A DESESTRUTURAÇÃO FAMILIAR E A CONDUTA JUVENIL DESVIADA
Tarcísio José Martins Costa[1]
Juiz de Direito, MG.
1. A família como suporte básico do desenvolvimento emocional e social da criança e do adolescente.
Ninguém desconhece que a falta do amparo familiar, mais precisamente a carência afetiva durante a infância, pode conduzir a uma deterioração integral da personalidade.
Segundo ensinam os psicólogos, os comportamentos de cuidado maternos são tão indispensáveis para o futuro da criança que, na sua falta, se encontram as raízes fundamentais do desajuste infantil, que acaba no adulto desajustado.
No Simpósio Internacional sobre a Ansiedade e Depressão Infantil, realizado em Belo Horizonte, em maio de l995, o especialista francês Philippe Mazet afirmou que a causa principal da depressão em bebês é a ruptura de seu vínculo afetivo com a mãe, o que provoca a sensação de definitiva perda. O diagnóstico pode ser feito a partir da segunda semana de vida. Se não tratada, a depressão pode gerar no futuro problemas de agressividade e delinqüência e até levar ao suicídio de crianças e adolescentes.
Daniel Hugo D’Antonio, no âmbito da carência afetiva, assinala que um estudo psicanalítico sobre usuários de heroína demonstrou que estes haviam sido grosseiramente descuidados e não receberam amor de suas mães, enquanto os pais evidenciavam uma atitude passiva. A deterioração da personalidade determinada pelas falhas do grupo familiar se converte em agente gerador de condutas menores desviantes, seja ou não de caráter delitivo.
A desestruturação e o abandono da família, segundo o Des. Liborni Siqueira, notável especialista brasileiro em Direito do Menor, em seus Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, é a fonte de todas as carências (materiais e emocionais), pois "É ali que construímos todos os aspectos cognitivos, morfológicos, fisiológicos, afetivos e emocionais da criança. A psicologia labora sua doutrina na compreensão do comportamento humano no seio da família. É na família que socializamos a criança projetando-a para a comunidade. A convivência familiar sadia é indispensável para modular o temperamento e instrumentalizar o caráter. Uma sólida estrutura familiar é o grande segredo da estrutura social."
Gelsi Bidart também destaca o importante papel da família como fator de integração social da criança.
Al propio tiempo e
por ello, la Familia es un factor
social primordial en absoluto, realizando de la manera más natural y humana posible tres actividades para que la Sociedad sea
y del mejor modo, que és el modo más humano a nuestro alcance. Se trata de tres funciones que la Familia cumple desde siempre, y el empeño
actual debería estar en manternerlas y mejorar, en lo
posible, su nivel. En primer
lugar dar la vida en las mejores condiciones de afecto y "entorno", posible
para que el que nace y para
la madre que da a luz. En
segundo término y como un derivado indispensable de lo anterior la educación básica y primaria y en tercer lugar la preparación para la vida en sociedad,
a través de la primera experiencia social que ella mesma
brinda y de la apertura que conscientemente realiza hacia la sociedad
mayor.
Coincidindo com as opiniões que enfatizam as conseqüências sumamente graves que a deterioração das relações familiares acarreta nos membros menores de idade ou adolescentes, Chazal destaca que a observação dos jovens infratores indica, habitualmente, a responsabilidade familiar da debilidade paterna.
Con toda certeza, la mayor parte de los jóvens que han incurrido en hechos ilícitos han sufrido una carencia affectiva producida por la muerte de ambos padres o de alguno de ellos, o por separación, indiferencia, frialdad, actitud egoísta o incapacidad de amar de los progenitores.
Segundo Kate Friedlander,
El gran progeso cumplido por la investigación criminológica de las últimas décadas reside en los descubrimientos científicos
que revelaron el origen invariavelmente ambiental del
comportamiento antisocial, con
ecepción de aquellos casos en que existe una pertubación orgánica. El material iluminado por la
exploración psicanalítica de casos individuales ha permitido ver con
entera claridad en qué formas intrincadas pueden los fatores ambientales determinar pertubaciones
del desarollo psíquico que
se traducen en conducta antisocial.
A experiência pessoal de cada um de nós à frente dos Juizados da Infância e da Juventude vem corroborar o entendimento esposado por tantos especialistas de que a melhor solução para o problema da criminalidade infanto-juvenil é a remoção dos fatores primários que levam à conduta antisocial, tais como a prevenção da deterioração do ambiente familiar, a orientação dos pais e mães e o fortalecimento da autoridade paterna dentro do âmbito familiar.
Uma pesquisa realizada sobre 1.950 famílias de adolescentes internados nos estabelecimento de proteção do antigo Estado da Guanabara mostrou que somente 211, dizer é, 10,8%, estavam regularmente constituídas com ambos progenitores presentes:
Menores internados que tinham somente mãe:
871.
Menores internados sem pai e sem mãe: 764.
Menores internados que tinham somente pai:
184.
Menores internados com pai e mãe: 211.
A sua vez, outra pesquisa realizada recentemente pelo Juizado da Infância e da Juventude de Belo Horizonte sobre a estrutura familiar de 905 jovens que receberam medida socioeducativa da liberdade assistida, nos anos de l995/96/97, indicou claramente que a autoridade parental, até então encarnada pelo pai, parece estar se perdendo. Constatou que a família nuclear simples, constituída pelo pai, mãe e filhos, representou apenas 37.7%, enquanto a monoparental feminina simples e extensa, portanto, chefiada por mulheres, somou cerca de 62.3%.
Na Inglaterra, um estudo do Ministério da Saúde Pública sobre 418 menores envolvidos na prática de delitos, demonstrou que 70% provinham de lares desfeitos.
É de se ver que as crianças, que tinham como suporte básico de desenvolvimento pessoal a família (um pai, uma mãe e uma casa), em número cada vez maior já não contam com esse sustentáculo, seja pelo incremento dos divórcios familiares, seja porque nascem em uma família monoparental (de um único membro), entre outras circunstâncias.
Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, os dados estatísticos referentes a l995 do Instituto de Geografia e Estatística – IBGE, órgão responsável pelas estatísticas da população brasileira, revelam grandes mudanças nas formas de constituição das famílias, especialmente um significativo aumento do número de separações. Pôde-se constatar também por esses dados uma expressiva diminuição do número de casamentos, sendo certo que a taxa de nupcialidade, que, em l990, era de 8/1000, em l994, reduziu para 4.6/1000.
Ao lado das profundas transformações sofridas pela família, não constitui também novidade para ninguém que a marginalização e a desagregação social registraram um grande salto quantitativo, nas últimas décadas, atingindo não somente os incapacitados e outros grupos minoritários, mas, sobretudo, as mulheres que sozinhas têm de sustentar sua prole, as crianças e os adolescentes. A ameaça de exclusão, com a globalização da miséria e o aumento assustador dos índices de desemprego, pesa agora sobre todos os setores, inclusive, as famílias de classe média ou aqueles que antes consideravam assegurada a sua inserção na vida social, como os profissionais liberais ou autônomos, funcionários públicos, pequenos comerciantes, enfim todos que vivem em uma situação de maior precariedade.
Como assinalou Emiliano Galende,
La vida de las mujeres
también se precarizó, por los avances hacie niveles de igualdad con el
hombre, la inserción en el
mercado de trabajo u el
deterioro de la familia. Lo que antes se considerava marco de la
seguridad familiar hoy ja no existe para muchas mujeres, a quines se ha impuesto tener sostener su propria vida; y no todas lo pudieron hacer
con éxito. Por lo tanto se produce en ellas un
nivel mayor de riesgo de exclusión.
Además, se ha precarización del
trabajo, que siempre fue el provedor de idendidad social y dignidad de las personas. Por eso el desempleo
no significa solamente la pérdida del ingresso económico, sino se convierte en una amenaza de marginalidad cresciente.
Não é, pois, sem razão que as condutas desviantes e criminógenas afloram, com maior robustez dentro desse contexto, sendo a clientela da Justiça da Infância e da Juventude majoritariamente proveniente dos grupos familiares desestruturados, desumanizados por toda sorte de privações, onde a fragilização gera diretamente nas crianças e adolescentes uma insegurança afetivo-emocional que, em grande número de casos, resulta em agressividade e violência, como resposta a um sentimento de permanente frustração.
2. Normativa de proteção à família
Por compreender a grande importância da família na vida da criança e do adolescente, é que o texto da Declaração dos Direitos da Criança das Nações Unidas, de novembro de l959, afirmava no Sexto Princípio:
Para o desenvolvimento completo e harmonioso
de sua personalidade, a criança precisa de amor e compreensão. Será criada,
sempre que possível, aos cuidados e responsabilidade dos pais, e, em qualquer
hipótese, num ambiente de afeto e de segurança moral e material; salvo em
circunstâncias excepcionais, a criança de tenra idade não será apartada da mãe.
À sociedade e às autoridades públicas caberá a obrigação de propiciar cuidados
especiais às crianças sem família e àquelas que carecem de meios adequados de
subsistência. É desejável a prestação de ajuda oficial e de outra natureza em
prol da manutenção dos filhos de famílias numerosas.
Bem por isso, os documentos internacionais mais recentes, alusivos às crianças e adolescentes, têm realçado a importância do direito à convivência familiar.
A Resolução nº 2.542 da Assembléia Geral das Nações Unidas proclama que "A família, enquanto elemento básico da sociedade, é o meio natural para o crescimento e o bem-estar de seus membros, em particular das crianças e dos jovens."
A Convenção dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em novembro de l989, reconhece, em seu preâmbulo, que a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão, proclamando, no art. 19, o direito dela viver com seus pais, a não ser quando incompatível com os seus melhores interesses. No art. 20, estabelece a obrigação do Estado de prover especial proteção aos infantes desprovidos de seu ambiente familiar e assegurar ambiente familiar alternativo apropriado.
O Encontro Mundial de Cúpula pela Criança, realizado nas Nações Unidas, em Nova Iorque, no dia 30 de setembro de l990, em sua Declaração sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento da Criança, proclama, igualmente, a importância fundamental do papel da família, que considera A principal responsável pela alimentação e pela proteção da criança, da infância à adolescência, reconhecendo que
"A iniciação das crianças na cultura, nos valores e nas normas da sociedade começa na família. Para um desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, a criança deve crescer num ambiente familiar, numa atmosfera de felicidade, amor e compreensão. Portanto, todas as instituições da sociedade devem respeitar e apoiar os esforços dos pais e de todos os demais responsáveis para alimentar e cuidar da criança em um ambiente familiar."
A seguir, conclui que
"Todos os esforços devem ser feitos para evitar que a criança seja separada de sua família. Quando esse afastamento ocorrer por motivo de força maior ou em função do interesse superior da criança, é necessário que se tomem providências, de modo que ela receba proteção familiar alternativa apropriada."
Compreendendo bem a importância da família - base da sociedade -, o constituinte brasileiro de l988 lhe conferiu especial proteção do Estado, estabelecendo, como prioridade absoluta, o direito à convivência familiar (CF, arts. 226, parág. 8º, e 227).
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 4º, repete o enunciado do art. 227 da Constituição Federal, que assegura o direito à convivência familiar, dispondo, ainda, no art. 19, que toda criança ou adolescente tem direito de ser criada e educada no seio de uma família e, excepcionalmente, no meio de uma família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária em ambiente salutar.
Igualmente destacável a posição do Código de Família da antiga República Democrática alemã, que impôs o dever para os pais de preparar o filhos para que tomem plena consciência de suas responsabilidades no matrimônio e na família (art. 42).
No mesmo sentido, dispôs de forma lapidar o art. 4 do Código de la Niñez e de la Juventud, da República de Cuba:
La sociedad Y el Estado reconocen el papel y la autoridad
de la familia en la formación
moral, física y espiritual de sus miembros más jóvenes. La familia tiene la obligación
ante la sociedad de conducir el desarollo
integral de los niños y jóvenes y estimular en el hogar el
ejercicio de sus deberes y derechos.
Exsurge, por conseguinte, dos textos da normativa internacional, da Constituição brasileira e do Estatuto, que é dever do Estado propiciar as condições indispensáveis para que a família possa cuidar e proteger seus filhos, a fim de que esses possam crescer e desenvolver-se em toda a sua plenitude.
