FALTA VONTADE POLÍTICA PARA GARANTIR OS
DIREITOS DE CIDADANIA DAS CRIANÇAS
Antônio
Carlos Gomes da Costa [*]
O Brasil caminha para o século XXI sem
experimentar, concretamente, nenhuma forma de organização econômica, social e
política que contemple, ainda que em bases mínimas, o atendimento às
necessidades fundamentais do conjunto de sua população. O modelo de
desenvolvimento adotado é injusto e excludente, condenando à
subcidadania mais de um terço de seu povo. É um país
que se orgulha de ser a 8a economia do mundo capitalista, mas não se
envergonha de ocupar o 57° lugar no
"ranking" internacional dos benefícios sociais.
Aqui, um menino sem casa, sem alimento e
sem escola faz parte de uma sociedade perversa, que fabrica computadores,
armamentos, aviões e navios, exporta gêneros alimentícios e apresenta bilhões
de dólares de superávit na sua balança comercial com o exterior. O estado de
degradação pessoal e social em que subsistem 32 milhões de crianças e adolescentes é uma conseqüência desta postura de alheamento.
O "menino de rua" é uma ilha cercada de omissões por todos os lados.
Nenhuma política pública básica funcionou em relação a ele.
O ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Edmar Bacha, sugeriu que o nome
do país fosse mudado para Belíndia, porque reúne as
características da Bélgica e da Índia, ou seja, do primeiro e do terceiro
mundos. A situação de nossas crianças é igual e diferente à que encontramos na
Somália. Mas os meninos mortos por inanição no Brasil e na Somália configuram
situações bem distintas. Lá, faltam recursos; aqui, vontade política.
Essa constatação nos leva a perceber que
o mais importante não é criar programas assistenciais para suprir a omissão
governamental, mas fazer um trabalho alterativo, que
leve as políticas públicas a reverem, na prática, a lógica pervertida de sua
atuação. Um passo importante já foi dado: a nova legislação brasileira fez uma
revolução de métodos, num ataque frontal ao assistencialismo, que vê na criança
apenas um ser portador de carências. Essa nova concepção torna a criança e o adolescente cidadãos com direitos, que são garantidos na
forma da lei por intermédio de recurso do Ministério Público. O Ministério
Público poderá fazer uma ação civil contra a autoridade administrativa pela não
prestação, ou prestação inadequada de serviço público obrigatório à criança e
ao adolescente. Portanto, a criança passa de portadora de carência para sujeito
de direitos exigíveis.
A nova lei dá às crianças o status de cidadania, que tem como
conteúdo básico os direitos civis, políticos e sociais. Os direitos sociais são
uma conquista nova na evolução histórica do Ocidente: surgiram no final do
século passado. Esses direitos reconhecem, por parte do Estado, deveres e obrigações
para com o bem-estar dos cidadãos. No contexto dos direitos sociais, a
cidadania está indissoluvelmente ligada ao cotidiano das pessoas, criando-se um
vínculo entre o Estado e o indivíduo. Daí é que decorrem as obrigações do poder
público, que deve prover os cidadãos de educação, saúde, moradia, transporte,
abastecimento, etc.
Mas o maior avanço do Estatuto da Criança
e do Adolescente, que regulamenta a conquista do art. 227 da Constituição,
ocorreu no campo da gestão das políticas para a infância e a juventude. É uma
inovação de sentido amplo, propondo uma nova divisão do trabalho social entre a
União, os Estados e os Municípios. Aumenta a responsabilidade dos municípios no
atendimento direto à criança e ao adolescente. Ao Estado, membro da Federação,
a missão de complementar aquilo que é atribuição do município, recursos
técnicos de especialização, ajuda financeira.
O papel do Estado é, pois, supletivo,
enquanto a União deverá elaborar as normas gerais e fazer a coordenação
nacional da política ao menor. As normas gerais são o papel normativo da União,
coordenação, apoio técnico e financeiro, inclusive às organizações não
governamentais com atuação neste campo. Um aspecto importante é que o Estatuto
da Criança e do Adolescente regulamenta aquilo que está no artigo 204 da
Constituição: a participação da população, por meio de suas organizações
representativas, para exigir e garantir os direitos das crianças.
Essa participação abre um espaço inédito para a cidadania se
introduzir na questão direta das políticas públicas, dos negócios de Estado.
Para isso, o Estatuto prevê os conselhos: nacional, estaduais
e municipais dos direitos da criança e do adolescente. Conselhos
deliberativos, paritários, normativos, formuladores
de política e controladores das ações em todos os níveis. Os conselhos são uma
verdadeira revolução e trazem uma grande esperança. É um mecanismo que introduz
um controle da sociedade civil sobre o Estado e cria uma transparência inédita no gasto social público. Garante também a
liberação de recursos e controle social de seu possível desvio, prática comum
no Brasil.
