INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: UMA VISÃO
HISTÓRICA DE SUA PROTEÇÃO SOCIAL E JURÍDICA NO BRASIL
Tânia da
Silva Pereira
Advogada e Professora de Direito da Criança e Adolescente e
de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
I - Introdução
II - A História da Proteção da
Juventude no Brasil
II - A - A proteção da infância no
Brasil nos primeiros séculos
II - B - A "Roda dos
Expostos"
II - C - As mudanças estruturais
identificadas a partir do final do século XIX
II - D - As instituições para crianças e jovens desassistidos a partir do século XX e a proteção jurídica nas primeiras décadas
II - E - O ciclo da Ação Social dos
Juizados de Menores
E.1 - Código Mello Mattos de l927
E.2 - Leis posteriores de proteção e
assistência
E.3 - Código de Menores de 1979
III - Conclusão
IV - Notas Bibliográficas
A História da humanidade é
norteada pela história dos adultos. Para compreendermos o problema da infância
carente do Brasil torna-se necessário recorrermos a subsídios anteriores à
nossa colonização. Entretanto, a situação da família, e
consequentemente dos filhos, é conhecida desde quinze ou vinte séculos
antes de Cristo e já aparece nas civilizações romana e helênica. Buscando
informações na "Cidade Antiga" de Fustel de
Coulanges, ANÍSIO GARCIA MARTINS esclarece que
"desde aquelas duas antigas civilizações de que herdamos, no mundo
ocidental, as mais importantes instituições políticas e sociais, a família e os
filhos já tinham, como proteção especial, as normas instituidoras, como uma
necessidade do culto familiar, para preservação dos ritos de
LARES, MANES ou deuses domésticos, na concepção de que esse culto
familiar
lhes preservaria a imortalidade, pois os pais e avós mortos tornavam-se deuses
domésticos, e a continuidade da família pertencia aos filhos, especialmente do
ramo masculino". [1]
AJURIA GUERRA divide a história de acordo com as razões psicológicas dos adultos, especialmente, a dos pais frente à criança.
"1 - Modo infanticida - que se estende desde a Antiguidade até o século IV da era cristã, no qual o rechaço está em primeiro lugar. Na dificuldade de cuidar dos filhos, pela ansiedade, os pais os matam. A imagem de Medéia não é um simples mito, mas o reflexo da realidade.
2 - Modo do abandono - do século IV ao século XIII,
corresponde a um período no qual os pais começam a aceitar que o menor tenha
alma. Quando se sentem incapazes, os abandonam.
3 - Modo ambivalente - do século XIV ao século XVI, as
crianças eram autorizadas a penetrar na vida emocional de seus pais, mas
poderiam ser perigosas. Os pais tratam de modelá-las como patrões.
4 - Modo instrutivo - o século XVIII é uma época de grandes
transições. Os pais começam a se aproximar da criança e ensaiam a conquista de
seu espírito com a possibilidade de verdadeira empatia, sem considerar ainda o
amor como importante.
5 - Modo social - do século XIX até meados do século XX, a
educação passa a ter importância. Ela é menos um processo de conquista de que
um guia em seu próprio caminho. Educação com amor se torna um binômio
importante.
6 - Modo de ajuda - os pais compreendem que os filhos sabem
melhor que seus pais aquilo de que necessitam em cada idade. O menor leva seus
pais (quando os tem) a tratar de compreender suas necessidades particulares".[2]
Outras obras relativamente
recentes têm fornecido subsídios sobre a relação familiar através da
história.[3] Sem dúvida, foi a partir do século XVIII que surgiram na Europa
mudanças radicais que influíram na história da criança. Os levantamentos
demográficos naquele período levaram a considerar as crianças abandonadas e as
prostitutas como
forças de produção potenciais, visando sobretudo à promoção das colônias.
CHAMOUSSET esclarece que "as crianças abandonadas não
conhecem outra mãe senão a Pátria; daí a importância de o Estado
conservá-las". Esclarece, ainda, que o Estado deve se esforçar para manter
vivas essas crianças abandonadas, cuidar de sua higiene e aleitamento
artificial para que sobrevivam. Seria inclusive isenta do serviço militar a
aldeia que quisesse cuidar dessas crianças até que entrassem para o exército,
onde seriam obrigadas a servir até 25 ou 30 anos, substituindo o marinheiro e o
soldado que custavam mais ao Estado que o custo anual de uma criança. Esta se
tornava um valor mercantil em potencial.[4] O discurso da igualdade e da felicidade
de ROUSSEAU, neste período, ressalta a preocupação pela criança e o poder dos
pais partindo da idéia da família como única sociedade natural. Já VOLTAIRE
demonstrava o interesse do homem pela felicidade, não como uma questão
individual, mas diante da possibilidade de vivê-la na coletividade. Todas estas
idéias impuseram modificações políticas e sociais consideráveis na Europa
daquele período.
As idéias do Século XVIII só chegaram efetivamente ao Brasil no final do século XIX e início do século XX. Até então, o pobre era propriedade exclusiva da Igreja Católica e um de seus instrumentos de poder. ARTUR MONCORVO FILHO, em obra exemplar sobre a proteção da infância no Brasil nos primeiros séculos que se seguiram à colonização, ressalta alguns aspectos importantes.
