NATUREZA DO TRABALHO SÓCIO EDUCATIVO À LUZ DE UMA ANÁLISE SÓCIO-JURÍDICA DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

 

 

Sinara Porto Fajardo

Universidade de Zaragoza, abril de 2000.

 

 

1.      Contexto político da análise

 

Desde antes de sua entrada em vigor, o ECA concentra interesses contraditórios e, quase sempre, antagônicos que se expressam de forma ora mais, ora menos, visíveis no processo de implementação.

 

Para além dos debates políticos, mas coerente com a totalidade da luta ideológica sobre a nova normativa e suas conseqüências, os trabalhos científicos atuais situam-se em torno a duas grandes tendências: os críticos ao ECA, que ressaltam seus problemas de forma mais ou menos global ou pontual, e os defensores, que comentam e reforçam seu caráter inovador, garantista e participativo.

 

O ECA ampliou o leque da tutela do Estado para todas as pessoas em idade de desenvolvimento físico e emocional. Duas importantes conseqüências vêm com este novo paradigma: em primeiro lugar, o protagonismo do Poder Judiciário nas políticas de assistência à criança e ao adolescente deu lugar a uma divisão de responsabilidades entre o Estado e a sociedade, através dos Conselhos de Direitos e dos Conselhos Tutelares. Em segundo lugar, o estigma da criança e adolescente desamparado, em perigo ou perigoso tende a dar lugar a um reconhecimento de sujeitos de direitos, independentemente de sua situação pessoal e social.

 

A correlação de forças na sociedade brasileira atual demanda uma postura política de fortalecimento incondicional do texto legal, contra toda forma de resistência e ataques provindos do conservadorismo mais ou menos esclarecido. Está claro o perigo de retrocesso numa conjuntura instável como costuma ser o cenário político e legislativo no Brasil. O rebaixamento da idade mínima para a imputabilidade penal de 18 para 16 anos é, atualmente, uma bandeira disputada por todos os segmentos conservadores e contrários aos direitos humanos de adolescentes em conflito com a lei.

 

Cada artigo e a totalidade do ECA têm sido sistematicamente questionados por juristas, técnicos e políticos, com o intuito de retroceder à antiga doutrina da situação irregular[1]. Por outro lado, há uma espécie de pacto implícito entre profissionais, técnicos, políticos, ONGs, militantes de defesa dos direitos humanos, etc., de não enfrentar as debilidades, ambigüidades ou lacunas do ECA, com o objetivo de não vulnerar a própria existência da lei e de não apresentar entraves a sua implementação.

 

O debate atual entre duas posições diferentes em relação à necessidade ou não de regulamentar mais detalhadamente alguns artigos da lei, concernentes à execução de medidas sócio educativas, tem-se dado à luz de um pacto mais geral de defesa incondicional do texto atual da lei, tal e como se apresenta.

 

A esta postura conjunturalmente correta, situamo-nos numa postura cientificamente crítica, ou seja, que levanta e enfrenta dúvidas e busca respostas a partir da referência da defesa dos direitos humanos das crianças e adolescentes. Em tal panorama, definimos uma proposta de estudo crítico do ECA dentro do marco da Convenção Sobre os Direitos da Criança da ONU e da Constituição Federativa do Brasil.

 

2.      Luzes e sombras do ECA

 

As normas, como as relações sociais, expressam ambigüidades, cuja existência ilumina o enfoque segundo o qual a lei constitui-se em reflexos e alavancas das contradições na sociedade e no Estado; expressa o resultado, num contexto histórico dado, da correlação de forças entre distintas representações do papel de Estado (ou de direito) em relação ao objeto da norma. O Estado apresenta-se principalmente através de suas caras normativa e política, em sua relação com a sociedade. De acordo com as representações sociais sobre seu papel em relação aos direitos da criança, a normatividade vai-se configurar de forma mais ou menos intervencionista, promocional, garantista, tutelar, autonomista, etc..

 

Identificamos quatro ambigüidades do discurso e da prática decorrente da implementação do ECA, que podem ser condicionadas por este processo histórico de disputa de representações de infância e, principalmente, do papel do Estado em relação aos direitos das crianças. Podemos resumir as quatro ambigüidades como entre teorias de Estado subjacentes à lei, entre finalidades mais protetoras ou mais controladoras, entre elementos internos do conceito de proteção integral e entre concepções inerentes ao modelo de justiça juvenil.   

   

Ambigüidades no discurso e na prática

 

Os conceitos ambíguos são os que expressam duas ou mais representações sociais em si mesmos, opostas ou não, dando margem a distintas interpretações e práticas. Levando em conta que as normas são ou expressam relações sociais que, por definição, são contraditórias, óbvio que apresentem ambigüidades mais ou menos complexas. O ECA expressa, em seu conteúdo global, as relações sociais concretas a que se refere, e constitui-se como a síntese historicamente possível entre distintas representações sociais sobre  infância, Estado, sociedade, família, etc..

