O ESTADO BRASILEIRO E A EDUCAÇÃO (ESCOLAR) INDÍGENA: UM OLHAR SOBRE O
PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO
1. Contextualizando o debate
Procurarei, neste tópico inicial, inserir a análise da temática da educação (escolar) indígena (1) no Plano Nacional de Educação - PNE, na história das relações políticas que se estabeleceram entre o Estado nacional e os povos nativos do continente, contexto no qual se localiza a presente discussão sobre o papel, dever e responsabilidades do Estado quanto aos povos indígenas, interessando, neste caso, em particular, o direito à educação escolar.
Como se sabe, o Estado brasileiro foi se formando sobre as terras e domínios de inúmeros povos que ocupavam o território continental onde inicialmente aportaram portugueses e, posteriormente, franceses, ingleses, holandeses e, sob cativeiro, membros de nações originárias do continente africano. Ao olharmos seu processo de consolidação, através dos períodos colonial, imperial e republicano, pode-se afirmar que a presença dos povos genericamente denominados de indígenas, sempre constituiu preocupação para as forças colonizadoras.
Conforme analisou Costa (1992, p. 171), “a questão indígena sempre esteve, na história brasileira, intimamente associada à construção do Estado e aos problemas militares”. A mesma avaliação fez Heck (1996, p. 21) ao afirmar que “a formação do Estado Nação teve nas forças armadas um de seus elementos básicos, e se deu num processo antagônico aos interesses dos povos nativos, o que dá, à integração, uma conotação de negar aos índios sua condição de povos diferenciados”.
Uma estratégia jurídica utilizada foi a limitação da capacidade civil dos índios. Segundo Guimarães (1996, p. 2),
“como uma das formas de viabilizar a dominação do território, prevaleceu entre as forças colonizadoras a idéia de que os ocupantes originários do território invadido, não se constituíam como unidades políticas próprias e independentes, mas como aglomerados de indivíduos sem organização sócio-cultural. Esta concepção ensejou a criação de mecanismos que tornassem estes indivíduos partes integrantes do corpo social dominante”.
Dentre esses mecanismos, destacaram-se os projetos de escolarização implantados em áreas indígenas.
Desde suas origens, as leis que se estabeleceram para normatizar e regular as relações com os povos indígenas tiveram como fim último a prerrogativa da integração (incorporação). As forças políticas hegemônicas na comunidade majoritária definiram que a existência dos índios no Brasil passava por uma “adaptação à civilização do país”, concepção esta que veio a ser referendada pela Constituição Federal, promulgada em 1934 (art. 5º XIX) mais tarde reafirmada na de 1946 (art 5º XV-r) e também na de 1967/69 (art. 8º XVII-o) e denominada como “incorporação”.
Atualmente,
a Constituição de 1988 inaugurou no Brasil a possibilidade de novas relações
entre o Estado, a sociedade civil e os povos
indígenas, ao superar, no texto da lei,
a perspectiva integracionista, e reconhecer a pluralidade cultural. Em
outros termos, o direito à diferença fica assegurado e garantido, e as especificidades étnico-culturais valorizadas, cabendo à União
protegê-las. Assim, a substituição da perspectiva incorporativista pelo
respeito à diversidade étnica e cultural é o aspecto central que fundamenta a
nova base de relacionamento dos povos indígenas com o Estado.
Contudo, como nos lembra Oliveira (1994, p. 13),
“a desestruturadora presença dos grupos indígenas na cena política explode o grande mito do Estado brasileiro: este não é um Estado de uma única nação homogênea, ocidental. Este é um Estado que, doravante, tem que se haver com um Outro, ou melhor, vários Outros radicais que, não obstante conviverem dentro das mesmas fronteiras, pertencem a universos culturais totalmente diferentes, valores diferentes, relações diferentes com o ecossistema (mais funcionais, diga-se de passagem), relações de produção totalmente distintas, que falam outras línguas...”
Nesse sentido, como alertam Lopes da Silva e Grupioni (1995, p. 16),
“por mais homogeneizadora que se pretenda a ação do Estado, concebido a partir da Revolução Francesa como modelo capaz de garantir a igualdade dos cidadãos perante a lei, as associações e motivações étnicas, intermediárias entre o indivíduo e o Estado, persistem, ao lado da consciência crescente da ineficiência do Estado para, na prática, garantir a igualdade juridicamente afirmada (Maybury-Lewis, 1983). Alguns dos maiores desafios políticos e sociais do século XXI serão, com certeza, a redefinição da idéia do Estado-nação e a reelaboração de procedimentos e noções que garantam, aos cidadãos e aos povos, tanto o direito à igualdade quanto o direito à diferença”.
