Maria Apparecida
Mottat
Doutora em Serviço Social.
Refletindo
sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, percebemos a introdução de uma
visão compreensiva mais profunda sobre o ser humano, no seu processo de
crescimento e desenvolvimento. Adotando-se o conceito de compreensão de
Schleirmacher, que quer compreender cada pensamento e expressão a partir do
conjunto de um contexto vital do qual provêm, aceitamos que os seres humanos,
através de seus sistemas relacionais, tecem suas relações sociais, ainda que
não tenham plena consciência de serem seus autores.
A
história não é a sucessão de fatos no tempo, não é o progresso de idéias, mas é
principalmente o modo como homens determinados, em condições determinadas,
criam, reproduzem ou transformam os meios e as formas de sua existência social.
A história é o real, é esse movimento incessante pelo qual os seres humanos
produzem idéias ou representações, pelas quais procuram compreender e explicar
sua própria vida — quer individual, quer social — e suas relações. Essas idéias
ou representações, por influência de fatores os mais diversos, tendem a
esconder o modo real como as relações foram produzidas. Tentar a revelação das
composições realizadas entre o pensamento, as emoções e a realidade é tarefa árdua
e nos remete sempre às origens das relações.
Segundo
Spitz, a capacidade do ser humano para estabelecer relações sociais é adquirida
na relação mãe-filho; citando pesquisas de antropólogos culturais que
demonstraram existir, numa dada cultura, uma relação íntima entre a maternagem
e as formas de instituições culturais, Spitz afirma que essa ligação não pode
ser interpretada em termos de simples causa e efeito, numa ou noutra direção.
A
maneira de criar os filhos numa dada sociedade não determina, por si só, a
natureza das instituições culturais dessa sociedade ou a forma das relações
entre seus membros adultos; inversamente, não são apenas as instituições
culturais de uma certa sociedade que determinam a forma e o campo de ação da
maternagem. Influenciando-se recíproca e historicamente, as duas se entrelaçam
num processo contínuo, com a natureza das instituições culturais estabelecendo
o limite dentro dos quais a maternagem pode atuar.
A
sociedade ocidental, passando por transformações econômicas, ideológicas e
outras, modificou — entre outras coisas — o quadro da maternagem. Essas
transformações desencadearam a rápida desintegração do modelo tradicional da
família. O advento da Revolução Industrial, ao abrir caminho para o
recrutamento da mão-de-obra feminina, afastou a mulher das atividades
domésticas, obrigando o surgimento de soluções para os problemas que daí
emergiram; surgiram instituições culturais, até então desconhecidas, entre
elas, a creche. A creche passa a ser a instituição que deve responder pela
mediação entre o materno-infantil e o social, constituindo-se numa nova
realidade a ser vivida e obrigando a sociedade à adoção de condutas adequadas
às mudanças sociais.
Se nos
detivermos sobre a evolução histórica do equipamento creche, perceberemos as
oscilações de sua conceituação, bem ao sabor do entendimento possível na época.
Daí as polarizações, ora na necessidade de atender a mulher que trabalha, ora
na criança originária de um meio carente, ora entendendo o equipamento dentro
do conceito de educação compensatória e, finalmente, na tentativa de entendê-la
como instituição de apoio alternativo à família.
Os
trabalhos desenvolvidos por Winnicott e Spitz indicam a dimensão da importância
da maternagem, mesmo que ela se apresente revestida de diversos significados
nas distintas sociedades humanas; estudos realizados por Ariès mostram que a
ênfase na noção de família centrada no eixo pais-crianças é relativamente
recente. Segundo este autor, a noção mesma de infância, com a importância dada
ao papel dos pais, surgiu apenas nos dois ou três últimos séculos. Suas
pesquisas sugerem a existência, na sociedade européia antiga, de práticas muito
diversas, que denotavam a ausência dos sentimentos de família e de infância,
tal como existe hoje.
Ariès
relata que a família transformou-se profundamente, na medida em que modificou
suas relações internas com a criança. No século XV, encontramos as crianças em
casas alheias, na condição de aprendizes; numerosos contratos de aprendizagem
provam que o hábito de entregar as crianças às famílias estranhas era
difundido; a principal obrigação da criança assim confiada a um mestre era
servi-lo bem e devidamente. Toda a educação se fazia através da aprendizagem, e
dava-se a essa noção um sentido muito amplo; não havia lugar para a escola
nessa transmissão de conhecimentos, feita através da aprendizagem direta, de
uma geração para outra. Nessas condições, a criança, desde muito cedo, escapava
à sua própria família, mesmo que voltasse a ela mais tarde, depois de adulto. A
família não alimentava um sentimento existencial profundo entre pais e filhos e
isto não significava que os pais não amassem seus filhos: eles se ocupavam de
suas crianças menos por elas mesmas, pelo apreço que lhes tinham, do que pela
contribuição que essas crianças podiam trazer à obra comum, ao estabelecimento
da família — uma realidade moral e social, mais do que sentimental.
