PELA NECESSIDADE DE UMA DOUTRINA DO PROCESSO DE EXECUÇÃO DE MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS

(Breves comentários à proposta de lei de diretrizes sócio-educativas)

 

 

Flávio Américo Frasseto

 

 

Empenho-me alguns dias no exame da proposta de lei de diretrizes sócio-educativas.   Esbocei alguns comentários artigo por artigo. Porém, a certa altura, quando me esforçava por compreender a temática tratada no art. 43, minhas reflexões reorganizaram-se sob uma síntese que vou tentar expor adiante.

 

Certa vez, ouvi de Antonio Carlos Gomes da Costa, numa palestra, que a participação dos juristas na elaboração do ECA tinha sido tímida e que, num esforço para construir uma doutrina que o interpretasse, em momento posterior decidiu-se editar a conhecida obra “Estatuto da Criança e do Adolescente, Comentários Jurídicos e Sociais” (Malheiros Editora). Grandes nomes do nosso Direito, nas mais diversas áreas afins, assim, foram convidados a comentar os dispositivos do ECA à luz dos princípios e conceitos de suas especialidades. O próprio Emílio Garcia Mendez, comparando o processo de construção da legislação da Costa Rica com a do Brasil, esclareceu que:

 

 “No caso do Brasil, o ECA criou e foi ao mesmo tempo o resultado de um processo jurídico endógeno onde os grandes nomes, do direito em geral e penal em particular, permaneceram ausentes ou indiferentes”. 

 

Até então, nunca tinha me dado conta do alcance desta observação. Aliás, para mim, sempre fora algo que qualificava o Estatuto não ter sido concebido e redigido por um grupo seleto de técnicos e imposto a nós de cima para baixo, como ordinariamente se tem feito em nossa história (e em nossos dias como nunca: a “era das medidas provisórias”).

 

Todavia, o que me ocorre agora, talvez até tardiamente, é que a categorização jurídica, de nível lógico-dogmático, ou seja, a definição de conceitos, a análise de institutos, as classificações, ou seja, tudo aquilo que compõe um manual de introdução a qualquer especialidade do Direito, é o que no fundo nos dá um substrato, um ponto de partida para a compor uma lei e, após, para interpretá-la de forma menos ambígua, mais controlada, objetiva, em suma, menos discricionária. E esta tarefa de categorização é uma das coisas que os Juristas bem sabem fazer, desde Roma.

 

No Direito das Obrigações, por exemplo, temos princípios gerais, institutos, classificações das mais diversas ordens que bem nos situam na compreensão da realidade concreta e complexa destes vínculos. Para saber como posso exigir o adimplemento de determinada obrigação, a primeira coisa que faço é definir a sua modalidade (dar, fazer, não fazer), se é divisível, se é alternativa, etc. Classificada a obrigação, agora sei de quem, quando, onde, como e de que forma (inclusive processual) devo proceder para satisfazer minha pretensão de credor. 

 

Compreendi, pois, que temos de distinguir uma coisa da outra, porque da distinção conceitual seguem conseqüências jurídicas distintas. Através desta categorização, conseguimos inclusive compreender as diversificadas soluções ditadas pelas diferentes legislações acerca de determinados temas, porque saberemos identificar situações iguais comparando as soluções desenhadas. Conseguimos, por fim, organizar os temas numa visão ampliada e prever com mais abrangência as questões que demandam normatização. 

 

Seguindo minhas conjecturas, passei do Direito Civil para o Direito Penal e vislumbrei, igualmente, quão ricas são as construções teóricas que conformam este estratégico braço do ordenamento jurídico. Os conceitos que aprendemos, por exemplo, de prescrição, culpabilidade, atenuante,  permitem-nos  compreender com clareza os preceitos legislados e, assim, controlar o trabalho judicial de aplicação da lei a cada caso concreto. À classificação dos crimes e suas circunstâncias – só para ilustrar – recorremos sempre que a complexidade particular de um caso os aparta do discurso rotinizado, reclamando uma reflexão mais aprofundada no caminho da decisão justa e legal.  

