DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART.5º, PAR. ÚNICO C/C ART.1.635, INCISO II, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL, À LUZ DO ART.227, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DA DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE

 

 

                                                                                  Murillo José Digiácomo

Promotor de Justiça, PR.

 

 

Dentre as mais significativas inovações introduzidas pelo novo Código Civil brasileiro, instituído pela Lei nº 10.406/2002, em vigor a partir de 11 de janeiro de 2003, se encontra a alteração da idade na qual a pessoa atinge a plena capacidade para prática dos atos da vida civil, que foi reduzida de 21 (vinte e um) para 18 (dezoito) anos.

 

Festejada por muitos, a referida inovação legislativa veio trazer alento àqueles que sustentavam a falta de justificativa para que jovens maiores de 18 (dezoito) e menores de 21 (vinte e um) anos de idade que mantinham uma vida completamente independente de seus pais ou responsável ainda necessitassem de sua assistência para prática dos atos da vida civil.

 

A opção do legislador procurou levar em conta a evolução da sociedade e maior freqüência das relações civis envolvendo jovens maiores de 18 (dezoito) anos de idade, buscando ainda coerência com outros Diplomas Legais que, por exemplo, também fixam em 18 (dezoito) anos a idade para o exercício regular de atividades laborativas, sem restrições[1], para o voto obrigatório[2] e para responsabilidade penal[3].

 

O legislador civil, no entanto, não parou por aí, tendo de maneira expressa também reduzido, para 16 (dezesseis) anos, a idade através da qual é possível ao relativamente incapaz obter a emancipação, permitindo ainda que esta escapasse por completo ao controle judicial.

Nesse sentido, dispõe o art.5º, par. único, do novo Código Civil:

 

Art.5º. A menoridade cessa aos 18 (dezoito) anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.

Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade:

I – pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver 16 (dezesseis) anos completos;

II – pelo casamento;

III – pelo exercício de emprego público efetivo;

IV – pela colação de grau em curso de ensino superior;

V – pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela inexistência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com 16 (dezesseis) anos completos tenha economia própria.

 

Uma análise desavisada da referida inovação legislativa e seu cotejo com o disposto no art.9º, do revogado Código Civil de 1916 que antes regulava a matéria, pode conduzir à conclusão de que estamos também diante de uma “evolução natural” do instituto da emancipação, e que portanto não haveria qualquer problema em, por exemplo, facultar aos pais a concessão da plena capacidade a seus filhos, tão logo estes completassem os 16 (dezesseis) anos.

 

Ocorre que, na forma da Constituição Federal de 1988, Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente e da normativa internacional que as inspira, uma pessoa com idade inferior a 18 (dezoito) anos é considerada criança ou adolescente[4], estando sujeita à proteção especial e integral por parte do Poder Público, da sociedade e, em especial, de sua família, à qual se impõe uma série de obrigações que, por serem fixadas por normas de direito público, de caráter cogente, não podem ser colocadas ao talante exclusivo do particular, como seria o caso quando da aplicação de semelhante permissivo estabelecido pelo Código Civil de 2002, como melhor veremos adiante.

A situação daí resultante gera um evidente conflito entre a citada norma de Direito Privado prevista na nova Lei Civil e todo um arcabouço jurídico criado no sentido da proteção integral de crianças e adolescentes, regulado por normas de Direito Público, que aponta para a inadequação, incoerência e incompatibilidade daquela para com estas, que devem prevalecer em razão do respaldo constitucional que possuem, ex vi do disposto no art.227, caput, da Constituição Federal.

 

Tal constatação decorre do cotejo entre as conseqüências da emancipação de adolescentes previstas na Lei Civil, em especial no que diz respeito à figura de seus pais, e as demais normas que regulam a matéria estabelecidas pela citada Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, com fundamento na Constituição Federal e normativa internacional, levando à inevitável conclusão que a emancipação precoce de adolescentes, em especial quando resultante de singela “concessão” de seus pais, é inconstitucional.

