A FAMÍLIA, O ADOLESCENTE E O USO DE DROGAS

 

 

Valdi Craveiro Bezerra[1]

Hebeatra (Clínico de Adolescentes).

 

Ana Carolina Bessa Linhares[2]

Psicóloga, Psicoterapêuta de Adolescentes.

 

 

Doutor me ajude. Atenda meu filho que está usando drogas!

 

Quando os pais[3] nos procuram pedindo ajuda para um filho[4] adolescente que está vivendo uma situação especial de uso de drogas, eles fazem um pedido para atendermos seu filho e não se sentem incluídos nessa consulta ou nesse pedido de ajuda. Em geral o filho não está pedindo ajuda, nem acha o uso de drogas um problema. Na conversa com os pais, o adolescente argumenta que estes não sabem de nada, que maconha, por exemplo, não faz mal, não atrapalha, faz até bem à saúde sendo usada como remédio no tratamento do glaucoma, no tratamento da Aids, e outros argumentos veiculados na imprensa falada e escrita. Contra argumenta que o cigarro e a cerveja que o pai usa , faz mais mal à saúde que seu “baseado”. Tem convicção de que deixa de usar drogas quando quiser, pois não é dependente, e como prova de que não traz problemas para a saúde, usa o tempo que ele já faz uso, geralmente de dois a três anos, para justificar.

 

Os pais, embora percebam e sintam claramente a gravidade dos problemas que o uso de drogas traz para o filho e para família, sentem-se impotentes, incompetentes, culpados, e, sobretudo, ficam confusos e divididos entre o certo e errado, não sabem mais que atitudes devam tomar.

 

Essa confusão é sustentada, complicada, alimentada e ampliada por alguns fatores sociais e culturais tais como:

 

1. Uma banalização do uso de drogas por vários seguimentos sociais, como bandas de música e movimentos artísticos, algumas defesas calorosas e públicas e o argumento de que “todo mundo um dia vai experimentar”, ou que esse uso faz parte da fase da adolescência e que, portanto, vai passar. No entanto, trabalhos epidemiológicos, como o de Carline (1997), mostram que a média brasileira de “experimentação” (uso na vida) foi de: 0,7% para cocaína, 3,4% para maconha, 17,3% para inalantes. Esses dados negam essa generalização, exceto quanto ao álcool que foi de 77,5% dos adolescentes estudantes pesquisados;

 

2. A ambigüidade social criminaliza algumas drogas e legaliza outras com argumentos falsos e moralistas. Essa separação de drogas lícitas e ilícitas não tem qualquer relação com o mal que possam causar, pois ambas são prejudiciais à saúde. A separação está mais ligada a antigas razões políticas e econômicas. As lícitas são as drogas que eram usadas pelos colonizadores como o álcool e o tabaco, e as ilícitas aquelas usadas pelos colonizados como o ópio, a maconha e a coca. Portanto, o uso das últimas é proibido por questões políticas e econômicas do colonizador sobre o colonizado, desconsiderando totalmente a questão do ponto de vista da saúde (Bezerra, 1998). Muitos pais entram em pânico, porque descobriram que a filha usa maconha, no entanto, não demonstram a mesma preocupação com um adulto da família ou mesmo com o filho que faz uso sistemático de álcool. Ambas situações são preocupantes;

 

3. Argumentos racionais e simplistas que deslocam essa questão complexa das drogas somente para área da saúde física e área jurídica, sem levar em conta que o uso de drogas pelo filho envolve, sobretudo os aspectos afetivos e emocionais entre os membros da família. Os primeiros e principais problemas que surgem, e que devem preocupar os pais, não estão na esfera da saúde, mas no distanciamento afetivo entre pais e filhos, nas dificuldades de comunicação que contaminam outros aspectos da dinâmica familiar, e na esfera social, pelo fato do adolescente ser lançado num contexto marginal que permeia o uso de drogas ilícitas, sendo este meio mais nocivo que o próprio uso da droga em si. (Bezerra, 1998);

 

4. Informações e posições contraditórias entre profissionais sobre o uso de drogas, que vão depender da experiência, do tempo dessa experiência, e principalmente do modelo teórico-ontológico dos profissionais envolvidos. Encontramos posições variadas tais como: “O adolescente só pára se ele de fato quiser ser ajudado”; “Não adianta proibi-lo de usar drogas, pois ele tem de descobrir outros prazeres para substituir a droga”; “Todos os adolescentes experimentarão drogas de qualquer maneira”.