 

Quando ingressamos no terreno da medida sócio-educativa e do ato infracional, salvo profunda ignorância minha, não temos senão esboços teóricos mal traçados e incompletos acerca dos institutos. Sabemos o que não queremos, aquilo que não é, mas aprofundamos pouco em melhor definir e construir, nos detalhes, o que queremos o que de fato deve ser. Não temos conceitos claros sobre quase nada. Poucas classificações vêm nos socorrer para distinguir situações e encontrar nortes decisórios mais ou menos seguros. Daí, pois, reinar, quase absoluta, a discricionariedade judicial tão gravosa.

 

Assim, ao que me parece, por carecer de um substrato doutrinário mais consistente, ou ao menos esboçado (ou pelo menos a mim pouco claro), a proposta de lei de diretrizes ao meu ver perde um pouco em organicidade e higidez. A falta de um mapeamento geral e organizado de toda problemática (ou da problemática fundamental) embutida no processo de aplicação e execução da medida sócio-educativa acaba tornando a proposta lacunosa em alguns pontos e incompleta em outros. A falta de conceitos precisos gera, não raramente, graves  ambigüidades.

 

Se por ocasião da edição do ECA muitas palavras foram inscritas sem que correspondessem a categorias jurídicas precisas (gerando controvérsias que tanto atormentam operadores e jurisdicionados), parece-me conveniente que agora se faça um esforço analítico de organização teórica dos temas que circundam a questão da aplicação e execução (principalmente esta última) das medidas, para que tenhamos uma lei mais vocacionada a garantir uma decidibilidade objetiva.

 

Sabendo-me demasiadamente genérico nesta introdução, vou exemplificar, a seguir, o que quero dizer. As anotações devem ser tomadas apenas como ilustração do tipo de construção doutrinária que reputo apropriada – senão indispensável – para que construamos uma proposta de lei consistente e melhoradora. O desenho vale, pois, mais pelos seus contornos do que pelo seu conteúdo, até porque não sou pesquisador, não domino técnicas de classificação nem de conceitualização. Todavia, acho que nós, todos juntos, ou dividindo tarefas, temos condições de elaborar esta base teórica mínima da qual fluirá, com naturalidade, a lei e da qual a lei menos poderá distanciar-se.

 

I - A conceitualização e classificação da medida sócio-educativa

 

Estava eu certo dia num debate sobre a medida de semiliberdade quando a discussão – focada no formato de tal medida – recaiu acerca dos limites que a distinguiam, na prática, da liberdade assistida e da medida  de internação. Sim, porque podemos ter uma medida de internação na qual o preceito do art. 94, § 2[1]º do ECA fosse de fato observado com rigor, saindo o jovem da unidade para tudo, estudar, profissionalizar-se, receber atendimento médico e psicológico, divertir-se e praticar esportes. Acrescente-se a isto a possibilidade de passagem de alguns festejos especiais com a família, sem escolta, como propõe esta lei.

 

Compare agora este regime com a semiliberdade tal com vigorou ou vigora, no Rio de Janeiro: sem possibilidade de atividades externas. Não seria aquela internação menos severa do que esta semiliberdade?  Pensemos, de outro lado, a semiliberdade no formato prescrito pelo Conanda (o jovem dorme em casa e vai para a unidade de dia) e comparemos com um regime de liberdade assistida comunitária desenvolvida numa ONG que oferece ao jovem atividades diárias. Não parecem por demais assemelhadas? Imaginemos, por fim, que a medida de prestação de serviços à comunidade tenha agora – como sugere a proposta – um programa e que, muito bem intencionado, este programa deseje envolver os familiares no  processo sócio-educativo, idéia que, aliás, já vi cogitada. Imaginemos  também que este programa adote estratégias para potencializar a assimilação do conteúdo pedagógico da medida, através de reuniões de reflexão sobre as tarefas realizadas. Poderiam estas duas estratégias ser consideradas inerentes à medida de modo que a ausência de assimilação pelo jovem da dimensão pedagógica do serviço e a falta de envolvimento da família no processo pudessem consistir empecilhos para a extinção do regime?