Inquestionavelmente, o direito da criança de desfrutar de uma rede afetiva familiar, em ambiente estável e sadio, antes de ser um direito é uma necessidade vital, pois a família - locus nascendi et vivendi da criança - é, sem dúvida, o centro natural de afeição, conforto, cuidados e segurança de que ela necessita, para que possa desenvolver-se física, psicológica e moralmente, e integrar-se sem maiores problemas na sociedade. Enfim, é o espaço da organização social onde se desenvolvem os sentimentos, a inteligência e o espírito desperta para as realizações que conferem um sentido superior à vida.
3. As transformações no panorama familiar brasileiro
Os modelos tradicionais e hierárquicos de família, a família patriarcal, extensa, de origem ibérica, introduzida no Brasil no período colonial, tão bem retratada pelo extraordinário Gilberto Freire, no consagrado Casa Grande e Senzala, e a família burguesa, nuclear extensa, moldada dentro de rígidos padrões morais de inspiração vitoriana, surgida no país a partir do processo de modernização e industrialização, ambas assentadas na hierarquia e na disciplina, em que as crianças não tinham vontades, mas um certo número de regras rígidas de comportamento, culminaram por dar lugar a um novo modelo de família: a família nuclear simples, formada por pai, mãe e filhos. Essa nova família é fruto das profundas modificações demográficas, sociais e econômicas, ocorridas depois da revolução cultural dos anos 60, caracterizada pela controle ou planejamento familiar, e a maior liberalidade dos costumes e da vida sexual.
O acelerado processo de urbanização, que acompanhou a industrialização e o crescimento econômico, aliado à revolução da comunicação, trouxe consigo a mudança dos valores e a redefinição do lugar da mulher nos alicerces da moral social e familiar. As pessoas aumentaram seu nível geral de informação por um sem-número de descobertas no campo das ciências humanas e a vida que antes era simplesmente uma questão de dever a ser cumprido, transformou-se na frenética busca da felicidade.
Os pais passaram a questionar suas atitudes diante do filhos, compreendidos agora como seres em formação e em desenvolvimento, esforçando-se para suprir-lhes as necessidades. Inseguros, passam a temer assumir posições que possam deixar o filho traumatizado ou frustrado, acabando, não raras vezes, tiranizados por ele. No desejo de satisfazer-lhe as vontades, cada vez mais amplas nesse tonel sem fundo em que se transformou a sociedade de consumo, os pais modernos culminaram por meter os pés pelas mãos ao ceder ao chamado psicologismo, transformando sua ansiedade e sua culpa em atitudes permissivas que visam unicamente a satisfação do filho que geraram.
Observa-se que, paulatinamente, a família foi deixando de ser o núcleo poderoso de formação de caráter e de expansão da vida afetiva. A saída da mulher em busca do mercado de trabalho, na maioria das vezes como alternativa de sobrevivência do próprio grupo familiar; o desencontro dos horários de trabalho, impossibilitando a reunião à mesa das refeições; as novelas de televisão e outros programas impedindo o diálogo entre pais e filhos; o lazer dos jovens contrastando com as formas de entretenimento dos adultos, que igualmente procuram seguir o rítmo frenético da vida mundana, muitas vezes se esquecendo de suas responsabilidades para com a prole; as divergências profundas entre pais e filhos adolescentes, fruto do distanciamento das gerações; os conflitos conjugais e o incremento do número de separações e divórcios, tudo isso e muito mais, provoca traumas, introspecção e insulamento dos filhos dentro do lar ou o seu êxodo definitivo.
As formas de oposição entre gerações fazem com que os jovens procurem uma agressiva distinção dos adultos, que se manifesta claramente no exotismo dos trajes e dos penteados, mas, sobretudo, na formação de bandos e gangues, que deixam marcas de violência criminosa e de vandalismo gratuito, quase sempre de inspiração estrangeira, incrementada pelos consideráveis avanços da comunicação.
A disseminação assustadora das drogas (o álcool entre elas); o aumento dos delitos de trânsito, vitimando filhos a quem os pais impensadamente entregaram seu veículo e a violência gratuita dos estádios e shows são manifestações delitivas dos jovens oriundos das classes alta e média, que se propagam aos demais segmentos da sociedade e se relacionam, entre outros, aos demais fatores criminógenos já apontados, demonstrando a grave crise da família.
A perniciosa influência da mídia, especialmente da televisão, no interior dos lares e, de maneira particular, na formação de crianças e adolescentes, vem cada vez mais contribuindo para o desencadeamento da agressividade dos jovens e violando o direito dos pais de ver respeitada a sua missão educadora.
A análise do conteúdo das transmissões glorificadoras da violência registra dados tão inquietantes que merecem ser aqui registrados.
Pesquisa realizada em l993 demonstrou que, em apenas uma semana de programação e sem considerar os programas jornalísticos, a mais poderosa rede de TV brasileira exibiu durante 111 horas nada menos que 288 homicídios ou tentativas de homicídio, 386 agressões, 248 ameaças, 56 seqüestros, 11 crimes sexuais, 71 casos de condução de veículos sob efeito de drogas ou com perigo para terceiros, 7 de uso ou tráfico de drogas, 65 de formação de quadrilha, 43 roubos, 16 furtos, 7 estelionatos e mais l83 outros crimes. No total, foram 1.377 cenas de crime, o que dá uma média diária de l97.7, quase que 20% mais do que o constatado em idêntica pesquisa feita no ano anterior. O mais triste destaque, porém, é o que se constatou na programação infantil, cujas cenas de violência atingem 51,1 % de toda a violência televisiva. Apenas nos programas destinados ao público infantil foram exibidas mais de 100 cenas de violência por dia, o que leva à uma projeção de 36.708 cenas violentas exibidas, anualmente, às crianças brasileiras.
Tudo isso, para não falar no baixo nível da programação rotineira, na amoralidade das novelas, no erotismo apelativo, na debilidade mental da maioria dos apresentadores e animadores de auditório e no imenso cassino eletrônico que tomou conta da televisão brasileira, tem contribuído para o aumento da violência, a erosão dos valores éticos e sociais da família, a imbecilização de nossa juventude, anulando ou diminuindo a coesão e a capacidade educativa do lar e da escola.
