FAMÍLIA
VIVIDA E PENSADA NA PERCEPÇÃO DE CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE RUA
Maria Angela Mattar Yunes
Doutora em Educação, RS.
Maria de Fátima Abrantes Tavares
Historiadora, SP.
Maria Rosaura de Oliveira Arrieche
Pedagoga, RS.
Lucimeri Coll Faria
Pedagoga, RS.
Resumo: A violência no ambiente familiar é um dos motivos mais citados por crianças e adolescentes em situação de rua para justificar o abandono do lar. O presente estudo visa a investigar como as crianças e adolescentes nesta condição percebem suas famílias. Foram entrevistadas 50 crianças e adolescentes, 27 nas instituições e 23 nas ruas. Apesar das diferenças nas percepções entre institucionalizados e entrevistados nas ruas, os dados revelam que a maioria apresenta sentimentos de afeto e aceitação alternados com indicações de maus tratos e rejeição dos familiares. Desta forma, os resultados sugerem que diferentes significados de família são construídos por estas crianças e adolescentes durante o processo de desenvolvimento. Pode-se constatar oscilações na forma de conceber uma família pensada - ou idealizada, referencial, corpo de regras - e a vivida - a que se desvela na realidade do cotidiano, principalmente no caso das crianças e adolescentes que vivem nas instituições.
Palavras-chaves:
família, criança em situação de
rua, desenvolvimento
Abstract: Home violence is one of the reasons most frequently mentioned by street
children to justify home abandonment. The present research aims to investigate
how children under this condition perceive their families. Fifty children from
two groups were interviewed: twenty-seven were in the institutions and
twenty-three in the streets. Although the perceptions of the two groups of
children were different, the results showed that most of them expressed
affection and acceptance shifted with maltreatment and rejection toward their
families. Therefore, the results suggest that these children along the developmental
process construct different meanings of family. There are clear evidences of
the oscillation in their conceptions of a thought family - idealized, referential, setting of social norms
- and a lived family - the one that
comes up in everyday life, mainly in the case of children who live in the
institutions.
Key words: family,
street children, development
Freqüentemente, os estudos que buscam compreender os motivos que levam as crianças a viver nas ruas citam uma multiplicidade de razões para explicar esta preocupante questão (Bandeira, Koller, Hutz & Foster, 1994, Martins, 1996, Rosemberg, 1996, Yunes, Arrieche & Tavares, 1997). A complexidade do tema tem evidenciado a multideterminação e a interelação de causas que levam as crianças e adolescentes às ruas, o que dificulta sobremaneira a tomada de decisões interventivas. Conforme lembra Aptekar (1996), não se pode ignorar o papel da cultura nesta busca de explicações, pois a origem das crianças nas ruas varia com as características e circunstâncias sociais, políticas, econômicas e históricas de cada população. Mas, em geral, as hipóteses mais freqüentemente citadas pelos estudiosos são a miséria urbana com suas conseqüências sociais, e o abandono, abuso, violência ou negligência das famílias (Bandeira e cols., 1994; Lusk, 1992; Patel, 1990; Yunes e cols., 1997). Qualquer que seja a hipótese mencionada, fica claro nos vários estudos que a maioria das crianças não quebra o vínculo familiar de maneira abrupta, e sim, deixa suas casas de maneira gradual pela necessidade de pertencimento a um grupo (Aptekar, 1988b; Connoly, 1990; Felsman, 1981; Visano, 1990). Portanto, crianças e adolescentes em situação de rua parecem ser o resultado de um longo processo de enfraquecimento dos laços afetivos com as figuras familiares mais próximas, muitas vezes agravado pela não-disponibilidade de outros sistemas de influência na comunidade. Estes outros sistemas, tão bem apresentados pela perspectiva ecológica de desenvolvimento de Bronfenbrenner (1996), deveriam funcionar como uma rede de apoio social. Dentre estes sistemas, destaca-se a escola, que, ao lado da família, deveria desempenhar seu papel de proteção no desenvolvimento da criança. Entretanto, na realidade brasileira, como bem ressalta Fonseca (1995), "a escola não exerce uma influência suficiente para estabilizar a trajetória da criança, e portanto não há como ancorar a criança na residência" (p. 31). O resultado tem sido um crescimento descontrolado do número de crianças e adolescentes afastados tanto do ambiente doméstico como do educacional.