A
literatura antropológica, por sua vez, apoiada em estudos realizados em
diferentes culturas, no mundo inteiro, onde a circulação de crianças é
corrente, questiona a base biológica da maternidade social (Etienne, 1979;
Matthieu, 1977; Freeman, 1973), e procura fazer a análise do papel dos pais,
comentando a mística que envolve o vínculo genitor/geração em todas as
sociedades estudadas. A maternagem, para nós, diz respeito à dimensão social,
porque ela é o útero da primitiva relação do ser humano. Ela propiciará a
saúde da pessoa humana e do mundo onde habita. Conforme Winnicott e Spitz, é no
estágio de maternagem que se dá a primeira relação de um ser humano, e esta
será determinante na personalidade dessa pessoa.
A
compreensão desses conhecimentos nos responsabiliza sobre o fato de que um bebê
emite sinais de desconforto e o adulto deve colocar sua sensibilidade, sua
bagagem de memória e sua informação a serviço da tradução dessa mensagem e
mandar uma resposta por meio de uma atitude corporal de contato, que devolva o
conforto ao bebê.
A mãe é
o componente natural do processo de maternagem, porque “é mais” do que o bebê e
vive o seu filho como parte do seu próprio corpo; o corpo da mãe já pré-existia
ao do bebê; com o nascimento biológico, ocorre a separação física, porém a
ligação íntima entre os dois seres prossegue durante a fase simbiótica, que
acarreta muitas faltas e frustrações para ambos. Nesse espaço de frustrações,
no desconforto por ocasião do não pronto-atendimento de suas necessidades, no
vazio é que o bebê construirá sua vida mental, como tentativa de controlar seu
desprazer; o bebê alucina e tenta um retomo fantástico à homeostase anterior.
Esta evolução fantástica é ilusória, pois na realidade seu desconforto se
mantém até a solução. É no vazio que o bebê percebe, a partir dos fragmentos de
memória que vão sendo retirados, que a determinados sinais corporais correspondem
respostas ambientais e o estabelecimento dessa relação é o gérmen do pensar,
que traz prazer em si. A reflexão sobre a essência dessa relação leva a duas
premissas: de um lado, a disponibilidade ininterrupta a um bebê pode
ocasionar-lhe um estado de indiferenciação, sem lhe permitir a organização da
vida mental, como recurso alternativo na busca de satisfação; de outro lado, um
bebê sem um adulto perceptivo às suas necessidades, ao seu ritmo, ao seu estilo
pode ser levado a um espaço de frustração que, não sendo preenchido, pode
marcá-lo, impedindo-o de organizar seus conteúdos.
Ao lado
da complexidade da relação, consideramos importante a sutileza que a envolve e
que aponta a confiança e a continuidade como necessárias para a construção do
ser e de suas organizações internas. Cabe à mãe ou ao adulto que detém os
cuidados matemos a tradução do mundo, protegendo as vivências indispensáveis do
bebê, não deixando que a espera o leve à desesperança, que lhe adivinhe as
necessidades, uma vez que ele não pode informá-las.
Eis a
grande mensagem contida na maternagem: se o objetivo é transformar o bebê numa
pessoa inteira, é preciso que o adulto — mãe ou não — lhe transmita, com sua
proximidade, informações sobre o mundo externo (no qual o adulto está inserido)
e sobre o mundo interno (o próprio bebê). Esta é a construção das primeiras
relações humanas e que são constituídas de todos os componentes: proteção
física, aconchego, afeto, comunicação, jeito de falar, entonação e ritmo de
voz, etc.
Se a
construção dessas relações é estabelecida com a mãe, que detém os cuidados
maternos primários, há ainda que considerar que nem sempre ela tem claro o
sentido da maternagem. É possível que ela a exteriorize de maneiras diversas,
agredindo, irritando-se, sentindo-se insegura, com medo, delegando ou
reivindicando, omitindo-se. Se a maternagem for estimulada, as mães vão saber
usufruir, profunda e qualitativamente, dos momentos de que dispõem para estar
com seu bebê e considerar necessários os momentos de vazio, para que ele possa
organizar-se mentalmente.
