A CRIANÇA
NO CONTEXTO FAMILIAR
Ada
Pellegrini Lemos
Doutora em Serviço Social.
Resumo:
Através da exposição de uma sessão de Terapia Familiar,
a autora procura evidenciar a existência de uma trama inconsciente regendo as
relações familiares e determinando a qualidade da dimensão afetiva que
envolverá, fatalmente, a criança e, futuramente, o adulto em sua própria
família de origem.
Este estudo é uma tentativa de se
caracterizar o que ocorre com uma criança, em função das suas relações com a
família e dentro dela.
Partindo-se de fatos comuns a todas as
pessoas, tentar-se-á elucidar o conceito da trama existente em todas as
famílias, que pode levar a resultados inesperados, podendo modificar totalmente
o rumo da vida de uma criança.
Anteriormente a Freud, as
pessoas eram definidas pelo que falavam, pelo que exteriorizavam através das
suas palavras. Sua aparência e essência confundiam-se, de uma certa maneira.
Somente os artistas, cantores e escritores, como Shakespeare, por exemplo, é
que, intuitiva e sensitivamente, conheciam a alma humana, suas profundezas, em
seus mais íntimos recônditos.
Mas é somente depois de Freud,
marco fantástico para a compreensão da mente humana, com suas idéias e seus
conceitos, que as pessoas não serão consideradas, ou, ainda, conhecidas apenas
pela sua aparência. E esta não mais revela o ser de um ser humano.
Freud descortina, então, a
possibilidade de um mundo inteiro e imenso no interior de cada um, com
potencialidades, conflitos, riquezas e recursos próprios. Um mundo de outras
dimensões que a linguagem verbal não esgota, nem explica toda sua amplitude.
Assim, tem-se, por exemplo, uma mulher exercendo, dentro de um grupo familiar,
o papel de mãe, mas que, dentro de si mesma, em sua realidade mais íntima, é
uma rival dos seus filhos e não exatamente sua mãe.
O mesmo poderia se dar com um homem que,
mesmo investido no papel de pai, vê no filho um inimigo, ainda que essa criança
seja um bebê. Para este homem, seu filho é tão-somente outro ser humano que,
pelo simples fato de existir, já lhe representa uma grande ameaça, pois, de
acordo com Freud, o inconsciente não tem lei, nem tempo e nunca, lógica.
Partindo destas e de outras considerações,
que demonstraram as relações das profundezas da vida mental, manifestadas e
estudadas por Freud no adulto, outras perspectivas foram descobertas por
analistas ingleses, liderados por Melaine Klein, nas quais ficou provado que,
ao nascer, o bebê já guarda consigo uma intensa vida mental. E, talvez
brevemente, chegue-se ao interior da vida mental uterina, do que carrega o ser
humano em seu universo intro-uterus.
Frente a essas conclusões e tomando-as por
base, pode-se dizer, numa primeira abordagem, que toda família, apesar
de ter uma aparência bem-estruturada, guarda, intrinsecamente, uma trama de
relações inconscientes, na qual os papéis tradicionais, rezados pela cultura,
de pai-mãe-filho-filha, etc., não se dimensionam, necessariamente, desta forma.
Ao contrário: podem tornar configurações totalmente diversas e antagônicas.
Para esclarecer melhor o que sejam essas
diferentes relações e como
esta trama se desvela, segue-se, agora, a apresentação de um relatório de uma
primeira sessão de terapia familiar, ocorrida há cinco anos, mas marcante o
suficiente para a compreensão, num primeiro momento, das idéias encerradas
neste estudo. O que a torna muito interessante não é meramente o que é dito,
mas o seu desenrolar na sessão, seu enredo, o que está sendo articulado por
trás do que está sendo falado, ficará muito nítido que as palavras são sempre
iguais e que o mundo mental apresenta dimensões outras que a palavra não
esgota.