 

Como ponto de partida para a análise da inconstitucionalidade do art.5º, par. único, do novo Código Civil, máxime na parte em que faculta aos pais, por singela manifestação de vontade consignada em instrumento público e ao arrepio de homologação judicial, a emancipação de seus filhos a partir dos 16 (dezesseis) anos de idade, devemos considerar que o art.227, caput, da Constituição Federal, ao relacionar as instituições convocadas para defesa dos direitos infanto-juvenis, não por acaso, colocou a família em primeiro lugar, a ela assegurando, por outro lado, “especial proteção” por parte do Estado (latu sensu)[5].

 

Atendendo ao comando de nossa Carta Magna, a legislação infraconstitucional, notadamente a Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente[6] e a Lei nº 8.742/93 – Lei Orgânica da Assistência Social[7], estabeleceram uma série de mecanismos de proteção e amparo à família, tendo como um dos objetivos precípuos assegurar à criança e ao adolescente o direito fundamental (e constitucional, posto que previsto no art.227, caput, da Constituição Federal) à convivência familiar, que na forma do art.19, da Lei nº 8.069/90, deve ser exercido preferencialmente no seio da família de origem ou biológica.

Importante frisar que o mencionado direito à convivência familiar é considerado pela Lei nº 8.069/90 e pela Constituição Federal um direito inerente à criança e ao adolescente, não podendo ser portanto objeto de livre disposição por parte de seus pais.

 

Devemos considerar que o Estatuto da Criança e do Adolescente, de maneira proposital e como decorrência da regra contida no seu art.19, acima mencionado, não contemplou o instituto da “delegação do pátrio poder[8] que era previsto pelo revogado Código de Menores de 1979 em seus arts.21 a 23, tendo por outro lado estabelecido, em seu art.129, uma série de medidas destinadas aos pais de crianças e/ou adolescentes que se encontrem em situação de risco, visando a manutenção destes junto à sua família de origem e o fortalecimento dos vínculos familiares existentes, verdadeiro princípio que norteia a aplicação de toda e qualquer medida de proteção (conforme art.100 da Lei nº 8.069/90).

 

Em verdade, com a incorporação ao Direito Positivo brasileiro, a nível constitucional, dos ditames da “Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente” que norteia todo conteúdo e interpretação da Lei nº 8.069/90 e legislação correlata, o hoje chamado “poder familiar”, enquanto exercido em relação a crianças e adolescentes não mais admite “atos de disposição” ou “renúncia” quanto aos deveres que lhe são inerentes, cabendo ao Poder Público garantir que os pais os cumpram de maneira integral e responsável[09].

 

De acordo com a sistemática estabelecida pelo art.227, da Constituição Federal e regulamentada pela Lei nº 8.069/90 e Diplomas afins, portanto, o “poder familiar”, mais do que nunca, assumiu nítidos contornos de instituto de Direito Público, cujo exercício representa um verdadeiro múnus público do qual os pais não podem se escusar.

 

Ocorre que o advento do citado art.5º, par. único, da nova Lei Civil, e sua conjugação com o art.1.635, inciso II, do mesmo Diploma Legal subverte toda essa concepção publicista do instituto do “poder familiar” exercido em relação a crianças e adolescentes, acabando por afrontar ao disposto no art.227, da Constituição Federal e “Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente” que o inspira, não podendo prevalecer no mundo jurídico.

 

Com efeito, dispõe o novo Código Civil, em seu art.1.630 que “os filhos estão sujeitos ao poder familiar[10], enquanto menores”.

 

Por definição, o “poder familiar”se constitui no "conjunto de direitos e deveres que os pais possuem em relação a seus filhos", sendo que o Estatuto da Criança e do Adolescente reproduz alguns dos deveres relacionados na Lei Civil[11] em no entanto tornar sem efeito os demais, que subsistem apesar de não terem sido expressamente relacionados na legislação tutelar.

 

Os deveres inerentes ao “poder familiar são previstos pelo art.22 do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como pelo art.1.634 do Código Civil de 2002, tendo por base o disposto no art.229 da Constituição Federal.

