ADOÇÃO DE NASCITURO
Simone Mariano da Rocha[1]
Procuradora de Justiça no RS.
A Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, a
regulamentação pelo Estatuto da Criança e do Adolescente operaram profunda
modificação no Instituto da Adoção. Deixavam de existir, quando se tratava de
adotando criança e adolescente, a classificação e os efeitos distintos até
então vigentes: adoção civil, adoção simples e adoção plena. A nova
normatização da adoção defluiu dos princípios constitucionais e do regrado no
art. 227, § 5º, da CF, verbis:
"a adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros."
Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente,
no seu art. 39, institui:
"a adoção de criança e de adolescente reger-se-á segundo o disposto nesta Lei."
Restaram, revogados, pois, no cenário normativo
nacional o Código de Menores e o Código Civil de 1916 no que respeitava à
adoção de crianças e adolescentes. O espírito que animava as palavras da nova
legislação decorriam da tradução do exposto nos princípios da proteção
integral, do direito fundamental à convivência familiar e comunitária, da
proibição de designações discriminatórias relativas à filiação, da
irrevogabilidade da adoção, da preservação da dignidade familiar do adotado[2]
e do interesse maior da criança, por tal razão atingindo também a proteção da
saúde e o bem-estar da gestante e da família que irá integrar, seja natural ou
substituta. Na mesma senda, o Novo Código Civil, instituído pela Lei nº 10.406,
de 10 de janeiro de 2002, contemplou o regrado na Carta Magna e não se desgarra
do visado no Estatuto da Criança e do Adolescente.
E quanto ao nascituro[3], teria o legislador deixado-o
em pé de inferioridade frente à criança e ao adolescente, como sustentam
alguns, em vista de não haver norma expressa relativa a adoção? Reconhecida a
condição de nascituro, aquele que há de nascer, poder-se-ia entender cabível
ainda o entendimento de que a lei recepciona a possibilidade da adoção? Tal
questionamento se mostrava mais polêmico antes da vigência do Novo Código
Civil. Dizia o art. 372 do Código Civil que não se pode adotar sem o
consentimento do adotado ou de seu representante legal se for incapaz ou
nascituro. Tal regra não teria sido recepcionada pelo texto da atual
Constituição Federal? Não teria sido posteriormente a regra traduzida pelo teor
do art. 45 do ECA? Como assevera José Luiz Mônaco da Silva[4], se o legislador
proibiu a adoção de crianças e adolescentes mediante a lavra de escritura
pública, entendemos que os mesmos motivos imperam e, conseqüentemente, impedem
a adoção de nascituros. O fato de o Estatuto, ao tratar do instituto da adoção
nos artigos 39 a 52, fazer menção unicamente às expressões criança e adolescente,
sem aludir ao termo nascituro, para nós revelava claramente que o ordenamento
jurídico excluía a possibilidade de adoção de nascituros e estabeleceu como
rigorosamente necessária a intervenção judicial (arts.47 e 148,III, do ECA).
Nesse sentido, foi aprovada tese[5] no 19º Congresso Brasileiro de Magistrados
e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude, ocorrido em novembro de
2001 em Belém/Pará.
O Novo Código Civil, conforme expressa disposição
inserta no art.2.045, revogou o Código Civil de 1916, e nele agora inexiste
qualquer menção relativa a adoção de nascituro.
Reconhecem-se as intenções nobres dos que defendem a
possibilidade dessa adoção, fundamentando, frente à omissão do novo ordenamento
legal, não estar revogada nos termos da lei civil a adoção de nascituro e,
sobretudo, defendendo-a como direito inerente ao próprio ser, à semelhança do
direito que ele tem de reconhecimento precedente ao nascimento, visto que se
trata de ato benéfico e eficaz para combater a degeneração orgânica e mental,
constituindo-se em uma importante medida eugênica[6] destinada a favorecer a
procriação saudável no Brasil.
