ATO INFRACIONAL, MEDIDAS
SÓCIO-EDUCATIVAS E O PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIÇA NA DISCIPLINA ESCOLAR
Olympio de Sá Sotto Maior Neto
Procurador de Justiça do Estado do Paraná.
“Não se pode ter o coração vazio dentro
do magistério”
(Chloris Casagrande Justen)
No quadro real de marginalidade em
que se encontra a grande maioria da população brasileira (integrante do país
campeão mundial das desigualdades sociais), padecem especialmente as crianças e
adolescentes, vítimas frágeis e vulneradas pela omissão da família, da
sociedade e, principalmente, do Estado, no que tange ao asseguramento dos
direitos elementares da pessoa humana.
Exatamente por
isso é que, no atual momento histórico, forças progressistas da sociedade
empenham-se na efetivação das normas do Estatuto da Criança e do Adolescente,
desenvolvendo a mais significativa mobilização social de todos os tempos com o
objetivo da garantia dos direitos fundamentais à infância e juventude.
Mencionado
diploma legal, cumprindo comando da Constituição Federal, materializou proposta
de dar atenção diferenciada à população infanto-juvenil, rompendo com o mito de
que a igualdade resta assegurada ao tempo em que todos recebem tratamento
idêntico perante a lei. Com indiscutível acerto, concluiu o legislador do
Estatuto da Criança e do Adolescente que, quando a realidade social está a
indicar desigualdade (e hoje se calcula a existência de cerca de 40 milhões de
crianças e adolescentes carentes ou abandonados), o tratar todos de forma
igual, antes de garantia da isonomia, comparecem como maneira de cristalização das desigualdades,
dando-se, muitas vezes, contornos de legalidade a situações de exploração e
opressão. Dessa sorte, como fórmula para estabelecer a isonomia material, entendeu-se indispensável que as crianças e adolescentes
perseguidos, vitimizados, marginalizados na realidade social (vale dizer, à
margem dos benefícios produzidos pela sociedade) viessem a receber, pela lei,
um tratamento desigual, necessariamente privilegiado.
Sob esse enfoque é que encontramos como suporte teórico do Estatuto da Criança
e do Adolescente a doutrina da proteção
integral, cuja tese fundamental assevera incumbir à lei assegurar às
crianças e adolescentes a satisfação de suas necessidades básicas. Assim, pela
nova legislação, as crianças e adolescentes não podem mais ser tratados como
meros objetos de intervenção do Estado, devendo-se agora reconhecê-los sujeito dos direitos elementares da pessoa
humana, de maneira a propiciar o surgimento de verdadeira ponte de ouro entre a marginalidade e a
cidadania plena (para se compreender a importância da ruptura
havida, basta levar em conta que a lei anterior – o Código de Menores –
em apenas um artigo expressava
direito da população infanto-juvenil e correlato dever do Estado: o de receber
assistência religiosa quando se encontrava internado em unidade oficial, o
qual, por óbvio, exsurgia insuficiente para modificar a situação de
marginalidade experimentadas por milhões de crianças e adolescentes).
Alertado pela realidade social e alentado pelo
propósito de justiça (com a
ocorrência de absoluta sintonia na perspectiva de que o enfrentamento ao
subdesenvolvimento – e a subcidadania – dá-se mediante a efetivação dos direitos do homem), o legislador do
Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu um conjunto de normas
tendentes a colocar a infância e juventude a salvo de toda e qualquer forma de
negligência, discriminação, violência, crueldade, exploração e opressão,
cumprindo mandamento constitucional no sentido de ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar às crianças e
adolescentes, com absoluta prioridade,
o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária (art. 227, da CF).
Daí a máxima
advinda da expressão o direito de ter
direitos, informadora de um título específico pertinente aos direitos
fundamentais da população infanto-juvenil (objetivando pormenorizar o que se
encontra genericamente indicado no texto constitucional), além de capítulo
próprio para tratar da proteção judicial dos interesses individuais, coletivos
e difusos relacionados à infância e juventude (com a idéia central de que, em
não havendo cumprimento espontâneo das regras que arrola, comparece à
disposição do interessado um conjunto de medidas judiciais especificamente
destinadas à satisfação, via prestação da tutela jurisdicional, do direito
violado; com a intervenção do Ministério Público na propositura das ações
necessárias, como forma de garantir o acesso à Justiça) e, ainda, criou-se uma
série de infrações administrativas e figuras típicas penais destinadas à
punição de todos que apresentarem comportamento em confronto com aquele querido
e determinado pela lei.
Insista-se no
sentido de que a proposta da lei é o da universalização
dos direitos fundamentais, alcançando assim todas
as crianças e adolescentes (certa feita, participando de seminário organizado
pelo Movimento de Defesa dos Favelados do Estado do Paraná para conhecimento e
discussão do ECA, no final dos debates, uma senhora já
de certa idade - destas que caminham pelas ruas de Curitiba empurrando
carrinhos de papel e de desilusão, na demonstração inequívoca que o “primeiro
mundo” ainda não é para todos os curitibanos - aproximou-se de mim e disse: “Doutor, agora eu acho que entendi este tal
de Estatuto da Criança e do Adolescente, ele diz que é para gente querer para
os filhos dos outros o mesmo bem que a gente quer para os nossos filhos”.
Ou seja, numa perspectiva de justiça e solidariedade, a lei quer que todas as crianças e adolescentes possam
exercitar os direitos que parte da
população infanto-juvenil já exercita).
Assim, por esse
aspecto, impossível criticar-se o Estatuto da Criança e do Adolescente, já que
ninguém pode ter o descaramento – e a insensibilidade social – de querer negar às crianças e adolescentes brasileiros (máxime quando se
trata daquela população oriunda das famílias empobrecidas e despossuídas) a
possibilidade de exercício dos direitos elementares da cidadania. O empenho de
todos nesse momento, portanto, deve se dar na linha de que as previsões do
Estatuto da Criança e do Adolescente deixem de ser tratadas enquanto meras
declarações retóricas ou singelas exortações morais (e, por isso mesmo,
postergadas na sua efetivação ou relegadas ao abandono), para se constituírem
em instrumentos de materialização das promessas de cidadania contidas no
ordenamento jurídico (a lei, por si só, não tem o condão de alterar a realidade
social, sendo que o exercício dos direitos nela estabelecidos é que vai
produzir as transformações desejadas, especialmente no que tange ao anseio da
instalação de uma sociedade progressivamente melhor e mais justa).