"Na história do período colonial
surgem, com algumas idéias adiantadas destoando da absoluta apatia pela sorte
da criança, os vultos memoráveis de Nóbrega, Anchieta e tantos outros
discípulos de Loyola, na esforçada empreitada de catequese dos selvagens, tão criticada por Oliveira Martins e vários outros escritores,
fundando, no entanto, em nosso território, as primeiras escolas e empenhando-se
na civilização das populações embrutecidas. A catequese foi obra de caridade
dos jesuítas. Meio século ainda não se havia passado da chegada ao Brasil da
missão apostólica de Anchieta e já quase todo o litoral, desde Pernambuco até
São Vicente, estava povoado por índios domesticados e convertidos, já havendo
sacerdotes batizado, deles, mais de cem mil. Eram criadas aldeias e nelas se
ensinavam as crianças a ler e escrever, assim se multiplicando as escolas
(...). Reza a história que aos jesuítas se deve a criança e, por espaço de dois
séculos, quase exclusivamente, a manutenção do ensino público no Brasil" (...). Seu primeiro ato, ao aportar às nossas plagas,
foi, como se sabe, fundar em l549, na Bahia, um colégio. Em 1551 esse colégio
já funcionara com 20 meninos. Foi aí que em 1622 recebeu instrução o notável
Padre Antônio Vieira. (...). Segundo dizem os historiadores, as congregações
religiosas se constituíram as grandes promotoras da instrução da mocidade e da
educação da infância desvalida. Nesse intuito colaboraram os Lazaristas, Jesuítas, Salesianos,
Redentoristas e os claustros de São Bento, dando ao Brasil uma plêiade de
homens eminentes, de mestres em ciência e artes, graças à educação e instrução
aí recebidas (...). Sob o manto do catolicismo continuava a desenvolver-se a
beneficência fundando-se instituições que acolhiam os peregrinos e, como as
antigas albergarias, protegiam os pobres, curavam os doentes, enterravam os
mortos, educavam e adotavam os órfãos desvalidos etc. etc. (...). À custa de
piedosas esmolas, imploradas de porta em porta, instalavam-se os seminários dos
órfãos da Bahia e de Itu, seguidos dos de Jacuecanga
e do Caraça".[5]
O ano de 1693 é marcado pela demonstração oficial de proteção direta à infância. FLORO DE ARAÚJO MELO lembra este fato, ressaltando que "o Governador Antônio Paes de Sane informara ao Rei sobre o estado em que ficavam os enjeitados na cidade do Rio de Janeiro, morrendo ao abandono. O Rei determinou providência à Câmara, a qual, alegando falta de recursos, apelou à Santa Casa que, já então, atendia aos que eram deixados à sua porta ou eram órfãos de falecidos nas enfermarias. O mesmo autor lembra ainda que "em 1734, Ignacio da Costa Mascarenhas, vigário colado na freguesia da Candelária do Rio, desejando "aliviar este drama" solicitou licença para o acolhimento de 30 órfãos e pobres para viverem em clausura até tomar o estado sob o beneplácito do bispo. Como o Governador José da Silva Paes exigiu que a Casa ficasse sujeita à fiscalização do Governador, não do bispo, com o que não concordou o vigário - a idéia não foi adiante". [6]
MONCORVO FILHO, reproduzindo parte de um artigo publicado no "Jornal do Comércio" de janeiro de 1916, escrito por Escragolle Doria, expressa bem a situação real do início do século XVIII no Rio de Janeiro:
"Como todas as
sociedades humanas em todas as épocas, a do Rio, em 1738, se regia pela fome e
pelo amor. Nem sempre era este satisfeito conforme mandava a Igreja. A
reprodução da espécie se operava fora dos lares legítimos (...). Os enjeitados
sempre mereceram desvelos da coroa portuguesa. Se Deus é pai de todos, o Rei
bem o podia ser de muitos. As Ordenações, os alvarás, as mercês cuidavam dos
expostos, isentando até os maridos e os filhos das amas deles, do serviço
militar, grande regalia no tempo (...). No Rio de Janeiro as crianças expostas
pereciam nas ruas, nos adros das Igrejas, nas praias, sem que a fé se movesse,
a esperança se apiedasse e a caridade as tutelasse. Rejeitados pelo coração dos
progenitores, tinham a miséria por cobertor e a casa por berço. Delas se
condoíam a Misericórdia e um ou outro particular. Mas de vez em quando a
própria Misericórdia alegava não ter rendas para sustentá-los. A Câmara, essa,
não ouvia os gritos dos enjeitados. Padecia de surdez administrativa devida também, cumpre
reconhecer, à escassez das rendas".[7]
Diante deste quadro cruel do Rio de Janeiro, MONCORVO FILHO destaca a figura de Romão de Mattos Duarte, o fundador da Roda dos Expostos, vulgarmente denominada de RODA.
"Quando era mais angustiosa a situação dos
expostos nesta Capital, ao tempo do Governador Gomes Freire, Conde de Bobadella, pois viviam eles no meio da promiscuidade dos
doentes e operados do Hospital da Misericórdia, quis a grande alma de Romão
Mattos Duarte que uma vida mais confortável e menos perigosa fosse assegurada,
e eis que, em 14 de janeiro de 1738, era entregue à administração da Santa Casa
a quantia de 32 mil cruzados para a criação da RODA, doação essa que fora secundada por uma outra de mais 10 contos de réis feita
por Ignácio da Silva Medella".[8]
FLORO DE ARAÚJO MELO informa que "a primeira
instalação própria da Roda dos Expostos no Rio foi no bloco chamado CORREDOR DO
TREM perto da Misericórdia em 18ll. Daí foi para a Rua de Santa Tereza, depois
para o "CAIS DA GLÓRIA" e em l860 para Rua
dos Barbosa, hoje Evaristo da Veiga. Em 1906 foi para a Rua Marquês de Abrantes
e, a partir de 1911, passa a denominar-se Fundação Romão Mattos Duarte, a qual
existe até hoje (...). Na Casa dos Expostos havia uma grande roda giratória
para recolher crianças abandonadas, que para aí podiam ser levadas sem
precisarem os pais
aparecer e se expor.
