CRIANÇAS POBRES E FAMÍLIAS EM RISCO: AS ARMADILHAS DE UM DISCURSO
Fúlvia Rosemberg[1]
Doutora em Psicologia Genética.
Resumo:
O argumento que a autora
persegue neste texto é que o imaginário que informa as imagens de pobreza, de
família pobre, é estigmatizante e que parte e redunda, muitas vezes, em
propostas de políticas públicas que reforçam processos de exclusão social.
Mostra que a família pobre é vista como desorganizada e comparada a um modelo
ideal único, tido como adequado de família nuclear completa. Assinala as
repercussões nas políticas sociais levando a propostas e implementação de
políticas especiais para os pobres e não de políticas sociais para todos, em
reconhecimento da cidadania.
Palavras-chave:
crianças pobres,
famílias em risco, diversidade cultural, exclusão social, práticas
discriminatórias, políticas públicas.
Sharon Stephens
representando o Centro Norueguês de Pesquisas sobre a Criança (Norwegian Centre For Child Research), no Fórum Global da Eco-92,
observou, de forma aguda, as imagens de crianças veiculadas pelos discursos
ambientalistas:
"A primeira é uma imagem de crianças saudáveis, inocentes em ambientes bonitos, isto é, a imagem da qualidade de vida que demarcamos para 'nós todos' quando nos engajamos em ações ambientais.
Estas crianças são habitualmente brancas.
A segunda imagem é de massas de crianças famintas, que preenchem o quadro
fotográfico e que destroem o ambiente. Tanto quanto fui capaz de observar,
estas crianças são negras, embora muitas crianças do Terceiro Mundo sejam
asiáticas, e, naturalmente, muitas crianças pobres no mundo sejam brancas.
Existe um componente
inegavelmente racista para ilustrar o 'superpovoamento' - esse excesso de
população que necessita ser reduzido para que 'nossas crianças' tenham a
qualidade de vida representada no primeiro conjunto de imagem"
(STEPHENS, 1992, p. 12).
Neste parágrafo, Sharon Stephens resume as ênfases que orientam discursos, análises
e propostas emitidos por organismos internacionais, intergovernamentais
e, também, nacionais sobre infância e adolescência pobres no Terceiro Mundo em
geral, e no Brasil em particular, e que redundam em processos de
estigmatização. No meu entender, estas ênfases, que são reducionistas, giram em
tomo de dois eixos principais:
1. O subdesenvolvimento é homogeneamente idêntico através dos continentes e dentro de um mesmo continente: a América Latina é homogênea, e seus pobres são iguais.
2. Neste contexto de pobreza,
as famílias pobres praticam excessos que colocam em risco sua prole. Nas
famílias pobres, as mulheres são vistas, antes de tudo, como reprodutoras
descontroladas, que causam a perpetuação da pobreza colocam em risco a ecologia
global.
O argumento que persigo neste texto é que
o imaginário que informa estas imagens de pobreza, de família pobre é
estigmatizante, e que parte e redunda, muitas vezes, em propostas de políticas
públicas excludentes, reforçando processos de exclusão social.
Famílias em situação de
risco
A homogeneização da pobreza evidencia-se,
em sua plenitude, na concepção de família e de família em risco que subjaz à
maioria das análises e propostas para crianças e adolescentes pobres, ou das
chamadas classes populares ou dos chamados setores marginais.
