CONSELHOS DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, ESPAÇOS DE DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Olympio de Sá Sotto Maior Neto
Os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente constituem diretriz da política de atendimento à infância e juventude, conforme previsão expressa na Lei n.° 8.069/90, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.
Indica o texto legal que tais Conselhos, reconhecidos como
órgãos com caráter deliberativo e
função controladora das ações em todos
os níveis, não podem prescindir da participação
popular paritária, por meio de organizações representativas.
Para bem compreender o alcance da inovação, é necessário acrescentar que, em sua origem e antes de qualquer coisa, os Conselhos dos Direitos atendem a comando constitucional e representam genuínos espaços de democracia participativa na estrutura organizacional do Estado.
Recapitule-se que o § 7°, do art. 227, da Constituição Federal, estabelece que "no atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se-á em consideração o disposto no art. 204", também da Carta Magna. Por outro lado, o art. 204, ao mesmo tempo em que se refere à proposta de descentralização político-administrativa, enuncia como diretriz para as ações governamentais, a "participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis".
Tratou-se aí, na realidade, de instituir campo para a participação democrática, porquanto o parágrafo único, do art. 1°, da Constituição Federal, assevera a possibilidade do exercício direto do poder pelo povo (assim, "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição").
E foi então embalado exatamente por esses comandos constitucionais, que o legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente, na mesma seara em que afirmava o dever dos Estados e Municípios em "promoverem adaptações de seus órgãos e programas às diretrizes e princípios estabelecidos nesta lei" (art. 259, parágrafo único), fez por inscrever, como diretrizes da nova política de atendimento, a "municipalização do atendimento" e a "criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais" (art. 88, incs. I e II).
Dessa maneira, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que, para sua formulação, contou com significativa interferência da sociedade civil organizada (principalmente das entidades integrantes do Fórum DCA), determinou que fosse inaugurada nova fase na política de atendimento à infância e à juventude, cuja marca inafastável estivesse delineada no surgimento de espaços para a democracia participativa.
Os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente devem, então, ser corretamente entendidos enquanto fórmula de exercício direto do poder pelo povo, por meio de organizações que atuem diretamente no atendimento ou na defesa de crianças e adolescentes.
O objetivo buscado pelo legislador ao estabelecer a participação popular paritária, pode-se ter certeza, foi o de garantir à sociedade civil organizada, voz e vez na formulação das políticas sociais públicas de atendimento à infância e à juventude e no controle das ações em todos os níveis.
Determinou-se, de conseqüência, a implantação de um regime de co-gestão nesse campo da atuação governamental, o que representa extraordinário progresso porquanto, até então, a forma de "participação" da sociedade na área se restringia a atividades de cunho eminentemente assistencialista (as campanhas beneficientes para arrecadar alimentação, agasalhos etc.), ou consistia em mão-de-obra graciosa para efetivação de programas e ações previamente decididos pelo poder público (mutirões para construção de creches, praças etc.), enquanto que os conselhos comunitários constituídos apresentavam caráter meramente consultivo (e apenas davam "palpites" nas atividades governamentais).
Frente a esses considerandos, é inadmissível que as normas regulamentadoras de tais instâncias (as leis federal, estaduais e municipais) acabem traduzindo situação de atrelamento das entidades não-governamentais ao Poder Executivo, o que indisputavelmente ocorre quando submetidas à escolha e à nomeação fulcradas em puro arbítrio do Prefeito Municipal, Governador do Estado ou Presidente da República.
Qualquer norma que venha representar violação ao princípio
elementar de participação independente (aliás,
participação, enquanto forma de controle
de decisões, só pode ser mesmo independente) resta, inevitavelmente,
destinada a receber o carimbo da ilegalidade.
O processo legal (e legítimo) de escolha das organizações representativas a compor os multicitados Conselhos, para atender o conteúdo democrático e corresponder às diretrizes do Estatuto, deve efetivar-se mediante eleição em assembléia, realizada entre as próprias entidades interessadas e regularmente habilitadas e garantia aos representantes escolhidos de mandato por período dentro do qual não poderão, arbitrariamente, ser destituídos.
