“PROTEÇÃO” – PRETEXTO PARA CONTROLE SOCIAL ARBITRÁRIO DE ADOLESCENTES E A SOBREVIVÊNCIA DA “DOUTRINA DA SITUAÇÃO IRREGULAR”

 

 

Antônio Fernando do Amaral e Silva

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.

                                                                           

 

1. Generalidades

 

1.1    Situação irregular – um viés que teima em não morrer.

 

Em que pese a Convenção Internacional, o Estatuto e as novas posições interpretativas da Doutrina da Proteção Integral, a “proteção”, que não passa de preconceituosa e odiosa opressão de crianças e adolescentes vulneráveis, persiste resistindo fortemente às mudanças substanciais de paradigma.

 

Ao modelo da proteção integral, do garantismo, se opõe a ambigüidade de que nos fala García Mendéz[1] , em excelente artigo, sob o título “Infância, Lei e Democracia: Uma Questão de Justiça”:

 

“Frente aos paradigmas instalados e confrontados da situação irregular e a proteção integral, o paradigma da ambigüidade se apresenta como uma síntese eclética, apropriada para esta época de ‘fim das ideologias’. O paradigma da ambigüidade se encontra muito bem representado por aqueles que, rejeitando de imediato o paradigma da situação irregular, não conseguem acompanhar – talvez pela diminuição significativa das práticas discricionais e paternalistas no trato com as crianças – as transformações reais e potenciais que se deduzem da aplicação conseqüente do paradigma da proteção integral, que considera a criança e o adolescente um sujeito de direitos, e, não menos, de responsabilidades. Nesse ponto me parece importante arriscar uma explicação que permita entender melhor o por quê da aparição (e difusão) do paradigma da ambigüidade”.

 

“Se considerarmos o caráter de revolução copernicana da mudança de paradigma da situação irregular à proteção integral, sobretudo no sentido da diminuição radical da discricionariedade na cultura e práticas de ‘proteção’ (lembre-se que a história é muito clara ao mostrar as piores atrocidades contra a infância cometidas muito mais em nome do amor e da proteção, que em nome explícito da própria repressão), é necessário admitir que o direito (a Convenção) desempenhou um papel decisivo na objetivação das relações da infância com os adultos e com o Estado”.

 

“Esta objetividade (entendida como a tendência oposta à discricionariedade), que se expressa não só por um novo tipo de direito, mas também por um novo tipo de institucionalização, assim como por novos mecanismos de cumprimento e exigibilidade, transforma substancialmente o sentido do trabalho dos especialistas ‘tradicionais’, desde os juristas até os pedagogos, para atingir toda a variada gama destes operadores sociais. Estas transformações se referem, especialmente, à redução da capacidade omnímoda para diagnosticar discricionalmente a existência e características da ‘disfunção’ social ou individual; e muito especialmente, o sentido e características das medidas, sejam estas jurídicas, terapêuticas ou sociais. As metáforas da medicina cada vez dão menos conta da nova situação. O fato de considerar os adolescentes em conflito com a lei penal, de uma vaga categoria sociológica que comete feitos anti-sociais (situação irregular), a uma precisa categoria jurídica que comete infrações penais, típicas, antijurídicas e culpáveis (proteção integral), constitui um exemplo bem representativo desta situação”.

 

As novas disposições, garantistas e responsabilizantes do Estatuto continuam a ser interpretadas com os mesmos princípios simplistas e autoritários da antiga postura, própria do ab-rogado Código de Menores.

 

A “proteção”, o “superior interesse”, o “bem-estar da criança e do adolescente”, a “reeducação”, a “ressocialização” justificam tudo.

 

As medidas sócio-educativas, de índole nitidamente retributiva e penalizante, são impostas sob a falácia do caráter “pedagógico”, “tutelar”, “protetor”, muitas vezes desnecessariamente.

 

Em que pesem as garantias constitucionais e legais, arbitrariedades continuam justificadas por eufemismos, como acontece, por exemplo, com a “internação” e principalmente com a “liberdade assistida” apresentada como intervenções meramente educativas como se as palavras pudessem alterar a substância das coisas.

 

Internação, liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade são exibidas como benefícios, institutos bons para o adolescente.