A despeito das boas intenções, de
motivações possivelmente que se originam em sentimento de solidariedade entre o
norte rico e o sul pobre, a abundante e eloqüente produção sobre crianças e
adolescentes em situação de rua, na década de 80, oferece um dos exemplos mais
espetaculares de desconsideração das diversidades culturais, de estigmatização
e culpabilização conseqüente das famílias pobres pelo
destino social de seus filhos e filhas. A partir do texto paradigmático de
TAÇON (1981) que, em 1981, estimava existirem no mundo cem milhões de crianças
de rua (metade dos quais na América Latina) "descendência de milagres
econômicos e tragédias humanas", a criança e o adolescente pobres da
América Latina têm sido sistematicamente associados ao abandono ou patologia
familiar, mesmo que nos parágrafos iniciais ou finais sejam mencionadas as
políticas econômicas, a crise econômica ou a dívida externa. Crianças
abandonadas, crianças que crescem total ou
eventualmente sem apoio parental, crianças filhas de famílias vulneráveis ou em
situação de risco foram e são expressões recorrentemente usadas, que evidenciam
uma concepção subjacente de desorganização da família pobre. Por exemplo, em
sua dissertação de mestrado, Walter Oliveira assim introduz o tema:
"Neste exato momento,
milhões de crianças no Brasil estão vivendo nas ruas e enfrentando grande
sofrimento. Freqüentemente, filhos e filhas de famílias pobres, geralmente
tendo pais dependentes de drogas. Podem ter sido abandonados ou deixado suas
casas por diferentes razões. Nas áreas mais pobres do pais,
como no nordeste, podem ter sido vendidos para prostituição. Também podem ter
sido abusados em suas casas e fugido" (OLIVEIRA, 1986, p. 18).
Em trabalho anterior havia me estendido
na análise de retórica como esta sobre "criança de rua", que vicejou
durante os anos 80, e cujos principais componentes podem ser resumidos nas
estimativas catastróficas, desafiando a qualidade dos discernimentos de seus
produtores e na concepção da inexorabilidade do destino, isto é, que crianças
pobres são inexoravelmente criminosos, se forem homens e prostitutas se forem
mulheres (ROSEMBERG, 1993). Ora, esta retórica sobre crianças pobres - para muitos expressão sinônima a crianças de rua - traz consigo
uma concepção de família que desconsidera formas diversificadas de organização
familiar, de expressões do afeto e do cuidado parental. Apesar dos avanços nas
Constituições de vários países, em se desvencilharem do modelo de família
nuclear completa (por exemplo, a extensão dos direitos da esposa à concubina e
o reconhecimento dos mesmos direitos à prole proveniente ou não de uma relação legal)
as análises e propostas para crianças e adolescentes pobres evidenciam uma
concepção subjacente de família nuclear completa, incorporando um modelo
funcionalista, idealizado, que não se abre à alteridade.
Assim, ainda no final da década de 80,
foi possível identificar que a definição de família proposta por George Murdock, e que vinha sendo usada pela ONU na década de 70,
é aquela que informa análises sobre a família pobre latino-americana a qual,
diante deste parâmetro, será inevitavelmente considerada desorganizada. Para
MURDOCK (1973), "a família é um grupo social caracterizado pela cooperação
econômica, residência comum e reprodução, inclui adultos de ambos os sexos,
pelo menos dois dos quais mantêm relações sexuais aprovados socialmente, com um
ou mais filhos nascidos de tais relações ou que tenham sido adotados por
elas".
Ora, esta tendência à naturalização da
família – que leva à identificação do grupo conjugal como forma básica e
elementar de toda família - tem sido veementemente criticada por sociólogos e
antropólogos que recomendam "dissolver sua [da família] aparência de
naturalidade, percebendo-a como criação humana mutável" (DURHAN, 1983).
Se nas sociedades contemporâneas o modelo
nuclear ou conjugal é predominante,
"o grupo tanto pode extrapolar o modelo,
pela incorporação de parentes ou agregados, quanto nem mesmo realizá-lo, como
no caso de casais sem filhos, irmãos sem pais, ou famílias nas quais um só dos
cônjuges está presente.
Dito de outra forma, pai, mãe e filhos podem ser o exemplo de uma família tão bem quanto uma vasta parentela" (BRUSCHINI, 1990, p. 37).
Antropólogos, sociólogos e psicólogos que
vão a campo para descrever e analisar relações familiares nas classes
populares, vivendo nas periferias urbanas, em favelas ou nas recém-criadas
vilas, fazem uma imagem da centralidade da família na
vida de crianças e adolescentes, mesmo quando o arranjo do grupo familiar não
corresponde ao modelo nuclear.
