A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E O PRINCÍPIO DA PRIORIDADE ABSOLUTA À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE

 

 

Murillo José Digiácomo [1]

                                                           Promotor de Justiça.

 

 

A luta pela plena implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente é árdua, sendo incontáveis os obstáculos que têm de ser transpostos para obtenção da tão sonhada proteção integral à criança e ao adolescente, prometida já no art.1º do citado Diploma Legal[2].

 

Se já não bastassem outros fatores, tem sido particularmente difícil fazer com que os governantes, notadamente os prefeitos municipais[3], destinem à criança e ao adolescente a prioridade absoluta de tratamento que lhes é devida, a começar pela “preferência na formulação e implantação das políticas sociais públicas” e na “destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e juventude”, tal qual previsto no art.4º, par. único, alíneas “c” e “d” da Lei nº 8.069/90, o que obviamente importa na previsão de recursos orçamentários suficientes para fazer frente aos planos e programas de atendimento que devem ser criados, mantidos ou ampliados para otimizar a “rede” de atendimento existente.

 

Um argumento que, nos últimos tempos, vem sendo utilizado com bastante freqüência para justificar o franco descumprimento das disposições estatutárias e constitucionais relativas à necessidade de estruturação dos municípios e efetiva implantação de planos e programas de atendimento a crianças, adolescentes e seus familiares, na forma do previsto nos arts.90, 101, 112 e 129, todos da Lei nº 8.069/90, está relacionado à suposta “impossibilidade” da realização de gastos em virtude da chamada Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 04 de maio de 2000), instrumento que, como sabemos, veio em boa hora a fim de moralizar a utilização de recursos públicos.

 

Absurdo dos absurdos!

 

Embora sirva como uma cômoda “desculpa” para o administrador público que não tem a menor sensibilidade, compromisso ou preocupação com a causa da infância e juventude, é óbvio que tal argumento não procede, pois a Lei de Responsabilidade Fiscal, longe de “inviabilizar” o investimento[4] na criança e no adolescente, lhe serve de estímulo, na medida em que prevê a transparência do orçamento público e a participação popular em sua elaboração[5] (permitindo assim a cobrança e o monitoramento do cumprimento do princípio constitucional da absoluta prioridade à criança e ao adolescente a nível orçamentário), além de dificultar os desvios de verbas públicas e o “inchaço” na folha de pagamento do funcionalismo municipal, que outrora consumiam a maior parte dos recursos disponíveis.

 

A propósito, não podemos deixar de anotar que anteriormente à entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal, a “desculpa” ou “justificativa” para a ausência de investimentos na área infanto-juvenil era justamente a do “integral” ou “quase que integral comprometimento do orçamento municipal com a folha de pagamento”, discurso que caiu em desuso ante a atual limitação do percentual orçamentário que pode ser utilizado para o pagamento de pessoal (que é de 60% da receita corrente líquida, conforme art.19, inciso III, da Lei Complementar nº 101/00).

 

Com a limitação das despesas com pessoal e maior controle dos gastos públicos em geral determinadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, pela primeira vez na história, em muitos municípios brasileiros, haverá disponibilidade de recursos para o maciço investimento na área infanto-juvenil, em cumprimento aos ditames legais e, acima de tudo, constitucionais atinentes à matéria, que serão adiante melhor explicitados.

 

Importante frisar que a Lei de Responsabilidade Fiscal, ao contrário do que pensam (ou querem nos fazer pensar) alguns, não impede o gasto público, mas apenas visa moralizar e otimizar o emprego dos recursos orçamentários disponíveis, estabelecendo um necessário equilíbrio entre a receita e a despesa.

 

O que antes era feito sem qualquer critério ou controle, hoje demanda planejamento e, como é do enunciado da própria lei, responsabilidade. O gasto, ou melhor, o investimento na criança e no adolescente, pode e deve ocorrer normalmente, cabendo apenas adequá-lo ao orçamento público e obedecer às exigências naturais efetuadas em relação à gestão de recursos públicos.