2. Pressupostos indígenas sobre educação e escola
É extremamente importante reconhecer que os povos indígenas mantêm vivas as suas formas próprias de educação, e que estas podem contribuir na formulação de uma política de educação escolar capaz de atender aos anseios, interesses e necessidades da realidade hoje.
Como afirma Corry (1994, p. 1), “os povos indígenas são sociedades viáveis e contemporâneas, com complexos modos de vida, assim como com formas progressistas de pensamento que são muito pertinentes para o mundo atual”.
Ao se referir especificamente à temática da educação, Meliá (1995) destaca que:
“as propostas indígenas de escola provocam medo, por parte da nossa sociedade, pelas idéias revolucionárias que colocam. As propostas de escolas pensadas pelos próprios povos indígenas, mostram-nos a inutilidade de muitas coisas; nossa sociedade já aceitou toda a comédia que é a escola” (2).
Vejamos,
então, algumas concepções indígenas acerca do conceito de educação e escola:
“A família e a comunidade (ou povo) são os
responsáveis pela educação dos filhos. É na família que se aprende a viver bem:
ser um bom caçador, um bom pescador, um bom marido, uma boa esposa, um bom
filho, um membro solidário e hospitaleiro da comunidade; aprende-se a fazer
roça, a plantar, fazer farinha; aprende-se a fazer cestarias; aprende-se a
cuidar da saúde, benzer, curar doenças, conhecer plantas medicinais; aprende-se
a geografia das matas, dos rios, das serras; a matemática e a geometria para
fazer canoas, remos, roças, cacuri, etc;
não existe sistema de reprovação ou seleção; os conhecimentos específicos (como
o dos pajés) estão a serviço e ao alcance de todos; aprende-se a viver e
combater qualquer mal social, para que não tenha na comunidade crianças órfãs e
abandonadas, pessoas passando fome, mendigos, velhos esquecidos, roubos, violência, etc. Todos são
professores e alunos ao mesmo tempo. A escola não é o único lugar de
aprendizado. Ela é uma maneira de organizar alguns tipos de conhecimento para ensinar às pessoas que precisam,
através de uma pessoa, que é o professor. Escola não é o prédio construído ou
as carteiras dos alunos. São os conhecimentos, os saberes. Também a comunidade
possui sua sabedoria para ser comunicada, transmitida e distribuída”. (3).
3. O PNE e
as metas para a educação (escolar)
indígena: processo de elaboração de propostas e seu resultado
Como se sabe, segundo a LDB, cabe
aos estados e municípios a execução e elaboração de políticas educacionais em
consonância com as diretrizes e planos nacionais. Por incumbência do ministro da
educação, a coordenação do processo de elaboração do PNE ficou a cargo do INEP
(Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), com assessoria do
NUPES (Núcleo de Estudos sobre Ensino Superior da USP) (4).
Com relação ao tema da educação (escolar) indígena, segundo Grupioni
(1997), “o NUPES solicitou à Profª. Aracy Lopes da
Silva e Luís Donisete Benzi Grupioni que redigissem uma 1ª versão do capítulo
sobre educação indígena”. Tal versão foi retrabalhada pela coordenadora do
documento (Eunice Durham), tendo sido incorporada à proposta inicial, com 17
metas.
O Comitê de Educação Escolar
Indígena do MEC organizou, também em 1997, reunião para elaboração de propostas
para o PNE, na qual participaram representantes de diversos órgãos
governamentais e entidades indigenistas (5). Na ocasião, foram
analisadas as propostas contidas em dois textos: um de Eunice Durham (contendo
17 metas), e outro resultante de reunião do próprio Comitê (composto por 22
metas). Após os trabalhos, que contaram com a presença de pessoas vinculadas
tanto a órgãos governamentais como não governamentais, ficaram sugeridas 22
metas. Nas discussões, os principais pontos polêmicos eram, de um lado, a
tendência - já sentida na época (e confirmada na Resolução 03/99, do Conselho
Nacional de Educação) -, à perspectiva da “estadualização” das escolas
indígenas. Por outro, a questão central: a de como garantir o protagonismo
indígena frente aos seus processos de escolarização.
