OS
INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
Sua defesa judicial e extrajudicial
Procurador de Justiça Aposentado.
Sumário
1 - A defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais
homogêneos na esfera administrativa e judicial;
2 - O inquérito civil;
3 - A natureza jurídica do inquérito civil;
4 - O alcance das atribuições do Ministério Público na área
da notificação e da requisição;
5 - O compromisso de ajustamento: conteúdo e eficácia;
6 - A ação civil pública;
7 - A legitimação e o interesse de agir em defesa de
interesses transindividuais;
8 - O litisconsórcio entre órgãos estaduais e federais do
Ministério Público;
9 - A possibilidade de transação na ação civil pública;
10 - Os ônus e o custeio da prova;
11 - O controle externo dos atos administrativos: limites entre a discricionariedade e a legalidade.
O Direito tradicionalmente se preocupou com a defesa tanto dos interesses do Estado como dos indivíduos, e veio exigindo, de regra, fosse ela exercitada pelos próprios lesados.
Nas últimas décadas, porém, surgiu de forma mais acentuada a consciência de que deveria haver um sistema especial para a defesa de grupos de pessoas que tivessem compartilhado danos comuns: assim, os moradores de uma mesma região comungam dos mesmos interesses a um meio ambiente sadio; os consumidores de um produto determinado comungam de idênticos interesses quanto à sua qualidade; os contribuintes estão unidos pela mesma pretensão de combater o aumento ilegal do tributo a que estão sujeitos.
Ora, o sistema tradicional — pelo qual cada lesado defende o próprio interesse — leva a sérias distorções, pois as milhares ou milhões de ações individuais, sobre serem impraticáveis, levariam a decisões jurisdicionais inevitavelmente contraditórias, o que prejudicaria a economia, a celeridade, a segurança e a justiça do processo judicial como meio de solução das lides.
Em nosso país, especialmente a partir da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985 (conhecida como Lei da Ação Civil Pública), cuidou-se de instituir regras especiais para a defesa de interesses de grupos de pessoas, especialmente no tocante à legitimação para agir, coisa julgada, fundo para reparação dos danos.
Conhecer os principais princípios e regras da defesa de interesses transindividuais passou a interessar a toda a família jurídica e à sociedade civil em geral, destinatária final dessa tutela, até porque os organismos não governamentais também detêm importantes responsabilidades no combate às lesões aos grupos, como é o caso da legitimação das associações civis para a ação civil pública.
Os interesses transindividuais ou coletivos, em sentido lato, referem-se, pois, a grupos de pessoas (como os condôminos de um edifício, os sócios de uma empresa, os alunos ou os pais de alunos do mesmo estabelecimento de ensino, os membros de uma equipe esportiva, os empregados do mesmo patrão). Os interesses transindividuais excedem o âmbito estritamente individual mas não chegam a constituir interesse público, em sentido estrito, pois este é o interesse do Estado (v.g., o ius puniendi) ou, então, o interesse abstrato da sociedade como um todo (v.g., o interesse público primário, na concepção de Renato Alessi).
Em nosso Direito, os interesses de grupos passaram a ser classificados de acordo com sua divisibilidade, sua abrangência e sua origem[1]. Assim, difusos são os interesses que não podem ser quantitativamente divididos entre os integrantes de um grupo indeterminável de pessoas, reunidas pela mesma situação de fato (p. ex., os moradores de uma mesma região, alcançados por um acidente ecológico). Coletivos, em sentido estrito, são os interesses que também não podem ser quantitativamente partilhados entre os integrantes de um grupo já agora determinado ou determinável de pessoas, que se encontram unidas por uma relação jurídica comum (p. ex., os pais de alunos que se rebelam contra o aumento ilegal de mensalidades escolares). Por fim, individuais homogêneos são os interesses que podem ser quantitativamente divididos entre os integrantes de um grupo determinado ou determinável de pessoas, unidas pela mesma situação de fato (p. ex., os consumidores do mesmo bem produzido em série, com o mesmo defeito).
Embora os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos sempre tenham existido, só nos últimos anos é que se acentuou a preocupação em identificá-los e protegê-los jurisdicionalmente, reconhecidas suas especificidades, como no tocante à legitimação ativa e aos efeitos da coisa julgada[2].
Para a defesa na área cível dos interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos, bem como para a defesa do próprio interesse público, existem as chamadas ações civis públicas ou ações coletivas, que podem ser movidas pelo Ministério Público, pelas pessoas jurídicas de Direito Público interno, pelas associações civis e outros co-legitimados, de forma concorrente e disjuntiva.
Para preparar-se para a propositura da ação civil pública, o primeiro dos co-legitimados, o Ministério Público, dispõe de um instrumento pré-processual de investigação — o inquérito civil.
O inquérito civil foi criado pela Lei federal n. 7.347, de 24 de julho de 1985 (Lei da Ação Civil Pública), e, depois, consagrado na Constituição (art. 129, III). A partir de então, passou a ser referido por diversos diplomas legislativos (p. ex., Cód. de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.625/93, Lei Complementar n. 75/93 etc.).
Por semelhança com o inquérito policial, que é o meio normal de que se vale o Ministério Público para preparar-se para a propositura da ação penal pública, surgiu gradativamente a consciência de que, também na área civil, deveria haver um mecanismo de investigação administrativa para aparelhar o Ministério Público a colher dados para a propositura da ação civil pública. Reconheceu-se que, para o correto exercício de suas diversas funções, criminais ou não, era preciso que essa instituição dispusesse de meios diretos de investigação, para apurar os fatos que suportam sua iniciativa processual nas diversas áreas de atuação.
O inquérito civil é, pois, um procedimento administrativo investigatório a cargo do Ministério Público; seu objeto é a coleta de elementos de convicção que sirvam de base à propositura de uma ação civil pública para a defesa de interesses transindividuais — ou seja, destina-se a colher elementos de convicção para que, à sua vista, o Ministério Público possa identificar ou não a hipótese em que a lei exige sua iniciativa na propositura da ação civil pública.
Só o Ministério Público está autorizado a instaurar inquérito civil; não os demais co-legitimados à ação civil pública. A União, os Estados, os Municípios, as autarquias, as empresas públicas, as sociedades de economia mista, as fundações ou as associações civis são também co-legitimados à propositura da ação civil pública ou coletiva; antes de propô-la, é natural que recolham elementos de convicção necessários, e farão isso em procedimentos interna corporis quaisquer, mas inquérito civil, propriamente dito, só o Ministério Público pode instaurar. Na forma como foi concebido na Lei n. 7.347/85 e legislação subseqüente, e com os efeitos jurídicos que a lei lhe confere, trata-se de instrumento exclusivo do Ministério Público[3].
É incorreta a expressão inquérito civil público. Usa-se a expressão ação civil pública em contraposição à ação civil privada — mas, como não existe inquérito civil privado, não há que falar em inquérito civil público. Com efeito, admitir houvesse inquéritos civis públicos seria, forçosamente, admitir a existência de inquéritos civis privados. E, se fossem inquéritos civis privados as investigações particulares levadas a efeito não pelo Ministério Público mas pelos demais co-legitimados à ação civil pública (como as associações civis), forçoso seria concluir que essas investigações seriam inquéritos civis no sentido lato, e, como a lei não distinguiria, sua instauração também obstaria à decadência e sujeitaria seu arquivamento ao controle do Ministério Público, o que obviamente não ocorre (Lei n. 8.078/90, art. 26, § 2º, III, e Lei n. 7.347/85, art. 9º).
Embora normalmente seja o inquérito civil o meio usual e de grande utilidade para que o Ministério Público colha elementos aptos à propositura da ação civil pública, há várias hipóteses em que poderá ser dispensado, como em caso de: a) urgência (como no ajuizamento de medida cautelar); b) existência prévia de peças de informação suficientes (documentos extraídos de outros autos; processo administrativo; autos ou peças recebidas do tribunal de contas etc.).
A Constituição assegura que o Ministério Público pode instaurar procedimentos administrativos de sua competência (art. 129, VI e VIII). Ora, em questões que possam ensejar a propositura de ação civil pública pela instituição, sem dúvida é o inquérito civil o sistema próprio de investigação, sujeito a um adequado sistema de controle de arquivamento.
Desde a instauração até o encerramento do inquérito civil, obsta-se à decadência do direito que tem o consumidor de reclamar dos vícios aparentes ligados ao fornecimento de serviço ou produto (CDC, art. 26, § 2º, III).
Instaurado o inquérito civil, permite-se ainda que, dentro dos autos, sejam expedidas requisições e notificações, com condução coercitiva para comparecimento, nos casos da lei (Constituição, art. 129, VI; Lei n. 8.625/93, art. 26, I; Lei Complementar n. 75/93, art. 8º).
Em tese, no bojo do inquérito civil poderá ocorrer crime de falso testemunho ou falsa perícia (Cód. Penal, art. 342)[4].
Enfim, os elementos de convicção colhidos no inquérito civil terão valor subsidiário em juízo, desde que não afrontados por provas de maior hierarquia colhidas sob a égide do contraditório[5].
O inquérito civil pode ser instaurado por meio de portaria ou despacho do órgão do Ministério Público, proferido em requerimento, ofício ou representação que lhe sejam encaminhados, ou então, até mesmo pode ser instaurado de ofício.
