BINÔMIOS
SAÚDE-DOENÇA E CUIDADO-EDUCAÇÂO EM AMBIENTES COLETIVOS DE EDUCAÇÃO DA CRIANÇA
PEQUENA
Em nossa sociedade, a discussão sobre saúde/doença em creche tem se mostrado carregada de discursos negativos e depreciativos, freqüentemente concluindo que creche representa um local inadequado ao desenvolvimento físico, emocional e social sadio da criança, especialmente para as menores de dois anos.
Na psicologia, por exemplo, muitos trabalhos
têm apontado para a educação de bebês em creche, particularmente por longos
períodos diários, como potencialmente capaz de prejudicar a médio e a longo prazo o desenvolvimento cognitivo, sócio-emocional e
a própria saúde mental futura da criança.
A fundamentação desses estudos tem partido da Teoria do Apego (BOWLBY, 1969; AINSWORTH, 1978) e os
efeitos prejudiciais têm sido atribuídos ao afastamento diário da mãe (mesmo
que de forma temporária), o qual afetaria o estabelecimento da relação de apego
mãe-criança (BELSKY, 1990; SROUFE, 1990).
Esses resultados têm parcialmente
contestados por vários autores, por se mostrarem contraditórios e não
conclusivos (FOX & FEIN, 1990). Recentemente, no entanto, um extenso estudo
coordenado pelo NICHD (1997), nos Estados Unidos, evidenciou que os prejuízos
não podem ser atribuídos especificamente à forma /local cuidado (casa/creche).
A insegurança no apego deve-se, sim, à qualidade das relações estabelecidas e
das condições oferecidas para um desenvolvimento integral da criança.
Por outro lado, a área médica também tem
investigado eventos de doenças relacionados à situação de freqüência de
crianças à creche. E, de modo quase
alarmante, que a presença, especialmente de bebês, nestes ambientes,
implica em: um maior risco de
adoecimento (VICTORA et al., 1994), além de uma maior gravidade nos casos de
doença (SCHWARTZ et al., 1994); uma
maior duração dos episódios e um maior número de hospitalizações (SIMPSON et
al., 1995; FUCHS et al., 1996). Como
decorrência, eles vêm sendo considerados por alguns, como
“foco epidemiológico de doenças” (SCHWARTZ, op.cit.)
e fonte de prejuízos econômicos, tanto pelos custos (tratamentos, exame clínico
e laboratorial, medicação, etc.) como pela ausência dos pais ao trabalho para cuidar
dos filhos doentes.
Essa disseminada visão depreciativa
de cheche tem resultado em um discurso implícito e explícito de que as
crianças, especialmente bebês, devem ser excluídas de tal instituição. Para as
famílias que optam por colocar e manter suas crianças nesses ambientes, tais
discursos tendem a conduzir os familiares a uma situação de profunda
ambivalência, com a emergência de fortes sentimentos de angústia e culpa.
Essa forma de conceber creche,
entretanto, mostra-se em confronto com a realidade social contemporânea. Em
decorrência do crescente ingresso da mulher no mercado de trabalho, há um
grande aumento da demanda e reivindicação pelo uso de creches, para
crianças cada vez mais novas, das várias
camadas sociais. Por outro lado, os
discursos em que aqueles pesquisadores se fundamentam revelam vieses
implícitos, que marcam a forma de estudar o processo. Nele, destacam o elemento
doença, em detrimento da saúde, e utilizam parâmetros “padrões” – crianças cuidadas em casa, pela
mãe – os quais se mostram inadequados
para análise da situação específica (AMORIM & ROSSETTI-FERREIRA, 1999).
Dante da relevância social e
individual do problema, além de suas implicações, entendemos ser necessário
realizar uma análise dos processos de saúde/doença em creche, de modo a
abarcá-los em toda sua complexidade.
Para isso, vimos utilizando uma nova perspectiva teórico-metodológica
para o estudo do desenvolvimento humano denominado Rede de Significações,
em elaboração pelo grupo de pesquisa do CINEDI 4 (ROSSETTI-FERREIRA,
AMORIM & VITORIA, 1996, 1997;
ROSSETTI-FERREIRA, AMORIM & SILVA, 2000).
Segundo essa perspectiva, entende-se
que, em qualquer situação de desenvolvimento
humano, estão envolvidos inúmeros fatores, todos impregnados por uma
matriz sócio-histórica e cultural que lhes dá sentido. Esses fatores interagem dialeticamente
compondo uma rede, a qual contempla condições macro e micro-individuais e
estrutura um universo semiótico, possibilitando os processos de desenvolvimento
(os quais incluem a saúde e a doença) e, ainda, a construção de sentidos sobre
os mesmos, em uma situação dada.
O complexo processo de saúde/doença
em creche é, portanto, analisado a partir da dinâmica articulação dessa rede de
fatores semioticamente constituída, a que denominamos de Rede de
Significações. Essa rede estrutura e canaliza o desenrolar dos processos
individuais de adoecimento, a forma de compreendê-los e de lidar com eles e,
também, a possibilidade de articulação e atribuição de novas significações aos
mesmos, à própria instituição creche e ao fato de a criança e a família
freqüentarem-na.
O presente texto tem por objetivo,
através do uso da Rede de Significações, abordar o processo de
saúde/doença em creche através de vários de seus aspectos e facetas, à procura
de novos olhares à situação. No início, apresentaremos a matriz sócio-histórica
e cultural que se encontra na base da emergência das creches, além dos
discursos relativos à saúde e doença que a acompanharam e a marcaram, no Brasil
e no exterior. A seguir, explicitaremos nossa perspectiva teórico-metodológica,
apresentando os vários níveis de fatores que compõem a Rede: componentes
individuais, campos de interação, cenários e a matriz sócio-histórica e
cultural. Discutiremos, depois, a forma como essas redes são atravessadas por
quatro escalas temporais, além da relevância de se pensar esse conjunto em
movimento e desenvolvimento, em um processo contínuo de transformação. A
apresentação será ilustrada com um exemplo tirado de nossas pesquisas e
experiências profissionais e refere-se às doenças infecciosas, em creche. Ao
final da apresentação, discutiremos como o olhar aos processos de saúde/doença
em creche, a partir da Rede, nos possibilita a percepção de um conjunto
amplo de elementos que compõem a situação e como conduz a propostas de ação e
de constituição de ambientes de educação infantil de qualidade e promotores de
saúde.
