O DIREITO DE SER CORRIGIDO
Murillo José Digiácomo [1]
O Estatuto da Criança e do
Adolescente tem sido alvo de constantes críticas, em sua imensa maioria
absolutamente infundadas, fruto da grande desinformação que permeia a matéria,
tida por muitos como um verdadeiro "tabu".
Isto ocorre porque os
maiores "intérpretes" do Estatuto para a população em geral acabam
sendo os locutores e apresentadores de programas policiais, que na verdade
jamais se deram ao trabalho de ler e muito menos compreender o que diz a
legislação específica e, ante a simples notícia de que determinada infração
teve a participação, em maior ou menor grau de um adolescente, não hesitam em
atribuir tal ocorrência à "frouxidão" da lei, que somente teria
conferido "direitos" a crianças e adolescentes e impediria que estes
fossem responsabilizados e/ou recebessem qualquer sanção quando da prática de
atos infracionais[2].
Como decorrência dessa
desinformação, criou-se um sentimento generalizado de rejeição ao Estatuto, a
falsa noção de que teria ele colocado crianças e adolescentes "acima"
da lei, não mais estando sujeitos a qualquer autoridade (em especial de seus
pais ou responsáveis) e, no que se refere à prática de atos infracionais por
adolescentes, passou-se a defender a redução da idade penal como a
"panacéia" para a violência no País.
Ocorre que, qualquer pessoa
que se dê ao trabalho de ao menos ler o Estatuto, não tardará a chegar à
conclusão de que crianças e adolescentes, como todo e qualquer cidadão, devem
igual respeito à lei, ao próximo e às autoridades constituídas, sendo que sua
proposta para o trato com o adolescente em conflito com a lei (ou seja, que
tenha praticado conduta descrita como crime ou contravenção) não é, em
absoluto, a da tão apregoada "impunidade", mas sim vem a ser
exatamente o oposto, pois prevê a lei sua responsabilidade já a partir dos 12
(doze) anos de idade.
Com efeito, no que concerne
aos "direitos", o Estatuto nada mais fez do que dizer o óbvio, tendo
apenas deixado bem claro que os direitos fundamentais e constitucionais, que
cada brasileiro ou estrangeiro residente no País possui, também se estendem a
crianças e adolescentes, como aliás não poderia deixar de ser.
Evidente que não é o
Estatuto que confere a crianças e adolescentes os referidos direitos
constitucionais, pois isso ocorre de forma natural e automática pela própria
Lei Maior[3], porém tal previsão se fez necessária
de modo a romper em definitivo com a sistemática que vigorava sob a égide do
famigerado "Código de Menores" (Lei nº 6.697/79), em que eram aqueles
vistos como meros "objetos da intervenção do Estado", sem direitos
expressamente reconhecidos.
Ao traduzir a norma
constitucional e proclamar que o conceito de "cidadania" (por si só
já bastante ampliado com o advento da Constituição Federal de 1988), também
abrangia crianças e adolescentes, o Estatuto obviamente não quis apenas
assegurar-lhes os direitos decorrentes dessa "nova" condição, mas sim
também o fez em relação aos deveres respectivos, pois afinal direitos e deveres
são as duas faces da mesma moeda, não sendo possível dissociar aqueles destes.
Vale lembrar que a igualdade
de todos, seja de que idade forem, em direitos e
deveres, é decorrente nada menos do que da própria Constituição Federal, que em
seu art.5º assim dispõe:
"Art.5º.
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...
"I - homens e mulheres[4] são iguais em direitos e obrigações,
nos termos desta Constituição..." (verbis).
Nesse contexto, é deveras
elementar que a idéia de que o Estatuto teria "conferido
apenas direitos" a crianças e adolescentes é absolutamente falsa,
pois em primeiro lugar, como visto, os direitos por ele relacionados são
basicamente os mesmos direitos constitucionais de qualquer cidadão,
independentemente de sua idade ou, em alguns casos, constituem-se em
verdadeiros direitos naturais, que todo ser humano, em qualquer lugar do
planeta, possui (ou ao menos deveria possuir e ver respeitado), sendo também
certo que a cada direito de um indivíduo, existe ao menos um dever
correspondente, que vem a ser justamente o dever de respeitar o direito similar
ao seu do qual todas as demais pessoas (mais uma vez independentemente de sua
idade) também são titulares.
Caso o Estatuto tivesse
conferido a crianças ou adolescentes "apenas direitos" e/ou qualquer
"imunidade", que os permitisse violar livremente os direitos
(constitucionais) de outros cidadãos, o dispositivo correspondente não teria
qualquer validade, pois afrontaria a Constituição Federal,
que obviamente não dá margem a tal distinção ou "privilégio".