A televisão tem perdido, portanto, a oportunidade histórica de ser a educadora de uma geração, para se tornar porta-voz dos valores (ou desvalores) mais negativos de nossa realidade, que envenenam o espírito e corrompem o caráter.
Ao lado disso, a crise econômica das duas últimas décadas atingiu diretamente a organização das famílias, obrigando-as a repensarem e reformularem suas estratégias de vida, sobretudo no que concerne à obtenção dos rendimentos, tendo em vista fugir ao máximo do impacto da recessão, do desemprego e da perda do seu poder aquisitivo.
O fato do homem adulto ter sido o mais afetado pelo desemprego, disseminado pela globalização da miséria, trouxe consigo enormes dificuldades para o desempenho de seu papel de provedor no grupo familiar.
Como aponta Rosa Maria Ribeiro em Estrutura
Familiar, Trabalho e Renda,
"Este fenômeno, entre outros, contribuiu para o expressivo aumento das separações conjugais ocorrido nesse período. Entre l984 e 1990, o número de separações e divórcios, no país como um todo, passou de 70,4 mil para 148,7 mil, representando um incremento de 55,95%, enquanto durante toda a década, a proporção de famílias constituídas por pais, com ou sem filhos, aumentou apenas em 30,1%.
Segundo relata a autora, as unidades domésticas unipessoais e as famílias formadas por mulheres sem cônjuge, morando com filhos, são os dois tipos que apresentaram o maior crescimento relativo: 21,4% e 19,0%, respectivamente.
No Nordeste, o aumento bem mais expressivo de separações e divórcios entre l984 e l990, 97,8 % contra 43,5% no Sudeste, aliado à migração inter-regional, que tem afetado em especial a população masculina, pode ter contribuído fortemente para o crescimento das famílias chefiadas por mulheres sem maridos.
Por outro lado, o modelo tradicional de família conjugal, constituída por casal com filhos, que em l981 representava 65,0% do total de unidades domésticas, teve uma redução relativa de 6.3% durante o período, reduzindo-se a 60,9% em l990.
A evolução desse novo modelo de família chefiada por mulheres, sua maior ou menor proporção, está fortemente associada à condição de pobreza.
A ineficácia e inoperância das políticas sociais destinadas a resolver os problemas da pobreza familiar, especialmente desses contigentes mais desfavorecidos, têm concorrido de forma decisiva para o agravamento do panorama social brasileiro e, via de consequência, do aumento expressivo das estatísticas relativas aos menores com desvio de conduta.
Importa, finalmente, mencionar o acentuado crescimento das famílias sem pais, que têm à frente apenas um irmão ou irmã, pouco mais velhos, sem falar nos milhares de órfãos de pais vivos ou mortos vivendo nas instituições ou que sobrevivem em condições sub-humanas nas ruas das cidades, submetidos à miséria, à doença, ao analfabetismo, à promiscuidade sexual, ao vício da droga, à violência, à exploração e à toda sorte de anomias.
4. Violência doméstica
Um dos espectos
mais sombrios de toda essa imensa tragédia, que não pode ser esquecido, é o da brutalização da criança no recesso dos lares, fato cósmico de tal dimensão, que levou de há muito Raskoviski,
decano da Psicanálise argentina, e Leboyer a criar a Sociedade
Internacional de Defesa contra as Agressões dos Pais.
Assim, no segmento da população infantil denominado infância em dificuldade já se inclui a categoria das crianças mal-amadas, isto é, as que sofrem várias formas de abuso efetivo, dentre elas as crianças mártires, ou seja, as que sucumbem às diversas formas de violência. Contribuindo para o agravamento desse quadro assustador, não se pode esquecer que 50% dos pais brasileiros são considerados alcoólatras crônicos.
O assustador de tudo isto, é que a brutalização das crianças pelos próprios pais, padrastos e madrastas vêm transformando famílias no principal grupo de risco para o menor, sendo certo que a violência contra eles praticada nas suas diversas modalidades - física, psicológica e sexual - é cada vez mais democratizada e universal, pois ocorre em todos as categorias sociais, tanto na família pobre, como nas de classe média e alta, nos países em desenvolvimento e nos países ricos.
Segundo dizem os dados internacionais, por sinal, muito difíceis de compilar pelos compreensíveis obstáculos, estima-se que 10% das crianças de menos de 5 anos que se apresentam aos pronto-socorros ou hospitais são vítimas de violência ou abuso físico. Uma menina em cada cinco e um menino em cada dez, portanto, 20% e 10%, respectivamente, são vítimas de abuso sexual antes de l8 anos. Cerca de 9% de todas as mulheres foram sexualmente vitimizadas por parentes e 5% estiveram envolvidas em incesto pai-filha.
Somente, na Alemanha desenvolvida, em l983, morreram cerca de 1.000 crianças brutalizadas pelos pais e mais de 10.000 foram hospitalizadas com ferimentos sérios.
Recente estudo realizado pela Seção de Atendimento do Adolescente em Situação Especial - SAASE, do Juizado da Infância e da Juventude de Belo Horizonte, com um grupo de 200 infratores em cumprimento da medida socioeducativa da liberdade assistida, demonstrou que 54,5% dos adolescentes atendidos foram vítimas de violência doméstica, dizer é, agressões físicas e/ou sexual por parte de seus familiares ou responsáveis.
Segundo a pesquisa, 62,5% dos que afirmaram ter sido vítimas de violência doméstica, repetem as agressões sofridas, corroborando, assim, as estatísticas internacionais, que afirmam que os agredidos tendem a reproduzir a violência de que foram vítimas no âmbito familiar. Revelou-se, ainda, que 63,37 % dos adolescentes usuários de drogas sofreram, igualmente, algum tipo de violência por parte de seus familiares.