É através da matriz sócio-histórica e
cultural que as várias concepções e representações sociais perpassam os fatores
e a situação ligada ao processo de inserção de crianças em creches. Essas
concepções e representações, no entanto, não existem ao acaso. Foram
construídas ao longo da história da humanidade, em função das contingências dos
contextos econômico, social e cultural. Pertencem, então, a
um tempo histórico mais longo.
O fato dessas
concepções existirem na forma de discursos dominantes, faz com que, por
vezes, pareçam naturais e envoltos em uma uniformidade e coerência. No entanto,
uma análise critica evidencia múltiplas vozes, contradições e fragmentações,
sua não linearidade. Torna-se, então, importante dar sentido a esses múltiplos
discursos existentes e traçar suas origens históricas, de modo a compreender um
pouco mais o momento presente.
A história das creches, desde seu
surgimento, no final do século passado, tem sido extensa e competentemente
abordada por vários pesquisadores brasileiros, como Lívia FRAGA VIEIRA (1988) e
Moysés KUHLMANN Jr. (1998), e franceses, como ROLLET-ECHALIER
(1990) e Liane MOZÈRE (1992), entre outros.
Em seu recente livro, Infância e
Educação Infantil: uma abordagem histórica (1998), KUHLMANN Jr. aponta que
a década de 1870-1880, período de importantes revoluções e descobertas
científicas na Europa, marcou a entrada da influência médica nas questões
educacionais. Os conhecimentos relativos às relações entre microorganismos e
doenças consolidavam-se e, a partir deles, ocorreram grandes avanços no combate
aos altos índices de mortalidade infantil. Nessa época, tais índices estavam
sendo associados à participação das mães no mercado de trabalho (em turnos mais
extensos que os atuais) e à "ignorância" das classes laboriosas com
respeito aos princípios de cuidados e de higiene da criança. Através do regime
escolar, a educação da mulher do povo surge como meio capaz de impedir os
funestos efeitos dessa ignorância.
Paralelamente, partindo-se da idéia
de que a criança pequena tinha que ser criada e, sobretudo, amamentada pela
mãe, desenvolveu-se nos meios médicos uma luta pela garantia do aleitamento
materno, propondo-se creches-usinas, ou salas de
aleitamento de bebês nas fábricas ou locais de trabalho das mães.
MOZÈRE (1992) refere, no entanto, que
as creches filantrópicas revelavam uma ineficácia em melhorar o estado de saúde
das crianças, evidenciada na taxa de 22% de crianças raquíticas encontradas em
um estudo sobre 60 creches parisienses em 1902. Aquela ineficácia, porém, foi
atribuída à falta de instrução e de conhecimentos especiais das auxiliares e
berçaristas e, sobretudo, à sua insuficiência numérica
naquelas instituições.
Como refere ROLLET-ECHALIER (1990),
no final do século XIX e início do XX, a ação da creche tinha uma perspectiva
flexível e pouco autoritária com as crianças, mesmo quando tinha intenção de
formar seres adaptados à sociedade. Se, por um lado, eram eliminados materiais
que apresentavam perigos para a segurança e saúde dos bebês, por outro,
tinha-se maior consciência do papel do jogo e do brinquedo no desenvolvimento e
na formação da personalidade da criança - concepções que, equivocadamente, hoje
são atribuídas a resultados de pesquisas recentes no campo da psicologia.
Já após a Primeira Guerra Mundial, os
progressos dietéticos e de higiene alimentar de bebês começaram a permitir
pensar na eliminação de problemas e doenças ligadas à creche. Além disso, as
vacinas, como a BCG, por exemplo, possibilitavam tomar medidas preventivas a
tempo (MOZÈRE, 1992).
Paralelamente, na primeira metade do
século XX, surge uma ação social calcada no modelo americano de luta contra a
tuberculose, que assume a forma de um movimento ativo e militante, denominado higienismo,
cuja meta central era a luta pela normalização e moralização do proletariado
através da higiene social. Em uma verdadeira mística da higiene, criaram-se
dispensários associados a visitadoras sanitárias e sociais, com o objetivo de
promover a reeducação higiênica doméstica.
A proteção da infância entrava, pois,
no campo da intervenção da higiene social, que se concretizava na puericultura.
Esta preconizava com veemência a necessidade da mãe cuidar de seu filho e
atribuía a ela a responsabilidade pela sobrevivência da criança. Segundo
BOLTHANSKI (1984), entretanto, a puericultura resultou de um amplo e ambicioso
projeto: regular todos os atos, inclusive os mais íntimos e privados,
realizados no lar.
Nesse mesmo sentido, ROLLET-ECHAHER
(1990) propõe que as rígidas e detalhadas prescrições da puericultura, nas
décadas de 30 e 40, constituíram um conjunto de inúmeras interdições
e precauções a se tomar nos cuidados com a infância. Essas normas, no
entanto, não representavam uma conseqüência imediata das descobertas da
microbiologia. Ademais, sua intenção disciplinadora tinha pouca relação com as
necessidades de higiene para evitar a contaminação. Enquanto demonstração de
uma mentalidade intervencionista desdobrava-se em uma perspectiva racial,
adotando princípios de eugenia, concepção racista que ganhava espaço naquele período. As concepções de domesticação
ou de pré-educação eram propostas para se obter resultados na saúde e
produzir a obediência.
