VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES E POLÍTICAS DE ATENDIMENTO: DO SILÊNCIO AO COMPROMISSO

 

 

Viviane Nogueira de Azevedo Guerra[1]

Mestre em Serviço Social.

 

Mário Santoro Júnior[2]

Médico do Programa de Saúde da Criança.

 

Maria Amélia Azevedo[3]

Pesquisadora sobre Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes.

 

 

A violência doméstica contra crianças e adolescentes: questões conceituais

 

A violência doméstica é um dos vários tipos de violência que a Humanidade tem praticado contra crianças e adolescentes.

 

Para bem compreender o fenômeno, importa responder a três questões conceituais básicas :

1) o que se entende por violência?

2) qual a natureza da violência doméstica?

3) quais os tipos principais de violência doméstica?

 

Comecemos pela primeira questão .

Segundo Chauí (1):

Entendemos por violência uma realização determinada das relações de força,  tanto em termos de classes sociais, quanto em termos interpessoais. Em lugar de tomarmos a violência como violação e transgressão das normas, regras e leis, preferimos considerá-la sob dois outros ângulos. Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão, isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, como uma ação que trata uru ser humano não como sujeito, mas como coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas há violência.

Se analisamos detidamente essa definição, podemos extrair dela os elementos fundamentais de uma concepção sociológica de violência, tal como o fez Adorno (2):

Primeiro, nunca é demais repeti-lo, a violência é uma forma de relação social; está inexoravelmente atada ao modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições sociais de existência. Sob esta ótica, a violência expressa padrões de sociabilidade, modos de vida, modelos atualizados de comportamento vigentes em uma sociedade em momento determinado de seu processo histórico. A compreensão de sua fenomenologia não pode prescindir, por conseguinte, da referência às estruturas sociais; igualmente não pode prescindir da referência aos sujeitos que a fomentam enquanto experiência social.

 

Segundo, ao mesmo tempo em que ela expressa relações entre classes sociais, expressa também relações interpessoais. A violência está presente no modo de realização da existência econômica que comporta a exploração de uns sobre outros; não se encontra ausente da imposição de limites e restrições à participação política democrática; não se exime de se manifestar no terreno da cultura, campo no qual as diferenças de identidade entre grupos sociais heterogêneos tendem a ser subjugadas por concepções unívocas da vida, da sociedade, do mundo. Nesta perspectiva a violência manifesta-se como dominação, como instrumento da sujeição de grupos sociais determinados, seja a classe, o grupo étnico e o racial, ou mesmo aqueles agrupamentos que se constituem às voltas de situações peculiares, como a sexualidade ou a religiosidade. Porém, ao mesmo tempo, está presente nas relações intersubjetivas, aquelas que se verificam entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, entre profissionais de categorias distintas. Seu resultado mais visível é a conversão de sujeitos em objeto, sua coisificação.

 

Terceiro, a violência é simultaneamente a negação de valores considerados universais: a liberdade, a igualdade, a vida. Se entendermos como o fez a filosofia política clássica, que a liberdade é fundamentalmente capacidade, vontade, determinação e direito "natural" do homem, a violência enquanto manifestação de sujeição e de coisificação só pode atentar contra a possibilidade de construção de uma sociedade de homens livres. Ela conspira ainda contra a viabilidade de construção de uma sociedade democrática, na medida em que se confronta com o princípio de igualdade, entendido como igual direito dos diversos grupos sociais serem constituintes da história de sua sociedade, independentemente de suas diferenças de raça, de sexo, de classe ou outra qualquer. Por fim, um outro pressuposto, embutido nessa conceituação sociológica da violência, diz respeito à percepção do significado da vida. A violência não é necessariamente condenação à morte, ou, ao menos, esta não preenche seu exclusivo significado. Ela tem por referência a vida, porém a vida reduzida, esquadrinhada, alienada; não a vida em toda a sua plenitude, em sua manifestação prenhe de liberdade. A violência é urna permanente ameaça à vida pela constante alusão à morte, ao fim, à supressão, à anulação.

 

Essas considerações permitem-nos enfrentar a segunda questão colocada.

 

A violência doméstica é diferente da violência estrutural, da violência entre classes sociais, inerente ao modo de produção das sociedades desiguais.

 

A violência doméstica é uma violência intraclasses sociais, que permeia todas as classes sociais enquanto violência de natureza interpessoal.

 

Enquanto violência intersubjetiva, a violência doméstica consiste também:

a) numa transgressão do poder disciplinador do adulto, convertendo a diferença de idade adulto – criança/adolescente, numa desigualdade de poder intergeracional;

b) numa negação do valor liberdade: ela exige que a criança ou adolescente sejam cúmplices do adulto num pacto de silêncio;

c) num processo de vitimização enquanto forma de aprisionar a vontade e o desejo da criança ou do adolescente, de submetê-la ao poder do adulto a fim de coagi-la a satisfazer os interesses, as expectativas e as paixões deste.

 

Por isso mesmo, o abuso-vitimização consiste pois num processo de completa objetalização da criança ou do adolescente, isto é, de sua redução à condição de objeto de MAUS TRATOS.

 

Em síntese, a violência doméstica contra crianças e adolescentes:

- é uma violência interpessoal;

- é um abuso do poder disciplinador e coercitivo dos pais ou responsáveis;

- é um processo de vitimização que às vezes se prolonga por vários meses e até anos;

- é um processo de imposição de maus tratos à vitima, de sua completa objetalização e sujeição;

- é uma forma de violação dos direitos essenciais da criança e do adolescente enquanto pessoas e, portanto, uma negação de valores humanos fundamentais como a vida, a liberdade, a segurança;

- tem na família sua ecologia privilegiada. Como esta pertence à esfera do privado, a violência doméstica acaba se revestindo da tradicional característica de sigilo (3).

 

Finalmente, a terceira questão levantada diz respeito aos tipos de violência doméstica reconhecidos e que são três: violências física, sexual e psicológica. No âmbito deste trabalho trataremos apenas das violências física e sexual.

a)Violência física

Corresponde ao emprego de força física no processo disciplinar de um filho por parte de seus pais. A literatura é muito controvertida em termos de quais atos podem ser considerados violentos: desde a simples palmada no bumbum até agressões com armas brancas e de fogo, com instrumentos (pau, barra de ferro, taco de bilhar, etc.) e imposição de queimaduras, socos, pontapés, etc. Cada pesquisador tem incluído em seu estudo os métodos que considera violentos no processo educacional pais-filhos, embora haja ponderações no sentido de que a violência deve se relacionar a qualquer ato disciplinar que atinja o corpo de uma criança ou de um adolescente[4].