 

Fala-se de um sistema “reeducativo” ideal, que não existe.

 

Esquecidos da triste realidade das verdadeiras “prisões de meninos pobres”, apaixonados, “novos menoristas” exorcizam propostas garantistas, jurídicas, que, restringindo a discricionariedade, apenas propõem limites ao arbítrio, acoimando-as de retrocesso e compromisso com propostas de “lei e ordem”, como se o sistema, em relação aos infratores, fosse, mesmo, educativo de qualidade.

 

Esquecem-se integrantes do sistema administrativo e judicial da vergonha dos “internatos”, verdadeiras prisões, geralmente piores do que as dos adultos.

 

Programas de “liberdade assistida”, “prestação de serviços à comunidade”, geralmente, não passam de improvisações.

 

Não há efetivo controle jurisdicional de resultados, muito menos de integração ou de assistência educativa à família.

 

“Relatórios”, “diagnósticos” justificadores de puro assistencialismo e inadequadas intervenções continuam existindo.

 

A chamada “proposta pedagógica” persiste de pano de fundo da arbitrariedade.

 

Justificando sistemas pesados, caros, produtores e reprodutores de violência e criminalidade, salvo raríssimas exceções, a chamada “proposta pedagógica” continua reproduzindo o sistema penitenciário.

 

Reeducação e ressocialização não passam de mitos convenientes.

 

“Proposta pedagógica”: falácia que ninguém definiu, regulamentou.

 

Salvo exceções, sentenças, acórdãos, pareceres, defesas, recursos, relatórios, estudos de caso, diagnósticos refletem os vieses do sistema “protetor”, onde os adolescentes, ditos infratores, são “protegidos”, “reeducados”, “ressocializados”.

 

Se o sistema é protetor; se todos os atores processuais e administrativos buscam “o melhor interesse” do adolescente; se as medidas sócio-educativas são um bem para o adolescente; se, ao impor uma medida sócio-educativa está-se realizando um dever relativamente ao direito à educação; não há necessidade de grandes e profundas justificativas. Basta aludir ao “superior interesse” do menino que precisa ser educado. Educação por meio dos benefícios da liberdade assistida, da prestação de serviços à comunidade, da internação, é óbvio.

 

Sob tal falácia acabam os “protegidos” sujeitos a verdadeiras penas indeterminadas, impostas subjetivamente sem garantias objetivas, como, por exemplo, os critérios de legalidade e proporcionalidade.

 

A individualização das medidas, via de regra, não é justificada por critérios objetivos. Diante de tanta “proteção”, eles são desnecessários. “O sistema não é penal. O adolescente não comete infração penal. Pratica ato infracional”. Predominando o subjetivismo, em nome da “reeducação”, adolescentes ficam sujeitos a respostas mais severas do que em iguais circunstâncias seriam impostas aos adultos.

 

A execução continua sem limites claros e precisos. Não há um devido processo legal explicitamente colocado.

 

Subjetivismo e improvisações de toda ordem persistem tanto nas remissões como nas sentenças.

Insisto: via de regra, adolescentes são punidos com maior rigor que adultos, acobertada a arbitrariedade pelas falácias da “proteção”, da “proposta pedagógica” e do “sistema tutelar”.

 

Erros judiciários e administrativos seja no processo de conhecimento, seja na fase de execução, repetem-se, tudo praticado em nome do “bem-estar do menor”, do seu “melhor interesse”, da “reeducação” como se o sistema correspondesse, caracterizando-se como educacional e de excelente qualidade.

 

É preciso dar um basta nisso.

 

É necessário assumir a postura realista e científica preconizada na Doutrina da Proteção Integral.

 

Apesar do Estatuto, da Convenção e da nova doutrina, os “infratores” continuam sem cometer crimes.

 

Não cometendo crimes, mas “atos infracionais”, a eles não se aplicam “penas”.

 

“As medidas, por serem pedagógicas, não são retributivas e, não tendo caráter penal, são aplicadas em benefício dos adolescentes”. Assim, não há necessidade de tantos cuidados na certeza da autoria, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.

 

Não praticando crimes, “não têm direito” aos benefícios dos adultos – prescrição, graça e indulto.