 

Estas situações-limite bem dão conta da necessidade de se definir com precisão os contornos das medidas. Para tanto, iremos conceituar e analisar a própria medida sócio-educativa em geral e, após classificá-las, tentaremos indicar elementos componentes do conteúdo de cada uma delas.

 

1.      Definição de medida sócio-educativa: Resposta estatal dotada de coercitividade[2]

dirigida em face de um jovem autor de ato infracional.

 

2.      Natureza da medida sócio-educativa: Sancionatória.

 

3.      Objetivo da medida sócio-educativa: prevenção especial, ou seja, inibir a reincidência.

 

4.       Conteúdo estratégico da medida sócio-educativa: pedagógico[3]. Existe a presunção legal (não admite prova em contrário) de que a prática infracional pode e deve ser inibida através da educação do infrator. Renuncia-se, aqui, às estratégias da punição, ou do “tratamento” do infrator para atingir o objetivo da medida.

 

5.      Posição hierárquica entre natureza, objetivo e conteúdo estratégico: é necessário estabelecer a posição relativa de importância entre um e outro aspecto que define a medida,  posto que, na prática, não raro, eles concorrem entre si. A hierarquização é um poderoso instrumento de objetivação da hermenêutica, capaz de dirigir a decisão  de casos concretos nos quais, por exemplo, a natureza sancionatória obriga solução que colide com o conteúdo estratégico que, por sua vez (apenas para problematizar mais ainda)  pode não conduzir ao atingimento dos objetivos da lei[4]. Cuida-se, este ponto, de algo tão relevante quanto difícil de resolver. Deixo em aberto as soluções. Faço apenas algumas observações:

 

i)                    A natureza sancionatória é um efeito indesejado, mas evidentemente presente, da necessidade de se atingir o objetivo preventivo especial da medida por meio de uma estratégia pedagógica ao qual o jovem deve se submeter, queira ou não queira (coercitividade). Observe-se que o objetivo da medida é satisfazer prioritariamente um interesse do grupo social (segurança, ordem pública) representado pelo Estado, e não um interesse pessoal do adolescente.  A medida, portanto, não é aplicada em nome do superior interesse do jovem. Isto outorga ao jovem o direito inalienável de opôr-se à pretensão do Estado que lhe cerceará direitos fundamentais (ligados ao conceito amplo de liberdade à autodeterminação) que por outras razões não poderiam ser restringidos. 

 

ii)                   Da natureza sancionatória decorre o direito ao garantismo[5], ou seja, de o jovem cercar-se de todo um arsenal que lhe permita resistir à pretensão estatal de educá-lo independentemente de seu assentimento. Se a medida é sempre sancionatória, o garantismo deve ser onipresente.

 

iii)                 Daí deriva o que entendo como a regra de ouro deste ponto: “nenhuma garantia outorgada ao adolescente processado pode ser suprimida sob argumento de ser antipedagógica ou de frustrar o interesse superior do jovem”.  A natureza, pois, prevalece, no meu modesto ver, para este fim, e somente para este fim, sobre o conteúdo estratégico.

 

iv)                 De outro lado, como sancionar não é o objetivo (é efeito colateral, iatrogenia como nos lembra o Sêda), nem estratégia (a punição, mostra-nos a pedagogia e a psicologia comportamental, é forma desacertada de educação) temos aqui outra regra hermenêutica: “nenhuma medida pode ser aplicada sob pretexto de que outra mais branda significaria impunidade”.  Mais. Se sancionar não é o objetivo da medida, caso se atinja o escopo de prevenção especial através de outras maneiras (às vezes pelo natural amadurecimanto) a medida perde seu objetivo, ou melhor, seu objeto e deve ser extinta.

 

6.      Classificação das medidas sócio-educativas

 

6.1  Quanto à severidade

 

Severidade é definida como grau de controle sobre a liberdade de ir e vir do sócio-educando incorporado na medida sócio-educativa. Classicamente, os regimes de severidade são classificados conforme o ambiente no qual se dão: aberto, semi-aberto e fechado.