Correlatamente
aos direitos inscritos, vale anotar que alcançam as crianças e adolescentes todas as obrigações contempladas no ordenamento jurídico, estando eles
sujeitos a responder perante as mais variadas instâncias, principalmente a
Justiça da Infância e Juventude e o Conselho Tutelar, pelos atos anti-sociais
que praticam, notadamente quando atingem a categoria de atos infracionais (ou
seja, a conduta descrita na lei penal como crime ou contravenção).
Dessa forma, ao
contrário do que se difunde equivocadamente (diga-se, por ignorância ou má-fé),
o Estatuto da Criança e do Adolescente não significa a “porteira aberta para a
impunidade” e nem contempla qualquer regra que se traduza em “garantir que as
crianças e adolescentes possam praticar os atos ilícitos que quiserem, sem nada
lhes acontecer” ou que importe em “rompimento das relações de autoridade” no
âmbito da família ou da escola. A clara definição da lei é no sentido de que
nenhum adolescente a que se atribua a prática de
conduta estabelecida como crime ou contravenção pode deixar de ser julgado pela
Justiça da Infância e Juventude (ou, em se tratando de criança, pelo Conselho
Tutelar e sujeito às chamadas medidas
protetivas, arroladas no art. 101, do ECA). Caso comprovada a conduta ilegal, será o adolescente responsabilizado
pelos seus atos e, como resposta social, receberá a imposição das chamadas
medidas sócio-educativas (art. 112, do ECA), que vão desde a advertência, passando pela
obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade
assistida, a inserção em regime de semiliberdade, até a internação, para os
casos mais graves e que significa privação de liberdade do infrator.
Então, quando se
trata de adolescente autor de ato infracional, a proposta é de que, no contexto
da proteção integral, receba ele
medidas sócio-educativas (portanto, não punitivas), tendentes a interferir no
seu processo de desenvolvimento objetivando melhor compreensão da realidade e
efetiva integração social (o educar para a vida social visa, na essência, o
alcance de realização pessoal e de participação comunitária, componente
próprios da cidadania).
Deste elenco de
medidas acima arrolado, a que se mostra com as melhores condições de êxito é a
da liberdade assistida, porquanto se desenvolve direcionada a interferir na
realidade familiar e social do adolescente, tencionando resgatar, mediante
apoio técnico, as suas potencialidades. O acompanhamento, auxílio e orientação,
a promoção social do adolescente e de sua família, bem como a inserção no
sistema educacional e no mercado de trabalho, certamente importarão o estabelecimento
de projeto de vida capaz de produzir ruptura com a prática de delitos,
reforçados que restarão os vínculos do adolescente, seu grupo de convivência e
a comunidade.
E, no outro
extremo desse mesmo olhar, vislumbra-se que a internação é a medida sócio-educativa
com as piores condições para produzir resultados positivos. Com efeito, a
partir da segregação e da inexistência de projeto de vida, os adolescentes
internados acabam ainda mais distanciados da possibilidade de um
desenvolvimento sadio. Privados de liberdade, convivendo em ambientes, de
regra, promíscuos e aprendendo as normas próprias dos grupos marginais
(especialmente no que tange a responder com violência aos conflitos do
cotidiano), a probabilidade (quase absoluta) é de que os adolescentes acabem
absorvendo a chamada “identidade do infrator”, passando a se reconhecer, sim,
como de “má índole, natureza perversa, alta periculosidade”, enfim, como
pessoas cuja história de vida, passada e futura, resta indestrutivelmente
ligada à delinqüência (os “irrecuperáveis”, como dizem deles). Desta forma,
quando do desinternamento, certamente estaremos diante de cidadãos com
categoria piorada, ainda mais predisposta a condutas violentas e anti-sociais.
Por isso que, embora seja necessário em determinadas situações operar a
privação da liberdade do adolescente como forma de interromper o seu ciclo
delinqüencial, a internação deve surgir como último recurso e pelo tempo que
corresponda ao propósito da formulação de novo projeto de vida, afastando-o da
criminalidade. Daí a obrigatória incidência dos princípios constitucionais que
dizem respeito à excepcionalidade da medida, sua
brevidade e, a todo tempo, o respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento. Conquanto de maneira mitigada, idênticas observações críticas
cabem à medida de inserção em regime de semiliberdade.
Já as medidas de
advertência, obrigação de reparar o dano e prestação de serviços à comunidade
indicam nítida prevalência do caráter educativo ao punitivo. É que as técnicas
educativas voltadas à autocrítica e à reparação do dano se mostram muito mais
eficazes, vez que produzem no sujeito infrator a
possibilidade de reafirmação dos valores ético-sociais, tratando-o como alguém
que pode se transformar, que é capaz de aprender moralmente e de se modificar
(as técnicas de conteúdo punitivo, segundo as teorias da aprendizagem, eliminam
o comportamento somente no instante em que a punição ocorre, reaparecendo porém
- e com toda força - tão logo os controles aversivos sejam retirados).
As medidas protetivas, também aplicáveis
aos autores de atos infracionais (de maneira isolada ou cumulativamente – cf.
art. 112, inc. VII, do ECA), apresentam caráter
exclusivamente pedagógico, destinadas que são ao fortalecimento dos vínculos
familiares e comunitários (cf. art. 101, do ECA).
Por outro lado, a
opção do Estatuto da Criança e do Adolescente no sentido de vir a se constituir
em instrumento para garantir às crianças e adolescentes a possibilidade do
exercício dos direitos elementares da pessoa humana (obrigando o Estado a
cumprir seu papel institucional e indelegável de atuar concretamente no campo
da promoção social, efetivando políticas sociais básicas, políticas sociais
assistenciais em caráter supletivo e programas de proteção especial destinados
a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e/ou social) certamente
trará efeitos positivos, via justiça social, no pertinente à diminuição da
chamada “delinqüência infanto-juvenil” (como bem salientou
Roberto Lyra, “a verdadeira prevenção da criminalidade é a justa e efetiva
distribuição do trabalho, da educação, da cultura, da saúde, é a participação
de todos nos benefícios produzidos pela sociedade, é a justiça social” - in Expressão
mais simples do Direito Penal, Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1953, pág. 11).
