A IMPORTÂNCIA DA
CRECHE PARA O PROCESSO DE INSERÇÃO SOCIAL E PARA O INGRESSO DA CRIANÇA NA
CULTURA
Entre nós,
brasileiros, mesmo hoje em dia, o simples fato de uma criança nascer não
lhe garante nada. Uma criança pobre (se for negra ou parda, pior) que nasce, é
registrada e/ou batizada, recebe um nome (Raimundo
ou Sebastião, por exemplo) e uma nacionalidade - brasileira - está ainda muito
perto da natureza e muito distante da cultura. Como afirma TURNER
(1989), a propósito das sociedades tradicionais, dentre as quais nos incluímos
(pelo menos em boa parte): "En las sociedades tradicionales, el hecho de nacer
no constituye una garantia
imediata de membresía social: se tiene que ser transladado de la
naturaleza a la cultura por
médio de los rituales de inclusión social. (...) Nacer no es
garantia última de la calidad de miembro cultural de la sociedad, desde el
momento en que el infanticídio era ampliamente praticado, ya sea implícita o
explicitamente, en Ia mayoria de las sociedades tradicionales de
subsistência" (p. 247-248).
Como
comentário lateral poder-se-ia dizer que, por certo, o infanticídio não é,
entre nós, sempre, praticado abertamente. Quando isso ocorre - como no caso do
episódio da Candelária - admite-se que houve um certo exagero ou um acidente
de percurso.
As Creches como Instrumento de
Ingresso Discreto na Cultura
Podemos
colocar que hoje, entre nós, a educação da criança pequena em estabelecimentos
do tipo creche ou escola maternal constitui um macro-ritual de inclusão
social.
Desta forma,
a luta por creches, enquanto movimento social, sobretudo nas periferias das
grandes cidades brasileiras, pode ser vista como um início de disposição, por
parte dos segmentos populares, de sair da natureza para começar a
ingressar na cultura. Mas se trata, segundo nossa experiência no estudo
e no trato com o tema, de algo bastante embrionário.
Com efeito,
as creches, em nosso país são, enquanto aquisições sociais recentes,
ainda muito atreladas a reivindicações populares ligadas à necessidade de
guardar temporariamente crianças para que suas mães possam ser plenamente
incorporadas ao mercado de trabalho.
Ora, quando
um direito - o de ter seus filhos protegidos ou afastados da rua (ou,
nos termos de TURNER, da natureza) quando a mãe trabalha - está ainda,
em termos quantitativos e qualitativos, longe de ser alcançado,
a sobreposição de outro direito - o de ter seus filhos, além de guardados,
educados e desenvolvidos - só pode aparecer como impertinente e
intempestivo.
Acrescente-se
a isso o fato de que o próprio trabalho da mulher sendo
também visto e experienciado entre nós, enquanto ingresso no mundo da
cultura, como um direito recente acaba, no imaginário da mãe, do marido, da
família, da comunidade e do funcionário da creche, dando lugar a um grave
conflito de papéis na medida em que a mãe que trabalha não consegue ver
e viver, de forma integrada, seus papéis sociais - de mãe, de mulher e de
trabalhadora - experimentando, ao contrário, sentimentos desagregadores e
conflitivos já que não consegue ser, por inteiro, nem mãe, nem trabalhadora,
nem mulher ou companheira. Por outro lado, apenas e simplesmente por ter
decidido colocar seu filho sob os cuidados da instituição, é também vista,
freqüentemente, pelo funcionário, como negligente em relação a seu papel de
mãe; ou merecedora de gozar do direito de ter seu filho cuidado na creche
apenas e quando estiver exercendo seu papel de trabalhadora.
Por essas e
por outras razões, o assim chamado componente pedagógico - que mais
apropriadamente poderíamos chamar de componente de promoção do
desenvolvimento — da atividade das creches, sobretudo daquelas que atingem
as populações dos estratos sociais mais subalternizados, tende a ser colocado
num segundo plano, tanto na prática de trabalho quanto no imaginário da
população e dos próprios funcionários.
Sair da rua,
da natureza, para entrar na cultura, quando se trata de criança pobre é,
entre nós, um movimento social ainda bastante imerso no campo prático e
imaginário do paternalismo caritativo protecionista, de caráter eminentemente
negativo.
Paternalismo e Negatividade
O que vem a
ser isso?
Caso
imaginemos o problema do ingresso da criança brasileira pobre na cultura, ou
sua saída da natureza, em termos de um processo do tipo tradição =>
modernidade, podemos colocar que, no mais primário nível desta escala, ocupando
uma posição quase natural, temos como imagem-tipo aquela família
rural/favelizada com a mãe pequena, magra e embuchada
cercada por crianças, também magras, de várias idades. Neste contexto impera o
darwinismo mais bruto, com "Deus" ou o destino levando os anjinhos
e deixando que sobrevivam, por sua própria conta, apenas os mais aptos.