 

Coragem, nós vamos entrar nesse barco com vocês!

 

A família sempre foi vista como fator de risco ou como causa dos problemas dos filhos. Inúmeros artigos procuram associações do tipo causa-efeito que expliquem o uso de drogas do filho com: o alcoolismo de um dos pais (Chassin et all 1993; Ullman & Orenstein, 1994); a transmissão genética familiar (Bierut et all 1998; Merikangas et, all 1998); a separação dos pais (Nurco et all, 1996); a estrutura e relação afetiva familiar (Metzier et all, 1994; Sokol-Katz & Ulbrich, 1992; Walsh, 1995). Poucos estudos na literatura têm olhado para as contribuições da família (Rutter,1985; Walsh, 1996; Werner, 1993).

 

A experiência clínica nos conduziu a considerar a família não como um entrave, um problema ou um fator complicador que deveria ficar fora do processo, mas como uma forte aliada, como o principal instrumento no processo de resgate do adolescente vivendo a situação especial de uso de drogas. Embora pareça tão desprovida de recursos, é na família que encontramos a solução para seu problema.

 

Para uma família pedir ajuda a um profissional é necessário muita coragem. Em primeiro lugar, porque o uso de drogas é mal visto, estigmatizado, considerado falta de vergonha e de caráter, e denigre tanto o indivíduo quanto à família. Em segundo lugar, a criminalização do uso de algumas drogas faz do pedido de ajuda uma denúncia.

 

Quando corajosamente os pais ou outros adultos pedem ajuda para um filho adolescente, em geral já faz algum tempo desde quando algum membro da família percebeu e preocupou-se com o uso, até o momento em que ela chega a nós pedindo ajuda. E isso é positivo, porque indica que a família já usou vários recursos e fez várias tentativas de resolução com os instrumentos que dispunham e que funcionaram para resolver outras dificuldades encontradas na história de vida familiar. Somente quando elas esgotam seus recursos, pedem ajuda aos ditos especialistas. É assim que entendemos essa demanda da família, e comunicamos a ela que estamos muito orgulhosos da confiança que elas nos depositam. Mas não aceitamos atender seu filho, principalmente no início, porque não acreditamos na sua incompetência enquanto pais. Aceitar e responsabilizar-nos pelo tratamento de seu filho, confirma a idéia de que eles são incompetentes e de que somos nós, os especialistas, que iremos resolver o problema. Se recebêssemos seu filho, a família sairia aliviada, “meu filho está sendo tratado”, porém eles não aprenderiam a resolver e enfrentar os problemas que estão vivendo, nem assumiriam sua participação tão indispensável nesse processo. Certamente creditariam a nós os resultados e continuariam a sentir-se incompetentes e culpados em relação às dificuldades do filho e, portanto, despreparados para lidar com eles. Devolvemos essa confiança acreditando que eles fizeram o melhor que podiam até o momento e que esgotando seus recursos vieram nos pedir ajuda para que, junto a nós e a outras famílias, possamos formar uma rede e procurar alternativas para uma questão tão complexa e difícil para eles pais, para nós profissionais e para toda a sociedade.

 

A família é competente

 