Quanto à proposta de PNE da
sociedade civil, infelizmente, há apenas breve referência à questão da educação
escolar indígena, dentro do tópico que trata do Ensino Fundamental, com a
seguinte formulação:
“prever formas mais flexíveis de
organização escolar para a zona rural, bem como a adequada formação profissional
dos/as professores/as, considerando a especificidade do alunado e as exigências
do meio. Idêntica preocupação deve orientar a educação de grupos étnicos, como
os negros e os indígenas, que precisam ter garantia de preservação da
identidade e cultura. Nesse sentido, as experiências pedagógicas acumuladas
pelos respectivos movimentos sociais organizados (Movimento Negro, Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Conselho das Nações Indígenas) devem ser
contempladas como referências fundamentadoras de propostas pedagógicas
específicas”.
O INEP consolidou as diversas
propostas para as diferentes modalidades e níveis de ensino (6)
produzindo um documento-síntese, que foi encaminhado oficialmente ao Congresso
Nacional como proposta do Executivo.
No texto aprovado e publicado no
Diário Oficial da União, em 10 de janeiro de 2001, a temática da educação (escolar) indígena figura em capítulo
específico (nº 9), com 21 metas.
Percebe-se, contudo, que, ao invés
de ir além do que já está garantido em outros textos da legislação atual (7),
explicitando a real responsabilidade do Estado frente aos desafios da educação
escolar indígena, o PNE repete questões já tratadas em leis anteriores e,
inclusive, traz - em diversos pontos que veremos mais adiante -, retrocessos
significativos com relação ao direito dos povos indígenas em ter uma educação
escolar que reconheça, respeite e fortaleça seus processos próprios de ensinar
e aprender e que sejam parte de seus projetos de presente e futuro. A própria
Constituição de 1988, em seu artigo 210,
parágrafo 2º, assegura, além do uso das línguas indígenas, o direito aos
processos próprios de ensino-aprendizagem.
A questão de não se restringir ao
que já está estabelecido foi criticada também pela ANPEd – Associação Nacional
de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, em documento que analisava a proposta
oficial acerca da elaboração do plano nacional de educação. Para a entidade,
tal processo não deve ser entendido primordialmente como decorrência do
cumprimento formal de uma exigência contida em lei. Ao contrário:
“um plano nacional de educação tem
que estabelecer prospectivamente, e com grande clareza, os seus propósitos
gerais, isto é, explicitar de que patamar educacional se está saindo, e qual se
pretende atingir ao final do período previsto para a sua vigência. Deve,
também, propor metas que, sobretudo, não se restrinjam a garantir o já
estabelecido na legislação em vigor; atribuir, explicitamente,
responsabilidades às diferentes instâncias de governo e a outros setores, quanto
ao seu cumprimento; prever a alocação de recursos de acordo com cada uma das
metas, de modo a permitir que se assegure a sua exeqüibilidade; e propor o
estabelecimento de mecanismos de acompanhamento e avaliação das metas.”(8)
4. Direito
à diferença e respeito à diversidade sócio-político-cultural: conflitos,
dilemas e contradições na construção de uma política pública alternativa.
Como se sabe, o PNE guiará as ações
do Estado, em educação, nos primeiros dez anos deste novo século/milênio.
Apesar dos esforços recentes (em especial na legislação que regulamenta as
relações com os povos indígenas) em reconhecer a diversidade sócio-cultural que
constitui o Brasil e, quanto à política da educação, respeitar os processos
educacionais próprios desses povos, as escolas oficiais têm servido, a meu ver,
muito mais como mecanismos da velha política de “integração nacional”, do que
instrumental de apoio aos projetos de construção do presente e futuro.
Lamentavelmente, é recorrente na história do Brasil o registro de experiências
onde as escolas funcionam contra os interesses indígenas (9).