 

São eles (conforme arts.21 e 22, da Lei nº 8.069/90 e art.1.634, do Código Civil de 2002):

a) Deveres de guarda, sustento e educação (devendo esta ser entendida não apenas a educação escolar, mas sim em toda amplitude do preconizado pelo art.205 da Constituição Federal - "...visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho"), compreendendo os deveres de "assistência" e "criação" previstos pelo art.229 da mesma Carta Magna;

b) Conceder-lhes ou negar-lhes o consentimento para casarem;

c) Nomear-lhes tutor, por testamento, na forma da Lei Civil;

d) Representá-los até os 16 anos e assisti-los após essa idade, suprindo-lhes o consentimento[12];

e) Reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;

f) Exigir que lhe prestem obediência e respeito;

g) Cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.

 

Como sabemos, na forma da Lei, o descumprimento, doloso ou culposo dos deveres inerentes ao “poder familiar” acima relacionados, torna os pais faltosos sujeitos a sanções administrativas e mesmo criminais[13]  (conforme arts.129, 238 e 249, da Lei nº 8.069/90 e arts.136 e 244 a 247, do Código Penal, dentre outras), enfatizando assim a natureza pública e indisponível do instituto.

 

Em casos extremos, após comprovada a grave e injustificável violação, por parte dos pais, dos deveres inerentes ao “poder familiar”, e demonstrado de forma cabal e inequívoca a absoluta inviabilidade da permanência ou retorno da criança ou adolescente a sua família natural, na forma do disposto no art.24, da Lei nº 8.069/90 deverá ser deflagrado procedimento obrigatoriamente contraditório com vista à suspensão ou destituição daquele, procedimento este previsto expressamente pelos arts.155 a 163 da Lei nº 8.069/90[14].

 

Uma vez destituído ou suspenso o “poder familiar”, deve a criança ou adolescente ser colocado em família substituta a título de guarda, tutela ou adoção, cabendo a tutores e guardiães deveres equivalentes aos decorrentes do “poder familiar”[15]. Com tal medida, fica garantida a permanência da criança ou do adolescente num ambiente familiar, onde receberá toda orientação e assistência, tanto do ponto de vista material quanto moral e emocional a que tem direito.

 

Consoante acima ventilado, se por um lado a Lei impõe uma série de obrigações aos pais, detentores do “poder familiar”, em relação a seus filhos[16], prevendo inúmeras sanções para o caso de seu descumprimento, por outro, como decorrência dos já citados art.226, caput e §7º, da Constituição Federal, estabeleceu diversos mecanismos voltados à sua proteção, através das já mencionadas medidas de proteção e voltadas aos pais ou responsável, previstas nos arts.101, inciso IV e 129, incisos I a IV, da Lei nº 8.069/90 (respectivamente)[17] e outras similares contidas na Lei Orgânica da Assistência Social[18].

 

O objetivo de todo esse arcabouço jurídico, repita-se, não é outro senão garantir que crianças e adolescentes recebam diretamente de seus pais[19] a orientação, cuidado e assistência de que necessitam para seu desenvolvimento sadio, ainda que para tanto aqueles tenham de contar com apoio externo, por meio de entidades governamentais e não governamentais.

 

Como podemos observar, toda sistemática estabelecida pela lei e pela Constituição Federal para a prometida proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes tem por verdadeiro pressuposto a participação de seus pais no processo, não lhes sendo lícito renunciar ou delegar a terceiros e/ou mesmo a instituições[20] os mencionados deveres que são inerentes ao exercício do “poder familiar”.

 

Ocorre que, consoante acima ventilado, contrariando tal orientação, que resultou de uma contínua evolução legislativa e do pensamento humano, encontrando profundas raízes na supramencionada “Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente”, que como vimos serviu de inspiração ao art.227, de nossa Carta Magna, o citado art.5º, parágrafo único, do novo Código Civil permite que os pais, por simples ato unilateral de vontade, traduzido em instrumento público que dispensa a necessidade de intervenção ou homologação pela autoridade judiciária, emancipem seus filhos maiores de 16 (dezesseis) anos e, por via de conseqüência, provoquem a extinção do “poder familiar” que exercem em relação a eles, bem como de todos os deveres correspondentes ao referido múnus.