Transcrevendo o livro de Registros da Instituição de 1819 - 1922, o autor esclarece que "colocadas as crianças aí na roda giratória, ao atingir a parte interior da casa, amas de leite, em número suficiente para alimentar a todas, as acolhiam sob a supervisão da Regente, todas residindo na instituição. Só as crianças sadias se davam para criar, as doentes ficavam para serem tratadas. Quem as fosse criar, assinava um termo de responsabilidade e recebia um enxoval completo".
FLORO DE ARAÚJO MELO lembra ainda que "os filhos de escravos ali abandonados eram considerados libertos" (...) ao mesmo tempo em que "era praxe as mulheres escravas zelarem e amamentarem as crianças dos Expostos, em conformidade com o acordo entre seus senhores e o Governo. Este pagava os proventos dos senhores para os escravos a fim de economizar, objetivando sua emancipação, sua alforria, portanto".[9]
MOREIRA DE AZEVEDO, na obra de MONCORVO FILHO, transcreve uma avaliação de D. Pedro I ao dirigir-se à Assembléia Constituinte em 3 de maio de 1823 tratando dos enjeitados: "A primeira vez que fui à Roda dos Expostos achei, parece incrível, sete crianças com duas amas; nem berços nem vestuário. Pedi o mapa e vi que em 13 anos tinham entrado perto de 12 mil e apenas tinham vingado mil, não sabendo a Misericórdia verdadeiramente onde elas se achavam".[10]
MONCORVO FILHO comenta em seguida: "Não é de
estranhar que a mortalidade infantil, sobretudo nos primeiros meses de vida,
fosse ali excessiva como sempre vinham afirmando, desde quase dois séculos,
administradores e médicos a ela
pertencentes, chegando-se a contá-la por vezes em 70, 80 a até mais de
90%".[11]
IRMA RIZZINI, em recente e
esplêndido trabalho de pesquisa analisa "A
assistência à infância na passagem para o século XX - da repressão à educação"- focaliza
sobretudo o conflito entre as forças da Caridade e da Filantropia, como uma
disputa econômica e política pela dominação sobre o pobre. "A filantropia
surge como um modelo assistencial que se apresenta capacitado para substituir o
modelo representado pela
caridade. Fundamentada pela ciência, à filantropia atribui-se a tarefa de organizar a assistência no sentido de
direcioná-la às novas exigências sociais, políticas, econômicas e morais, que
nascem juntamente com a República (...). Os grupos comprometidos com as idéias
filantrópicas acusam a caridade apontando para a falta de organização, de
método de trabalho e de ordem nas iniciativas da caridade. A filantropia surge
para dar continuidade à obra de caridade, mas sob uma nova concepção de
assistência. Não mais a esmola que humilha, mas a reintegração social daqueles
que seriam os eternos clientes da caridade: os desajustados. A caridade vai
reagir à crescente tendência filantrópica da assistência, acusando as
instituições de se distanciarem da palavra cristã".[12]
Segundo a mesma autora, no início do século XX, "o
Estado passa a intervir no espaço social através do policiamento de tudo que
foi causador da desordem física e moral e pela ordenação desta sob uma nova
ordem. Para tal serão importadas novas teorias e criadas novas técnicas, as
quais servirão de subsídio para a criação de projetos, leis e instituições que
integrarão um projeto de assistência social, ainda não organizado em termos de
uma política social a ser seguida em nível nacional" (...). A infância
pobre torna-se alvo, não só de atenção e de cuidados, mas também de receios.
Denuncia-se a situação da infância no País - seja nas famílias, nas ruas ou nos
asilos. O consenso é geral: a infância está em perigo. Mas há um outro lado da
questão, constantemente lembrado pelos meios médicos e jurídicos: infância
"moralmente abandonada" é potencialmente perigosa, já que, devido às
condições de extrema pobreza, baixa moralidade, doenças etc. de seus
progenitores, ela não recebe a educação considerada adequada pelos
especialistas: educação física, moral, instrucional e profissional" (...). Ciências como a medicina, a psiquiatria, o
direito e a pedagogia contribuirão com teorias e técnicas para a formação de
uma nova mentalidade de atendimento ao menor. A mentalidade repressora começa a
ceder espaço para uma concepção de reeducação, de tratamento na assistência ao
menor. Verifica-se o surgimento de um novo modelo de
assistência à infância, fundada não mais somente nas palavras da fé mas também
nas da ciência, basicamente médica, jurídica e pedagógica. A assistência
caritativa, religiosa, começa a ceder espaço a um modelo de assistência calcado
na racionalidade científica onde o método, a sistematização e a disciplina tem
prioridade sobre a piedade e o amor cristão".[13]
Conclui
IRMA RIZZINI que "a luta de forças entre a caridade e a filantropia foi
antes de tudo uma disputa política e econômica pela dominação sobre o pobre. O
pobre, até o século XIX, pertencia ao domínio absoluto da Igreja. A preocupação
com a pobreza por parte das ciências, como a medicina, a economia, a
sociologia, a pedagogia e outras, permitiu tomarem para si diversos aspectos de
pauperismos como objetos de estudo. Desta forma forneceram às elites sociais e
políticas os instrumentos que possibilitavam a elas reclamarem entre si o
domínio de uma situação que as ameaçaria diretamente e que a Igreja mostrava-se
incapaz de controlar".[14]
II.d. As instituições para crianças e jovens desassistidos a partir do século XX e a proteção jurídica
nas primeiras décadas
Estudos revelam que até 1930 as instituições educacionais tinham preocupação de caráter moral e religioso. Mais uma vez IRMA RIZZINI, reportando-se aos ensinamentos de MONCORVO FILHO, lembra que os asilos "mantidos pela caridade religiosa e em menor escala, pelo Estado", passaram a sofrer críticas negativas ligadas à mortalidade infantil nestas instituições, à educação "quase que exclusivamente religiosa, o tratamento repressivo e não especializado dos menores e o não-respeito aos preceitos da higiene".[15]
Em sua
análise sobre instituições caritativas do século XIX, a mesma autora constatou "a
existência de uma preocupação com a formação de mão-de-obra, como era o caso do
preparo para o trabalho doméstico nos asilos para meninas e o preparo de
artesãos nos asilos para meninos. No entanto, o objetivo era antes impedir a
deterioração moral destes indivíduos do que profissionalizá-los. O objetivo
moral se sobrepõe ao econômico. No século seguinte percebe-se o crescimento em
importância das perspectivas econômicas e políticas da assistência, muito
embora a justificativa moral se
mantivesse".[16]
IRMA RIZZINI ressalta o Instituto João Pinheiro, colônia agrícola em Minas Gerais, como um exemplo de "crença dominante no início do século, na superioridade da vida do campo sobre a vida na cidade".
