ESTUDOS: DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR: DA REINTEGRAÇÃO FAMILIAR À COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA SUBSTITUTA[*]

 

 

Munir Cury

Procurador de Justiça de São Paulo.

 

 

Resumo:1. O princípio da prioridade absoluta. 2. O interesse público e o Direito à Convivência Familiar. 3. A pobreza como desafio ao Direito à Convivência Familiar: perspectivas. 4. A primazia da Família Natural. 5. Família Substituta: a guarda como instrumento de integração com a Família Natural. 6. Família Substituta: desobstruir os canais da adoção. Conclusão.

 

1. O princípio da prioridade absoluta.

 

A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990) lançaram no país sementes de transformação social de grande significado e de longo alcance, exigindo do Estado e da própria comunidade posturas de maturidade e firmeza no enfrentamento da crônica questão de suas crianças e adolescentes. Em conseqüência, uma verdadeira “revoada cívica”[1] vem se irrompendo paulatinamente nas mais variadas esferas da sociedade.

 

Tanto a reintegração familiar quanto a colocação em família substituta se inserem na expressão convivência familiar, direito assegurado à criança e ao adolescente como prioridade absoluta, quer pela Constituição Federal de 1988 (artigo 227), quer pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 4º).

 

Duas reflexões iniciais devem ser objeto de atenção. A primeira dirige-se à expressão prioridade absoluta. Ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleça em seu artigo 4º, § único, quatro hipóteses quanto ao seu significado, certamente o atendimento dos direitos de crianças e adolescentes é uma das áreas mais complexas para se fixar primazia. Principalmente quando a expressão prioridade absoluta vem precedida do advérbio sempre. Será sempre prioridade absoluta a grave questão da educação, considerando que ainda existem em nosso país 2 milhões e 700 mil crianças fora da escola? Ou a busca de alternativas para 40% dos estudantes que abandonam a escola por causa do trabalho?

 

Nesse sentido, de que forma erradicar o trabalho de milhares de crianças, como gesto de adesão à “Marcha Global Contra o Trabalho Infantil” que se iniciou em todo o planeta e se encerrará com a Conferência Mundial da OIT em junho/98 e que debaterá o tema trabalho infantil? Porventura a atenção e a luta das instituições e da sociedade civil organizada devem se dirigir ao combate ao narcotráfico, face ao relatório da Divisão de Repressão de Entorpecentes (DRE) da Polícia Federal indicando que no primeiro trimestre de 1997 a apreensão de cocaína cresceu 40% no país, que passou da condição de importador de maconha à fornecedor para alguns países da América do Sul, e que segundo pesquisas feitas de 1995 a 1996, a parcela mais atingida é a juventude? Ou ainda, é chegada a hora de disciplinar e responsabilizar a escalada de vulgaridade, violência, degradação, perversão, discriminação e erotização desmedida que, a título de entretenimento, a televisão impõe às nossas crianças e adolescentes, violando frontalmente o preceito de que “somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto-juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas” (ECA, artigo 76)?

 

Estejamos atentos, nesse sentido, às conclusões da pesquisa encomendada pelo Ministério da Justiça, divulgada em 03 de setembro de 1997, apontando que 75% da população brasileira deseja o controle da programação de televisão, e que recentes estudos patrocinados pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) indicam que “a TV é o fator singular mais forte no sentido de criar uma cultura global, e a onipresença da violência no meio de comunicação contribui para fazer o mundo mais violento”, a tal ponto que uma pesquisa da Universidade de New South Wales, em Sidney (Austrália), de 1989 a 1994, indica que a televisão pode influenciar o desenvolvimento do feto por meio de emoções que causa na gestante. Exploração sexual de crianças, face às informações da ABRAPIA (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Juventude) de que grande parte das denúncias de abusos são ignoradas. A final, qual é a vertente da infância e da juventude que deve ser considerada prioridade absoluta, face aos deveres atribuídos à família, à sociedade e ao Estado?

 

Por outro lado, o legislador infraconstitucional em boa hora decidiu oferecer uma inestimável ocasião de crescimento à vida democrática do país, ensejando a participação da sociedade civil organizada no destino de suas crianças e adolescentes, e definindo atribuições institucionais de forma clara e precisa. Refiro-me explicitamente aos Conselhos de Direitos, ao Poder Judiciário e ao Ministério Público.