 

É o que se extrai da análise do art.1.635, inciso II, do novo Código Civil:

Art.1.635. Extingue-se o poder familiar:

I – ... ;

II – pela emancipação, nos termos do art.5º, parágrafo único;

... .

 

Com efeito, extinguindo-se o “poder familiar”, também cessam, ipso jure, as obrigações a que aludem os citados art.22, da Lei nº 8.069/90; art.1634, do Código Civil e art.229, da Constituição Federal, ressalvada a obrigação alimentar, no caso de comprovada necessidade, ex vi do disposto no art.1.694 e seguintes também da Lei Civil.

Ocorre que, como vimos acima, os deveres inerentes ao “poder familiar” vão muito além da singela prestação de assistência material e/ou a representação/assistência para prática dos atos da vida civil, pois também (e com maior relevância) compreendem a convivência familiar, a orientação e educação no sentido mais amplo da palavra, o apoio moral e emocional a que toda criança ou adolescente tem direito, que a partir da emancipação não mais poderão ser exigidos dos pais.

 

A situação resultante da incidência do art.5º, par. único, da nova Lei Civil acaba sendo mais prejudicial ao adolescente emancipado do que se verificava à época em se admitia a “renúncia” ou “delegação” do “poder familiar”, pois era então possível colocá-lo em família substituta, a título de guarda ou tutela, o que com a extinção do “poder familiar” e obtenção, de forma precoce e indevida, da plena capacidade civil, não mais será possível[21].

 

Importante observar que o aludido permissivo legal, além de dispensar expressamente a intervenção da autoridade judiciária para seu exercício e aperfeiçoamento, também não prescinde – por incrível que possa parecer – do próprio consentimento do adolescente, que assim pode se ver “emancipado” até mesmo contra a sua vontade.

 

Desnecessário tecer maiores comentários acerca da situação teratológica daí resultante, que faculta aos pais a emancipação de filhos ainda adolescentes que lhes causem inconvenientes, se eximindo assim, por ato unilateral de vontade e, ao menos a priori, alheio ao controle judicial[22], de todas as obrigações legais e constitucionais inerentes ao “poder familiar” que com tal medida se extingue[23], abandonando à própria sorte aqueles que têm o dever de proteger.

As conseqüências deletérias de práticas semelhantes, tanto para os adolescentes[24] emancipados quanto para a sociedade são mais do que evidentes, não sendo admissível, repita-se, que um dispositivo contido na Lei Civil, que visa resguardar pretensos interesses de natureza privada, se contraponha a todo um arcabouço jurídico composto por normas de Direito Público erigido no sentido da proteção integral de crianças e adolescentes, que como dito alhures tem como verdadeiro pressuposto a participação ativa e decisiva dos pais[25] no processo.

 

Permitir que os pais emancipem seus filhos ainda adolescentes por simples instrumento público, é desconsiderar todos os séculos de evolução que sofreu o instituto do “pátrio poder”, hoje chamado “poder familiar” e, mais recentemente, o Direito da Criança e do Adolescente, tornando sem efeito (se fosse isto possível) todas as normas de proteção instituídas pela Lei nº 8.069/90 e Diplomas afins, com base nada menos que na Constituição Federal e normativa internacional.

 

É, por fim, desconsiderar o próprio fato incontestável de que adolescentes de 16 (dezesseis) ou 17 (dezessete) anos de idade, por mais que queiram contra-argumentar alguns[26] ainda não estão preparados para a prática sistemática e desassistida dos atos da vida civil, pois na forma da Lei e da Constituição Federal, e não por acaso, são considerados “pessoas em desenvolvimento”, que como tal têm o direito inalienável de receber a contínua assistência de adultos, de preferência seus próprios pais, aos quais deve o Estado garantir a orientação, o amparo, o tratamento – e se necessário a cobrança e responsabilização – regulamentares, e jamais tolerar a pura e simples “renúncia” a suas indelegáveis obrigações, como resultado da aplicação, desavisada ou deliberada, da norma contida no art.5º, par. único (notadamente em seus incisos I e II), da Lei Civil.