Outra pesquisa realizada no município de São Paulo, de fevereiro de l988 a março de l990, no Serviço de Advocacia da Criança, mostrou os seguintes dados:
"1.072 casos de violência física, estando a maioria das vítima na faixa de 7 aos 12 anos. Em mais de 50% dos casos, os pais biológicos eram os agressores, havendo um ligeiro predomínio das mães;
203 casos de violência sexual, predominando as vítimas do sexo feminino e na faixa etária de 7 aos 12 anos. Os pais biológicos e os padrastos figuravam como os principais agressores."
Uma terceira pesquisa, realizada durante seis meses, em l990, no município de São Paulo, mais especificamente no Instituto Médico Legal, com 1.014 pessoas que se apresentaram para exame de corpo de delito na área da violência sexual, mostrou que 238 haviam sido vítimas de seus próprios familiares, sendo que mais de 60% eram os pais biológicos ou padrastos.
A baixa notificação dos casos de violência, que demonstra o pouco conhecimento e envolvimento dos profissionais da área de saúde, educação e bem-estar social com o grave problema, bem como as circunstâncias que cercam esse tipo de agressão, praticada, normalmente, intramuros, envolvendo medo, vergonha e culpa, revelam que as estatísticas estão muito aquém da realidade.
Por tudo isso, José Ângelo Gaiarsa, no livro A Família de que se Fala e a Família de que se Sofre, aponta a longa distância entre discurso laudatório da família e as mazelas que ela apresenta e indaga com toda pertinência:
"Se a família, célula mater da sociedade, é tão perfeita como proclama o discurso oficial, como seria possível nascer de tantas famílias tão boas, uma sociedade tão injusta e tão cruel?"
Ainda que possamos discordar em alguns aspectos do renomado psicólogo, há muito de verdade quando relata a existência de duas famílias: a de que se fala em público - sempre ótima; e a família de que tanto se queixa em particular - porque ela nunca é tão perfeita quanto devia
Uma realidade lacerante para a criança, desde a mais tenra idade, é a de ser vitimizado pela agressão dos próprios pais ou familiares. Quando adulto, conforme desmonstram diversos estudos realizados, haverá de desencadear sobre os próprios filhos e a sociedade a agressividade e a violência de que também foi vítima.
5. O ciclo perverso da exclusão e seus indicadores sociais
Conforme demonstrou o projeto internacional sobre delinquência juvenil auto-revelada, levado a efeito em vários países europeus, no Canadá e em alguns Estados norte-americanos, por iniciativa do Centro de Investigação e Documentação do Ministério da Justiça holandês, ao contrário do que se pensava, a família desestruturada ou incapaz dos adolescentes infratores nem sempre está na base do seu comportamento desviado. Hoje, sabe-se, que não só os jovens das famílias com problemas e das classes sociais mais baixas são os que praticam infrações.
Como disse Paulo César Alencar, além de sua conhecida etiologia, o ato infracional
"Reveste-se com um pouco de magia onipotente que rege o ideário das crianças bem pequenas. Nos assaltos, nos arrastões, nos bailes funks, nas brigas de gangues, há um jogo lúdico, prazeroso, com o gosto acre do desafio e da tentativa de sobrepasse da própria morte."
Eliana Gersão, Diretora Adjunta do Centro de Estudos Jurídicos de Lisboa, ao abordar o tema observa com muita propriedade que
"Uma certa dose de prevaricação, de violação de normas, de desafio da autoridade e de ultrapassagem dos limites é inerente ao processo de desenvolvimento de qualquer jovem. Entende-se ainda que as famílias, mesmo problemáticas, têm um papel insubstituível na vida das crianças e dos adolescentes e que pouco se pode fazer sem a sua colaboração."
O fato da família ser um espaço privilegiado de convivência não significa, como vimos, que não haja conflitos e tensões de extrema gravidade na esfera relações parentais, que, no entanto, impõe-se reconhecer, muito mais se agravam em condições de privação e falta de perspectivas.
Como assinalou Cenise Monte Vicente,
"O ser humano é complexo e contraditório, ambivalente em seus sentimentos e condutas, capaz de construir e de destruir. Em condições essenciais de escassez, de privação, e de falta de perspectivas, as possibilidades de amar, de construir e de respeitar o outro ficam bastante ameaçadas. Na medida em que a vida à qual está submetido não o trata enquanto homem, suas respostas tendem à rudeza da mera defesa da sobrevivência.
As milhares de famílias sem-terra, sem casa, sem trabalho, sem alimento, enfrentam situações diárias que ameaçam não só seus corpos - território último dos despossuídos – mas, simultaneamente, seus vínculos e subjetividades.
Este estado de privação de direitos ameaça a todos, na medida em que produz desumanização generalizada.
Do ponto de vista daqueles que não são pessoalmente atingidos pela miséria, emerge um tipo peculiar de desumanização - a ausência de solidariedade e a dessensibilização para com os problemas sociais."
Em conseqüência do paupérrimo
nível de cobertura vital, ou seja, satisfação mínima de suas necessidades
primárias (moradia, alimentação, saúde, educação, vestuário e lazer), conforme
bem registrou o Instituto Colombiano de Bienestar Familar,
La estructura interna de la Familia se resiente en sus relaciones conyugales, progénito-filiales, fraternales, determinando un transfondo de polimorfas implicaciones negativas, incapaz de cubrir necesidades mínimas del niño, ni de apreciar la formación de un régimen estable de seguridad psico-afetiva o social que saque a flote, con éxito, su personalidad en formación. Respuestas de estas condicionantes la Familia devuelve a la Sociedad que tan mesquinas ofertas le brinda una niñez callejera que deviene en infractora y delincuente.
Resulta, portanto, indiscutível que a insegurança do núcleo familiar gera diretamente na criança uma falta de segurança afetiva e emocional, que em grande número de casos é canalizada para a agressividade, como resposta à frustação permanente, ao contínuo sentimento de perda e à falta de amor e compreensão.
Em nossa sofrida América Latina, as causas do aumento crescente das condutas infracionais, notadamente a chamada criminalidade aquisitiva (furto, roubo e tráfico de drogas), que constitui a maioria expressiva das violações praticadas por adolescentes, têm induvidosamente como base a família marginalizada, não podendo ser desvinculadas do fator econômico, especialmente da exclusão dos países periféricos do processo de enriquecimento mundial e da irracional distribuição da riqueza interna, fatores que culminam por gerar os mais agudos níveis de pobreza de nossa região.