A ênfase na família como um dos contextos de desenvolvimento mais importantes e cruciais para os indivíduos que nela vivem é uma das questões mais antigas e de consenso na Psicologia, na Antropologia, na Sociologia e em outras áreas das Ciências Sociais e Humanas. À família cabe em primeira instância o direito e obrigação de zelar pelo bem-estar de sua prole, ou, em outras palavras, cuidar dos filhos. A ela são atribuídas muitas responsabilidades e deveres, como pode ser observado no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), que assegura à criança "o direito de ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária .." (Art. 19, Cap. III). Fica implícito pelo texto que da instituição "família" é esperada a função de formação e/ou papel de facilitadora do desenvolvimento saudável da criança ou adolescente. No entanto, muitas crianças e adolescentes abandonam suas famílias e elegem a rua como refúgio dos abusos sofridos e talvez até como a única solução de seus problemas. Crianças e adolescentes provenientes de diferentes localidades fazem as mesmas afirmações quanto às suas vidas em ambiente familiar, e reforçam a idéia de que a violência e os conflitos são a tônica das relações interpessoais (Bandeira e cols.,1994; Patel, 1990; Tyler & Tyler, 1996; Yunes e cols., 1997). Por outro lado, estar na rua significa estar exposto a um cotidiano com outras modalidades de violência, que sem dúvida difere muito daquele que é experienciado por crianças que vivem protegidas por suas famílias e freqüentam a escola regularmente (Hutz & Koller, 1997; Yunes e cols., 1997).
Portanto, o que se deve considerar é que, em geral, as crianças e adolescentes em situação de rua são privadas por longos períodos do convívio com um ambiente de referência onde as relações interpessoais sejam afetivas, estáveis e de confiança. Porém, antes de tecer considerações psicológicas sobre as conseqüências "desastrosas" (ou não) deste fato no desenvolvimento das crianças, é preciso compreender como estas crianças e adolescentes percebem esta dinâmica e lidam com ela. Para tanto, é necessário conhecer os diferentes significados que a família tem para elas no decorrer do seu desenvolvimento e durante os períodos que passam nas ruas (Raffaelli, Koller, Reppold, Kuschick, Krum, Bandeira & Simões, 2000). Estes significados vão sendo socialmente construídos a partir das experiências vividas (Gergen, 1990) e através do sentido que é dado a elas. Kagan (1984) afirma que o efeito de uma experiência emocional significativa, como, por exemplo, a ausência prolongada do pai ou um divórcio realizado sob grande tensão, depende muito de como a criança interpreta estes eventos.
Nesta perspectiva, o significado emocional das experiências da criança na rua também dependerá de sua maneira de interpretar e perceber o mundo vivido, bem como dos modelos de interações formadas no núcleo familiar, na escola, nas ruas e nos outros segmentos de circulação dentro de seu espaço ecológico (Bronfenbrenner, 1996).
Szymanski Gomes (1988) desenvolveu um estudo sobre os significados de família num bairro da periferia de São Paulo, pelo qual pôde observar as ambigüidades nos discursos das pessoas sobre a forma de viver um modelo pensado de família e a realidade propriamente dita do grupo familiar com todas as suas dificuldades. A autora concluiu que existem dois significados que permeiam o ideário de família das pessoas: a família pensada e a família vivida, sendo a primeira baseada na tradição, uma noção que é trazida pelo grupo social, pelas instituições ou pela mídia. Já a família vivida refere-se aos modos habituais de agir dos membros que aparecem no cotidiano. A autora constatou ainda que o distanciamento entre o pensado e o vivido variava de uma família para outra, a depender da capacidade de crítica das pessoas, das condições impostas pela vida e da cultura familiar, entre outros aspectos. Em linguagem coloquial e com conotação valorativa, o modelo pensado seria o "certo, bom" e o vivido o "errado, ruim". Embora nem todas as pessoas vivam sob a tirania deste modelo pensado (Szymanski, 1992), em muitas famílias o modelo vivido pode ser totalmente oposto ao modelo pensado, o que leva algumas famílias a se desqualificarem como grupo e se sentirem incompetentes (Szymanski, 1998). A incorporação de novas crenças, expectativas e valores à cultura familiar dependerá do grau de abertura da família aos grupos de influência tais como amigos, grupos de trabalho e da comunidade (Bronfenbrenner, 1996; Szymansky, 1992).