Dentre alguns destes estudos, mencionarei
o de Jerusa Vieira Gomes, realizado em Vila Helena, na periferia de São Paulo,
habitada por famílias muito pobres, em sua maioria originárias do interior de
Minas Gerais e de estados do Nordeste. Dou a palavra à Jerusa Gomes que assim
descreve estas famílias:
"De fato, a família, na Vila, constitui o eixo da vida de todos: crianças, velhos e adultos. Dela se parte para ela se volta, ou no intervalo de cada atividade específica, no caso das crianças, ou no fim do dia de trabalho, no caso dos adultos. Nestas famílias, à falta do pai, há a mãe, os avós, as tias, os irmãos mais velhos; há falta da mãe - o que é mais raro -, há o pai e/ou todos os já nomeados. Os membros existentes organizam-se de maneira a assegurar a permanência do grupo familiar, o que é comum a todas as camadas sociais. Os casos extremos, que conduzem ao abandono da criança, são em número insignificante. Há sem dúvida aquelas que produziram, não se sabe como (essa é uma gênese ainda a ser estudada), menores que acabam, sobretudo na adolescência e no início da fase adulta, trilhando o caminho da marginalidade e da criminalidade. Contudo, estes são casos isolados, pouco freqüentes e de todos conhecidos: não podem ser generalizados" (GOMES, 1990, p. 5-9).
Do modo como analisa as famílias e suas
relações com as crianças, a pesquisadora evidencia
que, em todas situações, a família não está desorganizada, mas organizada
segundo necessidades e representações que lhes são peculiares.
Muito diferente é a imagem, o tom e as
conclusões de quem analisa os arranjos familiares das famílias as pobres tendo
o modelo nuclear como paradigma de organização e normalidade, como se evidencia
no texto a seguir:
"A ausência da figura paterna resultando em famílias com chefia feminina, assim como a presença de numerosos filhos menores de idade, e onde o espaçamento entre seus nascimentos foi pequeno, são elementos característicos das famílias de alto risco. A esta situação anteriormente descrita, se somam os efeitos do chamado achegamento coabitacional, mediante ao qual a família nuclear se estende através da incorporação à unidade habitacional de parentes não nucleares e/ou de não parentes, situação que tem se mostrado como particularmente perigosa para o bem estar das meninas que vivem nestas condições de promiscuidade. A dinâmica psicossocial que caracteriza a interação da família é também importante para a análise das condições de vida das famílias pobres. Nesta perspectiva, vários estudos fizeram notar que nas famílias imersas na pobreza urbana, predominam os vínculos instáveis e de curta duração, sendo freqüente que o alcoolismo do homem conduza à agressividade e, eventualmente, dissolução do vínculo.
Desta
maneira, ocorre em alguns destes lares, a presença esporádica de diversas
figuras paternais o que conduz à instabilidade afetiva da família e à predominância
de funções exclusivamente de controle e castigo, expressos muitas vezes através
de gritos, insultos e golpes" (PILLOTTI, 1987, p.
9).
Não vou me deter na análise das
particularidades deste texto, como, por exemplo que "nas famílias imersas
na pobreza urbana predominam vínculos instáveis e de curta duração" -
generalização abusiva e que carece de fundamentação empírica. Quero, porém,
destacar que, aqui, o discurso do autor sobre a família pobre provém de outro
imaginário social: a evidência de seu desvio frente a um modelo ideal de
família nuclear.
Ou dito de outro modo, um imaginário
social que estigmatiza a família pobre como desorganizada, pois, poderíamos
dizer, parafraseando Goffman, que as discrepâncias
entre a família virtual (o modelo) e a real constituem
um estigma: a família desorganizada" (MELLO, 1989, p. 64).
