AS BASES CONCEITUAIS DOS DOCUMENTOS OFICIAIS DE ATENÇÃO À SAÚDE DO ADOLESCENTE[1]
Maria Helena C. de Cardoso[3]
Palavras-chave: adolescência, atenção à saúde do adolescente, documentos oficiais.
Nas últimas décadas, a população de adolescentes e
jovens, no continente latino-americano, tem experimentado um considerável
aumento em relação à outros grupos etários, tanto em
termos absolutos quanto relativos. Segundo dados do Anuário Estatístico do
Brasil (IBGE,1992), a população de 10 a 17 anos constituía-se em 26.265.964
indivíduos, compondo aproximadamente 1/5 da população brasileira.
A magnitude em termos numéricos, a importância da saúde
física e “psicossocial” para o bom desempenho do indivíduo durante esta fase e
nas etapas sucessivas, a grande variedade e crescente número de circunstâncias
que aumentariam o risco e os danos aos quais estariam expostos, são os
argumentos utilizados nos documentos oficiais de atenção à saúde dos adolescentes
para justificar o lugar de destaque conferido à sua saúde no panorama mundial,
em geral, e na Região das Américas, em particular.
Atualmente muito se pensa e se escreve sobre a
adolescência, podendo-se afirmar que se vive o século da adolescência. As
publicações a respeito dessa temática abarcam inúmeros profissionais estudiosos
dos aspectos demográficos, epidemiológicos, sociológicos, antropológicos,
psicológicos, médicos, dentre outros.
A preocupação em entender o comportamento do adolescente
- específico na evolução humana e produto de vivências particulares -
transcende o interesse científico para constituir-se em estratégia política,
principalmente nos países em desenvolvimento.
Os documentos oficiais de atenção à saúde dos
adolescentes são fontes privilegiadas para o entendimento de como e porque a
sociedade operacionaliza a saúde como instrumento de conhecimento,
administração e controle do futuro. Apreender tais documentos dentro de sua
moldura política é, pois, fundamental aos profissionais a quem eles se dirigem
para uma reflexão acerca da adequação entre as normas preconizadas e a
realidade cotidiana do exercício da profissão.
Foram analisados os documentos divulgados a partir de
1976 até 1994, oriundos da OMS, OPAS e do Ministério da Saúde, enfocando-se
preferencialmente aqueles que versavam sobre a atenção à saúde do adolescente
de uma forma geral em relação aos de cunho temático específico.
O primeiro passo foi analisar as fontes no intuito de
verificar se, realmente, poderiam ser consideradas como discursos de caráter
político. Para tanto se aplicou a proposta de OSAKABE (1977), segundo a qual
todo discurso político envolve uma argumentação fundamentada em três atos
distintos: o de promover o ouvinte cuja participação interessa ao
locutor; o de envolver o ouvinte para anular a possibilidade de crítica
e, finalmente, o de engajar o ouvinte, transformando-o em sujeito das
ações propostas.
Em seguida procedeu-se à análise de conteúdo
propriamente dita, destacando-se as concepções e definições neles encontradas,
de adolescência, de atenção à saúde do adolescente e estratégias
sugeridas para a sua viabilização e do que deveria ser o perfil dos
profissionais de saúde que trabalham com essa clientela.
O estudo visou decompor o conjunto dos documentos em
partes, tendo em vista reconhecer a natureza particular de cada um e a relação
entre eles. Este procedimento metodológico objetivou permitir a compreensão
ampliada das proposições, para além de uma impressão geral e totalizante.
Por outro lado, empreendeu-se a contextualização
considerando-se os emissores, os destinatários, as organizações responsáveis,
as finalidades enfim, todos os procedimentos preconizados pela crítica
documental interna e externa.
Enfatizou-se o que havia de comum à
todos os documentos, apesar de se atentar para as suas diferenças,
entendendo-se semelhanças e contrastes como parte do processo de pensar a saúde
do adolescente, portanto, um processo que expressa um movimento constante,
sujeito à mudanças, e para o qual essa pesquisa pretende-se contribuir.
A definição de adolescência, presente nos documentos
estudados, está concebida com base em três critérios: o aspecto cronológico
articulado diretamente às transformações somáticas; a construção de um padrão
típico de adolescente e a incorporação de outros ramos do conhecimento além do
biológico, porém com subordinação destes à dimensão somática.
