EXMO. SR. JUIZ DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DO FORO REGIONAL DA LAPA

 

 

 

 

 

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, através a Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e Juventude, vem, mui respeitosamente à presença de V. Exa. para, com fundamento nos arts. 129, III, da Constituição Federal; 25, IV, a, da Lei 8.625/93; 103, VIII, da Lei Complementar Estadual 734/93; 4º, da Lei 7.347/85; e 208 e seguintes, da Lei 8.069/90, propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA sob o rito ordinário e de cunho declaratório, com pedido de antecipação de tutela em face da FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, pessoa jurídica de direito público, representada judicialmente por seu Procurador Geral, domiciliado à Avenida São Luiz, nº 99, 4º andar, nesta Capital, pelos motivos de fato e razões de direito que doravante passa a aduzir.

 

I - DOS FATOS.

 

Em 23 de março de 1955, o então Governador do Estado, pelo Decreto nº 24.430, veio a instituir Grupo Escolar Experimental, em substituição à Escola de Aplicação ao Ar Livre D. Pedro II, criada em 13 de junho de 1939, de acordo com o decreto 10.307, que funcionou durante 17 anos no Parque Estadual Fernando Costa, conhecido popularmente como Parque da Água Branca.

 

Já na época de sua criação, no final da década de 30, acreditava-se que o ambiente poderia proporcionar à criança maior oportunidade de aprendizagem, assim em um ambiente natural, contando com profissionais que atuariam como mediadores do processo de aprendizagem, orientando e estimulando as crianças através de observações, fazendo com que estas adquirissem conhecimentos compatíveis com a sua idade.

 

Devido a diversos inconvenientes a escola mudou-se em 1954 para o prédio localizado à Rua Tibério, Vila Romana (território jurisdicional desse Foro Regional), construído e planejado especialmente para ela através do Convênio Escolar, onde atenderia as crianças do bairro e as que pertenciam à escola extinta, lugar e procedimento que permanecem até os dias de hoje.

 

Em 1970 recebeu o nome de Grupo Escolar e Ginásio Experimental “Dr. Edmundo de Carvalho”, de acordo com o decreto 52.488, dada a eficiência do método, aumentando seu campo de atuação. Em 1975 foi incorporado o Curso de Educação Especial; em 1979 a Suplência de Primeiro Grau; e, em 1988, o CEFAM (Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério), pelo Decreto 28.089.

 

Foram desenvolvidos projetos-piloto, visando o aperfeiçoamento do ensino e que justificaram, inclusive, a aprovação pelo Conselho Estadual de Educação do Regimento próprio pelo Parecer 103, de 24 de março de 1993, dada sua situação de escola experimental.

 

O Grupo Escolar Experimental surgiu do desejo do Estado de São Paulo de possuir um estabelecimento piloto no ensino primário, isto é, seu principal objetivo seria possuir uma escola modelo que servisse de campo para a experimentação de novas técnicas educacionais. Portanto, além dos objetivos próprios, existiriam ainda as seguintes finalidades pedagógicas específicas:

 

a) realizar experiências de métodos educacionais;

b) servir de campo de prática, observação e experiência para alunos das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, de Institutos de Educação e Cursos de Magistério;

c) proporcionar campo para estudo, possibilitando a indicação dos métodos de ensino e educação mais compatíveis com o nosso meio;

d) divulgar resultados de experiências através de publicações, palestras e seminários, a fim de possibilitar sua aplicação em outros setores.

 

A Escola Experimental é um laboratório verdadeiro e real de pesquisas educacionais onde são criadas as condições humanas e materiais que permitem as experiências caracterizadas pela forte ênfase na aquisição de evidências objetivas, chegando a conclusões tiradas dos resultados analíticos.

 

Uma das características mais importantes da escola experimental é o trabalho coletivo, para isso é preciso o diálogo, a liberdade e o comprometimento das pessoas que se reúnem para socializarem os conhecimentos produzidos, necessários à participação e à cidadania.

 

A Escola Experimental, além da relação pedagógica restrita à sala de aula, vem procurando construir projetos coletivos na escola, que tenham como produto final o desenvolvimento do aluno através da realização de atividades específicas: aprendizagem de procedimentos, valores, atitudes, conceitos e normas que caracterizam a cultura de um grupo.

 

A escola conta com um Setor de Acompanhamento de Avaliação e de Implementação de Projetos, cuja atribuição é assessorar todas as atividades referentes ao desenvolvimento dos projetos.

 

Os métodos experimentais da pedagogia aplicam-se tanto na investigação dos processos didáticos como na análise da eficiência dos métodos de ensino. A Escola Experimental constitui um pólo de irradiação de propostas avançadas que devem ser socializadas para a rede estadual de ensino.

 

Ela foi criada com o intuito de testar inovações curriculares e metodológicas que, aprovadas em projetos-piloto, podem ser estendidas às demais escolas do sistema estadual. Em conseqüência disso, é uma escola de observações, inovações e tentativas, que pode sugerir rumos para o avanço da prática educativa na rede de ensino.