 

 

Quadro classificatório das medidas quanto à severidade

                                                                      

Tipo de ambiente

A) Local de permanência OU

 

B) Recolhimento institucional

Saída ou trânsito na comunidade

Guarda do

Educando

Segurança estática do estabelecimento

Característica do controle do cotidiano

A-      Amplitude

B-      Agente controlador externo

C-      Tipo

D-    Momento

Concordância do jovem com as condições do regime

Meio[6] Fechado

A)     Instituição

B)      Sim

Viável somente com cautelas, salvo uma exceção.

Do diretor da unidade de internação.

Presente

A) Total, em todos os níveis.

B) Pelo pessoal da instituição.

C) Heterodisciplinado.

D) Simultâneo, imediato.

Não exigível.

Meio Semi-aberto

A)     Instituição

B)      Sim

Viável sem cautelas de segurança, salvo exceção.

Compartilhada entre o diretor da unidade e os pais ou responsáveis.

Ausente

A) Total, em todos os níveis.

C)      Pelo pessoal da instituição e pela família.

C) Parcialmente autodisicipli-nado.

D) Mediato.

Exigível

Meio Aberto

A)     Sede do responsá-vel.

B)      Não

Prejudicado – o jovem já esta na comunidade, inteira-mente

Dos pais ou responsáveis.

Prejudicado.

A) Parcial, em relação às condições impostas.

B) Pelo orientador e/ou pela família.

C) Autodisciplina-do.

D) “A posteriori

Exigível.

 

 

6.2  – Quanto à forma de cumprimento

Por tarefa – aquelas cuja estratégia pedagógica, bem definida, resume-se à realização, pelo sócio-educando, de uma determinada tarefa de cuja realização, exclusivamente, depende a averiguação do cumprimento.

 

Espécies: Obrigação de reparar o dano e prestação de serviços à comunidade.

 

Características: a) sujeitas a critérios objetivos de extinção, dispensando relatórios técnicos[7] de avaliação; b) não admitem progressão[8] e reversão; c) podem ser cumuladas com quaisquer outras.

 

Por desempenho – aquelas cuja estratégia pedagógica, difusa, é definida e redefinida conforme as necessidades demonstradas pelo sócio-educando ao longo do processo sócio-educativo e de cuja assimilação de conteúdo pelo jovem depende a averiguação do cumprimento.

 

Espécies: Internação, semiliberdade e liberdade assistida.

 

Características: a) estão sujeitas a critérios subjetivos de extinção, dependendo de relatórios técnicos de avaliação; b) admitem, a princípio, progressão[9] e, em tese, todas as espécies de regressão; c) podem ser cumuladas apenas com outra medida por tarefa (as medidas de desempenho não podem ser cumuladas entre si).

 

6.3  - Quanto à duração

Quadro classificatório das medidas quanto ao tempo de vigência

 

                        instantânea

 

                                                                       determinado

                                                          

DURAÇÃO                            tempo mínimo

 


                                               indeterminado

continuada

 


                       

                                               legal

                        tempo máximo

 

                                                                       judicial

 

 

1.      Instantânea – aquela cujo cumprimento se dá por meio de um acontecimento único e determinado que não se protrai no tempo.

 

2.      Continuada – aquela cujo adimplemento se protrai no tempo.

 

3.      Continuada com tempo mínimo determinado – aquela cuja cessação se mostra inviável antes que seja cumprida por um período mínimo fixado por lei ou sentença.

 

4.      Continuada com tempo mínimo indeterminado – aquela que pode cessar a qualquer momento desde que se configure fato ou situação, superveniente à sua aplicação,  justificadores da cessação.

 

5.      Continuada com tempo máximo legal – aquela cujo tempo máximo de duração é estabelecido de forma fechada na lei, não admitindo ampliação pelo magistrado na sentença de conhecimento ou em incidente de execução. É o sistema adotado pelo ECA.

 

6.      Continuada com tempo máximo judicial – aquela cujo tempo máximo de duração é estabelecido na sentença, não admitindo prorrogação na fase de execução ainda que o limite sentencial seja inferior ao máximo legal.