A propósito do objeto do inquérito civil, a primeira questão que costuma ser colocada diz respeito a saber se nele só podem ser apuradas lesões a interesses transindividuais (interesses difusos, coletivos individuais homogêneos), ou se ele pode ser usado para investigar lesões a quaisquer interesses que ensejem a proteção pelo Ministério Público, sejam transindividuais ou não. Em outras palavras, a questão é saber se, por meio do inquérito civil, poderia o Ministério Público investigar previamente fatos que ensejassem a propositura de quaisquer outras ações civis públicas a seu cargo, além daquelas para defesa de interesses difusos e coletivos, em sentido lato (como a ação de nulidade de casamento, a ação rescisória, a ação direta de inconstitucionalidade, a ação de destituição de pátrio poder e as ações para defesa de interesses individuais indisponíveis).
Para uns, o Ministério Público não poderia fazê-lo, pois a instauração de inquérito civil estaria limitada aos objetivos específicos da Lei n. 7.347/85, que o instituiu, e das outras leis que dizem respeito a só defesa de interesses difusos e coletivos. Para outros, entretanto, poderia instaurá-lo não só nesses casos, como em todas as hipóteses de atribuições afetas ao Ministério Público.
Para nós, esta última é a solução preferível, não apenas por aplicação analógica da Lei n. 7.347/85, mas em decorrência do sucessivo alargamento de objeto do inquérito civil, trazido pelo Cód. de Defesa do Consumidor (art. 90), pela Constituição (art. 129, III) e pelas Leis Orgânicas do Ministério Público (LONMP, art. 26, I; LOMPU, art. 6º, VII, c, e 38, I). É o posicionamento que temos defendido[6], com endosso da doutrina de Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz[7] e de Nelson Nery Júnior e Rosa Nery, para quem, em correta conclusão, o inquérito civil pode, eventualmente, até mesmo servir de base para a propositura de ação penal[8].
Assim, além da investigação de danos a interesses diretamente objetivados na Lei n. 7.347/85 (meio ambiente, patrimônio cultural, consumidor, ordem econômica e outros interesses difusos e coletivos), hoje o Ministério Público está autorizado a instaurar inquérito civil para apurar danos ao patrimônio público e social[9], cuidar da prevenção de acidentes do trabalho, defender interesses de populações indígenas[10], crianças e adolescentes[11], pessoas idosas ou portadoras de deficiência[12], investigar abusos do poder econômico[13], defender contribuintes[14], apurar falhas da Administração na prestação de seus serviços, garantir direitos fundamentais como o acesso à educação, etc.[15]
As investigações diretas a cargo do Ministério Público devem ser feitas por meio do inquérito civil. Além de tratar-se de procedimento mais metódico e organizado de investigação, que poderá ser muito útil em diversas atividades ministeriais (como antes de propor eventual ação de extinção de fundação, destituição de pátrio poder, rescisórias etc.), também permite a continuidade do trabalho, quando das substituições, afastamentos ou impedimentos dos membros da instituição.
Outra questão controvertida é a de saber se o Ministério Público pode instaurar inquérito civil para apurar lesão a interesses individuais homogêneos.
De um lado, há os que propendem pela resposta positiva, baseados na legitimidade genérica que ao Ministério Público foi concedida na matéria pelo Cód. de Defesa do Consumidor (arts. 81-2). Argumentam esses que, se este diploma legal permite ao Ministério Público ajuizar ação civil pública para zelo de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, não só em matéria atinente às relações de consumo mas em qualquer outra área (art. 90 CDC), está presumindo a presença do interesse público legitimador da intervenção ministerial, e, assim, não haveria razão para restringir a iniciativa da instituição e excluir de sua investigação os danos a interesses individuais homogêneos. Em reforço a essa argumentação, invoca-se que o art. 6º, VII, d, da Lei Complementar n. 75/93, também permite expressamente que o Ministério Público instaure inquérito civil para defesa de interesses individuais homogêneos, norma essa de aplicação subsidiária ao Ministério Público dos Estados (art. 80 da Lei n. 8.625/93).
De outro lado, há os que, como nós, entendem necessário compatibilizar a destinação social e constitucional do Ministério Público com a defesa do interesse a ele cometido na legislação infraconstitucional. Assim, no caso dos interesses difusos, em vista de sua abrangência ou extensão, não há como negar está o Ministério Público sempre legitimado à sua defesa, mas no caso de interesses individuais homogêneos e coletivos, sua iniciativa só pode ocorrer quando haja efetiva conveniência social na atuação, a partir de critérios como estes: a) conforme a natureza do dano (saúde, segurança e educação públicas); b) conforme a dispersão dos lesados (a abrangência social do dano, sob o aspecto dos sujeitos atingidos); c) conforme o interesse social no funcionamento de um sistema econômico, social ou jurídico (previdência social, captação de poupança popular, etc.)[16].
Outro ponto polêmico é saber se devem ser previamente determinados os fatos que ensejem a instauração do inquérito civil.
Enquanto no Direito Penal os tipos são descritos com a maior precisão possível, a ponto de não serem sequer a regra os chamados tipos anormais (como os que contêm elementos normativos — indevidamente, sem justa causa; ou contêm elementos subjetivos — com o fim de, etc.), já no direito civil qualquer ação humana que viole o direito ou cause prejuízo constitui ilícito civil — independentemente de tratar-se de uma ação prévia e abstratamente definida pela lei material com todas as suas características e circunstâncias (art. 159 Cód. Civil). Sob o aspecto civil, pois, em regra não há, diversamente do direito penal, um rol de ações humanas ilícitas, e sim existe apenas uma norma genérica equivalente à responsabilização pela prática de comportamento contrário à ordem jurídica.
Mesmo observadas essas peculiaridades do ilícito civil, não se deve descurar, porém, de uma adequação típica mínima entre a ação humana a ser investigada e o preceito abstratamente coibido pela lei. Em alguns casos, o legislador civil é mais rigoroso que de costume, e chega até a aproximar-se do legislador penal ao descrever os tipos ilícitos, como ocorre com a responsabilização civil de agentes públicos pelo sistema da Lei n. 8.429/92, que exige a prática de atos determinados de improbidade para que sejam impostas as sanções cíveis nela previstas.
Além disso, muitas vezes os ilícitos civis podem constituir um estado de coisas e não propriamente uma ação precisa ou determinada, atual ou pretérita. Assim, por exemplo, a falta de vagas nas escolas pode ser considerada, lato sensu, como matéria a ser investigada em inquérito civil, ainda que não decorra de um ato isolado de um administrador específico em determinado momento. Havendo motivos razoáveis para tanto, até mesmo meras atividades perigosas podem ser investigadas em inquérito civil, pois seria absurdo ter de esperar por um fato ou um dano específico para iniciar investigações na área civil, até porque a própria Lei n. 7.347/85 admite propositura de ação civil pública para evitar danos (art. 4º da Lei n. 7.347/85).
Resta discutir se cabe instauração de inquérito civil à vista de denúncias anônimas, notícias de jornal ou meras representações.
Seria descabido dar resposta abstrata ou genérica a essa pergunta. A resposta correta é: depende do caso concreto. Assim como um delegado de Polícia pode fazer uma diligência ou abrir um inquérito policial à vista de uma representação ou de uma notícia de jornal, desde que reconheça haver justa causa para tanto (art. 5º do Cód. de Processo Penal), também o membro do Ministério Público pode instaurar um inquérito civil nas mesmas circunstâncias. Há denúncias, ainda que anônimas, representações ou reportagens da imprensa tão bem fundamentadas que seria um despropósito cruzar os braços e nada fazer.
Para instaurar o inquérito civil ou propor a ação civil pública, a regra é a competência do local onde o dano ocorreu ou deva ocorrer (art. 2º da Lei n. 7.347/85).
A despeito da incorreta menção contida no art. 16 da Lei n. 7.347/85 (com a redação da Lei n. 9.494/97, fruto de conversão de abusiva medida provisória), não é territorial a competência nas ações civis públicas, e sim absoluta, porque funcional.
O art. 2º da Lei n. 7.347/85 cuida de regra de competência, não de jurisdição. Em que pese a posição prevalente na Súm. 183 do Superior Tribunal de Justiça, entendemos não ter dado a lei jurisdição aos juízes estaduais sobre questões de interesse da União em matéria de interesses transindividuais. A nosso ver, essa lei não exclui a competência da Justiça Federal, nos casos em que a Constituição a esta comete o processo e o julgamento das causas em que sejam interessada a União, entidade autárquica ou empresa pública federal, na condição de autora, ré, assistente ou opoente (art. 109 I, da CF)[17].
Não comungamos do entendimento contrário, no sentido de que a competência da Justiça local, ainda que estadual, abrangeria até mesmo causas em que fosse interessada a União, entidade autárquica ou empresa pública federal, pois, embora a própria Constituição admita que a lei ordinária possa estabelecer exceções à regra de competência da Justiça Federal, a Lei n. 7.347/85, a nosso ver, não excepcionou a competência da Justiça Federal. Essa lei estabeleceu regra de competência absoluta mas não trouxe regra de jurisdição; apenas disse que a ação será proposta no foro do local do dano, cujo juízo terá competência funcional para apreciar a causa. Assim, entendemos que, se tiver ocorrido um dano causado pela própria União, em comarca que não seja sede de vara federal, a atribuição para investigar os fatos será do membro do Ministério Público que tenha atribuições em tese para propor a ação correspondente perante a vara da Justiça Federal com competência absoluta sobre o local do dano.
