CRIANÇAS POBRES E FAMÍLIAS EM RISCO: AS ARMADILHAS DE UM DISCURSO

 

 

Fúlvia Rosemberg[1]

Doutora em Psicologia Genética.

 

 

Resumo: O argumento que a autora persegue neste texto é que o imaginário que informa as imagens de pobreza, de família pobre, é estigmatizante e que parte e redunda, muitas vezes, em propostas de políticas públicas que reforçam processos de exclusão social. Mostra que a família pobre é vista como desorganizada e comparada a um modelo ideal único, tido como adequado de família nuclear completa. Assinala as repercussões nas políticas sociais levando a propostas e implementação de políticas especiais para os pobres e não de políticas sociais para todos, em reconhecimento da cidadania.

Palavras-chave: crianças pobres, famílias em risco, diversidade cultural, exclusão social, práticas discriminatórias, políticas públicas.

 

Sharon Stephens representando o Centro Norueguês de Pesquisas sobre a Criança (Norwegian Centre For Child Research), no Fórum Global da Eco-92, observou, de forma aguda, as imagens de crianças veiculadas pelos discursos ambientalistas:

"A primeira é uma imagem de crianças saudáveis, inocentes em ambientes bonitos, isto é, a imagem da qualidade de vida que demarcamos para 'nós todos' quando nos engajamos em ações ambientais.

Estas crianças são habitualmente brancas. A segunda imagem é de massas de crianças famintas, que preenchem o quadro fotográfico e que destroem o ambiente. Tanto quanto fui capaz de observar, estas crianças são negras, embora muitas crianças do Terceiro Mundo sejam asiáticas, e, naturalmente, muitas crianças pobres no mundo sejam brancas.

Existe um componente inegavelmente racista para ilustrar o 'superpovoamento' - esse excesso de população que necessita ser reduzido para que 'nossas crianças' tenham a qualidade de vida representada no primeiro conjunto de imagem" (STEPHENS, 1992, p. 12).

 

Neste parágrafo, Sharon Stephens resume as ênfases que orientam discursos, análises e propostas emitidos por organismos internacionais, intergovernamentais e, também, nacionais sobre infância e adolescência pobres no Terceiro Mundo em geral, e no Brasil em particular, e que redundam em processos de estigmatização. No meu entender, estas ênfases, que são reducionistas, giram em tomo de dois eixos principais:

 

1. O subdesenvolvimento é homogeneamente idêntico através dos continentes e dentro de um mesmo continente: a América Latina é homogênea, e seus pobres são iguais.

2. Neste contexto de pobreza, as famílias pobres praticam excessos que colocam em risco sua prole. Nas famílias pobres, as mulheres são vistas, antes de tudo, como reprodutoras descontroladas, que causam a perpetuação da pobreza colocam em risco a ecologia global.

O argumento que persigo neste texto é que o imaginário que informa estas imagens de pobreza, de família pobre é estigmatizante, e que parte e redunda, muitas vezes, em propostas de políticas públicas excludentes, reforçando processos de exclusão social.

 

Famílias em situação de risco

 

A homogeneização da pobreza evidencia-se, em sua plenitude, na concepção de família e de família em risco que subjaz à maioria das análises e propostas para crianças e adolescentes pobres, ou das chamadas classes populares ou dos chamados setores marginais.

 

A despeito das boas intenções, de motivações possivelmente que se originam em sentimento de solidariedade entre o norte rico e o sul pobre, a abundante e eloqüente produção sobre crianças e adolescentes em situação de rua, na década de 80, oferece um dos exemplos mais espetaculares de desconsideração das diversidades culturais, de estigmatização e culpabilização conseqüente das famílias pobres pelo destino social de seus filhos e filhas. A partir do texto paradigmático de TAÇON (1981) que, em 1981, estimava existirem no mundo cem milhões de crianças de rua (metade dos quais na América Latina) "descendência de milagres econômicos e tragédias humanas", a criança e o adolescente pobres da América Latina têm sido sistematicamente associados ao abandono ou patologia familiar, mesmo que nos parágrafos iniciais ou finais sejam mencionadas as políticas econômicas, a crise econômica ou a dívida externa. Crianças abandonadas, crianças que crescem total ou eventualmente sem apoio parental, crianças filhas de famílias vulneráveis ou em situação de risco foram e são expressões recorrentemente usadas, que evidenciam uma concepção subjacente de desorganização da família pobre. Por exemplo, em sua dissertação de mestrado, Walter Oliveira assim introduz o tema:

"Neste exato momento, milhões de crianças no Brasil estão vivendo nas ruas e enfrentando grande sofrimento. Freqüentemente, filhos e filhas de famílias pobres, geralmente tendo pais dependentes de drogas. Podem ter sido abandonados ou deixado suas casas por diferentes razões. Nas áreas mais pobres do pais, como no nordeste, podem ter sido vendidos para prostituição. Também podem ter sido abusados em suas casas e fugido" (OLIVEIRA, 1986, p. 18).