São quatro os elementos desta família: A,
a mãe, com 53 anos de idade; J, o pai, com 63 anos; CH, 21
anos, estudante de farmacologia e identificado pela família como o paciente a
ser cuidado; e N, com 24 anos, estudante de engenharia, sendo os dois
filhos do sexo masculino. A família é de origem israelita.
Adentram o consultório. CH
senta-se ao lado da mãe; J senta-se num sofá e N em outro. Tem-se,
então, dois pares: a mãe e CH, o pai e o outro filho. A, a mãe, toma a palavra:
“Viemos porque aconteceu um acidente muito grave com CH e a
Dra. M esteve com todos nós. Nós a procuramos e ela
achou que seria melhor fazermos uma terapia familiar”.
A, sentada à beira do sofá, é uma senhora muito branca, gorda, de poucos e retos cabelos,
trazendo seqüelas resultantes de um provável derrame. Quando pergunto o que
aconteceu, ela chora, senta-se ainda mais à beira do sofá e entra em pranto
convulso. A pergunta é-lhe novamente dirigida, à qual ela então atende:
“CH tentou suicídio. Eu fui acordá-lo, de manhã, como
Sempre faço... Muitas vezes ele brincou e fez de conta que estava morto; mas eu
achei que estava demais e mexi nele e vi que estava muito mole. Gritei e chamei
o N, ele olhou o olho dele e chegamos até a pensar em droga. Aí, o N viu os
comprimidos ao lado do criado mudo e disse que deveríamos ir correndo ao
Pronto-Socorro”.
N: “Eu olhei e vi que a caixa estava vazia e, como moramos na Av. ..., logo pensei no Pronto-Socorro... e aí chamei o
papai e todos fomos para lá”.
À pergunta: “Qual comprimido você, CH, tomou e quantos foram?”, CH disse: “Eu tomei 40 comprimidos de Diempax”.
A: “O médico disse que o perigo dele morrer se deu até as 3 horas da manhã,
quando na ação da droga”.
N: “Nem adiantava mais fazer lavagem no estômago. Ele só tomou soro”.
A (caindo novamente em prantos):
“Eu sou culpada. Não adianta. Tenho
amigos que dizem que errei. Paciência, mas eu não agüento. Eu acho que prendi
muito o CH, eu protegi, não sei...”.
J é um homem
baixo, obeso, de cabelos vermelhos, cortados à escovinha. Às palavras de
sua esposa, precipita-se para a beira do sofá, volta-se para ela e fala:
“Bem, será que você me deixa falar, ou não? Até agora eu
não falei, existe um pai, ou não? Pra que eu estou aqui?”.
Ele se volta para o restante do
grupo e diz:
“O negócio é o seguinte: eu vou lhe ser muito sincero,
sincero e muito franco. Posso até lhe ofender, mas não me importa nenhum pouco.
Eu não gosto dessa história de psiquiatra, psicólogo, parapsicólogo. Esses
dois, aí, se tratam com a Dra. ..., eu gostei muito
dela e do Dr. ...”.
CH interfere:
“Eu faço individual, com Dr. ... e
ele foi até a minha casa no dia do suicídio e depois nós estivemos todos com a
Dra. M”.
J: “Bom, eles foram atenciosos e disseram que o CH deu como um grito de
alerta. Pode ser, eu acho que é possível. Mas eu penso que vocês, aí,
psicólogos, ganham dinheiro à custa dos sofrimentos dos outros! Nós precisamos
sofrer pra vocês ganharem dinheiro. Eu não gosto disso”. Seu pensamento é
completado pela frase: “... como um urubu
na carniça”, dita pela terapeuta, ao que J responde:
“É. Isso mesmo. Mas eu vim. Porque a senhora acha que é
brincadeira ter um filho que tentou suicídio? Ele podia ter morrido!”.