Apontamos
para a necessidade de minimizar a problemática do processo de maternagem,
tarefa que pode — e deve — ser confiada às instituições (família, creche,
maternidade, casa de saúde, hospital, clínica ou unidade básica de saúde),
segundo um roteiro adequado a cada caso em particular. lnicialmente, é preciso
observar se a mãe é capaz de se entregar totalmente, para se retirar,
gradativa e convenientemente, respeitando a diretriz da dependência total para
a autonomia. O roteiro deve atentar para aspectos importantes, tais como: se a
mãe respeita o bebê, não o invadindo; se o ama de maneira física, fornecendo
contato, temperatura corporal, movimento e quietude, de acordo com as
necessidades. Cabe, também, observar que a maternidade recente ocasiona na
mulher um tipo de atenção difusa e o predomínio de sensações senestésicas
(puerpério). Por razões endócrinas e filogenéticas, a mãe mergulha no reino
animal, em ligação total com o bebê, desligando-se do resto do mundo. Se o
bebê, nesta fase simbiótica, for entregue a uma instituição, todas as
inquietações da mãe serão projetadas nessa instituição. Esta questão é de vital
importância e deve ser convenientemente compreendida.
Concordamos
que o amor materno é adicional, não constituindo um sentimento inerente à
condição de mulher; não é um determinismo biológico, mas algo que se adquire,
como produto da evolução cultural.
Apontamos
a empatia, ou projeção sentimental, como necessária no trato dessas questões.
Uma resposta empática significa uma tentativa de nos colocarmos no lugar do
outro, de maneira que nossos sentimentos nos sugerirão não só suas emoções, mas
também seus motivos.
Desde a
edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, encontramos a base legal para
respaldar nossa afirmação de que a complexidade do processo de maternagem
constitui tarefa que pode — e deve — ser confiada à instituição locus. A
estrutura jurídica brasileira passou a reconhecer a criança — tanto quanto o
adolescente — como pessoa em desenvolvimento e a condição peculiar daí
decorrente, como se vê no Artigo 6º do Estatuto. Isto é conseqüência da
aplicação da Doutrina de Proteção Integral defendida pela ONU, com base na
Declaração Universal dos Direitos da Criança.
No
capítulo relativo ao Direito à Vida e à Saúde, encontramos medidas de proteção
à mãe (gestante, parturiente ou nutriz), assegurando, inclusive, alojamento
conjunto que possibilite a permanência do neonato junto à genitora; isso
demonstra, com clareza, que a atenção ao binômio mãe-criança está assegurada,
ampliando o atendimento da questão relativa aos cuidados necessários à formação
das novas gerações.
O
conhecimento do processo de maternagem, como fase fundamental do processo de
crescimento e desenvolvimento do ser humano, tem agora, para nós, excepcional
importância. Além do imperativo legal, a compreensão de todo o processo
evolutivo poderá conduzir ao desenvolvimento harmônico do ser humano, da
dependência à maturidade, nos diversos Locus onde se dê. Onde quer que se
processe essa evolução (família, maternidade, clínica, hospital, casa de saúde,
unidade básica de saúde ou creche), a perfeita compreensão do processo
constituirá uma segura diretriz que permitirá à instituição propiciar a
mediação entre o materno-infantil e o social.
Bibliografia
1. ARIÊS, Phillippe. História Social da
Criança e da Família. 2. ed., Rio de Janeiro, Guanabara, 1986.
2. CORETH, Emerich. Questões Fundamentais
da Hermenêutica. São Paulo, E.P.U.IEDUSP, 1973.
3. MOITA, Maria Aparecida. Mãe-creche:
relações ambivalentes; em estudo de casos sobre a representação de usuárias.
Tese de doutorado apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
São Paulo, 1989.
4. SPITZ, René A. O Primeiro Ano de Vida:
em estudo psicoanalítico do desenvolvimento normal e anômalo das relações
objetais. São Paulo, Martins Fontes, 1979.
5. WLNNICOTIT, D. W. Textos Selecionados:
da pediatria à psicanálise. V ed., Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982.
6. ___________. A Criança e seu Mundo.
6.ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
Notas:
[1] MOITA, M. A. A Maternagem e o seu Espaço no Estatuto da
Criança e do Adolescente. Revista Brasileira Crescimento Desenvolvimento Humano
11(1): São Paulo, 1992.
[2] Maria Apparecida Mottat - Doutora em Serviço
Social; professora titular da Faculdade de Serviço Social da Unisantos:
pesquisadora do CDII. Av. Dr. Arnaldo, 715 — São Paulo-SP - Cep 01255 - Fone:
(011)280-3233.