No Brasil, as histórias da saúde e da
educação encontram-se grandemente imbricadas, em decorrência da forma como
esses setores se estruturaram no país. Até a década de 50, por exemplo, a saúde
e a educação estiveram unidas dentro de um mesmo ministério e desempenhando
ações muito interligadas. Em função disso, das concepções de educação (bastante
diferentes das de hoje) e do peso da área médica na época, a educação acabou
perpassada por um olhar médico. Verificam-se vestígios dessa influência nos
programas que visavam garantir a lactação e a vacinação, inspecionar as
condições de vida das crianças pobres, proteger a infância abandonada, realizar
inspeção médica nas escolas e criar creches e jardins de infância.
Em 1889, é criado o primeiro serviço
de higiene escolar, visando combater as epidemias que atingiam São Paulo e Rio
de Janeiro. Na década de 20, os cursos de Medicina criam a disciplina de
Higiene Escolar e a Escola Normal Caetano de Campos, em São Paulo, incorpora
essa disciplina e a Puericultura em seu currículo, buscando desenvolver hábitos
de higiene entre os alunos de magistério (FERRIANI & GOMES, 1997).
A partir de 1940, o Estado começa a
se equipar de instituições e pessoal técnico, como o Departamento Nacional da
Criança (DNCr) e a Legião Brasileira de Assistência
(LBA). Estes tinham um cunho social e suas metas eram centralizar a assistência
materno-infantil, no Brasil, assumindo funções na área da saúde, educação,
previdência e assistência. De modo geral, até a década de 60, essas
instituições passaram a regulamentar o atendimento de crianças em creches,
inicialmente nos locais de trabalho, basicamente só respondendo a demandas
isoladas. A marca desses serviços, entretanto, foi dada pela área médica, da
puericultura social, dos sanitaristas e higienistas, em detrimento dos
educadores. Em função dessa influência, o DNCr
revela, desde seu surgimento, uma intensa preocupação quanto ao adequado
funcionamento das creches, realizando fiscalizações e publicações relacionadas
à organização dos serviços do ponto de vista sanitário e educativo, além de
tratar da preparação do pessoal responsável pelos cuidados das crianças.
Procurava-se, assim, evitar que as creches se transformassem em mais um foco de
doenças, causando mortes entre crianças pequenas (VIEIRA, 1988).
Nesse contexto, surgem os programas
"Gotas de Leite" e a primeira legislação referente à amamentação e
aos berçários enquanto direito trabalhista das mães com criança pequena
(através do decreto 01/05/1943, que aprovou a CLT). Essa legislação,
basicamente, define que todo estabelecimento com mais de 30
mulheres acima de 16 anos, deve garantir um local apropriado para
guardar sob vigilância e assistência os filhos das empregadas, durante o
período de aleitamento materno. No mínimo, deveriam contar com um berçário, uma
sala de amamentação, uma cozinha dietética e uma instalação sanitária.
Em 1969 e em 1971, duas portarias
estipulam algumas normas para a instalação de creches no local de trabalho,
todas elas visando condições adequadas de higiene. Em 1972, o Ministério da
Saúde publica o primeiro manual de creches (BRASIL, 1972), definindo normas
mínimas para que o funcionamento de creches garanta a saúde das crianças.
Em 1982, fruto de transformações
sociais e do movimento popular de abertura política, um decreto estadual do
Governo de São Paulo cria Emenda Constitucional definindo que o Estado manterá,
nas repartições públicas, um local aos filhos, de até sete anos, de suas
funcionárias. Surgem, então, os Centros de Convivência Infantil (CCI), sendo
que o termo "creche" não é utilizado, aparentemente por estar marcado
por preconceitos. Já nos CCI, verifica-se investimento na construção de uma
nova proposta educacional que buscava superar o modelo marcado pelo
assistencialismo, até então prevalente em instituições de educação infantil,
particularmente nas que operavam em tempo integral.
Nessa mesma década, definiu-se na
Constituição Federal (1988), dentre outros, que a Saúde é um dever do Estado e
um direito de todo o cidadão, assim como a educação de crianças de 0-6 anos é
um direito da criança, um dever do estado e uma opção da e como direito de pais
trabalhadores.
A Constituição Federal definiu,
ainda, lugar de prioridade nacional da criança e do adolescente, definição essa
que resultou, em 1990, na promulgação do ECA (Estatuto
da Criança e do Adolescente). Este reafirma a educação infantil como um dever
do Estado (artigo 54) e estabelece que a criança é cidadã, devendo ser
respeitada enquanto ser em desenvolvimento, com necessidades e características
específicas, como detentora de direitos: direito ao afeto, ao brincar e ao
querer, a conhecer e sonhar - direito de ser criança.
A responsabilidade pelo cuidados das
crianças, mesmo em seus primeiros anos de vida, atribuída ao setor da Educação,
é simultaneamente contraposta com outras propostas, as quais revelam a
dualidade com o setor da saúde. O Programa de Saúde Escolar, estruturado pelo
SUS, em 1990, passa a ser vinculado à Saúde, com o objetivo de assegurar os
serviços assistenciais a partir das unidades básicas de saúde. Além disso,
priorizam-se atividades preventivas por meio de ações coletivas na comunidade
e sua meta é a de que crianças, adolescentes e demais segmentos da população se
constituam enquanto agentes de promoção de saúde (FERRIANI & GOMES, 1997).
Em 1996, a promulgação das Leis de
Diretrizes e Bases (LDB) da Educação definiu que a educação infantil "tem
como finalidade o desenvolvimento integral das crianças até 6 anos de idade, em
seu aspecto físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da
família e da comunidade". Ressalta, assim, a integração do cuidado com a educação
e reconhece a educação infantil como parte integrante do sistema de ensino. A
partir da data de publicação dessa lei, as creches e pré-escolas tiveram três
anos para passarem a integrar os sistemas municipais ou estaduais de educação.
Na maior parte dos casos, entretanto, essa transição foi pouco elaborada pelos
profissionais de ambos os setores, o que tem resultado em intensos conflitos e
contradições em suas práticas.