De se anotar
também que a resposta à prática de ilicitudes por parte de crianças e
adolescentes deve sempre estar informada por um princípio básico: o de respeito
à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, cuja conduta revela
imaturidade bio-psicológica. Nesse rumo e em se tratando de adolescentes
autores de ato infracional ou anti-social, as medidas – judiciais ou
administrativas – carecem atender a um conteúdo educativo,
capaz de auxiliar o jovem a superar os conflitos próprios da chamada crise da adolescência, singularmente
marcada pelo insurgimento contra os padrões sociais estabelecidos e, em assim
sendo, determinante das transgressões aos comandos legais.
As denominadas infrações em razão de sua condição (cuja
incidência será tanto maior se, além das dificuldades de ordem psicológica,
comparecerem também as provenientes da falta ou carência de recursos materiais,
isto é, da miséria ou da pobreza) reclamam a intervenção no sentido da
orientação, assistência e reabilitação, buscando-se alcançar o inerente
potencial dirigido à sociabilidade e cidadania.
Dentre os direitos fundamentais
consagrados à infância e juventude, avulta em importância o pertinente à educação, observado também que o sistema
educacional se constitui – juntamente com a família – extraordinária agência de
socialização do ser humano (isto sem contar com a possibilidade de
significativa interferência, enquanto aparelho ideológico do Estado, na
formação do pensamento acerca da própria sociedade e do papel que cada um pode
nela desempenhar).
A educação, devidamente entendida
como direito de todos e dever do Estado, destina-se, conforme prevê a regra
constitucional, ao pleno desenvolvimento da pessoa, sua qualificação para o
trabalho e, principalmente, ao preparo para o exercício da cidadania (art. 205,
da CF).
O
direito de acesso, permanência – e sucesso
– no sistema educacional comparece como antídoto à marginalização social que encaminha crianças
e adolescentes à mendicância, ao trabalho precoce, à prostituição e à
delinqüência. Não é por acaso que, na verificação dos adolescentes sujeitos às
medidas sócio-educativas (especialmente a de internação), alcança-se índices
elevadíssimos no referente ao afastamento (algumas vezes voluntário e outras
por exclusão imposta indevidamente pela própria escola) do direito à educação.
A luta por novos
e melhores dias para a infância e juventude brasileiras só pode estar
embandeirada – e ter como ponto de partida – a efetivação do direito à
educação. Daí o legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao mesmo
tempo em que arrola os seus princípios informadores (art. 53) e as formas de
sua materialização (art. 54, incluindo o dever do Estado de assegurar “ensino
fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram
acesso na idade própria” e “progressiva extensão da obrigatoriedade e
gratuidade ao ensino médio”, observando-se que a nova redação do art. 208, I e
II, da CF, ditada pela Emenda nº 14, de 12/09/96, prevê “ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive,
sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria
e progressiva universalização do ensino
médio gratuito”), asseveram que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é
direito público subjetivo”, assim como que “o não oferecimento do ensino
obrigatório pelo Poder Público, assim como a sua oferta irregular, importa
responsabilidade da autoridade competente” (art. 54, §§ 1º e 2º).
Na perspectiva da
formação de verdadeiros cidadãos, o
processo educativo deve atender a propósitos de valorização do ser humano, de
seu enriquecimento no campo das relações interpessoais, de respeito ao
semelhante e, identicamente, de desenvolvimento do senso crítico, da
responsabilidade social, do sentimento participativo, da expressão franca e
livre do pensamento, enfim, constituindo-se a escola em espaço democrático
propício ao desenvolvimento harmônico do educando.
Do processo
pedagógico por certo faz parte o estabelecimento de regras relacionadas ao
campo disciplinar, com o aprendizado pelo educando dos próprios limites na
convivência escolar e social, assim como o respeito
à autoridade (no dizer de Paulo Freire, tão necessária quanto a
liberdade). Como observa Chloris
Casagrande Justen, “saber respeitar a autoridade, conhecendo sua importância e
atendendo seus limites é um dos objetivos a serem alcançados no processo
educacional para a cidadania. Por essa razão, o aluno deve
aprender os seus limites e os que envolvem a autoridade, em convivência
social equilibrada. O tratamento pedagógico às atitudes incorretas do aluno
deve se iniciar no exato momento da primeira ação inadequada ao relacionamento
respeitoso, com ações apropriadas à verdadeira compreensão do papel do aluno e
do professor, a fim de evitar situações de agressões, autoritarismo ou
anarquia” (in O Estatuto da Criança e
do Adolescente e a Instituição Escolar, Curitiba: publicação da Secretaria de
Estado da Educação do Paraná, 1993, pág. 24).
É equivocado
pretender que o ECA, em qualquer de suas regras,
esteja a atentar contra o princípio da autoridade no sistema educacional.
A previsão legal
(que se contrapõe, isto sim, ao autoritarismo),
está a enunciar que o educando deve ser tratado com dignidade e respeito,
vedando-se então – e estabelecendo como figura criminosa – submeter criança ou
adolescente sob sua autoridade a vexame ou a constrangimento (art. 232, do ECA).
As regras de
disciplina, a serem estabelecidas de maneira clara no Regimento Escolar e
aplicadas pelo Conselho Escolar (após, por óbvio, assegurada a ampla defesa), devem contemplar sanções
pedagogicamente corretas, que jamais importem na exclusão do aluno do sistema educacional (e, não raras vezes, a
escola expulsa do seu seio exatamente aquele que dela mais necessitava para o
adequado desenvolvimento) ou em conseqüências destituídas de caráter educativo
(como aquelas que revestem de imobilismo não construtivo ou na suspensão pura e
simples que viola o direito à educação, quando não acaba correspondendo a um
aparente “prêmio” pelo ato de indisciplina).