O imaginário social subjacente às
análises e propostas de políticas públicas para crianças e adolescentes
enfatizando a situação de risco familiar em que vivem e que, na minha
perspectiva, gera propostas inadequadas, estigmatizando populações pobres,
nutre-se de outras matrizes discursivas diferentes daquelas que mantêm
antropólogos, sociólogos e psicólogos. A categoria descritiva famílias em risco
foi emprestada da epidemiologia e da psiquiatria e transposta para o terreno
das políticas sociais sem uma crítica epistemológica necessária
A tradição psiquiátrica da conceituação
de risco origina-se em Ajuriaguerra, psiquiatra
espanhol que se refugiou na França após a guerra civil. Para Ajuriaguerra, “fator de risco"
seriam "as condições de existência da criança ou de seu ambiente
que comportam um risco de doença mental superior ao que se observa na população
geral" (AJURIAGUERRA, 1973).
Nota-se, portanto, que no contexto de seu
uso em psiquiatria, a noção de fator de risco implica na concepção de doença
mental em confronto com não doença portanto na postulação de um padrão de
normalidade. Mesmo no campo da psiquiatria, Ajuriaguerra
é cauteloso a terminologia que usa, considerando que se trata tão somente de
fatores de risco e não causas de risco. Isto é, as condições de existência da
criança e de seu ambiente, e considerados como fatores de risco, aparecem mais
intensamente associadas às formas várias de doença mental, sem que, portanto,
se tenha a possibilidade de estabelecer uma relação causal entre fatores
associados e incidência da patologia.
Estas duas características apontadas na
conceituação de fatores de risco, em psiquiatria, estão igualmente presentes na
epidemiologia. Assim, Jean Pierre Deschamps, diretor
geral do Centro de Medicina Preventiva de Nancy Vandoeure,
na França, conceitua o fator risco" em
epidemiologia: "Trata-se de descrever uma maior probabilidade de
ocorrências indesejáveis em saúde quando um indivíduo ou grupo é portador de
certas características denominadas indicadores de fisco e cuja lista e
ponderações podem se constituir em grades de risco" (DESCHAMPS, 1985, p.
472).
No início de sua utilização, este
conceito teve por objetivo identificar os grupos mais vulneráveis para aumentar
a disponibilidade de serviços em seu favor. Porém, este conceito, quando
escapuliu do campo da saúde e se estendeu para o campo das relações sociais,
"os riscos colocados em evidência são essencialmente de natureza psicossocial".
Concretamente, a condição de risco tem sido atribuída a "grupos sociais
desvalorizados com o que isto pode comportar de culpabilização,
de estigmatização, de efeito de rotulação" e também com o extremo perigo
de "normatividade cultural", assimilando
risco à diferença, desigualdade à diferença, atribuindo um estatuto científico
à exclusão provocada pelo olhar dos outros. "É a condenação da diferença
que está em jogo", destaca DESCHAMPS (1985, p. 473).
Esta condenação da diferença quando se
analisam as condições de existência das famílias pobres, ou empobrecidas,
decorre da confusão entre fatores associados e fatores de causalidade. Assim,
quando se observa que chefia de domicílio feminina está associada a, por
exemplo, menor rendimento escolar, estabelece-se a
relação causal entre família
"desorganizada" e atenção à criança, ao invés de procurar as
causas, e propor soluções, no nível da instituição escolar, por exemplo, cujo
cotidiano é regido pela suposição de que todas as famílias são nucleares, com
divisão tradicional de papéis sexuais. É a indevida atribuição de causalidade
que pode levar o técnico, por exemplo, a considerar a família extensa como promíscua, e potencialmente
molestadora das meninas,ao invés de analisar as políticas de habitação, quais
os espaços em que esta família extensa vive e quais os refúgios que seus
membros encontram para momentos de intimidade.