 

b)Violência sexual

O conceito está longe de ser preciso. No entanto, é possível considerarmos como tal "todo jogo ou ato sexual, relação heterossexual ou homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança menor de 18 anos, tendo por finalidade estimular sexualmente a criança e utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa" (4). Genérica como está, essa conceituação tem duas vantagens básicas. A primeira delas é permitir abranger dois subtipos de abuso: o incesto e a exploração sexual. O incesto se define para nós como "toda atividade de caráter sexual, implicando uma criança de 0 a 18 anos e um adulto que tenha para com ela, seja uma relação de consangüinidade, seja de afinidade ou de mera responsabilidade" (5). Nesse sentido, a conceituação é bastante ampla para incluir como agressor todo aquele que tenha um vínculo de responsabilidade para com a criança (pai adotivo, tutor, padrasto, etc.) e cujas relações sexuais seriam interditas por lei ou costume. Também supera a definição restrita de incesto segundo a qual este seria um fenômeno envolvendo apenas indivíduos sexualmente maduros. A exploração sexual, por sua vez, implica a participação de criança menor de 18 anos em atividades de prostituição e pornografia infantis, isto é,no comércio do sexo. .

A segunda vantagem da definição proposta para abuso-vitimização sexual está em que ela permite incluir, como tal, todo o espectro de atos sexuais, sejam eles homossexuais ou heterossexuais: .

a) com contato físico (abrangendo coito ou carícias apenas);

b) sem contato físico (incluindo exibicionismo, voyeurismo, etc.);

c) com força física (incluindo agressões e até assassinato);

d) sem emprego de força físicas[5].

A “lei do silêncio” na área da violência doméstica

 

Uma das questões que vem nos preocupando profundamente é a constatação da existência de uma "lei do silêncio" em tomo da questão da violência doméstica, geralmente por parte dos profissionais que, em sua prática, ao se defrontarem com a questão, abstêm-se de discuti-la em profundidade e até mesmo de recorrer às chamadas instâncias de proteção à infância para notificação de casos, conforme o disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente. A "lei do silêncio'' vigora em todos os países e há numerosas hipóteses para justificar sua existência. Abordaremos aqui algumas destas vertentes explicativas, salientando que elas não representam a resposta definitiva para a questão.

 

O resgate da autoridade dos pais: infância pobre versus infância vitimizada?

 

Aqui se faz necessária uma volta no tempo, em nosso país, ou seja, ao final do século XIX e início do século XX. Nesse período assistimos ao crescimento acelerado de duas metrópoles, à Abolição da Escravatura, à conseqüente criação de uma força urbana de trabalho livre, também constituída por contingentes de imigrantes estrangeiros. Como nos diz Valladares:

 

Era uma época em que Rio de Janeiro e São Paulo já funcionavam como pólos de atração para o resto do país e conviviam com diversos problemas advindos de um processo de urbanização acelerado: insalubridade, altas taxas de mortalidade infantil, epidemias diversas e dizimadoras, pauperização de amplos segmentos da população que não conseguiam se inserir no mercado formal de trabalho. Em paralelo corriam a violência, a criminalidade, a mendicância e a vadiagem (6).

 

Evidentemente que, nesse período, a situação econômica do pais atravessava altos e baixos, com a propagação de uma série de medidas, tomadas na maioria das vezes de acordo com interesses externos, refletindo-se profundamente sobre as classes populares. Como nos diz Carone:

 

De fevereiro a junho de 1899 decretam-se leis de incidência de imposto de consumo para bebidas, fumo, perfumarias, velas, calçados, especialidades farmacêuticas, perfume e vinagre, conservas de carne e cartas de jogar. Como se vê são os produtos populares os mais atingidos, o que vai provocar mal-estar e grandes dificuldades às camadas populares (7).

 

O custo de vida é exorbitante, os impostos são altos, a vida, difícil. Entretanto, o Estado se consolida econômica e políticamente, volta a confiança externa no desenvolvimento do país, havendo novamente o refluxo de capitais estrangeiros ao país.

 

Dentro desse marco econômico e político destaca-se uma atitude de indignação geral com a infância pobre que perambula pelas ruas e revela o profundo quadro de espoliação a que são submetidas as classes populares.

 

Entretanto, os discursos intelectuais da época sobre esta infância abandonada não se remetiam a uma discussão da problemática, enquanto ligada às condições de profunda espoliação das classes populares, mas interligavam a questão a problemas de natureza familiar - decomposição da família e dissolução do poder paterno:

 

Evaristo de Moraes, em 1900, falando a propósito dos menores entre 10 e 20 anos que povoavam as ruas das cidades observava: "entre esses precoces vagabundos os ha que teem pai e mãi; os ha que teem apenas um dos progenitores; os havivendo apparentemente sob direcção de qualquer membro da família A realidade, porém, é das mais dolorosas: são moralmente abandonados, são, na maioria dos casos aquilo que d'elles disse Julio Simon: - orphãos com pais vivos! Em verdade, a situação delles é peior que a dos materialmente abandonados e a dos orphãos. Dos materialmente abandonados os pais quizeram separar-se; no emtanto, dos moralmente abandonados apenas deixam de cuidar ou si d'elles cuidam é intermittentemente, muitas vezes com o intuito de abusar da sua inexperiência e engaja-los no exercito do mal. Si é certo que os materialmente abandonados são os mais infelizes do que os expostos, não menos induhitável é que os moralmente abandonados ficam mais subjeitos ao mal do que uns e outros...!” Evaristo de Moraes se encaminha por uma leitura que supõe uma concepção do ser humano como inclinado às paixões, ao vício, à desordem, à vingança, ao ciúme, à mentira, à cólera, e que só é freado pela sociedade utilizando a disciplina, a ordem, que começa na família, a partir do exercício da autoridade paterna.