 

Representações de Estado e direitos fundamentais

 

Em primeiro lugar, está a ambigüidade de representações de Estado quanto a seu papel em relação aos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes.

 

O ECA pode ser examinado à luz de algumas teorias sobre o papel do Estado em relação aos direitos fundamentais, pois sempre o direito influi e é influenciado pelas representações de Estado e sociedade que o contextualiza[2]. Esta lei expressa elementos da teoria clássica ou liberal, ao positivar as liberdades e direitos individuais[3]; da teoria institucional, ao criar instituições para influenciar ou transformar a realidade social; da teoria dos valores, ao decorrer da Constituição Federal, que fundamenta-se no princípio da dignidade humana[4], apesar do ECA, especificamente, declarar ou definir direitos, ao invés de fundamentar-se neles[5]; da teoria da função democrática, também em decorrência do ordenamento constitucional, que define como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil princípios de uma sociedade democrática[6]; e, finalmente, da teoria do Estado de bem estar social, ao responsabilizar, ainda que não exclusivamente, o Estado pela garantia da liberdade e igualdade reais entre os cidadãos[7].

 

Em síntese, o  ECA reúne elementos teóricos de várias vertentes, o que expressa seu caráter de resultante de uma correlação de forças em torno a distintas representações não somente de infância, mas também de Estado e de seu papel em relação aos direitos humanos. Se uma representação hegemônica de infância foi contemplada na lei, apesar de ainda não totalmente nas práticas concretas, o mesmo não se pode dizer das representações de Estado ou, melhor dito, de poder. Esse caráter múltiplo deixa margem às polêmicas interpretativas de corte ideológico e, além disso, a um leque bastante amplo de alternativas de aplicação das normas e implementação das políticas delas decorrentes.

 

A partir do pressuposto de que as representações de Estado são mais determinantes que as de infância na eficácia instrumental do ECA, podemos facilmente intuir um objetivo latente de priorizar a eficácia simbólica, legitimando através de uma visão democrática de infância umas práticas autoritárias de poder público.

 

Assim é que, conforme o ponto de vista e os interesses políticos, enfatiza-se uma ou outra vertente teórica do ECA e, ainda, justificam-se umas ou outras práticas que dão consistência à lei.

 

Finalidades da lei

 

Em segundo lugar, está a ambigüidade entre a proteção da infância e o controle social enquanto finalidades do ECA, que traz conseqüências importantes no processo de sua implementação.

 

Os próprios fins protetores da lei são realizados através de maior controle social, na medida em que legalizam-se ou juridificam-se, de forma mais profunda, as relações sociais, ampliando e complexificando as formas de dominação ou de intervenção. Por exemplo, o aparato institucional proposto no ECA abrange toda uma gama de instâncias sociais que vão desde o poder público em nível federal, até a responsabilidade individual de cada cidadão em velar pela garantia dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes, num complexo público/privado que penetra cada família, entidade de atendimento, escola, hospital, vizinhança, organização não governamental, etc..

 

Uma reflexão mínima sobre os motivos pelos quais o Estado promove a proteção indicaria, pelo menos, duas razões principais: para compensar ou paliar os efeitos excludentes do modelo econômico e político adotado em relação a parcelas importantes da população e, consequentemente, do mercado; e para integrar estas mesmas parcelas num projeto de convivência social que não ponha em risco a ordem estabelecida como “normal”. Nessa lógica, as políticas sociais jogam um papel vital e ambíguo entre o que pode-se chamar de garantias de direitos econômicos, sociais e culturais e, por outro lado, o controle social baseado na busca de legitimidade do Estado ou, pura e simplesmente, na legalização das relações sociais (García e Susín 1998).

 

Legalizando as relações sociais, contribui para o aprofundamento do controle sobre os comportamentos que põem em risco não só os direitos das crianças e dos adolescentes, mas também a ordem e a segurança cidadã. Normatizando a prevenção e a proteção, não necessita positivar a repressão de forma explícita, pois contempla seus conteúdos negativos de forma muito mais sutil e eficaz. Reunindo, num só texto, alternativas de intervenção com objetivos tão complexos como contraditórios como são, por exemplo, os de proteção e os de sócio-educação, expressa a ambigüidade mais geral entre proteger/assistir e integrar/controlar.