“Mas eu acho que se devia
contar os anos pela alma. A gente dizia: aquele cara morreu com vinte anos de
alma. E o cara tinha morrido, mas era com setenta anos de corpo”.Clarice
Lispector.
ARIES (1981) assinalou que a sociedade ocidental tem se
pautado em referências que denominou: o mundo da fantasia, simbolizado pelos
nomes; o mundo da tradição, representado pelos sobrenomes e o mundo da exatidão
e dos números, representado pelas idades, atributos passíveis de mensuração.
Na prática médica, não são raros os serviços de
Pediatria que dividem seus setores por faixas etárias: enfermaria de lactentes,
de pré-escolares e de escolares. Aqui se observa uma fragmentação da infância
em subdivisões que fazem uma associação direta e universal entre idade e
atributo social, mais especificamente, o nível de escolarização. Este mundo
numérico utiliza-se da estatística para enfatizar o que é comum à maioria
dos seres humanos de uma determinada idade, ou pelo menos, o que deveria ser,
dando ênfase à demarcação e às diferenças entre os grupos etários.
A caracterização de adolescência, presente nos
documentos estudados, tem como primeiro distintivo sua delimitação em limites
etários precisos. O período definido como adolescência, na unanimidade desses
documentos, é aquele compreendido entre os 10 e 19 anos, isto é, a segunda
década da vida. A juventude é descrita como o período compreendido entre os 15
e 24 anos. A adolescência é, também, subdividida em duas fases: adolescência
inicial – l0 a 14 anos - e adolescência propriamente
dita ou segunda fase -15 a 19 anos (OPAS/OMS, 1989). Alguns documentos
fazem ressalvas ao critério cronológico, identificando-o como de utilidade para
propostas de estandartização, mas reconhecendo-o como socialmente arbitrário
(WHO, 1986).
Considerando esses limites, não como números escolhidos
ao acaso, mas uma das formas de uma sociedade se descrever, de expressar sua
visão de mundo e de homem, eles revelam, sobretudo, uma classificação que é
fruto da valorização da aparência externa e não das realizações peculiares à cada um.
A preocupação em se encontrar um critério que
contemplasse a totalidade dos adolescentes, com bases objetivas de
caracterização e aferição, determinou que fosse levado em consideração o
critério somático, isto é, as mudanças morfológicas e fisiológicas que
constituem a puberdade. A puberdade é um fenômeno universal da espécie humana,
apesar das singularidades individuais, na seqüência e intervalos, no
aparecimento dos eventos puberais. Nesse sentido, o intervalo etário definido
como adolescência articula-se diretamente ao processo de desenvolvimento
biológico.
Os documentos estudados enfatizam que, além das
transformações anátomo-fisiológicas, a adolescência é um período de transição
da infância à idade adulta, plena de transformações
psicológicas em que o sujeito está em busca de uma identidade madura e é
movido por uma atitude social reivindicatória. Porém, fica claro perceber que
essas não são vivências circunscritas a um período de tempo previamente
estabelecido.
Todavia, o que realmente chama a atenção é o fato da
adolescência ter sido exclusivamente definida e alicerçada no que pode ser
formulado em linguagem matemática: os estirões no crescimento e a modificação
da forma do corpo; o crescimento e desenvolvimento das gônadas; o
desenvolvimento dos órgãos sexuais secundários e das características sexuais;
as modificações na composição do corpo e o desenvolvimento dos sistemas
respiratório, circulatório e muscular.