 

Quadro classificatório das espécies de medidas sócio-educativas conforme critério de duração – Segundo o ECA.

 

Medida

Duração

Tempo máximo

Tempo mínimo

Obs.

Internação

Continuada

Legal

Indeterminado

 

Internação-sanção

Continuada

Judicial

Indeterminado

O juiz pode estabelecer limite inferior a três meses

Semiliberdade

Continuada

Legal

Indeterminado

 

Liberdade assistida

Continuada

Legal

Determinado

Embora a medida tenha em geral prazo certo na sentença pode ser revogada e prorrogada a qualquer tempo

Prestação de serviços à comunidade

Continuada

Judicial

determinado

Tempo máximo = tempo mínimo

Obrigação de reparar o dano

Instantânea

Prej.

Prej.

Prej.

Advertência

Instantânea

Prej.

Prej.

Prej.

 

6.4  – Quanto à competência de gerenciamento e fiscalização direta da execução

 

De âmbito do executivo estadualmedidas em meio fechado e semi-aberto;

 

De âmbito do executivo municipal – medidas de Liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade;

 

De âmbito do judiciário – advertência e  obrigação de  reparar o dano.

 

7. Definição das medidas[10]

 

As medidas são definidas de acordo com as classificações sugeridas. Assim, temos o seguinte quadro:

 

Medida

Competência de execução

Duração

Forma de cumprimento

Severidade

Internação

Executivo estadual

Continuada de tempo máx legal e tempo min indet

Por desempenho

Meio fechado

Semiliberdade

Executivo estadual

Continuada de tempo máx legal e tempo min indet

Por desempenho

Meio semi-aberto

Liberdade assistida

Executivo municipal

Continuada de tempo máx legal e tempo mín det

Por desempenho

Meio aberto

PSC

Executivo municipal

Continuada de tempo máx judicial e tempo mínimo determinado

Por tarefa

Meio aberto

Obrigação de reparar o dano

Judiciário

Instantânea

Por tarefa

Meio aberto

Advertência

Judiciário

Instantânea

Prej

Meio aberto

 

II – Temas gerais do processo de execução

 

Após digressões necessárias de caráter preambular do tipo acima exemplificado, podemos imaginar a construção doutrinária que demandaria o processo de execução propriamente dito. Numa rápida elocubração sistematizei as questões no seguinte quadro:

 

Quadro geral

 

                        Cumulatividade

 

 

                                                                                  Homogênea

                                                           subsunção

                                                                                  Heterogênea

 

 


Temas              Modificação da                                                                      por reavaliação

Gerais do         situação sócio-                                    progressão

Processo de     educativa no                                                               compulsória

Execução         processo de exe-

                        cução

                                                                                                          internação-sanção

 

                                                           substituição      regressão         restabelecimento

 

                                                                                                          reversão

 

                                                                                  alteração

 

                                                                                 

pura

 


                                                           extinção                                   monitorada

 

                                                                                 

                                                                                              compulsória                                                   

                                                                                             

                                                                                              facultativa

 

suspensão

 

 

A proposta de lei submetida à discussão cuida direta ou indiretamente de todos estes temas. Creio ser bastante salutar categorizar a problemática, posta sob julgamento de forma muito freqüente em nosso dia-a-dia, e sobre a qual os magistrados decidem sem nenhum referencial doutrinário ou legal, com incrível diversificação. Mais uma vez repito: minhas considerações são provisórias e há  inúmeras possibilidades de pensar as questões. Quero mostrar apenas o quanto parece necessário organizar globalmente a reflexão e como as coisas parecem ficar mais claras e precisas quando nos esforçamos neste sentido.

 

Trataremos dos temas em seguida, iniciando pela imbricada temática da cumulitativade, passando depois à discussão das susbstituições e suas inúmeras configurações particulares.

 

II.1 – Cumulatividade

 

O art. 99, combinado com 113, do ECA, aliás em consonância com a normativa internacional, estabelece que as medidas sócio-educativas podem ser aplicadas cumulativamente. O que é cumulação, quais medidas são cumuláveis, por exemplo, são questões que demandam reflexão e organização. Um jovem, por exemplo, cumpria PSC e, por outra infração, foi inserido em semiliberdade por outro ato infracional. Está ele desonerado da medida mais branda? Por que?