Argumentos dos que são favoráveis à adoção de
nascituros, nitidamente de cunho sociológico-sanitarista, não encontram, ao
nosso modo de ver, smj, amparo legal. Diríamos mais, representam, como
preleciona Antônio Chaves[7], "um contra-senso do ponto de vista humano e
do ponto de vista legal". Do humano, assevera, porque a ninguém deveria
ser facultado adotar uma criatura que ainda não nasceu, que não se sabe se vai
ou não nascer com vida, qual seu aspecto, sua saúde, etc.. Do ponto de vista
jurídico, porque a dependência em que fica essa relação de adoção contraria o
princípio de segurança e estabilidade que deve presidir as relações que deixam
sua marca no estado das pessoas, importando uma verdadeira condição cuja plena
efetividade dependerá de um acontecimento futuro e incerto: o nascimento com
vida, como entre nós repete a exigência o artigo 2º do Novo Código Civil.
O Nascimento com vida é o termo inicial da
personalidade. Personalidade é a capacidade de ser titular de direitos,
pretensões, ações e exceções. Capacidade de direito e personalidade são o
mesmo[8].
Não se pode confundir, contudo, com o fato de a lei
salvaguardar desde a concepção os direitos do nascituro. Ao ente que está em
vida intra-uterina é concedida uma expectativa de direito, portanto, antes do
nascimento, o nascituro não é titular de direitos subjetivos, todavia a ordem
jurídica lhe confere a sua proteção. A Constituição Federal assegura especial
proteção ao nascituro, quando garante proteção à gestante (art. 201, III[9]).
No mesmo sentido o Estatuto da Criança e do Adolescente no seu art. 8º[10].
Dessa forma, ao buscar assegurar o nascimento e o desenvolvimento sadio, visa a
alcançar (a todas as fases, desde a concepção) condição paritária à
superioridade normativa expressa no art. 227, caput da CF, verbis: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
Portanto, obedientes aos princípios Constitucionais e Estatutários vigentes, mostrar-se-ia um evidente retrocesso não considerar o nascituro credor da proteção integral do Estado e tão-somente parte das entranhas da mãe, para se justificar a plena disposição desta sobre ele.
Aceitável, sem dúvida, a possibilidade de a mãe, na
fase gestacional, vir a manifestar sua vontade de não criar o filho e
entregá-lo à adoção logo após o nascimento. Tal situação possibilitará, sempre
presente o princípio insculpido no artigo 23 do Estatuto da Criança e do
Adolescente, o acompanhamento técnico e servirá para corroborar a eventual
inarredável vontade da genitora ao prestar o consentimento judicial.
Também não poderia ser outra a interpretação diante do
teor da Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de
Adoção Internacional que, em norma expressa no Artigo 4, letra c, item 4,
define: que o consentimento da mãe, quando exigido, tenha sido manifestado após
o nascimento da criança sublinhando, ademais, no seu preâmbulo, que cada país
deveria tomar, com caráter prioritário, medidas adequadas para permitir a
manutenção da criança em sua família de origem.
O Brasil, signatário da Convenção de Haia, encontra-se
comprometido com os princípios reconhecidos pelo instrumento internacional,
cabendo-lhe compatibilizar e/ou incorporar nas disposições do direito interno
as regras que definem em grandes linhas as obrigações dos Estados Membros. Vale
sinalar que no Direito Internacional existem normas Cogentes e Não Cogentes. As
Convenções e os Tratados relativos a direitos humanos fundamentais são
documentos de natureza Cogente. A Constituição Federal, no seu artigo 5º, § 2º,
dispõe, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Como sabido, o Brasil se torna parte de um Documento
Internacional havendo a ratificação[11] pelo Chefe do Poder Executivo, desde
que devidamente aprovado[12] o texto pelo Congresso Nacional. Uma vez
ratificado, cabe ao Presidente da República expedir um decreto de execução,
promulgando e publicando no Diário Oficial da União o com]teúdo dos tratados
internacionais, materializando-os, assim, internamente. Em relação a tratados
de proteção dos direitos humanos, defende-se[13], com fulcro nos parágrafos 1º
e 2º do artigo 5º da Lei Maior, ingressarem no ordenamento brasileiro com status de "norma
constitucional" e têm aplicação imediata a partir da ratificação.
O Decreto nº 3.087, de 21 de junho de 1999, que
promulgou[14] a nominada Convenção assim dispõe: Art. 1ºA Convenção Relativa à
Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional,
concluída em Haia, em 29 de maio de 1993, apensa por cópia a este Decreto,
deverá ser executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém (grifo
nosso).