Observações desse tipo exsurgiriam absolutamente desnecessárias se inúmeros já não fossem os casos em que os Chefes do Poder Executivo, sem atender à vontade da lei e tampouco alcançando compreender que a instituição e o funcionamento adequados do Conselho de Direito conferem maior grau de legitimidade para os seus respectivos governos, pretendem estabelecer mecanismos - especialmente através da escolha por eles próprios dos representantes da sociedade civil organizada – para tutelar e controlar esses espaços que, vale reiterar, se destinam ao exercício de democracia participativa. E como poderiam os representantes das entidades não-governamentais deliberar livremente sobre a política de atendimento à infância e à juventude ou controlar as ações de execução se, na verdade, são eles controlados pelo Chefe do Poder Executivo? Ou fazer prevalecentes os interesses da população infanto-juvenil quando em confronto com os do Poder Executivo, se, uma vez escolhidos de forma arbitrária e sem mandato, acabam demissíveis ad nutum? A própria doutrina jurídica já diferencia e registra a possibilidade de contraposição entre o interesse público primário, o interesse do bem geral, e o interesse público secundário, o modo pelo qual os órgãos governamentais vêem o interesse público.
Reconheça-se como pior do que não ter em funcionamento o Conselho dos Direitos, contar com um nascido sob o signo de práticas políticas autoritárias e, por isso mesmo, apresentando os ascendentes do clientelismo e da cooptação.
O remédio para situações desse grau de anomalia está expressamente previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Não temos dúvida de caber perfeitamente nesses casos, a interposição de ação civil pública para, via prestação da tutela jurisdicional, assegurar o interesse coletivo, referente à infância e juventude, de se poder contar com um Conselho dos Direitos, que, por ser independente do Executivo, é capaz de cumprir com seus objetivos primordiais de deliberar e controlar a política pública pertinente a crianças e adolescentes. A legitimidade para a propositura de tal medida judicial encontra-se definida, concorrentemente, entre o Ministério Público (os Promotores de Justiça têm dever funcional de intentar a ação), a União, os Estados,os Municípios, o Distrito Federal, os Territórios e, convém frisar, as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano, que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (cf. art. 210 do ECA).
Nesse contexto, cabe lembrar também, que, para seu exercício, a democracia participativa pressupõe o Executivo compartilhando parcela de seu poder, propiciando integração do povo no processo decisório estatal, garantido concretamente, importante predicado da cidadania (ressaltando-se que, infelizmente e embora se faça constantemente freqüente em discursos demagógicos, o exercício direto do poder pelo povo ainda se encontra distante da prática da grande maioria dos governantes, cuja "representatividade", não raras vezes obtida através do abuso do poder econômico no processo eleitoral, seria, no entender deles, suficiente para dar surgimento, também, à legitimidade do poder).
Em outro aspecto, mas no mesmo enfoque, exsurge fundamental assegurar às decisões dos Conselhos o condão de vincular a administração pública, respeitando-se, em especial, a política traçada em conjunto com os representantes do poder público e da sociedade civil organizada. Incumbe, então, somente ao governante dar efetividade ao que foi definido pelo Conselho, salvo em situação de inequívoca ilegalidade e, ainda assim, mediante motivação a justificar a alteração que procedeu em desacordo com a deliberação do Colegiado.
O controle das ações governamentais em todos os níveis e a utilização adequada dos recursos existentes nos fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos Conselhos, previstos no art. 88, inc. IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente, também se apresentam como instrumentos para a consecução da política de atendimento à infância e juventude estabelecida e fortalecem o caráter deliberativo, emprestado pela lei a tais Conselhos.
Anote-se ainda que, a violação ao conteúdo deliberativo dos Conselhos poderá ser atacada judicialmente pela ação civil pública ou pela ação mandamental (v. arts. 208 e 212, § 2°, do Estatuto da Criança e do Adolescente).
De qualquer sorte, é indispensável que as forças progressistas da sociedade venham a descobrir a importância dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente enquanto espaços de democracia participativa e, ao mesmo tempo, possam impedir que os textos da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente permaneçam letras mortas, mas passem a interferir positivamente na realidade social, tendo como perspectiva os caminhos da organização e da participação popular (com conseqüente politização), que se mostram prioritários para a instalação de uma sociedade progressivamente melhor e mais justa.