Por sua vez, em defesa de interesses de crianças e adolescentes, a competência será a do foro do local onde ocorreu ou deva ocorrer a ação ou omissão, ressalvada expressamente a competência da Justiça Federal e a competência originária dos tribunais superiores (ECA, art. 209).
Já em matéria de lesão a interesses individuais homogêneos, o art. 93 do Cód. de Defesa do Consumidor estabelece regras próprias (foro da Capital do Estado ou do País, para danos regionais ou nacionais, conforme o caso), e essa norma comporta aplicação analógica na defesa de outros interesses transindividuais.
Em regra, o acesso ao inquérito civil deve ser franqueado aos interessados, em decorrência do princípio geral da publicidade a que se sujeita a administração (art. 37 da Constituição).
Os atos do inquérito civil são em regra públicos (audiências, inquirições, expedição de certidões), feitas, porém, duas ressalvas: a) analogamente ao que dispõe o art. 20 do Cód. de Processo Penal, pode-se impor sigilo aos autos, se da publicidade de qualquer dos atos nele praticados puder advir prejuízo à investigação); b) deve-se impor sigilo ao inquérito civil sempre que nele constem dados ou informações a que o órgão do Ministério Público teve acesso, mas que estejam cobertos por sigilo legal (p. ex.: informações bancárias ou fiscais etc.).
Quem terá acesso às informações contidas no inquérito civil?
Como no inquérito civil lidamos, normalmente, com a defesa de interesses coletivos em sentido lato, tudo o que nele se apura, em regra, está sujeito ao princípio da publicidade, que ilumina os atos da Administração (CF, art. 37, caput). Excluídas as hipóteses de sigilo imposto pela lei ou pela conveniência da própria investigação, no mais qualquer interessado terá acesso irrestrito aos atos, termos, documentos e informações contidos no inquérito civil.
O habeas-data visa a assegurar ao interessado o acesso e eventuais retificações em informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registro ou banco de dados de entidades governamentais ou de caráter público[18]. Por sua vez, o Cód. de Defesa do Consumidor disciplina o acesso do consumidor a informações de seu interesse[19]. De sua parte, segundo a Lei n. 7.347/85 e a Lei da Ação Popular, a associação civil ou o cidadão podem requerer às autoridades competentes as certidões e informações que julgarem necessárias, que só lhes serão negadas nos casos de sigilo[20]. Nessa hipótese, a ação poderá ser proposta sem a informação, que será requisitada pelo juiz do feito[21].
O direito da coletividade à informação é fundamental para a tutela de interesses transindividuais, e, em especial, do patrimônio público, da moralidade administrativa, do consumidor e do meio ambiente[22]. A opinião pública desempenha relevante papel na gestão dos negócios públicos, na política ambiental e educacional, e nas decisões governamentais em geral. A informação conduz à atuação eficiente da comunidade e contribui para fazer diminuir ou até cessar as freqüentes situações de abusos.
As leis federais não instituíram, por expresso, qualquer sistema de controle de legalidade do inquérito civil durante sua tramitação: apenas foi criado um controle sobre seu arquivamento, a ser procedido pelo Conselho Superior do Ministério Público. Assim, eventuais ilegalidades praticadas no curso do inquérito civil devem ser objeto das seguintes providências: a) no campo administrativo, podem os interessados representar aos órgãos disciplinares do Ministério Público; b) no campo funcional, podem representar ao Conselho Superior, a quem incumbem poderes de revisão do arquivamento, inclusive implícito, do inquérito civil; c) no campo jurisdicional, podem impetrar habeas-data, habeas-corpus, mandado de segurança. Assim, por exemplo, em casos de ilegalidade, desvio de finalidade ou falta de atribuições, será possível impetrar-se o mandado de segurança contra a instauração do inquérito civil; nos casos de conduções coercitivas ilegalmente determinadas pelo Ministério Público, caberá o habeas-corpus.
Há projetos de lei, em andamento no Congresso, visando a instituir um sistema de controle interno sobre a instauração e a tramitação do inquérito civil, à guisa do que já existe, por força de lei local, no Ministério Público paulista.
Com efeito, a Lei Complementar paulista n. 734/93 (Lei Orgânica Estadual do Ministério Público — LOEMP) previu dois recursos em matéria de inquérito civil: a) contra o indeferimento de representação visando à sua instauração (no prazo de 10 dias a contar da ciência do indeferimento — art. 107, § 1º); b) contra a instauração do inquérito civil (no prazo de 5 dias a contar da ciência da instauração — 108, § 1º).
É, porém, írrito o sistema recursal instituído. Ainda que em tese pudesse o legislador estadual dispor sobre procedimentos, não estaria a disciplina do inquérito civil contida no objeto da Lei Orgânica local do Ministério Público. O objeto a ela reservado no art. 128, § 5º, da Constituição, seria apenas dispor sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público, e não dar disciplina normativa ao inquérito civil, ainda mais inovando a lei local e criando recursos destinados a obstar a instauração ou a tramitação de um procedimento já inteiramente disciplinado por lei federal. Os Estados podem em suas leis locais de organização do Ministério Público dispor sobre qual membro do Ministério Público pode instaurar um inquérito civil, quais as providências administrativas devem tomar para fazê-lo ou as comunicações e os registros que devem ser cuidados, mas não podem dispor sobre as hipóteses de instauração, o objeto, a revisão do arquivamento, os recursos no inquérito civil. Como dizem Nelson e Rosa Nery, “não poderão os Estados editar leis normatizando o inquérito civil no âmbito estadual, pois estariam ferindo o modelo federal da Lei n. 7.347/85, que já traçou o regime jurídico integral do inquérito civil. Assim, v.g., a LOEMP-SP art. 108, que estabelece recurso, com efeito suspensivo, contra a instauração do inquérito civil, em flagrante inconstitucionalidade por ferir o modelo federal”[23].
Às vezes, o promotor de Justiça recebe um requerimento, uma representação, uma denúncia de lesão a interesses transindividuais, e pode ter dúvidas se é ou não caso de instaurar inquérito civil. Não raro instaura procedimentos preparatórios, verdadeiras investigações preliminares ao inquérito civil, invocando autorização da Lei Complementar paulista n. 734/93.
Entretanto, segundo o art. 128, § 5º, da CF, a Lei Complementar paulista n. 734/93 deveria limitar-se a dispor sobre organização, atribuições e estatuto do Ministério Público local, não podendo instituir ou alterar o inquérito civil, instrumento todo criado e disciplinado pela lei federal (Lei n. 7.347/85). Além disso, o meio para apurar se há ou não lesão a um dos interesses que justificam em tese a propositura de ação civil pública é precisamente o inquérito civil, e não o procedimento preparatório ou preliminar.
Como disse Antonio Augusto M. Camargo Ferraz, sobre o procedimento preparatório ao inquérito civil, cabe verberar: “como se fosse razoável investigar um fato para saber se é o caso de investigar esse mesmo fato”[24].
De qualquer forma, quer o membro do Ministério Público instaure regular inquérito civil, quer mero procedimento investigatório de caráter preparatório, em ambas as hipóteses não poderá arquivar os autos sem submetê-los à revisão do Conselho Superior, porque a Lei n. 7.347/85 deu o mesmo tratamento ao arquivamento de inquérito civil e de quaisquer peças de informação (arts. 8º e 9º da Lei n. 7.347/85). E o que são peças de informação? São representações, documentos, certidões, cópias de peças processuais, declarações ou quaisquer informações que, mesmo sem o regular inquérito, permitam caracterizar a autoria e a materialidade de uma infração e embasar eventual propositura da ação pública.
Por fim, a instauração de procedimentos preparatórios, em substituição irregular ao inquérito civil, pode até mesmo trazer graves e imediatos prejuízos à defesa de interesses transindividuais afetos ao Ministério Público, inclusive deixando de obstar o curso da decadência, característica que, em certos casos, só a teria a instauração do próprio inquérito civil[25].
É fato que o inquérito policial foi confessadamente a inspiração do inquérito civil. Natural é que algumas soluções analógicas sejam invocadas, como na instauração, instrução e coleta da prova técnica do inquérito civil.
Contudo, só devemos fazer analogia com o inquérito policial naquilo em que a Lei n. 7.347/85 não tenha solução própria diversa (obviamente, não caberia analogia quanto ao modo de fazer o arquivamento, ou quanto às suas conseqüências, pois o sistema do art. 28 Cód. de Processo Penal é diverso do art. 9º da Lei n. 7.347/85; por igual, não caberia analogia entre inquérito civil e policial, em matéria de presidência e controle de prazos da investigação). Em outras palavras, só cabe analogia naquilo que seja compatível entre ambos (ex.: imposição de sigilo nas investigações, cf. art. 20 Cód. de Processo Penal; caráter inquisitivo do procedimento; poderes instrutórios etc.).
Segundo Calamandrei, o princípio da obrigatoriedade consiste em que, identificando o Ministério Público uma hipótese em que a lei exige sua atuação, não poderá abster-se de agir[26].
Quando o Ministério Público arquiva o inquérito civil, não está violando o princípio da obrigatoriedade, pois tem liberdade para examinar o caso e identificar ou não a hipótese de agir; identificada a situação em que a lei exige sua atuação, aí sim é que se torna obrigatória sua atuação.