Nos últimos séculos, os estudiosos da
família vêm mostrando o quanto o discurso científico tem sido uma força intensa
na normalização da família. ARIÈS (1960) evidenciou, na passagem do Antigo
Regime, a importância do discurso pedagógico para constituição do ideal de
família burguesa moderna centrada na criança; BOULTANSKI (1984) destacou a
importância do discurso da puericultura para o enquadramento das famílias
européias da classe operária nas necessidades de expansão do capitalismo.
DONZELOT (1977) destacou o peso do discurso médico-higienista
e da filantropia no policiamento das pulsões da família européia e COSTA (1979)
assinalou a importância do discurso médico-higienista
na transformação da família patriarcal brasileira BADINTER (1987) mostrou o
papel decisivo da psicologia no geral, e da psicanálise em particular, na
construção da concepção de maternagem científica em
consonância com os ideais de aumento da natalidade após as guerras mundiais.
Todos processos de normalização da família que responderam a projetos sociais,
políticos e econômicos mais amplos. Processos que, ao visarem a normalização das famílias em acordo com padrão único -
considerado o normal, o adequado, o justo - estigmatizaram, violentaram o
diferente.
Neste final de século não estaríamos nós
presenciando o surgimento de um novo discurso – proposto pelos técnicos /
especialistas em políticas sociais - que, em nome da proteção à infância e
adolescência, estaria normatizando, mais uma vez, a
família pobre dos países pobres?
Decorrência
no plano das políticas sociais
O funcionamento cotidiano de programas
para crianças de família "em risco" evidencia a tradução deste
discurso em práticas discriminatórias. Ao estigma de que a família pobre é
descontrolada contrapõem-se práticas de controle da sexualidade, do ócio e da
violência. Por exemplo, não é incomum o controle sistemático da carteira de
trabalho de mães que têm seus filhos em creche como resposta à
suspeita de vagabundagem da mãe pobre (LIMA, 1994).
Porém, observo como impacto mais
insidioso desta concepção de família pobre em risco a própria orientação geral
da política social.
Enquanto baliza ou justificativa para a
ação, este discurso sobre famílias e crianças em risco tem sido associado às
políticas sociais preventivas e de emergência, em detrimento de políticas
sociais para todos como resposta ao reconhecimento da cidadania. Na medida em
que: a pobreza é extensa; na perspectiva estigmatizante, os riscos são
inexoravelmente violentos e os países do Terceiro Mundo, por definição, são
pobres; decorre, então, que as políticas sociais para crianças e famílias
pobres são as chamadas políticas de emergência e a baixo custo, evitando-se que
ocorra o pior: a morte, a criminalidade e a prostituição.
Assim, a partir da década de 70, vive-se
na busca do milagre da multiplicação dos pães, na procura de "soluções
alternativas" para os pobres. Soluções alternativas para a produção de
alimentos, para a geração de renda de famílias pobres. O uso de
"tecnologias apropriadas", de espaços e tempos ociosos, de materiais
de sucata, de para-profissionais, foram e são estratégias recomendadas para
orientar programas de massa a serem usados no Terceiro Mundo, como se a pobreza
nivelasse as fronteiras, igualando as regiões e homogeneizasse as diversas
etnias.
Muitas vezes, inclusive em nome do reforçamento da "proximidade cultural", foram
enfaticamente recomendadas, propostas e implementadas soluções pobres para
crianças e adolescentes pobres. Assim, por exemplo, partindo da observação que
em famílias pobres africanas irmãos (melhor seria dizer irmãs) maiores cuidam
de menores, esta prática, muitas vezes determinada pela falta das alternativas
que são disponíveis para populações de melhor renda, foram formalizadas e
erigidas em "programas alternativos", modelos a serem seguidos no
Terceiro Mundo, não como complemento ao cuidado e educação monitorados por
adultos, mas em sua substituição.
Não é minha intenção, aqui, desconsiderar
a importância da criatividade local na busca de soluções para problemas que a
humanidade enfrenta. Também não pretendo me estender nos efeitos indesejáveis
que muitas destas "soluções alternativas" trazem e têm trazido para
as mulheres, principalmente as pobres, que arcam, através de seu trabalho
complementar e sua sub-remuneração, com os menores investimentos que dão origem
aos programas de baixo custo. Vou deter-me no impacto que possam ter no
processo de exclusão através de um exemplo brasileiro.