Acerca desta questão, Wilmar
D’Angelis, em seu trabalho “Sugestões de emendas ao Plano Nacional de
Educação”, de agosto de 1999, no qual analisava a temática da educação escolar indígena
no PNE, tanto na proposta da sociedade, quanto na governamental, é enfático ao
avaliar que:
“é uma falácia apontar as pequenas
e espalhadas experiências verdadeiramente inovadoras como uma mudança no modo
como a sociedade brasileira (e, sobretudo, o Estado brasileiro) encara a
educação escolar para comunidades indígenas. Pior ainda é arrolar as
experiências de ensino bilíngüe, onde práticas efetivamente inovadoras são
ainda mais raras. Na prática, provavelmente mais de 80% das escolas em comunidades
indígenas no Brasil, hoje ainda pratica um ensino que ‘nega a diferença’ e
busca ‘abrasileirar’ o índio, levando-o a assumir lealdades patrióticas para o
Brasil, transformando-os ‘em algo que não eram’. A esmagadora maioria das
escolas em comunidades indígenas hoje ainda serve de ‘instrumento de imposição
de valores’”.
Para fazer frente a essa situação,
como analisou Dias de Paula (1997, p. 4), é importante “não perder de vista a
ligação essencial que as metas devem manter com os pressupostos colocados pelos
povos indígenas, cujas reivindicações deram início às crescentes mobilizações
que garantiram as conquistas na Constituição Federal”. Lembrando novamente que o PNE é uma exigência da nova LDB, e de
que esta consolida o respeito à diferença, através do direito à escolas “específicas e diferenciadas”, esta autora
enfatiza que as metas do PNE deverão operacionalizar esses direitos,
concretizando-os.
Porém, como analisou a ANPEd
(1997), com relação à proposta do PNE como um todo, no documento referido anteriormente
, o que já se percebia é que:
“em nome do princípio federativo e
da descentralização, observa-se que na proposta do PNE a maioria das metas está
sob a responsabilidade dos estados e municípios, inclusive no que se refere à
exigência de materiais e recursos técnicos e financeiros que, particularmente,
os municípios em seu conjunto, sabemos de antemão, não têm condições de
atingir”.
E a crítica vai além, ao afirmar,
em relação à proposta, que esta “é injustificavelmente omissa em relação ao papel
da União e não se estrutura de forma a contemplar o conceito de sistema
nacional de educação.”
No caso da
temática da educação (escolar)
indígena, o PNE aprovado traz, logo após a maioria das metas, anotações de
rodapé que sugerem, por um lado, vaga lembrança quanto à responsabilidade da
União. Por outro, no entanto, fica claro a ainda não garantia de financiamento
público para as escolas indígenas e suas demandas. Das 21 metas, 13 estão
acompanhadas de dois asteriscos que remetem para a seguinte nota: “é exigida a
colaboração da União”. Outras duas são seguidas de um asterisco que diz: “a
iniciativa para cumprimento deste objetivo/meta depende da iniciativa da
União”. Parece brincadeira de “passa anel”... com previsível e triste final
inspirado na política do “lavo as minhas mãos”. Ou seja, no fim das contas, nem
municípios, nem estados, nem união se comprometem com os custos da educação
escolar indígena. Com ou sem PNE, continua tudo do jeito que está: o chamado
dilema da “tríplice competência” – federalização, estadualização e/ou
municipalização das escolas indígenas – fica sem solução.
Ao analisar a proposta do PNE, a ANPEd (1997) também já havia explicitado questionamento neste sentido. Em sua avaliação:
“as metas da proposta do PNE são, via de regra, ambíguas, pouco precisas, não explicitam os referentes em que se baseiam, nem tampouco em que se avança em relação ao existente, o que confere ao documento o caráter de mera carta de intenções. Essa ambigüidade inviabiliza o acompanhamento e controle por parte da sociedade civil do que diz respeito às ações das instâncias responsáveis por executá-las”.
Outras
questões permanecem inalteradas no PNE,
apontando para o fato de que na prática do estabelecimento de novas
relações entre o Estado e os povos indígenas, pouca coisa mudou. Destaco:
· A concepção de escolas indígenas enquanto “oferta” do
Estado.
Ou seja,
contrariando a perspectiva defendida pelo movimento indígena, da construção de
projetos indígenas de escola - escolas próprias: escolas
Guarani, escolas Ticuna, escolas Baniwa, escolas Yanomami, escolas
Pataxó, escolas Zoró..., segundo necessidades e interesses de cada povo -,
mantém-se a idéia de que é preciso “fazer a educação do índio”.
