ADOLESCÊNCIA E PROJETO DE VIDA

 

 

Isolda de Araújo Günther[1]

Pesquisadora Associada Sênior.

 

 

A necessidade de programas efetivos, que contribuam para a promoção do desenvolvimento adolescente, tem sido discutida tanto por profissionais da educação e da psicologia quanto pelos meios de comunicação. O presente artigo é uma tentativa de esclarecer os fatores envolvidos no projeto de vida de adolescentes. Será apresentada, inicialmente, uma análise do conceito de adolescência, tendo como ponto de partida a seguinte proposição: a adolescência é uma construção social.

 

O conceito de adolescência

 

Embora o conceito de adolescência seja relativamente recente na história da civilização (Ariès, 1962), a noção de adolescência tem suas raízes na Grécia Antiga. Aristóteles considerou os adolescentes como: “Apaixonados, irascíveis, capazes de serem arrebatados por seus impulsos, ...[ainda que tenham] altas aspirações ...Se o jovem comete uma falta é sempre no lado do excesso e do exagero, uma vez que eles levam todas as coisas longe demais”. (Kiell, 1964, pp. 18-19). A partir dessas observações, pode-se afirmar que vinculada à idéia adolescente encontramos o estilo adolescente, que pode ser resumido em: preparação, vir a ser, crescimento e dor.

 

Quando e como se inicia?

 

Constitui lugar-comum reconhecer que a adolescência começa na biologia e termina na cultura. A Organização Mundial da Saúde (Friedman, 1985) delimita essa fase entre os 10 e os 19 anos. Considerando a extensão desse período - quase uma década -, compreende-se porque as grandes variações no conteúdo, extensão ou época da passagem da infância para a adolescência, podem se converter em fatores protetivos ou de risco, cujos efeitos não se limitam apenas a essa fase do ciclo de vida. Embora os fatores protetivos quase nunca sejam discutidos, mesmo fazendo parte do trabalho de vários pesquisadores, como, por exemplo, Rutter (1989) e Werner & Smith (1992), os fatores de risco - decorrentes de comportamento - e suas incidências são constantemente propagados. Assim, uso de álcool, de drogas ilícitas, dificuldades na aprendizagem ou evasão escolar, sexo sem proteção, gravidez, paternidade ou maternidade adolescentes, delinqüência, violência e criminalidade são sempre relatados, mas as boas ações nunca aparecem. Isso como que corresponde a uma regra invertida do escotismo, em que os elogios devem ser tornados públicos e as críticas, privadas. No caso do adolescente, ao contrário, os elogios quase nunca vêm a público.

 

Há autores que salientam um aspecto muito relevante para a estrutura social brasileira: como os processos básicos da adolescência envolvem as relações entre os indivíduos e os vários níveis do contexto no qual o mesmo está inserido; a pobreza, por exemplo, pode exacerbar, em alguns indivíduos, tais riscos (Bronfenbrenner, 1998).

 

Adolescência e estereótipo

 

A revista The New Yorker, no número publicado na semana em que se comemorava o dia de São Valentim, apresenta em sua capa a figura de Cupido com uma metralhadora em lugar de uma flecha. Embora tenha asas e tatuagem de um coração no antebraço, não lembra em nada a figura de um querubim. Parece querer conquistar sua amada à base da metralhadora. Com o cabelo à moda punk, estrategicamente sentado no alto de um arranha-céu, cercado por armas, munições e um maço de cigarros, observa por um binóculo o movimento no edifício à frente, ao tempo em que visualiza carros e transeuntes.

 

Adolescência e imagem pública

 

A capa da revista reflete a imagem pública atual do adolescente. Imagem que parece haver sido elaborada a partir de crimes que despertaram muita comoção. Soma-se a isso, o fato de que os especialistas declaram que o bem-estar dos jovens atuais decaiu, que embora os índices de morbidade tenham diminuído para a maioria dos outros grupos de idade, aumentaram para o grupo adolescente (Hamburg, 1992). Os especialistas insistem que os jovens de hoje são mais suicidas (Garland & Zigler, 1993), têm mais depressão, mais gravidez não planejada, usam de mais violência e têm mais mortes violentas que seus predecessores de qualquer outro grupo, na história da humanidade. Não é surpreendente que o estereótipo público sobre o adolescente seja hostil. Nossa sociedade cunhou-os com um neologismo: aborrecente.