 

Em trabalho anterior havia me estendido na análise de retórica como esta sobre "criança de rua", que vicejou durante os anos 80, e cujos principais componentes podem ser resumidos nas estimativas catastróficas, desafiando a qualidade dos discernimentos de seus produtores e na concepção da inexorabilidade do destino, isto é, que crianças pobres são inexoravelmente criminosos, se forem homens e prostitutas se forem mulheres (ROSEMBERG, 1993). Ora, esta retórica sobre crianças pobres - para muitos expressão sinônima a crianças de rua - traz consigo uma concepção de família que desconsidera formas diversificadas de organização familiar, de expressões do afeto e do cuidado parental. Apesar dos avanços nas Constituições de vários países, em se desvencilharem do modelo de família nuclear completa (por exemplo, a extensão dos direitos da esposa à concubina e o reconhecimento dos mesmos direitos à prole proveniente ou não de uma relação legal) as análises e propostas para crianças e adolescentes pobres evidenciam uma concepção subjacente de família nuclear completa, incorporando um modelo funcionalista, idealizado, que não se abre à alteridade.

 

Assim, ainda no final da década de 80, foi possível identificar que a definição de família proposta por George Murdock, e que vinha sendo usada pela ONU na década de 70, é aquela que informa análises sobre a família pobre latino-americana a qual, diante deste parâmetro, será inevitavelmente considerada desorganizada. Para MURDOCK (1973), "a família é um grupo social caracterizado pela cooperação econômica, residência comum e reprodução, inclui adultos de ambos os sexos, pelo menos dois dos quais mantêm relações sexuais aprovados socialmente, com um ou mais filhos nascidos de tais relações ou que tenham sido adotados por elas".

 

Ora, esta tendência à naturalização da família – que leva à identificação do grupo conjugal como forma básica e elementar de toda família - tem sido veementemente criticada por sociólogos e antropólogos que recomendam "dissolver sua [da família] aparência de naturalidade, percebendo-a como criação humana mutável" (DURHAN, 1983).

 

Se nas sociedades contemporâneas o modelo nuclear ou conjugal é predominante,

"o grupo tanto pode extrapolar o modelo, pela incorporação de parentes ou agregados, quanto nem mesmo realizá-lo, como no caso de casais sem filhos, irmãos sem pais, ou famílias nas quais um só dos cônjuges está presente.

Dito de outra forma, pai, mãe e filhos podem ser o exemplo de uma família tão bem quanto uma vasta parentela" (BRUSCHINI, 1990, p. 37).

Antropólogos, sociólogos e psicólogos que vão a campo para descrever e analisar relações familiares nas classes populares, vivendo nas periferias urbanas, em favelas ou nas recém-criadas vilas, fazem uma imagem da centralidade da família na vida de crianças e adolescentes, mesmo quando o arranjo do grupo familiar não corresponde ao modelo nuclear.

 

Dentre alguns destes estudos, mencionarei o de Jerusa Vieira Gomes, realizado em Vila Helena, na periferia de São Paulo, habitada por famílias muito pobres, em sua maioria originárias do interior de Minas Gerais e de estados do Nordeste. Dou a palavra à Jerusa Gomes que assim descreve estas famílias:

"De fato, a família, na Vila, constitui o eixo da vida de todos: crianças, velhos e adultos. Dela se parte para ela se volta, ou no intervalo de cada atividade específica, no caso das crianças, ou no fim do dia de trabalho, no caso dos adultos. Nestas famílias, à falta do pai, há a mãe, os avós, as tias, os irmãos mais velhos; há falta da mãe - o que é mais raro -, há o pai e/ou todos os já nomeados. Os membros existentes organizam-se de maneira a assegurar a permanência do grupo familiar, o que é comum a todas as camadas sociais. Os casos extremos, que conduzem ao abandono da criança, são em número insignificante. Há sem dúvida aquelas que produziram, não se sabe como (essa é uma gênese ainda a ser estudada), menores que acabam, sobretudo na adolescência e no início da fase adulta, trilhando o caminho da marginalidade e da criminalidade. Contudo, estes são casos isolados, pouco freqüentes e de todos conhecidos: não podem ser generalizados" (GOMES, 1990, p. 5-9).

