Eni
Maria Monteiro Barbosa[*]
Assistente Social, Mestre em Educação.
No início dos anos oitenta o país
atravessou um difícil ciclo econômico em que os indicadores sociais, que vinham
mostrando tendências constantes de melhora, passam a expressar estagnação ou
pioras visíveis. Estas constatações se fizeram simultaneamente a amplo
movimento social de luta pela redemocratização do país, culminando, os dois
processos, no comprometimento da Nação e do Estado com a busca de estratégias
de resgate da chamada dívida social brasileira.
As políticas sociais, e no seu interior
as de assistência social e da infância, são reconhecidas como tendo fundamental
importância no esforço que o país deveria empreender para diminuir as intensas
desigualdades sociais e minorar os efeitos da pobreza que atingia amplos
segmentos da população.
Para que essas políticas cumprissem
efetivamente seu papel, seria necessário remover alguns dos problemas que
vinham sendo comutemente diagnosticados.
Os estudos apontavam para uma atuação
pública ''residual em termos de recursos e fragmentada em termos de suas ações.
Inexistia uma política que claramente definisse seus objetivos, limites e
clientela, o que conduzia à existência de um conjunto de órgãos e programas
desarticulados, adotando metodologias inadequadas ao trato conseqüente e eficaz
dos problemas sociais aos quais se dirigiam, com algumas ações necessárias
inexistentes e redundantes em outras, constituindo-se o espaço privilegiado de
concentração dos vícios conhecidos que afetam a condução das políticas públicas
brasileiras: o clientelismo , o patrimonialismo e o assistencialismo" [l].
Do ponto de vista jurídico-institucional, a nova Constituição Brasileira, promulgada a 5 de outubro de 1988, constitui um "divisor de águas'' na área social. Forjada no âmbito dos dois marcos aqui referidos - a implantação de nova ordem democrática e o resgate da dívida social - confere à questão da participação e dos direitos sociais do cidadão (e conseqüentemente às políticas públicas da área social) a maior relevância. Entre elas, aquelas voltadas especificamente à infância e aos pobres, que aqui, nos interessam mais diretamente.
São vários os aspectos novos trazidos
pela Constituição na área de Assistência Social, começando pela sua colocação
como direitos social dos cidadãos.
A Constituição também avança na tentativa
de conceituar e delimitar o corpo da Assistência Social, definindo-a como a
política devida a quem dela necessitar, independente de contribuição à
seguridade social, e tendo como objetivos: a proteção à família, à maternidade,
à infância, à adolescência e à velhice; o amparo às crianças e adolescentes
carentes; a promoção da integração ao mercado de trabalho; a habilitação e a
reabilitação do deficiente e sua integração social; e a garantia de um salário
mínimo de beneficio mensal a idosos e deficientes sem condições de
auto-manutenção.
Do ponto de vista da organização da área,
a nova Carta traz, também, grandes avanços em relação à prática atual, que se
expressam nas diretrizes de descentralização e participação comunitária.
A concepção de "participação
comunitária na formulação e no controle das ações em todos os níveis",
conforme a Constituição, é sensível avanço sobre a prática então dominante,
onde funciona principalmente como mecanismo de transferência de
responsabilidade do Estado para as comunidades, muitas vezes significando a
simples exploração de mão-de-obra comunitária, e uma forma perversa de
cooptação e/ou desmobilização popular" [2].
Essas grandes definições constitucionais
relativas à Assistência Social deveriam ser regulamentadas em lei específica e
levadas à prática. Infelizmente, o país não dispõe ainda hoje de Lei Orgânica
da Assistência Social - LOAS. A proposta que tramitou foi de iniciativa do
Legislativo, sendo vetada integralmente pela Presidência da República em
setembro de 1990 [3].
A matéria volta à pauta do Legislativo em
abril de 1991, também por iniciativa parlamentar. O Ministério da Ação Social
tem um projeto elaborado, mas ainda não oficialmente encaminhando ao Congresso
pelo Executivo.
Duas ordens de motivos parecem explicar o
desinteresse do Executivo no encaminhamento do projeto. De um lado o quadro
institucional e as práticas dos Órgãos federais que terão que ser radicalmente
revistos. De outro, a regulamentação de benefícios continuados para idosos e
deficientes, que exigirão recursos adicionais de obtenção improvável no quadro
atual de contenção do gasto público.