“A arquitetura é infinitamente variada
a partir de alguns materiais de base. A combinação hábil de um número restrito
de elementos pode resultar numa imensa diversidade”. Jean Hamburger
Embora a maioria dos documentos destaque a importância
de ser levado em consideração o processo histórico da adolescência, ao discutir
a saúde do adolescente e as características dos serviços e práticas a eles
destinados, refere-se a um padrão típico de adolescente, que apresenta uma
uniformidade nas suas condições de existência que, por sua vez, demanda
intervenções passíveis de normatização. Tal concepção supõe a existência de um
padrão médio, característico do adolescente normal, cuja classificação
em normal ou patológico está na dependência da menor ou maior proximidade a
este padrão de referência. Isto é flagrante na expressão síndrome da
adolescência normal (KNOBEL, 1988), utilizada em relação ao desenvolvimento
psicológico do adolescente, de maneira a traduzir a existência de modalidades
de conduta e comportamento, essencialmente as mesmas para a totalidade dos
adolescentes. A síndrome da adolescência normal apresenta-se com as
seguintes características: busca de si mesmo e da identidade adulta; tendência
grupal; necessidade de intelectualizar e fantasiar; crises religiosas;
deslocação temporal; evolução sexual desde o auto-erotismo até a
heterossexualidade; atitude social reivindicatória; contradições sucessivas em
todas as manifestações da conduta; separação progressiva dos pais e constantes
flutuações do humor e do estado de ânimo.
Porém, o comportamento, as idéias e os atos de um
indivíduo sempre refletem a forma particular pela qual ele tomou consciência de
seu momento histórico, o que altera, a cada momento, as condições de espaço e
tempo humanos. A descrição de tal “fenômeno sindrômico” nega o fato do homem
assumir uma forma própria de ser em cada tempo e lugar históricos, restringindo
suas características a um mero desenvolvimento cronológico.
As definições de adolescência, presentes nos documentos
avaliados, são considerações homogeneizantes, minimizando a diversidade de
forma que o adolescente ou grupos de adolescentes possam adotar no cotidiano de
suas vidas inseridas na coletividade. As tradições, os costumes, os ritos não
são salvaguardados, sendo, pelo contrário, nivelados e uniformizados. Os
documentos, portanto, traduzem uma concepção pragmática e empiricista da
história, alienada da temporalidade/espacialidade humana que, neles, se
transforma em um substrato passível de previsibilidade e controle.
A partir da mortalidade, do tempo e do espaço é que
levantamos a questão “de onde viemos, o que somos e para onde vamos?”, e aí se
expressa a historicidade do gênero humano, com a qual
a historicidade de cada ser esteve e estará sempre correlacionada (HELLER,
1993). As definições de adolescência contempladas nos documentos oficiais estão
isentas de historicidade, por não conceberem que os homens são tempo e espaço
humanos, distanciando a história da vivência terrena e de sua finalidade como
via de conhecimento da situação humana.
“Penso que é tão maravilhoso o que me
acontece. Não só o que aparece no corpo, mas o que se realiza por dentro”. Anne Frank.
São unânimes as referências às transformações físicas,
psicológicas e sociais que ocorrem no período da adolescência. É empregada, de
forma repetida, a expressão transição biopsicossocial para caracterizar
essa fase evolutiva do ser humano. Ao mesmo tempo em que os documentos
delimitam a adolescência cronologicamente, apontam-na como determinante de situações
comportamentais passíveis de implicar no adoecimento, subordinando-as a um
intervalo temporal previamente estabelecido.
Apesar da ênfase na importância de uma equipe
multiprofissional para o manejo adequado das questões dessa clientela, são as
transformações somáticas que delimitam, concretamente, o período designado como
adolescência. É em torno do caráter biológico que se organiza a apreensão dos
demais, isto é, só a partir das transformações do corpo que se pauta a
necessidade de se preocupar com as demais condições ligadas à adolescência.
A idéia de subordinação é reforçada pela utilização
prioritária dos indicadores de saúde, desenhados a partir de uma ótica
biológica para o diagnóstico da problemática e principais
necessidades de saúde do adolescente, tais como: as medidas
antropométricas, o estado nutricional, a morbidade e a mortalidade nessa faixa
etária.