De se considerar
que o desinteresse pelas atividades escolares, assim como as dificuldades na
aprendizagem – e conseqüente insucesso do aluno – podem gerar a indisciplina.
Ao tempo em que se constitui um poder/dever
para o sistema educacional tratar da eliminação dos atos de indisciplina (e
combater qualquer tipo de violência), sem dúvida que é preciso aprofundar o
conhecimento acerca de suas causas, buscando-se também identificar a origem dos
problemas daqueles que recebem o rótulo de indisciplinados
(cabendo sempre considerar, como anotam Maria José Milharezi Abud e Sonia
Aparecida Romeu, que “a disciplina vem associada a outros aspectos do
comportamento e o seu desenvolvimento na conduta de cada um representa uma conquista progressiva, lenta, que se dá à medida que o
indivíduo se desenvolve como um todo, isto é, à medida que amadurece física e
mentalmente, aprimora a sua inteligência, ganha em equilíbrio emocional,
autonomia individual, capacidade de se relacionar com seus semelhantes” – in Disciplina na escola: autoridade versus autoritarismo / Arlete D’Antola,
org. São Paulo: EPU, 1989, pág. 81).
Por certo, não se
deve traduzir como rebeldia ou indisciplina as críticas ao processo pedagógico
ou às propostas educacionais, nem tampouco as contestações aos critérios
avaliativos, já que tais manifestações, além do indisputável conteúdo positivo
e democrático, correspondem a direito do educando (art. 53, inc. III e par.
único, do ECA).
A participação
dos pais (por dever legal) e da própria comunidade (enquanto proposta
democrática) no momento de se responder aos atos de indisciplina constituem
auxílio que não deve ser descartado, notadamente pela ambiência de
co-responsabilidade que se instaura e integração direcionada à verdadeira prática
da cidadania. Com efeito, o envolvimento dos alunos, de suas famílias e da
comunidade nas questões educacionais se constitui fórmula de participação
ditada pela Constituição Federal (os art. 205 e 227, caput, estabelecem claramente a necessidade da integração entre
família, comunidade, sociedade e Estado no processo de educação de crianças e
adolescentes, bem como na sua proteção contra toda forma de violência,
crueldade ou opressão), sendo que disposições semelhantes são encontradas no
Estatuto da Criança e do Adolescente (cf. art. 4º, caput; 5º; 17; 18; 53, caput e par. único e 70), bem como na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (cf. art. 2º; 12,
inc. VI; 13, inc. VI; 14, caput e
inc. II e 29).
Os temas
relacionados ao sistema educacional, inclusive aquelas pertinentes a atos de
indisciplina (ou infracionais), devem contar com a intervenção positiva dos
órgãos que constituem a proposta de uma nova política de atendimento à infância
e juventude, conforme estabelecido pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Assim,
apresentando como componentes mais significativos a
descentralização político-administrativa, a municipalização do atendimento e a
participação obrigatória da sociedade civil, temos que tais diretrizes
contemplam a criação dos Conselhos dos Direitos das Crianças e Adolescentes,
bem como dos Conselhos Tutelares; pretendendo-se, nessa nova linha, seja o
município o espaço adequado para a reflexão acerca dos problemas existentes na
área e também para a equação dos mesmos, apresentando e efetivando programas e
ações capazes de superar as dificuldades detectadas.
Os Conselhos dos
Direitos das Crianças e dos Adolescentes, previstos no art. 88, inc. II, do
Estatuto da Criança e do Adolescente, são órgãos com caráter deliberativo (portanto, definidores da
política pública de atendimento à infância e juventude nas esferas municipais, estaduais e nacional), incumbidos de proceder a controle das ações governamentais em
todos os níveis e que não podem prescindir da participação popular (diga-se paritária,
ou seja, apresentando igual número entre os representantes dos órgãos
governamentais e os indicados pelas entidades que atuam na defesa – ou no
atendimento – dos direitos das crianças e dos adolescentes). Na conjugação das
disposições do art. 1º, par. único, 204 e 227, § 7º,
todos da Constituição Federal, regulamentadas posteriormente pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente, conclui-se ter havido determinação no sentido de se
inaugurar nova fase na política de atendimento à infância e juventude, cuja
marca esteja delineada no surgimento de espaços para a democracia participativa, garantindo-se à sociedade civil voz e vez na formulação das
políticas sociais públicas relacionadas a crianças e adolescentes. O comando é
para que se implante um regime de co-gestão
nesse campo de atuação governamental, o que representa extraordinário progresso
ao tempo em que, até então, a forma de “participação” da sociedade na área se
restringia a atividades de cunho eminentemente assistencialista (as campanhas
beneficentes para arrecadar alimentação, agasalhos, etc.) ou consistia em
mão-de-obra graciosa para efetivação de programas e ações previamente decididos
pelo poder público (adesão aos mutirões para construção de creches, praças,
etc.), enquanto que os conselhos comunitários apresentavam caráter meramente
consultivo (e, assim sendo, apenas davam “palpites” nas atividades
governamentais). A democracia participativa (pela primeira vez enunciada em
nossa Constituição Federal na formulação de que “todo o poder emana do povo,
que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” – cf. art. 1º,
par. único) pressupõe o Executivo compartilhando
parcela do seu poder, propiciando integração do povo no processo decisório
estatal e garantindo concretamente importante predicado da cidadania, além de
marcá-lo com o signo da legitimidade
(equivocada e infelizmente, a maioria dos governantes entende que a
representatividade do voto, não raras vezes obtida através do abuso do poder
econômico no campo eleitoral, seria suficiente para dar surgimento à
legitimidade do poder e, assim, tratam com descaso as possibilidades do seu
exercício efetivamente democrático). Disto tudo resulta a definição da natureza
jurídica dos Conselhos de Direito, apresentada por Wilson Donizeti Liberati e
Públio Caio Bessa Cyrino, como “(a) órgão
especial – devido à sua estrutura e funcionamento específico; b) órgão autônomo e independente – não está
subordinado hierarquicamente ao Governo; c) administração descentralizada – com
capacidade para decidir as questões que lhe são afetas, com a
peculiaridade de que suas deliberações se tornam vontade estatal e não vontade do órgão, sujeitando o próprio Estado
ao seu cumprimento” (in Conselhos e
Fundos no Estatuto da Criança e do Adolescente, São Paulo: Malheiros, 1993,
pág. 77). Então, no contexto da política pública de educação – e
especificamente no que tange ao tema da disciplina no sistema educacional –
exsurge inconteste a possibilidade de atuação dos Conselhos dos Direitos
(sintonizados, por certo, com os Conselhos de Educação) traçando regras gerais
relativas, dentre outras, ao conteúdo
dos Regimentos Escolares nesse campo educacional (vale dizer, na definição dos
atos de indisciplina enquanto infrações às normas e deveres previamente
estabelecidos, bem como das respectivas penalidades e sua forma de imposição),
ao funcionamento – e atribuições – dos
Conselhos Escolares ou equivalentes nesse aspecto disciplinar, à necessária intervenção dos supervisores
de ensino ou orientadores educacionais nos casos de indisciplina.