Todos param um minuto, ficam
muito quietos e a terapeuta aguarda. J rompe o silêncio:
“Eu quero continuar dizendo que nós somos uma família, mas
eu sinto que cada um fica no seu mundo, não tem contato um com o outro. Não
falamos, não conversamos, quase; não se sabe muito um do outro. Só moramos
juntos, nada mais. Acho que moramos no mesmo teto, só”.
A: “A Dra. ..., acha que foi um pedido de socorro
e eu acho que foi”. E torna a chorar muito, novamente. A terapeuta volta-se
e pergunta:
“E você, N, como vê a situação? E como viu a tentativa de
suicídio do seu irmão?”.
N responde: “Eu fiquei gelado”.
Enquanto isso, todos estavam de
olhar fixo no paciente identificado. Ele estava muito vermelho, humilhado,
olhos lacrimejantes, denotando um sofrimento muito grande.
N continua seu relato: “Eu fiquei gelado. Quando eu me vi no
carro, voltando para casa, pra pegar o talão de cheques...”.
A: “Na correria, nós o esquecemos e, no entanto, estava na minha bolsa”,
interrompe a mãe.
N retoma: “Eu estava dizendo que eu não sei explicar o que senti. Eu sempre achei
que o CH talvez pudesse fazer isto. Minha própria mãe, muitas vezes, lamenta-se
da vida e já falou várias vezes em morrer”.
CH manifesta-se: “A Dra. M acha que
eu fui como que um menino travesso, mas eu não sei, eu não sei. Eu também não
sei porque eu deixei a caixa pra eles verem”.
J confessa: “Eu fui como CH, quando menino e moço. Eu me sentia inseguro, mas acho
que isso passa... Eles são filhos e rapazes de ótima saúde, bonitos e
maravilhosos, temos que seguir em frente”.
A terapeuta, olhando para os
dois jovens, pergunta: “Vocês concordam
com o papai?”.
Ao que eles, de pronto, negam: “Absolutamente”.
N toma, então, a palavra “Ele não quer, ele nunca quis ver nada”.
A terapeuta retoma: “Sabe, J, acho que você olha um aspecto para
suportar ou negar o outro, presente nessa família. Acho e sinto que todos vêm,
há tempo, se sentindo isolados e deprimidos. Há muita depressão em todos, aqui.
Eu não vou falar com a sua cabeça, J, mas com o que você sente. Considero CH, o
seu ato, a expressão dessa depressão em todos, aqui dentro”.
N: “Sabe, pai, acho que se CH tivesse falado isto, nós não iríamos
acreditar. Então, ele fez. Assim, todos nós vimos”.
A terapeuta pergunta: “Que acha, CH?”
CH: “Eu não sei bem por
que eu fiz. Mas há muito que eu venho me sentindo que não presto, que eu não
vou conseguir nada, que eu não tenho nenhum valor. Em casa, eu não sei, eu não
consigo fazer as coisas”.
J: “Eu me sentia assim, de moço: abandonado. Principalmente porque as
minhas duas irmãs eram mulheres, ganhavam o que queriam e tinham uma
preferência clara do meu pai. Eu entendo ele, eu
entendo. Eu também era sensível”.
CH: “Mas eu acho que em casa acontece uma coisa que eu não sei explicar. Eu
sempre quis imitar o N, ele sempre se sai bem”.
N: “Eu nunca fui um bom
estudante, mas eu sinto que meus pais não se importam, parece até o contrário,
como se fosse bom. Mesmo assim, eles parecem que aprovam ou gostam ainda mais”.
A: “O CH é esforçado, estuda muito. Mas parece que nem sempre consegue...”.
CH: “Eu não consigo, não.
Quase sempre, não. Aí, eu tento agir como ele e me dou mal. Aí eu fracasso de
uma vez, eu não sei, eu não sei o que fazer”.
J: “Eu acho que ele, N,
sempre foi esperto, sabia agradar a gente”.
