TRABALHO PRECOCE, SAÚDE E DESENVOLVIMENTO

 

 

Apresentação

 

O trabalho infantil não é um problema específico do Brasil. Não é nem sequer um problema exclusivo do Terceiro Mundo. Com diferenças de intensidade e de gravidade, trata-se de um dos problemas que atingem toda a humanidade. E talvez seja justamente essa ubiqüidade que o torna tão difícil de erradicar. Afinal, para muitos parece normal, quase natural, que crianças e jovens trabalhem.

 

E se são pobres, então o trabalho, mesmo na primeira infância, é visto muito mais como solução do que como problema.

 

No entanto, é preciso combatê-lo. Ainda que, muitas vezes, nos deparemos com famílias convencidas de que não só é necessário, como, até desejável que seus filhos ingressem precocemente no mercado de trabalho. Ainda que nos deparemos com uma unanimidade rara, entre empregados e empregadores, em favor dessa prática.

 

E preciso combater o trabalho infantil porque conhecemos suficientemente os danos que ele pode causar. Danos à saúde, ao desenvolvimento afetivo e cognitivo de milhares de crianças que, em função do trabalho, perdem a infância e com ela, a oportunidade de crescer, de aprender e de, pelo menos, sonhar com uma vida melhor.

 

É preciso combater o trabalho infantil porque só assim quebraremos o ciclo vicioso da miséria gerando miséria. Da infelicidade pessoal gerando orgulho (“Eu trabalhei desde os 07 anos, e estou bem...”).

 

Mas combater o trabalho infantil não é uma tarefa para poucos, nem para uma única instituição. É necessário que existam políticas de promoção do indivíduo e de suas famílias, é necessário dar oportunidade real de aprendizado às crianças e jovens, favorecendo seu desenvolvimento e, no momento adequado, preparando-os para o mercado de trabalho.

 

E ainda assim, só teremos sucesso se soubermos travar esse combate em várias frentes: na família, na escola, no trabalho...

 

Portanto, é fundamental que haja um árduo e longo trabalho - não é à toa que usamos o termo combate. O Brasil ainda está longe de ver erradicada a exploração da criança e do adolescente. Temos ainda milhares delas envolvidas nas atividades classificadas como piores formas de trabalho infantil. Mas, com certeza, passos definitivos foram dados na direção almejada. E o Ministério do Trabalho orgulha-se de estar na linha de frente dessa caminhada.

 

Esta cartilha é mais uma contribuição para a luta cotidiana que travamos pela melhoria das condições e das relações de trabalho, pela erradicação do trabalho infantil, pela construção de uma sociedade mais justa. Foi escrita pela Auditora Fiscal do Trabalho, especializada em Medicina do Trabalho, Consuelo Generoso Coelho de Lima, da Subdelegacia do Trabalho de Ribeirão Preto/SF, e ilustrada com fotos do Auditor Fiscal do Trabalho, especializado em Legislação Trabalhista, Sérgio Carvalho de Santana, da Delegacia Regional do Trabalho do Estado do Ceará. E é um reflexo do traba­lho do Ministério do Trabalho e Emprego, no âmbito dos Grupos Especiais de Erradicação do Trabalho Infantil e do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo e Degradante.

 

A eles e a todos que se dedicam à erradicação do trabalho infantil, nossos agradecimentos.

 

Paulo Cristino da Silva

Subdelegado do Trabalho em Ribeirão Preto/SP

 

 

 

Trabalho precoce, Saúde e Desenvolvimento

 

Os Novos papéis do Auditor Fiscal do Trabalho

 

Nessas últimas décadas, o trabalho foi provavelmente um dos aspectos da vida humana que mais sofreram transformações. Enormes contingentes de trabalhadores, no mundo inteiro, perderam seus empregos em conseqüência da extinção de seus cargos e funções. Novos postos de trabalho têm surgido, mas com exigências que poucos preenchem. Além disso, a própria relação de trabalho tem mudado. É, por exemplo, cada vez mais difícil reconhecer quem é o patrão. Empregados de uma empresa trabalham em outra ou outras, convivem com trabalhadores de empresas diferentes, ganhando salários diferentes, em diferentes relações contratuais, mas fazendo as mesmas coisas, nos mesmos lugares.

