Resumo: A violência cometida contra crianças e adolescentes, em
especial meninos e meninas de rua é um fato que se encontra em evidência. Esta
violência é, por um lado, estrutural, com a negação das condições de saúde,
educação e saneamento a uma parcela da população. Por outro, a formação de
grupos de extermínio, como forma de justiça privada, torna o assassinato uma
das causas importantes da mortalidade juvenil no Brasil. A superação desta
situação conta com mudanças legais como a adoção da Doutrina da Proteção Integral,
da ONU, pela Constituição Federal de 1988 e sua regulamentação através do
Estatuto da Criança e do Adolescente. O Estatuto cria instrumentos que
possibilitam a intervenção na realidade social: os Conselhos de Direitos e os
Fundos da Criança e do Adolescente, nacional, estaduais e municipais e os
Conselhos Tutelares. Por fim, são necessárias medidas concretas para apuração e
responsabilização nos casos de violência cometidos, ainda que nossas estruturas
policial e legal tenham diversas deficiências.
Palavras-Chave: Violência, Criança, Adolescente
Abstract:
The violence against children and adolescents,
specially street children is a fact now in evidence. This violence is
structural, by one side, with the negation of conditions of health, education
and sanitation for most of the people. By the other side, death squads, as form
of private justice, make assassination one of the important causes of juvenile
mortality in
Hoje se encontra em evidência na sociedade brasileira a violência[1]
sofrida por crianças e adolescentes, em especial meninos e meninas de rua, como
fato ultrajante e merecedor de providências por parte da Sociedade e do Estado.
Esta violência possui várias faces, desde as desigualdades
econômico-sociais até a prática do extermínio. Com este estudo, mais do que
apenas uma análise acadêmica da realidade, busca-se analisar suas causas e
apontar alguns caminhos para sua mudança.
A primeira parte é dedicada à discussão da violência estrutural e do
extermínio de meninos de rua. Na segunda parte, se aponta alguns caminhos para
superação desta violência, com destaque especial para o Estatuto da Criança e
do Adolescente e suas estruturas.
As diferenças sociais existentes na sociedade brasileira, bem como as
sucessivas políticas econômicas adotadas pelo Governo Federal, em especial as
políticas recessivas dos anos 80, ao afetarem a qualidade de vida da população,
afetam diretamente a infância (CERVINIe CHAHAD, 1988; POERNER, 1987).
O processo de urbanização acelerada e a favelização das grandes cidades
trouxe consigo o aumento do número de crianças nas ruas. A necessidade de
crianças e adolescentes utilizarem as ruas como espaço de sobrevivência não é,
certamente, um fato novo na história brasileira. As evidências estão
espalhadas, desde os quadros de Debret, retratando crianças negras nas ruas do
Império até os Capitães de Areia, de
Jorge Amado, dos anos 40. Mas a falência do sistema repressivo de internatos
coloca a nu esta situação, substituindo-se a violência institucional pelo
extermínio.
As estatísticas na área da saúde infantil colocam o Brasil em 66º lugar,
pela escala do UNICEF, baseada na taxa de mortalidade até 5 anos, junto a
países como El Salvador(67) e bastante abaixo de vizinhos como Chile (97),
Uruguai (93) e Argentina (85) [2]
Esta situação é o reflexo das
condições precárias de saneamento, que atingem mais diretamente a infância [3].
A mortalidade na adolescência está relacionada principalmente com causas
violentas (homicídios, acidentes, etc).
O processo de negação de cidadania de crianças e adolescentes
completa-se com a evasão escolar, relacionada diretamente ao trabalho precoce.
Este, na maior parte dos casos, ocorre sem a garantia de direitos trabalhistas e
previdenciários[4].
É interessante notar que além da diferenciação vertical, entre as
diversas classes sociais, existe também uma diferenciação horizontal, com
mudanças significativas de indicadores sociais entre as regiões. Por exemplo,a
probabilidade de mortalidade infantil é mais alta em setores com alta renda do
Nordeste que entre a classe média-baixa do Sudeste/Sul. (IBGE, 1986)
Esta forma de violência mata silenciosamente muito mais que os
esquadrões da morte, em todas as partes do país, e seu combate envolve
mobilização de recursos financeiros e políticos de grande monta.
Ainda assim não podemos deixar de dar um tratamento especial às
situações de violência que colocam hoje o país no banco dos réus frente à
comunidade internacional - o extermínio [5] de meninos e meninas de rua.
