A NECESSIDADE DE UMA AÇÃO DE EXECUÇÃO DE MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA

 

 

Mauro Campello[1]

Juiz de Direito Titular da Vara da Infância e

da Juventude da Comarca de Boa Vista/RR.

 

 

Com a vigência da nova Constituição Federal, em 05 de outubro de 1988, e com a ratificação pelo Congresso Nacional da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, através do Decreto Legislativo n° 28, de 14 de setembro de 1990, introduziu-se no ordenamento jurídico brasileiro uma nova doutrina, denominada Doutrina Sócio-Jurídica da Proteção Integral.

 

Necessitando regulamentar o art. 227 de nossa Lei Maior e explicitar através de norma infra-constitucional a Doutrina da Proteção Integral, o Brasil, em 13 de julho de 1990, sanciona, através do Presidente da República, a Lei n° 8.069, chamada Estatuto da Criança e do Adolescente, que somente entrou em vigor 90 (noventa) dias após sua publicação.

 

De acordo com o mencionado comando constitucional e respeitando a normativa internacional, o Estatuto transforma radicalmente o ordenamento jurídico vigente à época, em especial por considerar criança e adolescente não mais como objeto de direito, e sim como sujeito de direito.

 

Com essa mudança de paradigma, uma nova era foi implantada em nosso sistema, exigindo os reordenamentos dos programas da área infanto-juvenil, de suas entidades executoras e do próprio Sistema de Justiça da Infância e da Juventude.

 

Todavia, algumas áreas, em especial a do adolescente em conflito com a lei, referente ao cumprimento de medidas sócio-educativas aplicadas pela Justiça, continuam inertes, ainda sobre o efeito do paradigma da legislação anterior, necessitando, nesta fase, de uma lei específica, a fim de modificar o quadro que se apresenta, conhecido de todos e preocupante para toda a sociedade.

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente não regulamentou de forma explícita um procedimento para a execução da sanção sócio-educativa aplicada ao adolescente em conflito com a lei e, ao nosso ver, esta omissão legislativa tem contribuído para o adolescente reincidir na prática de ato infracional.

 

Registramos que este artigo visa fomentar a discussão e a reflexão da importância que a presente temática se impõe para àqueles que militam na área, lembrando que tal assunto, desde 1993, vem sendo apresentado em congressos e seminários em que somos convidados a participar em diversas Unidades da Federação.

 

A execução das medidas sócio-educativas caracteriza-se como uma função jurisdicional, uma vez que há necessidade de sua jurisdicionalização e conseqüente formação de um processo, para que o Estado-Juiz, através de suas decisões, possa conhecer e compor os denominados incidentes que venham a surgir na execução e garantir, dessa forma, o devido processo legal, propiciando a ampla defesa e o contraditório ao adolescente a quem se aplicou a sanção sócio-educativa.

 

Em virtude de considerarmos a natureza jurídica da medida sócio-educativa como um processo pedagógico e, assim, eminentemente educacional, propomos desde já que a nomenclatura do adolescente condenado a cumprir medida seja o de educando e, dessa forma, passaremos a denominá-lo no presente trabalho.

 

Dessa regra fundamental, verificamos que o novo Direito da Criança e do Adolescente não só exige a formulação concreta de um processo de conhecimento para apuração da autoria e materialidade do ato infracional praticado, a fim de responsabilizar o adolescente a quem se atribua a prática do mencionado ato, denominado no meio forense de ação sócio-educativa, mas também a formulação de um processo de execução correspondente às medidas sócio-educativas aplicadas, que nesta oportunidade propomos denominá-los de ação de execução sócio-educativa.

 

Nesta oportunidade, registramos que estas denominações não seguem um caráter científico imposto pela Teoria Geral do Processo, porém seguem a um sentido prático, de acordo com a natureza do provimento pedido, denominando de ação de conhecimento ou sócio-educativa àquela que visa ao provimento do mérito, ou seja, ao julgamento da causa, absolvendo ou condenando o adolescente, ou ainda homologando ou concedendo a este a remissão cumulada ou não com medida(s) sócio-educativa(s), e de ação executiva àquela de provimento satisfatório, referente ao cumprimento da(s) medida(s) sócio-educativa(s) imposta(s) na primeira.

 

Se levarmos em consideração a natureza jurídica da ação, um direito subjetivo, público, autônomo, instrumental e abstrato que tem como finalidade acionar o Estado, para que através de sua função judiciária preste a tutela jurisdicional para compor a lide, concluiremos não ter a ação nome específico; por isso, afirmamos que a nomenclatura proposta não segue o caráter científico, contudo possui um sentido mais prático, com a finalidade de melhor compreensão dos objetos dos mencionados processos.

 

Para a ação de execução sócio-educativa, teremos como pressuposto básico para sua formação a existência de um título executivo, nascido de uma sentença proferida antes da formação da ação sócio-educativa, na hipótese de homologação da remissão por Juízo competente transacionada pelo Ministério Público com o adolescente em conflito com a lei, aplicando-se cumulativamente a este a(s) medida(s) sócio-educativa(s), ou no curso da ação sócio-educativa, quando esta mesma transação ocorre antes da sentença final, ou ainda na própria sentença final, que julga procedente o pedido condenatório contido na representação ministerial, aplicando medida sócio-educativa.

 

Logo, podemos concluir que as sentenças condenatórias e de homologação ou de concessão de remissão, quando aliadas com pelo menos uma medida sócio-educativa gera então, o título executivo indispensável para formação da ação de execução sócio-educativa, que não necessita do trânsito em julgado, dando a esta um caráter de execução provisória, devido a sua peculiaridade de recair sobre um educando, e por ser uma sanção de caráter eminentemente educacional, exigindo uma aplicação imediata desse processo.

