REFLEXÕES
SOBRE A PROCRIAÇÃO ARTIFICIAL E OS DIREITOS DAS CRIANÇAS
Paulo Antonio de Carvalho Fortes
Professor da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Centro de Estudos e Pesquisas de Direito
Sanitário.
Resumo: O autor levanta algumas indagações de caráter ético e
jurídico sobre as repercussões nos direitos das crianças em razão da utilização
do processo de procriação artificial. Comenta normatizações e decisões
judiciais estrangeiras referentes à matéria.
Palavras-chave: responsabilidade, direito, ética,
prática médica.
Ciência moderna e os direitos humanos
A evolução tecnológica e científica que
vêm ocorrendo nas últimas décadas, trouxe um grande poder ao Homem para atuar
sobre as condições físicas e psíquicas do próprio ser humano. A realização de
transplantes de órgãos e de tecidos, a viabilidade do reconhecimento antenatal
das condições de viabilidade do feto, as atividades da engenharia genética como
a manipulação de gametas, a possibilidade da escolha do sexo da criança a ser
gestada, a inseminação artificial, a fertilização “in vitro”, entre outras, são
inovações tecno-científicas que trazem a imperiosa necessidade de profunda
reflexão filosófica, ética e jurídica sobre as repercussões dessas práticas nos
direitos fundamentais que devem reger a vida humana.
As conquistas científicas devem visar o
bem do ser humano e por isso há necessidade que seus resultados e conseqüências
sejam limitados pela manutenção das garantias e liberdades dos indivíduos, preservando-se
a dignidade do ser humano, seu direito à vida, à saúde e à integridade física e
psíquica. O interesse de cada indivíduo deve prevalecer sobre o da sociedade e
o da ciência, conto disposto na Declaração de Helsinki, de 1964, elaborada pela
Associação Médica Mundial, a respeito da realização de pesquisas sobre o ser
humano[1].
A dignidade da pessoa humana é princípio
inserido na Norma Constitucional Brasileira (art. 1o, III) e
qualquer atividade científica deve ser balizada por tal diretriz, assim como
objetivada pela promoção do bem comum (art. 3o, lV).
O homem, além de seu caráter individual,
tem uma dimensão social traduzida no reflexo de sua vida, suas atitudes, seus
conceitos, seus julgamentos, sua reputação nos contextos sociais onde está inserido.
Sendo assim, o indivíduo deve ter assegurado o poder da livre manifestação de
sua vontade sobre tudo o que disser respeito a seu corpo, expressando-a através
do consentimento. Consentimento este livre de coações físicas e psíquicas, de
erros, enganos ou atos dolosos. Esclarecido por meio de informações que
norteiem suas decisões sobre aspectos biológicos, jurídicos, éticos e
econômicos.
Cabe dizer que o consentimento só é
válido para atos lícitos, não exonerando práticas culposas ou dolosas que infrinjam
os limites estabelecidos pela lei.
Princípio este a ser também resguardado
nas reflexões sobre as medidas científicas modernas e na sua relação com os
direitos humanos, é o que coloca o corpo humano como fora das relações
comerciais, insuscetível de apropriação e de alienação. Tal princípio é
reforçado pelo disposto no art. 199, § 4° da Constituição Federal, referente à
remoção de tecidos, substâncias e órgãos humanos para pesquisas, transplantes e
tratamentos, vedando qualquer forma de comercialização.
Direito à reprodução
O poder de intervenção do homem sobre o
processo biológico, que vinha até agora sendo controlado por via natural, leva
ao manifesto desejo dos indivíduos em aceder a essa nova forma de liberdade como
também da própria sociedade em utilizá-la em seu proveito[2]. A atual
Carta Constitucional refere-se ao direito do cidadão brasileiro ao planejamento
familiar (art. 226 § 7o), tanto para evitar a geração de crianças,
quanto para procriá-las, direito baseado
na livre decisão do casal e cabendo ao Estado proporcionar recursos de
informação e de educação para garantir a eficácia do princípio.
Resta saber se devem ser estabelecidas
normas legais que fixem os limites de intervenção da sociedade no domínio da
reprodução humana artificial por intermédio de regulamentação
infraconstitucional, ou se é preferível deixar o assunto na dependência da
vontade do casal, da consciência ética dos profissionais de saúde e das
decisões deontológicas e jurisprudências, quando da resolução de problemas
concretos advindos da realidade dos fatos. CALLAHAN nos lembra que ainda não há
um consenso na sociedade sobre o comportamento ético da tecnologia existente
para planejar, limitar ou interromper uma gravidez; ainda não há o preparo
adequado para avaliar-se eticamente as mais novas alternativas de reprodução
artificial[3].
A inexistência de regras específicas faz
com que o estudo e a discussão sobre esta temática seja baseada nos princípios
gerais da ética e do direito brasileiro e nas experiências provenientes dos
países onde as técnicas de reprodução artificial estão mais desenvolvidas e já
vêm suscitando, há algum tempo, interrogações legais e éticas.