 

Não seria surpresa alguma se a indigitada e malsinada inovação legislativa promovida pela Lei Civil desse margem a decisões judiciais, e mesmo a futuras alterações legislativas no sentido de permitir, por exemplo, que adolescentes maiores de 16 (dezesseis) anos de idade, emancipados ou não, exerçam atividades hoje consideradas proibidas pelas normas trabalhistas, conduzam veículos automotores ou situações ainda piores, trazendo prejuízos, repita-se, não apenas a eles próprios mas a toda sociedade.

 

No mesmo diapasão, a equivocada, inconstitucional e despropositada emancipação de adolescentes a partir dos 16 (dezesseis) anos de idade, por singela concessão de seus pais, irá fornecer farta “munição” e argumentos para os partidários da redução da idade penal, se tornando o ponto de partida para um retrocesso sem precedentes no Direito Positivo brasileiro, no que diz respeito à atenção e proteção à criança e ao adolescente, outrora (e ainda hoje) considerado um dos mais avançados do mundo.

Faz-se mister, portanto, e em caráter de urgência, que a situação resultante da conjugação dos arts.5º, par. único, inciso I e 1.635, inciso II, ambos do Código Civil de 2002, seja formal e expressamente declarada inconstitucional à luz do disposto nos arts.226, 227 e 229, todos da Constituição Federal de 1988, não sendo mais admissível que os pais, por simples ato de vontade, alheio ao controle judicial e ao consentimento de seus filhos, os emancipem após estes atingirem os 16 (dezesseis) anos de idade.

 

Solução semelhante deve também atingir o disposto no art5º, par. único, incisos III, IV e V, também da Lei Civil, na medida em que o simples fato de um adolescente passar a exercer emprego público efetivo, colar grau em curso superior (situação de difícil ocorrência na prática, convenhamos), se estabelecer civil ou comercialmente, ou ainda celebrar contrato de trabalho, de modo que venha a ter economia própria, não podem “habilitá-lo” automaticamente para prática de atos da vida civil e muito menos, desobrigar seus pais (ou tutor) dos encargos que lhes são inerentes, que como dito acima vão muito além da prestação de assistência material, que parece ter sido a única preocupação da Lei Civil[27].

 

O ideal seria a imediata supressão do referido art.5º, par. único[28] e do inciso II, do art.1.636, ambos do Código Civil de 2002, seja por alteração legislativa promovida junto ao próprio Código Civil, seja como resultado de ação direta de inconstitucionalidade que nesse sentido venha a ser manejada por quem de direito.

 

Nada impede, porém, que o Poder Judiciário desde logo e no exercício do chamado “controle difuso” da constitucionalidade das normas, reconheça, incidenter tantum e de forma sistemática, a inconstitucionalidade dos citados dispositivos e dos efeitos que se pretenda ver produzidos em razão de sua aplicação, evitando assim, o quanto possível, os potenciais malefícios causados aos “adolescentes emancipados”, categoria de pessoas que, na forma da Lei e da Constituição Federal não pode existir[29].

 

 

Notas:

 

[1] Conforme inteligência dos arts.402 a 441, da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.

 

[2] Conforme art.14, §1º, inciso I, da Constituição Federal de 1988.

 

[3] Conforme inteligência do art.27 do Código Penal e do art.228, da Constituição Federal.

