A FAMÍLIA: UM SUJEITO POUCO REFLETIDO NO MOVIMENTO DE LUTA PELOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

 

 

Maria do Carmo Brant de Carvalho[1]

Doutora em serviço social.

 

Isa Maria E da Rosa Guará[2]

Mestranda em serviço social.

 

 

Resumo: Neste texto as autoras mostram que é necessário desmistificar a visão que se tem da família como incapaz, desestruturada e culpada pela situação vulnerável de seus filhos pois, atrás de crianças em abandono existem famílias abandonadas e negligenciadas pela política de assistência social.

A família deve ser reconhecida como provedora básica das necessidades de seus filhos e como sujeito coletivo de direitos; ampliando-se para ela, a mesma proteção reivindicada para crianças, idosos, mulheres..., através de um “Rede de Atenção Integrada”, entre serviços e instituições, incluindo-se aí, a proteção social, jurídica e econômica.

 

Palavras-chave: família, políticas públicas, direitos sociais, proteção social jurídico-econômico.

 

 

Temos falado com insistência (e muita pertinência) nos direitos de crianças e adolescentes à vida, ao pleno desenvolvimento, à proteção integral.

 

No cenário de direitos deste segmento, a família emerge como referência insuprimível. É ela que, em primeira instância, gesta, cria e assume a proteção de suas crianças e adolescentes.

 

A tendência contemporânea de fracionar os segmentos portadores de direitos (a criança, o adolescente, a mulher, o idoso...) acaba por embaçar as demandas de justiça e proteção do grupo familiar.

 

Famílias castigadas pela pobreza e exclusão quase só podem predestinar a seus filhos o mesmo horizonte de vida na exclusão. Percebemos pouco esta realidade que nos cerca, expressada de forma dramática pelo número de crianças abandonadas e nos internatos, pelo número de meninos(as) de e na rua, pelas crianças e adolescentes que trabalham, pelas crianças e adolescentes que se evadiram da escola muito precocemente, ...

 

Quase sempre observamos as crianças deslocadas de seu contexto familiar e a percepção de sua tragédia pode eventualmente conduzir a análises simplistas em que a culpabilização da família é uma das idéias recorrentes.

 

Esquecemos que a muito pouco tempo essa mãe ou esse pai eram adolescentes cuja situação por certo não terá sido muito diferente da que hoje vive seu filho. A marca da exclusão não foi alterada nas últimas gerações.

 

Portanto, atrás de crianças e adolescentes em abandono existem famílias abandonadas, esquecidas pelos programas das diferentes políticas sociais e negligenciadas até mesmo pela política de assistência social.

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente reconhece o importante papel que a família desempenha no provimento das necessidades fundamentais de seus filhos, reservando um capítulo para a garantia do "Direito à Convivência Familiar e Comunitária".

 

Quando trata da política de atendimento, o ECA recomenda como medi da de proteção o retorno da criança ou do adolescente ao ambiente familiar (mediante termo de responsabilidade), a orientação, o apoio e a inclusão também da família em programas de auxílio, orientação ou tratamento.

 

Estes programas em geral inexistem ou se existem encontram-se de tal forma desarticulados e tão pouco apoiados - técnica e financeiramente - que seus efeitos são pífios.

 

No contexto da cultura tutelar para com os empobrecidos dominante em nosso país, as atenções para com a família são conservadoras e inerciais e reafirmam o signo da subalternidade com ajudas em espécie, eventuais e emergenciais, para mantê-las dependentes perpetuando o culto do "favor" e não a garantia do direito.

 

No entanto, é no espaço familiar que as necessidades fundamentais da criança e do adolescente tem sua primeira possibilidade de acolhida. A família é o lugar dos pertencimentos, dos afetos, dos conflitos e do suprimento dos bens materiais indispensáveis à manutenção da vida.

 

Muitas são as estratégias e os recursos utilizados pelo grupo familiar no sentido de garantir este viver cotidiano, continuamente ameaçado pelas contingências econômico-sociais da pobreza. Vive-se rotineiramente "sobre o fio da navalha" num cenário onde as carências materiais se misturam à violência e a discriminação.

 

Sem possibilidade de preparar com tranqüilidade o futuro, as famílias pobres preocupam-se com o presente e suas crianças são portadoras desses projetos de curto prazo, nos quais elas não são apenas receptoras mas também provedoras.