A falta de autoridade deixava as crianças entregues à sua própria  vontade, totalmente dispostas para serem levadas fora da lei, do convívio social, além de ficarem habilitadas para o crime (8) (o grifo é nosso).

 

Se, por um lado, "a importância das condições de vida da modernidade no abandono das crianças não serão pois negadas, pelo contrário, serão aceitas e encaradas como inevitáveis", por outro, "as respostas sociais por essa situação ficarão esvaziadas ante o peso das responsabilidades dos indivíduos. São os pais de família que cedendo aos vícios (álcool, jogos, vadiagem) não exercem sua autoridade e acabam corrompendo os filhos, são as mulheres, que aceitando as propostas indecorosas dos homens e trazendo ao mundo filhos sem pai, estão minando as bases que garantem a ordem moral da sociedade'' (9).

 

Além desse discurso moralizador em torno da responsabilidade dos pais face à situação dos filhos, havia toda uma preocupação subjacente com a permanência da criança na rua e o aprendizado da criminalidade que aí se dava, demonstrando-se com dados estatísticos o aumento crescente da criminalidade infantil. Se, por um lado, a criança abandonada representava um perigo para a sociedade, por outro, era uma vítima: "são victimas a falta de educação intellectual e affetiva; da miséria dos pais; da ausencia de carinhos maternaes formando-lhes os corações para o bem; das exigencias do instincto de conservação individual, que muitas vezes assimilam o homem aos irracionaes na ferocidade e no egoísmo" (10).

 

A preocupação crescente com a criança reveste-se de grande importância, pois passa a ser vista em termos do futuro, uma garantia de que será o capital humano do qual o capital industrial necessitará para se reproduzir.

 

As medidas a serem adotadas para que este capital humano não se desperdiçasse passavam pela ênfase na restauração da autoridade paterna, bem como pela formação de instituições novas de atendimento à criança, cujos modelos de ação baseavam-se naqueles formulados na Europa e nos EUA[6].  Passavam, também, pela criação de uma legislação que removesse empecilhos, como a inquestionabilidade do pátrio poder, o aumento de idade até os 18 anos para a responsabilidade criminal, o que afastaria as crianças das prisões dos adultos. Portanto, "a preocupação com a preservação da ordem social aparentemente ameaçada e o interesse em assegurar a modernização capitalista brasileira determinaram os critérios de eleição do esquema de proteção da criança no período" (11).

 

Nas décadas subseqüentes parece que as soluções apontadas para a infância abandonada não se modificaram tanto. Em 1940 foi criado o SAM - Serviço de Assistência ao Menor -, bem como a iniciativa privada também contribuiu para a formação de serviços destinados ao atendimento da infância e juventude das camadas populares. Como nos diz Valladares:

 

Por trás da imagem do SAM estão presentes representações amplamente aceitas e discutidas: a imagem da criança pobre enquanto abandonada física e moralmente; uma concepção de infância enquanto uma idade que exige cuidados e proteção específicos; as grandes cidades como locus da vadiagem, criminalidade e mendicância; os espaços públicos (ruas, praças, etc.) como espaços de socialização da marginalidade. Por fim, a idéia de que cabe a instituições especializadas a "recuperação" e a formação de uma infância "moralizada". Recuperando a "infância desvalida", o Estado contribuiria para a formação de indivíduos úteis à sociedade, futuros bons trabalhadores. Não enfatizado no discurso oficial, mas nem por isto ausente, estaria ainda o temor da rua como espaço possível de contestação e revolta. Tal possibilidade fora confirmada pelas revoltas populares do Rio de Janeiro na Primeira República e sugerida de forma romanceada por Jorge Amado (em Capitães de Areia). Com efeito, o medo do descontentamento das massas está presente no proclamar a " função" social ampla de assistência do Estado à infância e juventude (que) tem que encarar todos os problemas que, de perto, influem na formação das gerações futuras para prever os desajustamentos das massas populares cujos maiores coeficientes se encontram nas camadas proletárias (12).

 

O modelo implantado pelo SAM mostra-se esgotado já no final da década de 50. Em meados dos anos 60, o Estado intervém na questão da infância em novos moldes. Cria-se, então, a FUNABEM, "baseada numa nova concepção de reeducar a criança, não pautada exclusivamente na internação (como era o modelo do SAM), mas no apoio à família e à comunidade" (o grifo é nosso).

 

Muitos autores destacam a íntima associação entre a criação da FUNABEM e a Revolução de 1964 numa "leitura da questão do menor como de segurança nacional (...) cabendo à FIJNABEM exercer vigilância sobre os menores, principalmente a partir de uma condição de carenciados, isto é, próximos a uma situação de marginalização social''(13).

 

Os anos transcorrem com os problemas em tomo da infância se avolumando assustadoramente. Surgem movimentos de defesa dos direitos da infância e da juventude, especialmente na década de 70, e o novo Código de Menores (1979), preocupado fundamentalmente com a questão da infração penal.

 

Embora hoje, no início da década de 90, tenhamos uma nova legislação pertinente à infância e à juventude (Estatuto da Criança e do Adolescente), que inova as formas de se tratar as gerações que despontam, calcado também em tendências internacionais (tais quais as formuladas na convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, sentimos que ainda se deposita na família parte da responsabilidade de evitar que a criança ou o adolescente escolham caminhos inadequados. É nesse sentido que, em seu preâmbulo, a Convenção diz o seguinte: “Convencidos de que a família como grupo fundamental da sociedade e ambiente natural para o crescimento e o bem-estar de todos os membros e em particular das crianças deve receber a proteção e assistência necessárias a fim de poder assumir plenamente sua responsabilidade dentro da comunidade" (14) (o grifo é nosso). A Convenção reconhece, entretanto, que a criança é vítima de violência doméstica e que deve ser protegida contra isso pelo Estado. O Estatuto referenda isso em diversos artigos (que vão desde a notificação obrigatória de casos até as medidas de proteção da vítima e as medidas de intervenção no tocante aos agressores). Uma leitura mais atenta do próprio ECA mostra, nas entrelinhas de alguns artigos, que o legislador sucumbiu à tentação da "lei do silêncio", considerando por vezes a violência doméstica contra crianças e adolescentes um "desafio recusado"[7].