 

2. O interesse público e o direito à convivência familiar.

 

Existe um inegável interesse da comunidade em reanimar e fortalecer os vínculos familiares, nestes tempos abalados por recessão e miséria, além de falsos princípios e tendências permissivas de toda ordem, que acabaram por desestruturar e embaraçar o homem na busca de sua plena realização, pois a família continua sendo sempre o espaço privilegiado, único e insubstituível de socialização, prática de tolerância e divisão de responsabilidades, além de celeiro para o exercício da cidadania, do respeito e dos direitos humanos.

 

É abundante a literatura contemporânea a respeito da importância da família para o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Estuda-se, do ponto de vista biológico, a fragilidade do neonato em relação às demais espécies, o que justifica a necessidade de protegê-lo para que sobreviva. A psicologia demonstra a importância das relações afetivas para a obtenção da saúde mental, e as ciências sociais indicam que a presença de adultos confiáveis e o exercício da autoridade são indispensáveis para assegurar o convívio democrático entre homens e mulheres na sociedade. Já para o Direito, “no que concerne à família, não é principalmente o interesse individual, com as faculdades decorrentes, que se toma em consideração; os direitos, embora reconhecidos e regulados na lei, assumem, na maior parte dos casos, o caráter de deveres.”[2]

 

O consenso a respeito da família como locus privilegiado para o adequado desenvolvimento humano está consagrado em documentos internacionais[3] e, no caso do Brasil, na Constituição Federal[4] e no Estatuto da Criança e do Adolescente[5].

 

É importante considerar que os diplomas mencionados centralizam a questão no direito que a criança tem a ser criada e educada pela sua família e, ao mesmo tempo, referem-se à necessidade de proteger e assistir essa mesma família no adequado exercício de suas funções. Tanto que a Constituição Federal, determina expressamente em seu artigo 226 que “a família, base da sociedade, tem a especial proteção do Estado”. Essa proteção é estendida a formas não tradicionais de família, na medida em que, no § 4º do mesmo artigo, “entende-se, também como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”

 

Cabe-nos, na oportunidade, uma breve consideração, na qualidade de membro de uma instituição incumbida da defesa dos interesses da sociedade. A Constituição Federal proclama a promoção da cidadania e da dignidade da pessoa humana (artigo , II e III), assim como a edificação de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º I), além da erradicação da pobreza e da marginalização (artigo 3º, III), e, consequentemente, estará o Ministério Público “dentre os vários segmentos que compõem o mosaico social, jungido a privilegiar aqueles menos favorecidos, mais carentes de justiça.”[6]

 

O equilíbrio que o Ministério Público tem o dever constitucional de garantir na convivência social, ora representado pela afirmação do Direito à Convivência Familiar assegurado a crianças e adolescentes independentemente de sua origem, nada mais é que a resposta adequada à exigência de cientistas sociais e renomados humanistas de que “se a sociedade é fruto da família que a constrói, sem dúvida também é válido o contrário, ou seja, que a família é o resultado da sociedade que a gera.”[7]

 

3. A pobreza como desafio ao direito à convivência familiar: perspectivas.

 

Com certa freqüência ressoa pelo país a grande falácia de que existem entre nós milhões de crianças abandonadas e que, por tal razão, deveriam ser incentivados programas e campanhas para promover a adoção e outras formas de colocação em família substituta. O que ocorre, na verdade, é uma lamentável confusão conceitual entre abandono e pobreza, uma vez que a imensa maioria das crianças pobres, mesmo as que estão nas ruas ou recolhidas em abrigos, possuem vínculos familiares. Os motivos que as levam a essa situação de risco não é, na maioria das vezes, a rejeição ou a negligência por parte de seus pais, e sim as alternativas de sobrevivência.

 

A título de ilustração, a nível mundial existem cerca de um bilhão e trezentos milhões de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia, sendo que o número de pobres cresce cerca de 25 milhões por ano e aproximadamente um quarto da população do planeta vive na pobreza[8]. No Brasil, o quadro das desigualdades mostra o tamanho do abismo social que fere a dignidade de milhões de cidadãos. Assim é que, 40,4% das crianças e adolescentes de até 14 anos do Nordeste vivem em famílias que ganham até meio salário mínimo mensal per capita. No Maranhão, o indicador de famílias que ganham até meio salário mínimo mensal per capita é de 70,7%; no Piauí, 70,6% das crianças vivem em famílias com essa renda; em Alagoas, o percentual é de 66,4%, e, no Ceará, de 65,9%. No Sudeste, apesar dos bolsões de miséria, a parcela de crianças que vivem nessas condições cai para 26%; em São Paulo, o índice é de 15,8%[9].

