EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTO-JUVENIL: A
RESPONSABILIDADE DOS PAIS DAS CRIANÇAS MUTILADAS EM ABAETETUBA-PARÁ
Leane Barros Fiuza de Mello
Chermont
A conduta dos pais que submetem os seus filhos a trabalhos extremamente penosos e perigosos afronta o preceito contido no Art. 227 da Constituição Federal, configurando manifesta violação de direitos consagrados no Estatuto da Criança e do Adolescente.
O argumento de que a mão-de-obra infanto-juvenil é imprescindível, muitas das vezes, à sobrevivência da própria família, não pode ser acatado como escusa da responsabilidade dos pais, sobretudo em casos de atividades que, além de exigir desmesurado esforço físico, ainda implicam risco concreto à saúde e integridade física da criança e do adolescente.
FUNDAMENTAÇÃO
I - Breve Histórico:
No
final do mês de março de 1999, uma reportagem jornalística, divulgada nacional
e internacionalmente, relatou casos de crianças que terminaram com graves
deformidades físicas, e inclusive perda de membros, em razão de terem sido
obrigadas a trabalhar na perigosa e penosa atividade de fabricação de telhas e
tijolos, desenvolvida de forma extremamente rudimentar na baía do Capim,
município de Abaetetuba, Estado do Pará.
A
notícia chocou o país e provocou polêmica quanto à responsabilização dos pais
das vítimas, que sempre afirmavam não possuir outra
alternativa que não a de utilizar a mão-de-obra de seus filhos, desde a
sua mais tenra infância, como meio de garantir o sustento da família.
Houve grande resistência, outrossim, por
parte da comunidade local, quanto à decisão do Ministério Público em requisitar
a abertura de inquérito policial visando à apuração dos comportamentos
passíveis de sanção criminal, o que terminou por dificultar o trabalho de
levantamento de dados e informações a respeito da prestação do ensino
fundamental e outros serviços de atendimento básico por parte da Administração
Pública na localidade em questão.
II - Os
deveres paternos:
O vetusto Código Civil Brasileiro, no
capítulo dedicado ao pátrio poder (Capítulo IV do Título V), estabelece, no
Art. 384, inciso VII [1], competir
aos pais, quanto às pessoas dos filhos menores, “exigir que lhes prestem
obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição”.
A expressão serviços contida no
dispositivo legal supra referido, muitas vezes, é sintonizada com a idéia
deturpada de que o pai pode obrigar o filho a trabalhar, dependendo da idade do
mesmo.
Logicamente que este não é, e nunca foi,
o sentido da lei. O escopo do legislador foi o de permitir aos pais condições
de impor respeito aos filhos, de forma a educá-los e orientá-los para a vida
adulta, com atenção aos estudos e atividades voltadas ao seu pleno
desenvolvimento físico, moral, intelectual e espiritual.
O Estatuto da Criança e do Adolescente,
por seu turno, determinou, no Art. 22, que “aos pais incumbe o dever de
sustento, guarda e educação dos filhos menores”.
O Art. 55 do E.C.A estatui expressamente:
“os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos e pupilos na
rede regular de ensino”.
Ao mesmo tempo em que assegurou a
educação como direito fundamental da criança e do adolescente, o legislador
estatutário, no Art. 60, estipulou a proibição de qualquer trabalho aos menores
de catorze anos, salvo na condição de aprendiz, reafirmando o que já havia sido
preconizado pela Carta Magna do país.
O Art. 63 do E.C.A., por outro lado,
declarou que a atividade dos aprendizes está subordinada aos princípios da
garantia de acesso e frequência obrigatória ao ensino regular, da atividade
compatível com o desenvolvimento do
adolescente, e do horário especial para o exercício das atividades.
Adiante, o Art. 67, inciso II do E.C.A.
proíbe o trabalho perigoso, insalubre e penoso do adolescente.
Os pais, mais do que ninguém, devem
velar para que os direitos de seus filhos sejam respeitados e não podem ser os
primeiros a violar tais direitos.
Por isto mesmo, o Art. 246 do Código
Penal tipifica como crime a conduta do pai que deixa, sem justa causa, de
prover à instrução primária de filho em idade escolar (delito de abandono
intelectual).
O crime de maus-tratos, outrossim, é
definido pelo Art. 136 Código Penal, nos
seguintes termos:
“Art. 136. Expor à perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção e disciplina:
Pena -
detenção, de 2 (dois) meses a 1 (um) ano, ou multa.