 

O ponto de partida é o elemento que mais evidentemente expressa esta ambigüidade: são os supostos de intervenção, tal como se positivam no ECA. As medidas de proteção desencadeiam-se a partir da ameaça ou violação de um valor protegido constitucionalmente, que é a infância[8], enquanto as medidas sócio-educativas desencadeiam-se a partir da violação de outro valor, que é a segurança, também protegido constitucionalmente[9], violado através do ato infracional, análogo ao crime ou contravenção penal[10]. Neste caso, formalmente, a ambigüidade tem seu ponto de equilíbrio indicado na própria Constituição, ou seja, a prioridade absoluta é um princípio dirigido à infância (artigo 27 CF). Portanto, qualquer que seja o valor violado, a prioridade absoluta de proteção, em qualquer circunstância, deve ser dirigida à criança ou adolescente autor de ato infracional (artigo 4, parágrafo único ECA).

 

Na prática, o equilíbrio é inverso, deixando clara a tendência patrimonialista e a lógica de segurança cidadã como hegemônicas entre as finalidades do ECA. A representação de criança perigosa prepondera, assim, sobre a de criança em perigo. A ausência de conteúdo pedagógico das medidas sócio-educativas é indicador empírico claro desta tendência, confirmando a finalidade controladora como preponderante sobre a protetora dos adolescentes em conflito com a lei.

 

Equívoco seria considerar, nessa ambigüidade, dois pólos opostos de forma maniqueísta, pois o controle social, desde que num espaço garantista, atende a necessidades de convivência social pacífica e de garantia dos direitos das crianças em situação de ameaça ou violação, enquanto a proteção e a assistência proporcionam, contraditoriamente, tanto a possibilidade e a qualidade de vida para muitas crianças e adolescentes desamparados, como uma forma de integração numa sociedade reforçada, simbolicamente, como boa em si mesma.

 

O conceito de proteção integral

 

Em terceiro lugar, encontra-se a ambigüidade interna ao conceito de proteção integral absorvido pelo ECA a partir da normativa internacional sobre os direitos das crianças.

 

A doutrina da proteção integral é clara em relação ao seu destinatário, mas não ao seu método nem aos seus objetivos. A ambigüidade no ECA está entre um enfoque intervencionista, tutelar, que sobrepõe-se a uma ênfase autonomista, mais coerente com o conceito de criança e adolescente como sujeitos de direitos. A noção de sujeito de direitos (artigo 3º ECA) contrapõe-se à idéia de incapacidade, de criança objeto de intervenção, de tutela ou de repressão. Mas, também, pressupõe a oposição entre as represenções de criança como protagonista e criança como vítima, que contribuem para reforçar os estereótipos da criança adulta e da criança incapaz. O artigo 15 ECA define a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, o que sugere negar concepções como menor incapaz, objeto de intervenção, vítima, irresponsável. Sujeito de direitos pressupõe protagonismo, responsabilidade, mas, por outro lado, não pode significar adulto, culpado, protagonista exclusivo de sua situação. Todas estas contradições aparecem na prática de aplicação das normas legais, principalmente com respeito às medidas de proteção e sócio-educativas.

 

Por outro lado, está o equilíbrio entre a prevenção e o controle (de comportamento das crianças e das famílias), como conteúdos do conceito de proteção integral. Se o único caminho da prevenção é a previsão, e a única forma de prever cientificamente é identificando fatores, populações e comportamentos de risco, o passo seguinte - efetivamente preventivo - seria, logicamente, a tentativa de evitar o mal previsto: evitar os fatores, controlar as populações ou modificar os comportamentos de risco. Todas estas ações consistem, em última análise, em estratégias de intervenção preventivas com um forte acento repressivo e protetivo, pois sempre pressupõem um menor ou maior grau de intervenção seja tutelar, seja controladora de comportamentos.

 

O ECA expressa, em seu conteúdo híbrido entre penal e promocional, o caráter misto que resulta da transição de umas estratégias de controle social “negativo” ao “positivo”, ou seja, da repressão à ênfase na prevenção e proteção integral, o que traz como conseqüências a necessidade de implementação de políticas e, para isso, a normatização de uns critérios de comportamento social e de aportes do Estado[11].

 

Finalmente, está a relação entre a natureza dos supostos de intervenção (amplos, genéricos) e as medidas concretas de proteção, que pressupõem uma potência de medidas individuais para solucionar problemas sociais[12]. Essa ambigüidade é tratada, mas não superada, na própria lei, através de distintas esferas de intervenção normatizadas de acordo com uma classificação de violação de direitos. Para os direitos econômicos, sociais e culturais, o ECA prevê a proteção dos interesses individuais, difusos e coletivos, principalmente a educação (artigos 208 a 224 ECA). Para os direitos individuais, prevê medidas pertinentes aos pais ou responsáveis (artigos 129 e 130 ECA), fiscalização de entidades de atendimento (artigos 95 a 97 ECA) e garantias constitucionais (artigo 5º CF) e estatutárias (artigos 106 a 111 e 124 ECA).