 

Bem, ao finalizarmos esta extensa discussão queremos dizer que:

a) o resgate dos problemas da infância ainda passa pela necessidade de se fortalecer a família como locus privilegiado de ação e, portanto, da autoridade dos pais quanto às crianças e aos adolescentes;

b) ao se depositar na família esta responsabilidade, está se afastando a possibilidade de se considerar as condições econômicas e sociais como uma das grandes responsáveis pela situação da infância em muitos países.

 

Por outro lado, é preciso lembrar que a violência doméstica esbarra, em nível familiar, com uma questão central, ou seja, com a educação adultocêntrica que leva à completa objetalização da figura da criança. Por trás da violência esconde-se um modelo de educação tradicional que tem por fim quebrar a vontade da criança, sufocar o que nela existe de vivo para transformá-la num ser dócil, obediente. Este modelo adultocêntrico, também chamado de pedagogia negra[8], transmite à criança idéias como:

a) os pais merecem respeito, a priori por serem pais;

b) as crianças, a priori,  não merecem respeito algum;

c) a obediência fortalece;

d) os pais sempre tem razão, etc.

 

Será, portanto, que o fato de não querermos nos envolver com a problemática da violência doméstica estaria radicado:

1) no conceito de que se a família deveria ser a responsável pelo resgate da situação da criança, referendando-se a autoridade dos pais, fortalecendo-a, ao discutirmos a violência doméstica não estaríamos indo de encontro a esse mesmo modelo de autoridade e percebendo que a família muitas vezes é perigosa para uma criança?

2) no conceito de que se a criança deve estar submetida ao poder dos pais para se tomar um bom cidadão, pela óptica da violência doméstica, deve-se questionar esse poder e a sua forma de exercício?

3) e finalmente "a revelação de uma norma psicológica com validade universal: a do exercício do poder de um adulto em relação a uma criança" pode resultar contrária aos interesses de todos, uma vez que seria o reconhecimento para cada um de nós de que nossos próprios pais não agiram muitas vezes em nome do nosso bem, liberando algo recôndito e obscuro em nossos espíritos.

 

Consideramos que a questão da autoridade dos pais tem que ser posta em revisão, lutando-se fundamentalmente por um processo educacional inovador na família e que desenvolva:

- um respeito pela criança;

- um respeito por seus direitos;

- uma tolerância com seus sentimentos;

- uma possibilidade de se aprender com ela e de se empatizar.

É preciso o estabelecimento de um processo dialético adulto - criança.

 

A cumplicidade consciente ou inconsciente - instrumentalizada ou não - dos profissionais

 

Através do artigo 245 do ECA, a não notificação à autoridade competente de casos de suspeita ou de confirmação de maus tratos com criança ou adolescente, por parte de "médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche", passa a ser agora considerada infração administrativa passível de multa.

 

Toda a literatura especializada na área da violência doméstica contra crianças e adolescentes é unânime no reconhecimento da necessidade de notificação do fenômeno por profissionais de várias áreas, mas não deixa também de apontar a enorme resistência dos próprios profissionais para tomar realidade a notificação.

 

Dentre esses profissionais, a responsabilidade do médico é fundamental porque tanto na hipótese de violência física quanto na de sexual muitos casos chegam primeiro ao seu consultório. Daí a importância de se pesquisar, numa realidade como a nossa, quais os fatores preponderantes de resistência à notificação[9].

 

A questão da notificação na área médica

 

A experiência comum quando se ouve os relatos de crianças vitimizadas (15) é que o fenômeno é crônico, recidivante e que longos anos se passaram antes que a revelação fosse feita. Outras tantas vezes, o fenômeno não é revelado, nenhuma intervenção é feita e as conseqüências, quer orgânicas, quer psicológicas, advêm. Quantos delinqüentes foram crianças vitimizadas? Quantos adolescentes que fugiram de casa ou se suicidaram foram brutalmente espancados na infância ou abusados sexualmente ou ainda "simplesmente" negligenciados ou rejeitados por seus pais? Quantos adultos são incapazes de manter um equilíbrio psicológico em função dos hematomas provocados por seus pais, hematomas estes que tomaram o lugar do carinho, do afeto? Afora todas as ações que poderiam ter sido tomadas para, preventivamente, evitar estas trágicas conseqüências, uma indubitavelmente teria sido importante: a notificação para quem de direito, a fim de que o ciclo de violência fosse interrompido. As histórias dos pacientes–vítimas nos mostram que, em inúmeras oportunidades, eles interagiram com profissionais das instituições sociais governamentais e não-governamentais. Estas interações teriam sido momentos oportunos para resgatar a vítima do complô do silêncio que, como uma noite negra, encobre o mais trágico dos segredos humanos: a violência que dentro do lar atinge crianças e adolescentes.

 

As crianças vítimas de abuso físico ou sexual freqüentam escalas, onde, muitas vezes, foram levando marcas, na pele, de beliscões, hematomas, marcas de queimaduras ou de agressões diversas. Seu bloqueio neuropsicomotor as impedia de brincar alegremente com seus pares ou ainda as forçava a um isolamento triste e nostálgico Outras vezes, por um braço fraturado, um olho roxo ou um sangramento nasal, eram levadas a um serviço de saúde, não sem que horas ou dias tivessem transcorrido desde o momento da imposição dos ferimentos. Quando eram recuperadas de suas fugas do lar, muitas vezes as delegacias simplesmente as devolviam a seus pais. Parece impossível, mas, na grande maioria das vezes, em nenhum desses momentos fez-se a suspeita de maus tratos e a criança (ou o adolescente) voltava para seu lar e tudo recomeçava. Kempe e Schmitt (16) nos dizem que "se uma criança que foi agredida fisicamente retorna aos pais sem intervenção, 5% delas são assassinadas e 35% seriamente feridas de novo". Com uma intervenção abrangente, 80% dos casos poderão ser recuperados. Portanto, trata-se de uma patologia conhecida, que apresenta um conjunto de sinais e de sintomas que, quando devidamente interpretados, pode levar a um diagnóstico correto e a ações que permitam um bom êxito terapêutico em diversos casos. O que se observa é que o diagnóstico, se for feito, em geral não propicia uma ação imediata: a notificação que permitiria a tomada de providências subseqüentes.