 

[4] Nesse sentido, merecem especial destaque a Declaração Universal dos Direitos da Criança; as Regras Mínimas das Nações Unidas Para a Administração da Justiça da Infância e Juventude – Regras de Beijing, que de maneira expressa, em seu item 2.2 define “jovem” como sendo “toda criança ou adolescente que, de acordo com o sistema jurídico respectivo, pode responder por uma infração de forma diferente do adulto” (estabelecendo assim uma vinculação entre a idade da responsabilidade penal e os conceitos de “criança”, “adolescente” e “jovem”), além, é claro, da Convenção das Nações Unidas sobre Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20/11/89 (cujo texto foi adotado no Brasil pelo Decreto n° 99.710, de 21 de novembro de 1990, após a análise pelo Congresso Nacional, que a aprovou - Dec. Legislativo n° 28, de 14/09/90), que também de maneira expressa, já em seu art.1º, estabelece que “...considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade...”, ressalvada expressa disposição em contrário existente em legislação específica aplicável a essa categoria de cidadãos. No Brasil, como dito acima, esta legislação especial é o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069/90, que em seu art.2º fixa os parâmetros da infância e da adolescência. A respeito do tema, vale observar o disposto no art.5º, §2º, da Constituição Federal, segundo o qual aos direitos e garantias individuais relacionados em nossa carta Magna somam-se outros inseridos nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Assim sendo, por força do disposto no art.60, §4º, também de nossa Lei Maior, devemos considerar que as regras que estabelecem o direito de toda pessoa com idade inferior a 18 (dezoito) anos em receber a especial e integral proteção por parte da família, da sociedade e do Estado, ex vi do disposto nos arts.4º, caput, da Lei nº 8.069/90 e art.227, caput, da Constituição Federal, são insuscetíveis de alteração ou supressão, ainda que por emenda constitucional, pelo que por óbvio também não podem sê-lo por mera Lei Ordinária, como é o caso da Lei Civil. Verifica-se, pois, que embora a Constituição Federal de 1988 não estabeleça de forma expressa os limites da adolescência, estes foram claramente fixados pela Lei Ordinária (Lei nº 8.069/90, em seu art.2º, caput) com base na normativa internacional, consoante acima mencionado, bem como assimilados por toda sistemática adotada por nossa Carta Magna com vista à proteção integral dessa categoria de cidadãos. Não resta qualquer dúvida, portanto, que nos termos da Constituição Federal de 1988, reputam-se “crianças e adolescentes”, de maneira indistinta, todas as pessoas com idade inferior a 18 (dezoito) anos, que são consideradas penalmente inimputáveis pelo seu art.228 e, para todos os efeitos, “sujeitos às normas da legislação especial” (verbis). No mesmo sentido, nossa Constituição Federal de maneira clara dispõe que tais pessoas com idade inferior a 18 (dezoito) anos são destinatárias de especial e integral proteção por parte da família, sociedade e do Poder Público, fundamentalmente por se encontrarem “em desenvolvimento” (verbis), tanto físico quanto mental, emocional e espiritual (inteligência do art.3º, caput e incisos I a VII, em especial o inciso IV, de nossa Carta Magna), situação que, tanto de fato quanto de direito, as torna incapazes de assumirem as responsabilidades decorrentes de sua emancipação e/ou de dispensarem a assistência (em todos os sentidos) por parte de seus pais ou responsável. Inexiste, por outro lado, e jamais houve, qualquer vinculação entre a condição de “adolescente” e a capacidade civil da pessoa, tanto que, na forma da Lei, a adolescência se inicia aos 12 (doze) anos de idade, e o adolescente, até atingir os 16 (dezesseis) anos de idade, é considerado absolutamente incapaz, para a prática dos atos da vida civil.

 

[5]  Art.226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (verbis).

 

[6] Conforme arts.4º, caput, primeira parte; 19; 22; 23 e par. único; 25; 87, incisos I, II e IV; 88, inciso II; 92, inciso I; 100; 101, incisos I e IV e 129, apenas para citar alguns.

 

[7] Conforme arts.2º, incisos I e II e 23, par. único, dentre outros.

 

[8] Que o novo Código Civil hoje denomina “poder familiar”.

 

[9] Nesse sentido, vide dentre outras o enunciado do art.226, §7º, da Constituição Federal.