Conclui seu trabalho IRMA RIZZINI observando que, na passagem do século, "os novos especialistas da infância, como os filantropos, as autoridades públicas e científicas, almejam transformar os antigos asilos considerados ineficazes, desorganizados e corruptores, em instituições disciplinares e disciplinadoras. Nestas, os preceitos da higiene médica são obedecidos, a educação é dirigida para o trabalho e o poder disciplinar atinge o efeito moral desejado da introjeção da vigilância pelos internos. Tais técnicas de sujeição têm por objetivo devolver à sociedade indivíduos produtivos, cientes de seus direitos e deveres. A educação é concedida como o melhor instrumento para alcançar a tão almejada adaptação do indivíduo ao meio social. Preparação do corpo pela educação física; da mente pela educação moral; do intelecto pela educação instrucional e para o trabalho pela educação profissional".[17]
Merece destaque também, como modelo de inúmeras instituições em todo o Brasil, o Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro, criado por MONCORVO FILHO, que consistiu em um projeto social voltado à infância pobre, a partir da perspectiva "a grandeza da Pátria depende do preparo de uma gente sadia".
A proposta do trabalho é dar uma visão histórica do amparo e proteção de populações desassistidas pelas instituições e pelo Estado, especialmente os jovens e crianças carentes. Cabe, entretanto, um parêntese sobre alguns aspectos da lei civil em relação à família e à criança neste período. O Código Civil que entrou em vigor em 1917 é fruto de uma realidade social e jurídica do final do século XIX, influenciada pelas modificações estruturais introduzidas pelo Código Napoleão na França e em toda a Europa no início do mesmo século. Assim, também a lei civil sofreu neste período mudanças estruturais, modificando fundamentalmente a tutela do Estado em relação à família.
Classificando
e distinguindo os filhos como naturais, adulterinos e incestuosos; adotados,
legítimos ou ilegítimos; - valorizando sobremaneira o pai ou marido ao
outorgar-lhe total poder de decisão na família e na vida de seus membros, o
Código Civil já aponta algumas situações que demonstram o interesse da
sociedade em resguardar as relações familiares contra a violência.
Assim, a
punição no caso de abuso do pátrio poder, as limitações legais às atribuições
do tutor, fixação de obrigação dos pais para com a família e a possibilidade de
propor ação de investigação de paternidade são, enfim, algumas conquistas que
demonstram um grande avanço para a época.
Porém, em 1917 esta NOVA LEI CIVIL era destinada a uma classe de cidadãos de uma certa camada da sociedade: na prática, a tutela jurídica não atingia as famílias dos "mendigos", dos "vagabundos" , das "prostitutas", dos negros recém-libertados. Os índios foram considerados pela lei civil como relativamente incapazes, equiparados aos maiores de 16 e menores de 21 anos, às mulheres casadas e aos pródigos.
CLÓVIS BEVILÁQUA, comentando o artigo 6º do Código Civil,
refere-se ao Marquês de Pombal, que primeiro reagiu diante das variedades de
tratamento destinado aos índios, "ora os condenavam à escravidão, ora lhes
reconheciam o direito de liberdade". Comenta ainda que na discussão do
Código Civil em 1913, retomando a orientação de José Bonifácio, "a Câmara
enfrentou o problema de incorporação definitiva dos aborígines na sociedade
brasileira (...) da qual eram parte integrante, mas de
cujo convívio, não obstante, se achavam afastados por circunstâncias, que era
ocioso naquele
momento recordar".[18]
Em 1916 foi criado o "Serviço de Proteção ao
Índio" - SPI - o qual foi substituído em 1967 pela FUNAI
- Fundação Nacional do Índio. Efetivamente, a sociedade de então
valorizava a família legítima, distinguindo-a sobretudo nos direitos
patrimoniais, e o
"resto" era considerado como
"enjeitados" ou "párias" desta mesma sociedade. "Perfilhar"
um filho ilegítimo ou mesmo promover legalmente uma adoção era um privilégio
jurídico de poucos. Outros aspectos legais relativos à criança merecem uma
igual análise, haja vista as conquistas constitucionais a partir da
independência e, posteriormente (a partir de 1943), a sistematização da
proteção do trabalho do adolescente; enfim, são aspectos igualmente importantes
da legislação brasileira.
