugar de lha. Não conseguia juntar as letras para ler. Não sabia fazer conta de mais, nem de menos, nem de vezes. Os colegas caçoavam de mim, brincavam que eu ia me aposentar na escola.

 

Eu sentia um desgosto... Não gostava de ir para a escola. Ficava na rua e entrava na sala só no final da aula. Fazia bagunça, a professora me botava pra fora e eu ia atrás da janela para copiar a lição no quadro, mesmo sem entender, e mostrar para minha mãe em casa. A escola é muito boa pra vida da gente. Mas só me dei conta disso depois que fui para o Se Liga e aprendi a ler e escrever. Sem estudo não posso conseguir nada e sei que tenho que prestar atenção para aprender. Agora me sinto uma pessoa mais alegre, tenho mais educação e respeito pelos outros. A mãe pede para eu ler meus deveres  e os bilhetinhos da escola. Eu já li um monte de livro. Li um livro de 54 folhas num dia! Agora, eu leio até bula de remédio para minha mãe em casa. Ela está orgulhosa porque eu me desenvolvi mais. No dia do meu aniversário, ela me beijou, me deu almoço, me desejou muitos anos de vida e me deu de presente uma calça amarela que eu uso para ir à igreja e à praça.

 

Eu me vejo mais emocionante, mais vivo. Eu era muito triste porque não sabia nada e achava que a escola não era o meu lugar.  Onde era eu não sabia. Às vezes...pensava em me enfiar debaixo de um carro. Não me sentia à vontade com ninguém na turma. Quando entrei para o Se Liga, as coisas começaram a mudar. A turma hoje tem 14 alunos. Cada um botou um apelido no outro. O meu é Dedémocó porque me acham bochechudo como o Trapalhão. Tem uma menina que se chama Leonora e eu coloquei um apelido nela de cenoura (risos). A gente se sente como irmão na turma. Eu sempre tive vergonha de fazer pergunta para a professora na sala de aula. E a professora também não gostava que a gente interrompesse quando ela estava falando. Agora eu pergunto se está certo, se está errado, como eu tenho que fazer... Tudo sem vergonha. E eu ajudo os outros colegas. A Cenoura sabe menos que eu. Ela não consegue soletrar as palavras e eu vou lá e ajudo. Quem termina os deveres primeiro ajuda o outro. Eu sou o primeiro a terminar e sento na frente da sala. Antes, eu sentava na última cadeira e pensava que não ia dar conta de ser alguma coisa nessa vida. Agora eu acho que eu vou. Quero me formar e ser jogador de futebol que nem o Ronaldinho. Ele não terminou os estudos, mas eu vou terminar.

 

Alegre, alegre de verdade eu nunca vou ser, porque eu perdi uma parte do meu coração depois que meu irmão Edvaldo, de doze anos, morreu de câncer na bexiga. A gente ia à escola juntos e pôs na cabeça que nossa mãe também ia estudar. Mas ela nunca foi à escola. Quando ele morreu, eu não quis mais ir à escola. Eu não tinha força para estudar. Mas ler, escrever eram a melhor coisa que tinha acontecido na minha vida e eu voltei pra escola. O conselho que eu dou para as crianças que têm uma história como a minha é para que elas pensem nos estudos e na vida que elas querem ter no futuro sem se preocupar com o que os outros falam para elas de ruim.

(Emival da Costa Paz, 13 anos, aluno da segunda série do ensino médio do programa Se Liga Goiás, em Goiás Velho).