O inquérito civil termina com propositura de ação civil pública ou com seu arquivamento.
O arquivamento tem de ser fundamentado e deve ser homologado pelo Conselho Superior do Ministério Público. Há obrigação legal de motivação do ato (o art. 129, VIII, da Constituição, traz para os membros do Ministério Público o dever de “indicar os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”; o art. 43, III, da Lei n. 8.625/93, também lhes comete o dever de “indicar os fundamentos jurídicos de seus pronunciamentos processuais, elaborando relatório em sua manifestação final”).
Por falhas ou descuidos, pode ocorrer que o arquivamento não seja fundamentado, ou que não seja suficientemente fundamentado. Isso pode ocorrer especialmente quando: a) nos autos do inquérito tenha sido apurada a existência de vários atos ilícitos, e o membro do Ministério Público, em sua promoção de arquivamento, só enfrente alguns dos atos; b) haja vários possíveis autores das ilegalidades e o membro ministerial só enfrente expressamente a questão da responsabilidade de alguns deles.
Além dessas hipóteses, também pode ocorrer que o agente ministerial não promova o arquivamento do inquérito civil e sim proponha a ação civil pública; contudo, restringe os limites objetivos ou subjetivos da lide e nada expõe nem fundamenta em relação a outros possíveis ilícitos ou seus autores, ou, se o faz, não destina suas ponderações ao órgão legalmente encarregado de rever sua decisão de arquivamento, que é o Conselho Superior do Ministério Público.
Argumentam alguns que, nesse caso, caberia ao juiz controlar a omissão ministerial. Discordamos desse entendimento pois, ainda que guarde analogia com o art. 28 do Cód. de Processo Penal, fere o sistema especial da Lei n. 7.347/85.
Quem deve provocar o Conselho Superior do Ministério Público para rever o ato do membro do Ministério Público, em casos de arquivamento de inquérito civil? Em primeiro lugar, o próprio membro do Ministério Público, que promoveu o arquivamento (art. 8º, caput, e § 1º, da Lei n. 7.347/85); por isso, devem-se evitar os chamados arquivamentos implícitos. Em segundo lugar, qualquer interessado pode representar ao Conselho, denunciando um arquivamento implícito e pedindo tome este conhecimento do caso (p. ex., um co-legitimado, uma associação, uma das vítimas de lesões individuais homogêneas etc.). Por fim, para quem aceite analogia com o sistema processual penal, até o juiz pode provocar o reexame do arquivamento do inquérito civil, mas nunca pelo procurador-geral e sim pelo Conselho Superior, que é o órgão ministerial encarregado de rever arquivamentos de inquéritos civis.
Quando da revisão do arquivamento do inquérito civil, poderá o Conselho Superior: a) homologar o arquivamento; b) reformar o arquivamento e mandar que outro membro do Ministério Público proponha a ação civil pública; c) converter o julgamento em diligência.
O arquivamento do inquérito civil, promovido pelo membro do Ministério Público, só produz efeitos depois que essa promoção é homologada pelo Conselho Superior do Ministério Público, na forma do art. 9º da Lei n. 7.347/85.
Ocorre que a Lei da Ação Civil Pública permite que as associações legitimadas apresentem razões e documentos ao Conselho, antes do julgamento da promoção de arquivamento (art. 9º, § 2º). Além destas, referidas expressamente na lei, qualquer interessado pode igualmente fazê-lo (o investigado, terceiros interessados, e até os co-legitimados, ainda que não associações), como conseqüência do direito genérico petição.
Para esse fim, deve-se assegurar publicidade à tramitação do inquérito civil no Conselho, com julgamentos em sessões públicas, exceção feita, naturalmente, às hipóteses de sigilo legal.
O art. 9º, § 3º, da Lei n. 7.347/85, prevê que o reexame dos arquivamentos dos inquéritos civis será feito pelo CSMP, na forma de seu regimento interno.
O regimento tem caráter complementar e assume nível hierárquico superior ao da própria lei orgânica estadual de cada Ministério Público e ao de eventuais atos regulamentares de outros órgãos, como o Colégio de Procuradores de Justiça ou a Procuradoria-Geral de Justiça[27].
O arquivamento somente confere uma solução administrativa para o procedimento, solução esta limitada ao âmbito do Ministério Público, e assim mesmo não cria preclusão nem impedimento para novas investigações. Arquivado o inquérito civil, qualquer co-legitimado pode propor a ação que o Ministério Público não propôs; o próprio Ministério Público não está inibido de propô-la. Nesse sentido, inviável a restrição contida no art. 111 da Lei Complementar paulista n. 734/93 (a de só se poderem reabrir as investigações se de outras provas se tiver notícia), seja porque a lei local desbordou seu objeto, seja também porque violou o modelo federal, seja enfim porque dispôs sobre pressupostos processuais (segundo a lei paulista, sem novas provas o Ministério Público não poderia reabrir as investigações cíveis, e, a fortiori, não poderia propor a ação...).
O arquivamento não cria direitos nem uma situação jurídica que deva ser mantida[28], salvo, apenas, fazer cessar o óbice ao curso da decadência (Cód. de Defesa do Consumidor, art. 26, § 2º, III).
Os conflitos de atribuições entre órgãos de execução do mesmo Ministério Público são solucionados pelo respectivo procurador-geral (art. 10, X, da Lei n. 8.625/93).
Se o conflito ocorre entre órgãos de execução de Ministérios Públicos diferentes (p. ex., entre o de São Paulo e o de Minas Gerais, ou entre um destes e o Federal), a solução cabe ao Supremo Tribunal Federal (Constituição, art. 102, I, f)[29].
O sistema da Lei n. 7.347/85 não é restrito à defesa do meio ambiente, consumidor e patrimônio cultural, mas sim aplica-se à defesa de quaisquer interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (Lei n. 7.347/85, art. 1º, IV, e Cód. de Defesa do Consumidor, art. 110). Em conseqüência, o inquérito civil presta-se à investigação de danos a quaisquer interesses transindividuais.
Resta indagar: e as lesões ao interesse público em sentido estrito, como, por exemplo, ao patrimônio público e social? E as lesões a interesses individuais indisponíveis, muitas das quais também ensejam atuação do Ministério Público por meio de ações civis públicas (p. ex.: questões atinentes à defesa de uma criança ou um adolescente, ou à nulidade de casamento, ou à propositura de uma ação rescisória)?
A Constituição comete ao Ministério Público o poder de dirigir o inquérito civil e outros procedimentos (arts. 129, III, VII e VIII), tendo as leis orgânicas do Ministério Público alargado o objeto das investigações ministeriais (Lei n. 8.625/93 — art. 25, IV; Lei Complementar n. 75/93, arts. 7º, I, e 38, I). Assim, hoje o inquérito civil se presta, numa interpretação extensiva, a investigar questões fáticas que possam em tese ensejar a propositura de qualquer ação civil pública pelo Ministério Público.
Em matéria de inquérito civil, o Conselho Superior do Ministério Público paulista tem entendido que: a) em se tratando de lesão a quaisquer interesses transindividuais, é sempre obrigatória a revisão do arquivamento pelo Conselho, mesmo que não se trate de hipótese expressamente prevista na Lei n. 7.347/85 (v.g., os casos de improbidade administrativa); b) em se tratando, porém, de lesão a interesses meramente individuais, não se faz a revisão do arquivamento pelo Conselho (como em casos de danos a interesses individuais previstos no Estatuto da Criança e do adolescente)[30].
A nosso ver, a tendência é a de que, gradativamente, todos os casos de arquivamentos de inquérito civil passem a ser revistos pelo Conselho Superior do Ministério Público, refiram-se eles a matéria abrangida pela Lei n. 7.347/85 ou não.
A homologação do arquivamento do inquérito civil pelo Conselho Superior do Ministério Público faz com que volte a correr a decadência em matéria de danos ao consumidor, por defeitos ou vícios do produto ou do serviço (Cód. de Defesa do Consumidor, art. 26, § 2º, III).
Por outro lado, lançada a promoção de arquivamento do inquérito civil, cria-se para o promotor de Justiça que a subscreveu um impedimento lógico para que funcione em eventual ação civil pública ou coletiva promovida com base nos mesmos fatos por outro membro da instituição ou por uma entidade co-legitimada[31].
Ademais, homologada a promoção de arquivamento do inquérito civil pelo Conselho Superior do Ministério Público, fica encerrada a investigação por parte do Ministério Público, o que não obsta, porém, a que os co-legitimados investiguem a lesão pelos seus próprios meios e proponham a ação civil pública ou coletiva cabíveis.
É possível a reabertura do inquérito civil arquivado?
Para uns, só seria possível fazê-lo com base em novas provas, por analogia ao inquérito policial[32]; para nós, a reabertura do inquérito civil independe de novas provas, pois, ao contrário do que ocorre com o inquérito policial, no inquérito civil a lei federal não restringiu a reabertura das investigações.