 

É diante desse quadro desafiador que o Estatuto da Criança e do Adolescente, prescreve expressamente, em seu artigo 23, que, “A falta ou a carência de recursos materiais, não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do pátrio poder”, estabelecendo várias medidas aplicáveis aos pais ou responsável, entre as quais o “encaminhamento a programa oficial ou comunitário de promoção à família” (artigo 129, 1 e seguintes), para concluir, de forma indiscutível, que, “Toda criança ou adolescente tem direito à ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta...”

 

Enquanto se aguarda a implantação oficial de projetos capazes de superar a miséria que aflige grande parte de nossas famílias, entre as quais bem-sucedidos programas de renda mínima[10], tanto a sociedade civil organizada, quanto o Ministério Público são, sem sombra de dúvidas, importantes lideranças e alavancas no sentido de garantir a permanência de crianças e adolescentes em sua família natural. Mesmo porque, nunca é demais lembrar e até insistir, que somente o fator pobreza é insuficiente para o desligamento dos vínculos ou a perda do pátrio poder, devendo os pais ou responsáveis ser “encaminhados a programa oficial ou comunitário de promoção à família” (ECA, artigos 23, parágrafo único e 129, I).

 

4. A primazia da família natural.

 

A presente exposição pretende apresentar trabalhos desenvolvidos em vários municípios do país, com características populacional diversa, na tentativa de ressaltar a importante liderança da sociedade civil organizada bem como do Ministério Público na efetivação do apoio à família, baseando-se na “Contagem de População de 1996” do I.B.G.E..

 

Até onde me foi possível conhecer, com a participação do Ministério Público, a cidade de Manaus-AM (1.157.357 habitantes), mantém programa de apoio e acompanhamento à famílias atingidas pela pobreza e/ou miséria, objetivando promovê-las e atendê-las nas suas necessidades básicas, mantendo consigo os próprios filhos, e ensejando oportunidades para o crescimento individual e grupal. No Estado de São Paulo, (34.120.886 habitantes), também com a colaboração do Ministério Público, foi implantado o programa “Direito à Convivência Familiar”, pela Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social, apoiado por diversas entidades internacionais inscritas na Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional (CEJAI/SP), sendo que somente uma delas a (AiBi-ASSOCIAZIONE AMICI DEI BAMBINI)[11], assiste diretamente 131 crianças, muitas das quais, desabrigadas e convivendo com as suas famílias de origem.

 

A título de ilustração, ainda a nível internacional, o MOVIMENTO FAMÍLIAS NOVAS[12], implantou 65 projetos distribuídos em 38 países de quatro continentes, acompanhando o crescimento de 9.332 crianças e suas famílias, passando a conhecer a. vida um do outro e desenvolvendo a sensibilidade pela fraternidade universal.

 

Já em território nacional, o FUNDO CRISTÃO PARA CRIANÇAS, com sede em Belo Horizonte (MG), desenvolve um programa de manutenção de crianças em suas famílias biológicas, com o cadastramento de pessoas ou famílias que se disponham a oferecer, juntamente com os recursos financeiros, o calor humano do denominado “apadrinhamento”, isto é, um relacionamento de estreita amizade e promoção do semelhante.

 

Se a comunidade internacional estende as suas mãos às nossas famílias pobres e seus filhos; se existe uma mobilização nacional no sentido de manter “cada criança em sua própria família”, com maior razão, parece-me que cabe também à comunidade local, através de suas naturais lideranças, aliar-se a esse verdadeiro mutirão de solidariedade garantir primeiramente o direito de toda criança ou adolescente ser criado e educado no seio de sua família (ECA, art. 19).