A realidade vivida pelas famílias das crianças e adolescentes que vivem nas ruas ainda é um tema que merece atenção dos pesquisadores, pois as dificuldades práticas de encontrar as casas e conversar com as pessoas do grupo familiar e da vizinhança trazem problemas metodológicos de difícil solução. Em vista disso, o presente estudo visou a investigar como as crianças e adolescentes em situação de rua, institucionalizados e não-institucionalizados, percebem suas famílias. Para melhor entender algumas questões relativas ao desenvolvimento desta população, é preciso explorar não só a realidade objetiva dos fatos, mas entender as dimensões internas e os significados que as crianças e adolescentes dão às suas experiências de vida (Raffaelli, Koller, Reppold, Kusnchick, Krum & Bandeira, 1997; Raffaelli e cols., 2000). Nesta ótica, foram investigados alguns aspectos das relações das crianças e adolescentes com as figuras parentais, com ênfase nas experiências presentes e passadas do convívio familiar e das interações entre os membros. Foram pesquisados aspectos tais como: o vínculo familiar (pela freqüência das visitas ao lar), as expressões de lembranças da infância, a percepção da criança em relação à família como grupo e das figuras materna e paterna individualmente, expectativas e interações de cada entrevistado com o grupo familiar, separadamente com o pai e a mãe.
Método
Participantes
O presente estudo foi realizado na cidade de Rio Grande, localizada no extremo sul do Rio Grande do Sul (a cidade conta aproximadamente 180 mil habitantes). Inicialmente foi feito um levantamento das instituições e entidades locais que prestam atendimento à população em estudo na cidade. Foram encontradas na ocasião duas instituições: SORAN (Sociedade Rio-Grandina de Auxílio aos Necessitados) e CAM (Centro de Apoio ao Menor).
Foram entrevistados 50 crianças e adolescentes, 27 encontravam-se institucionalizados - 12 na SORAN e 15 no CAM - e 23 estavam em diferentes áreas, nas ruas do município.
Todos os entrevistados institucionalizados já haviam vivido nas ruas antes da institucionalização. A maioria daqueles entrevistados nas ruas (79%) contou que pernoitava em casa e o restante alegou ficar na rua por tempo integral. Muitos dos entrevistados (76%) são originalmente da cidade de Rio Grande. A maioria dos entrevistados era do sexo masculino (98%) (1), e tinha de 12 a 17 anos (94%). Mais da metade dos entrevistados era branco (58%), e o restante negro (32%) ou mulato (10%).
A grande maioria afirmou ter família (98%), e pouco mais da metade (56%) informou freqüentar a escola na ocasião do contato.
Procedimentos
Para realização das entrevistas, foram priorizadas as questões éticas ( Hutz, Koller, Bandeira & Foster, 1995; Hutz & Koller, 1999) e de abordagem das crianças, tanto para a entrevista realizada nas ruas como nas instituições (Gunther, 1989). Para tal, três entrevistadores foram selecionados e treinados para coletar os dados. Quando as entrevistas eram realizadas nas instituições, os entrevistadores solicitavam um espaço para que pudessem ocorrer individualmente. Na rua (praças públicas, praia, feiras-livres, logradouros públicos e estacionamentos de supermercado), após observação e um período de "namoro" seguido da constatação de que a criança ou jovem perambulava ou realizava pequenos serviços naquele local (do tipo guardar ou lavar carros) com certa freqüência, o entrevistador aproximava-se e "convidava" a criança ou adolescente a conversar, assegurando a confidencialidade do que fosse falado na entrevista. Após a concordância(2) em ser entrevistado, as verbalizações eram anotadas na íntegra no momento da entrevista. Observações posteriores ou comentários do entrevistador eram posteriormente registrados.
