VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: O que a escola tem a ver com isso?

 

Nelma Pereira da Silva

Psicóloga e Coord. do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Pe. Marcos Passerini.

 

Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei Federal 8.069/90, em julho de 1990, toda população infanto-juvenil passou a ser respeitada enquanto pessoa em condição peculiar de desenvolvimento que precisa de cuidados especiais, haja vista que ainda não atingiu seu grau de maturidade (nem físico, nem cognitivo, nem emocional), e que portanto existe um grau relevante de dependência desta para com a pessoa adulta (seus responsáveis). Segundo esta lei, em seu art. 5o, nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade, e opressão...”, alegando inclusive casos de punição para qualquer pessoa que se contraponha aos direitos fundamentais dos mesmos.

A partir deste novo olhar para a criança e o adolescente passou-se a formar uma humanidade mais saudável, mais comprometida com uma cultura que valorize o ser humano. No entanto, é mister que estejamos mais vigilantes para o nosso cotidiano. Como parte das estatísticas de violência praticada em nossa sociedade destaca-se com grandes proporções a violência contra crianças e adolescentes, na qual a família aparece como grande violadora dos direitos infanto-juvenis. Esta violência familiar denota uma questão muito séria - ou não estamos preparados para cuidar de nossas crianças ou chegamos ao extremo da expressão da nossa perversão, o que seria um absurdo. Neste caso, tomaremos como base a primeira hipótese que é caracterizada por abusos ou maus tratos, e classificam-se como: violência física, abuso sexual, violência psicológica e negligência, destacando-se como sendo os mais freqüentes, dentre inúmeras outras formas, não menos importantes, mas que são mais raros.

KOLLER (2000) nos chama a atenção que não é muito simples identificar a violência infrafamiliar. Somente uma atenção maior e um certo grau de suspeita podem chegar a um diagnóstico. Isto porque geralmente a família tenta camuflar seus atos de violência, omitindo os fatos ou ameaçando a criança para não os revelar sob pena de punição. Com esta ressalva, cabe aos profissionais comprometidos com a causa, sejam da saúde e também da educação, se voltarem para a descoberta da raiz dos problemas apresentados por crianças e adolescentes. É sempre bom suspeitar das fatalidades, pois pode ter como pano de fundo uma relação de muita agressividade e como conseqüência sérios prejuízos para o desenvolvimento da criança.

Para uma melhor compreensão deste fenômeno, vejamos a definição e caracterização das principais violações a que este texto se propõe a explicitar, no sentido de que devemos estar atentos e com isso poder contribuir na elucidação desta pratica tão desumana.

Violência física – é a mais fácil de ser identificada e também a mais freqüente. Está geralmente associada à disciplina e punição. A criança e o adolescente que sofre este tipo de violência pode apresentar sintomas de ansiedade, depressão, baixa auto-estima, desajuste social, comportamento agressivo, além de apresentar queimaduras, machucaduras, marcas, fraturas. Esta violência pode causar sérios danos do ponto de vista emocional para a criança, levando-as, na maioria das vezes, a se comportar de forma tão agressiva quanto ao tratamento que recebe. Uma criança que vive num ambiente de muita violência tem grandes chances de ser um adulto também violento, reproduzindo a história de seus antecessores.

Abuso sexual – é o envolvimento da criança e do adolescente com qualquer tipo de contato sexual, pois a mesma não tem condições, ainda, de agir por si só, não há consciência de consentimento. Aqui, o sujeito está violando as regras sociais, são as situações de afago, estupro, incesto, prostituição, etc., que geralmente tem início na primeira infância.

A criança pode apresentar alterações comportamentais do tipo: ansiedade, depressão, baixa auto-estima, distúrbio do sono, pesadelos, desajuste social, comportamento sexualizado, desconforto genital e anal, chegando até ao relato verbal do incesto, assédio, exploração e estupro.