 

Se em nossa sociedade o trabalho sempre ocupou um lugar central, determinante de outros aspectos da vida, atualmente tem-se tornado uma verdadeira obsessão. Todos se preocupam. Os que têm emprego temem perdê-lo, os que não têm procuram obtê-lo, desesperadamente...

 

Afinal, ter ou não um emprego, um trabalho, é condição de sobrevivência para a maioria das pessoas. Mas não é apenas isso: é condição também para a aceitação dos indivíduos pela sociedade que, muitas vezes, con­funde o que a pessoa faz com o que ela é.

 

Podemos dizer, nesse contexto de transformações, que os auditores fiscais do trabalho estão no “olho do furacão”. Muda o mundo do trabalho, muda o objeto do nosso trabalho, mudam as relações e mudam as exigências que nos são feitas.

 

Ora somos chamados a exercer nosso papel tradicional de agentes do cumprimento da lei, fazendo valer aquilo que já está definido, ora espera-se de nós uma atuação como facilitadores do estabelecimento de novas regras e relações de trabalho, mais condizentes com a “modernidade”.

 

No entanto, independentemente dessas exigências, muitas vezes contraditórias, podemos perceber uma grande transformação no papel social da fiscalização do trabalho.

 

Onde chegaremos é ainda uma incógnita, pois depende de todos nós e de cada um individualmente. Descortina-se, no entanto, a possibilidade real de trabalharmos como agentes de transformação social, buscando nas leis e no apoio de nossos parceiros governamentais e não-governamentais atingir nosso maior objetivo, o de fazer avançar as relações de trabalho, dando ao trabalhador o apoio e a proteção necessários para garantir sua autonomia diante do enorme poder representado pela oferta de emprego; propondo e proporcionando a trabalhadores e empregadores possibilidades de novas organizações e relações contratuais que beneficiem ambas as partes (como no caso dos condomínios de empregadores) e, enfim, atuando na transformação de uma cultura que mistifica o trabalho, atribuindo-lhe propriedades preventivas e curativas de males diversos (desde a marginalidade até as doenças mentais) e que, por isso mesmo, nega a necessidade de investimentos em segurança, em controle de riscos e em limites em seu exercício.

 

 

A Criança e o Trabalho

 

No Brasil, milhares de crianças e adolescentes trabalham. Na maior parte dos casos, o que leva a família a introduzir precocemente o filho no trabalho é a pobreza, a necessidade de complementar a renda familiar e a falta de outras opções para educação e cuidado dos filhos. Existindo ou não essas condições reais, observa­mos que o fato de uma criança trabalhar sequer é questionado, pois está profundamente enraizada em nossa cultura a crença de que é melhor a criança trabalhar do que ficar solta, à toa, distante da vigilância dos adultos.

 

Acredita-se também que quanto mais cedo um indivíduo começa a trabalhar, mais se torna responsável e apto ao trabalho. Assim, além de contribuir para o sustento da família, o trabalho da criança seria um investimento em seu próprio futuro.

 

Muitas pesquisas realizadas em diversos países demonstram a falsidade dessa crença. Num estudo do resultado de 47 pesquisas realizadas no Brasil [1], sobre o tema “Os jovens e o trabalho”, o autor, Cândido Alberto Gomes, expõe as seguintes conclusões:

 

Em termos de localização na estrutura ocupacional, as crianças e os adolescentes tendem a trabalhar elevado número de horas semanais e a perceber baixos salários, poucos dispondo de cobertura previdenciária.

 

Também significativa para nossa discussão é a impressão de Cândido Alberto Gomes a respeito dos resultados dessas pesquisas e de outras realizadas em outros países.

 

Apesar das disparidades contextuais, as pesquisas relatam dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, destinação dos jovens às piores posições, elevada incidência de desemprego e emprego intermitente, más condições de trabalho, baixo grau de satisfação com as tarefas executadas, baixa remuneração e longa jornada. A convergência das constatações sugere que os jovens são submetidos a uma espécie de rito de passagem, tanto mais penoso quanto mais cedo ingressam no trabalho (grifos nossos). Considerados, aparentemente, trabalhadores de última classe, os jovens e, particularmente, as crianças são com freqüência explorados em atividades que exigem baixo nível de qualificação ou nenhuma qualificação, de caráter lícito ou não.