 

A proteção integral contrapõe-se ao antigo paradigma de regularização da situação irregular do menor, o que, por um lado, reduz a estigmatização da criança desamparada mas, por outro, abre as portas ou justifica um intervencionismo ampliado, mais capilar, apesar de menos discriminador, que a doutrina anterior.

 

O modelo de justiça juvenil[13]

 

A quarta ambigüidade do conteúdo do ECA está no modelo de intervenção na parte dedicada ao ato infracional. O problema básico é a indefinição teórica e prática do modelo de justiça juvenil adotado. As decorrências são confusões, ao menos entre um caráter mais pedagógico, mais terapêutico ou mais penal do tratamento dos adolescentes em conflito com as normas jurídicas.

 

O ECA expressa a ambigüidade, ainda não solucionada em quase nenhum ordenamento jurídico sobre a infância e a adolescência, entre o caráter pedagógico e o penal do tratamento da delinqüência infanto-juvenil. Isso porque, apesar de garantir direitos individuais coerentes com a normativa internacional, incorre em vicissitudes decorrentes da concepção pedagógica que, em si mesma, pode ser anti-garantista, ao mesmo tempo em que acolhe princípios garantistas questionáveis quanto ao seu caráter pedagógico. Exemplo da primeira contradição é a duração indeterminada das medidas sócio-educativas, que atende a critérios pedagógicos mas viola o direito de segurança jurídica. Da segunda, é exemplo o direito de não falar nada que possa comprometer o processo de ampla defesa, que atende a critérios garantistas mas interfere no processo pedagógico, através do direito de mentir ou omitir a verdade, ou de não assumir responsabilidades pela própria conduta.

 

Giménez-Salinas (1998) apresentou um quadro comparativo de modelos de justiça, como material facilitador em palestra sobre o tema de justiça juvenil[14], resumindo cinco sistemas principais, nos quais podemos identificar aspectos conceituais do ECA.

 

Quadro III.2. Aspectos conceituais de cinco modelos de justiça juvenil

 

Sistema protector

Sistema bien-estar/educativo

Sistema normalizado no intervencionista

Sistema de justicia

Sistema reparador/responsabilizante

Objeto

El menor

Menor y família

Reacción social

El delicto

Daño/dolor

El delicto es una expresión de:

Patológica

De necesidad educativa

De normalidad

De libre elección

De conflicto

La intervención consiste en:

Tratar

Educar

Evitar la estigmatización

Castigar

Reparar el daño

Personal

Psico/social

Psico/educativo

Comunitário

Judicial

Mediadores

Finalidad

Protectora -moralizante

Educativa

Integradora

Respecto a la ley y al orden

Responsabilizar

Fonte: Giménez-Salinas (1998). Jornadas sobre Justiça Juvenil: Teruel.

 

Analisando o ECA a partir deste quadro, podemos observar que, no discurso explícito e latente do texto legal, o objeto de intervenção é a criança (menores de 18 anos) e a família (objeto de medidas próprias), característicos do sistema de bem-estar/educativo. O delito é o ponto de partida, mas não se apresenta como objeto de intervenção, apesar de ser expressão de necessidade educativa, também oriundo do modelo de bem-estar/educativo. A intervenção consiste em educar, outro elemento do mesmo modelo. O pessoal pode ser psicossocial, psico-educativo ou judicial, contemplando os modelos protetor, de bem-estar/educativo e de justiça. O ECA dispõe, ainda, sobre pessoal comunitário, mas quando refere-se mais às medidas de proteção de crianças e adolescentes autores de ato infracional. A finalidade da intervenção, de acordo com o ECA, é educativa, também ressaltando o modelo de bem-estar/educativo.

 

Na prática, costumam-se implementar as medidas sócio-educativas, de acordo com o ECA, seguindo um modelo híbrido entre os sistemas protetor e de justiça. O objeto de intervenção prática é a criança, conforme o modelo protetor, assim como a visão do delito como uma expressão patológica, que fundamenta práticas baseadas em conhecimentos oriundos da psiquiatria, psicologia e farmacologia. Essa tendência, entretanto, costuma ser distorcida e manipulada, reforçando umas práticas mais repressivas que terapêuticas. A intervenção consiste em tratar, conforme o modelo protetor, mas também em castigar, o que coincide com o sistema de justiça. O pessoal judicial, na prática, é também encarado de forma distorcida  em relação ao modelo de justiça original, pois além dos juristas, advogados, juizes, etc., tratam-se de agentes de segurança no manejo direto com os adolescentes. A finalidade prática do ECA é protetora/moralizante (mais moralizante que protetora), de acordo com um sistema protetor, mas também visa o respeito à lei e à ordem, conforme um sistema de justiça.