A saúde e o bem-estar do adolescente são caracterizados,
nos documentos analisados, como o produto de inter-relações dos três sistemas
básicos: biológico, psíquico e social. A atenção à saúde preconizada para esse
grupo, ressalta a importância de ser levada em consideração a natureza múltipla
de sua problemática. Isto determina a recomendação de um conjunto de ações que
enfatizem tanto os aspectos fisiopatológicos como os psicossociais
(OPAS/OMS,1990; MADDALENO,1988). A incorporação do conceito de saúde integral
dentro de um continuum e vinculada aos aspectos de “bem-estar e
desenvolvimento”, facilitaria o êxito dos processos de “socialização,
espiritualidade, desenvolvimento integral e ótimo desempenho” durante e
após o período da adolescência. As prioridades de saúde do adolescente são,
então, descritas como todas as medidas de prevenção dos problemas ligados ao
processo reprodutivo; aos acidentes e à violência; ao uso e abuso de fumo,
álcool, drogas e inalantes, bem como, às questões de saúde mental. Essa
priorização pretende conduzir a um enfoque preventivo, “prático e eficaz” (OPAS/
OMS,l989; MADDALENO,1988).
A definição de atenção à saúde do adolescente expressa
quatro fundamentos embasadores: uma concepção iluminista, uma argumentação
teleológica, a adoção de pressupostos normativos e um discurso interdisciplinar
não igualitário.
“É aqui o segundo nascimento de que
falei; é aqui que o homem nasce verdadeiramente para a vida (...). Esta
época, quando acabam as educações comuns, é exatamente a época em que a nossa
deve começar”. (Jean-Jacques Rousseau)
O Iluminismo pode ser definido como um movimento de
idéias, uma forma de pensar, com origem no século XVII, porém somente
consolidado no século XVIII. Seu programa era a difusão do uso da razão para
dirigir o progresso da vida em todos os seus aspectos. Concebia a razão como
fonte de verdades indiscutíveis ou generalizações legitimadas por uma validade
metodológica. Desta forma, propunha a utilização de métodos analíticos
racionais: comparações e sínteses, através de procedimentos indutivos e
dedutivos, preconizando a construção de um corpo de leis universais e imutáveis
(TESTONI,1984; FERREIRA,1993).
Os documentos de atenção à saúde do adolescente
analisados recomendam a aplicação de “enfoques integradores tais como
o conceito de risco” entendendo-se assim, que aquilo que determina a saúde
de um adolescente é o seu nível de exposição a um ou mais “fatores de risco”.
A assistência ao adolescente, dessa forma, é operacionalizada através da “supressão
ou compensação” desses fatores, para diminuir as probabilidades de dano a
ele e à sociedade (OPAS/OMS,1990). Se um fato é considerado de risco para um
adolescente, indutivamente, ele se transforma em risco para todos os
demais. De forma análoga à filosofia iluminista, isto induz uma atitude
pragmática de racionalização da historicidade, em prol de uma vivência
socialmente mais produtiva, através da construção de instrumentos conceituais
operativos.
Locke, em sua obra Da Educação das crianças, chama
a atenção dos pais para as virtudes da prevenção como o meio mais eficaz de
preservar a saúde dos filhos:
“Falando aqui da saúde, meu objetivo não é dizer-vos como um médico deve tratar uma criança enferma ou valetudinária, mas apenas indicar o que os pais devem fazer, sem o recurso da medicina, para conservar e aumentar a saúde de seus filhos ou pelo menos para dar-lhes uma constituição que não esteja sujeita a doenças” (apud GÉLIS, 1993 p.3 16).
Na totalidade do material investigado, observa-se a
ênfase dada aos aspectos preventivos ou protetores, no cuidado do adolescente,
com a finalidade de formação de adolescentes física e moralmente sadios,
transformando suas vidas em produtivas para toda a sociedade. Essa moral
utilitarista pode ser identificada nas palavras do então diretor geral da
Organização Mundial da Saúde, H. Nakajima, em um de seus pronunciamentos:
“Se se ajuda os jovens a ter relações
positivas e saudáveis, a desenvolver-se como
indivíduos antes de casar-se e de ter filhos, a exercitar suas mentes e corpos
de forma saudável - se comem bem e permanecem livres de tabaco, do
álcool e outras drogas, livres dos riscos de uma gravidez e paternidade
precoces e livres da infecção, se praticam a higiene e são capazes de
experimentar e explorar seu mundo sem risco excessivo de lesão e com
oportunidades para solidarizar-se com outros, suas vidas serão ricas e
produtivas e todos se beneficiarão” (OPAS/OMS, 1989).