 

Do modo como analisa as famílias e suas relações com as crianças, a pesquisadora evidencia que, em todas situações, a família não está desorganizada, mas organizada segundo necessidades e representações que lhes são peculiares.

 

Muito diferente é a imagem, o tom e as conclusões de quem analisa os arranjos familiares das famílias as pobres tendo o modelo nuclear como paradigma de organização e normalidade, como se evidencia no texto a seguir:

 

"A ausência da figura paterna resultando em famílias com chefia feminina, assim como a presença de numerosos filhos menores de idade, e onde o espaçamento entre seus nascimentos foi pequeno, são elementos característicos das famílias de alto risco. A esta situação anteriormente descrita, se somam os efeitos do chamado achegamento coabitacional, mediante ao qual a família nuclear se estende através da incorporação à unidade habitacional de parentes não nucleares e/ou de não parentes, situação que tem se mostrado como particularmente perigosa para o bem estar das meninas que vivem nestas condições de promiscuidade. A dinâmica psicossocial que caracteriza a interação da família é também importante para a análise das condições de vida das famílias pobres. Nesta perspectiva, vários estudos fizeram notar que nas famílias imersas na pobreza urbana, predominam os vínculos instáveis e de curta duração, sendo freqüente que o alcoolismo do homem conduza à agressividade e, eventualmente, dissolução do vínculo.

Desta maneira, ocorre em alguns destes lares, a presença esporádica de diversas figuras paternais o que conduz à instabilidade afetiva da família e à predominância de funções exclusivamente de controle e castigo, expressos muitas vezes através de gritos, insultos e golpes" (PILLOTTI, 1987, p. 9).

 

Não vou me deter na análise das particularidades deste texto, como, por exemplo que "nas famílias imersas na pobreza urbana predominam vínculos instáveis e de curta duração" - generalização abusiva e que carece de fundamentação empírica. Quero, porém, destacar que, aqui, o discurso do autor sobre a família pobre provém de outro imaginário social: a evidência de seu desvio frente a um modelo ideal de família nuclear.

 

Ou dito de outro modo, um imaginário social que estigmatiza a família pobre como desorganizada, pois, poderíamos dizer, parafraseando Goffman, que as discrepâncias entre a família virtual (o modelo) e a real constituem um estigma: a família desorganizada" (MELLO, 1989, p. 64).

 

O imaginário social subjacente às análises e propostas de políticas públicas para crianças e adolescentes enfatizando a situação de risco familiar em que vivem e que, na minha perspectiva, gera propostas inadequadas, estigmatizando populações pobres, nutre-se de outras matrizes discursivas diferentes daquelas que mantêm antropólogos, sociólogos e psicólogos. A categoria descritiva famílias em risco foi emprestada da epidemiologia e da psiquiatria e transposta para o terreno das políticas sociais sem uma crítica epistemológica necessária

 

A tradição psiquiátrica da conceituação de risco origina-se em Ajuriaguerra, psiquiatra espanhol que se refugiou na França após a guerra civil. Para Ajuriaguerra, “fator de risco" seriam "as condições de existência da criança ou de seu ambiente que comportam um risco de doença mental superior ao que se observa na população geral" (AJURIAGUERRA, 1973).

 

Nota-se, portanto, que no contexto de seu uso em psiquiatria, a noção de fator de risco implica na concepção de doença mental em confronto com não doença portanto na postulação de um padrão de normalidade. Mesmo no campo da psiquiatria, Ajuriaguerra é cauteloso a terminologia que usa, considerando que se trata tão somente de fatores de risco e não causas de risco. Isto é, as condições de existência da criança e de seu ambiente, e considerados como fatores de risco, aparecem mais intensamente associadas às formas várias de doença mental, sem que, portanto, se tenha a possibilidade de estabelecer uma relação causal entre fatores associados e incidência da patologia.