 

Essa nova sistemática para o investimento na criança e no adolescente ainda não foi completamente assimilada notadamente em razão da concepção equivocada, porém ainda presente, de que as questões relativas à área infanto-juvenil devem receber um tratamento meramente assistencialista e/ou “filantrópico”, através de ações pontuais a serem desenvolvidas junto àqueles que delas necessitem.

 

Ocorre que, como sabemos, a proteção integral à criança e ao adolescente começa já com o asseguramento de políticas sociais básicas prioritariamente voltadas a atendê-los em suas necessidades elementares (art.87, inciso I da Lei nº 8.069/90), sendo certo que, o supramencionado art.4º, par. único, alíneas “c” e “d” da Lei nº 8.069/90, traduzindo o enunciado do art.227, caput, da Constituição Federal, determina que a garantia de prioridade (e prioridade ABSOLUTA, na forma da Lei Maior), que cabe ao Poder Público destinar à criança e ao adolescente, deve compreender a “preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas” e na “destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude” (verbis).

 

O comando legal e, acima de tudo, constitucional é por demais cristalino, não deixando margem para dúvidas ou para a chamada “discricionariedade” do administrador público, que não tem alternativa outra além de PRIORIZAR a criança e o adolescente em suas ações, a começar pelo orçamento público, através da previsão de recursos suficientes para implantação dos planos e programas de atendimento, a exemplo dos previstos nos já citados arts.90, 101, 112 e 129, todos da Lei nº 8.069/90.

 

Vale anotar que, por regra básica de hermenêutica jurídica, considera-se que a lei (ou, no caso, nada menos que a Constituição Federal), não contém palavras inúteis, sendo certo que se o constituinte entendeu necessário dizer que a criança e o adolescente não apenas devem ser tratados de forma prioritária por parte do Poder Público, mas que essa prioridade deve ser absoluta, ou seja, a prioridade das prioridades, é porque não quis pairasse qualquer dúvida ou houvesse margem para qualquer discussão acerca da área a ser atendida em primeiro lugar por intermédio das mais diversas políticas públicas, vinculando assim as decisões do administrador público (que por sinal devem ser tomadas em conjunto com a sociedade através dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, ex vi do disposto no art.227, 7º c/c art.204, ambos da Constituição Federal e art.88, inciso II, da Lei nº 8.069/90), seja qual for sua orientação ideológica ou político-partidária.

 

Evidente que a Lei de Responsabilidade Fiscal, embora seja uma lei complementar, não tem o condão de “revogar” o verdadeiro PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL da PRIORIDADE ABSOLUTA à criança e ao adolescente, com o qual não guarda qualquer conflito ou incompatibilidade[6], tendo apenas reforçado a idéia, já presente na sistemática estabelecida pela Lei nº 8.069/90, que o enfrentamento dos problemas e deficiências estruturais existentes no município deve ocorrer através de políticas públicas adequadas às necessidades locais, que deverão ser contempladas com a previsão de recursos orçamentários suficientes à sua implantação, incremento e/ou manutenção.

 

Importante, pois, que sejamos previdentes e façamos incluir no orçamento do município, e em caráter absolutamente prioritário, a previsão de recursos necessários à criação, incremento e/ou manutenção das ações e programas de atendimento destinados a implantar ou otimizar uma verdadeira “rede” municipal de atendimento à criança, ao adolescente (de todas as faixas etárias) e às suas respectivas famílias, tal qual previsto na Lei nº 8.069/90.

 

E mecanismos para que isso ocorra já se encontram à disposição da sociedade.

 

Em primeiro lugar, consoante alhures ventilado, temos o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente (que, como sabemos, é composto de forma paritária entre representantes do Poder Executivo e da sociedade civil organizada), como o órgão que possui a COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL para DELIBERAR acerca das políticas públicas a serem implantadas em benefício das crianças e adolescentes.

 

Logo, no caso do município, não é o Prefeito quem irá, sozinho ou em conjunto com o seu gabinete, decidir o que, quando e como fazer na área da infância e juventude, mas sim é o COLEGIADO que compõe o referido órgão deliberativo, que detém o poder de decisão sobre a matéria.