Longe de assim dispor, no
entanto, o Estatuto privilegia sobretudo a educação da criança e do
adolescente, sendo que sua proposta para aqueles que praticam atos
anti-sociais, em particular no que diz respeito ao adolescente acusado da
prática de ato infracional, é a da responsabilidade total, verdadeira
"tolerância zero", sem dúvida muito mais abrangente e
procedimentalmente eficaz que o tratamento dispensado ao adulto pela Lei Penal.
Pela sistemática adotada
pelo Estatuto, todo e qualquer ato infracional que chegue ao conhecimento da
autoridade competente[5], independentemente de sua gravidade
ou outros fatores que dificultam e em alguns casos impedem a ação estatal
repressiva em relação ao criminoso adulto (como é o caso da manifestação e
mesmo iniciativa da vítima ou seu representante, nos crimes de ação pública
condicionada ou privada), deve corresponder a uma imediata intervenção estatal,
quer na coleta de informações acerca da conduta infracional, quer no
atendimento individualizado do adolescente acusado de sua prática, de modo que
o fato receba a resposta sócio-educativa adequada da forma mais célere
possível.
Importante registrar que,
como o objetivo dessa intervenção estatal não é a punição pura e simples do
adolescente em conflito com a lei[6], mas sim sua
reeducação e ressocialização, com a realização de um trabalho psicossocial
sério, extensível à sua família, que lhe irá proporcionar, através da
orientação, acompanhamento, tratamento, escolarização e profissionalização
(tudo de acordo com suas necessidades pedagógicas), condições de vida mais
dignas e perspectivas de um futuro melhor, o próprio adolescente a ela tem
direito, razão pela qual a omissão do Estado (latu sensu) em fazê-lo - e rapidamente - ,
sem dúvida coloca aquele em situação de risco na forma do disposto no art.98,
inciso I, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Embora tal afirmação pareça
estranha, devemos considerar que tanto a criança quanto o adolescente (assim
como qualquer adulto) têm direito à educação, que obviamente não se resume ao
simples ensino de disciplinas curriculares nas escolas mas sim deve ser
interpretada em toda amplitude do art.205 da Constituição Federal[7], notadamente no que diz respeito ao
"pleno desenvolvimento da pessoa" e "seu preparo para o
exercício da cidadania", tal qual consta do referido dispositivo.
Pela sua abrangência, não
restam dúvidas que o direito à educação compreende o direito a receber limites
e este, por sua vez, traz ínsito o direito a ser corrigido, quando da violação
de leis ou regras de conduta, através de medidas sócio-pedagógicas em espécie,
intensidade e qualidade adequadas às necessidades de cada jovem.
Evidente que aos direitos a
receber limites e a ser corrigido que cada criança e adolescente possui,
corresponde o dever de que para tanto concorram todos os encarregados de
proporcionar e conduzir sua educação: família, sociedade[8], comunidade e Estado (latu sensu), que devem agir de forma integrada e articulada,
cada qual cumprindo bem e fielmente seu papel definido pelo Estatuto da Criança
e do Adolescente.
Em outras palavras, toda
criança e/ou adolescente têm o direito a receber, em primeiro lugar (e acima de
tudo) de seus pais ou responsável, demais familiares adultos, educadores e
autoridades em geral, as orientações necessárias sobre seus direitos - e
conseqüentes deveres - para com os demais cidadãos, cabendo a todos, na mais
pura dicção do art.227, caput da Constituição Federal e arts.4º caput, 53 e 70
do Estatuto, o dever de corrigir aqueles quando da prática de atos de
indisciplina e/ou infracionais, devendo sua ação ser realizada em regime de
colaboração e com a utilização de recursos sócio-pedagógicos que venham a ser disponibilizados pela comunidade ou pelo Poder Público,
na forma do estabelecido pela política de atendimento local (vide art.86 da Lei
nº 8.069/90).
As ações respectivas, que
devem ter sempre por escopo a proteção integral da criança ou adolescente, bem
como usar como parâmetros o disposto nos arts.5º, 17 e 18 da Lei nº 8.069/90,
bem como a regra de interpretação contida no art.6º do mesmo Diploma Legal,
devem ser desencadeadas de imediato após a prática do ato de indisciplina ou
infracional, resultando na aplicação e execução da medida de proteção e/ou
sócio-educativa da forma mais célere possível, de modo a evitar o
desaparecimento de seus objetivos pedagógicos (e conseqüente finalidade
prática) em virtude do decurso do tempo.