A completa, sorrindo: “Quando eu ia bater nele, de pequeno, ele ia
contra a parede, levantava as mãozinhas e dizia: ‘Ah! Mamãe! Que coisa triste
que você vai fazer... Vai me bater? Você tem coragem?’ Eu, aí, parava”.
J interrompe, sem a menor
cerimônia, mudando de assunto:
“E ela, aí, também teve um problema com o
irmão e não foi fácil”.
A retruca, nervosa: “Você não pode falar no meu lugar! Eu
explico: o que acontece é que meu pai era um homem muito delicado e até
carinhoso, mas machista. A preocupação dele era o futuro do meu único irmão,
que era homem. Ele sempre procurou fazer o meu irmão viajar, estudar. Oferecia
tudo a ele! Ele deixou até que eu fizesse advocacia! Acho que era até avançado
para a época. Afinal, foi no começo do século! Agora, a minha mãe era uma tola,
não tinha opinião. E eu fiquei meio às traças, nunca
acreditaram muito em mim. Mas, no entanto, e ainda hoje é assim, é comigo que
todos vêm chorar as mágoas, eu sou a forte, a que pensam que é a forte, a que
agüenta. Quando meu irmão queria, por um tempo, se desquitar, vinha na minha
casa e chorava como criança! Pensam que eu sou forte, mas eu não sou nada
disso!”.
Novamente, A cai num choro convulsivo. A
terapeuta se manifesta:
“Vejam,
eu queria realçar o seguinte: aqui ocorre um processo; não há culpados, não há
inocentes. Aqui, alguém gera alguma coisa no outro. Vou aproveitar o que
aconteceu aqui. Neste momento, CH parece representar, ou está deslocado para o CH justamente essa menina sem valor — e
apontando A —, este homem sem valor — e apontando J —, estão colocados nele.
Você, A, toma conta deste seu abandono nele e assim o enfraquece. E você, J, se
afasta, por que ele mostra uma parte que lhe faz sofrer. Agora, entrando
diretamente, eu diria: acho que você, CH, e você, N, ficaram sem saída. Eu vou explicar
por quê. Você, CH, não pode ser ele porque não o é; e, quando se esforça aqui,
nesta família, é como se fosse a prova de sua inferioridade e de sua incapacidade. Esforço, aqui,
não é visto como valor. E então, como fica? Se trabalha, ou estuda, ou se
esforça, é ameaçador; se o imita, é pior. Então, você não sabe como fazer para
crescer”.
Nesse momento, a mãe interfere: “É, eu entendi o que a senhora quer dizer,
eu entendi. Eu me aproximei dele por isso”.
J: “É, a senhora é mesmo direta”.
N: “Mas não ficou bem pra mim”.
Terapeuta:
“Eu acho que ficou péssimo. Você parece conseguir uma aprovação tão fácil pra
tudo que você faz, que você fica sem saber se é válido ou não, se você é
realmente de valor ou não. Os dois acabam num processo sem poder guardar forças
e qualidades”.
N: “É por isso que eu acho que eu engano os outros?”.
Terapeuta: “Eu acho”.
E a sessão foi encerrada.
Aparentemente, não há, neste relato, a
existência de criança alguma. Mas, analisando-se o caso mais profundamente, há a presença marcante, intrínseca, de uma criança que não cresceu:
A.
A análise deste fato clínico levará a um
primeiro entendimento do que seja a trama familiar, porque, apesar de esta
sessão ter ocorrido há mais de cinco anos, o problema nela contido é a temporal
e pode estar acontecendo agora, em qualquer família, em algum lugar.
Fica claro que, quando N, o
filho mais velho, nasceu, já estava prescrito, de alguma maneira, quem ele
seria. Quando CH nasceu, também já estava determinado o que e quem ele seria. A
família já havia vaticinado os papéis subliminares que cada um ocuparia dentro
dela e na vida, através do mecanismo da pseudo-identidade, que é colocado pela
família na criança em desenvolvimento.