De igual
importância para o tema comparecem os Conselhos Tutelares, órgãos permanentes e
autônomos, encarregados pela sociedade de zelar no pertinente ao efetivo
cumprimento dos direitos das crianças e adolescentes. São eles fiscalizadores
de todo o sistema de atendimento à infância e juventude, bem como – enquanto
proposta de desjurisdicionalização de determinadas matérias – fruto desse
anseio de abrir espaços para a sociedade civil na co-gestão dos interesses
relacionados à população infanto-juvenil, demonstrado especialmente pelo fato
de que os conselheiros são pessoas da comunidade e por ela escolhidas (através
de sufrágio universal, com voto direto e facultativo) para o exercício de tão
relevante função. Aos Conselhos Tutelares restam estabelecidas importantes
atividades de caráter genérico (tais
como subsidiar os Conselhos de Direito para a formulação de uma política de
atendimento à infância e juventude que se mostre integralmente vinculada à
realidade de cada município ou “assessorar o Poder Executivo local na
elaboração de propostas orçamentárias para planos e programas de atendimento
dos direitos da criança e do adolescente” – cf. art. 136, inc. IX, do ECA) e, identicamente, o atendimento de casos concretos
de crianças e adolescentes que se encontrem em situação de risco pessoal, familiar ou social, em razão de os seus
direitos terem sido “ameaçados ou violados: I – por ação ou omissão da
sociedade ou do Estado; II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou
responsáveis; III – em razão de sua conduta” (cf. art. 136, inc. I, do ECA). Na
área específica do direito à educação, prevê o Estatuto da Criança e do
Adolescente, expressamente, a obrigatoriedade – por parte dos dirigentes de
estabelecimentos de ensino fundamental – da comunicação ao Conselho Tutelar dos
casos de: “I – maus-tratos envolvendo seus alunos; II – reiteração de faltas
injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escolares; III –
elevados índices de repetência” (cf. art. 56). Guardadas as devidas proporções,
a lei confere ao Conselheiro Tutelar poderes assimilados aqueles estabelecidos
para os Juízes da Infância e Juventude, incluindo a aplicação das chamadas medidas de proteção (previstas no art.
101, I a VII, do ECA); a expedição de notificações (com obrigatoriedade de
comparecimento); a requisição dos
serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência,
trabalho e segurança (que significa determinar
o atendimento pelo poder público, nos termos do art. 136, III, a, do ECA). De lembrar também que o
legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente – buscando garantir aos
Conselhos Tutelares o alcance de suas relevantes atribuições – estabeleceu ser crime impedir ou embaraçar a atuação de
Conselheiro Tutelar no exercício de suas funções (cf. art. 236) e infração administrativa o comportamento
de descumprir determinação do Conselho Tutelar (cf. art. 249). Não resta dúvida, portanto, do papel
extremamente importante a ser desempenhado pelo Conselho Tutelar nas situações
em que o sistema educacional não consegue responder, adequada e suficientemente, às hipóteses
concretas de indisciplina, máxime diante da possibilidade da aplicação das
medidas de proteção como a “orientação, apoio e acompanhamento temporários”,
bem assim a “matrícula e freqüência obrigatória em estabelecimento oficial de
ensino fundamental”, também a “requisição de tratamento médico, psicológico ou
psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial”, ainda a “inclusão em
programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a
alcoólatras e toxicômanos”, além da “inclusão em programa comunitário ou
oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente” (cf. art. 101,
combinado com o art. 136, inc. I, ambos do ECA). De
igual sorte, possibilita a lei que o Conselho Tutelar aplique medida em relação
aos pais ou responsável, dentre elas a “advertência”, a “obrigação de
matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua freqüência e aproveitamento
escolar”, a “obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento
especializado”, o “encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico”, a
“inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e
tratamento a alcoólatras e toxicômanos”, além do “encaminhamento a programa
oficial ou comunitário de proteção à família” (cf. art. 129, combinado com o
art. 136, inc. II, ambos do ECA). Finalmente,
necessário consignar ser atribuição do Conselho Tutelar a intervenção quando se
trata de ato infracional praticado por
criança (fora ou dentro do
sistema educacional), com a possibilidade de aplicação das já referidas medidas
de proteção (cf. art. 105, combinado com o art. 136, inc. I, ambos do ECA). Em suma: esgotados
os recursos escolares, devem ser encaminhados ao Conselho Tutelar as crianças e adolescentes que, em razão de sua conduta,
encontrem-se em situação de risco pessoal
ou social, inclusive no que tange às suas atividades junto ao sistema
educacional (idêntico encaminhamento deve ocorrer quando os pais ou responsável
pelo educando estão a carecer de aconselhamento ou atendimento). Também devem
ser encaminhadas ao Conselho Tutelar as crianças que, dentro da escola,
praticarem atos infracionais.