Para Locke, a adolescência era encarada como o estágio
final do desenvolvimento humano, quando o indivíduo adquire o pensamento
abstrato e a racionalidade, tornando-se autodirecionado e completo em sua
identidade (VLOLATO, op. cit.). Nas fontes estudadas, a adolescência é descrita
como um período de vulnerabilidade especial: “a adolescência ocupa um lugar
estratégico na vida - não é demasiado cedo para adotar uma atitude
responsável, nem é demasiado tarde para superar a maioria das dificuldades
anteriores” (OMS,1977 p. 32).
Rousseau manifesta que os indivíduos nascem sensíveis e
são afetados pelas coisas que os cercam. Graças a seus sentidos, aproximam-se
do que lhes dá prazer e afastam-se do que os desagrada. No entanto, acredita
que esses atos não são mecânicos, são fruto da educação,
fator fundamental no desenvolvimento da sensibilidade e na percepção da
estética do mundo. A moral e os costumes são primordiais para o
aperfeiçoamento do homem e da sociedade, portanto, prevalecem as verdades práticas de onde derivam os aspectos normativos
(FERREIRA, op. cit.). Rousseau propôs quatro estágios do desenvolvimento humano
que culminariam durante o período da adolescência - 15 a 20 anos - ,
quando o indivíduo se deslocaria de motivações egoístas para preocupações
sociais e desenvolveria uma identidade. Rousseau considerava a adolescência
como um segundo nascimento (VIOLATO, op. cit.).
A valorização das práticas educativas na atenção ao
adolescente, especialmente aquelas relacionadas com a
saúde reprodutiva, partem de uma concepção de mundo que acredita que a
informação seria o principal instrumento propiciador de mudanças de
comportamento. De forma análoga ao pensamento de Rousseau, esse pressuposto
evidencia uma mentalidade que comprova que as possibilidades de aperfeiçoamento
do ser humano seriam alcançadas através do conhecimento da natureza, neste
caso, especificamente da natureza do corpo biológico.
O aspecto prioritariamente normativo da atenção à saúde
do adolescente pode ser identificado nos diversos manuais distribuídos que
visam orientar e dar suporte técnico às decisões a serem tomadas junto ao
adolescente, definido, justificando e selecionando tecnologias, padronizando
procedimentos e normatizando condutas (MS, 1993).
Em síntese, de forma análoga à Filosofia das Luzes, os
documentos de atenção à saúde do adolescente têm como base de suas propostas e
considerações a crença na condição de que, através da Razão,
estar-se-ia no caminho de transformar o adolescente em um homem completo,
apto a contribuir para o presente e para o futuro dos países e do mundo em
geral.
“Terá número, barra e borra de carimbo?
Afinal ele é gente ou registro pungente?” (Carlos Drummond de Andrade).
Nos documentos revisados, a adolescência é entendida
como um status próprio de um segmento etário da existência humana,
conforme ressaltado anteriormente. Os adolescentes enfrentam determinadas
situações pelo fato de serem adolescentes, o que explicaria o
seu comportamento. Esse comportamento demandaria, por sua vez,
intervenções específicas em relação à saúde, pois os adolescentes, por si
próprios, possuem a característica natural da vulnerabilidade. Essa fase é
vista como um conjunto de situações previsíveis, algumas delas de risco para a
saúde, passíveis de controle, pois sem este, o desfecho dessa fase poderia ser
danoso ao próprio adolescente e à ordem socialmente instituída.
Os determinantes das necessidades de saúde do
adolescente são encontrados mediante o estabelecimento de uma cultura adolescente,
incitadora de seu comportamento, estático, atemporal e dotado de uma finalidade
em si mesmo.
A teleologia, do grego te/os = final e logos =
razão, explica os acontecimentos, os fatos, os
eventos, os fenômenos do universo, sempre referidos a algum propósito e/ou como
dotados de uma finalidade causal inexorável. A conduta humana obedeceria a um
fim para o qual existe ou foi produzida. A mais célebre definição de teleologia
foi a pensada por Aristóteles, no conjunto de suas obras - Política;
Da Geração dos Animais e de Anima, dentre outras - onde
propõe que uma explicação completa de qualquer coisa deve levar em consideração
não somente o material que a constitui, sua forma, suas causas eficientes e
perceptíveis, mas também sua razão final, o propósito pela qual ela existe e
foi criada, por algo que a transcende.