 

[10] Apesar do respeito que nutre em relação ao legislador, o autor não pode deixar de mencionar que a mudança da tradicional designação “Pátrio Poder”, cuja origem remonta ao Direito Romano, pelo termo “Poder Familiar” que o Código Civil passou a adotar em seus arts.1.630 a 1.638 foi das mais infelizes, além de absolutamente desnecessária, na medida em que há muito já estava aquele termo completamente dissociado de sua concepção original (baseada numa família patriarcal), sendo já utilizado, sem qualquer problema, para designar a família moderna, onde as responsabilidades e prerrogativas em relação aos filhos são compartilhadas entre o homem e a mulher. Os adeptos da mudança se esqueceram que, hodiernamente, o termo “Pátrio Poder” não mais dizia respeito apenas à pessoa do pai, mas também à mãe, sendo certo que, tanto na linguagem leiga quanto técnica, ambos são genericamente chamados de pais (ou será que também será proposta a criação de um novo termo para que possamos nos referir a eles?).

 

[11] Interessante observar que não houve alteração, neste aspecto, do Código Civil de 2002 em relação ao de 1916.

 

[12] O art.146 da Lei nº 8.069/90, que trata do acesso à justiça, estabelece que os relativamente incapazes serão assistidos e os absolutamente incapazes serão representados na forma prevista na legislação civil ou processual.

 

[13] Podendo mesmo haver a aplicação simultânea (embora em procedimentos distintos) de sanções penais e sanções administrativas sem que isto importe em bis in idem, dada natureza jurídica diversa entre ambas.

 

[14] Importante observar que em razão de o “poder familiarnão comportar renúncia por parte dos pais, o procedimento deflagrado para sua suspensão ou destituição é considerado uma "ação de estado", pois versa sobre um direito indisponível, reclamando assim a aplicação do disposto no art.320, inciso II do Código de Processo Civil. Assim sendo, ainda que não contestado o feito, obrigatoriamente terá de ser ele instruído, bem como devidamente comprovada a presença da alegada CAUSA de suspensão ou destituição (tal qual o previsto no art.22 da Lei nº 8.069/90 e art.1634 do Código Civil de 2002), sendo inaplicáveis os efeitos da revelia, previstos no art.319 do citado Diploma Processual Civil

 

[15] Quanto aos adotantes, uma vez que a adoção lhes confere a condição de pais do adotado (valendo observar a vedação a designações discriminatórias relativas à filiação prevista no art.227, §6º, da Constituição Federal), com ela também passam a desfrutar do “poder familiar” em relação a este.

 

[16] Assim como, mutatis mutandis, na falta destes aos guardiães e tutores em relação a seus pupilos.

 

[17] Às quais, por sua vez, devem corresponder programas específicos de atendimento previstos nos arts.88, inciso III e 90, incisos I e II, do mesmo Diploma Legal.

 

[18] A proteção ao regular e responsável exercício do “poder familiar”, deve ser proporcionada através de políticas públicas adequadas, articuladas entre governo e sociedade e elaboradas conjuntamente pelos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e da Assistência Social em todos os níveis.

 

[19] Ou na falta destes de uma pessoa adulta que venha a se tornar por eles responsável.

 

[20] Razão pela qual o abrigamento de crianças e adolescentes é expressamente definido pelo art.101, par. único, da Lei nº 8.069/90 como “medida excepcional e temporária” e mesmo para criança que esteja abrigada é por verdadeira questão de princípio garantida, na forma do art.92, inciso I, do mesmo Diploma Legal, a “preservação dos vínculos familiares”, como forma de permitir o retorno ao convívio familiar da forma mais rápida possível.

 

[21] Já se considerava que a guarda, face a inteligência do art.2º, par. único, da Lei nº 8.069/90, somada à ausência de qualquer disposição estatutária expressa para sua permanência em relação a pessoas entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos de idade, se extinguia com o atingimento dos 18 (dezoito) anos de idade mesmo antes do advento do novo Código Civil, sendo que a tutela, na forma do disposto nos arts.1728 e 1763, inciso I deste mesmo Diploma Legal, somente tem lugar enquanto durar a incapacidade do tutelado, também extinguindo-se ipso jure com sua emancipação.