 

Conceito – possibilidade de cumprimento simultâneo de duas medidas sócio-educativas diversas aplicadas por uma mesma sentença ou por sentenças diversas.

 

Cabimento da cumulatividadesomente são cumuláveis as medidas que detenham o mesmo grau de abrangência pedagógica. Abrangência pedagógica consiste na amplitude da intervenção da estratégia pedagógica, ou em outras palavras, na intensidade dos meios pedagógicos utilizados na inibição da reincidência. A amplitude pedagógica, de forma prática, pode ser tida como maior ou menor segundo o grau de severidade da medida. A amplitude pedagógica das medidas em meio fechado é maior da que o das medidas de meio semiaberto que por sua vez é maior do que a amplitude pedagógica das medidas em meio aberto. As medidas em meio aberto, LA, PSC e ORD, todas detêm a mesma amplitude.

 

Substrato pedagógico de compreensão do instituto - a utilização dos recursos de maior intensidade (do meio fechado e semi-aberto) torna desnecessária (portanto inócua, prejudicada) a utilização dos recursos pedagógicos de menor intensidade tendo em vista o conteúdo estratégico da medida e seu objetivo.

Diagrama representativo das abrangências pedagógicas das medidas

 


                                                                                     internação

 


                                              

 

 

 

 

                                                                                            semiliberdade

 


                                                                                          liberdade assistida

 

                                                                                     P S C

                                                                                                         

                                                                                  Obrigação reparar dano

 

A regra geral da cumulatividade é que somente podem se cumular medidas DIFERENTES classificadas no MESMO grau de amplitude pedagógica.

 

Como conseqüência, somente se mostram cumuláveis entre si as medidas em meio aberto (dotadas da mesma amplitude).      

 

Outra regra, embutida nesta mais geral, é a de que as medidas sócio-educativas de desempenho não são cumuláveis entre si. As medidas de tarefa podem ser acumuladas entre si e com outra de igual amplitude (LA).

 

Persiste, para pensar:

 

Realmente a obrigação de reparar o dano e a PSC não são cumuláveis com semiliberdade ou mesmo internação? Particularmente, eu não acho conveniente.

 

II. 2 – Subsunção

 

A subsunção (termo que extraí do anteprojeto) trata de questões extremamente problemáticas que atormentam o nosso cotidiano. Talvez seja o tema mais complicado de todos. O que fazer quando o jovem infraciona várias vezes e recebe várias sentenças aplicando medidas iguais ou diferentes não cumuláveis?

 

Conceito – Incorporação lógica de uma medida sócio-educativa por outra de igual ou maior abrangência pedagógica aplicada em razão de outro ato infracional.

 

Postulados de compreensão do instituto.

 

·        No processo de execução da medida sócio-educativa objetiva-se, sempre, o ideal pedagógico que, alcançado, implica a perda do objeto sócio-educativo.

 

·        Objeto de uma medida singular é idêntico ao objetivo de várias medidas aplicadas ao mesmo jovem.

 

·        A melhor medida a seguir outra mais severa deve ser definida a partir da intervenção pedagógica e não dos atos infracionais que precederam esta intervenção.

 

·        A medida mais severa implica abrangência pedagógica maior, dentro da qual inclui-se a abrangência pedagógica das medidas mais brandas.

 

·        Medidas idênticas têm o mesmo objetivo, a mesma abrangência, que não se altera em razão da pluralidade.

 

OU, numa outra formulação:

 

·        A intervenção se dá sobre a pessoa do infrator nas condições subsistentes à época do ato infracional.

 

·        Estas condições podem ensejar a prática de uma ou mais infrações.

 

·        As medidas sócio-educativas aplicadas em face de cada infração convergem em um mesmo objetivo.

 

·        O objetivo da medida é inibir a reincidência e não responsabilizar o jovem por cada uma das infrações por ele cometidas.

