Maria Stela Santos Graciani[1]
Resumo:
O presente trabalho
busca interpretar, a partir da observação participante, a vivência dos grupos
de meninos(as) na rua e de rua, sem esquecer de suas
relações com o contexto cultural no qual vivem e sobrevivem.
A autora define algumas categorias
básicas de análise, enfocando o “social” onde vivem esses
meninos, a representação que estes fazem do mesmo, a linguagem criada e
recriada por eles e a identidade que é construída a partir da experiência na
rua.
Tentando captar a riqueza do contexto
social no qual vivem e existem os meninos de rua, em sua totalidade, deparamos
com uma dinâmica multifacetada e, dentro desta, com um comportamento social bastante diferenciado, vivo e cheio de contradições.
Buscaremos interpretar, a partir de nossa
observação participante, as descrições acuradas da vivência do grupo de meninos(as) na rua e de rua, sem desprezar ou esquecer logicamente
de suas ligações com o contexto cultural mais amplo onde eles sobrevivem e
subsistem: a construção social de sua identidade.
Para tanto, definiremos alguns categorias básicas de análise que alinhavarão nossa
perspectiva de visão, enfocando fundamentalmente: a totalidade social onde
vivem, a representação que os meninos de rua e na rua fazem da mesma, sua
linguagem criada e recriada e, finalmente, sua identidade constituída a partir
da rua, considerando-as, evidentemente, em suas múltiplas articulações e
inter-relações.
Penetrando no cotidiano da rua, com o
intuito de perceber as múltiplas relações aí existentes e os sujeitos sociais
que nela perambulam, principalmente os meninos de rua, sem perder de vista a
totalidade social, deduz-se que é constituída de práxis social e que no seu
dia-a-dia está prenhe de contradições pertinentes à sociedade capitalista[2]; neste sentido, buscaremos examinar as determinações
sociais mais amplas, em relação à apreensão e ao conhecimento que os meninos de
rua têm do mundo, as regras e os valores que delineiam sua existência, seus
modos de pensar, sentir, agir e ser na construção da dialética da realidade
social.
Cremos ser este um caminho fundamental
para compreender a relação entre o homem e a sociedade, entre o eu e a classe,
entre os meninos na rua e de rua em questão e seu modo de vida, como sujeito
histórico e social dotado de sentidos e potencialidades, que são realizados
através de um processo contraditório de socialização.
Não se pode partir do pressuposto de que
os meninos de rua são parte da totalidade social apenas, pois a própria
totalidade é também ele, enquanto parte desta, e o seu conhecimento da mesma,
assim como o modo pelo qual a realidade abre-se a ele e o modo pelo qual
descobre esta totalidade como sujeito. Acreditamos que cada sujeito inscreve
significados no mundo e vai criando a estrutura significativa da sociedade.
Assim, o próprio corpo do menino de rua
se inscreve na totalidade, como o protótipo da injustiça social; as cicatrizes
internas e as marcas profundas de sua infância roubada aparecem como sinais de
morte na sociedade capitalista dependente, em curso. Desta forna,
eles agem dentro de uma situação dada e situação prática lhe confere
significado e suas contradições geram a sua unidade de expropriação, exploração
e martírio.
Eles têm claro a dureza da vida, porque é na pele e no
estômago vazio que sentem o vácuo da boca oca, sinal faminto de quem busca
alimentos de maneira incomensurável; zonzeira e tontura de quem roda como um
pião em busca de uma fresta ou brecha que sirva de guia ao seu futuro incerto;
o gesto e o olhar simbólico, significando o medo e o terror de transeuntes
culpados, aumentam sua dor, sua revolta, sua pena; estes e outros dados vão
engendrando o seu jeito de ver o mundo, vão conferindo um significado a cada
situação que vivem, passam e sobrevivem reafirmando, conseqüentemente, a
gestação de sua identidade.
As regras e os valores inventados e
criados parecem contra-valores e anti-regras, mas por incrível que pareça
constroem uma lógica perfeita não só pelo conhecimento profundo, embora muitas
vezes em nível ainda inconsciente - no nível do senso comum - que possuem das
maquiavélicas artimanhas produzidas pelo sistema, mas também pelo modo
existencial de conduzir soluções racionais, plenas de criatividade e invenção,
na sua cotidianidade.