 

Por que não se notifica? Embora todas as pessoas tenham por dever notificar as autoridades quando ocorre um caso de vitimização, os profissionais que interagem com a criança são os mais responsáveis por essa medida, a fim de que se possa desencadear os mecanismos de proteção e de tratamento. Entre os profissionais médicos, várias são as causas que fazem com que não ocorra a notificação:

1) falta de conhecimentos para suspeitar do problema ou fazer o diagnóstico ;

2) descrença na retaguarda quando é feita a notificação ;

3) interesses pessoais ;

4) desconhecimento das obrigações legais ;

5 ) medo de represálias.

 

Por meio de uma revisão da literatura, o Quadro 1 resume as principais causas da não notificação:

Woolf e cols. (23), em interessante artigo, procuraram analisar o treinamento médico na área da vitimização. Para tanto, elaboraram questionários que foram respondidos por residentes de três áreas: pediatria, cirurgia, médico de família, envolvendo questões referentes a diagnóstico, diagnóstico diferencial, epidemiologia e leis. Observaram os seguintes dados:

1) os residentes responderam corretamente em 66% das vezes a um pool de questões e alcançaram 83% de acertos em questões selecionadas;

 

2) os residentes em pediatria e médico de família  tiveram melhor desempenho nas questões relativas à epidemiologia;

Quadro 1

 

 

3) estes mesmos residentes tinham tendência não comprovada, em nível de significância estatística, de responder com mais propriedade às questões de diagnóstico, diagnóstico diferencial e leis;

 

4) as mulheres residentes obtiveram melhor desempenho do que os homens residentes;

 

5) o número de horas de instrução na área da violência doméstica foi de 1 a 4 horas para 65% dos residentes, sendo que com mais de 15 horas houve apenas 16%, dos residentes em pediatria e 8% dos médicos de família. Portanto, o número de horas de treinamento é absolutamente reduzido para a importância da questão;

 

6) o estudo não mostrou acúmulo de conhecimentos durante a residência, sendo que os conhecimentos dos residentes de 1º ano eram similares aos de 3º ano;

 

7) quando se analisou a atitude dos residentes face a 23 métodos disciplinares, encontraram-se muitas diferenças entre eles: 43% dos residentes em pediatria notificariam o fato de uma criança de cinco anos ter sido chacoalhada pelos braços até provocar dor, o que contrastava com os cirurgiões que só tomariam tal providência em um terço do seu grupo. Dos pediatras 99% entendiam que se uma criança era agredida com um objeto, a ponto de deixar marca, o fato deveria ser notificado, sendo que 78% dos cirurgiões pensavam da mesma forma.

 

O trabalho citado acima é importante porque mostra que a notificação depende:

a) de conhecimento e de treinamento prévios;

b) da atitude que o médico tem em relação aos métodos disciplinares, advinda dos valores que ele introjetou ao longo da sua vida em relação ao que considera certo ou errado em termos de disciplina.

 

Num outro estudo, Ladson (24), analisando a vitimização sexual, mostrou o desconhecimento dos médicos em relação ao exame genital de adolescentes ou a pouca valorização que dão à descoberta de doenças sexualmente transmissíveis como reveladoras inadvertidas de abuso sexual em crianças, sem história prévia do mesmo.

 

Tanto o código de Ética Médica quanto as leis vigentes no pais obrigam o médico a notificar os casos de violência doméstica.

 

O Jornal db Conselho Federal de Medicina (25) diz que :

Se o segredo profissional existe como um direito e um dever do médico, em benefício do seu paciente, por outro lado, existem situações em que o profissional está desimpedido do sigilo. Aplica-se então a justa causa definida pelo Prof. de Medicina Legal da Universidade Federal da Paraíba, Genival Velloso França, como o interesse de ordem pública e social que autoriza o não cumprimento do sigilo, mesmo sabendo-se que esta violação corresponde ao constrangimento de uma conquista da liberdade pessoal. Segundo ele mesmo que o segredo médico pertença ao paciente como uma conquista da sociedade, há de se entender que este conceito é relativo, pois o que se protege não é a vontade caprichosa de cada um isoladamente, mas a tutela do bem comum (...). Genival Velloso aponta as situações em que a justa causa se faz necessária: nas declarações de nascimento e óbito, nas notificações de doenças transmissíveis e de acidentes do trabalho, nas sevícias de crianças, nas perícias e pareceres médicos legais e nos crimes de ação pública, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha a procedimentos criminais.

 

Nos casos de violência doméstica de pais contra filhos, o crime é de ação pública, a qual independe de representação, pois o autor do ato infracional é o mesmo que teria o dever legal de proteger a criança e/ou adolescente.

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente também é claro ao exigir que se notifique:

.Art.13. Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescentes serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências.

Art. 56. Os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de:

1 - maus- tratos envolvendo seus alunos (...).

 

sendo que existe também o Artigo 245 que faz com que recaia sobre médicos, professores ou responsáveis por estabelecimentos de saúde e de ensino o papel de notificadores obrigatórios dos casos de suspeita ou de confirmação de violência doméstica, prevendo penalidades de multa quando tal não ocorrer.

 

Salientemos que a notificação se faz inclusive de suspeita, não sendo necessária a confirmação da violência, ou melhor, a mesma poderá se dar em dois momentos: num primeiro, quando se levanta a suspeita e depois, com o caso devidamente estudado por todos os setores técnicos da unidade de saúde: médicos, psicólogos, assistentes sociais, advogados, etc. Cada profissional deverá assinar seu respectivo parecer e a direção da unidade de saúde deverá encaminha o referido estudo ao Conselho Tutelar (ou, no caso de ainda não ter sido instalado, à Justiça da Infância e da Juventude).

 

Concluindo, poderíamos dizer que o sucesso da notificação depende:

1) de um corpo de conhecimentos científicos, o que envolve um processo de ensino-aprendizagem com objetivos específicos na área;

2) de atitudes em relação ao mundo em geral e à infância em particular, no qual os valores introjetados são discriminadores;

3) de compromissos com a criança, com o adolescente e com o bem-estar coletivo.

 

 

 

Os serviços de atenção à problemática

 

Art. 86. A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Art. 87. São linhas de ação da política de atendimento: (...)

III - serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus- tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão (...) (os grifos são nossos).