 

·        Através do conteúdo estratégico pedagógico, espera-se do jovem um aprendizado, que, alcançado, faz com que perca sentido outras medidas que, invariavelmente, terão o mesmo objetivo. Se já alcançado o objetivo de uma medida pelo sucesso atingido por outra medida anteriormente cumprida, há perda do objeto desta nova medida.

 

·        Completado o ciclo de intervenção sobre a pessoa, perdem eficácia as medidas subseqüentes aplicadas em face de infração anterior ao início do ciclo.

 

Nomenclatura

 

Medida subsunçora - a que incorpora

Medida subsumida – a que é incorporada

 

Classificação

 

a) Quanto à espécie de medidas envolvidas:

 

a.1) Homogênea – Subsunção de medidas idênticas;

 

a.2) Heterogênea – Subsunção de medida mais branda por outra mais severa;

 

b) Quanto ao momento de ocorrência da infração ensejadora das medidas sob subsunção:

 

b.1) lógica - Quando as medidas a serem subsumidas decorrem de infrações anteriores ao início de cumprimento de uma das medidas;

 

b.2) modificadora - Quando uma das medidas a serem subsumidas decorre de infração praticada no curso de vigência da outra medida.

 

c) quanto ao momento em que se opera a subsunção:

 

c.1) Anterior – Incorporada no processo de execução. Prevendo a subsunção atual, o juiz deixa de aplicar medida ou aplica remissão (remissão quando o jovem está internado);

 

c.2) Atual  - Promovida no curso do processo de execução;

 

c.3) Posterior – Quando a medida subsunçora já foi modificada[11].

 

Regras da subsunção

 Operada a subsunção:

·        Não há alterações em quaisquer dos prazos da medida subsunçora, exceto na hipótese de subsunção modificadora.

 

·        Pode haver revisão do plano individual.

 

·        A medida subsumida perde inteira vigência.

 

·        Prevalecem as cláusulas mais severas.

 

Polêmica

Merece um adendo especial a construção de uma dogmática que regule a concorrência de medida sócio-educativa com pena criminal ou com prisão cautelar

 

 

II.3 – Substituição

 

As substituições compõem a parte nuclear dos incidentes em execução de medida sócio-educativa. O quadro abaixo[12] dá conta do largo panorama tratado nesta temática. Parece-me especialmente importante a distinção entre as diversas espécies de regressão.

 

 

Outra classificação da progressão:

 

Clausulada – na qual o abrandamento do regime vem condicionado ao cumprimento de condições que, desatendidas, permitem o restabelecimento da medida.

 

Não clausulada – sem compromisso – não admite restabelecimento.

 

II. 4 – Extinção

 

Conceito: Decisão que põe termo ao processo de execução de medida sócio-educativa.

 

Espécies:

 

1. Quanto à vinculação do juiz:

 

a)COMPULSÓRIA – Decretada diante de circunstância objetiva que torna inviável ou absolutamente inócuo a vigência da medida sócio-educativa.

 

Hipóteses:

·        Decorrente de condenação criminal do jovem  a pena privativa de liberdade;

·        Decorrente do óbito do sócio-educando;

·        Decorrente do alcance da maioridade plena;

·        Decorrente do cumprimento das tarefas nas medidas de PSC e obrigação de reparar o dano.

 

b) FACULTATIVA – Cuja decretação depende de avaliação técnica do aproveitamento da medida, em caso de medidas por desempenho.

 

2. Quanto à definitividade da intervenção estatal

 

a) PURA – Por termo à medida, sem qualquer ressalva.

 

b) MONITORADA – põe termo à medida com ressalvas sem caráter sócio-educativo. Duas hipóteses:

 

b.1) COM MEDIDA PROTETIVA – A decisão encerra a medida sócio-educativa e aplica medida de proteção

 

Questão permanece o acompanhamento judicial só da medida protetiva?

 

b.2) COM ACOMPANHAMENTO DE EGRESSO – Põe termo à medida de internação ou semiliberdade ou internação, seguindo ativo o processo de execução por haver relevância em se monitorar – não o jovem – mas a efetividade do programa de acompanhamento de egressos.