 

Estas duas características apontadas na conceituação de fatores de risco, em psiquiatria, estão igualmente presentes na epidemiologia. Assim, Jean Pierre Deschamps, diretor geral do Centro de Medicina Preventiva de Nancy Vandoeure, na França, conceitua o fator risco" em epidemiologia: "Trata-se de descrever uma maior probabilidade de ocorrências indesejáveis em saúde quando um indivíduo ou grupo é portador de certas características denominadas indicadores de fisco e cuja lista e ponderações podem se constituir em grades de risco" (DESCHAMPS, 1985, p. 472).

 

No início de sua utilização, este conceito teve por objetivo identificar os grupos mais vulneráveis para aumentar a disponibilidade de serviços em seu favor. Porém, este conceito, quando escapuliu do campo da saúde e se estendeu para o campo das relações sociais, "os riscos colocados em evidência são essencialmente de natureza psicossocial". Concretamente, a condição de risco tem sido atribuída a "grupos sociais desvalorizados com o que isto pode comportar de culpabilização, de estigmatização, de efeito de rotulação" e também com o extremo perigo de "normatividade cultural", assimilando risco à diferença, desigualdade à diferença, atribuindo um estatuto científico à exclusão provocada pelo olhar dos outros. "É a condenação da diferença que está em jogo", destaca DESCHAMPS (1985, p. 473).

 

Esta condenação da diferença quando se analisam as condições de existência das famílias pobres, ou empobrecidas, decorre da confusão entre fatores associados e fatores de causalidade. Assim, quando se observa que chefia de domicílio feminina está associada a, por exemplo, menor rendimento escolar, estabelece-se a relação causal entre família  "desorganizada" e atenção à criança, ao invés de procurar as causas, e propor soluções, no nível da instituição escolar, por exemplo, cujo cotidiano é regido pela suposição de que todas as famílias são nucleares, com divisão tradicional de papéis sexuais. É a indevida atribuição de causalidade que pode levar o técnico, por exemplo, a considerar a família  extensa como promíscua, e potencialmente molestadora das meninas,ao invés de analisar as políticas de habitação, quais os espaços em que esta família extensa vive e quais os refúgios que seus membros encontram para momentos de intimidade.

 

Nos últimos séculos, os estudiosos da família vêm mostrando o quanto o discurso científico tem sido uma força intensa na normalização da família. ARIÈS (1960) evidenciou, na passagem do Antigo Regime, a importância do discurso pedagógico para constituição do ideal de família burguesa moderna centrada na criança; BOULTANSKI (1984) destacou a importância do discurso da puericultura para o enquadramento das famílias européias da classe operária nas necessidades de expansão do capitalismo. DONZELOT (1977) destacou o peso do discurso médico-higienista e da filantropia no policiamento das pulsões da família européia e COSTA (1979) assinalou a importância do discurso médico-higienista na transformação da família patriarcal brasileira BADINTER (1987) mostrou o papel decisivo da psicologia no geral, e da psicanálise em particular, na construção da concepção de maternagem científica em consonância com os ideais de aumento da natalidade após as guerras mundiais. Todos processos de normalização da família que responderam a projetos sociais, políticos e econômicos mais amplos. Processos que, ao visarem a normalização das famílias em acordo com padrão único - considerado o normal, o adequado, o justo - estigmatizaram, violentaram o diferente.

 

Neste final de século não estaríamos nós presenciando o surgimento de um novo discurso – proposto pelos técnicos / especialistas em políticas sociais - que, em nome da proteção à infância e adolescência, estaria normatizando, mais uma vez, a família pobre dos países pobres?

 

Decorrência no plano das políticas sociais

 

O funcionamento cotidiano de programas para crianças de família "em risco" evidencia a tradução deste discurso em práticas discriminatórias. Ao estigma de que a família pobre é descontrolada contrapõem-se práticas de controle da sexualidade, do ócio e da violência. Por exemplo, não é incomum o controle sistemático da carteira de trabalho de mães que têm seus filhos em creche como resposta à suspeita de vagabundagem da mãe pobre (LIMA, 1994).

 

Porém, observo como impacto mais insidioso desta concepção de família pobre em risco a própria orientação geral da política social.