 

Em síntese, identifica-se uma ambigüidade teórica entre elementos do modelo de bem-estar/educativo e o modelo protetor, com ênfase no primeiro. E uma ambigüidade prática entre elementos dos modelos protetor e de justiça. Supõe-se que a ambigüidade prática seja, em parte, decorrente da indefinição teórica e da remanescência do modelo anterior, normatizado pelo Código de Menores de 1979, ainda presente na formação e na mentalidade de uma grande parte do pessoal que hoje em dia implementa a atual legislação[15].

 

O ECA, assim, apresenta-se como síntese dos modelos protetor e educativo e implementa-se como síntese dos modelos protetor e de justiça. Em termos gerais, o adolescente infrator é visto ao mesmo tempo como sujeito de direitos e como vítima/objeto de proteção e educação.

 

Os riscos deste caráter ambíguo do ECA são, basicamente, três:

 

O protecionismo com ênfase terapêutica reforça a estigmatização do adolescente autor de ato infracional, como se o delito fosse uma questão patológica, com origem claramente funcionalista e conseqüências totalmente anti-garantistas.

 

O educativismo retórico reforça a falácia pedagógica do ECA - segundo a qual a sócio-educação (indeterminada) é instrumento de transformação ou, pior, de reintegração num sistema social em si mesmo aceitável e bom.

 

Uma visão penalista estreita da justiça juvenil restringe possibilidades de resolução de conflitos com as normas desde fora do sistema judicial, tendo em conta realmente a condição de pessoa em desenvolvimento.

 

As vantagens desse ecletismo expresso no ECA são, evidentemente, importantes, pois pode-se aproveitar o melhor de cada modelo. Assim, ao garantismo, que nunca é exagerado, soma-se a proteção que sempre é necessária, desde que num sentido autonomizador, mais que tutelar. A uma visão global do adolescente como pessoa em desenvolvimento físico, intelectual e emocional, soma-se a possibilidade de construir formas alternativas de educação para a liberdade e convivência ao mesmo tempo pacífica e crítica. Às medidas de proteção ao adolescente, somam-se as dedicadas aos pais ou responsáveis, superando tanto a infantilização quanto a culpabilização da criança, ao mesmo tempo em que supera um familiarismo exagerado de corte paternalista ou repressor.

Na justiça juvenil brasileira a ambigüidade principal, em resumo, que aparece tanto no texto quanto em sua aplicação, é entre o caráter pedagógico e o penal, enquanto que a secundária, mas que aparece com força na prática, é entre os anteriores e o terapêutico/repressivo. Em nível de discurso, o argumento hegemônico sustenta o caráter pedagógico das medidas sócio-educativas (o próprio termo demonstra), mas em nível das práticas, as características principais são a ausência do caráter pedagógico e a violação do caráter garantista próprio do modelo penal.

 

As medidas sócio-educativas contrapõem-se à noção de pena, no sentido retributivista, tendendo a uma ênfase retórica no conteúdo educativista, mas isso não se reflete na prática. Sobre o caráter pedagógico do modelo, o ECA é claro, no inciso VI do artigo 112, quando define a internação em estabelecimento educacional como medida sócio-educativa. Nota-se, também, a clareza da lei ao definir o tipo de estabelecimento no qual devem-se internar os adolescentes: educacionais. Assim, a privação de liberdade, se imposta e realizada de acordo com o ECA, é medida sócio-educativa e não condição para a mesma. Ao não cumprir-se a lei, entretanto, surge a necessidade de justificar a privação de liberdade como meio para concretizar o conteúdo educacional, nunca efetivado, da medida imposta, como se o conteúdo pedagógico fosse alheio à própria natureza da medida, algo acrescido, mas necessário. Essa distorção resulta também justificadora de medidas cada vez mais repressivas em termos de segurança interna dos internatos, inclusive, eventualmente, com a presença de forças de segurança externa dentro das casas de internação.

 

Concretamente, várias situações contrárias aos direitos dos adolescentes em conflito com a lei e dos trabalhadores surgem dessas ambigüidades: 1) As sentenças baseadas nos antecedentes criminais, que compõem o quadro do comportamento e da personalidade que fundamentam as decisões do juiz[16]. 2) A duração indeterminada das medidas sócio-educativas, que viola os princípios de proporcionalidade, legalidade e segurança jurídica[17]. 3) Os laudos técnicos que fundamentam as mudanças de medidas, baseados nos comportamentos mais que no alcance de objetivos definidos individualmente. 4) A medicalização ou psicologização do conteúdo das medidas. 5) A coisificação ou vitimização do adolescente infrator. 6) A desilusão sobre a eficácia instrumental da norma. 7) O espaço aberto para o retorno de modelos superados, mediante alarmas sociais sobre a ineficácia do atual.