 

O autor apresenta ainda outra conclusão muito significativa para o tema:

 

Como ao pior começo tende a corresponder um fôlego limitado da carreira profissional, vemos que grande parte de nossa população economicamente ativa tem seu status de destino fortemente atrelado ao seu status de origem.

 

Mesmo com todas essas evidências, presentes não apenas nas pesquisas, mas também à nossa volta, a crença no poder formador do trabalho persiste tão fortemente que, ao nos depararmos com uma situação concreta de trabalho infantil e atuarmos no sentido de erradicá-la, passamos ao papel de “vilões”, pois, nesse momento, concordam patrões e famílias dos trabalhadores que é melhor a criança estar trabalhando do que nas ruas.

 

Nenhum de nós está imune a tamanha unanimidade. Mesmo que tenhamos a postura de buscar sem­pre a melhor solução para cada caso, nos perguntamos:

 

Será que agimos corretamente? Infância e trabalho são incompatíveis?

 

 

Conhecendo melhor a Criança

 

Para nossa cultura, a criança é o símbolo do futuro, do porvir. Nem sempre é fácil compreendê-la. Nossa representação de infância e de criança veio mudando lentamente, ao longo do tempo. Até o século XIX, não se reconhecia uma particularidade no modo de a criança pensar e compreender o mundo, os acontecimentos e as experiências vivenciadas. Passada a fase de bebê, de total dependência, a criança começava a ser vista quase como um adulto em miniatura. Dela se esperava que crescesse e aprendesse o que fosse necessário. A educação era quase um adestramento: valorizava-se a submissão, a docilidade e a simples absorção do que era ensinado.

 

No século XX, essa visão sofreu grandes abalos. Nunca antes se estudou e pesquisou tanto sobre o desenvolvimento psicofisiológico do ser humano. Finalmente, a infância recebeu um status diferenciado, uma identidade própria. Entre os muitos estudos em diversos campos do conhecimento que permitiram o estabelecimento de uma nova visão da infância, destacamos as contribuições de Freud e Piaget.

 

Esses estudiosos, partindo de observações e de interesses diferentes, demonstraram que, ao nascimento, herdamos o aparato biológico que seria a base, a condição tanto para o desenvolvimento psíquico (afetivo) quanto para a aquisição de habilidades e conhecimentos (cognitivo). E, até por necessitar dessa base corporal, o desenvolvimento da criança ocorre em etapas ou estágios, acompanhando a maturação e desenvolvi­mento do aparelho neurofisiológico.

 

É importante salientar que, respeitando as diferenças entre o modelo freudiano e o modelo piagetiano, tanto o desenvolvimento psicológico normal, para o primeiro, quanto a aquisição de habilidades e conhecimentos, para o segundo, ocorrem como potencial, mas se realizarão na interação da criança com o outro e com o mundo.

 

Partindo dessa compreensão, torna-se necessário pensar sobre os efeitos do trabalho em um ser em desenvolvimento de maneira diferente da forma como pensamos em relação aos adultos. Embora a segurança seja muito importante, ao analisar a criança no trabalho não podemos nos ater à observação e listagem de possíveis danos à saúde e ao desenvolvimento físico que ela poderia sofrer pelo contato com substâncias tóxicas, com equipamentos e instrumentos projetados para adultos, pela permanência em posturas viciosas e por outros fatores de risco. É preciso pensar também (e principalmente) em como trabalhar, estar inserido precocemente no mundo trabalho, pode afetar a construção de um indivíduo que se quer saudável e produtivo.

 

Para isso, é fundamental a compreensão do conflito interno, vivido pela criança, entre a realização de seus desejos e impulsos ilimitados e as regras e necessidades do convívio social. Segundo Freud, esse conflito perma­nente vai sendo “elaborado” em diversas etapas ou fases, na primeira infância, até a solução do chamado “Complexo de Édipo” [2], em torno dos 5-7 anos de idade. Fazendo uma redução e simplificação, dentro de nossos objetivos, podemos dizer que, caso as vivências, as relações do bebê com a mãe (ou substituto) e com o ambiente tenham proporcionado um desenvolvimento satisfatório, ao encerrar-se a etapa edípica a criança terá formado seus modelos de homem, de mulher e de amor.