 

Perguntem aos “protegidos”, “reeducandos”, “educandos” e principalmente aos internos, se estão satisfeitos com a “proteção”, com o sistema.

 

Perguntem se o sistema é justo.

 

Tem-se dito que o sistema difere do dos adultos porque o “Estado tem o compromisso de proteger, educando ou reeducando”.

 

Os defensores da “doutrina da ambigüidade”, justificando suas posições “paternalistas”, falam de um sistema ideal, perfeito. Daquilo que não existe. E jamais existirá!

 

Mas, se existisse, ainda assim, haveria o estigma da sentença e do sistema que não seria o educacional comum, mas reservado a uma classe especial de pessoas: os infratores.

 

Se a simples intervenção do sistema “educacional”, das chamadas Febens, não for estigmatizante, porque destinado aos “menores” ou “adolescentes infratores”, bastaria a sentença, a passagem pelo sistema de justiça para justificar o estigma e redobradas cautelas. Cuidados para não envolver desnecessariamente quem quer que seja.

 

Acreditarei na excelência do sistema educacional dos “infratores”, quando desembargadores, juízes, promotores, assistentes sociais, psicólogos e pedagogos encaminharem os filhos para serem protegidos, educados nas internações, nas liberdades assistidas ou nas prestações de serviço à comunidade.

 

Enquanto o sistema for reservado aos “infratores”, tenham eles o nome que tiverem, não será “protetor” dos adolescentes, será, como tem sido, e necessariamente tem de ser, um sistema retributivo e de proteção da sociedade. Jamais dos adolescentes!

 

Adolescentes são protegidos por meio de políticas básicas, principalmente da política de educação nos estabelecimentos da rede comum de ensino.

 

O direito à educação e o correspondente dever são exercidos dentro da normalidade.

 

Se o Estado tem de impor, agindo coercitivamente a medida que tomar, atingindo direitos fundamentais da pessoa humana, tem de ater-se ao princípio da legalidade. Vale dizer, da excepcionalidade devidamente justificada.

Aos que necessitarem apenas proteção, educação e não  respostas preventivas e repressivas, que sejam encaminhados ao sistema educacional comum.

 

Seria iníquo submeter, sem necessidade, qualquer pessoa a um sistema educacional especial, reservado a infratores.

 

No momento em que se cria um sistema “educacional” paralelo de intervenção estatal coativa, com restrições, inclusive privação de liberdade, o sistema deixa de ser simplesmente educativo, protetor, para ser, também, limitador dos direitos fundamentais, numa palavra: repressivo.

 

Lamentavelmente a chamada “doutrina da situação irregular”, preocupada com “denominações” e “estigmas”, persiste viva naqueles em que teimam em ver nas medidas sócio-educativas tão-somente o caráter pedagógico, esquecidos que, substancialmente, sendo respostas a condutas reprovadas, tem caráter retributivo, interferindo na liberdade, na autodeterminação e, até, na intimidade das pessoas.

 

Desde quando privação coativa da liberdade, semiliberdade, prestação de serviços à comunidade, desde quando restrições aos direitos fundamentais podem ser consideradas um bem para a pessoa humana restringida, submetida ao Estado? Constitui, isto sim, um mal.

 

Um mal necessário, mas um mal.

 

São um bem para a sociedade, para a prevenção e repressão da delinqüência juvenil.

 

Esta a verdade que precisa ser compreendida e aceita.

 

E a eufemística liberdade assistida, tão “assistida”, que o descumprimento de suas regras pode implicar também na eufemística “internação”, ou seja, privação de liberdade por até três meses.

 

É preciso ter coragem e assumir o verdadeiro significado das palavras. Impõe-se, em nome dos direitos humanos, ver o que existe de verdadeiro no sistema dito “Tutelar”.

 

O atual jogo de palavras, procurando suavizar institutos de Direito Penal com a simples alteração de nomes, possibilita injustiças em relação aos adolescentes. A postura provoca preconceitos e severidade.

 

Argumentam os defensores do paradigma identificado por García Mendéz:

 

“Sendo um bem, as medidas sócio-educativas, não há porque livrar o adolescente do sistema”.