Segundo
Meliá (1979, p. 9), “pressupõe-se que os índios não têm educação, porque não
têm a nossa educação”. Escola e alfabetização entram em cena como sinônimos de
educação, significando, assim, a continuidade de projetos e programas de
educação escolar pensados “desde fora”.
No
documento final da Conferência Indígena 2000, realizada em Coroa Vermelha/BA,
em abril de 2000, com participação de cerca de 3500 índios de mais de 140 povos
de todo o Brasil, reafirma-se: “(...) a
educação tem que estar a serviço das lutas indígenas e do fortalecimento das
nossas culturas.”
Quem poderá
garantir a “especificidade e diferenciação” senão os próprios povos indígenas?
Refletindo sobre essa questão, e fundamentando-se no texto constitucional, a
procuradora da República, Debora Duprat afirma que “(...) a par de lhes reconhecer
o direito a uma existência diferenciada, a Constituição outorgou aos próprios
índios o direito a dizer em que consiste essa diferença”. (10).
· A idéia, ainda predominante, de que a questão da
educação escolar indígena se resume a meras “adaptações” e “adequações” ao
“nosso” modelo de escola.
Nesse
sentido, quase sempre, as “soluções” apresentadas sofrem resistência da parte
dos próprios índios, por trazerem
embutida a visão de uma “educação de segunda categoria”; de uma “escola mais fraca”.
Em resumo, de que para os índios, basta
priorizar/garantir o ensino da 1ª à 4ª, como prevê o PNE.
Essa mesma concepção pode ser comprovada na profunda alteração efetuada na meta número 4. No texto elaborado durante o I Encontro Nacional de Coordenadores de Projetos na Área de Educação Indígena (1997), a meta 4 fala sobre “criar grupo de trabalho, no MEC, no prazo de um ano, para analisar a demanda por ensino de 5ª a 8ª séries e ensino médio nas escolas indígenas, com programas especiais de apoio à continuidade da escolarização em escolas não indígenas, cujos quadros docentes deverão receber orientação e acompanhamento”. Já no texto encaminhado pelo executivo ao Congresso, a mesma meta aparece totalmente desfigurada:
“ampliar gradativamente, a oferta de ensino de 5ª a 8ª séries à população indígena, quer na própria escola indígena, quer integrando os alunos em classes comuns nas escolas próximas, ao mesmo tempo em que se lhes ofereça o atendimento adicional necessário para sua adaptação, a fim de garantir o acesso ao ensino fundamental pleno”.
Como se
pode perceber, ao invés de “analisar a demanda”, propõe-se logo “ampliar a
oferta”...; exclui-se a discussão sobre o ensino médio; fala-se de “classes
comuns” (o que pressupõe o entendimento de que há “classes “incomuns”...)
e, denotando extremo etnocentrismo, definem aprioristicamente acerca do
“necessário atendimento adicional” para os alunos indígenas – é claro -,
deixando-se de falar, como previa a proposta inicial, sobre o preparo dos
professores não índios para receber os alunos indígenas.
Nesse
sentido, é bom lembrar que, já no texto apresentado pelo Executivo
ao Congresso Nacional, a meta que se referia à garantia de vagas para
índios nas universidades públicas, formulada no I Encontro Nacional de
Coordenadores de Projetos na Área de Educação Indígena, realizado pelo Comitê
Nacional de Educação Escolar Indígena/MEC, em Brasília, de 30/09 a 03/10 de
1997, foi excluída. Tal meta estava assim formulada:
“Criar
mecanismos para ingresso, acompanhamento e manutenção de estudantes indígenas
nos cursos de terceiro grau oferecidos pelas Universidades públicas. O MEC
deverá sistematizar informações sobre experiências de ingresso diferenciado de
estudantes indígenas já em curso em algumas universidades públicas que sirvam
de experiência a outras iniciativas”.
· O conflito entre o reconhecimento/oficialização das escolas indígenas, ou seja, sua incorporação no sistema nacional de educação versus a garantia do direito a modelos e formas próprias de fazer escola – escolas como partes integrantes dos sistemas indígenas de educação.