Material
O instrumento utilizado foi um questionário semi-estruturado com um roteiro básico elaborado em colaboração com o grupo de profissionais do CEP-RUA (Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Koller, Bandeira, & Raffaelli, 1995). O questionário constava de três partes, que compunham os momentos da entrevista:
a. dados de identificação:
b.sentenças abertas a serem completadas oralmente pelo entrevistado.
Em caso de frases reticentes ou pouco claras, o examinador fazia perguntas exploratórias, para facilitar a categorização das respostas.
c. questões específicas para levantar dados sobre o contato das crianças e adolescentes com a família. Por exemplo, foram investigados: a freqüência de visitas aos familiares, o motivo de abandono do lar (em casos de abandono), a freqüência de notícias de casa.
O
material referente às sentenças abertas tem sido utilizado em outros estudos
sobre crianças e adolescentes em situação de rua no Brasil (Raffaelli
e cols, 1997, 2000; Yunes e cols.,
1997) e provém de uma lista de 24 itens selecionados, traduzidos e adaptados
para estudos brasileiros (Raffaeli e cols., 2000). Nesta investigação, as seguintes sentenças
foram escolhidas por estarem de acordo com a temática do estudo: As pessoas
de quem eu gosto....; Eu queria que minha família....; Quando eu era pequeno,
minha família....; Minha família me trata ....; Acho que meu pai / mãe....; Eu
queria que meu pai / mãe....; Meu pai / Minha mãe e eu....
A categorização das respostas foi feita de acordo com alguns dos princípios da "grounded-theory" (Strauss & Corbin, 1990) (3). Tal metodologia qualitativa propiciou o levantamento e agrupamento de grandes categorias e subcategorias, a partir dos temas abordados na entrevista. Em todas as sentenças abertas, expressões tais como, "Não me lembro", "Nada", "Não sei" ou ausência de resposta pelo silêncio foram categorizadas como respostas evasivas. A freqüência das categorias foi quantificada em percentagens de acordo com o seu aparecimento nas respostas dos entrevistados.
Resultados
Os resultados obtidos mostraram diferenças nítidas entre as respostas das crianças e adolescentes que vivem em instituições e as dos que vivem nas ruas. A começar pela freqüência das visitas familiares das crianças e adolescentes institucionalizados, 31% sequer se lembravam de sua última visita, e apenas 23% estiveram com os familiares recentemente. A maioria (73%) declarou ter abandonado o lar por abuso, violência e brigas na família. Ao serem estimulados a citar pessoas de quem gostam, 42,3% elegeram pessoas fora da família (da rua, vizinhança, da instituição) como alvos de seu afeto.
Comparativamente, 79% dos entrevistados não-institucionalizados estiveram em casa há menos de uma semana, e 67 % afirmaram nunca ter fugido de casa. Poucos dentre os entrevistados na rua (23%) referiram-se às discórdias familiares, e muitos (62%) afirmaram seu afeto para com pessoas da família
Algumas lembranças infantis foram estimuladas a partir da sentença aberta "Quando eu era pequeno, minha família....". Conforme apresenta a Tabela 1, poucas crianças e adolescentes institucionalizadas referiram-se ao período de infância com citações de afeto em relação à família, enquanto que um terço dos entrevistados não-institucionalizados terminou a frase acima com palavras positivas, afetivas e de união.
Uma parcela considerável das duas populações (23% dos institucionalizados e 16,6% dos não-institucionalizados) escolheu fazer referência a fatos negativos, em que o relato enfocasse lembranças de separações, brigas ou violência no ambiente familiar. Respostas evasivas foram dadas por percentagens consideráveis de crianças e adolescentes entrevistados nas instituições (38%) e nas ruas (29%).
Tabela 1: Percentagens das categorias
referentes às lembranças da infância:
"Quando eu era pequeno, minha
família...."
______________________________________________________
Lembranças
Infantis
Inst. Ñ-inst.