Já existem mais de mil conselhos e muitos municípios estão se articulando para adorar essa forma de gestão. No entanto, geralmente depois de empossados, os conselheiros se revelam incapazes de assumir o importante espaço que a legislação lhes abriu. De maneira que temos hoje o desafio de capacitar politicamente representantes da população, para que possam lutar pelos direitos das suas crianças e adolescentes.
Isso implica o desenvolvimento de um novo
tipo de acesso aos governantes, que não seja a subserviência ou a negociação
eleitoral, o clientelismo e o fisiologismo. É preciso uma nova capacidade de inter-locução, uma negociação objetiva, baseada na
mobilização da sociedade e nos dados de uma análise real da situação da criança
em cada município. Será necessária também uma capacidade de pressão, porque o
poder público, nós sabemos, funciona melhor sob pressão. Necessitamos de uma
criatividade institucional e comunitária, que nos permita
superar as dificuldades pelas quais o Brasil está passando.
A atitude de uma consciência política se
torna ainda mais importante se considerarmos que existe um abismo entre a lei e
a realidade, entre o país legal e o país real. Porque, se não lutarmos
efetivamente pelos direitos da criança, os avanços conseguidos pela
Constituição poderão ficar apenas no papel, sem aplicação prática.
O conjunto das leis e programas criados
pelo poder público, para distribuir bens e serviços destinados a garantir os
direitos sociais dos cidadãos, constitui a vertente social do Estado. A
política social, neste enfoque, é a estrutura de leis, compromissos, princípios
e valores que presidem o funcionamento do ramo social do Estado.
No que se refere à política social,
podemos distinguir duas instâncias básicas de ação estatal. A primeira se
expressa pelas políticas sociais básicas: trabalho, educação, saúde, habitação,
transportes, abastecimento, lazer. Representam ações que configuram a qualidade
de vida de um povo e, portanto, devem ser universalizadas. A outra se
materializa nos programas e ações de assistência social, motivados pelas
desigualdades sócio-econômicas. A assistência social traz a questão da pobreza
para o âmbito das políticas públicas, fazendo surgir o aparelho assistencial do Estado. A política assistencial dirige-se
para uma esfera restrita, não se voltando para o conjunto dos cidadãos.
Os destinatários da política de
assistência social são pessoas, famílias e coletividades excluídas das políticas sociais básicas (trabalho, educação, saúde,
etc.). Tornam-se cidadãos de segunda classe, expostos à doença, à degradação
pessoal e social, caindo no universo das chamadas situações de risco. A política de emprego e
salário justo, habitação, saneamento básico e urbanização falhou
completamente para eles. Igualmente, educação e saúde passaram ao largo de sua
existência.
Os 32 milhões de crianças e adolescentes
de zero aos 17 anos, que hoje subsistem em situação de miséria em nossas
cidades não são fruto do acaso. E a única política pública que vêm recebendo é
a de segurança pública, do olhar armado da polícia, que age condicionada pela imprensa e pela
opinião pública. Mas a segregação social na vida dos jovens das camadas
mais pauperizadas começa já na concepção. De fato,
nascer numa família cuja renda não chega a 0,4 salário mínimo per capita
equivale a uma primeira triagem selvagem, que anualmente
divide a sociedade brasileira em dois grandes grupos: o dos cidadãos e o
dos subcidadãos.
A subcidadania
tem muitas faces: subnutrição, submoradia,
subemprego, subeducação. Mais de 60% da nossa
população, segundo HÉLIO JAGUARIBE, subsiste nos limites da pobreza e da
miserabilidade. Ser relegado à condição de subcidadão
é a triagem inicial – as outras virão por acréscimo. Escapa-se da mortalidade
infantil por diarréia e outras doenças evitáveis, formas de triagem que excluem
do direito à vida aproximadamente 320 mil crianças por ano em nosso País, o pequeno
subcidadão deverá enfrentar a subnutrição.
Mais de 40% das crianças que ingressam na
rede pública de ensino não chegam à segunda série. Esse dado dramático nos faz
constatar que a escola pública brasileira está funcionando como o maior restaurante do mundo, além de ser um
imenso centro de triagem social do País. Um centro que segrega da aquisição dos
instrumentos básicos da cidadania (o saber ler, escrever e contar) milhões de
pequemos brasileiros.
As únicas portas que se abriram para
essas crianças são as do submercado de trabalho
(explorador, irregular e mal remunerado). Cerca de 400 mil famílias brasileiras
dependem unicamente do trabalho de meninos. Vivemos a fase juvenil da Revolução
Industrial européia. O trabalho urbano de meninos e meninas freqüentemente tem
a rua como cenário, outro forte lugar de triagem, uma triagem difusa e
implacável, que vai dividindo os pequenos trabalhadores. Há os que trabalham em
estabelecimentos irregulares, os que labutam nas ruas e os que não conseguem
escapar da mendicância, furto, roubo, tráfico e prostituição.