O assassinato de crianças e adolescentes ocorrido nos grandes centros
urbanos tem merecido espaço destacado na imprensa nos últimos meses.
Infelizmente este quadro de violência não é novo.
Opera-se sua descoberta pela Sociedade através do processo de
organização de entidades como o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
que conseguiram trazer para a imprensa e para o grande público a denúncia dos
fatos que vêm ocorrendo.
O extermínio de crianças e adolescentes foi objeto de pesquisas (IBASE,
1989; MNMMR/IBASE/NEV-USP, 1991) e foi denunciado em eventos como o II Encontro
Nacional de Meninos e Meninas de Rua, ocorrido em Brasília em 1989.
O homicídio não é a única causa de mortes violentas de crianças e
adolescentes nem é o Brasil o único país onde ocorrem [6]. O que choca, além da
quantidade, é a aparente falta de motivos.
Esta violência relaciona-se com a crise do Estado brasileiro. Em nosso
país o Estado ocupa um papel fundamental no fomento ao desenvolvimento social.
Hoje, entretanto, ele não consegue realizar duas de suas tarefas básicas:
garantia dos direitos individuais e pacificador da ordem pública.
O Estado, definido segundo Weber como detentor do monopólio da violência
legítima [7], no caso brasileiro perdeu o controle da violência ilegítima. O
poder paralelo do tráfico, os grupos de extermínio e os arrastões são elementos
que denotam o retorno à violência privada característica do período medieval
europeu.
A formação de grupos armados
paralelos ao aparato estatal relaciona-se em primeiro lugar com o período de
ditadura militar, onde surgiram esquadrões da morte e grupos paramilitares para
auxiliar nas atividades de repressão.
Por outro lado, a combinação entre
a corrupção dos órgãos policiais com o jogo do bicho e posteriormente o tráfico
de drogas criou estruturas de poder paralelas em cidades como o Rio de Janeiro,
onde a lei aplicada não é a oficial, mas a do potentado local.
Em ambos os casos os setores privilegiados
de recrutamento de homens e armas são as polícias civil e militar e as empresas
de segurança privada. Deve-se acrescentar a facilidade que o contrabando de
armas pesadas tem encontrado para operar no Brasil.
Entre os maiores atingidos estão todos
os não-cidadãos. Pessoas vivendo em nossa sociedade cujos direitos mais
elementares são negados na prática. Entre estas pessoas um dos grupos mais
atingidos são os meninos e meninas de rua.
Identifica-se aqui a situação
proposta por O'Donnell em relação à homogeneidade de penetração das
instituições do Estado de Direito [8] . Mesmo nos grandes centros urbanos da
região Sudeste uma parcela razoável da população não tem garantias de defesa
dos direitos civis básicos.
Devido a esta situação conjuga-se a
miséria com a violência familiar, levando os jovens a buscar as ruas. Nestas
ruas, além das formas tradicionais de violência sofridas, como a exploração
sexual, do trabalho ou mesmo do produto do furto, hoje se agregam outras,
passando da mutilação à eliminação física dos sujeitos atingidos por esta
violência.
O extermínio é em geral
caracterizado como "operação de limpeza", solicitada por comerciantes
incomodados com a presença dos meninos no local, identificando estes como
possíveis assaltantes, no presente ou no futuro[9].
Estas ações contam muitas vezes com
a conivência, passividade ou silêncio pelo medo, por parte da população local.
A concordância se embasa na negação de direitos humanos aos
"bandidos"[10].
A polícia em geral tentava explicar a ocorrência dos casos de extermínio
com "queimas de arquivo" ou disputa entre gangues. A pesquisa
realizada pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, IBASE e NEV-USP
( MNMMR/IBASE/NEV-USP, 1991) ajudou a desmascarar esta justificativa. A grande
maioria dos mortos não tinha antecedentes criminais, não portava armas ou
drogas quando foram mortos.
As tentativas de dar resposta à questão, a partir da pressão de
organismos e entidades internacionais como UNICEF e ANISTIA INTERNACIONAL
resultaram na elaboração de um plano de combate à violência, feito por um grupo
de trabalho do Ministério da Justiça e na realização de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito na Câmara dos Deputados. O plano a tingiu poucos
resultados práticos. A CPI contribui para trazer à questão para a ordem do dia,
mas ainda se aguarda que seus encaminhamentos e propostas surtam efeitos.