Finalmente, o COEDI (Coordenadoria da Educação Infantil - do MEC) vem elaborando, nos últimos anos, diversos documentos com o objetivo de estimular e apoiar a ampliação da oferta de programas de educação infantil que atenda a parâmetros de qualidade. Dentre eles, encontram-se Política de Educação Infantil (1993), Critérios para um atendimento em creches e pré-escolas que respeite os direitos fundamentais das crianças (1995), Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) e o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998) (mais detalhes, vide ROSSETTI-FERREIRA et ai., 1998). De modo geral, eles tratam de concepções e princípios sobre desenvolvimento e educação infantil, identidade da criança, propostas pedagógicas adequadas a cada faixa etária, definição de critérios de qualidade dessas instituições, além do processo de credenciamento e regulamentação das instituições infantis junto aos Conselhos Municipais e/ ou Estaduais de Educação. Alguns pontos, entretanto, têm sido pouco contemplados nos documentos produzidos, como aqueles relacionados aos aspectos de promoção de saúde física e de formação do professor/educador, de modo a promover o desenvolvimento integral da criança com competência e qualidade, (integrando cuidado, educação e saúde).
De modo geral, durante todo o período
de existência das instituições de educação infantil, há uma duplicidade e
desarticulação dos setores da saúde e educação em relação à infância, sem uma
real integração desses dois sistemas.
Finalmente, verifica-se que, de forma
dominante, desde o século XIX, aspectos ligados à saúde da primeira infância
vêm carregados de discursos preconceituosos com relação à creche, esses também
construídos ao longo da própria história da medicina, em intercâmbio com a
história da implantação e estruturação de creches.
A Creche à Luz da Ótica Médica
A medicina, assim como outros setores
da sociedade, é uma ciência intimamente ligada ao conjunto da cultura e
qualquer transformação nas concepções médicas está condicionada às
transformações ocorridas nas idéias da época (SIGERIST, in CANGUILHEM, 1995),
ao mesmo tempo em que também as condiciona.
Desta forma, a puericultura e outras
áreas da saúde desenvolveram-se e constituíram-se, através de uma
processualidade que se deu à luz das permanências culturais e sociais e da sua
funcionalidade frente ao contexto (SPINK, 1996). Nesses processos, concepções e
conhecimentos foram construídos e estruturados através de discursos.
A apropriação e o uso dos discursos
da puericultura e outras áreas da saúde dependem das pessoas e das
contingências do contexto em que se encontram, o que
resulta em múltiplas versões dos mesmos (polissemia). Verifica-se tanto no meio
leigo como entre profissionais da saúde, a existência de vários significados
que envolvem as definições de normal/patológico, de saúde/doença, associadas à
freqüência de crianças em creche. Esses representam múltiplas versões e
diálogos entre o presente, o passado e o futuro ou, ainda, vestígios do passado
nas idéias de hoje (SPINK, 1996).
Vestígios da medicina grega, por
exemplo, que entendia a doença enquanto ruptura da harmonia
na ligação homem-natureza são encontrados no exercício da medicina
atual.
Verifica-se a existência de um número
significativo de profissionais que entende que o maior acometimento de doença
em creche resulta de uma ruptura na "natural" relação mãe-bebê,
harmônica apenas quando a mãe realiza os cuidados do filho, no ambiente
doméstico.
O positivismo do século XIX também
deixa suas marcas. Ele entende a doença como continuidade da saúde e estabelece
que é através da experimentação que se descobrem as leis,
segundo as quais cada uma das influências determinantes de um fenômeno
participa de sua realização. Como Comte afirmava, o essencial na experimentação
é comparar um fenômeno padrão com um alterado e, dessa forma, qualquer
concepção de "patologia" deve se basear num conhecimento prévio do
"estado normal" correspondente. Como vestígio dessa influência, nos
estudos de creche, verificamos que os eventos de doença em ambientes de
educação coletiva são quase sempre investigados de modo comparado ao estado
"normal" ou "padrão" de cuidados da criança - aqueles
realizados em casa, pela mãe.
Para a perspectiva positivista,
ainda, o fenômeno terapêutico tem como princípio a volta ao tipo natural do
qual o organismo se tinha afastado, diminuindo a
incitação e afastando os estímulos excessivamente violentos (BROWN, apud
CANGUILHEM, 1995). Assim, para curar deve-se "apenas fazer as
propriedades vitais alteradas voltarem ao tipo que lhes é natural", isto
é, é preciso retirar a criança da creche.
Podemos, ainda, citar o legado de
Claude Bemard (segunda metade do século XIX), que
entendia que, nas ciências, para se caracterizar a identidade do que é
fisiológico ou patológico deve-se ter argumentos
quantitativos e numéricos. Essa é a prática dominante na literatura médica de
hoje, que acumula grande quantidade de dados com o objetivo de se determinar o
lugar da creche como "fator de risco" no adoecimento das crianças.
Finalmente, a creche é olhada
predominantemente através das doenças infecciosa. Plagiando CANGUILHEM (1995),
que diz que "a teoria microbiana das doenças contagiosas deve,
certamente, uma parte considerável de seu sucesso ao fato de conter uma
representação ontológica do mal", pode-se dizer que o estudo de
doenças infecciosas em creche tem seguido o mesmo percurso, fundamentando
duplamente o "mal que a mesma representa".
A Rede de Fatores
que Estrutura os Processos de Saúde /Doença em Creche
Como discutido até aqui, as
concepções sobre saúde diferem de um indivíduo para outro, entre culturas e em
diferentes períodos históricos. Entendemos que essas diferentes concepções ou
versões são estruturadas através de uma trama de significações, que é
construída nas e através das interações estabelecidas pela pessoa, em uma dada
situação. Ela é canalizada pelas estruturas orgânicas, ambientais e temporais
do contexto e significada por elementos ideológicos que delimitam, estruturam e
interpretam o evento.
No momento atual, em função de
elementos históricos e culturais, o debate tem privilegiado elementos isolados
(como o fator orgânico da criança), dissociados do conjunto em que se inserem e
enfocado, prioritariamente, a faceta da doença, em um recorte transversal do
episódio de adoecimento.