 

Recuperando-se toda a trajetória conceitual feita por nós anteriormente, no que concerne à violência doméstica e seus tipos preferenciais, observamos que o Artigo 87, inciso III, propugna, como linha de ação da política de atendimento, serviços que, a nosso ver, atenderão todos os tipos de violência: a doméstica, a perpetrada pelo Estado, a que está presente no modo de realização da existência econômica que comporta a exploração de uns sobre outros, etc. Estes serviços contemplarão, portanto, a violência estrutural (entre classes sociais), inerente ao modo de produção das sociedades desiguais, e a violência doméstica que é intraclasses sociais e de natureza interpessoal. Os termos designativos para estes tipos de violência passam, no artigo em pauta, pela negligência, maus tratos, exploração, abuso, crueldade, opressão e, dado o cunho não específico de alguns termos para a violência doméstica[10], podem, portanto, ser interpretados como o fizemos. Nossas inquietações vão no sentido de que a atenção propiciada às vítimas desses diferentes tipos de violência, considerando-se que a violência doméstica, por exemplo, requer foros de especificidade, traz, no nível de toda a produção teórica feita a seu respeito, a importância de um atendimento especializado na área, sem o qual os resultados a serem atingidos são os piores possíveis. Consideramos, portanto, que para se atender a violência doméstica é preciso possuir um conhecimento também qualificado e, sendo assim, os resultados a serem obtidos pelos serviços que desejam abordar tudo o que se relacione à violência poderão ser bastante fracos e até mesmo inócuos.

 

Um segundo aspecto que gostaríamos de analisar é sobre a natureza destes serviços de prevenção e de atendimento médico e psicossocial. O termo psicossocial vem, há alguns anos, merecendo severas críticas. Todos aqueles que se propuseram a uma abordagem de natureza psicossocial, apesar de entenderem que "os problemas, nessa linha, devem ser avaliados de acordo com uma série de fenômenos que vão do psicológico ao social"(26), sentiram que, com o passar do tempo, os profissionais se inclinaram muito mais para os aspectos psicológicos devido à impossibilidade de obterem mudanças reais no ambiente ou mesmo de compreenderem as forças sociais, acabando o aspecto social como periférico, privilegiando-se o psicológico. Como nos diz Faleiros (27), a perspectiva psícossocial traz à tona a idéia da pessoa e do meio social, ou seja, dois pólos: "por um lado, o indivíduo e sua personalidade e, por outro, a situação social, isto é, a circunstância". Os profissionais que adotam esta perspectiva têm como objetivos de trabalho: a integração do indivíduo ao meio social, a mudança do meio limitada ao indivíduo[11].

 

Na área da violência doméstica, é preciso ter cuidado para não se privilegiar exclusivamente o lado psicológico da questão, seja intervindo unicamente em termos da vítima, esquecendo-se o importante jogo que a família tem nessa situação, seja perdendo de vista que a violência doméstica assenta suas raízes num padrão adultocêntrico de relações entre pais e filhos, numa visão objetalizada de criança ou adolescente, nas relações de poder no seio familiar. É preciso se pensar não apenas numa vítima isolada, na sua família específica, mas nas dimensões mais amplas que nos revela o fenômeno da violência doméstica. Daí a nossa preocupação em termos de que um serviço tenha como finalidades exclusivas um atendimento parcializado da questão. É preciso que se recuse a armadilha de se organizar serviços que pensem apenas em "resgatar" vítimas e que se recusem a trazer a público o que está por trás da violência doméstica, mexendo com os valores tradicionais em termos das práticas de cuidado com os filhos. Aqueles serviços que só se destinam ao "resgate" das vítimas tornam-se inócuos, assépticos e às vezes divulgam casos de ponta que estremecem as pessoas, mas que, com o passar do tempo, acabam caindo no esquecimento. É preciso que tais serviços sejam competentes no sentido de que a problemática que atendem possa ser levada ao grande público de forma que se ponha em revisão as diferentes modalidades de opressão que a família tece em tomo de sua nova geração.

 

Um terceiro aspecto, decorrente deste segundo, é o da natureza preventiva destes serviços. A prevenção na área da violência doméstica tem se constituído em um grande desafio, principalmente nos países que já vêm trabalhando com a questão há pelo menos 30 anos.

 

Em recente encontro internacional sobre a prevenção[12], procedeu-se a um balanço dos esforços, em outros países, nessa direção, durante a década de 80. Estes esforços se concentraram prioritariamente:

a) na prestação de serviços ;

b) em modificações da legislação;

c) na educação do público;

d) na produção maciça de projetos de pesquisa.

 

Na área da prestação de serviços assistiu-se à ampliação de diversas experiências, como centros de crise para pais que tenham ou não apedido os filhos e que desejam refletir sobre suas relações com eles; Pais Anônimos[13]; grupos realizados com jovens em escolas e que os preparem para o exercício do seu futuro papel de pais; educação para crianças no sentido de alertá-las sobre a existência da violência sexual e de como podem se furtar a ela ou mesmo revelar quando isto ocorrer, etc.

 

Em termos de modificação legislativa, há que se destacar batalhas importantes no sentido de que a vítima de agressão sexual, por exemplo, tenha o seu depoimento tomado de forma bem menos agressiva, por pessoal qualificado e que o videotape decorrente deste trabalho seja considerado como o testemunho oficial, em nível de julgamento do caso em tribunal, evitando-se depoimentos freqüentes da vítima a diferentes instâncias, traumatizando-a cada vez mais. A legislação também baniu, nos EUA, por exemplo, a punição corporal em escolas (saliente-se que em 40 estados americanos, em 1980, esta prática era permitida!), bem como criou mecanismos para se organizar fundos especiais destinados à prevenção e cuja verba é extraída de licenças matrimoniais ou certidões de nascimento.

 

Na área de educação do público, utilizam-se os meios de comunicação de massa para que veiculassem mensagens contra este tipo de violência e que informassem as pessoas envolvidas como problema a maneira como poderiam perceber a gravidade do mesmo e buscar ajuda competente.

 

Quanto à contribuição científica, multiplicaram-se pesquisas que avaliaram os esforços preventivos, cuidando de dizer se os mesmos alcançavam ou não resultados satisfatórios.