A ausência da LOAS não tem facilitado
mudanças na área. Mesmo assim, instituições como CBIA e LBA vêm buscando
rever-se e adaptar-se ao novo arcabouço legal. A LBA, por exemplo, vem tentando
redirecionar-se numa linha de especialização de sua ação em torno dos segmentos
sociais reconhecidos como os mais vulneráveis - a criança, o idoso e a pessoa
portadora de deficiência - bem como empreender articulações com estados e
municípios visando constituir parcerias que facilitem a transferência da
execução direta de serviços ainda existentes na instituição e o processo
efetivo de descentralização.
A Assistência Social é uma política
pública que tem um recorte específico. Volta-se aos necessitados, àqueles que
não têm suas necessidades mínimas satisfeitos, ou dito de outra forma, às
populações marcadas pelo signo da exclusão, destituição, pobreza [4].
Diferente das demais políticas que se
organizam em torno de um tipo específico de proteção social conforme a natureza
da necessidade - educacional, sanitária, habitacional, alimentar e outras - a
política de assistência social organiza-se em torno de uma população carente
que tem uma ou várias necessidades básicas insatisfeitas.
Para cumprir seu papel, a área
assistencial faz de tudo um pouco. É generalista no tipo de proteção e
específica (ou seletiva) na clientela, enquanto as demais são específicas no
tipo de proteção e genéricas (ou universalizantes) quanto à população [5].
Na trajetória da Assistência Social no
Brasil, observa-se que ela foi se construindo a partir de problemas sociais que
alcançavam maior gravidade e visibilidade sem que o Estado dispusesse de
mecanismos próprios para seu enfrentamento. Com a crescente participação
pública no campo social, a assistência é abordada de modo conjuntural, gerando
formas de atenção à população excluída ainda não consideradas na agenda das
políticas públicas reconhecidas como direito.
Como só recentemente a questão da
infância em idade pré-escolar deixa de ser exclusiva de suas famílias,
tornando-se desafio da sociedade e do estado, é natural que a assistência
social, desde suas origens, tenha se preocupado com este segmento da população.
As motivações variaram no tempo: ora o abandono, ora a mortalidade infantil,
ora a necessidade de cuidados e proteção pela incorporação das mães no mercado
de trabalho, ora a desnutrição infantil etc.
A história da Fundação Legião Brasileira
de Assistência ilustra com perfeição estas observações. Desde sua origem, a
assistência à infância foi prioridade na Instituição. No início
desenvolveram-se ações menos estruturadas de atenção ao grupo materno-infantil,
com ênfase na educação social; seguiu-se um enfoque predominantemente
médico-social - foram construídos postos de puericultura, maternidades e
hospitais infantis; posteriormente desenvolveram-se programas de distribuição
de leite em pó e complementos alimentares e constituiu-se uma rede de creches, fomentando
esses serviços em todo o país.
À medida em que as necessidades atendidas
pela assistência social vão se definindo como direitos universais, os serviços
passam a ser responsabilidade das áreas específicas. A rede de hospitais,
maternidades e postos de puericultura da LBA foi incorporada ao SUS, os
programas de alimentação passaram à responsabilidade do INAN e até a merenda
escolar, que se iniciou na LBA, está, há décadas, integrada à rede de ensino.
Reconhecida hoje em sua função basicamente educacional, a creche tende a ser
absorvida entre as tarefas da área de educação, como aliás já determina a
Constituição de 1988.
Precisar o papel da Assistência Social no
atendimento aos direitos infantis não é tarefa fácil hoje, até mesmo pela
referida transição por que passa a área.
Alguns referencias devem ser observados.
Em primeiro lugar, os compromissos da Nação e do Estado que estão inscritos na
Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Entre eles: a criança é
prioridade absoluta; a criança é sujeito de direitos; entre os direitos
infantis consideram-se o direito à vida, à saúde, à educação, à alimentação, ao
lazer, à cultura, a uma família, ao seu desenvolvimento integral, à proteção
contra toda sorte de violência, exploração e maus tratos...; a criança tem
direito à assistência desde a fase de sua concepção ; a criança tem direito a
creche e pré-escola; os direitos devem ser observados pela família, pela
sociedade e pelo estado.
Em segundo lugar, aqueles que descrevam a
situação social em que vivem as crianças de 0 a 6 anos. Em rápidas pinceladas,
pode-se dizer que hoje 50% delas vivem em família na faixa da pobreza; 30% têm
alguma forma de desnutrição; 80% não têm acesso à creche e pré-escola; 60 em
mil crianças nascidas vivas morrem antes de completar o primeiro aniversário;
58 % vivem em domicílios sem condições adequadas de saneamento.
