VIOLÊNCIA,
INFÂNCIA E JUVENTUDE. O ESTATUTO: UM NOVO PARADIGMA
Antônio Fernando do Amaral e Silva
Desembargador
do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.
Muito
se fala a respeito da violência representada pelo extermínio dos meninos de
rua; da mortalidade infantil decorrente de doenças facilmente evitáveis; da
exploração pelo trabalho precoce e penoso; dos maus tratos e de toda a sorte de
violência física, psicológica; do preconceito contra as crianças pobres; da
exclusão escolar.
É
hora de discutir as falácias, os mitos e os eufemismos da violência que povoa a
chamada “Justiça Tutelar”.
Estudos
de casos, diagnósticos, prognósticos, defesas, pareceres, sentenças e acórdãos
freqüentemente exsurgem fundamentados apenas no “melhor interesse da criança”,
critério simplista e autoritário, porquanto subjetivo.
Esse
mito, do “melhor interesse”, geralmente arbitrário, tem conduzido a maiores
injustiças, separando crianças e pais, quebrando raízes afetivas e biológicas.
A
pretexto de garantir “um futuro melhor”, crianças e jovens são separados dos
pais, perdendo vínculos afetivos, sem que suas opiniões e anseios sejam
devidamente considerados.
Nas
separações e divórcios, pais e mães partilham bens e filhos sem que crianças e
adolescentes se manifestem, decidindo advogados, promotores e juízes ao arrepio
da opinião dos mais atingidos pelo drama familiar.
É
dito que as decisões levam em conta o “melhor interesse”, mas, geralmente, os
pronunciamentos não esclarecem em que o pressuposto se baseou, faltando, na
maioria das vezes, análise dos aspectos psicológicos e fáticos.
Decisões
se executam e se exaurem sem acompanhamento e avaliação das conseqüências.
O
suprimento da incapacidade, na maior parte dos casos, não passa de falácia, que
precisa ser desmascarada: os atores do processo deverão assumir que “o melhor
interesse” não deve ser a “justificativa”, simplista e autoritária, do “adulto”
para decidir do destino do “menor”.
Laudos,
pareceres, sentenças não devem basear-se em tão singelo e arbitrário princípio,
que nem sempre coincide com as expectativas e direitos fundamentais (liberdade,
intimidade, opinião) de crianças e jovens.
Outras
falácias podem ser encontradas quando se proclama o aspecto Tutelar da Justiça
e a inimputabilidade penal. Estas contribuem para o exacerbamento do
preconceito relativamente aos “menores”, apontados como irresponsáveis.
Uma
justiça que obriga a reparar o dano, prestar serviço à comunidade; que priva o
adolescente do bem jurídico mais importante depois da vida, a liberdade, não
pode ser considerada exclusivamente tutelar do “melhor interesse” do jovem.
Ao
“internar” o adolescente, privando-o da liberdade, a justiça também tutela o
interesse social da segurança pública e da prevenção e repressão da
delinqüência.
No
sistema, apontado como tutelar, o jovem, além de estigmatizado como
irresponsável, inimputável penalmente, é “punido” com restrições severas, que,
inclusive, implicam a perda da liberdade.
Tal
falácia (inimputabilidade = proteção) não resiste a qualquer análise crítica.
Quanto
à reeducação e ressocialização de “jovens infratores”, tais mitos e suas
nefastas conseqüências são por demais conhecidos, dispensando qualquer
argumento. A matéria é cediça. Basta a referência.
As
“medidas protetivas”, implicando a separação da criança da família ou do grupo
afetivo, em muitos casos, resultam na institucionalização, cujos males são por
demais conhecidos.
As
“medidas sócio-educativas”, na realidade, penas criminais disfarçadas, impostas
com base em “princípios” e “paradigmas dos adultos”, são bastante
questionáveis.
A
comunidade jurídica, o sistema de justiça, para serem coerentes, tem de admitir
a existência do crime juvenil e da necessidade da resposta justa e adequada,
abandonando mitos, eufemismos e falácias, próprias do antigo e autoritário
Direito do Menor.
A
Carta Política de 88, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Convenção
Internacional dos Direitos da Criança não podem continuar a ser interpretados e
aplicados com base na antiga “Doutrina da Situação Irregular”. É dela que advêm
tais vieses, com equívocos e injustiças.
A
partir do Estatuto implantou-se um novo modelo jurídico, garantista e
responsabilizante.
O
adolescente, embora penalmente inimputável, passou a ter responsabilidade
juvenil (que denomino responsabilidade sócio-educativa).
Como
as demais pessoas, os adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais e
sociais. Em contrapartida, respondem pelos seus atos perante a justiça,
submetendo-se a respostas predominantemente educativas, mas cujo caráter
retributivo tem de ser reconhecido.
A
liturgia do julgamento é pedagógica. A resposta também.
O
Estado, mesmo à guisa de proteger, não pode apropriar-se do “conflito”, que
pertence ao jovem e que tem de ser composto, com a participação dele e da
vítima.
Crianças
e jovens precisam ser conscientizados de que se o sistema, de um lado, garante
os seus direitos, de outros, estabelece responsabilidade social.
É
preciso que a criança, desde cedo, conscientize-se da dignidade de ser
responsável.
Os
atores do sistema têm de se conscientizar das mudanças surgidas com a nova Doutrina
da Proteção Integral que inspirou o Estatuto e de que o modelo, além de
garantista, é responsabilizante.
A
criança e o adolescente não podem ser encarados como meros objetos de proteção,
“menores”, “incapazes”, mas como verdadeiros “sujeitos de direito”.
A grande violência que ainda se
comete contra eles é a interpretação do Estatuto a partir dos princípios da
chamada “Doutrina da Situação Irregular”, onde, pela “patologia social”, juízes
aplicavam “medidas terapêuticas” baseadas na “regra de ouro” do Direito do
Menor, o “melhor interesse” – mito conveniente que legitimou arbítrio e
freqüentes injustiças.