A explicação do nexo final é, então, inteiramente
diferente da interpretação. Esta operação responde a contingências do
pensamento humano que buscaria, ante o universo complexo, simplificá-lo para
melhor atingi-lo em toda sua almejada realidade. O aprisionamento da
adolescência em um modelo aliado à idéia de finalidade - ser
adolescente=comportamento de risco – postula um telos que culminaria
agindo no sentido de a todos homogeneizar e
historicamente almejando repetir ad-infinutum as características
observáveis.
Toda a adolescência é explicada, nos documentos
estudados, por uma teleologia universal, ou seja, pressupõe-se que a maneira de
viver do jovem acontece como resposta aos desígnios de uma razão: o propósito
da sua própria natureza, transcendental a ele mesmo. Tal concepção pode ajudar
ao conhecimento acerca das especificidades desta etapa do crescimento e
desenvolvimento humano, por exemplo, como guia de questionamento para a
construção de um desenho epidemiológico, mas jamais enquanto definidora de
verdades embasadoras de ações de saúde.
Isso é patente no discurso relacionado ao uso de drogas,
aos acidentes automobilísticos e à prática sexual. As prioridades de saúde dos
adolescentes, delimitadas para a Região das Américas, estão definidas como
todas as medidas de prevenção da problemática ligada ao processo reprodutivo -
gravidez precoce e doenças de transmissão sexual, os acidentes e a
violência, o uso e abuso de fumo, álcool, drogas e inalantes, assim como os
problemas de saúde mental (OPAS/OMS, 1989). Os adolescentes são, dessa forma,
encarados como objetos à mercê e a serviço da violência e dos maus costumes, passíveis de mergulhar no abismo das drogas, dos
comportamentos perigosos e das relações sexuais irresponsáveis apenas pelo fato
de serem adolescentes.
É como se, com a necessidade de integrarem-se à
sociedade, os adolescentes pudessem aprimorar suas qualidades ou perdê-las,
pois teriam a liberdade para tanto, só que essa escolha se daria dentro de um
jogo cujos dados já teriam sido lançados. Os princípios normativos, por sua
vez, cumpririam a tarefa de garantir que esse jogo não se tornasse viciado.
“Então o homem jovem que é honrado
aprende a conhecer a moralidade hipócrita que lhe foi inventada para impedir a
plena eclosão de suas propensões físicas”. (Pablo Neruda).
A preocupação presente na totalidade dos documentos
estudados é a de prevenir, corrigir e controlar problemas ou desajustes. A
implantação e implementação de ações dirigidas à atenção à saúde do adolescente
são norteadas por discursos oficiais normativos, que se estendem desde a
adequação do espaço físico e instrumental até o desenvolvimento de programas
específicos com atividades pré-estabelecidas.
As normas, baseadas em generalizações, constituem-se em
princípios orientadores, mas não possuem, por si próprias, valor explicativo.
Assim sendo, os fenômenos são encarados como exatamente iguais não importando
sua historicidade. Ou seja, o diagnóstico é feito por
analogia e conseqüentemente generalizante, distanciado do fato de que os
“objetos” em questão são humanos: os adolescentes.
Cabe sublinhar que os princípios organizacionais,
normativos, totalizantes, são gerados em determinada visão de mundo, em uma
teorização não aplicada. Esta teorização, abstrata, forneceria elementos
normativos que teriam como utilidade oferecer definições iluminadoras para as
teorias aplicadas. Essas, por sua vez, possuiriam uma diversidade e
singularidade não passíveis de repetição.
Os princípios normativos de atenção à saúde do
adolescente deveriam possuir o caráter de uma teorização aplicada, mas, o que
se nota, é que no seu posicionamento, teriam, de fato, o cunho de uma teoria
elevada, perdendo, por conseguinte, a característica da complexidade de seu
objeto, apesar de discursivamente a reconhecerem.
Há que se refletir a respeito da necessidade de uma
teorização aplicada na abordagem da saúde do adolescente, porque tal como na
historiografia, como se prova na leitura até de historiadores marxistas como
Thompson ou Hobsbawn, a busca por significado só se dá na teoria aplicada (HELLER,
op. cit.).