Seu modo de pensar, sentir, agir e ser na
realidade social é a própria construção da dialética; ao
mesmo tempo que se configura como corpo dilacerado de um contingente
oprimido, representa a ruptura de um sistema falido, de uma sociedade do devir,
em transformação.
Representação social: dialética da
objetividade/subjetividade
Ao delinear a totalidade social, não poderemos deixar
de introduzir a categoria de representação social[3],
visto que tanto depende do contexto social mais amplo como da história de vida
do próprio sujeito, que ora denominamos meninos de rua e na rua.
A representação social da totalidade, num
primeiro instante, parece desconexa e caótica; com a reflexão vai se clareando
e temos a possibilidade de apreender as leis mais profundas e íntimas que
explicam as relações sociais vividas pelos meninos; é necessário ir além das
aparências, captar a essência do vivido, tentar entender as múltiplas conexões e
relações que fazem parte da totalidade social; é necessário ir fazendo a
mediação parte-todo e todo-parte, juntando o contorno da situação numa dada
realidade social.
Neste sentido, as representações que os
meninos de rua têm de si mesmos, da vida e da sociedade são mediações possíveis
entre seu viver: o desvelamento do próprio real, ou seja, de suas reais
condições históricas.
Os próprios meninos de rua, como sujeitos
históricos, interpretam uma dada situação de acordo com as referências que
adquirem na sua práxis de rua, o que, por certo, não afasta as determinações
sociais que direcionam, de certa forma, o agir individual, seu agir social,
como, por exemplo, a inter-relação como Educador de Rua, que é uma figura
diferenciada no seu relacionamento com o mundo.
Analisar as representações dos meninos de
rua é tentar apreender a expressão social de suas vidas, no sentido de que a
representação é sempre social. Nesse sentido, os vemos como parte de um povo
migrante, estrangeiro em sua própria pátria, expulso do campo, sem terra, sem
moradia, posto à margem da geografia terrestre. O menino sente este
real-abstrato, como se o dia fosse trevas, como se seu corpo fosse ar, conto se
sua vida fosse morte, conto se sua existência fosse idéias, como se sua biografia
fosse a evolução histórica e as condições reais da vida fossem sonho. Sua
representação do mundo é um movimento de confronto entre a objetividade e a
subjetividade da totalidade social em conflito.
Ao captar as representações em suas
raízes de essência, a partir dos fatos concretos, descobre-se um conteúdo
significativo para compreender a realidade social mais ampla. E é neste exato
momento que se consegue visualizar o gemido profundo, ouvir o semblante marcado
de um povo miserável, pisoteado pela injustiça do sistema social, político e
econômico vigente.
São muitas as representações que já temos
analisado[4] em relação à família, à escola, etc. dos
meninos de rua, mas a que mais nos preocupa, como Educador de Rua, é a imagem
que o menino faz de si próprio e de suas histórias, e que acabamos de
superficialmente analisar, sem a intenção de esgotá-la.
A linguagem dos meninos de rua, lado a
lado com a representação, reproduz a visão de mundo que eles possuem, fruto da
própria sobrevivência na sociedade, como função primária da comunicação e do
intercâmbio social e, principalmente, como fator de resistência. Normalmente,
seu código não é o convencional; comunicam-se através de "falas"
criadas que demonstram a rede de relações sociais que eles mantêm entre si e
com o mundo.
Como as representações são entendidas
como construções sociais, ou seja, os meninos de rua constroem a sua linguagem
a partir das situações vitais, ao expressarem-na através da "gíria",
estão também demonstrando as relações sociais mais amplas da qual participam e
pelas quais são determinados. Nesse sentido, as entendemos como constitutivas
da práxis social, o que significa não só compreender o discurso, mas também,
principalmente, as situações que definem o indivíduo que a produz.
Não são raras as
vezes em que nos defrontamos com situações de impacto e impasse, diante da
linguagem simbólica, facial e gestual, expressas nas mais diferentes
circunstâncias do ato educativo com os meninos de rua, principalmente no embate
com o público de rua, com técnicos de instituições totais ou policiais do
aparato repressivo do Estado. Na maioria dos casos não conseguimos entender o
discurso mudo e hermético exposto pelos meninos de rua, na medida em que recuos
e avanços seriam necessários na comunicação-conflito e ficamos estatelados em
pasmo pedagógico. Tem-se muito ainda que aprender com o menino de rua.