Não cabe às leis estaduais de organização do Ministério Público disciplinar o inquérito civil porque: a) o objeto dessa lei está limitado pelo art. 128, § 5º, da Constituição (organização, atribuições e estatuto do Ministério Público local); b) a Lei n. 7.347/85, diversamente do Cód. de Processo Penal, não faz restrições sobre a reabertura do inquérito civil arquivado — e não podem as leis locais violar o modelo federal; c) em vista do sistema de legitimação concorrente e disjuntiva da ação civil pública, co-legitimado algum à ação civil pública ou coletiva está vinculado ao arquivamento do inquérito civil; porque o estaria o próprio Ministério Público, se a lei federal não o quis expressamente?
Nesta questão, não há fazer analogia com o inquérito policial, pois as situações não apresentam semelhanças suficientes.
Se o sistema jurídico nacional admite o mais, que é a propositura de ação civil pública sem nova prova, mesmo em caso de inquérito civil já arquivado, por que não se admitiria o menos, que é a mera reabertura das investigações, ainda que sem novas provas?
O promotor de Justiça que promoveu o arquivamento pode depois ajuizar a ação civil pública que ele próprio tinha resolvido não propor?
Se tiver havido rejeição pelo arquivamento do Conselho Superior da instituição, não poderá. Nesse caso, a própria lei exige seja designado outro membro do Ministério Público[33].
Mas, depois de homologado o arquivamento do inquérito civil, em virtude de nova prova ou não, o promotor de Justiça originário pode convencer-se de que há base para a ação. Nesse caso, não estará sendo violada sua convicção, nem ferida a vedação legal, e, assim, a nosso ver poderá propor a ação civil pública.
E como fiscal da lei? Poderia o promotor de Justiça que promoveu o arquivamento oficiar na mesma ação que ele não quisera propor, e que veio a ser ajuizada por outrem? A nosso ver, não o poderá. Como fiscal da lei, tem o membro do Ministério Público os mesmos impedimentos que o juiz, e um deles é que não pode ter interesse na posição de uma das partes: tendo antecipado um juízo de descabimento da propositura da ação, sua posição de custos legais estaria comprometida. Sua intervenção no feito poderia justificar até mesmo a oposição da competente exceção de suspeição[34].
As ações civis públicas de que cuida a Lei n. 7.347/85 versam sobre interesses transindividuais, ou seja, alcançam um feixe de interesses individuais, ligados por um elo comum. A própria Lei n. 7.347/85 exige que essas ações corram, em regra, no foro do local do dano, justamente para que o juiz, o promotor de Justiça, as partes, as testemunhas e os peritos tenham maior facilidade de conhecer a extensão do dano.
Não raro isso levará, por exemplo, a que o promotor que instaure o inquérito civil ou promova a ação civil pública seja um dos moradores da cidade que está sendo contaminada pela poluição que ele visa a combater. Nesse caso, não estaria o promotor pessoalmente interessado na solução da lide, o que lhe retiraria condições de agir como autor ou até mesmo de instaurar o próprio inquérito civil?
Devemos distinguir: a) no caso de lesão a interesses difusos, diante de sua total dispersão, não há o impedimento. Questões que digam respeito ao interesse de membros indeterminados da coletividade não criam impedimento para atuação do promotor ou do juiz, caso contrário seria inexeqüível a norma que exige que essas ações sejam propostas no local do dano; b) no caso de lesão a interesses coletivos ou individuais homogêneos, com titulares determinados ou determináveis, não poderão o promotor ou o juiz estar entre os que foram pessoalmente lesados; os interesses individuais homogêneos ou coletivos não são comungados por toda a coletividade, abstratamente considerada, e sim por um grupo determinado de pessoas. Se o promotor ou o juiz fizerem parte deste grupo lesado, estarão incompatibilizados de oficiar no caso.
O inquérito civil não é processo administrativo e sim procedimento; nele não há uma acusação nem nele se aplicam sanções; dele não decorrem limitações, restrições ou perda de direitos. No inquérito civil não se decidem interesses; não se aplicam penalidades. Apenas serve ele para colher elementos ou informações com o fim de formar-se a convicção do órgão do Ministério Público para eventual propositura ou não da ação civil pública.
Assim, não sendo um fim em si mesmo, o inquérito civil não é contraditório, assim como também não o é o inquérito policial.
O que pode ocorrer, entretanto, é que, sob juízo de conveniência do presidente do inquérito civil, seja mitigado seu caráter inquisitivo. Tomemos estas hipóteses como exemplo: o Ministério Público não está bem instruído se é ou não caso de propor a ação civil pública, se houve ou não o dano, se a argumentação do autor do requerimento de sua instauração é ou não correta. Nesses casos, como em outros, ouvir todos os interessados, produzir provas requeridas pelo indiciado, facultar-lhe apresentação de documentos e elementos instrutórios — tudo isso pode ser mais que útil, até mesmo necessário.
Às vezes, porém, o inquérito civil não deve nem mesmo aproximar-se do contraditório, se não em todas as fases, ao menos em algumas delas (como quando deseja o promotor de Justiça surpreender uma situação que precise constatar, como o lançamento de poluentes; o uso de lixos clandestinos etc.). Neste último caso, o promotor de Justiça pode impor sigilo ao inquérito civil, cuja preservação será obrigatória[35].
A Constituição e as leis conferem aos membros do Ministério Público o poder de efetuar notificações e expedir requisições nos procedimentos administrativos de sua competência[36].
As notificações são verdadeiras intimações por meio das quais o membro ministerial faz saber a alguém que deseja ouvi-lo, em dia, hora e local indicados com antecedência razoável, respeitadas as prerrogativas legais e o direito de algumas autoridades de marcar dia e hora para serem ouvidas. Em caso de desatendimento à notificação, poderá ser determinada a condução coercitiva[37].
Já as requisições de documentos ou informações destinam-se a atender às necessidades investigatórias do Ministério Público.
Tem havido controvérsia sobre o poder de requisição do Ministério Público, especialmente em matérias atinentes a informações bancárias, fiscais e eleitorais[38].
A nosso ver, o Ministério Público pode requisitar documentos ou informações de quaisquer autoridades, inclusive nos casos legais de sigilo. Nesta hipótese, o membro do Ministério Público será responsável pela subsistência do sigilo sobre as informações requisitadas, bem como deverá responder pelo eventual uso indevido dessas informações[39]. Com efeito, “o Ministério Público, em face da legislação vigente, tem acesso até mesmo às informações sob sigilo, não sendo lícito a qualquer autoridade opor-lhe tal exceção”[40].
Só nos casos de exceções constitucionais, como no sigilo das comunicações telefônicas, é que o Ministério Público precisará de autorização judicial para ter acesso à informação sigilosa[41].
A falta injustificada ou o retardamento indevido do cumprimento das requisições importará a responsabilidade de quem lhe deu causa, inclusive sob aspecto criminal[42].
Atuando dentro de sua área de atribuições, o órgão do Ministério Público poderá expedir requisições, seja federal, estadual ou municipal a autoridade, a repartição ou o órgão destinatário.
Além das hipóteses em que o sigilo decorra diretamente da própria lei (ex.: sigilo bancário, sigilo fiscal), ainda pode ele ser imposto, discricionariamente: a) por conveniência da própria investigação; b) no resguardo de interesse público (como a segurança da sociedade ou do Estado); c) em respeito à imagem ou à privacidade das pessoas envolvidas.
O compromisso de ajustamento de conduta em matéria de danos a interesses transindividuais foi criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 211), e, depois, reiterado nos arts. 82, § 3º, e 113, do Cód. de Defesa do Consumidor.
O mesmo Presidente da República que tinha sancionado compromisso de ajustamento no Estatuto da Criança e do Adolescente, pouco depois vetou o § 3º do art. 82 do Cód. de Defesa do Consumidor, afirmando agora ser impróprio equiparar um compromisso administrativo a título executivo, ainda mais porque versava apenas prática de conduta e não pagamento de quantia determinada.
Esses argumentos não resistem à análise, porque nada impediria que a lei instituísse, como instituiu, títulos executivos extrajudiciais ainda que de obrigação de fazer. Ademais, o veto foi inócuo, pois, ao mesmo tempo em que se vetava o § 3º do art. 82 do Cód. de Defesa do Consumidor, e, conquanto dizendo que pelas mesmas razões vetaria idêntica previsão de compromisso de ajustamento, contida no art. 113 do mesmo diploma legal, o chefe do Executivo, por evidente descuido, promulgou na íntegra este último dispositivo, que instituiu o compromisso de ajustamento de forma até mais abrangente que o dispositivo do § 3º do art. 82, este sim efetivamente vetado.
Em suma, foi inócuo o veto ao § 3º do art. 82 do Cód. de Defesa do Consumidor, pois o art. 113 deste diploma — que não foi vetado — inseriu o § 6º do art. 5º da Lei n. 7.347/85, e instituiu o mesmo compromisso de ajustamento para a defesa de quaisquer interesses transindividuais (art. 21 da Lei n. 7.347/85, introduzido pelo art. 117 do CDC).
Theotonio Negrão, em suas anotações ao Cód. de Processo Civil, entende ter havido veto também ao aludido art. 113. A nosso ver, porém, não obstante tenha havido expressa manifestação presidencial no sentido de que o compromisso de ajustamento previsto no art. 113 também seria vetado como o foi no art. 82, § 3º, essa assertiva do presidente foi exposta apenas como argumento de veto a outro dispositivo da mesma lei (art. 92), mas tecnicamente não foi formalizado o veto ao art. 113, que foi sancionado e promulgado na íntegra. Como não existe veto implícito, pois isso impediria o controle da rejeição, a doutrina tem aceito a validade do compromisso de ajustamento, que vem sendo utilizado normalmente pelo Ministério Público[43].