Como
interveniente obrigatório nas questões que afetam o regular funcionamento do
sistema educacional – por certo contempladas na ampla perspectiva do direito à
educação – encontra-se a Justiça da Infância e Juventude, que agora, em razão
do Estatuto da Criança e do Adolescente, assume função (diga-se, elevada em dignidade) de ser espaço
destinado à efetivação dos direitos da população infanto-juvenil. A nova
postura da Justiça frente aos temas relativos a crianças e adolescentes
encontra base no fato de que o legislador do Estatuto da Criança e do
Adolescente fez por inscrever capítulo próprio para tratar da proteção judicial
dos interesses individuais, coletivos e difusos relacionados à infância e
juventude. A idéia central é a de que as regras enunciadas no Estatuto da
Criança e do Adolescente se constituem em comandos obrigatórios à família, à
sociedade e ao Estado, aguardando-se, especialmente por parte do poder público,
o cumprimento das normas estabelecidas. Todavia – e exemplificando – se o
administrador, espontaneamente, não tornar concreto o que lhe foi determinado
pela lei, comparece disponível ao interessado um conjunto de medidas judiciais
especificamente destinadas à satisfação, via prestação da tutela jurisdicional,
dos direitos violados (dentre as medidas judiciais arroladas vale anotar, pela
importância, a ação
civil pública, destinada à proteção dos interesses individuais, coletivos e
difusos próprios da infância e da adolescência, e que corresponde à
extensão para esta seara das previsões contidas na Lei nº 7.347/85. Também é
digna de registro a utilização da ação
mandamental contra atos ilegais ou abusivos – emanados de autoridade
pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder
público – que lesem direito líquido e certo estabelecido no Estatuto da Criança
e do Adolescente. Não é de se afastar, por outro lado, a importância do mandado de injunção quando a falta de
norma regulamentadora o torne inviável), o exercício
de direito constitucional pertinente à infância e juventude, assim como da ação direta de inconstitucionalidade ou
das representações interventivas,
quando fundamentadas na necessidade da salvaguarda de interesses de crianças e
adolescentes). Essa nova postura – na linha do asseguramento pela Justiça da
Infância e da Juventude dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes –
implica afastar o falso e perverso raciocínio, absorvido e fomentado pelo
revogado Código de Menores (e, de conseqüência, pela Justiça de Menores), de
que os carimbados com o rótulo da situação
irregular vivem na marginalidade social porque foram ou são incapazes de
uma plena integração, vale dizer, eles próprios são responsáveis pela condição
marginal em que se encontram. Portanto, através de tal manipulação ideológica,
alcançava-se o resultado de excluir a estrutura social do âmbito da questão
(imunizando-a, assim, de críticas), bem como de legitimar retoricamente as
medidas judiciais impostas (já que, embora se apresentasse com a roupagem de tutelar, instrumento de proteção e assistência, a legislação de
menores em nada contribuiu para que se alterasse na essência a situação de
indignidade vivida pelas crianças e adolescentes brasileiros, vez que sequer os
reconhecia como sujeitos dos mais elementares direitos). Então, a alavanca
mitológica impulsionava medidas judiciais que se perfaziam mediante meros
processos lógico-dedutivos de subsunção dos fatos às normas, decidindo-se –
como exemplo – por destituições do pátrio poder ou por internações em unidades
ditas de “reeducação” sem indagações de outra ordem que não as
técnico-jurídicas, já que se cria (ou fingia-se crer) no fato de ter havido
opção voluntária pela vida marginal ou delinqüencial, pois o pressuposto
(insista-se, falso) era de que a todos os indivíduos são oferecidas iguais oportunidades de
progresso social (ou, trasladando-se para o nosso tema específico, teríamos o
reconhecimento da igualdade de oportunidades no acesso, permanência e sucesso
dentro do sistema educacional).
Em outro aspecto,
se o Juiz de Menores era apresentado pela lei então em vigor (o Código de Menores)
com contornos de onipotência (já que se lhe permitia, entre outras coisas,
decidir levando às últimas conseqüências o princípio da livre convicção – cf. art. 5º; legislar sobre a matéria de menores mediante portarias e
provimentos – cf. art. 8º; decretar a perda ou a suspensão do pátrio
poder e a destituição da tutela em situações das mais variadas, inclusive de
gravidade discutível – cf. art. 45; atuar como censor dos espetáculos teatrais,
cinematográficos, circenses, radiofônicos e de televisão – cf. art. 52; criar
rito procedimental à revelia de qualquer texto legal – cf. art. 87), no
atendimento aos casos concretos acabava tomado pela angústia da impotência no
tocante a contribuir decisivamente para o estabelecimento de um novo projeto de vida para a sua clientela
marginalizada, já que não podia legalmente exigir do Estado o cumprimento do
seu dever institucional e indelegável de atuar concretamente na promoção social das crianças e adolescentes (e respectivas famílias).
Agora, diante da inscrição – e detalhamento – dos direitos fundamentais
relativos à infância e juventude (estabelecidos na sua maioria como direitos subjetivos e, portanto, dever do Estado), a autoridade
judiciária desfruta da especial condição de poder prestar a tutela jurisdicional
prolatando decisões que apresentam o condão de transformar positivamente a realidade social. O Juiz de Infância e
Juventude tem a possibilidade de – quando devidamente provocado (face ao princípio da inércia da jurisdição) – decidir
sobre as questões sociais mais significativas, seja no plano individual ou nas
esferas coletivas ou difusas. Uma sentença do Juiz da Infância e Juventude pode
implicar na garantia do exercício de direitos como o da educação (determinando,
por exemplo, a construção de creches ou estabelecimentos educacionais), da
saúde (determinando, por exemplo, a construção de um posto de saúde ou as
vacinações obrigatórias recomendadas pelas autoridades sanitárias), da
profissionalização (determinando, por exemplo, a instituição de programas
pertinentes à iniciação profissional), e assim por diante. Ou seja, o Juiz da
Infância e Juventude pode transformar a Justiça em espaço significativo de luta
para a instalação de uma sociedade que trate com mais eqüidade e isonomia as
crianças e adolescentes, propiciando a todos a concretização dos direitos
elementares da pessoa humana (e de nada adianta a fixação de direitos
fundamentais para a infância e juventude se a omissão generalizada possibilitar
sejam eles tratados como meras declarações retóricas ou singelas exortações
morais, com o valor e peso de avisos, lições ou conselhos e, por isso mesmo,
postergados na sua efetivação ou relegados ao abandono). Se antigamente
acabou-se difundindo o mito de que “entregar a criança ao Juiz” representava a
pronta solução de questões de qualquer conteúdo, hoje tal raciocínio encontra
foro de realidade, já que as crianças e adolescentes passam a contar com a
atividade jurisdicional para a efetivação dos seus
interesses juridicamente tutelados.