 

Mercê do caráter experimental atribuído por força do citado Decreto nº 52.488/70, a E.E.P.G. Dr. Edmundo de Carvalho - conhecida também por Escola Experimental da Lapa - passou a deter autonomia para a elaboração do regimento escolar e de projetos pedagógicos inovadores, sendo certo que diversos deles culminaram por ser aproveitados pela própria Secretaria Estadual de Educação, que os estendeu a outras unidades de sua rede.

 

A Escola Experimental da Lapa alcançou dimensão nacional e internacional, tendo sido visitada e conhecido seu processo pedagógico por renomadas Universidades do Brasil (PUC/SP, USP, UNESP, São Judas Tadeu) e do exterior (França e Suécia, pelo menos).

 

Com o passar dos anos, diversos dos projetos  pioneiros oriundos da Escola Experimental da Lapa culminaram por servir de modelo para as demais redes Estaduais e Municipais de Ensino, devotando a atenção de educadores e da sociedade, sendo certo que sua experiência contribuiu - e em muito - para a edição da recente Lei de Diretrizes e Bases (Lei Federal nº 9.394/96).

 

Os projetos inovadores e decorrentes da autonomia conferida à instituição graças ao caráter experimental por Decreto estabelecido - cumpre asseverar - trouxeram à Escola Experimental da Lapa o rótulo de “ilha de excelência” dentro do precário sistema de nosso ensino público, cuja qualidade comporta infinitas discussões.

 

Ao largo de vinte e oito anos sob o caráter de experimental, variegados projetos pioneiramente utilizados pela E.E.P.G. Dr. Edmundo de Carvalho serviram de supedâneo para a melhoria da qualidade do ensino público, sendo certo que a unidade sempre manteve regime educacional próprio, devidamente aprovado e homologado quer pela Secretaria de Educação, quer pelo Conselho Estadual da Educação, como se observa dos documentos em anexo.

 

Ocorre que, ao arrepio da legalidade, o Conselho Estadual da Educação (CEE) - dizendo-se respaldado pelo art. 2º, VII, da Lei Estadual nº 10.403/71 (que fixou suas atribuições) - editou a Deliberação nº 23/97, que, em seu art. 2º, retirou o caráter experimental da E.E.P.G. Dr. Edmundo de Carvalho, causando o abandono dos projetos pedagógicos pioneiros e da autonomia administrativa por ela portados, de sorte a relegá-la ao mesmo plano das demais unidades de educação mantidas pelo Estado.

 

Contra a deliberação em foco é que se volta o Autor, que demonstrará, ao longo da presente peça, a ilegalidade do ato administrativo oriundo do Conselho Estadual da Educação.

 

II - DO DIREITO.

 

A Constituição Federal, em seu art. 6º, consagra a educação como direito social fundamental.

 

O art. 205 da Carta de Princípios, por seu turno, estipula que a educação é dever do Estado, que deverá promovê-la e incentivá-la visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente, a seu tempo, registra o dever do Poder Público para com a educação, atribuindo a prioridade do interesse em seu art. 4º.

 

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei Federal nº 9.394/96), em seu art. 3º, IX, define como um dos princípios do ensino a “garantia do padrão de qualidade”.

 

Ainda de mencionado Estatuto, deve ser destacado o disposto no art. 12, que comete aos estabelecimentos de ensino a incumbência de “elaborar e executar a sua proposta pedagógica” (I).

 

Finalmente, deve ser destacado o Decreto Estadual nº 52.488/70, que, em seu bojo, conferiu o caráter experimental à E.E.P.G. Dr. Edmundo de Carvalho.

 

III - DA ILEGALIDADE DA DELIBERAÇÃO nº 23/97 DO CONSELHO ESTADUAL DA EDUCAÇÃO

 

Como acima narrado, a E.E.P.G. Dr. Edmundo de Carvalho recebeu o título de experimental mercê de Decreto oriundo do Governador do Estado de São Paulo.

 

Desta forma, norma hierarquicamente superior que é, não poderia o Conselho Estadual da Educação, pelo instrumento da Deliberação violá-la frontalmente como o fez, simplesmente retirando o caráter experimental da Escola.

 

Com efeito, a Deliberação nº 23/97 “revoga” norma hierarquicamente superior, oriunda do Chefe do Executivo (Decreto), além de caminhar em sentido oposto ao preconizado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, ao retirar da unidade de ensino o poder de elaborar e executar a sua proposta pedagógica, o que de há muito era levado a termo, sempre com a anuência dos órgãos Estaduais (Secretaria da Educação e o próprio Conselho).

 

Assim, a Deliberação questionada viola não apenas norma administrativa, como, também, o texto de lei federal, impondo autêntico e espúrio retrocesso, retirando da E.E.P.G. Dr. Edmundo de Carvalho o poder de editar proposta pedagógica própria, de sorte a ignorar o disposto no art. 12, I, da Lei nº 9.394/96.

 

Nem se alegue que a Deliberação foi editada sob os auspícios da Lei Estadual nº 10.403/71, que, em seu art. 2º, VII, conferiu ao Conselho Estadual da Educação atribuição de “fixar normas para a instalação e funcionamento de estabelecimentos de ensino de 1º e 2º graus mantidos pelo Estado e aprovar os respectivos regimentos e alterações”, a qual é posterior ao Decreto nº 52.488/70 e daria supedâneo legal ao ato praticado.