______________________________________________________
Positivas
(afeto, união)
11,5
33,3
Negativas
(brigas, desunião) 23,0 16,6
Fatos do
cotidiano 26,9 20,8
Respostas
evasivas
38,4
29,1
_______________________________________________________
Ao
serem questionados sobre o tratamento recebido de seus familiares,
através da sentença aberta "Minha família me
trata....", a grande maioria afirmou que suas famílias mantêm para com
eles uma atitude positiva e de aceitação: 69,2% das crianças e adolescentes
institucionalizados e 70,5% dos não-institucionalizados disseram que são bem-tratados
pelas famílias. De qualquer modo, chama a atenção a
percentagem de crianças e adolescentes institucionalizados (19%) que
expressaram maus tratos por parte de seus familiares, em relação às crianças e
adolescentes não-institucionalizados (4,2%), fazendo referências a brigas,
discussões ou a serem tratados como "bichos".
Quanto à maneira de perceber as figuras parentais, importantes diferenças foram encontradas entre os entrevistados dentro e fora das instituições. Em primeiro lugar, quase a metade das crianças e adolescentes institucionalizados (46%) referiu a ausência do pai, como desconhecido ou falecido (vide Tabela 2), enquanto metade dos não-institucionalizados (50%) reconheceu a presença positiva do pai na dinâmica familiar, como legal e bom. Percentagens equivalentes a aproximadamente um quarto dos entrevistados de cada grupo apontaram qualidades negativas na figura paterna, tais como ruim, sem-vergonha, otário entre outras categorias semelhantes.
Já no que se refere à mãe, os resultados obtidos nas duas populações foram consistentes em demonstrar a alta freqüência de referências aos seus aspectos positivos como por exemplo: muito boa/legal "porque me cuidou/criou/me dá coisas". Deve-se ressaltar que um maior número de crianças e adolescentes entrevistados nas ruas (71%) declarou as qualidades positivas de suas mães em comparação com a percentagem de crianças e adolescentes institucionalizados (50%). Nenhum dos entrevistados não-institucionalizados relatou aspectos negativos da mãe ou a sua ausência. Entretanto, quase 20% dos institucionalizados falaram de uma mãe desconhecida ou falecida e 15% enfatizaram suas qualidades negativas, como ruim, agressiva ou alcoólatra (Tabela 2).
Tabela
2: Percentagens de respostas categorizadas sobre a percepção das figuras
parentais: "Eu acho que meu pai/minha
mãe...."
Pai Mãe
__________________________________________________________
Percepção Inst. Ñ-inst. Inst. Ñ-inst
__________________________________________________________
Características
positivas 23 50 50
70,9
Características
negativas 26,9
20,4 15,4 0
Desconhecido/
falecido 46,1
25 19,2 0
Respostas
evasivas 3.8 4,2 15,3 29,1
____________________________________________________________
O resultado da análise das respostas das crianças e adolescentes às sentenças abertas referentes às suas expectativas com relação ao grupo familiar (Eu queria que minha família....) demonstrou que os entrevistados não-institucionalizados enfatizaram com uma freqüência um pouco maior sua preocupação com a união da família (42,7%) do que os institucionalizados (30,8%). Desejos de mudanças, ou seja, de ter uma família diferente (mais legal, boa, com paz, com mais recursos materiais e de status sócio-econômico mais alto) foram expressos por proporções equivalentes das duas populações de entrevistados, conforme mostra a Tabela 3.
Tabela
3 : Percentagens de categorias sobre as expectativas das crianças e
adolescentes com relação ao grupo familiar: "Eu queria que minha
família...."
_____________________________________________________________
Inst. Não-inst.
_____________________________________________________________
União dos
familiares
30,8 42,7
Mudanças na família 42,1 37,5
Resp. evasivas 26,9 20,9
______________________________________________________________
Considerando-se as expectativas das crianças e adolescentes com foco nas figuras do pai e da mãe (Eu queria que meu pai/minha mãe....), percebe-se que uma parcela expressiva de entrevistados institucionalizados gostaria que o pai estivesse vivo (38,4%). Uma parcela significativa (26,9% e 33,3%) de ambas as populações estudadas pede por mudanças na conduta de seu pai, conforme mostra a Tabela 4. Exemplos das mudanças citadas são: fosse mais educado, mais inteligente, desse mais amor e carinho, trabalhasse e não fosse alcoólico. Quando se trata da mãe, os anseios das crianças e adolescentes concentraram-se mais na melhoria das suas condições de vida, já que 45,8% das crianças e adolescentes não-institucionalizados apresentaram respostas do tipo: Eu queria que minha mãe fosse rica/ tivesse dinheiro/fosse bem de vida/conseguisse emprego. Esta preocupação também apareceu em 34,5% das respostas dos institucionalizados. A percepção de que o comportamento da mãe poderia ser diferente apareceu em ambas as populações entrevistadas, do mesmo modo que ocorreu com o pai. No geral, o índice de aceitação do pai e da mãe como eles são foi muito pequeno.