Ninguém desconhece que quanto maior a desigualdade na distribuição da renda de um país, maior o número de famílias desestruturadas e, conseqüentemente, de crianças em estado de abandono e marginalização social.
Por isto mesmo, já em l972, o Fundo das Nações Unidas para a Infância –
UNICEF e a União de Proteção
Internacional à Infância, sediada em Genebra, elegeram naquela época como tema do Dia Universal da Criança:
una vida mejor para los niños de los barrios
marginados de tugurios y viviendas
improvisadas.
Dentro da realidade heterogênea de imensa pobreza da América Latina, onde, segundo os indicadores de desenvolvimento social publicados no Relatório do Desenvolvimento Humano da ONU, para l996, 110 milhões de latino-americanos ainda vivem abaixo da linha de pobreza; 6 milhões de crianças estão de alguma forma desnutridas; 20 milhões, sequer, freqüentam a escola; quase a metade das zonas rurais carece de serviços de água potável e três quartos da população habitam nas zonas urbanas sem condições mínimas de higiene e conforto, é aí que se encontram os núcleos duros, onde a miséria é mais arraigada e as situações de risco para a infância são ainda maiores.
São as populações latinoamericanas das Favelas, Mocambos e Alagados, no Brasil, das Villas Misérias, na Argentina, das Caiampas, no Chile, e dos Cantegriles, no Uruguai.
Julio Cesar Sanettone Permuy, em Minoridad en Peligro, define a família pobre como aquela de nível sócio-econômico-cultural abaixo dos indicadores mínimos estabelecidos pelos Organismos Internacionais, nas áreas de habitação, alimentação, saúde, educação e trabalho.
Ahogada por el nível socio-economico, marginalizada, con
un permanente cambio de "roles", cargada de hijos (muchas vezes de distintos padres) con
un trabajo absolutamente
inseguro, sin una asistencia
sanitaria y alimentaria decorosa y con niveles extremamente bajos en el aspecto cultural.
No Brasil, os Mapas da Fome e, mais recentemente, os Mapas da Criança, elaborados pelo IPEA, quantificaram os pobres e indigentes em 32 milhões de pessoas e 9 milhões de famílias, mais da metade situadas no Nordeste e nas Regiões Metropolitanas. Um vastíssimo contingente cujas rendas mensais mal lhes bastam para adquirir uma cesta básica de alimentos capaz de satisfazer suas necessidades nutricionais. Um exército de 15 milhões de crianças e adolescentes pertence a famílias indigentes, representando, praticamente, a metade do total de indigentes brasileiros.
Nosso país tem hoje pelo menos 50 mil crianças e adolescentes que vivem e trabalham em depósitos de lixos a céu aberto – os lixões. Segundo pesquisa do UNICEF, 30% deles estão fora da escola e recebem entre R$ 1,00 e R$ 6,00 por dia, comercializando o lixo que também é a principal fonte de alimentação dessas crianças.
Nessa cadeia de exclusão social, as crianças e adolescentes constituem, portanto, o elo mais frágil, ou seja, são as maiores vítimas das injustiças sociais e econômicas, uma vez que é nos estratos socioeconômicos mais baixos e dentro de um contexto dessa natureza que se produz o abandono e se multiplica a clientela das instituições de amparo e dos chamados centros de reeducação.
São elas, como disse Sajón, em
brilhante conferência proferida no XVII
Congresso da Associação Brasileira dos Magistrados da Infância e da Juventude-
ABRAMINJ e I Congresso da Associação
Internacional Mercosul dos Juízes da Infância e da Juventude – AIMJIJ,
realizados em maio de l998, na cidade de Recife (PE),
Las que sufren los efectos de la pobreza y de toda forma de explotación laboral, sexual y otras formas de servidumbre y de su cobarde muerte, enfermedad, violencia y odio que se traducen en diferentes formas de rebeldia familiar y social existente y en manifestaciones mas autodestructivas, la drogadición incluyendole el alcoholismo, como el más extendido y mortífero y sin comentar el flagelo de ese útimo cuarto de siglo, el SIDA (HIV).
Como bem ponderou Maria Inés Perez Varella de Motta,
El abandono no se produce
entre las clases
acomodadas, ni entre quienes
tienen trabajo y vivienda adecuada, sino que es producto de los grupos
marginalizados y en especial afecta
mujeres solas o abandonadas por sus maridos o compañeros estables o eventuales, las que por general tienen otros hijos
que han conservado y desarolan
en condiciones inaceptables
en todos los aspectos:
habitacional, higienico, educativo y cultural.
Neste cenário não se pode deixar de assinalar a notória falta de eqüidade demográfica na maioria dos países de nossa região, à medida que os maiores índices de natalidade de sua população concentram-se nos segmentos mais pobres. Um estudo da CEPAL demonstra que as mulheres sem instrução têm em média cinco filhos, ou mais, enquanto o número de mulheres com estudos secundários é por volta de dois filhos. Muito embora os últimos anos venham registrando quedas significativas no crescimento demográfico, a população latinoamericana duplicou entre os anos l950 e l975, totalizando 320 milhões de habitantes, com o agravamento ainda maior dos níveis de pobreza e miséria indigência, com grandes danos para o atendimento das necessidades físicas, psicológicas, morais e educacionais de nossa infância. Se população da América Latina, em 1995, rondava os 400 milhões, já se projeta 500 millhões no ano 2000, dos quais 45% serão menores de 18 anos, ou seja, 270 milhões habitantes.
Todas essas circunstâncias, somadas a uma das crises econômicas mais graves do século sofrida pela América Latina na década de 80, conhecida como a década perdida, marcada pelo peso de uma dívida externa asfixiante, seguida no fim dos anos 90 dos sucessivos abalos provocados pela desorganização da economia mundial, gerando o assustador aumento do desemprego, da carga tributária e os cortes ainda mais significativos nos orçamentos sociais, culminaram por atingir em cheio os segmentos mais fragilizados, que atingiram níveis de miséria nunca dantes imaginados. Como conseqüência, houve um vertiginoso aumento do número de crianças desamparadas, entregues à sua própria sorte, perambulando pelas ruas das médias e grandes cidades em busca de seu espaço de sobrevivência.