A procriação artificial
Consiste na inseminação cirúrgica de uma
mulher com o esperma de seu marido, companheiro ou terceiro, ou a fecundação
"in vitro" graças aos gametas do casal ou de terceiros.
A procriação artificial se utiliza de
dois métodos básicos. A técnica de inseminação artificial de gametas masculinos
diretamente no útero feminino e a fertilização realizada "in vitro",
onde há o encontro dos gametas masculinos com o óvulo feminino em condições
laboratoriais dando origem a um embrião, que por técnicas de congelamento e
descongelamento, são conservados para serem posteriormente implantados no útero
da doadora do óvulo ou de outra mulher.
A inseminação pode ser homóloga, quando
são utilizados os gametas do próprio casal ou heteróloga, quando o embrião
resultar de gametas provenientes de terceiros, estranhos ao casal.
Há, portanto, três situações possíveis
para a procriação artificial:
I - intervenção no seio do próprio casal
lI - intervenção com terceiro doador de
gametas
lll – intervenção com a participação de
terceiro procriador, denominado de mãe substituta ou popularmente conhecida
como “barriga de aluguel".
Atualmente, no Brasil, estima-se que as
técnicas utilizadas levem a um resultado desejável, ou seja, o nascimento de
uma criança normal, em tomo de 10 a 25% das vezes[4].
A procriação artificial e os direitos das
crianças
Há um direito irrestrito à procriação
artificial? Todas as pessoas têm, em quaisquer condições, direito a ter uma
criança gerada artificialmente, sob a alegação do princípio da autonomia e da
liberdade individual?
Um casal com graves distúrbios mentais
pode requerer a utilização de técnicas de reprodução artificial? Será permitido
que a mulher solteira ou viúva possa praticar procedimentos que resultem em uma
gravidez artificial? É ético e legal a inseminação artificial de gametas
masculinos ou de embrião derivado de progenitor já falecido?
Quando prevalece o direito dos pais em
situação de confronto com os direitos das crianças? É direito da criança ter
uma família ao nascer, constituída de pai e mãe, ou basta somente a presença materna?
A criança deve ser encarada como um fim em si mesma ou um meio para a
realização de interesses ou desejos dos adultos?
No final de 1992, o Conselho Federal de
Medicina estabeleceu algumas regras para a utilização da “reprodução
assistida”, através da resolução no 1358/92, trazendo
resposta a algumas das indagações feitas. Permite, esta resolução, que toda
mulher legalmente capaz possa ser receptora das técnicas de reprodução
assistida, quando de sua concordância[5].
As atuais proposições legislativas
francesas, por exemplo, vedam a reprodução artificial para mulheres solteiras e
viúvas, argumentando que deve prevalecer o interesse da criança sobre a
satisfação dos pais ou da mulher em trazer alguém a este mundo e que essa tem o
direito de nascer no seio de uma família constituída[6].
Recentemente a Suprema Corte americana
rejeitou o recurso impetrado por uma senhora que ensejava utilizar os óvulos
fertilizados pelo sêmen congelado de seu ex-marido, contra a vontade deste[7].
Será esse o entendimento que tem a
sociedade brasileira neste momento histórico?
As técnicas de procriação artificial
foram desenvolvidas como meios de luta contra a esterilidade masculina,
feminina ou de ambos os membros do casal. Sendo assim, podem ser utilizadas
como uma nova forma de procriação, vindo substituir a procriação natural, sendo
realizada sem razões médicas, simplesmente para conforto do casal ou da mulher?
Um casal que é capaz de procriar
normalmente está legitimando a demandar a realização de procedimentos de
procriação artificial?
Antes da realização dos procedimentos
técnicos, o profissional de saúde deve constatar devidamente a existência de
esterilidade irreversível ou a presença de condições de forte transmissão de
afecções consideradas como incuráveis pelos conhecimentos científicos do
momento?
Fundamental é que os procedimentos devam
ser realizados por profissionais médicos devidamente habilitados e em
instituições que congreguem recursos humanos, técnicos e materiais condizentes
com as necessidades científicas para tais práticas.
Indaga-se, ainda, se é papel do Poder
Público normatizar sobre quais parâmetros e variáveis devam ser consideradas na
escolha dos doadores.
Consideramos que a doação deve manter o
princípio da gratuidade, ser uma ação altruística, um gesto humanitário e não
uma transação comercial, pois o corpo humano está fora das relações comerciais.
Sabe-se da dificuldade de se manter este princípio na prática diária das
atividades de pesquisa e de assistência reprodutiva, mas consideramos que para
sua preservação faz-se necessário que ocorram campanhas de esclarecimento e
conscientização sobre os benefícios do gesto da doação com essa finalidade.
É da essência do processo que se mantenha
o anonimato do doador. Correntes doutrinárias advogam o anonimato absoluto,
vedando o conhecimento da identidade do doador dos gametas em todas as
condições, e argumentam que, assim, a criança poderá crescer e desfrutar de sua
filiação suposta de maneira plena[8].
Nesse caso a lei deve estabelecer que não
exista relação alguma entre o doador e a criança nascitura devendo, os vínculos
desta, ser apenas com os pais naturais.