Penso que o
excesso de normas legais, embora avançadas em termos de um novo discurso que
respeita a diversidade cultural, confronta-se com a dura realidade das escolas
em áreas indígenas. Nesse sentido, um dado “esclarecedor” foi a retirada dos Referenciais Curriculares Nacionais para as
Escolas Indígenas – RCNEIs, da meta de número 14 (11) e o conseqüente e
previsível “engessamento” das propostas inovadoras de currículos indígenas que,
segundo a nova lei, deverão ser norteados pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais - PCNs. Por outro lado, a inclusão, na meta de número 2, da
universalização dos Parâmetros Curriculares Nacionais é, com certeza, um
retrocesso, inclusive frente à ainda recente normatização das escolas indígenas
regulamentada pela Resolução 03/99 da Câmara de Educação Básica do Conselho
Nacional de Educação (12). A proposta do executivo falava tão somente em
“universalizar a adoção das Diretrizes para a Política Nacional da Educação
Escolar Indígena”.
Em diversos
momentos do Parecer nº 14/99, da CEB/CNE (12), pode-se perceber
claramente um alerta acerca das questões analisadas neste tópico. Na página 11
do referido documento, dentro do item II – Fundamentação, conceituações – 1.
Criação da Categoria “escola indígena”, consta que:
“a escola
indígena é uma experiência pedagógica peculiar e como tal deve ser tratada
pelas agências governamentais, promovendo as adequações institucionais e legais
necessárias para garantir às sociedades indígenas uma educação diferenciada,
respeitando seu universo sócio-cultural. (Decreto 1.904/96 que institui o
Programa Nacional de Direitos Humanos).”
Já na parte final, em sua página 29, que trata do ponto V – Conclusões, o documento é enfático ao afirmar que:
“os princípios contidos nas leis dão abertura para a construção de uma nova escola, que respeite o desejo dos povos indígenas por uma educação que valorize suas práticas culturais e lhes dê acesso a conhecimentos e práticas de outros grupos e sociedades. O Conselho Nacional de Educação entende que uma normatização excessiva ou muito detalhada pode, ao invés de abrir caminhos, inibir o surgimento de novas e importantes práticas pedagógicas e falhar no atendimento a demandas particulares colocadas por esses povos. A proposta da escola indígena diferenciada representa, sem dúvida alguma, uma grande novidade no sistema educacional do país, exigindo das instituições e órgãos responsáveis a definição de novas dinâmicas, concepções e mecanismos, tanto para que essas escolas sejam de fato incorporadas e beneficiadas por sua inclusão no sistema, quanto respeitadas por suas particularidades”.
·
A tensão entre o direito à diferença e os direitos de cidadania
“brasileira”.
Há necessidade
de se aprofundar o debate acerca da(s) “cidadania(s) indígena(s)”, ou seja, de
uma cidadania plural e da construção de políticas públicas que dêem conta desta
diversidade e que respeitem a decisão dos povos indígenas, inclusive quanto à
questão de se querem (ou não) escola e que escola será esta.
Por fim, identifica-se a inclusão de duas metas que não constavam em nenhuma das propostas anteriores: uma, a de número 19, denuncia a retomada da perspectiva desenvolvimentista e integracionista (escolas profissionalizantes agrícolas para “uso da terra de maneira equilibrada”, como se os povos indígenas ou não usassem a terra, ou a utilizassem de maneira desequilibrada...) e a outra, a meta 20, fala da formação de professores para ensino à distância – nada mais incoerente com as concepções indígenas de educação (baseadas na vivência na comunidade educativa e na socialização dos saberes), porém, totalmente coerente com as “exigências” das políticas educacionais atuais que elegeram a educação à distância como uma das grandes soluções. Também a meta com respeito à educação profissionalizante é coerente com as novas tendências do MEC, de priorizar o ensino médio profissionalizante.
Ao
analisarmos a educação (escolar) indígena
no PNE, chegamos à conclusão que as 21 metas estabelecidas, longe de
contribuírem na superação do enorme “fosso” existente entre os novos preceitos
constitucionais e a realidade das escolas indígenas, poderão funcionar como obstáculos ao avanço de processos indígenas
de construção e consolidação de suas escolas.
Apesar do quadro pouco animador, apresentado no tópico anterior,
caracterizado por um recuo nos direitos indígenas, a avaliação dos índios
quanto à presença das escolas em suas vidas e as possibilidades vislumbradas
quanto ao futuro, têm sido mais esperançosas.