Como todas as visões de mundo implicam num conjunto de valores,
vale a pena apontar que os princípios normativos aqui tratados estão
impregnados dos valores daqueles que os construíram, mas desconsideram as
diversidades sócio-culturais regionais de um continente habitado por uma
população de origens e tradições heterogêneas.
Cita-se como exemplo a abordagem do desenvolvimento
psicológico do adolescente em documento emitido pelo Ministério da Saúde, mais
especificamente pelo Serviço de Assistência à Saúde do Adolescente. Neste
manual há um quadro intitulado Condutas de risco do adolescente, cujo
conteúdo indica: “Condutas de risco do adolescente: uso e abuso de fumo, álcool
e drogas; acidentes de trânsito: dirigir em excesso de
velocidade sob o uso de álcool e drogas, apostas de corridas (carro ou
moto) e atividade sexual: risco de gravidez e de doenças sexualmente
transmissíveis” (MS, 1993 p.39) e fechando o quadro é enfatizado: “Referir para
profissionais de saúde mental” (idem, ibidem).
Este quadro revela a tendência à previsibilidade de
situações-problema dos adolescentes, propondo como abordagem das mesmas, a
padronização de procedimentos, orientações e encaminhamentos rígidos e
universalizantes.
“Esse vazio que descobrimos certo dia
na adolescência, coisa alguma é capaz de fazê-lo não ter ocorrido”. (Marguerite
Duras)
O modelo predominante na organização dos serviços de
saúde é o assistencial, clinicamente orientado, desenhado com base na
epidemiologia clássica, no qual o paradigma do biológico encontra-se em primeiro
plano. Ele está firmado na abordagem cartesiana, mantendo, ainda, a separação
mente-corpo.
Esse modelo pode ser evidenciado no documento emitido
pelo Ministério da Saúde, em 1993, intitulado Normas de Atenção Integral à
Saúde do Adolescente: “Como os fenômenos biológicos são mais fáceis de
precisar e avaliar, inclusive quantitativamente, o acompanhamento do
crescimento e desenvolvimento foi escolhido como a ação básica do atendimento à
saúde do adolescente, entre as diversas ações prioritárias do Programa Saúde do
Adolescente (PROSAD), permeando e articulando as demais ações” (p. 18).
A racionalidade do sistema existente, ainda leva cada
disciplina a se levantar em Bastilha a fim de assegurar a preservação de seu
território e a manutenção de seus meios. O discurso interdisciplinar não
igualitário tem, por conseguinte, suas origens na crença dos médicos de que só
eles estariam qualificados para determinar o que se constitui em doença,
selecionando as terapias apropriadas. Essa crença os mantêm no topo da
hierarquia do poder no sistema de assistência à saúde, criando obstáculos à
real atenção interdisciplinar à saúde do adolescente. Por outro lado, as outras
disciplinas, se utilizam, muitas vezes, de sistemas conceituais que lhes são
próprios relacionados às suas lógicas, em alguns casos incompreensíveis para o
restante da equipe.
A simples justaposição de saberes não leva à interação
proposta e desejada, pelo contrário, enfatiza as diferenças epistemológicas de
cada disciplina, contribuindo muito pouco para o esclarecimento das questões em
pauta, no caso, a “problemática” do adolescente.
Ao contrário de ser concebida como uma estratégia, a
interdisciplinaridade é pautada como um objeto em si, uma teoria, perdendo seu
significado de desafio à articulação de diversas disciplinas entre si, por
ocasião de um trabalho sobre o mesmo objeto, o que constitui um importante
vetor de questionamento.
Papel do profissional de saúde nos serviços de atenção ao adolescente
“Nós transformamos os médicos em
heróis, porém temos sentimentos ambíguos em relação a eles”. (Roy Porter)
Parece haver uma orientação no sentido do profissional
de saúde ser um dizimador de conflitos. Isto pode ser verificado neste
fragmento:
“Um médico que atende adolescentes deverá ser capaz de diagnosticar e tratar doenças físicas, detectar condutas desadaptativas, estar alerta a potenciais falhas no rendimento escolar, fomentar o desenvolvimento de estilos de vida saudáveis, ensinar educação sexual e realizar aconselhamento familiar. Deverá compreender as transformações da adolescência e outorgar um nexo vital entre o adolescente e sua família, o que manterá as relações harmônicas.” (MADDALENO, l988p. 136).