 

Duas coisas mais sobre os modelos de justiça juvenil. A intervenção tendente a evitar a estigmatização do adolescente autor de ato infracional, a importância do pessoal comunitário e a finalidade integradora, próprios do sistema normalizado não intervencionista, são elementos presentes no conteúdo do ECA, mas de forma secundária e, de qualquer forma, com escassa eficácia instrumental. Além disso, não se pode identificar nenhuma marca do sistema chamado reparador/responsabilizante[18]. Talvez seja útil, oportunamente, examinar as vantagens e desvantagens deste modelo, com vistas a contribuir para a implementação de alguns de seus elementos, de forma compatível com o ECA. Isso porque trata-se de um modelo muito valorizado e discutido atualmente, tanto em nível teórico quanto de experiências práticas com resultados apreciáveis, ainda que incipientes.

 

3.      Conseqüências teóricas

 

A aparente confusão entre modelos expressa no ECA não é alheia às contradições presentes nas representações em conflito na própria sociedade, sobre infância, segurança cidadã, etc.. Supõe-se que a sociedade brasileira normatizou o que aspira, mas mantém institucionalizado o que realmente representa em relação à segurança cidadã e à infância em perigo ou perigosa.

 

“Aquello a que los actores realmente responden y realmente han respondido con su decisiones  y su razones, sólo se podrá entender si se conoce la imagen que esos actores implicitamente hacen de su sociedad, si se sabe qué estructuras, qué operaciones, qué resultados, qué rendimientos, qué potenciales, qué peligros y qué riesgos atribuyen a su sociedad a la luz de la tarea que esos actores se proponen, a saber, la tarea de realizar los derechos y de aplicar el derecho” (Habermas 1998, p.470).

 

Isso explicaria, em parte, a defasagem entre a retórica e a realidade da proteção da infância e da sócio-educação dos adolescentes infratores. A falácia de enfatizar retoricamente a legitimidade global do ECA está em tomar a parte pelo todo, pois não há garantias dos direitos fundamentais nas sentenças nem na execução das medidas. A ênfase garantista do processo contradiz-se com a ênfase substancialista ou comportamentalista no julgamento e repressiva na execução. Por outra parte, o discurso educativista garante, também simbolicamente, a legitimação do modelo, enquanto a prática repressiva e terapêutica garantem a eficácia de objetivos latentes de controle social.

 

A solução das ambigüidades apontadas não está mais no discurso que na própria prática. A primeira, entre representações de Estado, possibilita uma pluralidade de intervenções em direção à garantia dos direitos da criança, apesar de também poder confundir sobre as condições concretas desta garantia. A segunda, entre as finalidades da lei, pressupõe um conflito entre racionalidades opostas e indica a possibilidade de solução mais política que legal, entre uma retórica ligada aos direitos humanos e a lógica de mercado. A terceira expressa o núcleo do conflito específico entre paradigmas de intervenção e deverá, em qualquer caso, pender para o lado da representação hegemônica na lei, que é a de criança sujeito de direitos e, portanto, para o caráter autonomista da proteção integral. A quarta ambigüidade tem sua solução incógnita, pois reflete um debate internacional ainda não resolvido e cheio de possibilidades, apontando apenas para um modelo eclético que acolha elementos compatíveis com a Convenção Sobre os Direitos da Criança.

 

Todas estas ambigüidades identificadas no ECA não levam à necessidade de mudança da lei, e sim indicam a riqueza de possibilidades de sua implementação. Pois se a lei expressa a convivência tensa entre distintas forças sociais, sua implementação será a expressão prática, a continuidade concreta dessa luta, e a história informará as sínteses construídas a partir destas ambigüidades.

 

4.      Conseqüências para direções e trabalhadores

 

A natureza ambígua do trabalho sócio-educativo, assim elucidada, contribui para uma “crise de identidade” permanente dos trabalhadores na área: Educam? Tratam? Reprimem? Protegem? Protegem-se?

 

Como se não bastasse, às ambigüidades teóricas e práticas apontadas somam-se características peculiares do trabalho sócio-educativo, que contribuem ainda mais para a necessidade de explicitação e sistematização das práticas e das propostas normativas, políticas e técnicas.