Estes breves e resumidos indicadores
globais revelam que essas crianças, que representam, portanto, mais de metade
da nossa população infantil, não têm suas necessidades básicas e seus direitos
sociais atendidos, constituindo-se, por definição constitucional, demandatários
potenciais (e possuidores de direitos) da Assistência Social.
Costumam-se identificar na prática da
assistência social capitalista, onde convivem os princípios contraditórios da
rentabilidade econômica (lógica da acumulação) e das necessidades sociais
(justiça social), duas modalidades básicas de atuação referidas como strito senso e lato senso [6].
A assistência social no sentido estrito é
aquela submetida à lógica da rentabilidade econômica e por isso mesmo esvaziada
em seu conteúdo de justiça social. É um fim em si mesma - o que muitos chamam
de assistencialismo. Funcional ao sistema capitalista, sua principal tarefa é
reparar danos causados pela injustiça social sem contudo impor limites a essa
injustiça. Age por fora das políticas sociais básicas e se executa geralmente
em órgãos assistenciais em paralelo às políticas básicas específicas,
representando uma oferta geralmente pobre para a população pobre, buscando mais
a acomodação de tensões e o controle social do que a efetiva integração social
do cidadão.
Já a assistência social no sentido lato
tem como princípio a supremacia do critério da necessidade social sobre o da
rentabilidade econômica. Instala-se no interior das políticas públicas
''abalando seu elitismo com a sua proposta de universalização''; é um meio e
não um fim em si própria, pois sua função é estender direitos sociais; é
redistributiva porque se ''pauta num jogo de soma zero na alocação do produto
social". Perpassa as políticas públicas buscando estender os mesmos
serviços e bens à população marginalizada, sem constituir, portanto, um sistema
diferenciado para os pobres. É muitas vezes identificada com a dita promoção
social.
A construção de uma assistência social
que seja efetivamente um direito de cidadania exige que se explore, ao máximo,
a assistência latu senso. Inclusive
porque dispõe-se hoje, pelo menos no nível da proposição, de serviços e/ou
programas que cobrem a quase totalidade das necessidades infantis, no âmbito
setorial. Urgente hoje, é a definição de ações que reduzam o grau acentuado de
seletividade e exclusão social das políticas públicas. E da mesma forma, é
importante a criação de mecanismos de integração das políticas setoriais.
Neste sentido, a função básica da
assistência social parece ser principalmente a mobilização de recursos e a articulação
de ações voltadas a remover as dificuldades de absorção, pelas políticas
básicas, da população pobre. A função executora de serviços específicos seria
menos estimulada.
Para atuar nessa direção, o profissional
da área assistencial deve ter domínio amplo das políticas sociais e programas
em desenvolvimento, dos recursos existentes que podem ser articulados para
solução dos problemas em tela, das inadequações e pontos de estrangulamento
presentes nos programas e ações, que impedem a absorção dos grupos sociais
pobres, bem como das dificuldades concretas da população em se incorporar às
políticas básicas. Deve, além dessa formação de natureza mais generalista, ser
dotado de capacidade para a articulação e negociações políticas. Dadas as
inúmeras possibilidades de ação setorial, os profissionais específicos de
operação deverão ser identificados e qualificados de acordo com o nível
tecnológico do próprio setor.
A ênfase no exercício da assistência
social lato senso, por permitir uma ação mais estrutural e grau maior de
resolutividade dos problemas sociais, não significa o abandono das formas de
atuação de sentido estrito e corte emergencial e compensatório. O quadro social
do país exige o desenvolvimento de ações desta natureza.
Na tradição brasileira, alguns tipos de
serviços têm sido deixados à responsabilidade do setor assistencial. Entre eles
aqueles voltados à proteção de grupos especialmente vulneráveis do ponto de
vista biológico e social: crianças abandonadas, portadoras de deficiências,
vitimizadas. Os desnutridos, que até recentemente eram atendidos pelos órgãos
assistenciais em paralelo ao SUS, têm sido deixados à responsabilidade
principal do setor de saúde, bem como os cuidados primários de saúde que envolvem
ainda instituições não-governamentais de corte assistencial. Os programas de
adoção, colocação em lar substituto e outras formas de resolução dos diferentes
problemas que afetam as crianças, constituem ações também consideradas típicas
da área. Para a LBA destaca-se o programa de creches.