Além disso, fica clara, a disposição de que o médico que
atende adolescentes tem como função primordial, a de ser um guia, nos moldes de
um pater/mater extraparental. Seria como fazer do conhecimento, o
caminho de busca da onipotência. Dessa forma, a família estaria destituída de
seu papel nuclear, descartada de sua função de iniciadora e estimuladora do
conhecimento, em nome da ilusão do saber científico como sinônimo de poder,
garantia e controle educacional.
“Se deve assumir o papel de um adulto crítico extraparental que ajude ao adolescente a avaliar os prós e contras de uma conduta que afeta a saúde”. (Idem p. 137).
Subsidiados pela técnica, os médicos teriam importância
crucial na determinação daquilo que seria bom ou ruim para a saúde, e
por que não dizer, para a vida de seus pacientes.
Não se pretendeu oferecer respostas prontas às questões
levantadas, mas apenas evidenciar a complexidade da temática abordada e a
urgente exigência de pensar novos paradigmas para a atenção à saúde do
adolescente.
É fundamental a importância do conhecimento das
modificações biológicas que ocorrem nos adolescentes e dos fenômenos a elas
correlacionados, justificando o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento
desse grupo como ação prioritária a ser desenvolvida nos serviços de saúde.
O critério cronológico de definição de adolescência tem
a finalidade de permitir uma divisão administrativa e operacional nos serviços,
embora o reconhecimento da diferença entre puberdade e adolescência não deva
ser ignorado. A visão da adolescência, descolada de sua historicidade,
constitui-se em estratégia pouco proveitosa no objetivo de implementar ações
direcionadas às reais necessidades dos indivíduos na área da saúde.
A construção de um padrão típico nega a complexidade das
vivências da adolescência em função de seu enquadramento em modelos
pré-estabelecidos.
A concepção iluminista que embasa os documentos oficiais
de atenção à saúde do adolescente, transmuta-os em protagonistas da esperança
no futuro ou em agentes do progresso, fazendo recair em seus ombros a tarefa de
apagar o que de ruim houve no passado e o que de errado existe no presente.
A obediência cega aos pressupostos normativos, sem uma
visão crítica em relação à sua adaptabilidade a um contexto
específico e historicamente determinado, alicerçada em concepções teleológicas,
enseja a elaboração de programas e ações fragmentadas, portanto, de eficácia
real questionável.
É indiscutível a importância de uma abordagem
interdisciplinar para um melhor encaminhamento das múltiplas questões trazidas
pelos adolescentes e suas famílias aos serviços de saúde. Por outro lado,
tem-se absoluta convicção que o setor saúde e seus representantes não têm como
atribuição a solução de todos os problemas desse grupo. A
interdisciplinaridade não pode ser interpretada como um objeto em si, uma
teoria, e sim, como uma estratégia de trabalho.
No que diz respeito ao médico, especialmente, faz-se
preciso aprimorar seu conhecimento clínico e sua escuta como fundamentais ao
exercício profissional, não lhe cabendo, de forma alguma, exercer a função a
ser desempenhada pela família. Ele não é um padre, um juiz, um herói, um
redentor, um modelo de bom comportamento... ele é apenas mais um ser humano
cuja formação incutiu-lhe a vontade de prevenir e
curar e, quando isto não for possível, estar disponível e oferecer terapêuticas
capazes de contribuir para uma melhor qualidade de vida a seus pacientes.
A adolescência não pode ser transformada em leis, ao
preço de um encaixotamento de suas melodias e seus balés de essências. Assim
como no mito de Eros e Psiqué, não devemos corporificar Afrodites, impondo
tarefas e obstáculos a serem cumpridos e superados pelos adolescentes, em sua
trajetória para a adultice, bem como pelos profissionais interessados em
assisti-los nos serviços de saúde.
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Notas:
[1] GROSSMAN, E.; CARDOSO, M. H. C. A. As Bases
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extraído da Revista Brasileira Crescimento Desenvolvimento. Humano, São
Paulo, 7(2), 1997.