Um traço importante nessa triagem de rua
é aquele que separa os meninos que vão se manter no campo da aceitabilidade
social, ainda que com pequenas incursões no território do delito, daqueles que
entram em curso de colisão com a moralidade e a legalidade vigentes na
sociedade marginalizadora. É aqui, precisamente, que
tem início o ciclo perverso da
institucionalização compulsória - um ciclo marcado por muitas triagens.
A Justiça, na vigência do Código de
Menores, funcionava como o nexo legalmente fundamental na articulação do ciclo
da institucionalização compulsória, é, também ela, um lugar de triagem. A
triagem longe de ser apenas uma prática institucional,
restrita ao âmbito de um centro especializado, é uma ação social difusa.
De fato, são inúmeros os mecanismos de exclusão e degradação pessoal e social a
que estão expostas as crianças e jovens das famílias mais pobres.
Entendemos que as práticas correcionais-repressivas e assistenciais, bem como a
organização irracional e desumana, ainda prevalecentes em relação à juventude
pobre, transitam na contramão do processo de reconstrução democrática da vida
nacional. Urge, pois, reverter essa tendência, introduzindo-se componentes
sócio-jurídicos e político-culturais de tipo novo,
capazes de reverter pela crítica e superar pela ação o quadro de iniqüidades
que presenciamos no Brasil.
A política social brasileira nas últimas
décadas caracterizou-se mais pela manutenção e garantia do controle social do
que por uma busca efetiva e plena do desenvolvimento social. Assim, os
programas caracterizam-se pela busca de convergências entre estratégias de
dominação do Estado e as estratégias de sobrevivência das camadas mais carentes
da população. Políticas sociais básicas, como as da saúde e da educação,
conheceram um sistemático processo de esvaziamento no contexto do orçamento da
União. Para compensá-las o governo criou os mecanismos de compensação; assim, o
Mobral surgiu na esteira do fracasso do sistema educacional.
Por estarem geralmente na área federal e
atuarem nas periferias urbanas e áreas rurais, tais programas demandam, do
ponto de vista organizacional, pesadas, lentas e
dispendiosas estruturas burocráticas e administrativas, que consomem a maior
parte dos recursos em sua própria manutenção. Politicamente, os programas
sociais compensatórios são desmobilizadores, uma vez
que aglutinam as comunidades em torno de objetivos imediatos, sem propiciar
espaços para o crescimento de sua compreensão crítica e de sua ação
transformadora da realidade social.
Para reverter esse quadro, precisamos
encetar uma luta em duas frentes: no plano externo, por uma ordem econômica
internacional mais justa e equitativa; internamente,
por uma política social que seja verdadeiramente representativa e auto promotora. Está chegando ao fim o caráter necessário da
vinculação luta-atendimento nos esforços dados à promoção e defesa dos direitos
da pessoa humana e da cidadania das crianças e jovens expostos à violência
social e individual. A luta pelos direitos deverá ir assumindo, rapidamente, a
centralidade no movimento em favor da criança marginalizada no Brasil.
É preciso ''desconstruir" as estruturas remanescentes da política de "bem-estar
do menor''. Nossas propostas de mudanças se apóiam em seis pontos básicos:
vontade política do governo; capacidade de articulação interinstitucional;
elaboração conjunta de propostas de trabalho; capacitação de pessoal; recursos
para garantir a atuação logística; criação de mecanismos permanentes de
acompanhamento e avaliação.
Mais do que de dinheiro, uma política de
direitos humanos depende fundamentalmente de vontade política e competência técnica. É essencial: sem isso, uma
proposta de mudança não consegue superar a indiferença, a resistência passiva,
o negativismo e a hostilidade de interesses corporativos, fisiológicos e
clientelísticos.
O trabalho social e educativo dirigido às
crianças e jovens em situação de risco exige uma conduta interinstitucional das
ações. Nenhuma das instituições envolvidas (polícia, justiça de menores,
bem-estar social) pode enfrentar isoladamente a tarefa de promover a integração
do jovem carente na cidade, com seus direitos de plena cidadania. A articulação
interinstitucional deve ter uma proposta de superar as divergências e
antagonismos entre as instituições, sendo capaz de coordenar as ações em função
de um objetivo comum.
Para garantir os mecanismos permanentes de acompanhamento e avaliação, faz-se necessário incentivar a investigação científica dos programas em curso, a fim de orientar a atuação dos coordenadores e financiadores. Mas isso não será possível sem pessoal capacitado, apoio político, material e financeiro.
Os governos não se empenham em relação aos quatro primeiros itens (vontade política, articulação interinstitucional, proposta de trabalho integrado e capacitação de pessoal) porque temem que tudo se frustre pela falta de recursos materiais. Na verdade, o que falta é coragem, determinação e disposição para enfrentar as resistências.
Por meio da correta articulação desses
fatores, poderemos vencer os obstáculos que nos impedem de dar um salto
qualitativo no respeito aos direitos humanos e de cidadania das crianças e
jovens em situação de risco pessoal e social.
* Presidente da Fundação Centro
Brasileiro para a Infância e Adolescência – Ministério da Ação Social-Brasil
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