Com o objetivo de superar essa
análise parcial dos processos saúde/doença em creche,
resolvemos estudá-los buscando apreender sua maior dimensão e
complexidade. Para tanto, optamos por investigá-lo utilizando a Rede de
Significações (ROSSETTI-FERREIRA; AMO-RIM & SILVA, 2000).
Resumidamente, a perspectiva entende
que qualquer processo de desenvolvimento humano se dá através da dinâmica e
dialética interação entre um conjunto de fatores (orgânicos, físicos,
interacionais, sociais, econômicos e ideológicos). Esses se articulam e se
estruturam em forma de redes, de natureza semiótica, as quais resultam em
práticas sociais específicas e possibilitam processos de construção de sentido,
culminando com a estruturação de diferentes contextos de desenvolvimento.
A rede de fatores envolvida em uma
dada situação empírica tem sido artificialmente decomposta em vários elementos:
componentes individuais das pessoas mais relevantes em dada situação; campos
interativos que podem ser, ou não, estabelecidos entre aquelas pessoas; e,
cenários, dos quais as diferentes pessoas participam e nos quais interagem. De
modo a compor uma situação específica, para elemento acima apontado, procuramos
identificar quem participa da situação; quando, como e onde as interações
ocorrem; as concepções e representações sociais dominantes; e, as relações
afetivas.
Todo processo é compreendido, ainda,
a partir de uma visão sócio-histórica (VYGOTS-KY, 1991; WALLON, in Werebe & NADEL-BRULFERT, 1986) o que resulta em três
importantes implicações. A primeira é que todo o conjunto se encontra imerso,
mergulhado, significado e transformado por um contexto, a que denominamos de
matriz sócio - histórica. Essa matriz é constituída por
elementos sociais, culturais, econômicos, políticos e ideológicos, que
propiciam e delimitam interações, papéis disponíveis e significados
culturais, os quais organizam e canalizam o desenvolvimento. Ela atribui,
portanto, um caráter semiótico à situação, significando a
rede de fatores e estruturando uma Rede de Significações, na qual
as pessoas interagem, desenvolvem-se e transformam-se. No entanto, a relação das pessoas com a matriz é bilateral e, ao mesmo
tempo em que são constituídas por ela, acabam também por co-construí-la
e ressignificá-la. Dessa forma, pessoas e redes são
contínua e mutuamente transformadas e constituídas.
A segunda implicação é que o processo
é analisado usando-se perspectiva temporal que envolve quatro escalas de tempo
interligadas. As três primeiras, tempo presente,
vivido e histórico baseiam-se em proposição de SPINK (1996); e a quarta, tempo
de orientação futura, foi posteriormente incorporada por nós
(ROSSETTI-FERREIRA, AMORIM & SILVA, 2000). O tempo presente implica
em posicionar-se em uma rede de relações, a qual constitui o nível dialógico e
pertence à ordem da intersubjetividade. O tempo vivido refere-se às
experiências e vozes evocadas, construídas durante os processos primário e
secundário de socialização. O tempo histórico é onde se inscrevem os
conteúdos imaginários derivados das formações discursivas de diferentes épocas.
E, finalmente, o tempo de orientação futura baseia-se nos três outros
tempos e envolve perspectivas e metas individuais e coletivas. É importante
frisar que essas escalas de tempo não são independentes ou separadas umas das
outras, mas dinamicamente relacionadas, umas sustentando e transformando as
outras no aqui-agora das situações, durante os processos interativos, em
cenários específicos.
A terceira implicação refere-se ao
fato de que nossa perspectiva envolve necessariamente o acompanhamento de um
processo em desenvolvimento. Isto é, busca-se compreender a transformação de um
processo através do tempo, procurando-se identificar os fatores envolvidos no
curso das mudanças, assim como os mecanismos através dos quais ocorrem as
transições de um momento para outro (VALSINER, 1987).
Com relação aos processos ligados à saúde/doença de bebês em creche, os conjuntos de fatores podem ser organizados da seguinte maneira:
A) Os sujeitos e seus
componentes individuais:
Quatro grupos de pessoas são
destacados, dentre os envolvidos na situação: crianças, educadoras,
profissionais da saúde e familiares, particularmente a mãe. Em cada um desses
grupos, e para cada pessoa dentro de um grupo específico, devem ser
considerados os componentes individuais que se relacionam aos aspectos bio-psico-sociais, os quais envolvem tanto a história
pessoal, como a saúde física e psicológica, as características passadas e
presentes, a vida profissional, a cultura e, também, a rede de relações.
B) Os Cenários:
Vários são os cenários centrais
ligados à problemática em discussão e eles envolvem principalmente a creche, a
casa da criança e das educadoras e os serviços de saúde. O de maior destaque
para a presente discussão é o da creche. Relacionados a cada um deles devem ser
consideradas as características físicas, a estrutura e a dinâmica social, os
programas, rotinas e práticas da creche, além dos elementos culturais que
permeiam o conjunto e a forma como se estabelecem e se mantém
os relacionamentos dentro deles.
C) Os Campos Interativos:
Várias são as possibilidades de interação
entre os participantes. Diretamente na creche, os campos mais relevantes são:
Criança - Criança, Criança - Educadora, Mãe - Criança e Mãe - Educadora. Outros
campos são estabelecidos com pessoas de fora da creche e envolvem,
principalmente, os agentes de saúde, dentre os quais destacam-se os campos Mãe
-Médico e Criança- Médico. Para se compreender as características dos processos
interativos, para cada campo pergunta-se: quem interage com quem; onde as
interações predominantemente acontecem; como são as rotinas e práticas que
estão na base das interações; e, quais as características do relacionamento,
buscando apreender os vários papéis e contra-papéis assumidos, desempenhados
e/ou negados por ambos os parceiros.