Creio que, de
um modo geral, esta imagem-tipo não corresponde mais ao destino que o
brasileiro médio imaginaria para as crianças brasileiras pobres.
Creio sim que
este destino situa-se num outro ponto da escala tradição-modernidade; creio
ademais que, para este mesmo brasileiro médio, a criança pobre não deve sair
deste lugar social.
Que lugar é
este?
A hipótese é
que não se trata de um lugar positivo ou, se se
preferir, que se trata de um lugar social negativo.
Este lugar
negativo é a não-rua, o não-cheirar-cola, o não-crack, o
não-trombadinha, o não-alcoólatra.
No espaço
concreto da creche (e no tempo do trabalho da mãe) é produzido este lugar ou esta localização social negativa, destinado à criança pobre.
Por certo há, para esta mesma criança, um projeto vagamente educativo
que decorre, mecanicamente, deste negativismo social original: afinal, o não-trombadinha precisa ser alguma coisa; são então
produzidos os projetos de mecânico, pedreiro, boy, auxiliares
variados, marceneiros, jogadores de futebol, passistas de escola de samba, que
são papéis negativos porque destinados não a configurar um ator social positivo
mas a conjurar o perigo que representam, no imaginário de cada brasileiro, os
atores sociais negativos: o delinqüente, o ladrão, o traficante, etc.
Somos, até
para as nossas atuais cabeças coroadas, uma sociedade estruturalmente
excludente (um interessante indicador nesse sentido é o verdadeiro pânico que
se apossa de nossas elites quando a massa, iludida pelo plano econômico
do momento, ameaça ingressar no chamado mercado de consumo); e, para
este tipo de formação social, a educação dos pobres será sempre um
projeto compensatório. O discurso mais ou menos velado é este:
para que o
Brasil cresça e se desenvolva é preciso "excluir"
muitos para poder "incluir" uns poucos a mais;como os
"excluídos" podem, em razão desta exclusão, tornar-se agressivos,
deve-se desenvolver programas educativos de caráter compensatório.
A Creche como Instrumento na Luta
contra a Exclusão
A educação da
criança pobre pequena tem algo de explicitamente subversivo na medida em que
ela aparece facilmente, para o menos engajado dos profissionais, como
uma empresa essencialmente destinada a forjar um "sujeito
epistemológico" ou cognoscente que qualquer ser humano pode, em
princípio, vir a ser, entendido como um "criador de si mesmo e do mundo
num processo de interações sujeito-objeto" (DOLLE, 1978, p. 73).
Esta possibilidade ou virtualidade deve ser explorada ao máximo.
Com efeito,
hoje em dia poucos acreditam, firmemente, no sangue azul ou, no nosso
caso, que as crianças já venham programadas, do útero, em termos de
possibilidades de desenvolvimento, segundo a origem social de seus pais. Em
outras palavras, poucos de nós acreditam, hoje, convictamente, que
"criança pobre já nasce meio burrinha".
Ora, o jogo,
a luta, o desafio prático e ideológico para uma sociedade contraditória como a
nossa - na medida em que perpassada, ao mesmo tempo, por um movimento perverso
de exclusão e por uma inegável criatividade e abertura social - no campo da
educação de crianças pequenas em creches, consiste em combater, com afinco e
persistência, o movimento de produção, pela creche, do não-trombadinha-marceneiro,
propugnando, positivamente, para o despertar do sujeito epistêmico que existe -
e que aparece muito claramente na criança pequena - em todo ser humano.
Produzir, por
exemplo, não-trombadinhas aparece-nos como fazendo parte de um movimento
de exclusão ou, se se preferir, de inclusão
subalterna, na medida em que não se trata de gestar
crianças para que realizem plena, mas sim subalternamente, as suas
potencialidades de desenvolvimento, notadamente enquanto sujeitos cognoscentes.
Na creche, a
criança pequena pobre brasileira pode, ainda, entrar, com os dois pés, no mundo
da cultura.
Na creche, a
criança pobre brasileira ainda tem chances de ver alterado seu destino,
historicamente marcado pela exclusão, com ou sem compensação.
A partir daí
são muito fortes as chances dos dados já terem sido jogados.
LEFÈVRE, F. A
Importância da Creche para o Processo de Inserção Social e para o Ingresso da
Criança na Cultura. Rev. Brás. Cresc. Dês. Hum., São
Paulo, IV(2), 1994.
BIBLIOGRAFIA
DOLLE, J. M. Para
compreender Jean Piaget. Rio de Janeiro, Zahar,
1978.
TURNER, B. El cuerpo y Ia sociedad. México, Fundo de Cultura Económica, 1989.