6. O quadro sombrio de crianças
e adolescentes fora da escola
O impacto negativo desse contexto sobre o processo educativo das crianças e adolescentes está claramente demonstrado pelo fato de 52% das crianças com repetência escolar serem provenientes dos chamados núcleos duros, constituídos em grande parte por lares cujo chefe de família é somente a mulher, com baixo clima educacional e com problemas de alimentação, saúde e falta de espaço.
Segundo dados da CEPAL, até l992 esses núcleos, que têm como uma de suas principais características a ausência da figura paterna, representavam na América Latina de 10 a 25% dos lares pobres e indigentes, sendo que as crianças provenientes desses lares correspondiam a 11% e 27% do total.
Importa aqui sublinhar que a crise econômica das duas últimas décadas nos países de nossa região obrigou as próprias famílias a repensar e reformular suas estratégias de vida, sobretudo no que concerne à obtenção dos rendimentos, tendo em vista fugir o máximo do impacto da recessão, do desemprego e da perda do seu poder aquisitivo.
O fato do homem adulto ter sido o mais afetado pelo desemprego, disseminado pela globalização da miséria, trouxe consigo enormes dificuldades para o desempenho de seu papel de provedor no grupo familiar.
Conforme já mencionamos, a evolução do novo modelo de família chefiada por mulheres, sua maior ou menor proporção, está fortemente associada à condição de pobreza e ao expressivo aumento da concentração de renda. Relaciona-se, igualmente, com o aumento dos índices de evasão escolar e, via de conseqüência, com estatísticas relativas aos menores em desvio de conduta.
Essa assertiva, ficou claramente demonstrada no citado estudo do Juizado da Infância e da Juventude de Belo Horizonte, sobre a estrutura familiar de 905 jovens que receberam medida sócio-educativa da liberdade assistida, nos anos de l995/96/97, ao revelar que a família nuclear simples, constituída pelo pai, mãe e filhos, representou apenas 37,7%, enquanto a monoparental feminina simples e extensa, portanto, formada por mulheres, somou cerca de 69,8%.
Recente pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro sobre os indicadores sociais de crianças e adolescentes, em Minas Gerais, segundo Estado da Federação, revelou, a sua vez, que somente na Região Metropolitana de Belo Horizonte cerca de 59 mil infantes e jovens estão fora da escola.
Em todo o Estado, mais de 400 mil crianças e adolescentes entre 10 a 17 anos também não freqüentam a escola. Mais de 650 mil jovens desta faixa etária, representando 23% do total da população infanto-juvenil, estão incorporados ao mercado de trabalho. Na RMBH, das 503 mil crianças e adolescentes, 103 estão trabalhando ou desempregados.
O resultado da pesquisa, feita em l998, demonstra, ainda, que a renda per capita das famílias está associada à frequência escolar. Quanto maior é a idade do jovem dos estratos sociais mais baixos, maior a pressão para que ingresse no mercado de trabalho. Assim, nas famílias que recebem entre meio e cinco salários mínimos, 27% das crianças e adolescentes entre 10 e 17 anos não freqüentam a escola. O maior percentual de ausentes da escola, 12,6%, faz parte das famílias que têm renda per capita de até meio salário mínimo. Das crianças entre 10 e 14 anos, integrantes da população economicamente ativa, que deveriam estar cursando o 1º grau, contigente estimado em cerca de 204 mil no Estado, mais de 50% não estuda. Dos quase 449 mil adolescentes, na faixa entre 15 e 17 anos, também integrantes da população economicamente ativa, mais de 70% estão fora da escola.
De acordo com Antônio Braz de Oliveira e Silva, Diretor do Centro de Estatística e Informação (CEI), da Fundação João Pinheiro, esta situação, que com certeza irá explodir mais na frente, revela a permanência do ciclo perverso, que não foi rompido na estrutura familiar: filho de pobre vai continuar sendo pobre, o que no Brasil significa não ter acesso à educação e outros serviços básicos, se não freqüentar a escola.
Em outras palavras, como tivemos oportunidade de dizer em palestra sobre as transformações da família brasileira,
"Deixar a escola para trabalhar; permanecer mas repetir o ano; sair e voltar para a escola, segundo as maiores ou menores pressões para trabalhar; trabalhar na rua; submeter-se aos perigos que ela oferece; deixar a família; abandonar definitivamente a escola e permanecer na rua: este é o ciclo repetitivo e perverso da relação miséria/escola/trabalho/rua de expressivos contingentes de crianças e adolescentes pobres."
A pesquisa da renomada Fundação mineira retrata, também, a freqüência escolar dos jovens com relação à estrutura familiar, analisada sob o ângulo da presença ou não do cônjuge no domicílio, constatando que a proporção de adolescentes, cujos pais ou mães não moram no mesmo domicílio, é superior a dos adolescentes que residem com os pais. Demonstrou, ainda, que quanto maior a escolaridade do chefe de família, menor a proporção de jovens que não freqüentam a escola. Nas famílias, cujo chefe não foi escolarizado, 14,3% dos jovens de 10 a 17 anos não estudam, enquanto nas famílias cujo chefe possui o 3º grau completo, somente 3,9% não freqüentam a escola.
Segundo se conclui do importante trabalho, quanto mais pobre a família e mais baixo o grau de escolarização dos pais, mais sombrio o quadro de crianças e adolescentes fora da escolas, portanto, sem a mínima chance de inserção social.
Isso tudo num Estado que obteve prêmio da UNICEF por haver aderido ao Pacto para Educação.
Diante desse quadro caótico da educação em Minas Gerais, que se estende a todo o Brasil, ninguém duvida de que será muito difícil a eliminação das desigualdades sociais, uma vez que a educação, requisito essencial de qualquer projeto de desenvolvimento econômico, é que confere maiores perspectivas de inserção social e de melhoria do nível de vida das pessoas. Além disso, somente a educação poderá propiciar às crianças e adolescentes, futuros pais e mães de família, melhores condições de cuidar de seus filhos e tê-los em menor número.