 

II.5 – Suspensão

 

Conceito – Decisão que sobresta o processo de execução de medida sócio-educativa diante do advento de uma causa suspensiva.

 

Hipóteses de suspensão

 

Hipótese

Característica

Para tratamento de saúde mental, inclusive drogadição.

Ao término do tratamento, se durar mais de três meses, por avaliação técnica será verificada a persistência do objeto sócio-educativo.

Para tratamento de demais doenças graves

 

Para confirmação da perda do objeto sócio-educativo

No caso de interrupção da medida ou demora no início de sua execução, comparecendo o jovem e apresentando  indícios da perda do objeto sócio-educativo, o magistrado pode suspender a retomada imediata do regime até que o caso seja avaliado.

Pela não localização do jovem

Esgotadas as possibilidades de localização do jovem, promove-se a suspensão do processo até nova provocação ou advento da maioridade plena.

 

 


Notas:

[1] Utilização preferencial dos recursos da comunidade no cumprimento das obrigações inerentes ao regime de internação – princípio da incompletude institucional.

 

[2] Coercitividade: característica da medida que a torna de cumprimento compulsório, independentemente da anuência do jovem, legitimando o Estado valer-se do uso da força para exigir seu adimplemento. É a característica que distingue a medida sócio-educativa da medida de proteção.

 

[3] A compreensão que o jovem faz de si mesmo e das circunstâncias que o rodeia, ainda que promovida com técnicas psicoterápicas (por psicólogos, obviamente), inclui-se neste conteúdo estratégico. 

 

[4] Sinara Porto Fajardo, por exemplo, nos fala em seu texto, que “a concepção pedagógica, em suas vicissitudes,  pode ser anti-garantista, tanto quanto em outro momento princípios garantistas podem ser questionáveis do ponto de vista pedagógico. O garantismo, derivado da natureza sancionatória, dá ao jovem o direito de negar a imputação. A estratégia pedagógica aconselha-o, usualmente, à assunção da responsabilidade”.

 

[5] Talvez a questão do garantismo, por sua relevância, merecesse um capítulo à parte. Quero lembrar que não me parece (estou tentando aprofundar esta idéia) indispensável recorrer ao conceito de sanção (natureza sancionatória) para fundamentar a necessidade de observância das garantias. Estas últimas podem se legitimar, perfeitamente, pelo próprio conteúdo estratégico pedagógico da medida. Nada mais educativo do que se mostrar ao jovem que justiça não se faz se não se der direito de voz ao imputado. O sistema de Justiça e o processo devem dar ao adolescente o exemplo (que ensina  mais que mil palavras como nos lembra o Antonio Carlos Gomes da Costa) de que na vida, sempre se deve considerar os dois (ou mais) lados da questão antes de se tomar uma decisão importante.

 

[6] Utiliza-se meio, e não regime, terminologia consagrada na execução penal, por que os regimes são maneiras de se cumprir a medida privativa de liberdade. A liberdade assistida, em nossa classificação não é medida privativa de liberdade, mas sim restritiva de direitos. Não tem analogia com o regime aberto da execução penal.

 

[7] Relatório técnico é definido como: estudo interdisciplinar que avalia a assimilação, pelo jovem, do conteúdo pedagógico decorrente da medida.

 

[8] Tanto por serem de tarefa, quanto por serem todas elas de meio aberto.

 

[9] Excluída a liberdade assistida, que é de meio aberto.

 

[10] É claro que a classificação pura  e simples não dá os elementos necessários para definir cada medida. Contém inclusive elementos acidentais, deixando de estabelecer outros notoriamente essenciais. Daí porque reconheço a necessidade de se enunciar uma definição de cada medida, tarefa a que não me propus por ora.

 

[11] É o caso de o jovem, por exemplo, ter cumprido internação, e progredido para medida mais branda e ser surpreendido com sentença aplicando nova medida de internação por fato anterior o início do cumprimento da medida de internação anterior.

 

[12] A página do quadro está configurada na opção “paisagem”