§
1º Se do fato resulta lesão corporal de
natureza grave:
Pena -
reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
§ 2º Se
resulta a morte:
Pena -
reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.
§ 3º
Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14
(catorze) anos”.
Se o ordenamento jurídico veda o
trabalho infantil, e somente admite o trabalho do adolescente menor de 14
(catorze) anos na qualidade de aprendiz, evidentemente que precisa prever
sanções rigorosas àqueles pais que impõem trabalho excessivo e inadequado a
seus filhos.
O Estatuto da Criança e do
Adolescente facultou à autoridade judiciária, uma vez verificada a hipótese de
maus-tratos, determinar o afastamento do agressor da moradia comum, em caráter
cautelar. (Art. 130).
Os pais que não cumprem os seus
deveres estão passíveis, ainda, à perda ou suspensão do pátrio poder, hoje
visualizado mais como um “dever-poder”, do que um “poder-dever”, na forma
estabelecida pelos Arts. 394 e 395 [2]
do Código Civil, combinados com o Art. 155 do E.C.A.
III- A
responsabilidade dos pais no caso concreto de Abaetetuba-Pa:
O Art. 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente estatui:
“Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será
objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou
omissão, aos seus direitos fundamentais”.
Caso venha a ser confirmado que a mutilação das
crianças e adolescentes residentes na região das ilhas do município paraense de
Abaetetuba realmente decorreu do trabalho nas olarias
imposto por seus pais, estes estarão sujeitos, conforme elucidado no tópico
anterior, às sanções de natureza cível e criminal previstas na legislação
brasileira.
Da forma como é desenvolvida atualmente a atividade de fabricação de telhas,
tijolos e outros artefatos de barro em Abaetetuba, já implica risco elevado para adultos, quanto mais no
que concerne a crianças, que ainda não possuem plenamente desenvolvida a sua
coordenação motora, estando, por isto mesmo, muito mais expostas ao perigo de
acidentes.
Há de ser ressaltado, ainda, que
a impunidade dos pais, caso responsáveis criminalmente, apenas reforçaria a
tolerância da sociedade abaetetubense ao problema, na medida em que há muito
tempo vêm sendo divulgadas idéias mistificadas, no sentido de que a realidade
sócio-econômica exige o trabalho infanto-juvenil, até o exagero de que o mesmo
é imprescindível à perpetuação dos conhecimentos do trabalho artesanal
desenvolvido nas olarias da região.
Cabe registrar, finalmente, que a
responsabilização dos pais não exclui a
responsabilidade do poder público relativamente à política de
atendimento dos direitos da criança e do adolescente disciplinada no Livro II,
Título I, do E.C.A.
IV – Conclusão:
Desponta como induvidoso que o Ministério Público possuía o dever de
determinar a devida apuração das denúncias de exploração do trabalho
infanto-juvenil nas olarias de Abaetetuba, a fim de apurar a responsabilidade
dos pais, que não estão isentos das punições cíveis e criminais previstas na
legislação pátria, uma vez que nada justifica a violação dos direitos
fundamentais das crianças e dos adolescentes.
Bibliografia
CAMPBELL,
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CURY,
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comentários jurídicos e sociais. São Paulo: Malheiros, 1992.
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Criança e do Adolescente: Lei nº
8.069, de 13 de julho de 1990. São Paulo: Saraiva, 1994.
NOGUEIRA,
Paulo Lúcio. Estatuto da Criança e do
Adolescente Comentado: Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. São Paulo:
Saraiva, 1991.
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Barbosa. Estatuto da Criança e do
Adolescente Interpretado. São Paulo: LexBooK, 1998
SILVA
PEREIRA, Tânia da. Direito da Criança e
do Adolescente: Uma proposta interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar,
1996.VERONESE, Josiane Rose Petry. Interesses
difusos e direito da criança e do adolescente. Belo Horizonte: Del Rey,
1996.
NOTAS :
[1] Nota do Conselho Editorial do Acervo Operacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente: de acordo com o novo Código Civil, o artigo
mencionado é o art. 1.634, inc. VII.
[2] Nota do Conselho Editorial do Acervo Operacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente: de acordo com o novo Código Civil, os artigos mencionados
são o art. 1.637 e o art. 1.638.