Optamos por
limitar este trabalho a uma visão histórica de nossa legislação relativa à
tutela da infância e adolescência, em especial àqueles "desassistidos" e "abandonados" e àqueles
considerados "infratores". Referindo-se à tutela do menor abandonado
no art. 412 do Código Civil, Clóvis Beviláqua define-os como "os expostos,
aqueles cujos pais, incógnitos ou conhecidos, deles não curam, ou os deixam a
vagar, à mercê da caridade pública, e ainda aqueles cujos pais os levam à
prática de atos imorais. Estes menores, desamparados pelos pais, devem ser
acolhidos e dirigidos pela sociedade".[19]
MARCELO
GANTUS JASMIM lembra que "tanto o Código Penal de 1830, promulgado pelo
Império, quanto o Código Penal de 1890, o primeiro da República, continham
medidas especiais prescritas para aqueles que, apesar de não terem atingido a
maioridade, tivessem praticado atos que fossem considerados criminais. Os
cânones informadores de ambos os códigos, naquilo que diz respeito
especificamente ao tratamento do menor, parecem-se bastante, deixando-nos
perceber apenas diferenças na concepção que define as diversas idades da
infância. O que organizava estes códigos era uma TEORIA DE AÇÃO COM DISCERNIMENTO
que imputava responsabilidade penal ao menor em função de uma pesquisa da sua
consciência em relação à prática da ação criminosa".[20]
A partir da década de vinte, nossa história conheceu um novo período caracterizado pela ação social do Juizado de Menores. Ao Juiz se reservava o papel de declarar a condição jurídica da criança se "abandonada" ou não, se "delinqüente" e qual o "amparo" que deveria receber.
e.1. Código Mello Mattos de 1927 (Dec. 17.943-A de 12.10.27)
Conhecido como Código Mello Mattos, representou o primeiro Código Sistemático de Menores do País e da América Latina. Recebeu o nome do autor do projeto que estabeleceu suas bases.
JOSÉ CÂNDIDO DE ALBUQUERQUE MELLO MATTOS foi o primeiro Juiz de Menores do Rio de Janeiro, destacando-se na época, ainda, como professor do Colégio Pedro II e da Faculdade de Direito, como Deputado Federal e Diretor do Instituto Benjamin Constant.
Considerado
na época como o "Apóstolo da Infância Abandonada", deixou também um
acervo bibliográfico, além de ter criado alguns estabelecimentos de assistência
e proteção à infância abandonada e delinqüente.[21]
Este código representou uma iniciativa precursora dentro da legislação brasileira, destacando-se pela assistência aos menores de 18 anos.
Ao definir
no Capítulo I o objeto e finalidade da lei, o Código de Menores de 1927 teve
uma visão correspondente aos conceitos então vigentes, abrangendo num mesmo
entendimento o "menor abandonado" e o "menor delinqüente",
embora pretendendo oferecer a um e a outro "assistência e proteção".
No art. 26 agrupou em oito situações os "menores abandonados" com
menos de 18 anos.
Atentando nas situações da criança de menos de dois anos "entregue para criar", "fora da casa dos pais", e dos menores "expostos até sete anos de idade em estado de abandono", já apresentou uma primeira perspectiva de integração e acalentou o propósito de evitar o abandono pela mãe, mediante conselho e, ao mesmo tempo, o sigilo de que devia revestir o processo de recolhimento.
Voltando
suas vistas para os menores abandonados (arts. 53 e
segs.), o Código Mello Mattos estabeleceu medidas relativas ao seu
"recolhimento" e o seu encaminhamento a um lar, seja o dos pais, seja
o de pessoa encarregada de sua guarda.
No que se
refere ao "menor delinqüente" (arts. 68 e
segs.) na faixa etária de 14 anos, proibiu que fosse submetido a processo penal
de qualquer espécie.
Num avanço
para sua época, mandou que se tivesse em vista o estado
físico, moral e mental da criança, bem como a situação social, moral e
econômica dos pais.
Entendia a propósito da "liberdade vigiada" (artigo 92) em que tinha em vista os casos de "menores delinqüentes" , sempre "em companhia dos pais, tutor ou do curador, ou ainda aos cuidados de um patronato", mas sob a vigilância do Juiz.
Dispensando a "pesquisa de discernimento" da legislação penal anterior, no seu art. 69 parágrafo 2º estabeleceu que, se o menor não fosse abandonado, nem pervertido, nem estivesse em perigo de o ser, a autoridade o recolhia a uma escola de reforma pelo prazo de um a cinco anos.
Em caso
afirmativo, ou seja, se fosse abandonado, pervertido ou estivesse em perigo de
o ser (art. 69 parágrafo 3º), a internação seria por "todo o tempo
necessário à sua educação entre três a sete anos".
Portanto, ser abandonado ainda representava um agravamento da pena, impondo, ao adolescente, até sete anos de reformatório.
Sem descer
à minúcia de cada caso, o que se pode falar do Código Mello Mattos de 1927 é
que representou a abertura de uma visão legislativa sobre o problema da criança
e do adolescente em todos os seus aspectos.
Antecedendo
às grandes medidas tomadas pelos Organismos Internacionais, e não obstante os
defeitos naturais em um diploma pioneiro, é lícito apontá-lo como um código
precursor, o qual colocou o Brasil na vanguarda dos países latino-americanos e
preparou terreno para enfrentar a questão da infância desassistida,
agravada pela problemática social, neste último meio século.
Após promulgação do Código Mello Mattos, inúmeros decretos e decretos-leis se seguiram visando à proteção especialmente do menor infrator, e já aparecem leis especiais de proteção do trabalho na infância e adolescência.
Em geral a legislação especial da época em relação ao
"menor infrator" o confundia com os menores abandonados em geral, a
exemplo do decreto-lei 6.026 de 24 de novembro de 1943. Eram considerados
simplesmente pela inadaptação ou
desajuste social.
Comentando o referido Decreto-lei, FRANCISCO PEREIRA DE BULHÕES CARVALHO observa que "são três os defeitos apresentados neste sistema legal:
a) classifica os "menores" conforme tenham ou não praticado infração penal quando os deveria distinguir apenas quanto ao grau de desajuste;
b) não coloca os infratores sem temibilidade entre os menores abandonados;
c) não inclui entre os menores que carecem de medidas especiais de reeducação, os gravemente desajustados, ainda que não infratores".[22]
A preocupação pelo "trabalho do menor" já aparecera no Código Mello Mattos limitando a idade mínima de trabalho aos 12 anos, além de proibir o trabalho noturno aos menores de 18 anos.
O Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, que aprovou a CLT, nela inclui as normas de proteção do trabalho do menor.
O Decreto
nº 31.546, de 06.10.52, mudou especialmente o conceito do empregado aprendiz.
Data de 5
de novembro de 1941 o Decreto nº 3.779 que criou o SAM - Serviço de Assistência
a Menores, em substituição ao Instituto Sete de Setembro, que tinha a
atribuição de prestar, em todo o território nacional, amparo social aos
"menores
desvalidos e infratores". Por seus métodos inadequados de atendimento e
estrutura sem autonomia, o SAM ficou marcado como um sistema caracterizado por
seus metódos inadequados e pela repressão
institucional à criança e aos jovens.
Diante do
clamor público, em 1964 foi criada a FUNABEM - Fundação Nacional do Bem-Estar
do Menor, pela Lei nº 4.5l3 de 1º de dezembro, com o objetivo de fixar as
diretrizes fundamentais da Política Nacional do Bem-Estar do Menor. O novo
sistema, subordinado moralmente à Presidência da República, propunha substituir
a repressão e segregação por programas educacionais.
Criada como uma entidade normativa, previa ramificação nos
Estados e Municípios através das FEBEM - Fundações Estaduais de Bem-Estar do
Menor. Em 1974 passou a ser vinculada ao Ministério da Previdência e
Assistência Social através do Decreto nº 74.000, de 1º de maio. Fugindo, porém,
das propostas originalmente previstas, outras agravantes de política
administrativa e social levaram a FUNABEM a atuar diretamente, como agente,
desviando-se das políticas de atendimento inicialmente previstas. Como entidade
educacional, a FUNABEM atendia inicialmente aos alunos em regime de
internato, semi-internato e externato; com a retirada dos jovens desassistidos das ruas, sem programas definidos, a entidade
conduziu rapidamente ao regime carcerário, acarretando graves problemas.
Com a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente em 12 de outubro de 1990 (Lei nº 8.069/90), a FUNABEM foi tranformada em FCBIA - Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência, propondo gradativa extinção dos internatos e modificando totalmente as propostas de atuação deste órgão dentro da nova doutrina jurídica da proteção integrada criança adotada pelos documentos internacionais.
O Código de Menores de 1979 (Lei 6.697 de 10 de outubro de 1979) adotou a doutrina de Proteção ao Menor em Situação Irregular, que abrange os casos de abandono, a prática de infração penal, desvio de conduta, falta de assistência ou representação legal, - enfim, a lei de menores era instrumento de controle social da infância e do adolescente, vítimas de omissões da família, da sociedade e do Estado em seus direitos básicos. O Código de Menores não se dirigia à prevenção, só cuidava do conflito instalado. O Juiz de Menores atuava numa prevenção de 2º grau, através da polícia de costumes, proibição de freqüência em determinados lugares, casas de jogos, etc.
PAULO LÚCIO
NOGUEIRA esclarece, comentando o art. 2º que classifica em seis categorias o
"menor em situação irregular", lembra que "trata-se de situações
de perigo que poderão levar o menor a uma marginalização mais ampla, pois o
abandono material ou moral é um passo para a criminalidade”.
Contudo não se pode deixar de reconhecer que, em alguns casos, a situação do menor é decorrente da própria situação familiar, seja sob estado de pauperismo (abandono material), seja em virtude de riqueza (desvio de conduta).[23]
Vigorando até 1990, o Código de Menores procurou atender à
situação da época, tendo sido revogado pela lei nº 8.069 de 1990, nascida dos
momentos democráticos de elaboração do art. 227 da Constituição Federal de
1988, os quais propuseram novos paradigmas para a proteção da criança: sujeitos
de direitos, pessoas em fase peculiar de
desenvolvimento, destinatários de PRIORIDADE ABSOLUTA.
Conclusão
"A História Humana é um Perpétuo Trabalho de
Construção e Destruição, Destinado a Renovar, a Recomeçar Perpetuamente"
(Giorgio Del Vecchio)
Não existe uma razão maior para uma pesquisa histórica, se esta não tiver como ponto de partida uma questão colocada no presente. O momento que vivemos e as possibilidades existentes configuram um desafio, diante do qual todos os setores da sociedade devem assumir responsabilidades.
A proposta
deste trabalho monográfico não visou esgotar o tema do ponto de vista
histórico, mas, sobretudo, impulsionar um início de debate sobre A CAUSA desta
questão catastrófica de final de século: mais de 60 milhões de crianças e
adolescentes carentes e desassistidos em nosso país.
Seria precário questionar o tema sem suscitar uma discussão sobre os antídotos
para este problema.
Consideramos
que merecem atenção especial no Brasil a própria estrutura familiar em
flagrante evolução, as crianças de rua, as crianças trabalhadoras, as crianças
maltratadas (na família ou na sociedade) e aquelas institucionalizadas em
internatos, orfanatos e estabelecimentos congêneres.
O Estatuto
da Criança e do Adolescente entrou em vigor desde outubro de 1990 (Lei nº
8.069/90). Embora não se mude a sociedade a toque de leis, elas representam um
meio de impor as modificações necessárias com mais eficiência.
O ESTATUTO
adotou a Doutrina Jurídica da "Proteção Integral" abraçada pela
Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança da ONU (1989) e pela
Declaração Universal sobre os Direitos da Criança (1959).