 

[22] Evidente que, como decorrência do verdadeiro princípio insculpido no art.5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, seria possível ao adolescente, ao Ministério Público ou outro legitimado, recorrer ao Poder Judiciário para o fim de anular a emancipação promovida para fins escusos (diga-se com o fim deliberado de prejudicar o adolescente e eximir os pais de obrigação legal), porém a subjetividade de tal situação e efeitos deletérios em alguns casos irreparáveis que fatalmente iriam surgir enquanto não fosse a mesma revertida não recomendariam, ainda que constitucional fosse a norma questionada, sua permanência no mundo jurídico. Destaque-se ainda, a propósito, a preocupação eminentemente preventiva do consignado no art.227, da Constituição Federal e “Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente” que o inspira.

 

[23] Ressalvado, como dito alhures, o dever alimentar, no caso de comprovada necessidade.

 

[24] E para todos demais efeitos, inclusive para fins de proteção do Estado, consoante alhures mencionado, estes ainda como tal deverão ser considerados, já que a conceituação jurídica do que vem a ser um “adolescente” (e mesmo a aplicabilidade da Lei nº 8.069/90, quer a estes, quer a pessoas maiores de 18 anos de idade, na forma do disposto em seu art.2º, par. único), jamais esteve relacionado à idéia da capacidade civil, tendo raízes muito mais profundas, que como dito abrange a normativa internacional. A própria sistemática concebida pela Constituição Federal para proteção integral de crianças e adolescentes tem por pressuposto lógico (e mesmo “histórico”) a conceituação destes como pessoas de idade inferior a 18 (dezoito) anos, independentemente de sua capacidade civil, que jamais foi sequer cogitada para fins de incidência ou não do art.227, da Constituição Federal.

 

[25] Ou de um responsável adulto, nos casos em que é necessária a colocação em família substituta.

 

[26] Que confundem “formação”, acima de tudo sob o ponto de vista emocional, ético e moral (ou educacional, no sentido mais amplo da palavra), com a singela “possibilidade de acesso à informação”, que muitos adolescentes possuem, informação esta que não raro muito mais “deforma” do que “forma” a consciência e a personalidade do jovem.

 

[27] Para a hipótese de casamento (art.5º, par. único, inciso II, do Código Civil), em que na prática haverá a constituição de uma nova família, de modo a não afrontar os ditames da “Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente” retro-invocados, de lege ferenda sugere-se a expressa ressalva de que sua efetivação não importa na supressão dos deveres inerentes ao “poder familiar” enquanto o cônjuge for ainda adolescente.

 

[28] Que talvez pudesse subsistir apenas em relação ao casamento, com a ressalva acima proposta ou similar, que venha a preservar os deveres parentais para com o filho, mesmo casado, enquanto adolescente.

 

[29] Em última análise, ainda que não se reconheça, ad argumentandum tantum, a inconstitucionalidade dos textos legais citados, seria necessário, em caráter emergencial, a edição de nova Lei ou dispositivo legal específico, que viesse a estabelecer, de maneira expressa, que a emancipação do adolescente a partir dos 16 (dezesseis) anos de idade não importaria na extinção dos deveres inerentes ao “poder familiar” (assim como os decorrentes de tutela ou guarda), que precisam ser mantidos íntegros, ainda que sob outro título ou fundamento, até o jovem completar 18 (dezoito) anos de idade. O que não se pode permitir, repita-se, é a subsistência, no mundo jurídico, da situação decorrente da conjugação dos arts.5º, par. único e 1.635, inciso II, do Código Civil, de graves e indesejadas (creio também impensadas, pelo legislador) conseqüências para o adolescente e para nossa sociedade, que precisa aprimorar – e jamais suprimir – as regras e mecanismos de proteção a essa categoria de cidadãos ainda em desenvolvimento.