Tabela
4: Percentagens de respostas categorizadas acerca das expectativas das crianças
e adolescentes focadas nas figuras parentais: "Eu queria que meu pai/minha mãe...."
___________________PAI____________________________MÃE______________
_______________ Inst.
Ñ-inst. Inst. Ñ-nst.
Estivesse
vivo 38,4 16,6 19,2 0
Melhorar de
vida 15,4 29,1 34,6 5,8
Mudar compto.
26,9
33,3
23,0 9,1
Continuar
como é 3,8 8,3 3,8 2,5
Respostas
evasivas 15,4% 12,5% 19,2% 2,5%_
A Tabela 5 apresenta dados sobre o relacionamento dos entrevistados com o pai e a mãe, obtidos pela sentença "Minha mãe e eu, Meu pai e eu....". Tanto ao referir-se ao pai como à mãe, mais da metade dos entrevistados, tanto nas instituições como nas ruas, fez referências a relatos de atividades conjuntas ocorridas no passado, do tipo passeios, viagens ou trabalho, realizados em companhia do pai ou da mãe. Os que não vivem em instituições tendem mais freqüentemente que os outros a expressar bom relacionamento com a figura materna. Poucos entrevistados institucionalizados manifestaram-se sobre bom ou mau relacionamento seja com o pai ou com a mãe, mas pode-se notar que o índice de respostas evasivas foi maior quando se tratou de falar sobre a interação com o pai.
Tabela
5: Percentagem de categorias sobre a percepção do relacionamento com os pais
(Minha mãe/Meu pai e eu....)
_________________________PAI_________________________MÃE__________
_____________Inst. Ñ-inst. Inst. Ñ-inst____
Bom
relacionamento 3,8 12,5 7,7 29,2
Relacionamento
ruim 11,5 8,4 7,6 8,4
Atividades
conjuntas 53,8 50 65,4 45,8
Desconhecido 3,8 8,3 0 0
Respostas
evasivas 27,1 20,8 19,2 16,7_
Discussão
Crianças e adolescentes institucionalizados e não-institucionalizados provêm de famílias com diferentes configurações, o que provavelmente provoca diferentes experiências relacionais e de identificação ao longo do seu desenvolvimento. As crianças e adolescentes que vivem nas instituições revelaram ser de famílias cuja dinâmica familiar gira em torno da liderança da mãe, ou seja, são famílias monoparentais, em que o pai é ausente por inúmeras razões. Nestes casos, a participação do pai no grupo familiar é percebida como superficial, esporádica e de pouca proximidade afetiva. As crianças e adolescentes não-institucionalizados conviviam mais freqüentemente com o casal de pais, o que sugere que provêm de famílias de composição nuclear. Mesmo assim, a presença da figura paterna centraliza críticas das crianças e adolescentes, o que indica problemas no relacionamento da parelha "pai-filho" nos dois grupos de entrevistados. Os desejos de mudar a conduta do pai, estreitar os vínculos com ele, ou simplesmente ter a sua presença e participação na família indicam algumas dificuldades enfrentadas pelas crianças e adolescentes nas suas relações parentais, porém mais evidentes entre as crianças e adolescentes institucionalizados.
Quando se analisa a percepção da figura materna, as expressões de "positividade" nas respostas das crianças e adolescentes sugerem que, para os entrevistados, a mãe é um importante elo entre os membros da família. Segundo Sarti (1996), mãe é um vínculo biológico com grande força simbólica. Os defeitos das mães são menos mencionados que os dos pais e verifica-se consenso nas opiniões relativas às aspirações por uma melhor qualidade de vida e bem-estar para suas mães, o que de alguma maneira reflete afeto e empatia na relação com elas.