Esse mecanismo é muito forte e se incrusta de tal maneira na criança que
ela desenvolve uma personalidade que não é
a sua.
É nessa medida que a história relatada é de extrema importância para
a compreensão da trama familiar, uma vez que se viu, claramente, o ápice de um
desdobramento começado há vinte anos.
É exatamente neste ponto que se pode fazer o
desmascaramento iniciado por Freud e continuado por Melaine Klein e tantos
outros, tornando claro o conceito da trama: é o desmascaramento da mãe, A.
Nesta família, A é só mãe? Ela tem função de mãe; como em todas as
famílias (o que é interessante) exerce prendas domésticas, sem a menor dúvida,
mas não é só mãe. Ela é, sim, mãe de um bebê eterno,
que ela não consegue deixar crescer, provavelmente por medo. Ela se identifica
projetivamente com esta criança e, portanto, não consegue deixar de tomar conta
de si própria, tomando conta do filho. Ela não se permite crescer, através do
próprio filho.
Dessa maneira, ela vai
destilando, através da identificação projetiva, a incapacidade de CH, sua
fragilidade, que ele é suscetível e não pode progredir. Essa destilação é feita
ao longo dos anos, incessantemente. Daí a incrustação da pseudo-identidade em
CH.
Do filho N, o mais velho, vê-se que ela não
é mãe. Ela é uma namorada. O casal real desta família é A e N. Foi N quem ela chamou, N quem foi atrás do talão
de cheques, foi ele quem decidiu sobre o Pronto-Socorro, foram os dois, juntos,
chamar o pai, J.
Essa postura de N é tão patente,
dentro da família, que J entra na sessão e protesta: “Como? Não tem o pai?”, escondendo que ele, realmente, não é o pai.
“Eu me acuso, antes que me acusem, pra que ninguém descubra o que ocorre com
minha pessoa”, é o que grita seu inconsciente, não com medo de algum
julgamento, mas em conseqüência do próprio conflito que nele se estabelece.
Se um psicólogo julgar uma
família, ou uma pessoa, seu trabalho se tornará impossível. Sua escala de
valores tem de ser posta de lado, pois, através deles, todo seu trabalho se
inviabilizaria e ele não chegaria a nada.
Voltando à análise da sessão relatada, o
quadro que se afigura é o
seguinte: Apesar de reclamar seu lugar, J, o pai, sai de seu papel e o entrega
a N, pois também quer ceder seu lugar de pai ao filho. Assim, a mãe toma-se o
centro das decisões: ela faz uma parelha com o filho mais velho, expulsa o
marido e protege o filho caçula. O pai também joga os filhos para ela, pois há
um pacto entre ele e a mãe, no qual os dois falam a verdade e satisfazem suas
mútuas necessidades. J não se aproxima de CH porque ele é o seu retrato dentro
da família e diante do filho mais velho, principalmente. A não deixa J entrar.
J não entra e A entra. Ela entra e ele sai, e assim o jogo continua por anos e
anos, até que a trama se forma, confinando e congelando as pessoas.
Nessa medida, a partir do
momento em que nasce, a pessoa já está absolutamente congelada. Isso se percebe
em fatos sutis, como quando uma criança chora três noites seguidas, e algum
membro da família diz: “É, eu acho que...”. Pronto. Está iniciado todo o
processo de construção da pseudo-identidade dessa criança, que vai tomando
proporções tais que tudo o que ela faz ou o que acontece com ela serve para
comprová-lo, expandi-lo, até que se estabeleça sua incrustação naquele ser
humano.
Assim, confinados e congelados
nas posições estabelecidas por A e J, CH não consegue dimensionar todos os seus
recursos e suas potencialidades e N também não procede de modo diferente. Ele
está fadado a ser um homem que tem de tirar da mente as soluções, as idéias,
como se possuísse o dom das ciências infusas. Mas quem as têm?