 

 

 

5. Família substituta: a guarda como instrumento de integração com a família natural.

 

Embora institutos jurídicos e, por conseguinte, expressamente previstos na lei, tanto a guarda (ECA, art. 33 e seguintes) quanto a adoção (ECA, art. 39 e seguintes) pressupõem estágios de maturidade emocional, social e política da população, os quais não se implantam instantaneamente. Maturidade emocional, por exigir a plena consciência e o equilíbrio em relação ao ato praticado; maturidade social, por constituir verdadeira resposta ao quadro de angústia e necessidades do qual participamos; maturidade política, por corresponder a uma verdadeira promessa feita perante cada homem, cada família e cada grupo social de construir juntos, o bem-comum. Constituir-se como família substituta exige dos seus correspondentes, requisitos e compromissos mínimos de estabilidade que possibilitem, forjar e orientar o destino da criança ou adolescente a ser acolhido.

 

Seja através da guarda, instrumento ainda não devida e adequadamente utilizado pela comunidade, ou mesmo através da adoção, devem ser difundidos mecanismos já implantados em vários estados da federação, e que viabilizem a garantia do direito à convivência familiar. Mecanismos e experiências que já ultrapassaram as dificuldades naturais de preconceitos e resistências e que se encontram em fase de crescimento.

 

Sabemos que a guarda se destina à prestação de assistência material, moral e educacional, sem que ocorra a destituição do pátrio poder, possibilitando, desta forma, a oportunidade para que os pais superem as dificuldades e, a partir daí, venham a acolher seus filhos.

 

Não se trata, obviamente, de estimular a guarda como se fosse a grande panacéia para as nossas crianças e respectivas famílias, mas de encontrar alternativas locais, saudáveis e humanas, que possam garantir um lar e uma família para cada criança.

 

Nesse sentido, a SOBEM (Sociedade de Bem-Estar do Menor) é uma entidade social sediada em São José dos Campos - SP (486.467 habitantes), criada em 1979 pela iniciativa de um Juiz de Menores, de empresários e outros colaboradores da comunidade local. Tem por objetivo, atender crianças, no regime de guarda, na faixa de 0 a 6 anos, acolhendo-as em lares hospedeiros e dando a elas atendimento especial. É mantida através de convênios com agências governamentais e de recursos obtidos pela própria instituição. Possui em seu quadro funcional, um assistente social e uma psicóloga, além de contar com a colaboração de um grupo de voluntários. As crianças, de ambos os sexos, são encaminhadas pelo Poder Judiciário e já na SOBEM, recebem, atendimento médico, sendo posteriormente apresentadas ao casal hospedeiro previamente cadastrado pela instituição. Admite-se o acolhimento por pessoas soleiras, viúvas ou separadas. Pessoas sozinhas ou casais, procuram voluntariamente a instituição, devendo o assistente social e a psicóloga, realizar a entrevista e a visita domiciliar, para uma avaliação das condições, para o acolhimento. As crianças permanecem com o casal hospedeiro por tempo indeterminado, cabendo ao juiz a decisão pelo retorno à família de origem ou pela Adoção.[13]

 

A título de ilustração da viabilidade da proposta, em abril de 1993, a Fundação “ABRINQ PELOS DIREITOS DA CRIANÇA”, com a colaboração do Instituto de Estudos Especiais da PUC/SP e do Ministério Público do Estado de São Paulo, preparou uma campanha informativa sobre a guarda, desencadeada na cidade de Lorena-SP (76.344 habitantes), onde o Poder Executivo local, aprovara a isenção do IPTU, como subsídio ao programa de guarda, fato que causara grande repercussão nacional. O objetivo da campanha, era melhorar o nível de informação à população, na busca de melhores resultados para implementação de projetos de guarda nos municípios. O Promotor de Justiça local, havia realizado um levantamento inicial junto à rede escolar, constatando a existência de 196 casos de crianças sob guarda informal. Além da regularização da situação de crianças, os trabalhos registraram telefonemas de cidades próximas e até de municípios de outros estados, solicitando, informações a respeito, tornando evidente o interesse de outras comunidades locais, provavelmente dispostas a realizar programas semelhantes.[14]

 

No município de Rio de Janeiro - RJ (5.551.538 habitantes), numa parceria entre Prefeitura Municipal, Conselhos Tutelares e entidades sociais, foi instituído o projeto “FAMÍLIA ACOLHEDORA” que procura, de um lado, sensibilizar a comunidade à responsabilidade pelas suas crianças de 0 à 6 anos, motivando pessoas e casais a acolhê-las através do regime de guarda, treinando-as e capacitando-as previamente, sem relegar o acompanhamento da família biológica, por meio da rede pública e de voluntários identificados como “amigos do projeto” (psicólogos, dentistas, engenheiros, etc.).