Para que isso se torne uma
realidade e a lei, afinal, seja cumprida em sua plenitude, devem ser
realizadas, de preferência junto às escolas, verdadeiras campanhas de
conscientização de pais, professores, educadores e membros da comunidade em
geral, de modo a derrubar os falsos mitos ainda hoje existentes acerca do
Estatuto no que diz respeito aos direitos e deveres de crianças e adolescentes,
que têm o direito de receber, a todo momento, dos
adultos que os cercam e sobre elas possuem alguma espécie de ascendência, a
educação em seu sentido mais puro e amplo, que como vimos compreende o
estabelecimento de limites, a correção quando da prática de desvios de conduta
e mesmo a responsabilização, na forma da lei, quando da prática de atos
infracionais, tudo, é claro, com o respeito e a especial atenção que sua
peculiar condição de pessoas em desenvolvimento determina.
Com uma ação rápida e bem
articulada entre família, sociedade e Estado, cada qual cônscio de seu papel e
usando dos meios fornecidos pela sociedade e Estado (latu sensu), com a prioridade absoluta que a
matéria reclama[9], além de estarmos cumprindo a lei e
assegurando ao jovem a educação à qual o mesmo tem direito, seguramente
estaremos também impedindo venha ele a praticar novos atos anti-sociais e/ou
infracionais que, em última análise, resultam em prejuízo para ele próprio.
Necessário, pois, que cada
município[10] crie estruturas, desenvolva programas
e capacite profissionais (notadamente da área da educação) para o trato com
crianças e adolescentes que venham a praticar atos anti-sociais e/ou
infracionais, devendo sua atuação ocorrer já quando da prática de atos de
pequena gravidade, com obrigatória orientação dos pais ou responsável sobre
como proceder em relação a seus filhos ou pupilos (usando de sua natural
autoridade e ascendência que de modo algum foram tolhidas ou mesmo minimizadas
pelo Estatuto), de modo a deixar bem claro os limites que cada qual possui e a
necessidade do respeito mútuo entre todos.
Evidente que crianças e
adolescentes não podem ser vistos como "delinqüentes em potencial",
mas sim como cidadãos em processo de formação, que precisam ser educados e
guiados pelos adultos e autoridades em geral nessa árdua caminhada rumo à
cidadania plena.
Sem estas estruturas,
programas e pessoal capacitado, continuaremos com a atual - e ilegal - sistemática
de aplicação de medidas "apenas no papel" (e quando muito), com
escolas se preocupando cada vez mais com o ensino e menos com a educação; pais
que, por ignorância ou puro comodismo, também não cumprem seu indelegável papel
no processo de formação ética e moral de seus filhos, deixando de
estabelecer-lhes (na base do respeito e da amizade) os necessários limites e
autoridades públicas que, por não dispensarem para área infanto-juvenil a
prioridade absoluta que a Constituição Federal determina, se preocupam apenas
em reprimir adolescentes autores de atos infracionais de maior gravidade, sem
qualquer atuação no sentido preventivo ou protetivo,
que impediria chegassem eles a esse ponto e permitiria seu tratamento de forma
verdadeiramente eficaz.
O que se tem visto,
lamentavelmente, é exatamente esse colossal descaso para com o cumprimento da
lei e da Constituição Federal no que concerne à criação desses mecanismos de
prevenção, proteção e mesmo de repressão menos rigorosos (como é o caso dos
programas sócio-educativos de liberdade assistida e prestação de serviços à
comunidade), de modo que a criança e o adolescente acabam por não receber,
quando e da forma como deveriam[11], a
orientação, correção e limites a que tinham direito, ficando assim com a
indesejável sensação que, de fato, não possuem deveres e/ou estão acobertados
por uma espécie de "imunidade", o que sem dúvida contribui para que
desenvolvam hábitos perniciosos e pratiquem novos atos anti-sociais e
infracionais, não raro de natureza grave, quando então são considerados
"perigosos", "irrecuperáveis" e submetidos à medida
sócio-educativa extrema da internação.