Todas as pessoas precisam estudar e trabalhar muito seus
conhecimentos, se quiserem entender alguma coisa.
Então, se N agir do mesmo modo que CH,
também ficará incapacitado para se desenvolver, tendo que operar um processo de
crescimento miraculoso, um crescimento que chega às raias de uma realidade
impossível, pois não fica, em nenhum momento, de posse e nem faz uso dos
recursos e das potencialidades que poderia ter à sua disposição.
O
pai, ninguém vê. A mãe funciona como eixo. Ela não quer, mas quer, ao mesmo
tempo. Ora, se fosse tirada dessa posição, como ela se experimentaria? Que
dimensão impregnaria a ela própria, depois de tantos anos?
É por todos esses motivos que o
estudo desse grupo familiar se torna tão interessante. É um grupo antigo que,
quando chega a uma sala de terapia, traz uma história mais antiga ainda,
iniciada na geração anterior. Os papéis dentro dele estabelecidos estão de tal
forma cristalizados que as pessoas não se mexem nesse grupo. As pessoas se
subjugam: o irmão brilhante subjuga o irmão incapaz que, por sua vez, o admira
e o elege como o irmão brilhante. Todos concorrem para ficar onde estão,
congelando-se a si e ao outro. É por isso que a situação fica imutável.
A trama não pára de se
movimentar, gerando um terceiro produto que gere todos
os componentes do grupo, submetendo-os, pois esse produto é mais forte que cada
elemento por si. E isso não se dá somente num grupo familiar, mas em qualquer
grupo a que se pertença. O produto de sua trama se arrasta e seu resultado
segue uma direção que nada mais tem a ver com cada pessoa inserida nesse grupo
e na medida em que se forma uma teia, é mais forte do que todas elas. Tem-se,
aqui, um conceito de sistema trazido da biologia. Não é meramente uma teoria,
mas um método para se compreender os fenômenos e, neste estudo, está sendo
utilizado como subsídio à teoria analítica, extraída da psicanálise, para que
se compreenda profundamente as relações familiares.
Num relacionamento de família,
existe o afeto, o amor e a teia, e entre esses dois elementos há uma profunda
relação na medida em que, apesar de todos os membros componentes da família se
amarem muito, a qualidade do amor a ser nela veiculado está afetada por essa
teia.
O ciclo de vida de uma família
assemelha-se ao ciclo de vida de uma planta. Começa com uma parelha humana, ou
seja, o namoro, seguido de noivado e casamento. Nascem os filhos, crescem, vão
para a escola, chegam à adolescência, vão para a fase adulta. Então, os filhos
saem do seio familiar, o casal torna a ficar só e o ciclo se encerra. É
perfeito como o ciclo de uma planta, ou de qualquer organismo vivo.
Porém, esse ciclo exerce
fortíssima influência sobre a teia, posto que esta se desenvolve paralelamente
àquele. A vida e a realidade invadem essa trama de tal forma que a família não
consegue sobreviver em algum momento deste ciclo.
Observe-se o exemplo a seguir:
Um casal, pais de gêmeos, um menino e uma menina, procurou a ajuda de uma
terapia de casais. Na sessão, constatou-se que as brigas do casal começaram por
ocasião da gravidez da mulher.
Ela é filha caçula e temporã, a
irmã, imediatamente acima dela, tinha 17 anos quando do seu nascimento. Seu pai
era piloto e se ausentava por largos e longos períodos, O irmão mais velho
tinha 23 anos. Sua mãe criou-a de forma a ter por ela quase que um compromisso
de sobrevivência, pois suportou um casamento muito frustrante, o marido sempre
ausente, os filhos já moços, mas, mesmo assim, teve essa filha.
O homem do casal em questão foi o filho mais
velho de uma família cuja mãe ficou viúva prematuramente, tendo ele, aos 17
anos de idade, de assumir o papel de chefe, tomando conta da mãe e de toda a
família.