De modo a explicitar como os fatores
se relacionam dinâmica e dialeticamente, como são atravessados pela matriz
sócio-histórica e pelas diferentes escalas de tempo e também como se
desenvolvem, transformam-se e (re) significam-se na situação de freqüência de
crianças em ambientes de educação infantil coletiva, vamos apresentar um
exemplo de análise através da Rede de Significações nas doenças
infecciosas em bebês.
A Rede De
Significações Nas Doenças Infecciosas
No que se refere às doenças
infecciosas, dentre os vários componentes individuais destacam-se as
características orgânicas da criança, especialmente sua resistência
imunológica, durante os dois primeiros anos de vida.
De forma genérica, entende-se que o
bebê nasce com um sistema imunológico relativamente imaturo e a principal
resistência a agentes infecciosos se faz pelo aporte de anticorpos adquiridos
durante o período intra-uterino e através do aleitamento materno. Com o passar
dos meses, o organismo do bebê vai, gradualmente, sofrendo uma perda dessa
imunidade adquirida, enquanto que, de forma crescente, ele próprio passa a
produzir anticorpos. O desenvolvimento mais completo
desse sistema se faz até o final dos segundo/terceiro anos de vida. O
interessante, entretanto, é que o processo de desenvolvimento do sistema
imunológico não se dá de forma espontânea ou independente. Ele está íntima e
diretamente relacionado às interações que a criança estabelece com outras
pessoas (adultos e crianças), dentro das condições do meio em que se encontra.
Isso nos leva a refletir sobre os cenários que as crianças freqüentam (no caso,
a família e a creche) e os campos interativos que neles se estabelecem.
Quando se pensa em questões ligadas à
saúde / doença, o cenário da creche revela-se de extrema relevância. Como ponto
de partida, o fato de ser um ambiente de educação coletiva implica que, no
mesmo, estarão presentes um grande número de pessoas, dentre adultos e
crianças. Isso, por si só, resulta em um maior número e variedade de agentes
infecciosos circulantes, que potencialmente colocam o bebê em maior risco de
contaminação e adoecimento (FOGARTY, 1996). Baseados nesses dados é que
pesquisadores de diferentes áreas da saúde têm argumentado contra a freqüência
dos bebês em creches e, ainda, afirmado que seus efeitos são menos deletérios
no caso de crianças maiores.
No contexto da creche, dentre os
vários campos interativos, o campo criança - criança destaca-se pela tendência
dos bebês de levar tudo à boca (babando e contaminando objetos, por exemplo),
como ainda, pela prática de higiene ainda não desenvolvida, o que aumenta a
possibilidade de transmissão de e contaminação por agentes infecciosos.
Mas como referido acima, esses
processos interativos não resultam somente em maior risco de doença, mas também
contribuem para o desenvolvimento do próprio sistema imunológico. Ou seja, a
formação de anticorpos específicos encontra-se totalmente relacionada à
estimulação do organismo por alergenos, vírus e/ou bactérias, o que resulta na
sensitização de determinadas células do sistema imunológico, as quais constituem
as respostas imunes específicas. Assim, após contato inicial com esses
materiais estranhos ao organismo, as respostas imunes passam a ser possíveis, tomando-se mais rápidas, intensas e
duradouras, devido à memória imunológica. Ou seja, o sistema imune
"aprende", passo fundamental para o desenvolvimento do ser humano. O
caminho rumo à maturidade desse sistema se dá, portanto, através do contato com
agentes infecciosos, os quais podem resultar em episódios de doença (HAMILTON,
1998).
Uma perspectiva mais longitudinal,
portanto, pode re-significar os episódios de adoecimento. Assim, na literatura
médica, alguns autores afirmam que o contato com agentes infecciosos e o
adoecimento em si não representam fatores puramente negativos ao desenvolvimento
das crianças, já que muitas das doenças que as acometem representam imunizações
naturais que previnem doenças mais graves, mais tardiamente na vida, como pelo Citomegalovírus (DOBBINS et al., 1994).
E, de forma bastante inovadora na
literatura, McCUTCHEON & WOODWARD (1996) têm
discutido que, embora de fato se verifique uma maior freqüência de infecções
respiratórias nas crianças que freqüentam creche, quando se faz um
acompanhamento longitudinal do processo de adoecimento dessas crianças, nota-se
que a freqüência do adoecimento, que usualmente era maior durante o período
escolar, passa para os primeiros anos de vida. Esses autores sugerem, portanto,
que o que ocorre é uma modificação no pico de acometimento de doenças e não uma
intensificação indiscriminada das mesmas.
Finalmente, HAMILTON (1998) afirma
que o contato com agentes infecciosos, na primeira infância, resulta na atuação
em outro nível do sistema imune - aquele ligado às respostas alérgicas. Segundo
esse autor, as doenças infecciosas criam um equilíbrio dentro da produção de
respostas imunes que, ao longo do desenvolvimento, tendem a levar a um menor
número de respostas alérgicas, como a asma (dado esse também verificado por McCUTCHEON & WOODWARD, 1996).
O contato com agentes infecciosos
pode, portanto, ser considerado como passo fundamental ao desenvolvimento sadio
do ser humano. Desta forma, o interessante é captar que, olhando não só uma
malha maior de elementos, como também, o processo de desenvolvimento da
criança, ao invés de destacar exclusivamente a doença, apontando a freqüência à
creche como preditor de risco, o mesmo evento pode ser visto como colaborador à
saúde.
É fundamental frisar aqui que nossa
meta é investigar e discutir o controverso processo de inserção de crianças
cada vez menores em creche, analisando-o inclusive a partir de outras óticas.
Nesse sentido, verificar se a permanência de bebês em creche traz ou não apenas
efeitos negativos ao seu desenvolvimento, como muitos têm preconizado. Assim, a
importância do dado acima é a possibilidade de ver a permanência do bebê na
creche como podendo resultar em maior imunidade. Mas, de jeito nenhum,
significa que pode haver negligência com relação aos episódios de doença nesse
ambiente, nem de menor atenção aos aspectos da saúde/doença durante freqüência
do bebê à creche. Ao contrário, o que buscamos são formas mais adequadas de se
realizar os cuidados do bebê dentro de tal ambiente, de modo a promover um
desenvolvimento saudável. Isso implica, inclusive, em intensificar o trabalho na
prevenção de doenças, tanto por procedimentos organizacionais do espaço, das
atitudes e das crianças, como por programas de vacinação, e ainda, por práticas
de higiene (AMORIM & ROSSETTI-FERREIRA, 1999), algumas das quais são
discutidas abaixo.
