A NECESSIDADE DE CRIAÇÃO DE PROMOTORIAS DE JUSTIÇA EXCLUSIVAS DA INFÂNCIA
E JUVENTUDE EM OBEDIÊNCIA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRIORIDADE ABSOLUTA
Andréa Santos Souza
Promotora de Justiça, SP.
1. Considerações iniciais
O Estatuto da Criança e do Adolescente completou 11 anos de vigência, mas ainda não foi totalmente implantado, ou não teríamos hoje em dia crianças menores de 11 anos de idade em situação de risco, sem direitos fundamentais garantidos, como saúde, educação, convivência familiar. Conseqüentemente, teria havido redução no número de adolescentes em conflito com a lei e, aos existentes, seriam aplicadas medidas sócio-educativas eficazes, executadas com a qualidade exigida pelo Estatuto.
O desconhecimento e a má interpretação do Estatuto são flagrantes, até mesmo entre os profissionais do Direito que têm a função legal de aplicá-lo, como Juízes de Direito e Promotores de Justiça com atribuições para os assuntos da Infância e Juventude. É raro encontrar advogado com especialização nessa área do Direito. Esse desconhecimento dos mecanismos do ECA e dos princípios que o norteiam leva a críticas distorcidas, especialmente as que atribuem a essa norma legal a responsabilidade pelo aumento da criminalidade, em razão de suposta impunidade dos adolescentes. Daí resulta movimento freqüente pela redução da idade de imputação penal, que arrebanha número cada vez maior de adeptos.
É triste reconhecer que, mesmo entre os operadores do Direito da Infância e Juventude, existem os que compartilham das duras críticas feitas ao Estatuto, que, como dito, ainda não teve plena vigência e, portanto, não pode demonstrar toda a potencialidade de transformação da sociedade de que é imbuído.
Essa distorção de interpretação se dá, na maior parte das vezes, porque os Promotores de Justiça com atribuição na área da Infância e Juventude possuem outros sem-número de processos, em áreas consideradas mais importantes ou mais urgentes, como família, cível, criminal, comercial, fiscal, eleitoral, etc., com prazos mais exíguos e advogados que cobram o tempo todo o estrito cumprimento deles.
2. O princípio constitucional da prioridade absoluta
A Constituição Federal dispõe em seu artigo 227, “caput”:
“é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”
Como é triste reconhecer quão distantes estamos do efetivo cumprimento do mandamento constitucional!
Pela redação do referido artigo da Constituição Federal conclui-se que os direitos constitucionais da criança e do adolescente devem ser garantidos por todos, inclusive por nós, Promotores de Justiça, com prioridade sobre todos os demais direitos que sejam objeto de processos judiciais.
E com prioridade qualificada, ou seja, absoluta !
O Ministério Público é reconhecidamente uma instituição de vanguarda. Está presente de forma atuante em todas as mudanças significativas por que vem passando a sociedade brasileira, seja fiscalizando o cumprimento da Constituição Federal, seja investigando e punindo os governantes que se afastam da probidade administrativa. Também esteve presente na elaboração de leis mais democráticas e que garantem direitos fundamentais aos cidadãos, entre elas o Estatuto da Criança e do Adolescente.
O Estatuto da Criança e do Adolescente representa avanço sem precedentes para os direitos da infância e não podemos perder essas conquistas. De outra parte, só a lei não basta. Há de existir esforço contínuo para sua efetiva implantação, para só então ser possível avaliar possíveis lacunas ou situações que mereçam ser revistas.
Para isso, mister se faz que cada Promotor de Justiça com atribuição na área da Infância e Juventude assim atue de forma exclusiva, com dedicação integral ao assunto, aos problemas de sua comarca nesta área, com seu tempo inteiramente dedicado ao próprio aperfeiçoamento na matéria e aos contatos com a comunidade, visando a efetiva implantação do sistema de garantias previstos no Estatuto, assim como o desenvolvimento de medidas sócio-educativas de qualidade para os adolescentes de sua comarca.
Em todos os campos de atuação dos Promotores de Justiça a especialização faz-se necessária hoje em dia, seja pela complexidade que os assuntos vêm adquirindo, seja pelo volume de serviço, que é atenuado pela repetição dos mesmos temas e pela experiência que se adquire com a atuação concentrada numa determinada área. Sendo assim, a especialização conduz a uma melhor qualidade do serviço aliada a uma resposta mais rápida e eficiente - isso já descobrira Henry Ford, no início do século, com sua “linha de montagem”.