Aparentemente, este era o homem ideal para
aquela mulher, pois daria total cobertura a sua fragilidade, de modo que ela
prosseguisse na vida mantendo a mesma posição mental que ela tinha na própria
família.
Enquanto os filhos não
apareceram, o casamento funcionou, pois ela o tinha à disposição e ele também.
A partir do nascimento dos
gêmeos, ainda mais de um menino e uma menina, o casamento desmoronou, pois não
houve continência para as circunstâncias criadas. A família não conseguiu
superar um ciclo. A trama foi mais forte.
Veja-se, agora, outra situação: A família de
um político procurou auxilio da terapia. Havia sete pessoas nesse grupo: O pai,
a mãe e cinco filhos, dos quais só um do sexo masculino.
O marido sempre estava ausente,
mas a mãe conseguiu se desincumbir de sua tarefa, sem problemas. Levava os
filhos à escola, depois cuidava de seus deveres; os dois mais novos ainda eram
bebês e ela pôde controlar a situação.
O problema se tornou claro,
quando as duas filhas mais velhas atingiram a adolescência — época em que a
família procurou a terapia — com 17 e 14 anos. Nesse período, geralmente se faz
necessária a presença masculina, que exerça um
controle sobre a vida social. A mãe tem esse controle e nunca ousou tocar nos
conflitos ou mexer na situação de conflito que tinha com o marido. Então,
durante a sessão, ela reclama da filha mais velha:
“Ela diz que chega às 10, mas ela sai às 10 e diz que chega às 2, mas ela não chega às 2, ela
chega às 3 e meia”.
Sabe-se, entretanto, que,
atualmente, os programas começam às 23 h, portanto, se o adolescente chegar às
3:30, estará dentro do período da normalidade, pois, anos atrás, saía-se às 20
h e chegava-se à meia-noite. É somente uma questão de adaptação.
Mas não para a mãe em questão: “Eu entro, fico desesperada, ele não está,
ele nunca está e ele não pode estar, sempre com compromissos aqui, ali e acolá.
Eu fico tão desesperada, tão desesperada, que eu vou pra cama e eu chego a
dormir, dormir, dormir, dormir e dormir. Eu não sei o que fazer”.
É realmente uma situação que se
sustentou até agora, mas, se o sistema e a teia que regem essa família não
forem redefinidos podem romper, o que seria muito difícil para essa mãe, pois,
mesmo com esse suposto rompimento, ela poderá não conseguir o que precisa. Ao
contrário. Dependendo da situação, um rompimento traria para ela desdobramentos
ainda piores.
Pode-se entender uma situação, mas é a
família que tem os componentes, e os tem mesmo para, através do descongelamento
dessa teia rígida, achar novas soluções.
Buscando-se um melhor entendimento do tema
em questão, pode-se afirmar que o desejo de amar uma criança não é soberano,
nem hegemônico. Depende das possibilidades de maior ou menor expansão a que ele
está submetido. Esta teia sofre pressões da própria realidade, por vezes até de
forma dramática.
Assim, depois de definida a importância do
papel não-aparente, real, que cada elemento tem numa família, na permanência
desse sistema, percebe-se, claramente, que um fato, desestruturador de uma
família, possa não desestruturar necessariamente outra. Exemplo: Uma família de
quatro elementos foi procurar ajuda na terapia. Era composta por três filhos e
pela mãe, viúva. A filha mais velha tinha 31 anos, seguida por outra de 27, as
quais já haviam se casado, desquitado e tornado à casa paterna, juntamente com
seus filhos. O único filho homem, apesar de não morar com a mãe, depende
economicamente dela.
Os membros desse grupo familiar estavam tão
profundamente ligados e eram tão interdependentes que a
sessão foi marcada com todos.
A causa-base da procura da terapia foi o
alcoolismo da mãe, gerador de muitas brigas na família.