 

É conhecido o dever do Ministério Público de fiscalizar entidades de abrigo (ECA, artigos 90 e 95), diligência de fundamental importância para que o representante do Parquet constate se é observada a preservação dos vínculos familiares ou se, esgotadas as possibilidades de manutenção da criança na família de origem, abra-se a ágil, mas prudente e cuidadosa, a perspectiva de integração em família substituta (ECA, artigo 92, I e II). Nessa linha, é oportuno ressaltar o recente “PROGRAMA DE FISCALIZAÇÃO DAS ENTIDADES DE ATENDIMENTO À CRIANÇA E ADOLESCENTE”, desenvolvido pelo Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Infância e da Juventude do Ministério Público do Estado de São Paulo auxiliado por 7 técnicos, objetivando não só aferir as condições de funcionamento recursos humanos, como observar o envolvimento da família no trabalho desenvolvido pela entidade e o processo de desligamento do abrigado, seja no retorno à família de origem como na colocação em família substituta.

 

Ora, tais experiências, desenvolvidas e acompanhadas tecnicamente, não podem permanecer circunscritas a determinadas regiões, mas, ao contrário, atendendo ao fato de que a maior parte delas envolveu a participação do Ministério Público, devem se multiplicar e difundir, respeitadas as peculiaridades locais que possibilitem as sua implantação.

 

“A família, a comunidade e a sociedade civil devem participar amplamente da elaboração de alternativas, priorizando o apoio à família para que esta possa cumprir com sua funções. A família natural ou substituta é sempre melhor do que qualquer instituição de internação. A institucionalização tem historicamente produzido crianças analfabetas e sem perspectivas de vida autônoma. Primo Levi, pensador italiano que passou pela experiência de institucionalização, sintetizou o efeito destrutivo da internação através do conceito do homem vazio: “imagine-se agora um homem ao qual, junto com as pessoas amadas, lhe são levados sua casa, seus hábitos, suas roupas, tudo enfim, literalmente tudo o que possui: será um homem vazio, condenado a sofrimento e necessidade, esquecido da dignidade e discernimento, já que acontece facilmente a quem perdeu tudo de perder-se a si mesmo.”[15]

 

6. Família substituta: desobstruir os canais da adoção.

 

Por último, não tenho dúvidas de que, face às atribuições constitucionais e legais do Ministério Público, a alternativa da colocação em família substituta através da adoção, mereça maior atenção e efetiva postura institucionais, na constante busca da “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (CF, art. 127).

 

Ainda que se argumente que “a atual crise financeira e a preocupação com o desemprego estejam afastando os brasileiros da adoção e, na avaliação dos especialistas, a insegurança diante do futuro, aliada à burocracia, faça os casais adiarem os planos de adoção”[16], é preciso que permaneça vivo o debate sobre a adoção, inclusive para desmistificar e esclarecer pontos agudos, entre os quais a adoção por estrangeiros. Além disso, é urgente a busca de mecanismos que possibilitem a inserção de crianças efetivamente declaradas em estado de abandono em lares que possam garantir o seu completo desenvolvimento. Inúmeras obstruções têm ocorrido nesse hiato entre a carência e o abandono, exigindo a participação direta, profissional e sensível do Ministério Público, no sentido de viabilizar o direito à convivência familiar. Nessa linha, a fiscalização das entidades de abrigo é uma excelente forma estabelecida pelo legislador a fim de avaliar a situação individual e familiar de crianças, cuja integridade e afetividade devem ser reverenciadas pelo agente fiscalizador como um templo sagrado.

 

Centenas de pessoas ou casais brasileiros aguardam durante longos meses ou mesmo anos a satisfação da expectativa de adotar uma criança, enfrentando angústias, preconceitos e traumas de toda ordem, cabendo ao Ministério Público parcela da elevada missão de aliviar tais tensões e conflitos.