 

Enquanto baliza ou justificativa para a ação, este discurso sobre famílias e crianças em risco tem sido associado às políticas sociais preventivas e de emergência, em detrimento de políticas sociais para todos como resposta ao reconhecimento da cidadania. Na medida em que: a pobreza é extensa; na perspectiva estigmatizante, os riscos são inexoravelmente violentos e os países do Terceiro Mundo, por definição, são pobres; decorre, então, que as políticas sociais para crianças e famílias pobres são as chamadas políticas de emergência e a baixo custo, evitando-se que ocorra o pior: a morte, a criminalidade e a prostituição.

 

Assim, a partir da década de 70, vive-se na busca do milagre da multiplicação dos pães, na procura de "soluções alternativas" para os pobres. Soluções alternativas para a produção de alimentos, para a geração de renda de famílias pobres. O uso de "tecnologias apropriadas", de espaços e tempos ociosos, de materiais de sucata, de para-profissionais, foram e são estratégias recomendadas para orientar programas de massa a serem usados no Terceiro Mundo, como se a pobreza nivelasse as fronteiras, igualando as regiões e homogeneizasse as diversas etnias.

 

Muitas vezes, inclusive em nome do reforçamento da "proximidade cultural", foram enfaticamente recomendadas, propostas e implementadas soluções pobres para crianças e adolescentes pobres. Assim, por exemplo, partindo da observação que em famílias pobres africanas irmãos (melhor seria dizer irmãs) maiores cuidam de menores, esta prática, muitas vezes determinada pela falta das alternativas que são disponíveis para populações de melhor renda, foram formalizadas e erigidas em "programas alternativos", modelos a serem seguidos no Terceiro Mundo, não como complemento ao cuidado e educação monitorados por adultos, mas em sua substituição.

 

Não é minha intenção, aqui, desconsiderar a importância da criatividade local na busca de soluções para problemas que a humanidade enfrenta. Também não pretendo me estender nos efeitos indesejáveis que muitas destas "soluções alternativas" trazem e têm trazido para as mulheres, principalmente as pobres, que arcam, através de seu trabalho complementar e sua sub-remuneração, com os menores investimentos que dão origem aos programas de baixo custo. Vou deter-me no impacto que possam ter no processo de exclusão através de um exemplo brasileiro.

 

Durante os anos 70 e 80, a proposta dominante em políticas públicas para crianças pré-escolares pobres emitida por órgãos nacionais e internacionais incorporava o modelo a baixo custo, que deveria ser implantado por para-profissionais (geralmente mulheres) ocupando espaços ociosos da comunidade. Por razões políticas na esfera federal brasileira, o MOBRAL, o MEC e a LBA abraçaram este modelo e tiveram condições de divulgá-lo nos municípios, expandindo, sensivelmente, o atendimento ao pré-escolar no país, inclusive nas regiões mais empobrecidas do nordeste (ROSEMBERG, 1991). Assim, paradoxalmente, a cidade de Fortaleza, uma das que apresenta piores indicadores educacionais, constitui também aquela que apresenta melhores taxas de cobertura ao pré-escolar (CAMPOS; et al., 1993). O paradoxo se desfaz quando percebemos, com espanto, que no final dos anos 80 no nordeste brasileiro, a pré-escola estava sendo usada como alternativa mais barata à educação de 1° grau para crianças pobres, e principalmente negras, tendo entre 7 e 9 anos.

 

Com efeito, em 1987, encontrei que 28% das crianças brancas do nordeste freqüentando a pré-escola tinham entre 7 e 9 anos (devendo portanto constitucionalmente freqüentar 1° grau), porcentagem que sobe para 43% no caso das crianças negras (ROSEMBERG, 1991). Assim, 43% das crianças negras freqüentando a pré-escola têm entre 7 e 9 anos, situação que afeta tanto crianças maiores (não lhes dá o direito constitucional de freqüentar o 1° grau), quanto as menores (as vagas à pré-escola que constitucionalmente lhes seriam reservadas estão sendo oferecidas às crianças maiores).

 

A proposta e a implantação de um sistema pré-escolar considerado, não como uma resposta ao direito constitucional de crianças e famílias contarem com apoio de um sistema de educação complementar à família, mas como medida preventiva, acabaram se apoiando para seu barateamento, em subordinações de classe, gênero e raça e gerando um processo de exclusão predominantemente de crianças negras.