Dessa forma, obedecido o processo específico
instituído na Constituição Federal, atestado está que o compromisso
internacionalmente firmado é juridicamente exigível, obrigando a todos sua
observância.
Assim, diante dos princípios e normas vigentes na
legislação pátria, parece-nos evidente a impossibilidade jurídica de adoção de
nascituro.
NOTAS:
[1] Procuradora de Justiça no RS, Especialista em
Direito Comunitário, Infância e Juventude, pela Fundação Escola Superior do
Ministério Público do Rio Grande do Sul.
[2] Estatuto da Criança e do Adolescente: Art. 23. A
falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para
a perda ou a suspensão do pátrio poder. Parágrafo único. Não existindo outro
motivo que por si só autorize a decretação da medida, a criança ou o
adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá
obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio.
Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao
adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o
de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.
§ 1º Se um dos cônjuges ou concubinos adota o filho do
outro, mantêm-se os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou
concubino do adotante e os respectivos parentes
[3] Nascituro, na lição de Pontes de Miranda, é o
concebido ao tempo em que se apura se alguém é titular de direito ou de
pretensão, ação ou exceção, dependendo a existência de que nasça com vida
(Miranda, Pontes de – Tratado de Direito Privado – Parte Geral, Tomo I –
Introdução – Pessoas Físicas e Jurídicas, 1ª Edição – 1999 – Bookseller)
Dicionário Eletrônico – Aurélio Buarque de Holanda -
Verbete: nascituro 1. Que há de nascer. 2. Aquele que há de nascer. 3. Jur. O
ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato futuro certo.
[4] in A Família Substituta no Estatuto da Criança e
do Adolescente - Editora Saraiva, 1995, São Paulo
[5] Título:adoção de nascituro. Autoras: Simone
Mariano da Rocha, Daniele Schneider Dutra e Mirian Inês Zalamena, então
Pós-graduandas no Curso de Especialização em Direito Comunitário: Infância e
Juventude da ESMP/RS.
[6] Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa: que
favorece o aperfeiçoamento da reprodução humana
[7] CHAVES, Antônio. Adoção, adoção simples e adoção
plena. São Paulo, Ed. Revista do Tribunais, 1983.
[8] Miranda,Pontes de- Tratado de Direito Privado-
Parte Geral, Tomo I- Introdução-Pessoas Físicas e Jurídicas,pág.209,1ª
Edição-1999-Bookseller.
[9] Art. 201. Os planos de previdência social,
mediante contribuição, atenderão, nos termos da lei, a: (...)III - proteção à
maternidade, especialmente à gestante;
[10] É assegurado à gestante, através do Sistema Único
de Saúde, o atendimento pré e perinatal. § 1º A gestante será encaminhada aos
diferentes níveis de atendimento, segundo critérios médicos específicos,
obedecendo-se aos princípios de regionalização e hierarquização do Sistema. §
2º A parturiente será atendida preferencialmente pelo mesmo médico que a
acompanhou na fase pré-natal. § 3º Incumbe ao poder público propiciar apoio
alimentar à gestante e à nutriz que dele necessitem.
[11] Aurélio Buarque de Holanda-Dicionário Eletrônico
- Verbete: ratificar: 1. Confirmar autenticamente, validar (o que foi feito ou
prometido).
[12] O Decreto Legislativo nº63, de 19 de abril de
1995, aprovou a denominada Convenção de Haia.
[13] Valério de Oliveira Mazzuoli, Os Tratados
Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos e sua incorporação no
Ordenamento Brasileiro. Revista da Ajuris nº87, tomo I, 2002.
[14] Aurélio Buarque de Holanda-Dicionário Eletrônico
Verbete: promulgar: 1. Ordenar a publicação de (lei) .2.Tornar público.
Patrícia Galindo da Fonseca-UFRJ - Revista Forense,
Volume 341, abril/1998, pág. 193/211: Promulgação é ato jurídico interno onde
se atesta a existência de um ato internacional celebrado, satisfeitas todas as
suas formalidades