No cenário da creche, deve-se
verificar a forma com que a instituição define as práticas de higiene, as quais
são fundamentais aos processos de saúde/doença das crianças que ali freqüentam.
Por exemplo, uma das práticas mais básicas - lavar as mãos - tem se mostrado
como preditora de maior/menor risco de infecção,
especialmente de diarréias (KATHLANDER & DRASAR, 1996). Estas, em países em
desenvolvimento como o Brasil, têm apresentado liderança nos tipos de episódios
de adoecimento ligados à freqüência à creche. Assim, lavar as mãos antes de
manipular alimentos na cozinha ou lactário, antes das
refeições, antes e após o uso de sanitários ou troca de fraldas, etc, têm
revelado imensa diminuição dos casos de diarréias e outras doenças, que
acometem tanto as crianças, como as próprias educadoras.
A forma como essas práticas se dão no
contexto na creche, depende de diretrizes e práticas estabelecidas pela
instituição e implicam em uma ampla ação sobre os vários locais que crianças e
educadoras freqüentam. Essa ação envolve a manutenção dos sanitários sempre
limpos e desinfetados; a organização dos mesmos de modo a ter papel higiênico e
cestos de lixos forrados com plástico; contar com pias de modelo e tamanho
adequados às crianças; assim como prover sabonete e toalhas secas.
Nesse processo ligado à higiene, o
campo interativo que se destaca é o da educadora-criança, pelo papel de
intermediador e mediador das educadoras. São as educadoras que limpam as
excreções dos bebês; que retiram e armazenam as fraldas; são elas que limpam
narizes, dão banho e lavam as próprias mãos e as das crianças no período em que
se encontram na creche. A forma como realizam esses cuidados pode resultar em
um importante aumento ou diminuição na incidência de episódios de infecção
nesse ambiente.
Entendemos, ainda, em relação aos
cenários, que não apenas as características da creche são relevantes ao
processo, mas também os efeitos resultantes do confronto entre creche e
família. A importância desse confronto está relacionada ao estresse que usualmente
é desencadeado nas pessoas envolvidas no processo de inserção da criança no
ambiente, já que implica em modificações na forma dos cuidados que vinham sendo
realizados anteriormente (pela mãe, ou outra pessoa, geralmente em casa),
alterando as condições e os tipos de relações já estabelecidas com o bebê, com
a necessidade de adaptação aos novos ambientes, às novas rotinas e pessoas. As
educadoras que passarão a cuidar da criança terão também de aprender a
conhecê-la e a buscar formas para lidar com ela e sua família, além de lidarem
com seus próprios sentimentos ligados à nova situação. Finalmente, mãe e
criança passam a vivenciar afastamentos temporários e diários que, no caso dos
bebês, ocorrem em uma fase em que os dois encontram-se em estado relativamente
indiferenciado de fusão (WALLON, in Werebe
&NADEL-BRULFERT, 1986).
O que é significativo nessa quase
inevitável fase de estresse é que, se a inserção não for bem trabalhada, o
estresse pode vir a se cronificar, aí podendo provocar uma relativa imunodepressão
(EVANS, CLOW & HUCKLE-BRIDGE, 1997) no bebê, o que o deixaria mais
suscetível à contaminação por agentes infecciosos. Aliás, essa preocupação com
estresse como decorrência de mudanças deveria existir por parte das creches,
não só no momento do ingresso, mas também quando ocorrem outros processos de
transição (como mudança de turma, de educadora, etc.). Esses momentos deveriam,
pois, ser bem planejados de modo a levar a uma diminuição do estresse da
criança e da família, durante toda a permanência na creche (VITÓRIA &
ROSSETTI-FERREIRA, 1993).
Uma boa e forte relação creche e
família, ainda, mostra-se da maior relevância, principalmente no caso de
crianças no primeiro ano de vida, quando se pretende prolongar o período de
aleitamento materno. Este tem sido um tópico amplamente investigado nos
trabalhos de pesquisa e tem-se verificado que sua realização resulta em uma
importante redução da incidência e gravidade de doenças infecciosas,
principalmente de diarréias e otite média, além de moderar quadros de infecções
respiratórias. Além disso, revela ter um efeito residual ao longo de meses,
cerca de até 4-5 meses após a suspensão do aleitamento materno (SILFVER-DAL et
al., 1997; DEWEY et al., 1995), mostrando-se eficaz, mesmo quando o
aleitamento materno não é exclusivo. A presença da mãe na creche, dando
continuidade ao aleitamento, pode promover uma redução nos casos de adoecimento
de seu filho, refazendo sua rede de significações relacionadas à creche e
criando nela uma relação de maior confiança nessa instituição.
Finalmente, é importante insistir que
o conjunto de significados que são atribuídos aos eventos de doença (e às ações
que se desdobram dos mesmos), nos contextos de creche, normalmente são
negativos e representam, ainda hoje, em nossa sociedade, as versões dominantes
do problema. A atribuição desses significados é dada principalmente por
interlocutores de grupos externos à creche, os quais envolvem tanto outros
familiares, como agentes de saúde, em
particular o/a pediatra. Estes últimos, por sinal, representam uma grande influência junto às
famílias, pela proximidade que mantêm com ela através dos seguimentos de
puericultura.
CONCLUSÃO – A
Construção de Novos Sentidos Relacionados à Saúde/Doença de Crianças em
Ambientes de Educação Coletiva
Através desses exemplos, entendemos
que a análise dos processos de saúde/doença através da Rede de Significações
possibilita um olhar mais amplo para a situação, recortando tanto fatores mais
imediatos do aqui-agora, como os significados provenientes de elementos
históricos e culturais. Além disso, a Rede possibilita a análise do
dinâmico processo de desenvolvimento, superando o recorte que usualmente é
feito do momento presente enquanto um evento quase atemporal,
destituído de suas características de co-construção, e sem ligações com
o passado e o futuro.