 

O contexto real do trabalho sócio-educativo em meio fechado é, via de regra, o único elemento que não apresenta ambigüidades: a instituição total. Caracterizada por um alto grau de controle e de contenção física, pela normativa de funcionamento e de convivência impostas e pela existência de um sistema de reforços e castigos, a instituição total delimita claramente o espaço e o tempo nos quais tudo o mais é ambíguo. Ninguém sabe exatamente se o contexto deve ser educativo, terapêutico, repressivo, protetor ou, em última análise, uma mescla de tudo isso.

 

Em meio a tantas ambigüidades em termos da natureza do trabalho, ressalta-se a maior delas: a população adolescente privada de liberdade, com todas suas características de período evolutivo especialmente complexo, da situação de conflito que supõe o ato infracional, das especificidades de cada personalidade, cognição, emoção, etc..

 

A violência como elemento presente, de forma mais ou menos explícita ou potencial, também conforma um contexto incerto e inseguro. Os alarmas sociais reforçados pela imprensa, pressionam a ênfase na segurança pública como meta do sistema sócio educativo. O “pessoal dos Direitos Humanos” pressiona a ênfase na defesa dos direitos individuais dos internatos. O Poder Judiciário pressiona pela absorção de adolescentes para medidas de privação de liberdade, num sistema esgotado quantitativa e qualitativamente. O Poder Executivo, responsável pelo trabalho sócio-educativo, pressiona as instituições específicas para que mantenham uma razoável estabilidade interna.

 

Com tantas pressões, o trabalho sócio-educativo tem-se apresentado como um conjunto de atividades vagamente norteadas por iniciativas e oportunidades que objetivam, na prática, manter um equilíbrio entre demandas externas e internas, causando no trabalhador direto uma possível sensação de desproporcionalidade entre a responsabilidade assumida (ambígua), os recursos (sempre escassos para esta área) e as expectativas próprias e alheias.

Isso não é outra história. Mas extrapola o propósito de análise sócio jurídica do ECA neste momento. Examinar as condições de trabalho, incluindo elementos objetivos e subjetivos dos contextos e sujeitos, exigiria outros enfoques analíticos, de fôlego superior mas não menos urgente e importante para definir a natureza do trabalho sócio educativo.

 

Bibliografia  citada

 

Böckenforde, Ernst-Wolfgang (1991): State, society and liberty: Studies in political theory and constitutional law, New York: Oxford Berg.

 

Calvo García, Manuel (1998-b): “Políticas de seguridad, discreccionalidad policial y garantías jurídicas”, Seguridad ciudadana y derechos humanos, Comisión Andina de Juristas, p. 153-93.

 

Calvo García, Manuel (1999): “Los derechos humanos entre dos mundos: La implementación de los derechos del niño”, Pensamiento jurídico: Revista de teoría del derecho y análisis jurídico 9, p.49-70.

 

Cavallieri, Alyrio (1997): Falhas do Estatuto da Criança e do Adolescente: 395 objeções. Rio de Janeiro: Forense.

 

García Inda, Andrés e Susín Betrán, Raul (1998): “Políticas sociales y derecho” en Añón, María José et al, coords. (1998): Derecho y sociedad, Valencia: Tirant lo blanch, p. 131-55.

 

Garrido Genovés, Vicente e Martínez Francés, Maria Dolores, edits.(1998): Educación social para delincuentes, Valencia: Tirant lo blanch.

 

Giménez Salinas i Colomer, Esther (1998): Los diversos modelos de justicia, Jornadas sobre Justicia Juvenil, Teruel: material fotocopiado.

 

Habermas, Jürgen (1998): Facticidad y validez: Sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, trad. Manuel Jiménez Redondo, Madrid: Trotta.

 

Ríos Martín, Julián Carlos (1993): El menor infractor ante la ley penal, Granada: Comares.

Sánchez García de Paz, Maria Isabel (1998): Minoría de edad penal y derecho penal juvenil, Granada: Comares.

 

Legislação:

Constituição da República Federativa do Brasil (1988).

Lei n. 6.697, de 10 de outubro de 1979: Código de Menores de 1979.

Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990: Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

 

Notas

[1] Ver, por exemplo, Cavallieri (1997), uma coleção de 395 falhas do ECA, reunidas e coordenadas por um dos principais menoristas brasileiros. A obra enumera objeções à lei em sua totalidade e a cada artigo, colhidas e apresentadas sem o menor rigor científico que dê crédito a sua fiabilidade, posto que descontextualiza cada afirmativa e mescla críticas com sugestões, análises jurídicas com opiniões políticas, etc.

[2] Seguiremos o esquema de Bödkenforde (1991, p. 179-98), onde aponta e caracteriza as teorias que citamos, aqui, brevemente.