Todavia, só na área da Infância e Juventude a especialização (aqui entendida como a dedicação exclusiva dos operadores do Direito neste campo) é preceito constitucional, decorrente do princípio da prioridade absoluta. Princípio este que foi repetido pelo artigo 4º, parágrafo único, “b” do ECA, que diz:
“A garantia de prioridade compreende : ... “b” - precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública.
Ora, é certo que a prestação jurisdicional e as investigações feitas pelo Ministério Público na área da infância e juventude são serviços públicos; sendo assim, os feitos relativos à infância deveriam ter prioridade sobre todos os demais, o que efetivamente não ocorre em quase nenhuma comarca do país. Ao contrário, não é raro que os processos “de menores” sejam os últimos a ser examinados, a menos que tratem de situação bem emergencial.
Como podemos exigir dos administradores municipais que respeitem o princípio da prioridade absoluta quando nós próprios não o fazemos? Se não aceitamos suas escusas de que “não há verba” para a implantação de determinado programa de atendimento, também não podemos usá-la como desculpa para nós próprios.
Com a especialização de todas as Promotorias de Justiça com atribuição na área da Infância e Juventude, teríamos uma grande equipe de operadores do Direito, trabalhando com dedicação exclusiva em matéria de sua especial vocação (porque ninguém ocuparia um cargo desses sem esse interesse particular) empenhada na efetiva implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente e, principalmente, na garantia dos direitos fundamentais das crianças brasileiras, único meio de se atingir o exercício pleno da cidadania em nosso país.
Estamos conscientes das dificuldades para a criação de Promotorias de Justiça exclusivas para a Infância e Juventude em cidades menores, onde o volume de serviço é pequeno. A solução para tanto seria a criação de cargos regionais, em que um Promotor de Justiça teria uma atribuição exclusiva na área, que abrangeria mais de uma comarca.
A tese de Promotorias de Justiça especializadas da Infância e Juventude em todas as comarcas não é mera utopia, pois está fundamentada em princípio constitucional. O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a criação de varas especializadas, no artigo 145, que assim dispõe:
“Os Estados e o Distrito Federal poderão criar varas especializadas e exclusivas da infância e juventude, cabendo ao Poder Judiciário estabelecer sua proporcionalidade por número de habitantes, dotá-las de infra-estrutura e dispor sobre o atendimento, inclusive em plantões”
O princípio da prioridade absoluta de atendimento da criança e do adolescente pelos serviços públicos, no âmbito judicial, a meu ver, só estaria sendo perfeitamente respeitado com a atribuição e a competência exclusivas tanto dos Promotores de Justiça quanto dos Juízes de Direito. Todavia, o Ministério Público, como instituição autônoma que é do Poder Judiciário, não precisa necessariamente estar adstrito às normas de organização judiciária dos Estados. É perfeitamente possível a existência de Promotorias de Justiça especializadas na área da Infância e Juventude com atribuição perante Juízes de Direito da Infância, mas que assim atuam de forma cumulativa com outras áreas.
Cabe mais uma vez ao Ministério Público exercer sua vocação de instituição de vanguarda na defesa dos direitos dos cidadãos e de respeito aos preceitos constitucionais e encontrar formas de reestruturação dos cargos existentes e de criação de outros, inclusive regionais, com atribuição exclusiva na área da Infância e Juventude, para o efetivo cumprimento do princípio constitucional da prioridade absoluta da criança e do adolescente.
3. Conclusões
1. A Constituição Federal determina que os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes sejam garantidos pela família, pela sociedade e pelo Estado com prioridade absoluta sobre todos os demais (art. 227, “caput”)
2. O Estatuto da Criança e do Adolescente repete esse princípio e inclui a precedência no recebimento dos serviços públicos como forma de garantia dessa prioridade (artigo 4o., parágrafo único, “b”)
3. Os Promotores de Justiça com atribuição na área da Infância e Juventude não têm condição de respeitar o princípio da prioridade absoluta e de assegurar a efetiva garantia dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes de sua comarca devido ao elevado número de processos das outras áreas de atuação.
4. A criação de Promotorias de Justiça com atuação especializada e exclusiva na área da Infância e Juventude em cada comarca é a forma de se dar cumprimento ao preceito constitucional de prioridade absoluta no recebimento do serviço público por nós prestado, bem como a única maneira de se efetivar a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente e assegurar os direitos fundamentais de todas as crianças do país.