 

Ainda que cada comarca ou foro regional deva manter “um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção” (ECA, artigo 50), a criação de cadastro centralizado que sirva de apoio aos respectivos juízes e sem qualquer interferência nas colocações realizadas, “atenderia os sublimes interesses de crianças e adolescentes, evitando sua permanência em entidades de abrigo de forma indefinida.”[17]

 

Cito a iniciativa da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, ao normatizar a adaptação dos cadastros e criar o cadastro centralizado de pessoas interessadas em adoção e de crianças e adolescentes em condições de serem adotadas, através do provimento CG- 12/95, competindo ao Juízo “encaminhar a planilha com os dados colhidos, para futuras consultas dos demais Juízes do Estado”.

 

 

 

Conclusão:

 

Como já ressaltado no início da presente exposição, o Direito à Convivência Familiar, embora incluído entre os fundamentais e básicos para o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente, merece especial atenção de todos quantos almejam e lutam por uma sociedade justa e fraterna. Penso que é da congregação de esforços, militando cada qual na sua área em função desse objetivo comum, despojados de qualquer vaidade ou corporativismo, que os tempos serão abreviados e verdadeiramente vicejará a democracia participativa. E daí a sociedade justa e fraterna. Depende de cada um essencialmente. Atribui-se a Dom Helder Câmara o pensamento Quando sonhamos sozinhos, é um mero sonho; quando sonhamos juntos, é o princípio da realidade. Sonhemos e trabalhemos juntos. A realidade já está em nós e entre nós.

 

 

[*] Palestra proferida no XI Encontro Estadual da Associação de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância, Juventude e Família do Estado do Paraná, realizado em maio/98.

 

 

NOTAS:

 

[1] Expressão utilizada pelo relator Senador RONAN TITO, na justificativa do Projeto de Lei n’ 193 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

 

[2] Cf; ESPINOLA, A família no Direito Civil Brasileiro, Rio de Janeiro, nº 3.

 

[3]Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (20.11.89), artigos 50 e 70.

 

[4]Constituição Federal, artigo 227.

 

[5] Estatuto da Criança e do Adolescente, artigos 19 e seguintes.

 

[6] Cf. ANTONIO AUGUSTO MELLO DE CAMARGO FERRAZ, Ministério Publico e Afirmação da Cidadania.

 

[7] Cf. CHIARA LUBISCH, discurso de abertura do Congresso “A Família e o Amor”, Roma, 3 de maio de 1981.

 

[8] Elementos coligidos no estudo do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). divulgado em 16 de Outubro de 1997, por ocasião do Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza.

 

[9] “Dados de até 1995, obtidos no estudo patrocinado pelo IBGE e UNICEF, denominadoIndicadores Sobre Crianças e Adolescentes”, divulgado em Novembro de 1997.

 

[10] O Os programas de renda mínima não constituem uma inovação na história da humanidade, sendo que o primeiro que se tem notícia, foi implantado pela cidade belga de Bruges, por conta da inspiração de Thomas More, em 1526. Boa parte dos países europeus possuem algum tipo de programa de renda mínima; a França aderiu ao programa em 1988; na Espanha, embora não exista um programa nacio­nal, algumas cidades garantem uma renda mínima. Nos Estados Unidos, foi criado em 1975, pelo presidente republicano Gerald Ford, atingindo atualmente 20 milhões de famílias. Os programas de renda mínima mais sólidos no nosso país estão sendo desenvolvido no Distrito Federal, em Campinas e Ribeirão Preto (SP).

 

[11] AiBi - Associazone Amíci Dei Bambini, sediada em Melegnano, à Via Giacomo Frassi, n° 19.

 

[12] Movimento Famílias Novas, sediado em Grottaferrata, Roma, Itália, à Via Isonzo, n64.

 

[13] Guarda Familiar - Desafios e Propostas, IEE (Instituto de Estudos Especiais) da PUC/SP, ADOLFO IGNACIO CALDERÓN, ISA MARIA FERREIRA DA ROSA GUARÁ E MARIA DO CARMO BRANT Ë’CARVALHO,p.39.

 

[14] Idem, p.40.

 

[15]Cf. CENISE MONTE VICENTE, O Direito à Convivência Familiar e Comunitária. uma política de manutenção do vínculo, In: Família brasileira – a base de tudo, Cortez Editora, p. 47.

 

[16] Cf Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 17 de novembro de 1997, 3° Caderno, p. 1.

 

[17] Despacho do ilustre magistrado CARLOS EDUARDO PACCHI, no processo n° 96.114/92, da comarca de Osasco a respeito da instalação do cadastro centralizado no estado de São Paulo.