 

Nas família em situação de pobreza, o modelo de família nuclear coexiste com novos arranjos familiares, cuja tônica é a família ampliada formada pelos parentes próximos ou conterrâneos. Este núcleo constitui uma rede social primária de onde emergem ajudas fundamentais para a sobrevivência do grupo. Essa solidariedade conterrânea e parental [3] garante os padrões mínimos de reprodução social, criando sistemas informais de trocas materiais além do apoio afetivo e das poucas oportunidades de lazer coletivo.

 

É nesse contexto que acontecem os acolhimentos informais de crianças pelos parentes ou amigos, quando as vicissitudes da miséria castram, temporária ou definitivamente, as possibilidades de permanência das crianças com seus pais biológicos. Nestas família, as crianças "circulam" e a responsabilidade direta por sua proteção é partilhada entre diferentes membros do grupo familiar amplo, especialmente pelas avós [4].

 

Mesmo sendo um suporte fundamental de sobrevivência, esta solidariedade não pode ser supridora de todas as necessidades dos indivíduos no complexo mundo da modernidade atual. Reconhecer as necessidades do grupo familiar, significa contudo, sua aceitação como sujeitos e como agentes políticos e a inscrição de suas demandas no patamar dos direitos.

 

Portanto, para além dessa rede social básica, as família - evocando seus direitos - reivindicam sua inscrição nos programas oferecidos pelas redes institucionais públicas [5] das diferentes políticas sociais. Nesta busca, defrontam-se quase sempre com a ausência destes serviços ou com uma oferta fragmentada, voltada muito mais para sujeitos individuais (a criança, a mulher, o idoso) do que para a família como sujeito coletivo.

 

A percepção desses vazios de atendimento foi o motor de muitas ações coletivas com vistas à consolidação dos direitos sociais. Mas aí, também, a família foi subsumida pelos movimentos e organizações sociais ou sindicais, não se mostrando enquanto sujeito. Ao crescimento da ênfase no trabalho comunitário e na adesão aos movimentos sociais agregou-se o arrefecimento das experiências com família, embora as diferentes alternativas não tivessem que ser obviamente excludentes.

 

Por outro lado, se a ação pública secundarizou os programas de atendimento familiar, a rede de serviços sócio-comunitários de orientação religiosa voltou-se de forma mais ativa para este segmento. Esta solidariedade missionária representa não apenas um apoio espiritual mas também uma rede de apoio material e afetivo importante. Além disso foi ao abrigo dessas instituições que viscejaram alguns dos movimentos de luta por direitos, os quais viabilizaram várias conquistas em termos de serviços públicos.

 

Embora com uma atuação muitas vezes pontual e assistencial é pela via do apoio sócio-religioso que hoje se favorecem os canais de convivência e de solidariedade entre as família. Esta atuação das igrejas é bastante contraditória - por um lado abre espaço à participação e à organização popular na requisição de seus direitos, por outro, funciona como amortecedor das tensões sociais numa perspectiva acomodativa.

 

O ressurgimento da família hoje, enquanto unidade de atenção das políticas públicas, reflete uma retomada de consciência sobre a importância desta como provedora básica. Indica também sua revitalização enquanto continente afetivo e espaço de reagregação de programas e investimentos dispersos e atomizados nas diversas redes institucionais.

De todo modo é preciso considerar que a família - tanto quanto a criança e o adolescente - precisa de proteção social jurídica e econômica.

 

Considerando-se que significativa parcela da população brasileira vive em situação de pobreza e outro tanto não desprezível vive de modo indigente, não há dúvida que qualquer proposta de política voltada para as famílias, deve considerar as determinações estruturais dos problemas que as envolvem. Nesta linha, a garantia de renda mínima, a melhoria dos salários aliada à políticas de geração massiva de empregos, assentamentos rurais e programas de segurança alimentar e de saúde, representam um quadro básico para se começar o caminho de alteração das desigualdades sociais.

 

Em termos estratégicos é preciso ainda que se garantam patamares de melhor qualidade em programas de saúde, educação e habitação, por exemplo.

 

Entretanto, este esforço global deve ser conjugado a programas de atenção direta de Assistência Social às famílias mais vulnerabilizadas ampliando-se, também para elas, a proteção reivindicada para crianças e adolescentes dos grupos de risco.

 

Tais programas podem ser caracterizados por níveis de atenção e complexidade compreendendo a orientação, os apoios ou auxílios, os programas promocionais e os terapêuticas.