Não se trata de tutelar apenas crianças em situação irregular na forma do Código de Menores de 1979, mas tem-se em vista a proteção de qualquer criança, e adolescentes com menos de 18 anos e em casos especiais, menores de 21 anos: TODOS SÃO SUJEITOS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E DESTINATÁRIOS DE PRIORIDADE ABSOLUTA.
O preceito
constitucional do art. 227 estabelece que "é
dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com ABSOLUTA PRIORIDADE, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, a cultura, ao respeito à liberdade
e à convivência familiar e comunitária. Além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão".
Este mesmo
preceito é repetido nos artigos 4º e 5º do ESTATUTO, reportando-se aqui à sábia
afirmação do Prof. ANTÔNIO CARLOS GOMES DA COSTA: "O Estatuto transformou necessidade em
Direito".
Efetivamente,
o Estatuto representa uma "nova era" para a proteção e assistência às
crianças carentes e desassistidas de nosso país.
Entre os direitos fundamentais declarados no Estatuto está a "CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA" prevista nos arts. 19 e seguintes, com preceitos que prevêem a proteção e assistência da infância e adolescência "no seio de sua família e excepcionalmente em família substituta", considerando nesta categoria a guarda, a tutela e a adoção.
Especialmente, a adoção passou por séria revisão em relação ao sistema jurídico
anterior, exigindo uma rigorosa fiscalização pelo Poder Judiciário, mas, ao
mesmo tempo, abrindo inúmeras possibilidades e novas oportunidades para os
interessados.
A família e as relações familiares são tuteladas pelo Estatuto, visando à proteção dos filhos, encontrando regras específicas para o abuso do pátrio poder e prevendo expressamente no art. 129 medidas aplicáveis aos pais e responsáveis.
Falar em
crianças de rua e crianças trabalhadoras representa falar de uma indefinida
população infanto-juvenil denominada "meninos de rua".
DEODATO RIVERA, em artigo publicado no "Correio Braziliense" de 29.01.91 mostra que esta "categoria imprecisa mistura no mesmo rótulo”:
1 - os meninos jogados nas ruas, já sem vínculo familiar, que vivem e dormem
nos logradouros públicos;
2 - os meninos trabalhadores de rua, que dormem em casa diariamente ou pelo
menos nos fins de semana;
3 - os meninos mendigos de rua, em geral acompanhados e explorados por adultos;
4 - os meninos prostituídos de rua, que não costumam dormir nas ruas e também
são vítimas de exploradores;
5 - os meninos delinqüentes de rua, que estão ou estiveram em uma das outras
categorias ou que simplesmente vão às ruas, mas para obter um "ganho"
ilegal, induzidos por familiares, criminosos e, infelizmente não raro também,
por maus
policiais civis ou militares que desonram suas corporações e o serviço público".
Indiscutivelmente, lugar de criança não é na rua. Qualquer programa deverá prioritariamente reintegrá-la na família ou programas assemelhados. O extermínio, a violência e os maus tratos físicos e psicológicos à criança representam um outro desafio neste final de século.
Considerados
os castigos físicos como uma "prática normal" no processo educativo,
estas violências ainda fazem parte de rotinas domésticas e institucionais.
Caberá à própria sociedade civil e mesmo ao Estado, através de seus
mecanismos legais disciplinadores, denunciar e condenar seus agentes
infratores. É direito fundamental na Constituição e no Estatuto e dever da
Família, da Sociedade e do Estado "colocar a salvo a criança e o
adolescente de toda forma de discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão".
A tendência
de institucionalizar faz parte da nossa formação cultural cristã.
Os colégios
criados pelos Jesuítas, os conventos, as instituições beneméritas, os
internatos religiosos (inclusive para uma aristocracia rural abastada) e os
patronatos, asilos e orfanatos para os carentes e abandonados, fazem parte de
nossa História como uma forma de transferir a estas instituições, e
posteriormente para o Estado, a formação e educação das crianças em todos os
níveis, inclusive profissionalizantes.
A partir do código Mello Mattos, o Estado assumiu o trabalho de assistência e proteção sob sua jurisdição, com programas de ação direta e intensiva, enfrentando as questões de política social, ocupando lugar de destaque na administração pública e atuando ainda na fiscalização do trabalho infantil em estabelecimentos industriais.
SAUL DE
GUSMÃO noticia em sua obra de 1942 que os estabelecimentos que recebem menores
desvalidos podem ser distribuídos em três categorias: os oficiais, os
semi-oficiais e os particulares que contratam com o Juízo a internação dos
mesmos mediante determinada cota mensal".[24]
Em nome de uma proteção temos assistido a uma preocupação através da História e principalmente neste século em classificar uma população carente com rótulos de "enjeitados", "abandonados", "delinqüentes" e "infratores", da mesma forma que hoje generalizamos um tipo de população desassistida como "meninos de rua".
Chega de rotular e segregar ! É tempo de considerá-los como elementos ativos, aptos a serem prontamente recuperados para sua plena integração social como estabelece a Constituição Federal.
O Estatuto introduziu uma nova proposta no que se refere à Justiça da Infância e Juventude.
O Juiz assume sua função tradicional de dirimir conflitos. Como bem lembra ANTÔNIO FERNANDO DO AMARAL E SILVA, "o sistema de Justiça não deve envolver a assistência social. O mundo do Juiz é o processo. Sua atuação extraprocessual é desaconselhável".[25]
O Estatuto manteve a internação apenas como uma medida sócio-educativa para adolescentes que praticarem ato infracional. O fim dos "internatos de proteção e assistência" foi determinado pelo novo sistema legal. Estas instituições deverão assumir outras formas educacionais e assistenciais.
Estas
medidas não terão validade se novos sistemas não forem implantados a partir de
um processo educativo da comunidade.
Programas
de atendimento à infância e adolescência não podem ser de competência exclusiva
de um Ministério ou de uma Secretaria Estadual ou Municipal.