 

Em seu livro 7he Stigma of Poverty, WAXMAN (1983) adotando uma perspectiva interacionista na análise da produção da pobreza (isto é, o estigma sobre a pobreza transforma-se em prática discriminatória e, enquanto prática e representação é assimilado pela própria pobreza) encontra sempre, como alternativa ao círculo vicioso, a elaboração e implantação de políticas sociais para todos e não de políticas especiais para os pobres. Se a proposta de Waxman merece a adesão, considero que necessita ser complementada. Pesquisadores e técnicos, quando absorvem e reproduzem sem crítica, concepções estigmatizantes sobre famílias pobres oferecem, pelo menos, justificativas ou argumentos para a perpetuação de políticas especiais para a pobreza.

 

Concluo então, com a pergunta de DESCHAMPS (1985): Por que, em nome do que, técnicos e pesquisadores estaríamos correndo o risco de impor "uma normatividade cultural" às famílias pobres das crianças do Terceiro Mundo?

 

BIBLIOGRAFIA

 

AJURIAGUERRA, J. Manual de psiquiatria infantil. Barcelona, Toray-Masson S.A., 1973.

ARIÈS, P, L´enfant et la vie familiale sous l'ancien regime . Paris, Plon, 1960.

BADINTER, E. L'amour en plus. Histoire de l'amour maternel. Paris, Flamarion, 1987.

BOULTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro, GraaI, 1984.

BRUSCCHINI, C. Mulher, casa e família: cotidiano nas camadas médias paulistanas. São Paulo, Vérfice, Fundação Carlos Chagas, 1990.

CAMPOS, M. M.; ROSENBERG, F.; FERREIRA, I. M. Creches e pré-escolas no Brasil. São Paulo, Cortez, Fundação Carlos Chagas , 1993

COSIA, J. E Ordem  médica e norma familiar. Rio dc Janeiro, Graal, 1979.

DESCHAMPS, J. P. Famílles vulnérables, familles du quart mond. Sauvagarde de L'enfance, 4: 471-474, se/out 1985.

DONZELOT, J. La police des familles. Paris, Minuit, 1977.

DURHAN, E. Famílias e reprodução humana Perspectivas antropológicas da mulher, 3: 13-44, 1983.

COMES, J. V A criança e a família : como se vive com naturalidade a pobreza nada natural. Travessia, 4(9): 5-9, 1990.

LIMA,M.F.E .M. LBA. Tratamento pobre para o pobre. São Paulo, 1994. (Dissertação de Mestrado - PUC-SP).

MELLO, S. L. Un barrio y sus familias. Medio Ambiente y Urbanización, 8(29): 54-64, dezembro, 1989.

MURDOCK, Apud United Nations. The determinants and consequences of population trends  N. York, United Nations, 1973.

OLIVEIRA, W. F Street kid in Brazil: an exploratory study of medical status, health knowledge and the sel. Minnesota, 1986. (Dissert Mestrad - University of Minnesota - Public Health)

PILOTTI, F; RIZZINI, L. A. A (des)integração na América Latina e seus reflexos sobre a infância. In RIZZINI, I. A criança no Brasil hoje: desafio para o terceiro milênio. Rio de Janeiro, Editora Universitária  Santa Úrsula,  1993. p. 41-66.

PILOTTI, F. EI nino en las ciudades lafinoamericanas. In CARRION, D.; VAmSTOC, A. La cittdad y los nynos. Quito, Ciudad 1987.

ROSENBERG, E o discurso sobre criança de rua nos anos 80. Cadernos de Pesquisa, 87: 71-81, novembro, 1993.

ROSEMBERG, E Raça e educação iniciar. cadernos de Pesquisa, 77(25), maio, 1991.

STEPHENS, S. And a little child shall lead them: children and images of children at the un conference on environment and development. Trondheim 1992. [mimeo].

TAÇON, P. My child minus one. Unicef Document N. Yolk, 1981.

WAXMAN, C. The stigma of poverty. New York. Pergamon Press 1983.

 

Notas

[1] Doutora em Psicologia Genética, professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC/ São Paulo, integra a equipe de pesquisa sobre Creches da Fundação Carlos Chagas e vem pesquisando e publicando temas relacionados às relações de gênero, raça e idade. END: Av. Professor Francisco Morato n° 1565, São Paulo - SP, CEP 05513-100 Fone: (011) 813.45 11 ramal 236.

 

Fonte

ROSEMBERG, F. Crianças Pobres e Famílias em Risco: As Armadilhas de um Discurso.