Quando, porém, realmente tudo
começou? Quando da doença do pai. Ele sempre representou, nesta família, o
mesmo papel que a mãe anteriormente analisada. Sobre ele estavam colocados os
recursos e as possibilidades de cada elemento da família: o poder gerir, suportar
e conduzir a própria vida. Todos o viam como uma figura idealizada, daí o
deslocamento maciço de recursos, sem os quais ninguém vive e que estão dentro
das pessoas.
Mas, dependendo do movimento
mental que se faça, o processo mental instalado fica para o outro. Então,
quando este some, acontece a tragédia, uma vez que ele levou consigo todos os
recursos de que se disporia e se teria de dispor para se cuidar da
sobrevivência.
A filha de 31 anos desquita-se e
volta à casa paterna com um filho. A outra, de 27 anos, também se desquita e
retorna, com dois filhos. O pai foi ficando sem saída e, em seis meses, morre,
vitimado por um câncer. Parece que ele, não agüentando, sucumbiu. E, com ele,
todos sucumbiram.
Sabe-se, contudo, que não é toda família que
sucumbe com a perda do pai, pois não é toda família que tem sistemas instalados
de tal forma que as posições de seus membros congelem-se e fixem-se
a esse ponto. Mas a realidade, quando atua, encontra, pois, na família, maior
ou menor possibilidade de metabolizar o fato de, efetivamente, se pulverizar
com o fato.
Há o caso de um outro casal, cujo marido
também trazia um quadro de alcoolismo, agravado por hipertensão. Seu clínico, com rara visão psicossomática, aconselhou: “Olha, eu acho interessante que vocês façam
uma terapia de casal”.
Então, através de uma enorme briga, na
primeira sessão, a situação foi apresentada: o rapaz era filho mais velho,
dentro da família, e carregava em seus ombros o pai, a mãe e uma irmã, além do
seu próprio grupo familiar, composto pela mulher e pelo filho. Além disso,
também se tornou protetor do sogro e da sogra.
É assim que a pessoa vai entrando num
ajustamento, agarrando-se a uma incrustação e conduzindo a vida, sem se indagar
da qualidade da natureza das suas reais possibilidades. E, às vezes, ao
arrancar a incrustação, não agüenta. Pois, sem se desmascarar, ela não sabe se
vai resistir. Há uma espécie de fusão e é aí que ela se dimensiona: naquilo que
de fato ela poderia ter como expansão.
Exatamente nessa medida é que a
história clínica é de suma importância: para se considerar uma criança, deve-se
considerar sua história e para se considerar um sistema de inter-relações,
deve-se compreender a posição de cada um, dentro desse sistema.
É como se, ao se escutar uma orquestra, se
pudesse dela extrair o solo de clarinete que nela está inserido. Apagar-se-ia,
totalmente, o resto da orquestra, num aparelho de som. Somente o solo de
clarinete seria executado. E, nesse momento, é que se perceberia que ele tem
vida própria, seu próprio som, suas próprias notas e nuances. E, somente depois
dessa plena percepção é que
a orquestra seria novamente incluída, para acompanhar o solo do clarinete.
Fica-se, enfim, com a certeza de que a
faculdade de amar, essa qualidade, é um dom inato. Todos têm amor. E todos têm
ódio...
Dependendo da composição a que se entregam,
as pessoas podem usar esse amor em maior ou menor possibilidade, para ser
oferecido mesmo a elas próprias, porque o exercício de amar faz muito bem.
Principalmente quando se vai oferecê-lo a quem está próximo...
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LEMOS, A. P. A Criança no Contexto Familiar.
Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. I(2): 1991.
Nota sobre a autora
Ada Pellegrini Lemos
é doutora em serviço social, professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Serviço Social, coordenadora do Programa de Especialização em Famílias:
“Família - dinâmicas e processos de mudança”, da PUC/SP, terapeuta familiar.