Em meio à diversidade de respostas e categorias apresentadas pelos resultados deste trabalho, pode se constatar idéias, lembranças e vivências familiares comuns entre todos os entrevistados com experiência de viver nas ruas e em instituições. Mais do que isso, as semelhanças parecem residir numa construção ambivalente ou alternada, de significados de modelos de família, ora pensado, ora vivido, se tomarmos como referência a proposição de Szymanski Gomes (1988) apresentada na parte introdutória deste artigo.
Para as crianças e adolescentes entrevistados durante a pesquisa, a família pensada é aquela tomada como referencial de um sistema de crenças e padrões de conduta, na qual pai, mãe e filhos vivem um vínculo familiar nuclear, coeso e estável tanto no aspecto emocional como financeiro. Os desejos de ter uma família unida, no modelo nuclear, com a presença de um pai participante nas decisões, somadas à preocupação dos entrevistados em mudar o quadro familiar, especialmente no que tange à figura paterna, exemplificam algumas concepções da família pensada no imaginário das crianças e adolescentes. Ter uma família ideal, socialmente aceita, como "a certa ou a melhor" muitas vezes faz com que as crianças e adolescentes neguem a que possuem, ou seja, aquela que é vivida e real, principalmente no caso das crianças e adolescentes que estão nas instituições, mais isoladas dos familiares e que deixaram seus lares mais cedo que as outras. A idéia de que o modelo nuclear de família é o "melhor" para o desenvolvimento das crianças e adolescentes vem sendo endossada por várias teorias das Ciências Humanas. Como exemplo, ao discorrer sobre os efeitos das interações entre pais e filhos no desenvolvimento das crianças, Bronfenbrenner afirma em uma de suas proposições que "O estabelecimento e manutenção de padrões de interações complexas, e o apego emocional entre a criança e seu cuidador, dependem substancialmente do grau de envolvimento de um outro adulto, uma terceira parte que ajude, encoraje, incentive e expresse admiração e afeição pela pessoa que está cuidando e engajada em atividade conjunta com a criança." (p. 4). O autor reafirma essa mesma idéia com a seguinte frase: "Parece que, na dança da família, o tango é dançado a três."(4) (Bronfenbrenner, 1991, p. 4).
Conforme já referido, a família vivida é muitas vezes totalmente diferente da pensada. É a família real, a do dia-a-dia, que se desvela no desenrolar do cotidiano. É a que fala das dificuldades, tanto de ordem afetiva como material, que lembra as brigas, os conflitos e a separação dos membros e que ,portanto, muitas vezes traz recordações dolorosas. Talvez por isso, a grande maioria das crianças e adolescentes tenha em alguns momentos ressaltado o bom tratamento propiciado pelos cuidadores, trazendo com isso um indício do que pensam de família (aquela que cuida, protege, dá carinho e segurança), que pode ser coincidente ou não com o que vivem. Em alguns casos, a contradição desta informação com o vivido fica evidente principalmente na análise dos depoimentos das crianças e adolescentes institucionalizadas, que afirmaram em outros momentos a freqüente presença de conflitos e expressões de desafeto dos cuidadores para com eles, o que replica dados de pesquisas realizadas em outras regiões sobre as crianças que vivem nas ruas (Bandeira e cols., 1994; Lusk, 1992; Patel, 1990; Yunes e cols., 1997).
As ambigüidades entre o que é pensado e vivido no âmbito familiar revelaram-se mais presente no imaginário das crianças e adolescentes institucionalizados. Mas, no geral, quando se investigaram lembranças de fatos passados, poucos entrevistados dos dois grupos trouxeram as marcas de uma infância feliz com os familiares, e as respostas evasivas, do tipo não querer falar sobre estes assuntos, sugerem a confirmação de dificuldades de relacionamento já mencionadas anteriormente.
A alternância (e as ambigüidades) constatadas entre os dois modelos que norteiam as percepções e o ideário de família das crianças e adolescentes em situação de rua induzem a refletir sobre os efeitos que esse fator possa ter no seu desenvolvimento psicológico. Além disso, em que medida o distanciamento entre a família pensada e vivida contribui para que estas crianças e adolescentes deixem seus lares? Qual é o impacto destas ambigüidades e oscilações entre o que se pensa e o que se vive no âmbito das interações familiares?