[3] Por exemplo, os artigos 15 a 18 ECA, onde definem-se os direitos à liberdade, respeito e dignidade, caracterizam a criança como sujeitos de direitos civis, humanos, etc., e positivam-se os direitos à integridade física, psíquica e moral, à própria imagem e identidade. E os artigos 106 a 111, onde afirma-se o direito à liberdade e regulamentam-se os procedimentos de privação ou restrição deste direito em caso de adolescente que comete ato infracional.

[4] Artigo 1, inciso III CF.

[5] O ECA, entretanto, também fundamenta-se em direitos “inerentes” à pessoa humana, conforme o caput do artigo 3: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, (...).

[6] “Artigo 3 CF: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - Construir uma sociedade livre, justa e soberana; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalidade social e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação”.

[7] O ECA é claro quanto às atribuições do Estado em relação aos direitos sociais das crianças e adolescentes, como por exemplo nos artigos 8, 9, 11 parágrafo 2 (sobre saúde), 54, 57 e 59 (sobre educação).

[8] Artigos 6, inciso XV, 24 e 227 CF e artigo 98 ECA.

[9] Artigo 6 CF. Tanto a infância como a segurança estão positivados na Constituição como direitos sociais, mas a infância adquire maior relevância na medida em que é o único valor constitucionalizado ao qual se atribui como critério de garantia a “absoluta prioridade” (artigo 227, caput, CF)

[10] Artigo 103 ECA: “Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”. Artigo 112 ECA: “Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas (...)”.

[11] Sobre isso ver Calvo (1998-b, p. 158-62) e Calvo (1999).

[12] Para uma crítica a esta questão, ver García e Susín (1998).

[13] Sobre modelos de justiça juvenil ver Sánchez García (1998, p. 99 a 117); Ríos Martín (1993, p. 215-48); López et al (1995, p.31 a 45); Garrido e Martínez (1998, p. 245-56).

[14] Jornadas sobre Justiça Juvenil, realizadas em Teruel, Aragón, em junho de 1998.

[15] O modelo anterior tampouco se adequava a nenhum dos modelos sistematizados neste quadro. Tratava-se, sim, de um modelo cujo objeto de intervenção era o menor, a partir de uma situação irregular amplamente indeterminada, sendo a intervenção baseada na institucionalização e profissionalização. O pessoal majoritário era burocrático/administrativo e agentes de segurança, que atuavam com a finalidade de isolar, regularizar, reintegrar.

[16] O ECA define que todas as medidas, de proteção e de sócio-educação, podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, assim como substituídas a qualquer tempo (artigo 99), o que traz vantagens e desvantagens, desde um ponto de vista das garantias individuais dos adolescentes infratores. Por um lado, garante o direito à proteção integral, mas por outro permite que as medidas sócio-educativas sejam substituídas sem que se passe pelo devido processo legal. Este último, entretanto, refere-se (artigo 110), especificamente, às medidas de privação de liberdade, com o qual supõe-se que todas as demais medidas podem ser aplicadas pela autoridade competente, com ampla margem de discrecionalidade. Apesar disso, os juízes costumam assegurar as garantias previstas no artigo 111, pois é lógico que não conhecem de antemão a medida que resultará do devido processo legal. O que costuma vulnerar direitos individuais são as decisões judiciais baseadas nos antecedentes e no comportamento dos adolescentes. Primeiro, porque não se formam antecedentes criminais a partir de processos estatutários, e segundo porque não se podem aplicar medidas a atos já com anterioridade processados. Isso é conseqüência de que não se definem rigidamente os procedimentos em relação aos atos infracionais de adolescentes enquanto caracterizados como penais ou não. Se são penais, cabe a decisão com base no delito; se não, cabem outros critérios pedagógicos e, ainda, cabem parâmetros comportamentais como base para a aplicação e revisão das medidas.

[17] No direito penal juvenil comparado observamos o caráter indeterminado das medidas como critério diferenciador em relação às penas, sob o argumento do conteúdo pedagógico peculiar do primeiro. Entretando, no ordenamento espanhol, por exemplo, tal indeterminação jamais ultrapassa a duração máxima determinada pelo juiz quando da decisão firme, sendo possível somente ser reduzida, mas nunca aumentada. Assim mesmo, há quem ponha em dúvida o caráter pedagógico da indeterminação temporal das medidas para menos. No ECA, não há decisão firme sobre da duração inicial da medida e, além disso, esta deve ser reavaliada periodicamente, conforme o parágrafo 2 do artigo 121.

[18] Talvez o único indício deste modelo fosse a medida sócio-educativa de obrigação de reparar o dano (artigo 112, inciso II e artigo 116 ECA). Entretanto, o fato de esta medida integrar, também, outros modelos e, principalmente, seu caráter patrimonialista, tal como está disposto na lei brasileira, indica uma desconexão como o modelo reparador/responsabilizante, olhado como um todo.