 

E esse modelo de amor será retomado na adolescência, em busca de uma nova organização da energia que mobilizamos para atender aos nossos desejos e necessidades - a libido.

 

A última etapa de organização da libido, ainda segundo a psicanálise, em que pese a determinação das fases anteriores, vai proporcionar o estabelecimento de uma sexualidade adulta saudável. Diz-se que Freud, quando questionado sobre sua definição de um adulto normal, teria respondido: “É o homem capaz de amar e trabalhar”.

 

Assim, o desenvolvimento psicossexual normal, que tem como resultado um “homem capaz de amar e trabalhar”, tem como núcleo básico a resolução do conflito edípico, também chamado por Freud de complexo nuclear, por constituir o ponto central da organização afetiva dentro do modelo psicanalítico. Em outras palavras, é preciso que haja um equilíbrio entre o atendimento aos desejos e necessidades infantis e a castração - a interdição à realização desses desejos quando representam um risco à sobrevivência ou ao bem-estar ou, ainda, quando ferem as regras e valores fundamentais da cultura em que o indivíduo está inserido.

 

No ambiente familiar, que ora pende para um lado, ora para outro, em geral, com alguns percalços, esse equilíbrio vai se estabelecendo ou, pelo menos, pode se estabelecer. Mas e no trabalho?

 

 

O mundo do Trabalho

 

O mundo do trabalho é caracterizado por uma organização específica, na qual regras e hierarquias são extremamente rígidas; na qual há uma “pobreza” afetiva e as relações se estabelecem entre o impessoal e o desumano. Nesse mundo, imperam os valores da produtividade e da submissão, e as pessoas são constantemente avaliadas por essas medidas, não interessando seus limites, seus problemas nem suas potencialidades. Podemos dizer, portanto, que no mundo do trabalho há um predomínio absoluto, quase a personificação da esfera da castração.

 

Muitas vezes, mesmo para adultos, o constante renunciar aos próprios desejos e interesses pode tornar-se insuportável. Imagine-se para a criança ou o adolescente, que sequer dispõem de uma maturidade ou de recursos advindos da elaboração e solução de conflitos internos, no nível simbólico.

 

Obrigado a atender às exigências do trabalho, exposto precocemente a um ambiente extremamente castrador, o indivíduo em desenvolvimento pode construir uma auto-imagem na qual predomina seu desvalor. Passa a se ver como errado, incapaz ou indigno. Suas vivências na família, na escola e em outras esferas podem confirmar essa auto-imagem negativa.

 

O fato de trabalhar e ter de submeter-se a essa organização inibe seus anseios naturais de brincar e expressar seus desejos e interesses. Como o brincar desempenha na infância um papel muito maior do que proporcionar prazer e diversão, fornecendo a oportunidade para que a criança reviva, entenda e assimile os mais diversos modelos e conteúdos das relações afetivas e cognitivas, além do desenvolvimento de habilidades motoras, pode ocorrer um empobrecimento em sua capacidade de expressão e de compreensão.

 

Esse processo, aliado ao prosaico, mas esmagador cansaço físico, pode determinar um baixo rendimento escolar ou dificuldades de aprendizagem. Está então fechado um ciclo vicioso no qual o trabalho precoce atua como determinante de uma auto-imagem negativa e as dificuldades impostas por esse fenômeno confirmam a percepção negativa do sujeito de si mesmo.

 

É óbvio o sofrimento advindo dessa situação. Em algum momento, esse indivíduo precisará encontrar algo que lhe traga alívio, um lenitivo para sua angústia. Dependendo das “oportunidades” que a vida lhe oferecer, esse alívio pode ser encontrado nas drogas (legais e ilegais) ou na negação dos valores da sociedade que o rejeita e discrimina.