Assim, os compromissos de ajustamento podem ser validamente tomados por quaisquer órgãos públicos legitimados, e trazem grande proveito social.
A eficácia do compromisso de ajustamento surge, nos termos da Lei n. 7.347/85, em decorrência de sua homologação pelo promotor de Justiça, e sua exeqüibilidade será livremente ajustada no próprio termo, não podendo as leis locais de Ministério Público dispor sobre o momento da formação do título executivo.
Se o compromisso de ajustamento levar ao arquivamento do inquérito civil, o Conselho Superior do Ministério Público deverá rever esse arquivamento.
O compromisso de ajustamento é garantia mínima em prol da coletividade, não limite máximo de responsabilidade do autor da lesão[44].
Esses compromissos de ajustamento não são, a rigor, verdadeiras transações, pois que os órgãos públicos legitimados a tomá-los não são titulares do direito lesado (direitos e interesses transindividuais), de forma que não têm como dispor do que não lhes pertence. Limitam-se apenas a tomar, dos causadores do dano, o compromisso de que estes ajustem sua conduta às exigências legais, dentro dos termos e condições fixadas. Trata-se de uma mitigação da indisponibilidade, de grande proveito e eficácia prática.
Nem todos os legitimados à ação civil pública ou coletiva podem tomar compromisso de ajustamento, mas só os órgãos públicos legitimados à ação civil pública ou coletiva. Por isso, estão autorizadas a celebrar compromissos de ajustamento as pessoas jurídicas de direito público interno e seus órgãos, não as sociedades civis, as fundações privadas, as entidades da administração indireta e as pessoas jurídicas que, posto tenham participação acionária do Estado, tenham regime jurídico próprio de empresas privadas (v.g., sociedade de economia mista, sociedade anônima de capital aberto).
Já que os órgãos que podem tomar o compromisso de ajustamento não têm disponibilidade do direito material controvertido, o compromisso deve versar apenas as condições de cumprimento das obrigações (modo, tempo, lugar etc.)[45].
Qualquer co-legitimado poderá discordar do compromisso e propor a ação judicial cabível. Caso contrário, interesses transindividuais poderiam ficar sem acesso ao Judiciário[46].
O compromisso extrajudicial não exige homologação em juízo, mas, se ela advier, o título passará a ser judicial[47].
O compromisso de ajustamento pode ser rescindido como os atos jurídicos em geral, ou seja, voluntariamente, pelo mesmo procedimento pelo qual foi feito, ou contenciosamente, por meio de ação anulatória[48].
Sob o aspecto doutrinário, ação civil pública é a ação não-penal, proposta pelo Ministério Público.
No sistema da Lei n. 7.347/85, ação civil pública é a ação para a defesa de interesses transindividuais, proposta por um dos seus co-legitimados.
Com mais técnica, o Cód. de Defesa do Consumidor preferiu a denominação de ação coletiva para referir-se à ação para defesa de interesses transindividuais, até porque o Ministério Público é apenas um de seus legitimados ativos.
A atual redação do art. 1º da Lei n. 7.347/85 permite a defesa de interesses transindividuais relacionados com o meio ambiente, o consumidor, o patrimônio cultural (bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico), a ordem econômica, e, ainda, qualquer outro interesse difuso ou coletivo[49].
Não só os interesses difusos e coletivos podem hoje ser defendidos por meio da ação civil pública ou coletiva. Como o Cód. de Defesa do Consumidor e Lei n. 7.347/85 se integram (em matéria de defesa de interesses transindividuais, um é de aplicação subsidiária para o outro)[50], em tese, cabe a defesa de qualquer interesse individual homogêneo por meio da ação civil pública ou coletiva[51].
A jurisprudência tem recusado o uso de ação civil pública destinada a atacar leis em tese, junto aos juízos de primeiro grau, o que a tornaria indevido sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade ou mesmo da ação interventiva[52]. Isso não quer dizer que, numa ação civil pública, não se possa reconhecer, incidentemente, uma inconstitucionalidade, como causa de pedir. Assim, por exemplo, em face de aumento indevido de mensalidades escolares, fundado numa lei inconstitucional, nada impediria que o Ministério Público ou qualquer co-legitimado ingressassem com ação civil pública ou coletiva para repetição do indébito, em benefício dos lesados, transindividualmente considerados.
O que não se tem admitido é que se use da ação civil pública ou coletiva para atacar, em caráter abstrato, os efeitos atuais e futuros de uma norma supostamente inconstitucional, pois, com isso, em última análise, estaria o juiz da ação a invadir atribuição constitucional dos tribunais, a quem compete declarar a inconstitucionalidade em tese de lei ou ato normativo, para a seguir ser provocada a suspensão de sua eficácia[53].
A Lei n. 7.347/85 e o Cód. de Defesa do Consumidor integram-se na matéria de legitimação ativa para as ações civis públicas ou coletivas[54]. Podem propô-las, de forma concorrente e disjuntiva: a) Ministério Público; b) União, Estados, Municípios e Distrito Federal; c) autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista; d) associações civis constituídas há pelo menos um ano, com finalidades institucionais compatíveis com a defesa do interesse pretendido[55]; e) entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa de interesses transindividuais[56]; f) sindicatos[57]; g) as comunidades indígenas[58].
Por identidade de razões, entendemos que se aplica aos sindicatos e às fundações privadas o requisito imposto para as associações civis: devem estar preconstituídos há mais de um ano e ter finalidade institucional compatível com a defesa judicial que queiram empreender na ação civil pública ou coletiva.
Para ajuizar a ação civil pública ou coletiva, a associação deverá estar expressamente autorizada, seja pelos estatutos, o que dispensará autorização punctual em assembléia[59], seja por deliberação da assembléia, nos demais casos[60].
Para o ajuizamento de ação civil pública ou coletiva, pode o juiz dispensar o prazo de pré-constituição, desde que haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido[61].
O requisito de pertinência temática significa que: a) nas ações civis públicas propostas por entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, devem eles estar especificamente destinados à defesa dos interesses transindividuais objetivados; b) as associações civis, fundações privadas, sindicatos, órgãos corporativos etc. devem incluir entre seus fins institucionais a defesa judicial dos interesses objetivados na ação coletiva por elas propostas[62].
O art. 2º-A da Lei n. 9.494/97, com a redação que lhe deu o art. 5º da Med. Prov. n. 1.798/99, exige que, nas ações coletivas movidas contra entidades da administração direta ou indireta, as petições iniciais sejam instruídas com cópia da assembléia da entidade associativa que a autorizou, acompanhada da relação nominal de seus associados e indicação dos respectivos endereços. Tal exigência só teria sentido em se tratando de defesa de interesses individuais homogêneos ou até coletivos, mas será de todo despicienda em matéria de defesa de interesses difusos.
Não se exigem requisitos de representatividade adequada do Ministério Público ou das pessoas jurídicas de direito público interno (União, Estados, Municípios e Distrito Federal); em tese, estarão eles legitimados a ajuizar ação civil pública ou coletiva. Quanto ao Ministério Público, seu interesse de agir é presumido; como disse Salvatore Satta, “o interesse do Ministério Público é expresso pela própria norma que lhe consentiu ou impôs a ação”[63]. Já os demais legitimados, e até mesmo, a nosso ver, a União, os Estados, Municípios e Distrito Federal, deverão ter interesse concreto na defesa do interesse objetivado na ação civil pública ou coletiva.
Para maior eficácia na defesa de interesses transindividuais, a lei permitiu que os diversos Ministérios Públicos pudessem trabalhar em conjunto, mediante litisconsórcio (p. ex., o Ministério Público de um Estado com o Ministério Público de outro Estado, ou um destes com o Federal).
A primeira norma a admitir o litisconsórcio de Ministérios Públicos foi o § 1º do art. 210 do Estatuto da Criança e do Adolescente, para a defesa dos interesses e direitos nele objetivados.
A seguir, o Cód. de Defesa do Consumidor previu o mesmo litisconsórcio em dois dispositivos distintos: o art. 82, § 2º, para a defesa do consumidor, e o 113, para a defesa de quaisquer interesses transindividuais.
O mesmo Presidente da República que tinha sancionado o art. 210 do Estatuto da Criança e do Adolescente resolveu vetar o litisconsórcio de Ministérios Públicos, agora no Cód. do Consumidor, e, assim como canhestramente o fizera quanto ao compromisso de ajustamento, vetou o respectivo parágrafo do art. 82, mas promulgou na íntegra o art. 113, que previa o mesmo litisconsórcio, e de forma até mais abrangente…
Objeta-se contra esse litisconsórcio uma série de argumentos, sendo que os dois primeiros já levantados nas razões do veto presidencial: a) o dispositivo que instituiu o litisconsórcio de Ministérios Públicos feriria o art. 128, § 5º, da Constituição, que reserva à lei complementar a disciplina da organização, atribuições e estatuto de cada Ministério Público; b) somente poderia haver litisconsórcio se a todos e a cada um dos Ministérios Públicos tocasse qualidade que lhe autorizasse a condução autônoma do processo, o que o art. 128 da Constituição não admitiria; c) como o Ministério Público atua perante os órgãos jurisdicionais, deveria ter suas atribuições limitadas pela competência destes, não podendo o Ministério Público estadual atuar perante a Justiça federal nem o federal atuar perante a Justiça local; d) a admissão do litisconsórcio entre Ministérios Públicos diversos violaria o princípio federativo; e) o Ministério Público é uno e indivisível, de forma que não poderia litisconsorciar-se consigo mesmo.