São questões diversas e extremamente complexas. Seria preciso conhecer profundamente o universo de cada uma das famílias tendo como "pano de fundo" a perspectiva ecológica de Bronfenbrenner (1996), que, além de considerar a amplitude do mundo intra e extrafamiliar na sua relação com as diversas esferas de influência dos contextos de desenvolvimento (creche, escola, igreja, crenças e valores do ambiente social), considera a trama das relações entre estes contextos. O autor alerta os pesquisadores e os trabalhadores da área da família sobre o peso das interações familiares no desenvolvimento de filhos e pais (Bronfenbrenner, 1990, 1991). Em tese, as interações familiares deveriam ser como ele mesmo diz, "desenvolvimentalmente sensíveis" (5) (Bronfenbrenner, 1991, p. 2), ou seja, deveriam ser capazes de satisfazer as necessidades que todas as crianças têm de crescer social, psicológica e cognitivamente. A princípio, parece que a questão relacional nestas famílias é a chave que vai manter ou não as crianças em suas casas. Portanto, programas de educação de famílias em situação de risco deveriam ser concretizados como uma das medidas de prevenção do fenômeno "crianças e adolescentes em situação de rua". Reflexões sobre o que os pais pensam sobre desenvolvimento e educação infantil, sobre suas "teorias" e ideologias acerca de relacionamento humano, poderiam resultar na implementação de práticas educativas parentais eficientes que talvez pudessem, usando a expressão de Fonseca (1995), "ancorar" a criança em sua casa. Programas de educação familiar desenvolvidos em consonância e apoio de uma rede social, podem ter uma função protetora a ponto de gerar o estreitamento entre modelos pensados e vividos de família.
Notas:
(1).Apenas uma menina foi encontrada
nos pontos de abordagem da cidade.
(2).Legalmente, crianças (mesmo
crianças de rua) menores de idade não podem dar seu consentimento, visto que,
do ponto de vista cognitivo, podem não estar capacitadas para compreender por
completo a natureza e as implicações deste tipo de pesquisa (Fischer, 1993;
Thompson,1990). Portanto, durante este estudo, os órgãos competentes, tais como
Conselho Tutelar, Conselho Municipal dos Direitos da Infância e Juventude, Juiz
Curador de Menores, foram informados dos objetivos do projeto e sobre a
realização das entrevistas.
(3).Não há uma tradução convencional
para o termo grounded-theory. Em espanhol, há
várias traduções, como por exemplo teoria fundamentada,
fundamental ou básica (Rey, 1999). Na língua
portuguesa, alguns autores usam a tradução Teoria Fundamentada nos Dados (Bousso, 1999). Usualmente, prefere-se usar
o termo original em inglês.
(4)
No original do autor: "It appears that, in the family dance, it takes
three to tango"
(5) Tradução das autoras: "developmentally sensitive",
no original em inglês.
Referências
APTEKAR, L (1988b). Street
children of Cali.
APTEKAR, L. (1996). Crianças de rua nos países em desenvolvimento: uma revisão de suas condições. Psicologia Reflexão e Crítica, 9, 153-185.
BANDEIRA, D. R., Koller, S. H., Hutz, C. S., & Forster, L. (1994, outubro). O cotidiano de meninos e meninas de rua. XVII International School Psychology Colloquium, Campinas, São Paulo.
BOUSSO, R. S. (1999). Buscando preservar a integridade da unidade familiar: a família vivendo a experiência de ter um filho na UTI pediátrica. Tese de doutorado, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, São Paulo.
BRONFENBRENNER, U. (1990).
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Origem do trabalho
Resultados preliminares apresentados no VI Congresso de Iniciação Científica FURG/UFPel/UCPel, nov. 1997 "A família na percepção dos meninos em situação de rua na cidade de rio grande: o vivido e o pensado"
Trabalho completo apresentado na XXIX Reunião Anual de Psicologia, out. 1999 "A família vivida e a família pensada na percepção das crianças em situação de rua da cidade de Rio Grande - RS" e publicado na revista Paidéia, Ribeirão Preto em 2001.