 

Não é incomum também o desenvolvimento de um comportamento que alterna a extrema submissão no trabalho ou diante daqueles que acredita possuidores de poder de punição e a violência diante dos que considera mais fracos (filhos, por exemplo). Longe de internalizar as regras do convívio social, esse indivíduo pode apenas temê-las. Percebe-as como algo externo a si mesmo e, tendo oportunidade, irá desrespeitá-las, até para assegurar-se de que pode rejeitar os que o rejeitam.

 

 

A Escola: uma chance na vida

 

Lugar de criança é na escola! A escola, ou melhor, a educação tem sido apresentada como solução para o problema. Se se quer dar uma verdadeira oportunidade de crescimento e desenvolvimento a uma criança em situação de risco, pela pobreza, abandono ou discriminação, proporcionar seu acesso à escola (em vez do trabalho) é, no mínimo, oferecer-lhe uma chance na vida.

 

No entanto, experiências internacionais, em diversas comunidades atingidas pela miséria, pela guerra, adversidades climáticas e outras situações difíceis, têm demonstrado que simplesmente colocar a criança em uma escola pode não ajudar sua família a superar os problemas econômicos.

 

Baseada em longa experiência internacional, a organização Save the Children [3], que toma como base para sua atuação os princípios da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, assim expõe o problema:

 

“O tipo de educação que muitas crianças recebem atualmente ensina apenas um conjunto estático de dados que talvez não sejam relevantes quer agora, quer mais tarde na sua vida. Onde este continua a ser o caso, freqüentar uma escola não é, em si, garantia de uma melhor oportunidade na vida. Para cumprir a sua função em sociedades complexas, os sistemas escolares precisam ser muito mais sensíveis para com as realidades locais, para com uma época de muita mudança e, sobretudo, para com o que as crianças estão experimentando”.

 

E conclui:

 

“Quer estejamos preocupados com a experiência da criança individual, quer com a da sociedade como um todo, a qualidade da experiência pedagógica é de importância crucial. O tipo de educação que estimula o desenvolvimento global das crianças como seres humanos é também o tipo de educação que lhes vai dar uma melhor oportunidade na vida, e que é provável que contribua para o desenvolvimento da sociedade. Quando as escolas são lugares opressivos chatos ou negligentes, nem as crianças nem a sociedade são melhoradas pelo fato de as crianças lá estarem. Mas quando elas realizam seu potencial, podem ser agentes poderosos para o bem”.

 

Quanto à relação da criança com o trabalho e a escola, a Save the Children apresenta a seguinte conclusão:

 

“[...] ao examinar a questão da escolarização para as crianças que têm de trabalhar para ajudar a sustentar as suas famílias, precisamos considerar não apenas o direito da criança à educação (Art. 28) e à proteção contra a exploração (Art.32), mas também à sobrevivência (Art. 6) e um padrão decente de vida (Art. 27)” [4].

 

Embora pareça fora do alcance de nossa atuação, essa discussão precisa ser feita, para que possamos realizar o potencial da estrutura montada dentro do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), para o combate ao trabalho infantil.

 

É claro que não se espera que cada Auditor Fiscal do Trabalho, ao se deparar com situações concretas de trabalho infantil ou trabalho de adolescentes fora dos parâmetros legais, além de tomar as providências preconizadas pela legislação, acompanhe a resolução do problema até suas conseqüências mais remotas. No entanto, se nos limitarmos a retirar as crianças e adolescentes do trabalho, poderemos estar simplesmente transferindo o problema para outras instâncias ou mesmo criando novos problemas. Por isso mesmo, nesses casos devem ser acionados os Grupos Especiais de Combate ao Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente (GECTIPAs), que têm disponibilidade para aprofundar a discussão e fazer a articulação necessária com outras esferas do governo e da sociedade, no sentido de buscar soluções verdadeiras.

 

 

A Aprendizagem Profissional

 

Se, no caso da criança, está claro que o trabalho precoce compromete seu desenvolvimento físico e mental, para o adolescente a questão é mais nebulosa.

 

Os primeiros limites a serem observados são os impostos pela lei: 14 anos para os jovens na condição de aprendizes, 16 anos para o trabalho em geral e 18 anos para o trabalho perigoso, insalubre, penoso ou que possa expor o jovem a danos morais.