Dado que a creche é um espaço de atenção
integral à criança, os recursos humanos envolvidos devem ter formação
específica para as várias atividades desenvolvidas: alimentação, educação,
recreação e cultura, cuidados básicos de higiene e saúde, detecção precoce de
deficiências, educação social para a família e a comunidade, animação cultural,
além das atividades de gestão e apoio.
Já nos referimos ao fato de que os
registros da política social, no Brasil, mostram como muitas formas de proteção
à população pobre foram geradas no campo assistencial e depois incorporadas nas
agendas das políticas públicas básicas. Comprometida, como foi visto, mais com
uma clientela especial do que como um tipo de serviço, essa área não pode
perder esse papel gerador de políticas. Os padrões das necessidades sociais são
historicamente definidos variando em cada tempo e lugar. Novas necessidades,
novas carências estão sempre surgindo e novas formas de solucioná-las devem ser
permanentemente buscadas.
Os serviços convencionais já projetados
como universalizantes têm, às vezes, custos elevados e sua implantação
geralmente é lenta. Há que se buscar alternativas simplificadas que no curto
prazo atinjam todas as crianças necessitadas. Estas alternativas atenderiam a
algumas necessidades e direitos específicos. A simplicidade significaria o
alcance de poucos objetivos, não devendo ser confundida com improvisação e
falta de qualidade. Atividades assistenciais dirigidas à socialização,
recreação, lazer, cultura, educação de pais para a atenção às crianças, entre
outras, são da maior importância para o pleno desenvolvimento infantil.
Um destaque deve ser dado à necessidade
de trabalhos sistemáticos com a família pobre. Na prática assistencial - e a
creche pode ser um exemplo - visa-se muitas vezes apenas a atenção à criança,
esquecendo-se que ela não é destacável de sua família e que é no espaço
familiar (e mesmo comunitário) que as condições efetivas para seu desenvolvimento
integral se completarão.
Um último aspecto a que gostaríamos de
nos referir diz respeito às determinações da Constituição e do Estatuto da
Criança e do Adolescente relativas à descentralização para os municípios das
ações de assistência social e de atenção à infância.
A exemplo do que vem sendo feito no
Sistema Único de Saúde - SUS - há todo um esforço a ser feito no sentido de
dotar estados e municípios de capacitação para o planejamento, a organização e
a execução de serviços assistenciais voltados à criança de 0 a 6 anos. Nesse
processo, os Conselhos Estaduais e Municipais de Defesa dos Direitos das
Crianças poderão ter um papel fundamental, mas para isso deverão estar
plenamente capacitados. As equipes técnicas dos Órgãos federais, por sua vez,
deverão estar capacitados à nova função que lhes cabe: coordenação,
normatização, assessoramento técnico e financeiro às equipes locais que
assumirão a tarefa executiva.
Em conclusão, caberia dizer que a questão dos recursos humanos na área da atenção à infância é fundamental, em especial no espaço de transitoriedade atual da área de Assistência Social. Mas ela envolve mais do que a capacitação dos operadores de serviços, pois afeta também a própria condição do sistema assistencial de adequar-se ao status novo de política pública e de direito de cidadania.
* Assistente Social, Mestre em Educação, Chefe da Assessoria de Planejamento da LBA - Diretoria Nacional. End.: SQS 110 - Bloco E - apto. 602 - Brasília/DF - Brasil – CEP 70373 -050.
[1] Utilizam-se, neste tópico, algumas
idéias desenvolvidas pela autora em trabalho anterior. In: BARBOSA, E. M. M. O
processo de Regulamentação da Assistência Social : Avanços e Recuos. Brasília,
IPEA , 1991 (Texto para discussão, n° 222).
[2] Idem, ibidem, p. 6.
[3] BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA.
Mensagem Presidencial n° 672 de 17 de setembro de 1990, ao Presidente do
Senado.
[4] FALCÃO, M. C. B. C. - A política
de Assistência Social e o papel da FLBA. In: Seminário "A Política de
Assistência Social no Brasil'', Brasília, LBA, 23 - 25/10/91.
[5] PEREIRA, P. A. P. A Assistência
Social como Garantia. de Direitos; crítica aos equívocos conceituais e
políticos. Brasília, UNB/NEP-POS, 1989 (mimeo).
[6] Torna-se emprestado a PEREIRA , P. A.
P. op. cit. a maior pane das idéias usadas para caracterizar estas modalidades
de atuação da assistência social.