 

Adolescência e sociedade

 

Às vezes, parece que o adolescente está sendo usado para justificar a negligência de uma sociedade que o deixou de lado. É como se os jovens estivessem sendo usados para desculpar uma geração que os está abandonando. A avalanche de informações negativas aglutina o medo, canaliza o temor e a raiva do público sobre os adolescentes. O Centro Nacional de Segurança nas Escolas dos Estados Unidos informou que, dos 52 milhões de estudantes, duas dúzias são assassinados todos os anos, número que aumentou no último biênio. Curiosamente, a Comissão Nacional Contra Abuso e Negligência de Crianças relata que, todos os anos, 2.000 a 3.000 crianças são mortas... pelos pais.

 

Alex Kotlowitz (1992), em seu livro sobre a história de dois meninos crescendo em Chicago, relata que ao perguntar a um deles “O que você quer ser quando crescer?”, obtém a seguinte resposta: “Se eu crescer, gostaria de ser motorista de ônibus”. A resposta foi se e não quando, porque aos dez anos o garoto não estava certo se chegaria a ser adulto. Fazendo-se a mesma pergunta a outro menino, de outra classe social, a resposta poderá ser: “Vou ser médico”. Com confiança e assertividade.

 

Recentemente, o Jornal do Brasil publicou dados de uma pesquisa divulgada pela Unesco e pela Fundação Oswaldo Cruz, que resultou no livro Fala Galera, em que foram entrevistados 1,2 mil jovens cariocas entre 15 e 20 anos. Os resultados mostram jovens assustados, acuados, sem visualizar perspectivas favoráveis para o futuro. O cenário desolador apontado pelos jovens inclui dificuldades para entrar no mercado de trabalho, violência policial e problemas no relacionamento com a família.

 

Pessimistas ou realistas

 

Conclui-se que o jovem atual é um pessimista? Em pesquisa realizada por Günther & Günther (1998), do qual participaram 335 jovens com idade média de 16 anos e 2 meses, freqüentando uma escola particular, uma escola pública e três escolas destinadas a jovens carentes e/ou em situação de rua, verificou-se que aqueles que freqüentam uma escola privada e cursam uma série mais avançada expressam maior expectativa de concluir o segundo grau e entrar para a universidade. Observou-se que não freqüentar uma escola particular, associa-se a ter menor expectativa quanto a conseguir um emprego que garanta boa qualidade de vida e possuir uma casa própria. Os resultados indicam que os jovens, realisticamente, percebem que não existem oportunidades iguais para todos. As oportunidades para crescimento educacional e profissional são marcadas pelas vivências educacionais e pelo contexto cultural, resultando que os jovens que têm condições de freqüentar uma escola particular revelam, nos termos de Max Weber, melhores chances de vida, melhores expectativas quanto ao futuro.

 

Qual a tarefa do adolescente?

 

Mesmo para os que, entre nós, consideram-se crescidos, pensar sobre adolescência envolve pensar sobre nós mesmos: sobre o que éramos e somos, sobre o que poderíamos ter sido, sobre o que esperamos ser. Durante esses anos, ocorre uma recriação nunca finda, recriação que pode ser no mundo da imaginação, ou no mundo real. Os eus-passados são reinventados, convertidos em imagens como peças de um quebra-cabeças que devem fazer sentido pelo menos para o próprio indivíduo. As fantasias parecem ter mais poder do que as fantasias da infância. Mas apenas parecem, porque muitas vezes são associadas à mesma falta de controle, à mesma ausência de poder. É como se a natureza descarregasse nos adolescentes os apetrechos da idade adulta, mas a sociedade não os ensinasse a lidar com as novidades, com as transformações. Assim, no caminho para a idade adulta os jovens vivenciam dúvida, desilusão, solidão. Os pais, quando presentes, vão sentindo que já não podem exercer o controle anterior. Os jovens, por sua vez, vão substituindo o amor incondicional, a fé e a inocência típicas da fase infantil - para aqueles que a vivenciaram - pela participação em grupo, por um ideal, uma meta. Há os que se comprometem e são bem sucedidos na travessia e os que ficam à deriva. Alguns, tal qual um ator de segunda classe, não conseguem convencer a audiência. Outros parecem não ter saída, adotando para si o papel do bicho-papão. Sem claros laços familiares, sem o apoio visível da escola, das instituições, da sociedade, tornam-se como abortos ambulantes e começam a acreditar que suas dificuldades são seu destino. Como os adolescentes constituem uma imagem ideal de si mesmos baseados nos critérios do grupo, seus modos, seus valores e costumes, seguir um grupo é uma maneira de afirmar-se, alinhar-se, integrar-se. Como não se sentem seguros, buscam a segurança perdida, no grupo de amigos.