 

Do exposto, verificamos que a finalidade da ação de execução sócio-educativa é o provimento satisfatório da pretensão do Estado em aplicar ao adolescente em conflito com a lei medida(s) sócio-educativa(s), denominado provimento executivo sócio-educativo.

 

Fazer valer a pretensão do Estado nesta ação é inserir o adolescente autor de ato infracional no processo sócio-pedagógico correspondente a(s) sua(s) medida(s) sócio-educativa(s), possibilitando a formação de sua cidadania emancipadora, mediante a reintegração social e o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, evitando com isso, a reincidência.

Outro aspecto importante para defendermos a existência de uma ação de execução sócio-educativa é a necessidade da Autoridade Judiciária, ou melhor, o Juízo das Execuções e o Diretor das entidades de atendimento (Centros Sócio-Educativos) poderem visualizar a existência das duas naturezas do processo de execução, uma de caráter administrativa e outra de caráter jurisdicional.

 

A compreensão dessas naturezas é de suma importância para entendermos os papéis do Judiciário, do Executivo e da sociedade organizada na execução das medidas sócio-educativas, possibilitando a construção de atribuições e competências específicas de suas atuações, pondo fim a uma briga antiga entre os órgãos de execução e o Judiciário.

 

A natureza administrativa da execução está ligada diretamente à execução do processo sócio-pedagógico do adolescente, ou seja, a aplicação da medida, do atendimento pelo Estado-Administração ou por entidades não-governamentais ou ainda em uma ação articulada entre estes.

 

Neste aspecto, o adolescente será inserido através de uma sentença judicial em um programa de caráter sócio-pedagógico, correspondente à medida aplicada em entidade ligada ao Executivo ou da sociedade organizada, ou ainda, como mencionado anteriormente, em uma entidade de ação articulada entre estes, todos devidamente registrados no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

 

Quanto a natureza jurisdicional da execução, essa, como o próprio nome nos diz, está sob a responsabilidade do Poder Judiciário, que através do Estado-Juiz comporá os incidentes que vierem a surgir durante o curso da ação de execução, como por exemplo, a apreciação da regressão, da progressão, da unificação ou substituição de medida, de aplicação da sanção processual prevista no art. 122, III, § 1º do ECA, de autorização para saídas de finais de semana ou em dias festivos e a própria extinção do cumprimento da medida, sempre ouvindo as partes, Ministério Público e a defesa do educando.

 

Nesta oportunidade, registramos a permissão legal da natureza administrativa da execução de medida sócio-educativa poder ser transferida a entidades não-governamentais, exceto as de atendimento em regime de meio fechado (internação e semiliberdade - art. 125 do ECA), enquanto a jurisdicional, por força constitucional, é indelegável.

 

Destarte dessa regra, concluímos não ser possível ao Diretor das Unidades de Atendimento de programas sócio-educativos realizar a progressão ou a regressão, alterar ou modificar a medida aplicada, declarar extinta a execução pelo cumprimento desta, autorizar saídas que não representem atividades externas de caráter sócio-pedagógicas ou de garantias de direitos fundamentais, como tratamento de saúde do educando, ações estas de competência exclusiva do Juízo das Execuções das Medidas Sócio-Educativas e, por outro lado, este não poderá aplicar sanções administrativas previstas no regimento interno ou no próprio programa da entidade, por ser atribuição dos diretores.

 

Posto isso, nós operadores do novo Direito da Criança e do Adolescente, não podemos mais admitir a ausência de uma lei própria que regulamente a ação de execução de medida sócio-educativa uma vez que, pela situação em que vivemos, onde se gerou a idéia de impunidade na área do infrator, somando-se com a ausência de propostas pedagógicas e com a violação de direitos humanos e o oferecimento de um atendimento similar ou pior do que as masmorras da Idade Média, com verdadeiro caráter punitivo e não educativo, devemos nos unir e solicitar do Congresso Nacional o meio ou instrumento pelo qual o Estado-Juiz prestará a jurisdição consistente em tornar efetiva a sanção sócio-educativa, mediante a prática de atos próprios, de uma execução forçada, a fim de revertermos este quadro caótico que se apresenta na virada do século.

 

A finalidade da ação de execução das medidas sócio-educativas é a autuação da vontade concreta do Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, a execução da sanção sócio-educativa, originária da composição da lide infracionária.

 

Desse modo, a execução da medida deverá modificar as situações de fato existentes, que foram indicadoras da prática do ato infracional, para adaptá-las ao comando emergente da sentença, possibilitando ao educando o direito de ter esperança e de voltar a sonhar com sua cidadania.

 

Portanto, através dessa nova ação proposta, estaremos possibilitando ao Sistema de Justiça a fiscalização do cumprimento da medida sócio-educativa aplicada ao adolescente autor de ato infracional, bem como a garantia do exercício dos direitos que não lhe foram cerceados na sentença, além do processo pedagógico correspondente ao cumprimento da medida, com qualidade.

 

Assim, através desse devido processo legal, os atores da Justiça (juiz, promotor e defensor) deverão verificar se a medida sócio-educativa em execução está propiciando ao adolescente a capacidade de construir seu projeto de vida e de cidadania, para evitar a reincidência.[2]

 

Notas

[1] Professor de Direito da Criança e do Adolescente da Universidade Federal de Roraima e Pós-Graduado em Direito de Família pela Universidade Gama Filho/RJ.

[2] Artigo publicado na revista IN VERBIS de outubro – novembro de 1998, nº.15, pag.22/24, ano 02 do IMB – Instituto dos Magistrados do Brasil