 

Nos países industrializados e nas camadas mais favorecidas dos países pobres, temos observado um adiamento da entrada no mundo do trabalho. Exigem-se cada vez mais conhecimentos diversificados e treinamentos complexos para a ocupação de postos de trabalho. Sem dúvida, essa oportunidade de formação deveria ser estendida a todos os jovens. Mas, na impossibilidade de uma ampla oferta de ensino acadêmico, a aprendizagem profissional não pode ser descartada, uma vez que fornece uma oportunidade concreta de melhor qualificação e, portanto de ascensão social.

 

Com a mudança da legislação que regulamenta a Aprendizagem Profissional, abre-se a possibilidade de um aumento significativo na oferta dessa modalidade de ensino. Mais uma vez, no entanto, o papel do Auditor Fiscal do Trabalho será decisivo ao diferenciar, na ação fiscal, uma entidade de aprendizagem profissional - na qual o treinamento em serviço é parte de um projeto pedagógico - de uma agência de interposição de uma mão-de-obra fácil e barata, a mera exploração do trabalho de adolescentes.

 

 

Palavras Finais

 

Do exposto, é possível chegar a algumas conclusões. Em primeiro lugar, o mito do trabalho precoce como proteção contra a marginalidade e como formador de indivíduos mais responsáveis e aptos ao trabalho não encontra respaldo na realidade. Provavelmente, o que torna esse mito tão freqüente e duradouro são os grandes interesses daqueles que vêem crianças e adolescentes como mão-de-obra perfeita para serviços que não exigem qualificação, por serem mais dóceis e bara­tos, e pela necessidade das próprias famílias de justificar o trabalho precoce de seus filhos, pois, sem dúvida, sem a crença que o trabalho infantil é um investimento em um futuro melhor, a situação seria ainda mais dolorosa.

 

Em segundo lugar, a erradicação do trabalho infantil tem de estar estreitamente ligada ao acesso à escola. Dentro dessa perspectiva inclui-se o empenho por uma escola que dê uma real oportunidade de desenvolvi­mento tanto para a criança quanto para a sua comunidade.

 

Em terceiro lugar, ainda não podemos prescindir da Aprendizagem Profissional. A limitação de vagas no ensino médio e superior, aliada à exigência de melhor qualificação para ocupação dos novos postos de trabalho, torna a Aprendizagem Profissional uma opção para milhares de jovens que hoje se encontram sem perspectivas de formação ou de trabalho. Além disso, uma introdução assistida no mundo trabalho pode mudar aspectos perversos da divisão de trabalho que tradicionalmente, destina aos jovens as piores tarefas e posições, além de torná-los um dos grupos mais expostos e desprotegidos em relação aos riscos dos ambientes e processos de trabalho, o que é facilitado pela inexperiência e ausência de treinamento e orientação.

 

Por fim, também podemos concluir que, tanto na erradicação do trabalho infantil quanto na proteção ao trabalho do adolescente e na garantia de oportunidades de formação e desenvolvimento para essas crianças e adolescentes, o papel do Auditor Fiscal do Trabalho será de importância fundamental.

 

Vivemos uma transição, uma época marcada por mudanças rápidas e constantes. O perfil do Auditor Fiscal do Trabalho nesse novo contexto ainda está por ser definido. Certamente não faltarão dúvidas e dificuldades nesse caminho. Mas será nosso trabalho, nossa ação cotidiana que construirá esse novo perfil e revelará nosso papel. Que seja no sentido do desenvolvimento das pessoas, das comunidades e do país.

 

 

Riscos à saúde decorrentes da exposição precoce ao trabalho

 

1. Lesões mais comuns e suas causas:

 

1.1. Sistema musculoesquelético

 

O carregamento de peso e a permanência em posturas viciosas provocam deformações, principalmente nos ossos longos e coluna vertebral, prejudicando o crescimento e levando ao aparecimento de dores crônicas e doenças como a cifose juvenil de Scheüermann e a coxa vara do adolescente. Aliados à nutrição deficiente, os esforços excessivos também podem prejudicar a formação e o crescimento da musculatura, levando também a quadros de dor e a doenças das fibras musculares (tendinites, fasciites e outras).