Durante os anos 70 e 80, a proposta
dominante em políticas públicas para crianças pré-escolares
pobres emitida por órgãos nacionais e internacionais incorporava o
modelo a baixo custo, que deveria ser implantado por para-profissionais
(geralmente mulheres) ocupando espaços ociosos da comunidade. Por razões
políticas na esfera federal brasileira, o MOBRAL, o MEC e a LBA abraçaram este
modelo e tiveram condições de divulgá-lo nos municípios, expandindo,
sensivelmente, o atendimento ao pré-escolar no país, inclusive nas regiões mais
empobrecidas do nordeste (ROSEMBERG, 1991). Assim, paradoxalmente, a cidade de
Fortaleza, uma das que apresenta piores indicadores educacionais, constitui
também aquela que apresenta melhores taxas de cobertura ao pré-escolar (CAMPOS;
et al., 1993). O paradoxo se desfaz quando percebemos, com espanto, que no
final dos anos 80 no nordeste brasileiro, a pré-escola
estava sendo usada como alternativa mais barata à educação de 1° grau para
crianças pobres, e principalmente negras, tendo entre 7 e 9 anos.
Com efeito, em 1987, encontrei que 28%
das crianças brancas do nordeste freqüentando a pré-escola tinham entre 7 e 9
anos (devendo portanto constitucionalmente freqüentar 1° grau), porcentagem que
sobe para 43% no caso das crianças negras (ROSEMBERG, 1991). Assim, 43% das
crianças negras freqüentando a pré-escola têm entre 7 e 9 anos, situação que
afeta tanto crianças maiores (não lhes dá o direito constitucional de
freqüentar o 1° grau), quanto as menores (as vagas à pré-escola que
constitucionalmente lhes seriam reservadas estão sendo oferecidas às crianças
maiores).
A proposta e a implantação de um sistema
pré-escolar considerado, não como uma resposta ao direito constitucional de
crianças e famílias contarem com apoio de um sistema de educação complementar à
família, mas como medida preventiva, acabaram se apoiando para seu
barateamento, em subordinações de classe, gênero e raça e gerando um processo
de exclusão predominantemente de crianças negras.
Em seu livro 7he Stigma of Poverty,
WAXMAN (1983) adotando uma perspectiva interacionista
na análise da produção da pobreza (isto é, o estigma sobre a pobreza
transforma-se em prática discriminatória e, enquanto prática e representação é
assimilado pela própria pobreza) encontra sempre, como alternativa ao círculo
vicioso, a elaboração e implantação de políticas sociais para todos e não de
políticas especiais para os pobres. Se a proposta de Waxman
merece a adesão, considero que necessita ser complementada. Pesquisadores e
técnicos, quando absorvem e reproduzem sem crítica, concepções estigmatizantes sobre famílias pobres oferecem, pelo menos,
justificativas ou argumentos para a perpetuação de políticas especiais para a
pobreza.
Concluo então, com a pergunta de
DESCHAMPS (1985): Por que, em nome do que, técnicos e pesquisadores estaríamos
correndo o risco de impor "uma normatividade
cultural" às famílias pobres das crianças do Terceiro Mundo?
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Notas
[1] Doutora em Psicologia Genética, professora do Programa
de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC/ São Paulo, integra a
equipe de pesquisa sobre Creches da Fundação Carlos Chagas e vem pesquisando e
publicando temas relacionados às relações de gênero, raça e idade. END: Av. Professor Francisco Morato n°
1565, São Paulo - SP, CEP 05513-100 Fone: (011) 813.45 11 ramal 236.
Fonte
ROSEMBERG, F. Crianças Pobres e Famílias
em Risco: As Armadilhas de um Discurso.