Assim,
poderia afirmar que, ao aceitar a escola, e mesmo reivindicá-la, os índios a
tem “ressignificado”, dando a ela um novo valor: a possibilidade de decifrar o
mundo “de fora”, “dos brancos”. Em síntese, decifrar a nova realidade advinda
do contato. Longe de ser uma “adesão” ao nosso modelo, é, neste sentido, uma
estratégia de resistência.
Finalizarei
com três citações que podem ilustrar uma perspectiva indígena frente ao desafio
das suas escolas. Refiro-me às posições do movimento dos professores indígenas
do Amazonas, Roraima e Acre (13):
"(...) é necessário formar e valorizar profissionais
voltados para a própria comunidade, visando a nossa autonomia e para que as
escolas sirvam como instrumento para a permanência dos jovens em nossas aldeias
e não como portas de saída"
(Documento final do IX Encontro dos Professores Indígenas do Amazonas,
Roraima e Acre, Manaus, 1996).
"A escola entrou como um corpo estranho. A escola
entra e se apossa da comunidade. Não é a comunidade que é seu dono. Hoje, os
índios começam a dar as regras para o jogo da escola: 'tá, você fica aqui, mas
dessa forma!' Temos leis que dão respaldo, mas ainda não estamos sabendo
usar" (Prof. Bruno, do povo Kaingang) (14).
"Precisamos pegar esses mecanismos colocados de
fora (no caso, a escola) e fazer deles parte da nossa sociedade. Precisamos nos
organizar como povo: preservar nossa cultura, nossa língua... mas não podemos
preservar a fome!" (Prof. Orlando Justino, do
povo Macuxi) (15).
ANPEd. Parecer da ANPEd sobre a proposta elaborada pelo MEC para o Plano Nacional de Educação, São Paulo: ANPEd, 1997.
CONFERÊNCIA
INDÍGENA. Documento final, Coroa
Vermelha/BA, 2000.
CORRY, Stephen. “Guardianes de la tierra
sagrada” In Revista Especial da Survival
Internacional, Londres, 1994.
COSTA,
Eugênio. O Projeto Calha Norte:
antecedentes políticos. Dissertação de Mestrado, São Paulo: USP, 1992.
D’ANGELIS,
Wilmar da Rocha. Sugestões de emendas ao
Plano Nacional de Educação, Campinas, 1999.
DUPRAT, Débora. “O direito de ser índio e seu significado”. In: Porantim, Ano XXII, nº 231, Brasília: CIMI, 2000.
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. A educação Escolar Indígena no Plano Nacional de Educação. Subsídio para o I Encontro Nacional de Coordenadores de Projetos na Área de Educação Indígena, Comitê Nacional de Educação Escolar Indígena/MEC, Brasília, 1997.
LOPES DA
SILVA e GRUPIONI. A temática indígena na
escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília:
MEC/Mari/UNESCO, 1995.
MEC/INEP. Plano Nacional de Educação – Proposta do Executivo ao Congresso Nacional, Brasília, 1998.
PAULA, Eunice Dias de. “A educação escolar indígena no Plano Nacional de Educação e o CIMI”. In: Porantim, Ano XIX, nº 201, Brasília: CIMI, 1997.
PLANO
NACIONAL DE EDUCAÇÃO, Lei nº10.172 de 9 de janeiro de 2001. In: Diário Oficial, ano CXXXIX – nº 7,
Brasília/DF.
(1) Estarei usando esta forma – educação (escolar) indígena, para alertar quanto
ao uso do termo “educação indígena” no PNE quando, na verdade, está se falando
de “educação escolar indígena”. Como sabemos, os diferentes processos de
educação indígena (com histórias milenares) são muito mais amplos e complexos
que a problemática da escolarização (que “entra” na vida dos povos indígenas
após a “chegada” dos colonizadores – o que, no Brasil, apenas acaba de
completar 500 anos...).
(2) Anotações pessoais da Conferência “Bilingüismo e
Leitura”, 10º COLE - Congresso de Leitura do Brasil, ALB/Unicamp, Campinas,
1995
(3) Gersem dos Santos Luciano, do povo Baniwa, região do
Rio Negro/AM, durante o IX Encontro dos Professores Indígenas do Amazonas,
Roraima e Acre, Manaus, 1996. Estarei utilizando o itálico para os depoimentos indígenas.