 

Insisto: Com base na falácia da “reeducação”, “educação” e “integração sócio-familiar”, adolescentes continuam sendo jogados no sistema, como se as medidas sócio-educativas fossem um bem.

 

As medidas protetivas podem ser consideradas um bem. Basta ver a separação que o Estatuto faz entre umas e outras.

 

Vítimas e vitimizadores  reclamam apenas por justiça.

 

O sistema não deve ser encarado nem como bem como um mal, mas como uma resposta justa e adequada ao fenômeno da delinqüência juvenil.

 

Tenha-se presente: enquanto há adultos que se livram por meio da prescrição, do indulto, da anistia, da graça, adolescentes são compelidos, forçados a medidas sócio-educativas.

 

Insisto: justificam-se medidas restritivas de direito e privativas de liberdade sob o falacioso argumento de que constituem um benefício para os adolescentes.

 

Chega-se a dizer que a medida não é imposta, é “aplicada”. E o é no subjetivismo do “melhor interesse” e da “proteção”, dogmas, há muito, superados pela “Doutrina da Proteção Integral”.

 

Viés dos piores, a interpretação do Estatuto, com base no subjetivismo, nos mitos e nas falácias do antigo Direito, só será superada quando os operadores judiciais e administrativos se convencerem da necessidade da interpretação sociológica, teleológica do artigo 6º do Estatuto, que se baseia no garantismo.

 

O Direito-Norma, o Estatuto, tem de ser interpretado e aplicado sociológica e sistematicamente, reconhecendo e separando o intérprete, as hipóteses em que adolescentes são vítimas daquela em que aparecem como vitimizadores.

 

Medidas protetivas para crianças e adolescentes vítimas. Sócio-educativas para vitimizadores sempre que necessárias como respostas justas e adequadas.

 

Repito: não é mais possível conviver com mitos, eufemismos e falácias.

 

É preciso identificar corretamente, separando institutos de proteção da criança e do adolescente dos institutos de proteção da sociedade.

 

É preciso assumir a postura técnico-científica, abandonando o paternalismo inconseqüente e a repressão disfarçada.

 

Só assim os operadores administrativos e judiciais estarão desempenhando o verdadeiro papel de realizar justiça, que é o que se espera de um sistema judiciário e administrativo.

 

 2. Medidas sócio-educativas ou o controle social arbitrário de adolescentes: um viés que precisa morrer

 

Válida a advertência de Mário Volpi[2]:

 

“Portanto, o momento presente não se caracteriza pela necessidade de ecletismos ou sincretismos doutrinários, mas sim de superação de antigas doutrinas para a consolidação de uma nova, despida de todos os vícios do passado. Trata-se realmente de um paradigma (da situação irregular) a ser superado e da transição a um novo paradigma: da proteção integral. Não há, então, espaço para a ambigüidade. Há a necessidade de um posicionamento firme e de um compromisso real para promover crianças e adolescentes à inclusão social e à sua participação crítica e criativa no Estado Democrático de Direito”.

 

Antes de aprofundar o tema a respeito da realidade da aplicação e execução das medidas sócio-educativas, impõe-se aclarar seu verdadeiro caráter, se pedagógicas ou retributivas.

Estamos no campo do Direito. A análise não é feita a partir da ótica do pedagogo, do psicólogo ou do assistente social. A visão é jurídica.

Não tenho a menor dúvida: juridicamente consideradas, as medidas sócio-educativas são retributivas, pedagógicas e, inclusive, repressivas.

São retributivas porque constituem resposta à prática de um ato infracional, portanto legalmente reprovável.

Só o autor do ato infracional (eufemismo que corresponde a crime ou contravenção penal – ECA, art. 103), pode ser submetido (apenado) a uma medida sócio-educativa.

Não se olvide: as medidas são impostas coercitivamente.

Não se diga que a possibilidade da remissão, da não imposição de qualquer medida ou a faculdade que tem o Juiz de aplicar medidas de proteção retira o caráter retributivo das medidas sócio-educativas, porquanto essas providências despenalizantes nada têm com a natureza da medida. Existem, inclusive, no Direito Penal Comum: a suspensão condicional do processo, da pena, o perdão judicial etc...