 

Adolescência e vida real

 

Na vida real, os jovens mudam muito seus pensamentos, desejos e ações, falham nos compromissos. Mas será que isto só ocorre por causa da natureza dos jovens? Será que o problema dos jovens atuais não vai além dos jovens? Estará associado a toda a sociedade, não podendo ser compreendido e solucionado isoladamente? Será que o distanciamento entre as gerações, a inabilidade e até a recusa para conviver com diferenças - por parte de jovens e adultos - ameaçam comprometer a estabilidade da estrutura social? Certamente os adolescentes sempre sentiram que os adultos são de outro partido, que criticam suas roupas, suas preferências musicais, seu desejo de aventura. A convicção dos jovens de que os adultos são contra eles reforça a fantasia correspondente dos adultos, de que os jovens são contra eles. Erik Erikson escreveu, em 1965:

 

“Na juventude as regras da dependência infantil começam a cair. Não é mais o velho que ensina ao jovem o significado individual ou coletivo da vida. É o jovem que, por meio de suas respostas e ações, diz ao adulto se a vida, da maneira como é representada pelo idoso e representada pelo jovem, tem significado. E é o jovem que carrega em si o poder de confirmar aqueles que o confirmam, de renovar e dar nova vida, ou de reformar e de se rebelar” (pp.24).

 

Adolescência e identidade

 

A idéia básica subjacente no presente artigo é a de que o ser humano é, o tempo todo, um organismo, um eu e um membro de uma sociedade. A adolescência, por sua vez, constitui uma guerra interna e externa cuja batalha central é a formação da identidade. Relembrando Erikson, convém enfatizar que a identidade envolve mais do que o indivíduo e sua formação, sendo articulada na teoria Eriksoniana nos seguintes termos:

 

“Eu denominei a maior crise da adolescência como sendo a crise da identidade. Ela ocorre naquela fase da vida em que cada jovem deve estabelecer, para si mesmo, certas perspectivas centrais e certa direção, alguma unidade de trabalho além dos vestígios de sua infância e das esperanças da sua antecipada idade adulta. O jovem deve descobrir alguma semelhança significativa entre o que ele vê em si mesmo e entre o que sua consciência afiada lhe diz que os outros julgam e esperam que ele seja” (Erik Erikson, 1962, pp.14).

 

Esses padrões de desenvolvimento assumem, nos diferentes indivíduos, diferentes formas; como se fossem variações sobre um tema comum. Na biografia do jovem Martim Lutero, Erikson mostra como uma pessoa muito bem dotada sente, com intensidade, o ímpeto adolescente de rejeitar o que antes era valorizado (aspectos do pai internalizado) e a urgência de adotar convicções que o ajudarão a encontrar seu mais íntimo eu. Nessa procura o jovem é muitas vezes tentado a fazer escolhas prematuras, ou a deixar o barco correr passivamente. O adolescente, situado entre a infância e a idade adulta, carrega o pesado fardo dos dois períodos: o peso do próprio passado, o peso das falhas das gerações que o precederam. O jornal The New York Times (29/04/1998), indagando como rotular os milhões de adolescentes norte-americanos, escolheu denominá-los geração autônoma, uma vez que os jovens se criam a partir da imagem de ninguém, mas da própria imagem. Visto assim, pode-se apreender a observação de uma jovem de 14 anos: “Eu me considerava uma adolescente, quando eu estava na 6ª série” e prossegue. “Agora, eu não gosto de adolescentes que parecem ser adolescentes”.