Mas além de explicitar
os direitos genericamente prometidos na Constituição Federal, de estabelecer um
conjunto de medidas judiciais para a garantia de tais direitos e de ameaçar com
sanções penais e administrativas os que não cumprirem os seus imperativos
proibitivos, o Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta mais um
importante mecanismo destinado a fazer valer os ditames que assenta. Trata-se o
de incumbir uma instituição, integrante da estrutura organizacional do Estado,
da defesa dos interesses e direitos pertinentes à infância e juventude. Como se
sabe, os Promotores e Procuradores de Justiça passaram a ter o dever funcional de atuarem no sentido de
garantir a efetivação das normas estabelecidas em favor das crianças e
adolescentes. Num país onde a maioria da população não tem acesso à Justiça
(seja por falta de condições econômicas ou pela inexistência da Defensoria
Pública na grande maioria das comarcas), andou bem o legislador do ECA quando atribuiu ao Ministério Público tão magnânima
missão. Aliás, é de se abrir parênteses para dizer que os elaboradores do
Estatuto da Criança e do Adolescente alcançaram compreender corretamente os
novos contornos institucionais do Ministério Público, alinhavados especialmente
pela Constituição Federal de 1988. Entendeu-se, acertadamente, que quando o
legislador constitucional indicou ser o Ministério Público “instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa
da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis” (cf. art. 127, caput),
bem como ao arrolar como uma das suas funções institucionais a de “zelar pelo
efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos
direitos assegurados nesta Constituição (cf. art. 129, inc. II), podendo, para
tanto, “promover o inquérito civil e a ação civil
pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de
outros interesses difusos e coletivos” (cf. art. 129, inc. III), deu-lhe foro
de instituição de primeira grandeza, convocando-a para verdadeira defesa da
sociedade. Se é vazia a discussão acerca de o Ministério Público ter ou não se
transformado num 4º Poder, afastado de dúvida está que veio
alcançar, via do novo ordenamento constitucional, o poder inerente às instituições
independentes e autônomas. A preocupação, agora, consiste em estabelecer a
maneira pela qual será atendida a regra, absoluta e
inafastável, no sentido de que o poder, que emana do povo, a favor dele
deve ser exercido. Assim, fez-se por reconhecer no Estatuto da Criança e do
Adolescente que o exercício democrático do poder exige do Ministério Público um
atuar permanente em proveito da maioria da população brasileira, exatamente das
camadas sociais distantes dos predicados inerentes à cidadania. Foi também
absorvida a idéia de que o Ministério Público, rompendo com
antiga postura de estrita burocracia legal (mero agente do Poder
Executivo a fiscalizar o Poder Judiciário quanto à correta aplicação das leis,
inclusive daquelas injustas, destinadas à dominação enquanto forma de dar
legalidade a situações de exploração e opressão), deve agora atuar como
verdadeiro agente político,
interferindo de maneira positiva na realidade social e, mediante exame do
conteúdo ideológico das normas jurídicas, dar prevalência para a materialização
daquelas que signifiquem proposta de libertação do povo, internalizando – na
esfera administrativa ou no espaço oficial do judiciário – as reivindicações
sociais na forma de conflitos coletivos, politizados e valorados pela ótica dos
interesses das classes populares. Por tudo isso – e porque se acredita no
Ministério Público como fiel defensor de um Estado genuinamente democrático – é
que o legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente determinou-lhe o zelo
pelos interesses individuais, coletivos e difusos ligados à proteção da
infância e da juventude, que não raras vezes implicará cobrar das autoridades
públicas uma atuação mais eficiente no fornecimento às crianças e adolescentes
de educação, saúde, profissionalização, lazer, etc., vez que sua tarefa obriga
buscar prevalência do interesse público primário (ou seja, o interesse
relacionado ao bem geral) em
contraposição às vezes com o interesse público secundário (ou seja, o modo pelo
qual os governantes vêm o interesse público). Em outro aspecto, considerada a
infeliz praxe forjada no sentido de que quando surgem leis a favor dos
excluídos ainda assim de nada servem, porquanto não são aplicadas, convém
ressaltar que o Ministério Público – assumindo através de seus agentes a responsabilidade
profissional, política e ética da construção de uma ordem social mais justa –
poderá fazer do Estatuto da Criança e do Adolescente seu instrumento
fundamental de luta em favor da sociedade. Não tenho dúvida de que garantir a
vida, a liberdade, a educação, a saúde, a
profissionalização e outros direitos estabelecidos no Estatuto da Criança e do
Adolescente (seja na via administrativa ou judicial) corresponderá a
incrementação do processo de democratização da sociedade brasileira,
canalizando as aspirações de emancipação dos segmentos populares e contribuindo
assim para superar a alienação política e econômica imposta à maioria dos
brasileiros. O desejo é de que o Promotor de Justiça da Infância e Juventude dê
especial contribuição à esperada conformação de um novo Ministério Público, que
deixe definitivamente para trás suas raízes de patrocinador dos interesses dos
reis e dos poderosos, reconhecendo-se como legítimo defensor dos interesses da sociedade, com a visão
clara de que tal mister implica defender prioritariamente as suas camadas
marginalizadas e afastadas das propostas de cidadania contidas na legislação
constitucional e infraconstitucional. Nesse contexto, a proteção aos interesses
individuais, coletivos ou difusos relacionados à infância e juventude deve ser
tratada com absoluta prioridade pelos
Promotores e Procuradores de Justiça, já que o comando da Constituição Federal
(“É dever ... do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à
convivência familiar e comunitária ...” – cf. art. 227), bem como o do Estatuto da Criança e do Adolescente (cf.