 

As ações que o administrador pretende desenvolver em relação a tudo que diga respeito à criança e ao adolescente no município, assim como a própria proposta orçamentária anual/plurianual[7], devem ser levadas ao Conselho de Direitos, para que sejam objeto da mais ampla discussão com a sociedade, que também poderá propor estratégias, planos, ações e metas que venham a assegurar a necessária estruturação do município para o atendimento de sua população infanto-juvenil, garantindo-lhe a proteção integral há tanto prometida.

 

Também de importância capital nesse processo é a participação do Conselho Tutelar local, que não por acaso recebeu do legislador a atribuição de “assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente” (art.136 da Lei nº 8.069/90 - verbis).

 

Como legítimo representante da sociedade (art.131 da Lei nº 8.069/90), pela natureza de suas demais atribuições ele tem, mais do que qualquer outro órgão, a exata noção de quais as maiores demandas de encaminhamento[8] e, obviamente, quais as maiores deficiências estruturais do município para o atendimento de suas crianças e adolescentes.

 

Em detectando o Conselho Tutelar que determinada demanda recorrente não está contemplada com uma política de atendimento adequada, não havendo para onde encaminhar os casos de violação de direitos de crianças e adolescentes que chegam ao seu conhecimento, é imprescindível que o órgão desde logo acione os demais integrantes do Sistema de Garantias para superação dessa deficiência que, afinal de contas, coloca em situação de risco TODAS as crianças e adolescentes do município, ex vi do disposto no art.98, inciso I, segunda parte, da Lei nº 8.069/90.

 

As primeiras gestões devem ser realizadas junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, ao qual caberá estabelecer uma política própria voltada à solução do problema detectado, seja através da adequação da estrutura existente, seja através da implantação de um ou mais programas de atendimento totalmente novos, para o que deverá fazer constar do orçamento do(s) próximo(s) exercício(s)[9] os recursos respectivos[10].

 

Em sendo necessária a criação do programa de atendimento em caráter emergencial, deverá o Conselho de Direitos verificar da possibilidade de remanejamento de verbas orçamentárias já previstas, dentro da margem em regra deferida ao Executivo na lei orçamentária, seja por outros meios, inclusive através do encaminhamento de mensagem própria à Câmara Municipal local, de modo a obter a competente autorização legislativa.

 

A seu critério, poderá o Conselho Tutelar levar a notícia da deficiência estrutural também ao Ministério Público, que por sua vez tomará as providências administrativas (junto ao CMDCA e/ou Prefeitura Municipal) e, se necessário, judiciais (inclusive no sentido de responsabilizar o administrador público pela negativa de vigência à legislação federal[11] e ao mandamento constitucional da prioridade absoluta à criança e ao adolescente), para que seja criada uma política de atendimento adequada à situação relatada.

 

Vale ressaltar que essa atuação do Conselho Tutelar como órgão identificador de demandas e deficiências, assim como “provocador” de deliberações do CMDCA e de ações do Ministério Público, embora por vezes esquecida e negligenciada, se afigura uma de suas mais importantes atribuições, cujo exercício seus integrantes não podem omitir, inclusive sob pena da prática do crime de prevaricação, previsto no art.319 do Código Penal[12].

 

Em contrapartida, a omissão do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente em agir, uma vez provocado pelo Conselho Tutelar no sentido da deliberação pela implantação de uma política de atendimento adequada a suprir as deficiências estrutural detectada, tanto pode gerar a responsabilização de seus integrantes pela prática da mesma infração penal, quanto pode importar no cometimento do crime previsto no art.236 da Lei nº 8.069/90.

 

De igual sorte, incorrerá no mesmo art.236 da Lei nº 8.069/90 a pessoa ou autoridade pública (inclusive o Prefeito Municipal) que impeça ou crie embaraços ao exercício, por parte do Conselho Tutelar, de sua citada atribuição prevista no art.136, inciso IX do mesmo Diploma Legal, devendo o órgão público competente, desde o momento do início da discussão da proposta orçamentária anual (incluindo aí, por óbvio, a Lei de Diretrizes Orçamentárias) e plurianual, franquear o acesso às discussões, dados e documentos, aos integrantes do Conselho Tutelar, que deverão zelar para que nelas conste a previsão de metas e recursos necessários à criação, ampliação e/ou manutenção, de forma privilegiada e prioritária, de planos e programas de atendimento às crianças, adolescentes e suas respectivas famílias, na forma do previsto na lei e na Constituição Federal.