Por mais trágica que seja a situação, de nada serve
chorar. Temos que lutar por mudanças. Neste sentido deve ser reafirmada uma
relação direta entre democracia, cidadania e respeito aos direitos humanos. Um
não convive sem o outro.
A construção de uma ordem democrática e o resgate da cidadania da
população exige mudanças estruturais com a obtenção de uma ordem social mais
justa. Isso só será obtido com mobilização da sociedade e a construção de uma
nova proposta hegemônica de Sociedade. Pressionar o Estado e não apenas esperar
por ele.
O processo de construção da nova ordem deve ser concomitante com o
combate à violência cotidiana. Devemos denunciar e combater os atos de
violência para romper com o ciclo de impunidade.
As próprias crianças e adolescentes devem participar deste processo como
cidadãos ativos, buscando não uma superação individual da situação, mas coletiva
enquanto grupo. Não fazer por eles, mas com eles.
Um dos instrumentos que temos à disposição, atualmente, para esta luta,
é o Estatuto da Criança e do Adolescente e suas estruturas. Mas há outros,
tanto políticos como jurídicos, que devemos usar, buscando resultados efetivos
no presente e não esperando pelo futuro.
A mudança de forma e de conteúdo: o Estatuto da
Criança e do Adolescente e a Proteção Integral
A visão tradicional da questão da infância separava, sem qualquer
constrangimento, os ricos dos pobres. E estes últimos eram considerados
"caso de polícia". (Costa, 1991)
Estas talvez sejam palavras duras, mas reais, para descrever como
operava a doutrina da "situação irregular", consagrada pelo Código de
Menores. Eram regidas pelo Código as situações envolvendo crianças e
adolescentes em situação irregular, isto é, sejam os que praticaram atos
infracionais, seja os que não tinham condições de sustento garantidas pela
família. A resposta aos dois casos era a institucionalização, que no mais das
vezes era feita através das Fundações Estaduais do Bem-estar do Menor (FEBEMs)
A Constituição de 1988 e, após, o Estatuto da Criança e do Adolescente,
vêm consagrar a "doutrina da proteção integral", preconizada pela
ONU. Por esta visão todas as crianças e adolescentes devem ter especial atenção
para que obtenham proteção integral contra a violação de seus direitos.
São importantes de ressaltar duas mudanças: uma de conteúdo
jurídico-filosófico, outra de cunho simbólico. Quanto à primeira, crianças e
adolescentes passam a ser vistos como sujeitos de direitos, isto é, cidadãos
integralmente, e não apenas como objetos da atenção do Estado.
Em segundo lugar, o rompimento com a titulação de "menor".
Embora sob esta denominação estivessem incluídos todas as pessoas abaixo dos 21
anos (maioridade civil) ou 18 (maioridade penal), somente os miseráveis eram
assim tratados. Quando um meio de comunicação se refere ao "menor"
nunca o faz acerca de um filho de alguma família próspera da alta sociedade. O
Estatuto é da criança e do adolescente, porque aplica-se a todos, independente
de sua situação social.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) não é considerado
uma lei avançada apenas pelo discurso ou proposição de direito de condições de
vida para a juventude. Seu grande avanço é prever instrumentos para sua
viabilização. Entre os principais encontram-se os Conselhos de Direitos, os
Conselhos Tutelares e os Fundos da Criança. Como última instância é possível
ainda recorrer à ação civil pública para responsabilização de autoridades que,
por ação ou omissão, descumprirem o Estatuto da Criança e do Adolescente.
a)
Os Conselhos de Direitos da Criança e do
Adolescente - existem já o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do
Adolescente do Rio Grande do Sul - CEDICA e o Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente - CONANDA. Cada município deve formar seu Conselho
Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, sendo que já existem cerca
de 150 no Rio Grande do Sul.
Os Conselhos de Direitos são a execução prática do disposto no Art. 204 da Constituição Federal, garantindo a participação da população na formulação e controle das políticas de atendimento. Estão previstos no Art. 88 do Estatuto da Criança e do Adolescente, com a garantia de participação paritária para os representantes da sociedade.
O primeiro passo para a aplicação de uma política adequada de atenção à infância
é a criação e organização do Conselho Municipal de Direitos. Através dele será
possível formular e controlar a execução de políticas no interior do município
- não só dos órgãos municipais, mas também de órgãos públicos estaduais e
federais e organizações não governamentais de atendimento às crianças e
adolescentes[11].