art. 4º, par. único, letra c),
tornam obrigatório o estabelecimento de uma política institucional nessa área
que contemple a preferência manifestada pelo ordenamento jurídico. No campo
específico do direito à educação, a mesma competência e dedicação emprestada
pelo Promotor de Justiça da Infância e Juventude para a garantia de acesso ao sistema educacional (aí
incluída a educação infantil) deve ser estendida para assegurar a permanência e o sucesso nesse espaço de desenvolvimento do ser humano. Além então
de acompanhar – e, se necessário, intervir – nas hipóteses de evasão escolar e elevados índices de repetência, comparecem de todo desejável
a interferência do Ministério Público enquanto colaborador nos processos de –
via práticas pedagógicas – superação dos casos de indisciplina e violência no
sistema educacional, inclusive numa proposta preventiva à prática de atos
infracionais. Como regra geral em todas as áreas de intervenção, não deve o
Promotor de Justiça da Infância e Juventude ter atuação apenas reflexa, ou seja, intervir somente
depois do fato consumado e já se constituindo em violação ao ordenamento
jurídico. Através de permanente contato com o sistema educacional (participando
de audiências e debates públicos, proferindo palestras, etc.), o agente do
Ministério Público, assim como o Juiz da Infância e Juventude, podem difundir
adequadamente o conteúdo dos diplomas legais de maior interesse ao sistema
educacional, esclarecendo a correlação de direitos e deveres a que todos estão submetidos (vale dizer, ao
mesmo tempo em que enuncia os direitos dos educandos também oferece informação
para derrocar o mito de que as crianças e adolescentes estariam isentas de
qualquer responsabilidade pelos seus atos anti-sociais). Orientar os dirigentes
escolares acerca dos procedimentos destinados à averiguação – e eventual
imposição de sanções – em relação aos atos de indisciplina e buscar estabelecer
distinção entres estes e os atos infracionais, também exsurge como contribuição
importante a ser levada a cabo pelo Promotor de Justiça, máxime porque, não
raras vezes, apresenta-se muito tênue a linha que separa situações passíveis de
serem resolvidas no âmbito da instituição escolar (lembrando aqui que a Lei nº
9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, prevê o respeito à liberdade e o apreço à tolerância como princípios
fundamentais do ensino – cf. art. 3º, inc. IV) e aquelas que carecem
de encaminhamento à Justiça da Infância e Juventude, com ou sem passagem pela
autoridade policial observando que, de qualquer forma, a convocação de força
policial só justifica como último recurso, porquanto sua ação indiscriminada
impõe, freqüentemente, indevido constrangimento a atingir exatamente aos
educandos vítimas da violência que se pretende reprimir. Aliás, deve-se levar
em conta que, enquanto titular exclusivo da ação sócio-educativa e com a
possibilidade inclusive dela dispor através da remissão como forma de exclusão
do processo, o Promotor de Justiça da Infância e Juventude pode ajustar
procedimentos para que em infrações de bagatela ou de menor potencial ofensivo
não se processe o ingresso do educando no sistema da Justiça da Infância e da
Juventude de forma desnecessariamente estigmatizante (v. o art. 40, 3, b, da
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e a regra 11, das
Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e
Juventude). Em outro aspecto e se necessária, a aplicação de medida
sócio-educativa deve objetivar sim a imposição
de limites ao educando e seu aperfeiçoamento enquanto pessoa em peculiar
fase de desenvolvimento (e a repercussão da intervenção da Justiça da Infância
e da Juventude será favorável nesse aspecto) sem, entretanto, produzir sua
exclusão (expulsão ou evasão) da escola (daí a preferência das espécies como a
da prestação de serviço à comunidade, da reparação de dano ou da inserção no
programa de liberdade assistida), campo para educação libertadora e formação do futuro cidadão (inclusive propiciando a muitos a oportunidade de deixar de
ser meras vítimas da sociedade injusta em que vivemos
para se constituírem em agentes transformadores desta mesma realidade).
Enfim, os atos de
indisciplina (e de violência) devem ser resolvidos no âmbito do próprio sistema
educacional, atendidas as regras legais e aquelas por ele mesmo instituídas
(com intervenção e respostas imediatas, de molde a impedir uma progressão na
conduta que vai se tornando cada vez mais grave e reprovável), somente se
encaminhando as questões ao sistema da Justiça da Infância e Juventude (aí
incluído o Conselho Tutelar), após esgotados os recursos escolares. Por
outro lado, quando da prática de um ato infracional, o sistema educacional não
pode se substituir ao sistema da Justiça da Infância e Juventude, devendo o
caso ser apreciado e julgado nesta instância. Sem se pretender levar a polícia
para dentro da escola (e propiciar assim situações humilhantes ou vexatórias,
bem como as que transformem o espaço da escola - que se quer libertário - em
campo de opressão), cabe anotar que, assim como ocorre com o adulto, o ECA prevê a possibilidade da apreensão em flagrante do
adolescente encontrado praticando um ato infracional (tal procedimento pode ser levado a cabo por qualquer do
povo, enquanto a autoridade policial tem o dever
de realizá-lo). A contenção de atos infracionais junto ao sistema educacional
se fará tanto mais positivamente quanto for a
integração do mesmo com a Justiça de Infância e Juventude e com o Conselho
Tutelar, criando-se espaços de reflexão conjunta acerca da vida institucional e
estabelecendo-se, dentro do possível, critérios para a intervenção frente aos
variados comportamentos anti-sociais experimentados.
Conclua-se com o
raciocínio de que o Estatuto da Criança e do Adolescente – antes de se
constituir num estorvo – pode ser utilizado enquanto importante instrumento de
salvaguarda do sistema educacional, em especial quando dispõe que o princípio
constitucional da prioridade absoluta para as crianças e
adolescentes significa preferência na formulação e execução
das políticas sociais públicas, assim como destinação privilegiada de recursos
públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e juventude (art. 4°,
par. único, letras c e d, do ECA). Quanto ao educando, pessoa
em desenvolvimento que tem direito de
vivenciar condições favoráveis para seu sucesso no processo de ensino e
aprendizagem, o registro final serve para a reafirmação de ser ele a medida de
todas as coisas no sistema educacional, merecedor de formação que venha no
futuro credenciá-lo agente responsável pela tarefa indicada como um dos
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil que é o de instalar
uma sociedade livre, justa e solidária.