 

 

1.2. Sistema cardiorrespiratório

 

A freqüência respiratória (número de inspirações/expirações por minuto) na criança é muito maior que no adulto. Portanto, a intoxicação por via respiratória ocorre mais rapidamente. Também a freqüência cardíaca é maior na criança. Disso decorre que, para um mesmo esforço, crianças e jovens têm uma necessidade de esforço do coração muito maior que os adultos.

 

 

1.3. Pele

 

Na criança, a camada protetora da pele (queratínica) ainda não está suficientemente desenvolvida. Assim, o contato com ferramentas, superfícies ásperas, produtos cáusticos ou abrasivos, danifica-a mais e com maior facilidade. As pequenas lesões tornam-se excelentes portas de entrada para infecções por microorganismos. Também absorve com mais facilidade os produtos químicos presentes no ambiente.

 

 

1.4. Sistema imunológico

 

A imaturidade do sistema imunológico, associada ao stress e a deficiências nutricionais, reduz a capacidade de defesa do organismo ante as agressões externas, de natureza química ou biológica.

 

 

1.5. Sistema digestivo

 

O sistema digestivo nos seres em desenvolvimento é preparado para a máxima absorção, pelas necessidades do crescimento. Estima-se que no adulto ocorra a absorção de cerca de 5% do chumbo ingerido. Na criança, esse índice é de 50%.

 

 

1.6. Sistema nervoso

 

Os jovens e o sexo feminino têm em sua constituição maior proporção de gorduras que os adultos do sexo masculino. O sistema nervoso tanto o central (cérebro) quanto o periférico (nervos), é constituído de um tecido gorduroso. Assim, os produtos químicos lipossolúveis (que se dissolvem em gorduras), muito comuns nos ambientes de trabalho (hidrocarbonetos aromáticos e alifáticos, por exemplo), serão mais absorvidos e causarão maiores danos pela imaturidade daqueles tecidos.

 

 

Bibliografia

 

FARIA, Mário Parreiras de. Nota Técnica à Portaria MTE/SIT/DSST N0 06 de 18102/2000. Ministério do Trabalho e Emprego, 2000. mimeo.

 

GOMES, Cândido Alberto. O jovem e o desafio do trabalho. São Paulo: EPU, 1990.

 

LA TAILLE, Yves de; OLIVEIRA, Marta Kohl de; DANTAS, Heloysa. Piaget, Vygostsky, Wallon: Teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 1992.

 

MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO! SECRETARIA DE INSPEÇÃO DO TRABALHO. Trabalho precoce: saúde em risco. Brasília, 2000.

 

MOURA, Mauro Azevedo de. Efeitos do trabalho na saúde de crianças e adolescentes. Porto Alegre: Delegacia Regional do Trabalho - DRT/RS.

 

OGADHOH, Kimberley; MOLTENO, Marion. Uma oportunidade na vida; princípios e prática de ensino primário básico para as crianças. London: Save the Children, 1998.

 

PAZ, Maria das Graças T.; TAMAYO, Álvaro, org. Escola, saúde e trabalho: estudos psicológicos. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.

 

RAPPAPORT, Clara Regina; FIORI, Wagner da Rocha; DAVIS, Cláudia. Psicologia do desenvolvimento. São Paulo: EPU, 1981-1982. (v.1, Teorias do Desenvolvimento; conceitos fundamentais, 1981. v. 2, A Infância Inicial; o bebê e sua mãe, 1981. v.3, A Idade Pré-Escolar, 1981. v. 4, A Idade Escolar e a Adolescência, 1982.)

 

 

 

Notas

 

[1] Cândido Alberto Gomes, O jovem e o desafio do trabalho. São Paulo: EPU.

 

[2] Assim denominado em referência à tragédia Édipo Rei de Sófocles, na qual, desconhecendo ser filho do rei Laio, Édipo o mata e casa-se com Jocasta, a rainha, sua mãe. Ao descobrir essa verdade, abandona a família, fura os próprios olhos e retira-se do convívio humano.

 

[3] Kimberley Ogadhoh e Marion Molteno. Uma oportunidade na vida: princípios e prática de ensino primário básico para crianças. London: Save the Children, 1998.

 

[4] Os artigos entre parênteses referem-se à Convenção Internacional dos Direitos da Criança.