Ao analisar o menino de rua, no conjunto
de suas relações sociais, não poderíamos deixar de considerar a questão da
identidade que, ao lado das outras categorias de análise, se constitui como
fundamental para a compreensão de sua vivência social.
Vejamos como se define a identidade do
menino de rua, aceitando que a identidade faz parte de um processo culturalmente
condicionado, constituído pelos dados pessoais do indivíduo, por sua biografia,
pelas categorias e pelos atributos que os outros lhe conferem, pelas
representações e pelos sentimentos que ele adquire a respeito de si próprio na
interação com o meio social, e que é um ponto de intersecção entre este e a
estrutura social.
Se é nas relações sociais que eles adquirem a
identidade, na medida em que, ao se confrontarem com os outros, confrontam-se
com si próprios e nesse sentido são criadas as condições favoráveis para o
desenvolvimento de representações e sentimentos a respeito de si mesmos e do
mundo, a identidade do menino de rua se constitui no conflito. Na medida em que
é no grupo que ele se socializa e reafirma sua identidade e onde ela é reconhecida
e aceita, 6 no grupo também que se individualiza, identificando-se com uns e
diferenciando-se dos outros, a partir de critérios bastante contraditórios que
vão desde a coragem e o sentido de afetividade até atos de maior violência
infra e extra grupo.
E é nesta dinâmica interacional
que o processo diferenciador cria corpo e função, dependendo do tipo de ação
dos meninos, de suas motivações e experiências, que nem sempre têm um caráter
contínuo e permanente, na medida em que o relacionamento pessoal é muito
volátil e muito pouco constante. O que, se pode perceber é que o ambiente
existencial do menino de rua é muito violento; ele sofre permanentemente um
ataque da sociedade em todas as suas dimensões e esta causa uma constituição de
identidade permeada de muitos meandros difíceis de serem explicados a olho nu.
É por essa razão que não podemos
dissociar a análise da identidade do menino de rua da identidade da sociedade,
pois as diferentes configurações de identidade estão internamente relacionadas
com as diversas configurações da ordem social, a partir de situações muito
concretas. Nesse sentido, o contexto histórico e social está intimamente
imbricado com o delineamento da identidade do menino de rua (o modo como pensa,
age, contesta e confronta-se), ou seja, com as várias maneiras e formas de
representar o mundo e a si mesmo. É uma identidade que surge por oposição,
afirma-se na e pela negação e está inteiramente inserida num dada totalidade
social; por esta razão é um fenômeno eminentemente político.
O menino de rua inscreve-se na realidade social como a síntese das condições do sistema social capitalista, na medida em que denuncia as condições de vida da maioria da população brasileira, revela e desvenda as situações objetivas de existência, onde se tece a sua identidade e se capta a semente de uma sociedade em transformação.
Entretanto, o esforço arquilógico
de buscar evidências, que favoreçam o delineamento do espaço constitutivo da
construção da identidade do menino de rua, configura-se como trama complexa de
relações sociais, carece ainda de um caminhar profundo. Caminhemos.
[1] Vice-diretora do Centro de Educação da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo; assessora da vice-reitoria comunitária. Rua
Monte Alegre, 984 – São Paulo - SP - CEP 050144 - Fone: (01 1) 263-0211 - R. 313.
[2] Entenderemos por totalidade um conjunto estruturado e
dialético no qual um fato, qualquer ou uma classe de fatos, ou um conjunto de
fatos podem vir a ser racionalmente compreendidos.
[3] Entendemos por representação social as formas como
internalizamos e assimilados todas as coisas com as quais entramos em contato,
seja com o corpo – relações concretas, vividas -, seja com o pensamento -
relações imaginadas -, as quais aprendemos a significar ou a valorizar.
[4]
Vide Revista da AEC, n º. 62, ano 15,
Out./Dez. 86: Infância, um Direito Roubado.
Como
citar este artigo
GRACIANI, M. S. S. A Construção Social da
Identidade de Meninos(as) de Rua. Rev. Bras. Cresc. Des.
Hum. II(1): São Paulo, 1992.