A despeito de a Constituição considerar o Ministério Público “uno e indivisível”, na verdade nosso Estado é federado, o que leva à existência de Ministérios Públicos distintos, embora possam trabalhar de forma sucessiva ou até mesmo simultânea (neste último caso, na interposição de recurso especial ou extraordinário, pelo Ministério Público local e pelo Federal)[64]. Ademais, nada impediria que a legislação processual disciplinasse atribuições concorrentes entre Ministérios Públicos distintos, como órgãos que são de Estados-membros autônomos.
A força da idéia da concorrência de atribuições entre Ministérios Públicos diversos está em permitir mais eficaz colaboração entre cada uma das instituições do Ministério Público, que, até antes disso, eram praticamente estanques.
Como dissemos, ao cuidar dos compromissos de ajustamento, os co-legitimados ativos à ação civil pública ou coletiva não agem em busca de direito próprio e sim de interesses transindividuais. Ainda que alguns deles possam também estar defendendo interesse próprio, como as associações civis — que buscam fins estatutários —, o objeto do litígio coletivo será sempre a reparação de interesses transindividuais.
Assim, posto detenham disponibilidade sobre o conteúdo processual do litígio, os legitimados extraordinários não têm disponibilidade do conteúdo material da lide. Como a transação envolve disposição do direito material controvertido, a rigor o legitimado de ofício não pode transigir sobre direitos dos quais não é titular.
Não obstante essas considerações, aspectos de conveniência prática recomendaram a mitigação da indisponibilidade da ação pública, que, aliás, já tinha sido atenuada até mesmo na área penal[65].
Sensível, pois, a esses aspectos práticos, a lei fez concessões. Embora vedando a transação nas ações de responsabilização civil dos agentes públicos em caso de enriquecimento ilícito[66], admitiu compromissos de ajustamento em matéria de defesa de quaisquer interesses difusos e coletivos[67]. Já em caso de dano ao meio ambiente, a lei também estimula a via transacional, pois é condição para a proposta de transação penal a prévia composição do dano, salvo em caso de comprovada impossibilidade[68].
Se houver transação em ação civil pública ou coletiva, e sobrevindo discordância de qualquer dos co-legitimados ativos, ou ainda de algum assistente das partes, como se há de proceder ?
Se a discordância se verificar depois de homologada a transação, poderão os legitimados apelar, visando a elidir a eficácia da homologação da transação. Tratando-se de discordância manifestada antes da homologação por um assistente simples, não obstará à eficácia do acordo[69]; obstará, porém, se partir de assistente litisconsorcial ou litisconsorte[70].
Pode o Ministério Público opor-se à transação feita por co-legitimados em juízo? Sim, compareça ele como autor ou mero órgão interveniente. Mesmo neste último caso (órgão interveniente), o Ministério Público não deixa de ser co-legitimado nato, e tem o encargo de assumir a promoção da ação até em caso de abandono ou desistência infundada. Por isso, poderá opor-se à transação, e assim evitar, em tese, que uma verdadeira desistência indireta pudesse ser forjada, mas com efeitos mais gravosos.
Se o juiz recusar as impugnações e homologar a transação, caberá apelação.
Pelas
peculiaridades da defesa dos interesses transindividuais, cremos possa o juiz negar homologação ao acordo.
Entendendo que a transação não atende aos interesses da coletividade, deixará
de homologá-la; se as partes se recusarem a dar andamento ao processo, e, mesmo
aplicado analogicamente o § 1º do art. 9º da Lei n. 7.347/85, se o Ministério
Público não der seguimento ao feito, não
restará ao juiz senão optar entre homologar a transação ou extinguir o processo
sem julgamento de mérito, por ter cessado o interesse processual.
Também a transação homologada em juízo pode ser rescindida como os atos jurídicos em geral; a ação para rescindi-la é a anulatória, não a rescisória, porque no caso a sentença é meramente homologatória do ato jurídico transacional[71].
É grande a dificuldade da produção da prova, em matéria de defesa de interesses transindividuais. As perícias são muito especializadas e custosas, além de que faltam critérios objetivos para mensurar a destruição de paisagem, a extinção de espécie animal ou vegetal, a prática de propaganda enganosa, a falta de vagas numa escola etc.
É problemático o custeio das perícias, quando necessárias. Normalmente as despesas do processo deveriam ser adiantadas pelo autor[72]; contudo, são maiores as dificuldades na ação civil pública ou coletiva, pois nelas não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação civil autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogado, custas e despesas processuais[73]. Assim, os custos das perícias devem ser carreados ao Estado[74].
No inquérito civil, o Ministério Público pode requisitar a perícia. Assim dispõe a Constituição paulista: “a administração pública direta e indireta, as universidades públicas e as entidades de pesquisa técnica e científica oficiais ou subvencionadas pelo Estado prestarão ao Ministério Público o apoio especializado ao desempenho das funções da Curadoria de Proteção de Acidentes do Trabalho, da Curadoria de Defesa do Meio Ambiente e de outros interesses coletivos e difusos”[75]. Na fase processual, o Ministério Público, tanto quanto todos os demais co-legitimados, deve requerer a realização da perícia ao juiz da causa.
Se for público o órgão que deva fazer a perícia, a requisição ministerial ou judicial deverá resolver o problema, mas se forem particulares as entidades capazes de fazer a prova técnica, as dificuldades são maiores, pois não são obrigados os peritos particulares a fazer perícias gratuitamente nem a custeá-la dos seus próprios bolsos. Some-se a todos esses problemas o fato de que, pelo sistema hoje vigente, não é possível desviar as verbas do fundo previsto no art. 13 da Lei n. 7.347/85 para custear perícias.
Seria cabível a instauração de inquérito civil ou a propositura de ação civil pública para investigar decisões da administração tomadas dentro do campo da discricionariedade administrativa?
Colocando a questão de modo genérico, não cabe ação civil pública ou coletiva (e, a fortiori, também não cabe a instauração de inquérito civil) para contrastar diretrizes de oportunidade e conveniência do administrador — pois, diante do princípio da separação de poderes, a discricionariedade do ato administrativo só pode ser aferida pela própria administração. Mas, por exceção, tanto em matéria de inquérito civil como de ação civil pública, é possível entrar no exame: a) dos aspectos formais de competência e legalidade do ato administrativo vinculado ou do ato administrativo discricionário; b) do mérito do ato administrativo vinculado; c) do mérito do ato administrativo discricionário, quando tenha havido imoralidade, desvio de poder ou de finalidade, ou quando o ato administrativo se tenha apartado dos princípios da eficiência ou da razoabilidade; d) do mérito do ato administrativo discricionário, quando a administração o tenha motivado, embora não fosse obrigada a fazê-lo (teoria dos motivos determinantes). Outrossim, como os fins a atingir pela administração são sempre vinculados, é possível que se instaure inquérito civil ou se proponha ação civil pública ou coletiva, p. ex., diante da falta de vagas para menores nas escolas, da inexistência ou insuficiência quantitativa ou qualitativa de ensino fundamental. Afinal, se são direitos, alguns até constitucionais, a eles correspondem deveres que podem ser cobrados em juízo.
O que não se poderá, porém, em juízo, é pretender impor ao administrador critérios discricionários do autor da ação civil pública ou do juiz, nem querer tomar do administrador o poder de decidir quais as despesas, opções ou investimentos são os melhores para a coletividade — pois, para tomar essas decisões, só o administrador foi eleito pela soberania popular.
Notas
1.
Cód. de Defesa do Consumidor, art. 81, parágrafo único.
2.
V. nosso A defesa dos interesses difusos em juízo, 12a ed., Saraiva,
2000.
3.
Efeitos: óbice à decadência (art. 26, § 2º, III, do Cód. de Defesa do
Consumidor) e obrigatório controle de arquivamento pelo Conselho Superior do
Ministério Público (art. 9º da Lei n. 7.347/85).
4.
Nesse sentido, v. nosso O inquérito civil, Cap. 11, 1ª
ed., Saraiva, 1999.
5.
V. nosso O inquérito civil, cit., Cap. 2.
6.
O inquérito civil e A defesa dos interesses difusos em juízo, cit.
7.
Apontamentos sobre o inquérito civil, Justitia,
165/33; Inquérito civil — 10 anos de um instrumento de cidadania — em Ação
civil pública, Saraiva, 1995.
8.
Código de Processo Civil comentado, notas ao art. 8º da Lei n. 7.347/85, 3ª. ed.,
Revista dos Tribunais, 1997.
9. CF, art. 129,
III.
10. CF, art. 129,
V.
11.
ECA, art. 201, V, e 208-24.
12.
Lei n. 7.853/89.
13.
Lei n. 7.347/85, art. 1º, V, e Lei n. 8.884/84, art. 88.
14. LC n. 75/93 (LOMPU), art. 5º, II, a.
15.
CR, art. 129, II.
16.
Neste sentido, é também a solução acolhida pela Súmula n. 7, do Conselho
Superior do Ministério Público de São Paulo.