O trabalho do Conselho facilita a articulação
com os programas de atendimento não-governamentais (por exemplo, os ligados às
Igrejas) para que as ações deixem de ser paralelas e descoordenadas.
b) Os Conselhos Tutelares - são órgãos não jurisdicionais encarregados
de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Faz parte
da proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente de desjurisdicionalização
das questões sociais envolvendo crianças e adolescentes. Desta forma retira-se
dos antigos juizados de menores, hoje juizados da infância e da juventude, as
funções de assistência social.
Assim os casos que envolvam violação dos direitos de crianças e
adolescentes são encaminhados ao Conselho Tutelar que busca soluções -seja
encaminhamento ao Ministério Público ou Judiciário, quando necessário, seja no
trabalho junto à família e comunidade, seja requisitando serviços públicos.
O Conselho Tutelar é formado por 5 pessoas, eleitas pela comunidade em
processo organizado pelo Conselho Municipal de Direitos. Seus direitos e
vantagens, inclusive remuneração, devem ser definidos em lei municipal. As
competências estão no Estatuto da Criança e do Adolescente. Sua infra-estrutura
deve ser fornecida pelo Poder Público Municipal.
Fundamentalmente é uma forma de comprometer as
comunidades com a solução de seus problemas, rompendo com a política de
"exportação", que consistia em enviar à Fundação Estadual do
Bem-Estar do Menor (FEBEM) os jovens considerados problemáticos, e com a
impunidade nas violações de direitos, devidas à dificuldade de acesso ou falhas
na atuação de autoridades públicas.
c) Os Fundos da Criança e do Adolescente - cada Conselho de Direitos
deve ter vinculado a si um Fundo, conforme previsão do Estatuto da Criança e do
Adolescente, como instrumento de captação de recursos.
Sabe-se que uma política de atendimento custa dinheiro e que os recursos
em geral são escassos. Para permitir uma dilatação dos orçamentos destinados à
área da infância e juventude foram idealizados os fundos.
Como fontes de recursos há a possibilidade de obter doações de pessoas
físicas e jurídicas, mediante o desconto no imposto de renda; o recebimento de
multas aplicadas pela Justiça nas violações do Estatuto da Criança e do
Adolescente; contribuições de organismos internacionais e o repasse de recursos
estaduais e federais (destacava-se a Fundação Centro Brasileiro para a Infância
e Adolescência (FCBIA), órgão do governo federal na área da infância, extinta
por ato do Presidente em 1 de janeiro de 1995.), além do orçamento público.
Estes recursos podem ser utilizados para a manutenção dos programas de
atendimento de entidades não-governamentais conveniadas bem como manter ações
especiais do município visando à cobertura de lacunas das políticas básicas.
A aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente é uma forma de
coibir a violência contra crianças e adolescentes. Mas além das causas
estruturais da violência, há medidas a serem tomadas nos casos individuais.
A tomada de medidas, em qualquer caso, depende da comunicação a alguma
autoridade da existência do fato. As demais providências dependerão das
possibilidades de apuração do ocorrido e identificação de responsabilidades.
Primeira limitação: cada vez
mais fica demonstrado que grande parte dos atos de violência contra crianças e
adolescentes ocorre dentro da família. Por isso esta violência fica oculta, sendo
mantida na obscuridade por uma cortina de medo e constrangimento emocional.
Segunda limitação: o desenvolvimento na Sociedade de um sentimento de
tolerância ou mesmo cumplicidade com a violência, aliado ao individualismo que
busca apenas a defesa dos interesses pessoais, vendo no direito violado do
outro um fato no qual não devemos nos envolver.
Nestas condições, muitos dos atos de violência praticados e
testemunhados não são levados ao conhecimento das autoridades, não chegando nem
ao menos a existir, sob a ótica do mundo jurídico.
Terceira limitação: a estrutura, muitas vezes
precária e burocratizada, das instituições com competência para receber as
denúncias. Assim, mesmo que algum cidadão mobilize-se e leve à autoridade a
comunicação do fato, este poderá ter de esperar horas para ser atendido, sendo
tratado às vezes como se ele fosse o agressor e não o outro. E a comunicação
poderá cair na vala comum das demais ocorrências, vindo a ser investigada nas
semanas ou meses após, quando a providência já poderá ser tardia (não se
falando de quando não há interesse que a apuração seja feita).
Quarta limitação: a inexistência de garantias para o autor da denúncia
ou para as testemunhas. Os interesses envolvidos e a periculosidade do agressor
ou agressores podem colocar em risco a vida daqueles que se dispõe a
testemunhar. A inexistência de garantias leva ao ocultamento, devido ao medo.