Caberá ao Chefe do Poder Executivo nos três níveis, com a
cooperação dos Conselhos Municipais e Estaduais e, a nível nacional, pelo
CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
), fixar as políticas básicas a serem executadas por Ministérios e
Secretarias. No Brasil não têm sido felizes as iniciativas de criação de
Ministério e Secretarias da Criança. Infância e Juventude não são problemas
setoriais. Pelo contrário, abrangem uma gama imensa das áreas de atuação do
Estado: educação, alimentação, saúde, habitação, saneamento básico, cultura,
lazer e exigem um
trabalho sincronizado nos vários setores do poder público e entrosados com a
sociedade e com a comunidade.
A meu ver, a PRIORIDADE ABSOLUTA determinada pela Constituição e pelo estatuto deve compreender iniciativas imediatas vinculadas a alguns aspectos básicos.
a - Aprimoramento, seleção e capacitação dos recursos humanos que atendem à criança e ao adolescente;
b - Num trabalho
entrosado com a comunidade, promoção de programas de assistência e atendimento
integrais à família e à população infanto-juvenil na satisfação de suas
necessidades básicas (alimentação, saúde, educação e lazer);
c -
Humanização do tratamento dispensado à criança no âmbito doméstico, na escola,
como na sociedade, eliminando práticas institucionais vexatórias e humilhantes,
proibição absoluta de agressões e maus-tratos, tanto físicos como verbais;
d - Assistência psicológica, psiquiátrica e mesmo psicopedagógica às famílias, exercidas na comunidade por
entidades municipais, e principalmente pelos Conselhos Tutelares criados pelo
Estatuto, vinculando sempre os pais ao desenvolvimento de seus filhos;
e - Criação
de programas que levem as crianças órfãs e abandonadas a terem uma convivência
familiar, estimulando a guarda e a adoção ou integração a programas como os lares-escolas;
f -
Reformulação do processo educacional integrando o ensino profissionalizante ao
currículo elementar, de forma a transferir para a escola uma básica formação
profissionalizante;
g -
Mobilização da opinião pública para definir a área de atuação e as
responsabilidades do poder constituído e da sociedade civil neste processo.
Vivemos uma realidade cruel de final de século. Os problemas econômicos representam um denominador comum para o problema social da criança em nosso País. Por isso não basta definir legalmente uma Prioridade Absoluta. É preciso ação.
E é hora da
sociedade civil assumir o seu papel, neste processo, promovendo atividades
integradas ou paralelas que representam, a curto prazo,
a superação deste problema estratégico em nosso País.
1. ANÍSIO
GARCIA MARTINS em "Direito do Menor", Livraria e Editora
Universitária de Direito, 1988, p. 26.
2. J. AJURIA GUERRA, em trabalho intitulado "A Criança na História", publicado nos anais do IV Congresso Brasileiro de Neuropsiquiatria Infantil, Belo Horizonte, 1977, p. 7.
3. PHILIPPE
ARIÉS em "História social da criança e da família", Editora Zahar, Rio de Janeiro, 1978 - E. SHORTER, "La naissance de la Famille Moderne", Paris, Le Seuil, 1977.
4. H.
CHAMOUSSET em "Memórias Políticas sobre as crianças", citada na obra
de ELIZABETH BADINTER "Um amor conquistado - o mito do amor materno",
Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1988, p 12 ss.
5. ARTHUR
MONCORVO FILHO em "Histórico da Proteção à Infância no Brasil", 1500 –
1922. Rio de Janeiro: Empresa Gráfica Editora, 1926,
pp. 26/31.
6. FLORO DE ARAÚJO MELO em "A História da História do
Menor no Brasil", Editoração particular, 1986, p. 27.
7. ARTHUR
MONCORVO FILHO, obra citada, p. 34.
8. ARTHUR
MONCORVO FILHO, obra citada, p. 35.
9. FLORO DE ARAÚJO MELO, obra citada, pp 31/32.
10. ARTHUR
MONCORVO FILHO, obra citada, p. 36.
11. ARTHUR
MONCORVO FILHO, obra citada, p. 38.
12. IRMA
RIZZINI, in "A Assistência à infância na passagem para o
século XX - da repressão à reeducação publicado na Revista Fórum Educacional
02/90 da Fundação Getúlio Vargas, p. 80.
13. IRMA
RIZZINI, obra citada, p. 82.
14. IRMA
RIZZINI, obra citada, p. 82.
15. IRMA
RIZZINI, obra citada, p. 84.
16. IRMA
RIZZINI, obra citada, p. 85.
17. IRMA
RIZZINI, obra citada, p. 93.
18. CLÓVIS
BEVILÁQUA, "Código Civil Comentado"- Editora
Rio, 1975, p. 192.
19. CLÓVIS
BEVILÁQUA, obra citada, p. 883
20. MARCELO
GANTUS JASMIN em "Para uma história de legislação sobre o menor",
publicado na Revista de Psicologia 4 (2) , página 81 - jul/dez 1986.
21. SAUL DE
GUSMÃO, "Assistência a Menores". Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1942, pp. 208/14.
22.
FRANCISCO PEREIRA DE BULHÕES CARVALHO na obra "Direito do Menor", Rio
de Janeiro: Forense, 1977, pp. 40/41.
23. PAULO
LÚCIO NOGUEIRA em "Comentários ao Código de Menores", São Paulo:
Saraiva, 1988, pp. 34/14.
24. SAUL DE
GUSMÃO, obra citada p. 13.
25. ANTÔNIO
FERNANDO DO AMARAL E SILVA em "Justiça da Infância e da Juventude",
In "Brasil Criança Urgente", São Paulo: Columbus
Cultural, 1989, p. 91.