 

Como podemos observar, existe todo um arcabouço jurídico destinado a proteger a criança e o adolescente contra o mau administrador, que não lhes dispensa a prioridade absoluta de tratamento tal qual determina a Constituição Federal.

 

A Lei de Responsabilidade Fiscal se insere nesse contexto como mais um instrumento jurídico a ser manejado em prol da criança e do adolescente, pois através da moralização e transparência dos gastos públicos, orçamento participativo e responsabilidade fiscal, haverá maiores e melhores condições de cumprir o citado mandamento constitucional.

 

Assim sendo, totalmente descabida é a utilização da Lei de Responsabilidade Fiscal como pretexto para o descumprimento dos superiores ditames e, acima de tudo, PRINCÍPIOS constitucionais, alhures mencionados, cabendo a todos nós cidadãos e em especial àqueles investidos da atribuição de zelar para a proteção integral de crianças e adolescentes, agirmos ao tempo e modo devidos para que crianças e adolescentes sejam, de fato, destinatárias da mais absoluta prioridade de tratamento por parte do Poder Público, a começar pelo orçamento público, onde deverão ser obtidos os recursos necessários para tanto.

 

 

 

 

Notas

 

[1]. Promotor de Justiça  integrante do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Estado do Paraná.

 

[2]. Que já evidencia: “esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente” (verbis).

 

[3]. Valendo lembrar que a municipalização é a diretriz primeira da política de atendimento à criança e ao adolescente idealizada pela Lei nº 8.069/90 (conforme disposto em seu art.88, inciso I).

 

[4]. Em se tratando de aplicação de recursos públicos em prol do bem-estar de crianças, adolescentes e suas respectivas famílias, não se está efetuando um gasto, mas sim um verdadeiro investimento na qualidade de vida de toda a população.

 

[5].  Arts.48 e 49 da Lei Complementar nº 101/00.

 

[6]. Que, aliás, se houvesse, importaria na inconstitucionalidade do dispositivo contido na citada Lei Complementar, que obviamente não pode afrontar qualquer dos ditames, que dirá dos princípios, estabelecidos pela Constituição Federal.

 

[7]. Em sua integralidade, e não apenas na parte que cabe à “Secretaria Municipal da Criança” ou similar, na medida em que o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente é um órgão intersetorial, devendo zelar para que o orçamento público - e todos os setores de governo - de fato priorizem a criança e o adolescente.

 

[8]. Jamais podemos esquecer que o Conselho Tutelar não é um programa de atendimento, mas sim um órgão que promove o encaminhamento para a “rede” (diga-se programas) de atendimento disponível no município.

 

[9]. Inclusive via Plano Orçamentário Plurianual.

 

[10]. A título de exemplo, em sendo constatada pelo Conselho Tutelar a necessidade da criação de um programa de tratamento especializado para crianças e adolescentes usuários de substâncias entorpecentes e drogas afins (inclusive as chamadas “drogas lícitas”, como o álcool e o cigarro), deve o órgão provocar o CMDCA que, por sua vez, considerando que a matéria tem amparo nada menos que na Constituição Federal (art.227, 3º, inciso VII), obrigatoriamente terá de deliberar pela criação de um ou mais programas específicos, que deverão ser implantados e mantidos com recursos provenientes do orçamento destinado à Secretaria Municipal da Saúde.

 

[11]. Valendo nesse sentido observar o disposto no art.208, caput, da Lei nº 8.069/90, bem como disposições penais outras contida no Decreto-Lei nº 201/67, que trata dos crimes de responsabilidade praticados por prefeitos.

 

[12]. Haja vista que tanto o conselheiro tutelar quanto o conselheiro de direitos da criança e do adolescente, por força do disposto no art.327 do Código Penal, são considerados “funcionários públicos” para fins penais, respondendo criminalmente tanto por seus excessos quanto por sua omissão no cumprimento das atribuições que lhes são inerentes.