Digamos que seja possível passar esta primeira fase para o fato seja
apurado e apontado aos responsáveis.
Neste caso a possibilidade de aplicação das medidas de proteção previstas no
Estatuto da Criança e do Adolescente é limitada pela inexistência, na
esmagadora maioria de nossas cidades, dos serviços de apoio necessários.
Por outro lado, a aplicação das penas previstas na legislação penal além
de não contribuir para o resgate do direito violado, pode expor o agredido a
retaliações futuras do agressor.
Estas considerações longe de desvalorizar os caminhos legais, visam
abrir os olhos para a necessidade de outras mudanças, paralelas à legislação,
para que essa possa ser eficientemente aplicada.
Em primeiro lugar é necessário investir na mudança de mentalidade da
Sociedade, reforçando as noções de solidariedade e comprometimento com os
demais membros da comunidade, que é pressuposto para trazer à tona as agressões
que ocorrem no dia-a-dia.
A reestruturação das instituições responsáveis pela apuração dos fatos e
aplicação de medidas, não só enquanto organização burocrática, mas também na
formação de seus recursos humanos, é imprescindível.
E aqui não se inclui apenas o aparato policial, tradicionalmente citado
nestes casos, mas o Judiciário, o Ministério Público, a criação de uma
verdadeira Defensoria Pública, mudanças nos hospitais, escolas, casas de abrigo
e outros programas, e mesmo no tipo de formação dado nas Universidades aos
profissionais que irão atuar nestas áreas. Necessário também a mudança do
sistema penitenciário, que hoje é punitivo e desumano, e não reeducativo, além
de uma maior utilização das penas alternativas (como a prestação de serviços à
comunidade).
Junte-se a isso o rompimento da impunidade existente - neste caso não a
propalada impunidade dos inimputáveis, mas a verdadeira impunidade dos
responsáveis pela violência que, por distorções no uso do poder ou incapacidade
do Estado, não sofrem as conseqüências legais de seus atos.
Cada uma de nossas instituições poderá fazer uma parte desta imensa
tarefa na sua área mas, fundamentalmente, é unidos e mobilizados para a mudança
que será possível levar a cabo transformações na Sociedade. E, desta forma,
conquistar a existência do que poderia ser realmente um Estado de Direito -
conceito que apenas de forma tênue se parece com o quê vivemos hoje - onde
cidadania e direitos humanos sejam plenamente respeitados e a democracia seja
uma realidade e não apenas um discurso.
Notas:
[1] Neste texto é considerada violência toda forma de
negação de direitos contrária à garantia de proteção integral à infância e juventude,
assegurada pelo artigo 227 da Constituição Federal
[2] A
escala vai do pior (Afeganistão = 1) ao melhor (Finlândia = 131).Segundo UNICEF
– 1990
[3]
Barcelos, 1986
[4] Fausto
e Cervini, 1991
[5] A
Comissão Especial de Controle e Prevenção ao Extermínio do Conselho Estadual
dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio Grande do Sul adotou a seguinte
definição de extermínio: "Extermínio é uma execução sumária e proposital
de pessoa menor de 18 anos com a finalidade de eliminar a causa de ações vistas
como inadequadas ou pelo fato de estar em situação de risco".
[6] O estudo de Yunes compara a mortalidade por causas
violentas entre diversos países das América. Em 1986 o Brasil era o segundo em
mortes por acidentes de trânsito - 21,4 contra 24,4 da Venezuela, segundo em
homicídios - 14,8 contra 19,5 do México e o sétimo em suicídios, com 3,1 contra
os 12,8 dos EUA, em primeiro ( taxa por 100.000 habitantes, considerados os
mortos entre 5 e 24 anos).
[7] Weber,
1984.
[8] O'Donnell
propõe uma visão alternativa à análise da existência de democracia nos países
como uma realidade homogênea. Propõe um mapeamento entre as áreas
"azuis", onde a lei e os direitos seriam garantidos e as áreas
"marrons", onde estas garantias seriam fracas. Por exemplo, boa parte
do nordeste do Brasil seria uma área "marrom".
[9] Faleiros,
1993.
[10] Caldeira,
1991
[11] vide obrigatoriedade de
registro de entidades e inscrição de programas, arts. 90 e 91 do Estatuto da
Criança e do Adolescente.
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