Neste caso, a história pode ser muito mais importante que o exame físico, pois este nem sempre confirma as situações onde não há penetração vaginal ou anal.

Abuso psicológico – esta violência está presente em todas as demais, mas também pode ocorrer de forma isolada. Suas características mais constantes são: ansiedade, depressão, baixa auto-estima, desajuste social, prejuízo mental e sintomas psicopatológicos. É causada geralmente por humilhação, isolamento, exploração, rejeição, degradação, terrorismo. Pode ser constatada pela observação e relato verbal de atos de hostilidade e agressividade. Em casos extremos pode levar a pessoa a cometer suicídio.

Negligência – está relacionada ao descaso dos pais para com seus filhos, tanto na assistência, quanto ao provimento de suas necessidades básicas tais como saúde, alimentação, educação respeito, afeto, etc. Esta violência é muito comum, chegando às vezes a ser confundida com o estado de pobreza de muitas famílias que se utilizam desta condição agindo de forma irresponsável no tratamento de seus filhos. As conseqüências desta violência podem ser ansiedade, depressão, baixa auto-estima, desajuste social, comportamento tímido/retraído, vestimenta inadequada, higiene pobre, má nutrição, problemas de saúde, abandono.

As causas para a descrição de tal comportamento do adulto no tratamento às crianças e adolescentes podem ser encontradas em diversos fatores que vão desde o despreparo (desconhecimento), até os transtornos de personalidade do adulto (doença). PIRES (2000) sintetiza alguns destes fatores, tais como:

·     Repetição da história de violência na infância;

·     Isolamento social;

·     Gravidez na adolescência;

·     Promiscuidade dos pais (vários parceiros);

·     Falta de apego dos pais para com os filhos;

·     Incapacidade de lidar com situações de estresse (perda de controle);

·     Uso de drogas, álcool;

·     Baixa escolaridade;

·     Desemprego;

·     Pais com transtornos psicológicos, emocionais e de personalidade.

Não se pode negar que a situação socio-econômica acrescida da falta ou precariedade educacional são responsáveis por um número altíssimo de violência. Fator este característico de países subdesenvolvidos como é o caso do Brasil. Desta forma, percebe-se que uma preocupação mais direcionada dos profissionais da saúde, educação, assistência social, psicologia, enfermagem, agentes de saúde, etc., podem estar identificando esta problemática e buscando soluções através de um atendimento qualificado, bem como assumindo a postura de denunciadores, contribuindo, desta forma, para a solução desta chaga que tanto tem aterrorizado crianças e adolescentes.

Mas, o que a escola tem a ver com isso? Não somente a escola. Todos nós temos uma grande responsabilidade para com uma educação de qualidade que se preocupe com o ser de forma integral. Está na hora de nos indignarmos com as mazelas desta sociedade desigual e injusta, onde a relação de poder predomina e o sujeito passa a ser propriedade de outra pessoa, ou de um sistema excludente e desigual. Nós educadores, nós professores temos um papel fundamental na construção de uma sociedade ética.

A criança tem toda confiança no adulto e por isso torna-se tão vulnerável diante deste a ponto de aceitar e suportar seus maus-tratos. Da mesma forma que vê no adulto seu espelho, que lhe serve como modelo. O primeiro ambiente de vivência e socialização da criança é o  familiar, em segundo lugar está a escola, depois a igreja e assim sucessivamente. Portanto, é a escola que divide a responsabilidade com a família na educação da criança e, em muitos casos, passa a ser a única instituição a exercer esta função, uma vez que a família torna-se omissa ou transgressora de sua função. Isto não quer dizer que a escola, agora, deva trazer para si a responsabilidade que é da família, mas sim contribuir para que esta possa tomar consciência do seu papel, a partir das lições de esclarecimento e denúncia das agressões para os órgãos competentes. Temos que unir forças no combate à violência e reverter este quadro cruel e vergonhoso.