 

Para que mencionado raciocínio possa frutificar, necessário se torna a verificação do ineditismo da previsão legal trazida pela Lei Estadual nº 10.403/71, ou seja, se a atribuição do Conselho Estadual da Educação é privativa e retira a do Governador do Estado para, pelo instrumento do Decreto, tratar do mesmo tema.

 

Neste diapasão, torna-se interessante anotar que, à época da edição do Decreto em debate, vigia a Lei Estadual nº 7.940, de 07 de junho de 1963, que criou o Conselho Estadual da Educação e definiu suas atribuições. Dentre estas, destaca-se a prevista em seu art. 4º, X, no sentido de autorizar o funcionamento de cursos ou escolas experimentais de ensino primário médio com currículos, métodos e períodos escolares próprios.

 

Como se observa, a Lei Estadual nº 10.403/71 não trouxe qualquer inovação, de sorte a retirar do Governador do Estado a atribuição de conferir o título de experimental a determinada unidade de ensino, cometendo-a privativamente ao Conselho Estadual de Educação: quando da edição do Decreto nº 52.488/70, havia lei conferindo ao mesmo Conselho o poder de traçar normas disciplinando o tema, sendo certo que em momento algum se discutiu a impossibilidade do Chefe do Executivo de também fazê-lo.

 

Conseqüência prática, nota-se que a atribuição para conferir caráter experimental a determinada unidade educacional era - e é - concorrente entre o Governador e o Conselho Estadual de Educação.

 

Patente tal fato, resta analisar a situação gerada pela Deliberação nº 23/97, do CEE.

 

De um lado, existe o Decreto nº 52.488/70, que apregoa o caráter experimental da E.E.P.G. Dr. Edmundo de Carvalho.

 

De outro, a malfadada deliberação, que retira mencionado caráter da unidade educacional.

 

Surge, daí, conflito aparente de normas, facilmente solucionado pelo princípio da hierarquia das normas jurídicas, que confere prevalência ao Decreto, dentre os instrumentos administrativos.

 

Em outras palavras, não poderia o Conselho Estadual da Educação, por intermédio da Deliberação, revogar o teor de Decreto Governamental, donde surge patente a sua ilegalidade.

 

IV - DO PERICULUM IN MORA

 

Fácil de ser visto o periculum in mora com a medida adotada pela Deliberação nº 23/97, do Conselho Estadual da Educação: a perdurar seus nefastos efeitos, a E.E.P.G. Dr. Edmundo de Carvalho deixará sua posição pioneira, de ilha de excelência dentro do ensino público e de criadora de projetos pedagógicos de inegáveis valores sociais e educacionais, tornando à vala comum da rede pública de ensino. Desta forma, o Poder Público Estadual, ao invés de buscar a melhoria da qualidade de sua rede, propagando o sistema educacional utilizado na unidade em comento, adota o caminho inverso, burlando o disposto no art. 12, I, da Lei Federal nº 9.394/96, encerrando atividade pioneira e impedindo que a E.E.P.G. Dr. Edmundo de Carvalho trace e execute projeto pedagógico próprio, como vem fazendo ao largo dos anos.

 

Permitir-se a aplicação da ilegal deliberação implicaria em autêntico processo de desmonte da estrutura criada pela E.E.P.G. Dr. Edmundo de Carvalho, cuja reversibilidade, após a sentença que vier a acolher a presente ação, se mostrará no mínimo discutível - para não dizer impossível.

 

V - DO PEDIDO

 

Ante o exposto, requer digne-se Vossa Excelência de:

 

                             Conceder antecipadamente a tutela, com espeque nos arts. 273, do Código de Processo Civil e 12, da Lei Federal nº 7.347/85, com o fim de suspender a eficácia da Deliberação nº 23/97, do Conselho Estadual da Educação, que retirou o caráter experimental da E.E.P.G. Dr. Edmundo de Carvalho, tendo em vista presentes quer o “fumus boni juris”, quer o “periculum in mora”.

 

                             Requer, outrossim, deferida a antecipação da tutela, seja a Requerida citada para, em querendo, oferecer a defesa que tiver, no prazo da lei, sob pena de revelia, sendo que a presente ação deverá, a final, ser julgada procedente, com o fito de tornar definitiva a prestação jurisdicional antecipada, com a declaração da ilegalidade da Deliberação nº 23/97, do Conselho Estadual da Educação.

 

                             Requer sejam as intimações ao autor expedidas para a Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude da Capital, à Rua Major Quedinho, nº 90, 8º andar, tels. 257.2899, r. 214/215/216.

 

                             Protesta pela produção de todos os meios de provas em direito admitidos.

 

Dá-se à causa o valor simbólico de R$ 1.000,00 (um mil reais).

Termos em que,

Pede deferimento.

 

São Paulo, 19 de fevereiro de 1999.

 

Motauri Ciocchetti De Souza

Promotor de Justiça

 

Mauricio Antonio Ribeiro Lopes

Promotor de Justiça