Há outras correntes que defendem o
anonimato relativo, podendo este ser rompido em condições especiais mediante
autorização judicial. Lei sueca, de 1980, permite à criança que atingiu sua
maioridade, ser informada de sua filiação biológica. FERRAZ expôs a mesma tese,
considerando que o sigilo relativo ao doador poderá ser rompido quando for de interesse da
criança obter informações genéticas extremamente necessárias para sua vida ou
sua saúde[9].
Quanto ao doador, este não deve ter o
poder de influenciar na escolha dos receptores de suas células germinais e nem
ter o conhecimento da identidade dos donatários[10].
O consentimento à prática de procriação
artificial é atribuído aos membros do casal, seja qual for sua condição
marital, devendo ser expresso. No caso de doação de gametas deve-se obter o
consentimento do doador para a utilização de seu patrimônio genético. Quando
casados ou em união estável, será necessário o consentimento do cônjuge ou
companheiro, sob pena de ser alegada violação grave ao dever conjugal de
exclusividade de procriação no seio do casal.
Questão altamente controversa refere-se à
intervenção de terceiro procriador - a maternidade de substituição.
Países como a Alemanha, a França e a Austrália impedem essa prática, que é
permitida por diversos estados americanos. A Igreja Católica, de grande
influência cultural em nosso país, através do Direito Canônico, se coloca em
posição frontalmente contrária a esse tipo de procriação[11].
O Comitê permanente pura o estudo dos
aspectos éticos da reprodução humana da Federação Internacional de
Ginecologistas -Obstetras, em 1989, pelo entendimento da maioria de seus
membros, considerou que a maternidade de substituição pode ser admitida como
uma prática válida em situações muito particulares e raras, mas todo o processo
deve ter a aprovação de um Comitê de Ética e manter-se sob estrito controle
médico. Alertam para que sejam evitadas situações de exploração das mulheres
que, em virtude de suas precárias situações sociais aceitem serem mães
substitutas utilizando seu corpo como fonte financeira[12].
A Resolução do Conselho Federal de
Medicina estabelece validade ética para o procedimento em caso de problema
médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética. A mãe
substituta deverá ser da família da doadora genética, num parentesco de até
segundo grau, cabendo aos Conselhos Médicos Regionais a autorização para outras
situações[13].
A utilização dessa técnica traz o
questionamento de saber quem é a mãe verdadeira da criança nascida? A mãe
biológica, produtora do óvulo ou aquela responsável pela gestação e pelo parto,
a mãe natural?
Quem deve ficar com a criança em caso de
discordância jurídica em casos concretos? A legislação francesa optou por
considerar que é a mãe natural a responsável pela criança. Por sua vez, a
jurisprudência americana conduziu a uma solução oposta, pois toma em conta o contrato
estabelecido entre os genitores biológicos e a "mãe de aluguel".
Acatando o principio da responsabilidade contratual, determina que a criança
permaneça com os pais biológicos.
Por fim, vale ressaltar que na ausência
de regras éticas e jurídicas já definidas e com a ampliação das possibilidades
em nosso país para a realização das técnicas de procriação artificial, é
imperioso que a sociedade, juntamente com os profissionais de saúde preocupados
com a questão ética, conto os juristas, ampliem a discussão e a reflexão sobre
o tema e suas conseqüências sociais sobre os direitos das crianças.
Notas:
[1]
BELANGER, M. Droit international de la santé por les textes. Paris,
Berger-lebrault, 1989, p. 304-5.
[2]
REVILLARD, M.; REVILLARD, J. P. Aspects ethiques et
juridiques liés à la maitrise de la reproduction. Journal de
Médicine Légale. 26 (3): 215-240, 1983.
[3]
CALLAHAN, S. The ethical challenge of the new reproductive
technology. In MONAGLE, J. F.; THOMASMA, D. C. ed. Medical Ethnies.
Rockville. Aspen
Publishers Inc., 1988. p. 26-37.
[4]
CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Reprodução assistida:
amplo debate. Jornal do CREMESP: 48: 6-7, 1898.
[5]
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução no 1358/92 de 11.11.92.
[6]
SUREAU, C. De l´ethique au droit. Du droit à la pratique. Concours Médical. 110
(3): 3977-3982, 1988.
[7] FOLHA
DE SÃO PAULO. Justiça impede mulher de usar os óvulos fertilizados pelo
ex-marido, 23 de fevereiro de 1993.
[8]
SUREAU, C. Aspects éthiques de la réproduction
humaine. Concours
médical, 111 (1): 43-45, 1989
[9]
FERRAZ, S. Manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma
introdução. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991.
[10]
SUREAU, C. De l´ethique au droit. Du droit à la pratique. Concours médical, 110
(3): 3977-3982, 1988.
[11]
PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C. de P. Problemas atuais de bioética. São Paulo:
Edições Loyola, 1991, p. 143-144.
[12] SUREAU, C. Aspects
éthiques de la réproduction humaine. Concours médical, 111 (1): 43-45, 1989
[13]
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução no 1358/92 de
11.11.92.