Apesar da multiplicidade de ações consideradas de cunho preventivo, o balanço das mesmas se mostrou pessimista. Nos EUA, por exemplo, há trabalhos de 1990 que indicam que os casos graves de violência física, dos quais decorreu o falecimento da vítima, aumentaram 10% em 1989 em contraste com o aumento de 2 a 3% ao ano nos cinco anos anteriores. Embora estes números não sejam precisos, são pelo menos inquietantes e mostram que a violência segue em sua escalada e de uma forma extremamente brutal, o que faz pressupor que "embora tenhamos feito muitos progressos - certas atitudes parentais estão mudando – os esforços preventivos parecem não ter atingido certas famílias, certos grupos populacionais, criando desafios significativos para os próximos 10 anos (28)". Destaque-se, ainda, que os profissionais presentes à Conferência (citada na nota 12) mencionaram alguns aspectos julgados importantes para se trabalhar em nível preventivo no século XXI:

a) iniciar, especialmente nos países do Primeiro Mundo, a conscientização do público em termos de uma compreensão mais ampla acerca da complexidade da violência doméstica e o que pode ser feito a respeito. Considerou-se que o público já está convencido da existência do problema;

b) ampliar a implementação de programas que se revelaram  eficazes do ponto de vista preventivo;

c) ampliar o treinamento de pessoal específico na área:

d) ampliar os fundos necessários à consecução dos programas de natureza preventiva.

 

Embora estes sejam os desafios do Primeiro Mundo para o século XXI, no tocante ao combate à violência doméstica, o que podemos extrair como possibilidade de reflexão a respeito é que devemos:

a) aprofundar os nossos conhecimentos sobre a trajetória da violência doméstica no Brasil, resgatando as suas especificidades em nosso meio, para que possamos criar experiências preventivas mais próximas à nossa realidade;

b) perceber que a questão da prevenção não deve se constituir de ações impensadas, mas sim embasadas por um conhecimento científico, aplicadas e questionadas freqüentemente em termos dos seus resultados;

c) perceber que pouco caminhamos no combate da violência doméstica contra crianças e adolescentes. De um lado, montemo-nos em um perigoso complô de silêncio, ainda temendo desmistificar tal questão e, por outro, desenvolvemos timidamente experiências de atendimento a vítimas e agressores. Portanto, há que ter cautela no desenvolvimento de programas preventivos para que não resultem inócuos, ou seja, não consigam reverter a banalização da violência que assistimos cotidianamente em nosso meio.

 

Finalmente, em quarto lugar, consideramos que o Artigo 86 pensou sabiamente na possibilidade de uma política de atendimento articulada, em nível governamental e não governamental. Ressalte-se que esta tem sido a tendência na maioria dos países desenvolvidos. Isso porque, assim, evitar-se-ia que o Estado, através de uma intervenção exclusiva na área, gerasse;

a) uma política de atendimento populista que não contemplasse as raízes do problema e que serviria como bandeira para angariar votos ou carrear simpatias partidárias;

b) uma política reducionista, ou seja, a problemática correria o risco de se tomar do domínio exclusivo de um grupo de profissionais que passaria a deter as informações estatísticas, o conhecimento científico e a produzir saber só para si;

c) uma política generalista, na qual os vários tipos de violência se dissolveriam num tratamento teoricamente descaracterizado;

d) uma política tópica mais voltada para a detecção do que para a prevenção ;

e) uma política onipotente baseada num falso ufanismo de pseudo-resultados obtidos a curto prazo, sem dimensionamento dos impactos a médio e a longo prazos;

f) uma política mais preocupada com o resgate das vítimas num apagar cotidiano de incêndios, sem se discutir a retaguarda mais ampla que este atendimento requer;

g) uma política de armazenamento de dados estatísticos sobre vítimas e agressores, sem uma perspectiva de análise mais profunda do que tais informações revelam e de que torna podem e orientar nossas ações;

h) uma política de descontinuidade que, num primeiro momento, coloca a questão da violência doméstica contra crianças e adolescentes como prioritária e depois não se interessa mais por ela, designando-lhe poucos recursos financeiros.

 

Considerando-se todas as possibilidades acima explicitadas, é que se torna bem-vinda a articulação Estado-sociedade civil no atendimento à questão da violência doméstica. Entretanto, esta parceria não será pacífica, envolverá uma série de lutas. Como bem o ressaltou Falcão[14] parceria Estado-sociedade civil em nossa realidade traz em seu bojo alguns problemas:

 

Ora se revela extremamente ameaçadora ao Estado que sempre tenta identificar frações de forças da sociedade civil que poderão ser cooptadas, ora também frações destas forças se negam a uma parceria com o Estado. Esta parceria traz em seu bojo uma alteração no modo de fazer do poder político, ou seja, há uma participação da comunidade nas políticas relacionadas à infância e no controle das mesmas, alteração para a qual ainda não estamos preparados, mais para a qual devemos caminhar.

 

Por outro lado, temos que analisar o fato de que um serviço especializado na área da violência doméstica, talvez, dada a escassez de recursos financeiros, não possa ser estabelecido em todos os municípios do país. Há que se pensar na possibilidade de sua localização por regiões estratégicas que sirvam a diferentes municípios, ou seja, funcionando como centros de referência mais especializados. Além disso, os municípios, através de seus Conselhos Tutelares, deverão estar capacitados a dar os primeiros encaminhamentos a essa questão e a discutir formas preventivas adequadas.

 

Entretanto, algumas questões mais gerais de atenção a essa problemática devem ser analisadas sempre:

1) a violência doméstica requer um conhecimento especializado para o seu trato;

2) deve ser abordada de forma multidisciplinar, "Quando os casos tiveram um desenlace trágico, nos EUA e na Inglaterra, se deveu à falta de um trabalho multidisciplinar que pareceu ser o fator central na causa destes problemas dramáticos" (29)[15]

3) deve existir uma coleta de dados organizada e específica  para a questão, a qual permanentemente fornecerá informações sobre o comportamento do fenômeno na região, os índices de notificação, se os esforços preventivos estão ou não surtindo efeito, etc.;

4) os resultados das investigações na área da violência doméstica devem efetivamente permear a prática de atendimento;

5) intercâmbio permanente dos diferentes trabalhos nacionais que se desenvolvem e que pretendam levar a um aprofundamento da problemática, em nosso país, dos sucessos e fracassos no seu atendimento, etc. Talvez seja preciso lutar pela constituição de uma rede nacional de informações a respeito.