O caráter retributivo é visível na mais branda das medidas – a advertência –, onde o Juiz admoesta, vale dizer, avisa, adverte, repreende.

São pedagógicas, porque têm caráter eminentemente educativo, mas são repressivas (do latim, repressio, de reprimere – reprimir, impedir, fazer cessar).

O caráter repressivo das medidas sócio-educativas não reflete o sentido vulgar da palavra, mas o significado técnico-jurídico de “oposição”, “resistência”, “impedimento”.

Como explica De Plácido e Silva[3]  no Vocabulário Jurídico:

“As medidas impostas pela repressão ou para reprimir alguma coisa, podem chegar até o castigo. Mas, propriamente, repressão não é castigo: é meio de fazer cessar, de fazer parar, de impedir, ou de moderar”.

As medidas sócio-educativas visam prevenir e reprimir a delinqüência juvenil vale dizer, fazê-la parar relativamente ao agente e impedir ou moderar o fenômeno em relação aos demais adolescentes.

Admitir o caráter repressivo, penal especial (diferente do penal comum dos adultos) insisto: é útil aos direitos humanos de vítimas e vitimizadores.

É necessário superar o viés da “proteção”: ciente o aplicador da medida que, além de imposta, é repressiva, redobrar-se-á em cautelas para não impô-la sem os critérios da fundamentação da despenalização, da excepcionalidade, da legalidade, da brevidade, da proporcionalidade e da resposta justa e adequada.

Despenalização concretizada pela remissão pura e simples.

Proporcionalidade para impedir a imposição de medida severa por fato irrelevante.

Como as penas criminais, as medidas sócio-educativas são restritivas de direito (advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida) e privativas de liberdade (semiliberdade e internação).

Enquanto as penas criminais são determinadas e subordinadas a critérios objetivos e limitativos (os adultos gozam da suspensão condicional do processo e da substituição de penas privativas de liberdade por restritivas de direito), os adolescentes continuam submetidos a medidas indeterminadas e sem critérios prévios, claros e objetivos, capazes de conter o possível arbítrio do Estado.

Carecem adolescentes de mais garantias, explícitas e objetivas, capazes de proporcionarem a justa individualização da medida.

O subjetivismo, segundo o qual (§ 2º do art. 122) “em nenhuma hipótese será aplicada internação, havendo outra medida adequada”, constitui porta aberta ao arbítrio.

A prevalência dos princípios enviesados da antiga “doutrina”, segundo a qual as medidas do chamado “Direito do Menor” sempre visam o melhor interesse dos adolescentes, tem propiciado a imposição de respostas mais severas do que em iguais circunstâncias seriam impostas aos adultos pelo Direito Penal Comum.

Uma correta visão das medidas sócio-educativas, o aplicador ciente do seu caráter predominantemente pedagógico, mas repressivo, nitidamente penal, favorecerá os adolescentes, porque a imposição ou o ajuste (remissão) passará a ser restritivo, submetido ao princípio da estrita legalidade.

Favorecerá a sociedade e os adolescentes, reforçando o compromisso com a cidadania, com o reconhecimento da dignidade de ser sujeito de direitos e obrigações.

3. Prescrição – Direito universalmente reconhecido e sonegado aos adolescentes

Não se deve confundir a natureza da medida com seus objetivos. Proteção, educação, reeducação, reintegração sócio-familiar, fortalecimento de vínculos familiares são os objetivos das medidas sócio-educativas, mas sua natureza, sob o ângulo jurídico, é penal.

Para o jurista importa mais a natureza do que o objetivo, porque este pode ser alcançado de outro meio, sem o estigma do ato infracional, por intermédio das medidas de proteção. Comparem-se os artigos 101, 112 e 114 do Estatuto.

O pedagogo prioriza os objetivos; o jurista, a natureza e o reflexo da intervenção estatal coercitiva sobre os direitos da pessoa humana.

Para o pedagogo, por exemplo, a liberdade assistida, vista da ótica dos objetivos, pode ser encarada como um bem, mas para o jurista, atento às restrições aos direitos e à imposição, é sempre encarada como um mal. Um mal necessário, mas um mal. Assim, sua imposição só pode ocorrer com observância dos princípios da estrita legalidade, da excepcionalidade e da brevidade.