 

No nível da orientação, encontram-se programas (sistemáticos ou assistemáticos) dirigidos a uma família ou a grupos de famílias, numa linha mais preventiva e educativa. São exemplos: os grupos de gestantes, de planejamento familiar e algumas atividades do plantão social enquanto recebimento de demandas e oferta de informação básica.

 

Num segundo nível é preciso que se organizem os programas de apoio ou auxílio. Esse apoio tem se caracterizado mais pela ajuda material em situação de emergência do tipo "cesta-básica", enxoval para o bebê, etc. Um auxílio financeiro direto como já vem sendo feito pelo IAFAM (Instituto de Assuntos da Família - SP) é indispensável para que a família se reorganize de modo emancipado e responsável. É necessário pensar também neste apoio financeiro para famílias de acolhimento, como "bolsa-desenvolvimento" para crianças sem condições de estar com sua própria família.

 

No entanto, a sustentação financeira não é o único apoio de que a família necessita. Ela precisa também de apoio psico-social para o enfrentamento das situações mais difíceis, dos conflitos familiares, da ausência prolongada de renda, etc., incluindo-se aí o apoio jurídico.

 

Muitas vezes as família mais pobres carecem também de apoio informativo no sentido de localizá-los em relação aos recursos e serviços existentes os quais não são procurados por desconhecimento.

 

Um outro nível de atendimento às família caracteriza-se pelos programas de desenvolvimento que visam fortalecer os ganhos de poder. São desse tipo as ações voltadas à preparação profissional; o encaminhamento a emprego e projetos de geração de renda. Também são promocionais os programas voltados à socialização, ao lazer e à cultura que buscam elevar o padrão de cidadania do grupo familiar.

 

Por fim, quando o grupo familiar está mergulhado em patologias ou dificuldades emocionais mais complexas, sua demanda precisa ser atendida de modo direto e sistemático por serviços de saúde mental. Os programas terapêuticos são indicados quando uma ação mais indireta ou grupal mostra-se incapaz de reverter os problemas ou quando estes são mais profundos e já comprometeram a dinâmica do convívio.

 

Evidentemente, uma família poderá se socorrer concomitantemente dos vários grupos de programas protetivos ou apenas de um ou outro, dependendo do caso.

 

De todo modo, é importante que todos esses serviços sejam organizados numa "rede de atenção à família " que intercambie informações e serviços e promova atendimento e encaminhamento de forma integrada e eficaz.

 

Esta rede de atenção à família precisa focar a família não apenas pelo seu núcleo central - os pais – em muitos casos reduzido apenas à figura materna. O grupo familiar pode ser considerado pela extensão de sua rede básica primária onde, figuras parentais agregadas constituem usualmente elos de apoio, autoridade ou afetividade fundamentais para o desenvolvimento da criança e do adolescente.

 

Para dispor-se a estender a proteção à família é preciso também resignificá-la a partir de uma nova atitude para com ela. Neste mister, é preciso superar condutas pautadas na visão da família como incapaz, incompetente desestruturada ou culpada.

 

 

Notas de rodapé

[1]. Doutora em Serviço Social, Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social - PUC/SP e Diretora do Instituto de Estudos Especiais da Pontifícia Universidade Católica - IEE/PUC/SP. END: Rua Cardoso de Almeida, 990, Perdizes, São Paulo - SP, CEP 05013-001 - Fone: (011) 62.5142.

 

[2]. Mestranda em Serviço Social, Pesquisadora do IEE/PUC/SP.

 

[3]. Cf. Pesquisa sobre Padrões de Reprodução Social na Sociedade Providência - Profa Aldaiza Sposafi - PUC/SP 1990.

 

[4]. Sobre a circulação de crianças veja-se: FONSECA, C. Criança- família e desigualdade social no Brasil. ln RIZZINI, L Criança no Brasil hoje: desafio para o terceiro milênio. Rio de Janeiro, Ed. Un. Sta. Úrsula, 1993.

 

[5]. A análise faz parte das reflexões contidas no Relatório Preliminar de Pesquisa sobre as Redes de Atenção à Criança e ao Adolescente - IEEPUC- CBIA-1994.

 

 

Fonte:

CARVALHO, M. C. B.; GUARÁ, I. M. F. R. A Família: Um Sujeito Pouco Refletido no Movimento de Luta pelos Direitos da Criança e do Adolescente. Rev. Bras. Cresc. Des. Hum., São Paulo, IV(1), 1994.