(4) GRUPIONI, Luís Donisete B. A educação Escolar Indígena no Plano Nacional de Educação, subsídio
para o I Encontro Nacional de Coordenadores de Projetos na Área de Educação
Indígena, realizado pelo Comitê Nacional de Educação Escolar Indígena/MEC, em
Brasília, de 30/09 a 03/10 de 1997.
(5) Participei da referida reunião, a convite do Comitê,
representando o CIMI – Conselho Indigenista Missionário. O presente texto
utiliza-se de anotações pessoais registradas naquela ocasião.
(6) Educação Infantil; Ensino Fundamental; Ensino Médio;
Educação de Jovens e Adultos; Educação tecnológica e formação profissional;
Educação Superior; Educação Especial; Educação Indígena; Formação de
professores e valorização do magistério; Educação à distância e tecnologias
educacionais; Financiamento e gestão.
(7) Desde a Constituição de 1988, inúmeras normas legais
(Decretos, Portarias, Diretrizes, Resoluções...) vêm sendo feitas, com destaque
à problemática da escolarização indígena, no sentido de buscar uma certa
coerência com o texto constitucional, que supera a
perspectiva integracionista. Pela primeira vez na história da legislação
educacional brasileira, esse tema figura na nova LDB, com dois artigos
específicos (78 e 79).
(8) ANPEd. Parecer
da ANPEd sobre a proposta elaborada pelo MEC para o Plano Nacional de Educação,
São Paulo, dezembro de 1997, p.4
(9) Quanto a essa questão, lembre-se da previsão feita
por Hélio Jaguaribe, em 1994, durante sua fala no Seminário “Política
Educacional para o Exército: ano 2000”, de que, até o ano 2000, não haveria
mais índios no Brasil. E mais, que a responsável por tal “proeza” seria a
escolarização. Conforme suas palavras, registradas no jornal Folha de São
Paulo, do dia 30/08/94, p.1-4, “deve-se
ampliar a criação de escolas em áreas indígenas, para que os índios tenham o
direito de se tornar cidadãos brasileiros”.
(10) DUPRAT, Debora. “O direito de ser índio e o seu
significado”, In Porantim, dez/2000, p.3
(11) Na ocasião da elaboração das propostas (1997), ainda
se falava em RCIs – Referenciais Curriculares Indígenas, que foram
transformados e publicados pelo MEC como RCNEIs - Referenciais Curriculares
Nacionais para as escolas Indígenas... já denotando um recuo frente à
autonomia e protagonismo dos povos indígenas.
(12) A Resolução CEB nº 03, de 10 de novembro de 1999,
fixa Diretrizes Nacionais para o funcionamento das Escolas indígenas e, segundo
texto da própria Resolução, esta baseada “nos artigos 210, § 2ª, 231, caput, da Constituição Federal, nos arts. 78 e 79 da Lei 9.394, de
20 de dezembro de 1996, na Lei 9.131, de 25 de novembro de 1995, e ainda no
Parecer CEB 14/99, homologado pelo Ministro de Estado da Educação, em 18 de
outubro de 1999”.
(13) Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação,
Câmara de Educação Básica. Assunto: Diretrizes Curriculares Nacionais da
Educação Escolar Indígena. Relator: Kuno Paulo Rhoden, S.J. (Pe.). Processo:
23001-000197-03 e 23001-000263-28. Aprovado em 14.09.99
(14) Esse movimento, que se reúne anualmente, desde 1988,
em um grande encontro, e que era articulado pela COPIAR – Comissão dos
Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, criou, em 2000, o COPIAM – Conselho dos Professores Indígenas da Amazônia.
(15) Depoimento de Bruno, Kaingang, durante sua
participação na mesa-redonda intitulada “A posição das Organizações Indígenas”,
no Encontro Interno “Leitura e escrita em escolas indígenas: domesticação X
autonomia”, durante o 10º COLE, UNICAMP, julho/95
(16) Depoimento do Prof. Orlando, do povo Macuxi, na
mesa-redonda “A posição das Organizações Indígenas”, no Encontro Interno
“Leitura e escrita em escolas indígenas: domesticação X autonomia”, representando a COPIAR, durante o 10º COLE,
UNICAMP, julho/95Referências Bibliográficas.