 

E para finalizar é preciso entender que a questão da violência doméstica atinge fundo certos valores socialmente aceitos em termos da família e da educação dos filhos, os quais têm que ser questionados e revisados, sob o risco de ficarmos dando um atendimento periférico à questão.

 

As reflexões precedentes nos mostram que o tema da violência doméstica contra crianças e adolescentes, dentro da realidade brasileira, embora esteja contemplado no Estatuto da Criança e do Adolescente, em termos de condenação, por um lado, e de políticas de atendimento, por outro, ainda está muito longe de receber um tratamento condigno, seja no nível de políticas sociais, seja no nível de atuação dos profissionais.

 

Romper o tradicional complô de silêncio que envolve a questão depende tanto de vontade política quanto de compromisso pessoal e ambos são tributários de uma consciência crítica acerca da condição concreta da infância vitimizada no Brasil.

 

 

Referências bibliográficas

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5. Idem, ibidem.

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9. Idem, ibidem.

10. Idem, ibidem.

11. Idem, ibidem.

12. VALLADARES, L. P. (coord.). Ibidem.

13. Idem, ibidem.

14. Convenção sobre os Direitos da Criança, 20/11/1989.

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Notas

[1] Mestre em Serviço Social, pesquisadora sobre Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes, membro da equipe técnica do Núcleo de Estudos Multidisciplinares sobre Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes do PSA/IPUSP, coordenadora técnica do Centro Diógenes de Estudos e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Vitimizados.

 

[2] Médico do Programa de Saúde da Criança da Secretaria de Estado da Saúde-SP, pós-graduando da Faculdade de Medicina da USP, vice-presidente da Sociedade de Pediatria de São Paulo, presidente do Comitê de Defesa dos Direitos da Criança da Sociedade Brasileira de Pediatria.

 

[3] Pesquisadora sobre Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes, docente no Departamento de Psicologia da Aprendizagem, Desenvolvimento e Personalidade do Instituto de Psicologia da USP, doutora em Educação, educadora e advogada, coordenadora do Núcleo de Estudos Multidisciplinares sobre Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes do PSA/IPUSP.

 

[4] Para uma discussão conceitual mais aprofundada a respeito, consulte-se Azevedo, M. A. e Guerra, V. N. A. (org.). Criança Vitimizada - A.Síndrome do Pequeno Poder. São Paulo, Iglu, 1989).

 

[5] Ver nota 4

[6] É importante lembrar que, em 1911, anarquistas de São Paulo e Rio de Janeiro promovem grandes comícios nos quais é lembrado o incidente da menina Idalina - que fugira do orfanato onde foi maltratada - pondo em cheque, portanto, a atenção que era dada à criança abandonada. Isso talvez foi uma das razões para se buscar novas propostas de atendimento especializadas, diferenciados, com objetivos específicos, considerando-se as críticas aos modelos existentes.

 

[7] Consulte-se a respeito Azevedo, M.A. Uma faca de dois gumes. São Paulo: 1991, mimeografado.

 

[8] Nome extraído do livro de Katharina Rutschky, Schwarze Padagogik, 1997, escritos pedagógicos.

 

[9] Embora represente um avanço, o dispositivo do ECA, no tocante à notificação compulsória, é bastante limitado em termos dos profissionais envolvidos quando comparado a dispositivos legais congêneres, tais como a Lei da Califórnia – art. 11.161.5: “(a) que torna obrigatória a denúncia de abuso físico e sexual de crianças para médicos, cirurgiões dentistas, pedicuros, quiropráticos, religiosos, diretores de escolas, professores, enfermeiros, superintendentes escolares, empregados de escolas, ou creches, etc.” (o grifo é nosso).

 

[10] Segundo o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa: Exploração = abuso da boa fé, da ignorância, ou da especial situação de alguém para auferir interesse ilícito; Crueldade = ato cruel, barbaridade, desumanidade; Opressão = aro ou efeito de oprimir, tirania exercida contra outrem. Estes termos não são específicos para violência doméstica, ao passo que negligência, maus tratos, abuso encontram-se identificados com a mesma, seja porque figuram na legislação penal tipificando crimes desta natureza (como é o caso dos maus tratos), seja pelo próprio significado semântico do termo que implica a prática de atos que também podem se dar em nível doméstico (p. ex., abuso = defloramento, estupro).

 

[11] Para uma discussão mais ampla desta perspectiva sociologista, consulte-se Faleiros, V. P. Metodologia e Ideologia do Trabalho Social . São Paulo, Cortez, 1981.

 

[12] Child Protection for the 21st. Century Conference - Os dados relativos à mesma acham-se publicados em Child Abuse & Neglect, Nova York, Pergamon Press, vol. 15, Supplement 1, 1991.

 

[13] Sobre a experiência de Pais Anônimos, consulte-se Guerra, V. N. A. Pais Anônimos: a experiência de um grupo de auto-ajuda, in Azevedo, M. A. e Guerra, V. N. A. (org.). Crianças Vitimizadas - A Síndrome da Pequeno Poder. São Paulo, 1989.

 

[14] Falcão, M. C. B. C. Desafios da Implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente - palestra proferida no Seminário Perfil Sócio-Econômico da Grande São Paulo e Implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente - CHIA/SP-FUNDAP/SP, 5/12, 1991, São Paulo.

 

[15] Recorde-se aqui o caso da menina Maria Colwell que faleceu em janeiro de 1973, com oito anos, como decorrência de graves espancamentos perpetrados por seu padrasto. Este caso abalou todo o sistema de atenção à violência doméstica, na Inglaterra, revelando todo o desentrosamento dele que resultou na morte da criança. Salvador Minuchin, em seu livro Calidoscópio Familiar, relata o caso e o analisa de forma brilhante a partir da óptica de um terapeuta familiar, percebendo com clareza todos os erros técnicos cometidos a respeito. Entretanto, a morte desta criança não foi em vão. Reformulou-se o sistema de atenção à problemática.

 

 

Fonte

GUERRA, V. N. A.; SANTORO Jr., M.; AZEVEDO, M. A. Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes e Políticas de Atendimento: Do Silêncio ao Compromisso.