Não podemos deixar de recordar, aqui, por ilustrativas, as palavras de Birch e Gussen, quando dizem:
Los niños en desvantaja no sólo por la pobreza, como por pertenecer a un grupo
marginalizado, curren mayor
peligro de abandonar la Escuela, con una educación inadecuada que sus contenporáneos con menos desvantajas. Dada su escasa educación, esos niños están
condenados cuando llegan a
adultos, al desempleo o bien
al empleo marginal. En consecuencia, su pobreza
persistirá en su vida
adulta y será heredada por sus hijos,
quienes con toda probabilidad repetirán el esquema del fracaso escolar de sus padres.
Por tudo isso, disse muito bem Celmilo Gusmão, Presidente da Associação Internacional (Mercosul) dos
Juízes da Infância e da Juventude, que os três maiores problemas da América Latina são: educação, educação e educação.
7. Interação dos fatores que levam a criança e adolescente ao desvio de
conduta.
Os fatores individuais - herança, déficit intelectual, sentimentos de frustração e perturbações emocionais e afetivas - inserem-se no panorama descrito, interagindo com os aspectos ambientais. Conforme comprovaram as pesquisas citadas sobre a delinqüência juvenil, ao contrário do que se pensava, não é somente a família desestruturada pela privação ou incapaz dos adolescentes infratores que está sempre na base de seu comportamento desviado. Jovens de classe média para alta têm também cometido arbitrariedades, violências e são autores de atos infracionais de toda espécie. O desejo de auto-afirmação, a instabilidade e uma certa dose de prevaricação, de violação das normas, de desafio à autoridade, são inerentes ao processo de desenvolvimento de qualquer jovem.
Por outro lado, ensinam os especialistas que cada um tem uma forma diversa de interiorizar os fatos que ocorrem à sua volta. Se alguns são dotados de um equipamento de percepção mais positivo, outros interiorizam os eventos de maneira quase sempre negativa.
Diferentes, portanto, são as reações e os níveis de agressividade entre os adolescentes e as pessoas de um modo geral. Um indivíduo que, além de ser naturalmente mais agressivo, possui uma percepção mais negativa dos fenômenos do meio circundante e, além disso, cresce no meio de uma família desatenta, desestruturada e desarmônica, poderá, em determinadas circunstâncias, desenvolver um comportamento socialmente patológico. Daí, o grande número de pessoas que, em maior ou menor grau, com maior ou menor planejamento, a partir de um acontecimento qualquer, desencadeia as agressões mais violentas. Especialmente, em se tratando de um adolescente, verdadeira metamorfose ambulante, cuja identidade é mutável e sempre inconstante, sujeito, como vimos, às mais bruscas e imprevisíveis oscilações de comportamento.
Ao lado dos desajustes familiares e dos fatores ambientais e suas vinculações, os especialistas têm apontado a problemática na área afetiva e emocional como um dos principais fatores que levam a criança e o jovem ao desvio de conduta.
Por isto mesmo, elegeram a prevenção da delinqüência como tão ou mais importante do que o tratamento propriamente dito dos menores delinqüentes.
Muito embora tal constatação tenha sido feita nos idos de l953, por ocasião do Seminário do Oriente Próximo sobre Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente, no Cairo, na verdade, como facilmente se constata, as políticas de prevenção têm sido sempre relegadas a segundo plano e superadas por métodos destinados ao tratamento e recuperação dos chamados delinqüentes juvenis, tanto na Europa e nos Estados Unidos da América.
O mesmo se pode dizer em relação à América Latina, cujas desigualdades sociais ainda mais justificariam a priorização das ações prevencionais.
Podemos proclamar, sem medo de errar, que em nenhum país da América Latina e Caribe, à exceção de Cuba possivelmente, foi até hoje implantada a decantada Política da Proteção Integral, elaborada no Congresso Panamericano do Menor, de l963, em Mar del Plata, Argentina, que teve como tema A Proteção Integral do Menor e da Família. Como se sabe, foi o referido congresso que forneceu as bases para que a OEA, em l969, elaborasse o Pacto de San José (Costa Rica), sendo certo que a Doutrina Jurídica da Proteção Integral somente foi desenvolvida e incorporada nos mais importantes documentos internacionais das Nações Unidas muitos anos depois.
O tempo foi passando e, não obstante os extraordinários avanços alcançados no campo normológico, os problemas cresceram enormemente e as violações aos direitos fundamentais, sociais e civis das crianças e adolescentes atingiram, nos últimos anos, cifras nunca dantes imaginadas. Confundiu-se, em nossa região, a proteção integral de infantes e jovens com a velha política de atendimento - improvisada, segmentada, e desprovida de um mínimo de planejamento preventivo - perdendo-se totalmente a visão global do problema, que é a única positiva e verdadeira.
Nossa realidade demonstra, entre outras, gritantes lacunas:
1. 1. falta de programas integrados de prevenção, que poderiam atuar especialmente sobre a família e evitar a duplicação de esforços e gastos com seus resultados negativos;
2. 2. falta de planejamento educativo-social e de planos que desenvolvam conceitos pedagógicos de participação do interessado e sua família;
3. 3. falta de critérios de avaliação permanente, que poderiam possibilitar a atualização dos processos educativos e de apoio social ao núcleo familiar;
4. 4. falta de coordenação dos setores públicos e privados, que poderiam manter planos e programas conjuntos, integrados e permanentes e, não, simples contratos de utilização de serviços e repasse de recursos;
5. 5. falta de uma profunda consciência social e política, que as boas intenções simplesmente não podem suprir.
Desgraçadamente, ao longo do
tempo, muitas crianças estão se transformando em bandidos ou adultos
problemáticos, verificando-se que os avanços produzidos no campo da proteção
internacional da criança, incorporados ao Direito
Positivo brasileiro e latino-americano, e as recomendações dos inúmeros
congressos e seminários, embora de grande atualidade, não passaram do terreno
da retórica.
Notas:
[1] Tarcísio José Martins Costa -
Juiz de Direito Titular da Vara da Infância e da Juventude de BHTE,
Ex-Presidente da Associação Brasileira dos Magistrados da Infância e da
Juventude –ABRAMINJ, Membro titular do "Comitê Central" da Associação
Internacional dos Ma