Esse tipo de análise nos revela,
ainda, vários pontos centrais relacionados aos ambientes de educação infantil
coletiva. Ele amplia o número de elementos que devem ser enfocados na situação,
destacando além das crianças, outros participantes (como as educadoras, outros
profissionais da creche e de saúde, além dos familiares), suas interações e
apropria instituição. Essa abordagem aumenta a capacidade de intervenção,
podendo resultar em uma melhoria na qualidade do atendimento e da educação da
criança pequena. Nesse sentido, entendemos que ações sobre os vários elementos
que compõem essas redes podem transformá-las, levando, por exemplo, a uma
diminuição na incidência de doenças nesses ambientes ou a uma modificação na
atenção a crianças com necessidades especiais, conduzindo as diversas pessoas a
se tornarem agentes e promotores de saúde, além de conduzir as crianças em
desenvolvimento em direção a um maior status de saúde.
A saúde/doença em creche passa,
então, a não ser exclusivamente um problema médico ou da área de saúde; não se
reduz, também, a um problema da família que não tem as informações sobre
cuidado básicos da saúde e "deixa" o filho na creche, enquanto a mãe
trabalha; não pode ser atribuído, também, exclusivamente às educadoras que
"não exercem adequadamente" seu papel em ambientes de educação
coletivos. A saúde/doença em creche não constitui um problema
individual, pessoal. Ele é, sim, o legado social
contemporâneo, que pode e deve ser trabalhado de modo a ter seu perfil
modificado e seu foco deslocado do patológico para o normal, da doença para a
promoção da saúde.
Para isso, todos e cada um devem assumir
a responsabilidade pelo processo, dirigidos e organizados por uma ação
institucional que envolva tanto os setores responsáveis pela educação no país,
como a direção das instituições de educação infantil.
Nesse sentido, como VALADÂO (1997)
afirma, não é só motivação para avaliar e oportunidade para desencadear as
transformações que se deseja produzir. Quem avalia precisa entender quem
freqüenta e trabalha; conhecer o que pensam, porque e como agem. O trabalho
envolve, portanto, a discussão e a recriação de critérios em conjunto com as
instituições, através de seus educadores e usuários, já que a construção e
regulamentação de parâmetros externos às instituições, que não tenham
significado para seus trabalhadores e famílias, não necessariamente contribuem
para sua incorporação à prática.
VALADÂO (1997) chama, ainda, a
atenção para a necessidade de se ter em mente o componente educativo do
processo de credenciamento e fiscalização, para que ele não seja usado como
instrumento de reforço da marginalização de serviços ou da exclusão de crianças
do sistema de ensino. A liberdade de criar e a autonomia constituem elementos
essenciais para que as próprias instituições prestadoras de serviços de
educação infantil tomem para si a tarefa de qualificar-se. E, ainda, a
equidade, a justiça social e o respeito à diversidade de atendimento
diferenciado devem ser meta central para a garantia de direitos quanto ao
cuidado da criança.
Além disso, as instituições de
educação infantil devem estabelecer de modo bastante firme vínculos com
serviços básicos de saúde da região em que estão inseridos. Essa articulação
mostra-se fundamental pois cada instituição poderá identificar, discutir e
elaborar localmente os critérios e projetos de saúde. Decorrentes dessa
interação deveriam resultar sérios esforços relacionados ao processo de
formação de educadoras e demais funcionárias sobre aspectos básicos de saúde. A
formação fará com que instituição e educadores passem a ativamente assumir seu
papel de agentes de saúde, tomando-os mais aptos a diagnosticar precocemente e
encaminhar mais adequadamente as diferentes doenças que possam vir a acometer
as crianças. Além disso, possibilitará que tenham tanto uma perspectiva
preventiva, como competência para dar assistência de emergência, em caso de
necessidade. Essa ação deverá ser desenvolvida através de triagem cotidiana e acompanhamento
tanto individual (fichas de saúde, seguimento pôndero-estatural, solicitação de
exames regulares de fezes, seguimento da vacinação, controle de intercorrências
de saúde), como coletivo (balanço das principais doenças, promoção de vacinação
contra agentes específicos, as quais revelam alto índice de acometimento
naquela região e população, limpeza de caixa d'água, etc.). Caso haja
possibilidade, a instituição poderá contar, no corpo de funcionários, com um
profissional da área de saúde (como um auxiliar de enfermagem).
Finalmente, de maneira pedagógica e
lúdica, deve-se desenvolver trabalho com as crianças,
mesmo as bem pequenas, desenvolvendo hábitos de higiene pessoal e do ambiente,
além de atividades que promovam o conhecimento do próprio corpo. Essa ação
parte do princípio de que, desde a primeira infância, as crianças representam
sujeitos ativos dentro de seu próprio desenvolvimento e, também, dos processos
de saúde/doença em creche.
Apesar de que as propostas neste
texto enfocam ações e programas relativos à saúde/ doença física, deve ficar
claro que elas não têm como meta o retomo das instituições de educação infantil
ao domínio da área médica, higienizando-as
novamente. Entendemos, que as ações em saúde são necessárias para um bom
funcionamento dessas instituições e devem ser estabelecidas em ligação com
ações pedagógicas. Somente dessa forma a creche pode se reconfigurar e, frente
às atuais e reais necessidades contemporâneas, tornar-se um equipamento não só
mais seguro e saudável para crianças, desde a primeira infância, como
representar um contexto bastante adequado ao seu crescimento e desenvolvimento
global, preparando as crianças para o protagonismo em saúde e para o exercício
da cidadania.
AMORIM,
K.S.; YAZLLE, C.; ROSSETTI-FERREIRÁ, M.C. Binômios
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