A despenalização, o Direito Penal Mínimo, próprios das garantias e dos benefícios do direito ciência e do direito norma não podem ser recusados aos adolescentes inimputáveis. Inimputáveis perante o Direito Penal Comum, mas responsáveis diante das normas da legislação especial de que trata o artigo 228 da Carta Política.

Outra interpretação, baseada nos “bons objetivos” em detrimento da natureza das medidas sócio-educativas, constitui a falácia que choca flagrantemente com a hermenêutica jurídica e os mais elementares princípios da justiça, da eqüidade, dos fins do direito.

A exegese, para ser adequada aos princípios da Convenção Internacional, não pode prescindir das diretrizes do artigo 6º do Estatuto. Interpretação, finalística, teleológica, sociológica, que não pode ser isolada, tem de ser sistemática.

Tenha-se presente: o ato infracional corresponde a crime ou contravenção penal (art. 103).

A prescrição (garantia só excluída em casos excepcionalíssimos – CF, art. 5º, XLIV) não pode ser recusada aos adolescentes.

O inescondível caráter retributivo das medidas sócio-educativas, a maioria claramente repressiva, obriga o intérprete a se socorrer do Direito Penal no que ele tem de garantias.

Dentro desses pressupostos, ao invocar-se a parte especial (repressiva) da Lei Penal Comum para punir o autor do ato infracional, há que se ter em conta, também, a parte geral, principalmente os seus benefícios, dentre eles a prescrição.

Justiça, eqüidade, antíteses da iniqüidade, da negação do Direito (princípios e diretrizes da correta interpretação) têm de ser levados em conta, principalmente a analogia, aplicável no Direito Penal, sempre que para beneficiar ou excluir a sanção.

Liberdade assistida (vigiada), prestação de serviços à comunidade, semiliberdade e internação, eufemismo definido como medida privativa de liberdade, não podem ser impostos sem limites.

O Estado não pode continuar sem atribuir aos adolescentes um direito universalmente reconhecido a todos, a prescrição, sob a falácia da proteção, do seu bem-estar, da sua educação, como se esses objetivos ilidissem a natureza repressiva, própria de toda medida que limite ou suprima direitos, principalmente a liberdade.

 

4. Conclusão

A nova doutrina da Proteção Integral, preconizando que crianças e adolescentes são sujeitos de direito, afastou completamente os enviesados princípios da antiga “doutrina da situação irregular”, entre eles o subjetivismo e o arbítrio, travestidos da falácia da “proteção”, que não passava de odiosa opressão.

Há que assumir o modelo garantista e responsabilizante do Estatuto e da Convenção.

Palavras e institutos têm de ser interpretados e aplicados com base na ciência e na técnica, sem mistificações, dentro dos princípios da Hermenêutica Jurídica e do Direito.

A delinqüência juvenil é um fenômeno social que exige respostas justas, e estas não podem persistir baseadas em mitos, eufemismos e falácias.

Para o jurista, o que importa, fundamentalmente, não é o objetivo (reeducação), mas a natureza repressiva das medidas sócio-educativas. Sendo claramente restritivas de direitos fundamentais, embora marcadas pela excepcionalidade e brevidade (CF, art. 227, § 2º, V), as medidas sócio-educativas não podem ser impostas sem se submeterem a uma das garantias básicas da pessoa humana, a prescrição.  

   

Notas:

 

[1] MENDÉZ, Emilio García. Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina – ESMESC. Temas de Direito da Criança e do Adolescente. v. 5, ano 4, 1998, p. 27/28. 

[2] VOLPI, Mário. Apud: SARAIVA, João Batista da Costa. Adolescente e ato infracional: garantias processuais e medidas socioeducativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 08.

[3] SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. v. 4. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense,


Bibliografía

 

MENDÉZ, Emilio García. Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina – ESMESC. Temas de Direito da Criança e do Adolescente. v. 5, ano 4, 1998, p. 27/28.

 

SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. v.4. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 105.

 

VOLPI, Mário. Apud: SARAIVA, João Batista da Costa. Adolescente e ato infracional: garantias processuais e medidas socioeducativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 08.