17.
Será, porém, da competência da Justiça estadual a ação em que sejam interessadas sociedade de economia mista, sociedade
anônima de capital aberto ou outras sociedades comerciais, ainda que delas
participe a União como acionista (Súm. n. 8, do
Conselho Superior do Ministério Público paulista).
18.
Constituição, art. 5º, LXIX; Lei n. 9.507/97.
19.
CDC, arts. 4º, IV, 6º, III, 43 a 44 e 72.
20.
Lei n. 7.347/85, art. 8º, caput, e Lei da Ação Popular, art. 1º, §§ 4º e 6º.
21.
Lei n. 7.347/85, art. 8º, § 2º, e Lei da Ação Popular, art. 1º, § 7º.
22.
V. g., Constituição, art. 225, § 1º, IV.
23.
Código de Processo Civil, cit., notas ao art. 8º da Lei n. 7.347/85.
24.
Inquérito civil — 10 anos de instrumento de cidadania, em Lei n. 7.347/85 —
reminiscências e reflexões após 10 anos de aplicação — Rev. Tribunais, 1995.
25.
CDC, art. 26, § 2º, III.
26.
Istituzioni di diritto
processuale civile, v. 2, p. 469, § 126, 2ª. ed., 1943.
27.
As normas regimentais do Conselho Superior do Ministério Público paulista
decorrem dos arts. 203-245 do Ato n. 5/94-CSMP e suas
modificações posteriores (v. nosso O inquérito civil, cit.).
28.
Cf. Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz, Apontamentos sobre o inquérito
civil, Justitia, 165/33.
29.
V. nossos Regime jurídico do Ministério Público, 3ª ed., Saraiva, 1996, e
Introdução ao Ministério Público, 2ª ed., Saraiva, 1998, Cap.
6, n. 27.
30.
Nesse sentido, v. Súm. n. 19, do Conselho Superior
paulista; v., ainda, nosso A defesa dos interesses difusos em juízo, cit., Cap. 43.
31.
O art. 9º, § 4º, da Lei n. 7.347/85, manda que, se for
caso de propositura da ação civil pública, oficie outro membro do Ministério
Público que não aquele que propendeu pelo arquivamento.
32.
Cód. de Processo Penal, art. 19; Lei Complementar paulista n. 734/93, art. 111.
33.
Lei n. 7.347/85, art. 9º, § 4º.
34.
V. nota de rodapé n., retro.
35.
Cód. de Processo Penal, art. 20.
36.
CF, art. 129, VI; Lei Complementar n. 75/93, art. 8º, I a IV; Lei n. 8.625/93,
art. 26, I a III; Lei n. 7.347/85, art. 8º, § 1º, e 10.
37.
Constituição, art. 129, VI; Lei Complementar n. 75/93, art. 8º, I; Lei n.
8.625/93, art. 26, I, a.
38. V.g., a Res. 13.582, de 6-3-1987, do TSE (DJU de
13-3-1987, p. 3.911), e o art. 38, § 1º, da Lei de Reforma Bancária (Lei n.
4.595/64) referem-se à quebra do sigilo das informações sob requisição
judicial.
39.
Cf. ECA, art. 201, § 4º; Lei n. 8.625/93,
art. 26, § 2º; Lei Complementar n. 75/93, art. 8º, § 2º; Lei n. 8.429/92, art.
11, III; Lei n. 8.625/93, art. 26, § 2º; Lei Complementar n. 75/93, art. 8º,
VIII, §§ 1º e 2º; Lei n. 8.429/92, art. 11, III. No mesmo sentido, cf.
Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Nery, em Código de Processo Civil, cit., notas
à Lei n. 7.347/85.
40. MS n. 5.370-DF, STJ, 1ª. T., v.u., j. 12-11-97, rel. Min.
Demócrito Reinaldo, DJU, 15-12-97, p. 66.185, o qual acolheu nosso
posicionamento (Regime jurídico do Ministério Público, cit., 2ª ed., p. 407-9;
3ª ed., p. 422-4) e de Nélson e Rosa Nery (Código de Processo Civil, cit., 2ª
ed., p. 1425; 3ª ed., p. 1144).
41.
Cf. art. 5º, XII, da Constituição.
42.
Lei n. 7.347/85, art. 10; Lei Complementar n. 75/93, art. 8º, § 3º; Cód. Penal,
arts. 319 e 330.
43.
Para uma análise mais profunda sobre a eficácia dos §§ 5º e 6º do art. 5º da
Lei n. 7.347/85, introduzidos pelo art. 113 do CDC, v. nosso A defesa dos
interesses difusos em juízo, cit., Caps. 5 e 23. No sentido do texto, v. tb. Nelson e Rosa Nery,
Código de Processo Civil, cit., nota ao art. 5º, § 6º, da Lei n. 7.347/85;
Vicente Greco Filho, Comentários ao código de
proteção ao consumidor, cit., p. 377-8; Arruda Alvim et al., Código do
consumidor, cit., p. 509; Rodolfo C. Mancuso, Comentários, cit., p. 281; Kazuo Watanabe, Código brasileiro de defesa do consumidor,
p. 516, 2ª ed., Forense Universitária, 1992.
44.
Nesse sentido, v. nossos O inquérito civil e A defesa dos interesses difusos em
juízo, cit.
45.
Ato n. 52/92-PGJ/CSMP/CGMP, de 16-7-1992 (DOE, Seç.
I, 23-7-1992, p. 30).
46.
Nesse sentido, v., também, Fiorillo, Rodrigues &
Rosa Nery, Direito processual ambiental brasileiro, p. 178, São Paulo, Del Rey, 1996.
47.
Cf. art. 584, III, do Cód. de Processo Civil.
48.
Cf. Cód. Civil, art. 1.030.
49.
Cf. Lei n. 8.884/94, art. 88, e Cód. de Defesa do Consumidor, art. 110.
50.
Cód. de Defesa do Consumidor, art. 90; Lei n. 7.347/85, art. 21.
51.
Cód. de Defesa do Consumidor, arts. 81, parágrafo único, III, 82, e 90; Lei n. 7.347/85, art.
21. V., tb., LC n. 75/93, art. 6º, XII; Lei n. 8.625/93, art. 25, IV, a.
52.
Nesse sentido, v. AgRgAgI n. 189.601-GO, STF, 1ª T.,
j. 26-8-97, v.u., DJU, 3-10-97, p. 49.231; no mesmo sentido, v. Alexandre de
Moraes, Direito constitucional, p. 495, ed. Atlas, 1998.
53.
Constituição, arts. 52, X, 102, I, a, e 125, § 2º.
54.
Lei n. 7.347/85, art. 21; Cód. de Defesa do Consumidor, art. 90.
55.
Lei n. 7.347/85, art. 5º, I.
56.
Lei n. 7.347/85, art. 5º; CDC, art. 82; Lei n. 7.853/89, art. 3º; Estatuto da
Criança e do Adolescente, art. 210.
57.
Constituição, arts. 5º, LXX, b, 8º, III.
58.
Constituição, art. 232.
59.
Constituição, art. 5º, XXI; Cód. de Defesa do Consumidor, art. 82, IV.
60.
V. art. 2º-A da Lei n. 9.494/97, com a redação que lhe deu o art. 5º da Med.
Prov. n. 1.798/99.
61.
Lei n. 7.347/85, art. 5º, § 4º; Cód. de Defesa do Consumidor, art. 82, § 1º.
62.
Cód. de Defesa do Consumidor, art. 82, III e IV.
63.
Diritto processuale
civile, CEDAM, 1967, v. I, n. 45.
64.
Lei Complementar n. 75/93, art. 37, parágrafo único.
65.
Constituição, art. 98, I; Lei n. 9.099/95.
66.
Lei n. 8.429/92, art. 17, § 1º. Se não cabe transação nas ações de
improbidade administrativa, a fortiori não se admitirá transação nos respectivos
inquéritos civis.
67.
Lei n. 7.347/85, art. 5º, § 6º; Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 211;
Cód. de Defesa do Consumidor, art. 113.
68.
Cf. Lei n. 9.605/98, art. 27. A composição cível do dano ambiental há de ser
celebrada entre o causador da lesão e um dos órgãos públicos de que cuida o §
6º do art. 5º da Lei n. 7.347/85.
69.
Cf. art. 53 do Cód. de Processo Civil.
70.
Cf. art. 48 do Cód. de Processo Civil.
71.
Cf. art. 486 do Cód. de Processo civil. Nesse sentido, v. RE n. 90.995-8-RJ, 1ª T. STF, rel. Min. Néri da Silveira,
DJU de 28-2-86, p. 2.348, e RE n. 101.303-6-SP, 2ª T. STF, rel. Min. Djaci
Falcão, DJU de 28-2-86, p. 2.350.
72.
Cód. de Processo Civil, arts. 19 e s.
73.
Lei n. 7.347/85, art. 18, com a redação dada pelo art. 116 do Cód. de Defesa do
Consumidor.
74.
A propósito, v. nosso livro A defesa dos interesses difusos em juízo, cit.,
Caps. 33 e 36.
75.
Constituição paulista, art. 115, XXIX. Hoje, a referência seria às promotorias,
e não mais às curadorias, terminologia abandonada com o advento da Lei n.
8.625/93 e da Lei Complementar paulista n. 734/93.
Nota sobre o autor