 

Psicologia e identidade

 

Conforme Gotevant (1998), em psicologia do desenvolvimento, o conceito de identidade é usado para indicar: 1) a combinação de características de personalidade e estilo social pela qual o indivíduo “autodefine-se” e é reconhecido; 2) o sentimento subjetivo de coerência e continuidade da personalidade. Para a psicologia, a construção da identidade se coloca na interface da personalidade individual, das relações sociais, da consciência subjetiva e do contexto externo, sendo, portanto, um construto psicossocial. James Marcia (1996), partindo da visão de Erikson de que essa fase do ciclo vital é marcada por crescentes compromissos ocupacionais e ideológicos, caracterizou quatro maneiras diferentes de resolução de identidade: realização da identidade, moratória, exclusão e difusão de identidade. A definição desses conceitos é baseada no fato de que o adolescente experimentou, ou não, uma crise. Comprometeu-se, ou não, com o futuro. A adolescência termina, quando o jovem alcança o status adulto, aceita novos papéis sociais e se torna psicologicamente maturo.

 

O educador romeno Reuven Feuerstein, quando perguntado sobre o que está errado com os jovens, afirmou: “Os jovens vivem num mundo sem passado, não têm história; e sem futuro: não há projeções de vida. Eles não têm horizonte, vivem pelo aqui e agora” (Isto É, n1 1545, pp. 65).

 

Parece-nos congruente concluir que nossa geração talvez se tenha omitido de transmitir aos jovens o sentimento de que o indivíduo tem valor e maneiras positivas e realistas de pensar sobre si, sobre os outros e sobre o ambiente. Ao preparar-se e ao destinar-se para o futuro, o jovem precisa ser orientado para buscar objetivos factíveis e para articular estratégias que o levem a obtê-los.

 

 


Referências Bibliográficas

 

Ariès, P. (1962). Centuries of childhood: A social history of family life. New York: Vintage.

 

Bronfenbrenner, U. & Morris, P. A. (1998). The ecology of developmental process. Em W. Damon & R. M.. Lerner (Eds.). Handbook of child psychology: Vol. I. Theoretical models of human development (5th ed. pp.993-1028). New York: Wiley.

 

Erikson, E. (1965). The Challenge of Youth. Garden City: NY (1962). Youg Man Luther: A Study in Psychoanalysis and History . New York: NortonFalconer, I. (15/02/1999). Heart Attack. The New Yorker, capa. The New Yorker Magazine, Inc.: New York.

 

Friedman, H. L. (1985). The health of adolescent and youth: A global overview. World Health Statistics Quarterly, 38 (3), 256-266.

 

Garland, A. Z. & Zigler, E. (1993). Adolescent suicide prevention: current research and social policy implications. American Psychologist. 48: 169-182.

 

Grotevant, H. D. (1998). Adolescent Development in Family Contexts. Em W. Damon & N. Eisenberg. Handbook of child psychology: Volume III: Social, Emotional and Personality Development. (5th. edition, pp. 1097-1149). New York: Willey.

 

Günther, I. A. & Günther, H. (1998). Brasílias pobres, Brasílias ricas: perspectivas de futuro entre adolescentes. Psicologia: Reflexão e Crítica. 11 (2), 191-206.

 

Hamburg, DA. (1992). Todays Children: Creating a Future for a Generation in Crisis. New York: New York Times Books.

 

Kiell, N. (1964). The universal experience of adolescence. New York: International University Press.

 

Kotlowitz, A.(1992). There are no children here. New York: Doubleday.

 

Marcia, J. E. (1966). Development and validation of ego identity status. Journal of Personality and Social Psychology, 3, pp. 55i-558.

 

Martins, M. A. (30/05/1999). Jovem carioca tem medo do futuro. Jornal do Brasil. (Retirado em 30/05/ 1999) do World Wide Web: http://www.jb.com.br/cidade.html

 

Moraes, R. (12/05/1999). Direito à Inteligência. Isto É, n1 1545. São Paulo.

 

Rutter, M (1989). Pathways from childhood to adult life. Journal of Child Psychology and Psychiatry. 30:23-51.

 

Werner, E. E. & Smith, R. S. (1992). Overcoming the Odds: High Risk Children from Birth to Adulthood. Ithaca, NY: Cornell University Press.

 

 

 

Notas:

 

[1] Isolda de Araújo Günther - Pesquisadora Associada Sénior, Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento, Universidade de Brasília.

 

[2]  Texto extraído em: http://www.adolec.br/bvs/adolec/P/cadernos/capitulo/cap09/cap09.htm