A flagrante injustiça dessa
prática dispensa maiores comentários, pois acaba por penalizar (literalmente,
haja vista que a internação via de regra é aplicada de forma totalmente
equivocada, como se verdadeira pena fosse) duplamente o adolescente, que
contrariamente ao que determinam a lei e a Constituição não foi submetido a
programas de proteção e sócio-educativos em meio aberto
idôneos, não foi corrigido e educado quando deveria e, agora, porque
passou a "incomodar demais" aqueles que se omitiram em
proporcionar-lhe o tratamento psicossocial de que necessitava, se vê privado de
sua liberdade, do convívio familiar e comunitário (e não raro da própria dignidade
como ser humano), sendo "exportado" muitas vezes para locais
distantes, em entidades superlotadas, onde irá conviver com outros jovens
desafortunados, alguns mais comprometidos com a prática de atos infracionais do
que ele próprio.
Vale repetir que a proposta
do Estatuto é totalmente diversa, estabelecendo a permanente educação e, se e
quando necessário, a devida responsabilização do jovem desde as mais leves até
as mais graves faltas disciplinares e atos infracionais, pois afinal, como
dito, a criança e o adolescente têm direito a receber
limites e serem corrigidos toda vez que se envolverem em tais práticas.
Para que essa verdadeira
política de "tolerância zero" seja implementada, no entanto, é necessário que se compreenda a real finalidade dessas ações e medidas,
bem como os próprios princípios sobre os quais se assentam o Estatuto da
Criança e do Adolescente e Constituição Federal, de modo que não ocorram
desvios, arbitrariedades e violações de direitos fundamentais dos educandos,
que é sempre bom lembrar, devem ser respeitados em razão de sua peculiar
condição de pessoas (diga-se também cidadãos) em desenvolvimento.
Em face ao exposto, não é
difícil concluir que dentre os direitos fundamentais dos quais crianças e
adolescentes são titulares, avulta o direito à educação, que por sua vez
compreende o direito a receber limites e o direito a ser corrigido quando da
prática de atos de anti-sociais e infracionais de quaisquer natureza e
gravidade. A este direito corresponde o dever dos pais, responsáveis e autoridades
em geral, de agir de forma articulada e integrada no sentido de orientar,
tratar e impedir que infantes e jovens venham a repetir condutas semelhantes ou
de maior gravidade, sendo necessária a capacitação de profissionais e a criação
de estruturas, a nível de município, que permitam o
atendimento dos jovens (e também, quando necessário, de suas famílias) em tais
situações.
Longe de serem conceitos
antagônicos e inconciliáveis, proteção integral e responsabilização integral[12], estão intimamente relacionados,
podendo-se dizer que, apenas por meio desta é que muitas vezes será possível
alcançar aquela, objetivo maior de todos aqueles que militam na área
infanto-juvenil e lutam pela plena efetivação do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Notas:
[1] Promotor de Justiça no Estado do
Paraná.
[2] definidos pelo art.103 da Lei nº
8.069/90 como a "conduta descrita como crime ou contravenção penal" (verbis).
[3] estivéssemos num País do chamado
"primeiro mundo", seguramente não precisaríamos de uma Lei Ordinária
para dizer que crianças e adolescentes (que afinal, são destinatárias da
proteção integral e da prioridade absoluta de tratamento) também são sujeitos
de direitos, alguns dos quais, como o direito ao respeito, tantas vezes
mencionado em seu texto, são direitos naturais de toda pessoa humana,
independentemente de sua idade, raça, sexo, nacionalidade etc.
[4] seja de qual idade for, aí obviamente incluídos crianças e adolescentes.
[5] autoridade policial, Ministério
Público e/ou Poder Judiciário.
[6] embora algumas das medidas
sócio-educativas, que são modalidades do gênero sanção estatal sejam
extremamente rigorosas, podendo importar em privação da liberdade por um
período de até 03 (três) anos.
[7] "Art.205. A educação, direito
de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho"
(verbis).
[8] através do Conselho Tutelar e das
entidades não governamentais encarregadas de desenvolver
programas de proteção e sócio-educativos, tal qual previsto nos arts.90,
101 e 112 da Lei nº 8.069/90.
[9] sendo certo que, na forma do
disposto no art.4º, par. único da Lei nº 8.069/90, a garantia de prioridade
preconizada pelo art.227, caput da
Constituição Federal, compreende a preferência na formulação e execução das
políticas públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos.
[10] pois afinal, a municipalização do atendimento à criança e ao adolescente é diretriz traçada pelo art.88, inciso I da Lei nº 8.069/90.
[11] ao lado da total omissão dos pais
ou responsável, muitas vezes ocorre o excesso ou abuso dos meios de correção e
disciplina, com a prática de maus-tratos, o que como sabemos é crime previsto
no art.136 do Código Penal.
[12] desde que, é claro, sem perder de
vista os princípios legais e constitucionais e com respeito à pessoa do jovem e
a seus direitos fundamentais.