Acreditamos de fato, que a família tem competência para resolver o problema do uso de drogas do filho. Ela só não sabe que tem. Nenhum profissional conseguirá estabelecer um vínculo tão poderoso com este adolescente, como o vínculo entre o filho e os pais. Os vínculos dos pais com os filhos são mais poderosos em operar mudanças que qualquer vínculo terapêutico ou de autoridade constituída. São vínculos com história de vida, com um tempo de no mínimo a idade do filho. É essa crença do profissional que vai confirmar a família como capaz e competente e vai torná-la poderosa em promover mudanças verdadeiras em todo o sistema familiar. Se essa família não for confirmada como capaz, o que de fato é, ficará mergulhada numa crença de fracasso e de incompetência tão grande, que dificilmente terá condições de ajudar o filho, e tentará de todos os modos transferir a competência para o profissional, que se não for “esperto”, será seduzido pelo brilho do poder de curar e cairá na armadilha mais antiga e perigosa para nós. Não podemos esquecer que mesmo que o pai desse adolescente seja um alcoólatra, é o único pai que ele tem, e se devolvermos a dignidade a esse homem, confirmando-o como pai, o pouco que ele fizer pelo filho, terá um efeito maior que, qualquer efeito provocado por uma “intervenção maravilhosa” realizada por um “terapeuta fantástico”. Sem essa crença na competência da família, na qual esta se fia e se agarra, o profissional jamais conseguirá fazer uma parceria com esta família, parceria esta fundamental e vital para o sucesso dessa grande aventura, que é ajudar esse adolescente a parar com o uso de drogas.

 

O que propomos é uma inversão total para a família, que no seu desespero se acha incompetente, e principalmente para o profissional que se formou e está acostumado a ser visto como aquele que vai resolver os problemas, as doenças. Acreditamos que nós profissionais possamos ser mais eficientes quando conseguimos essa parceria com a família e agimos como facilitadores, potencializadores de suas capacidades e instrumentos.

 

É tão difícil para a família acreditar que é ela que tem os instrumentos para fazer o filho parar com o uso de drogas, como para o profissional descer do pedestal onde foi colocado pela família, que acaba funcionando como uma armadilha para ambos.

 

O primeiro passo desse processo é convencer a família de que vamos atendê-los e não a seu filho, por dois motivos. Primeiro, porque quem pede ajuda são os pais, apesar de ser o filho quem tem o problema e quem sofre, não é o adolescente, mas a família. A demanda vem distribuída, e se a família ainda acredita que é o profissional que vai “resolver” o problema, ela insistirá em pedir ajuda para o filho que por si só não pede. Nossa conduta é reforçar e confirmar esses pais ainda mais como competentes. Basta a crueldade de nossa sociedade que põe na família toda a culpa. O segundo motivo, é que vemos na prática, que um usuário de drogas por mais consciência e informação que tenha sobre os malefícios que esta causa, e eles sempre têm, mesmo que perceba seu sofrimento e o sofrimento da família, é muito, muito difícil vencer sozinho a relação estabelecida com a droga. Esperar que “ele queira ser ajudado” para fazermos algo por ele, é o mesmo que insistirmos em “dar na chave” para dar a partida num caminhão que só pega “no tranco” isto é, sendo empurrado. Esta postura de cobrar do usuário que assuma a responsabilidade de parar com o uso de drogas, é o que mais retarda o processo de fazer o filho parar de usar drogas.

 

Construindo parceria com a família

 

Quando as famílias nos procuram elas vêm com muita mágoa do filho. A pergunta que sempre se faz é: “Como um garoto tão bom, tão atencioso, inteligente, amigo, tão querido pôde cair nessa? Como pode fazer isso com sua família? Que vergonha, meu Deus!”. Essa mágoa provocada pelo medo de perda, pelo sentimento de culpa, de incompetência, de fracasso, leva a uma frustração muito grande. Quando a dinâmica familiar chega a esse ponto, o canal de comunicação com o filho está totalmente desgastado ou já quase inexistente. A construção da parceria consiste primeiro em preparar os pais, trabalhando esses sentimentos que funcionam como “um freio de mão” no processo de mudança:

 

1) A mágoa provocada pelo comportamento do filho pelo uso de drogas, leva os pais a tratar o filho e a droga como a mesma coisa. Aquele filho antes maravilhoso, cheio de futuro, de prováveis sucessos, é reduzido a um “maconheiro”, a um “drogado”. Quando os pais referem-se ao filho, o confundem com a droga e é inevitável o atrito. Eles esquecem todo o bom comportamento anterior ao uso de drogas do filho, e este é reduzido ao comportamento “marginal” do uso de drogas. Por essa razão, não é fácil convencer os pais de que não podem confundir o filho, com o comportamento apresentado por este, em uso de drogas, mesmo que seja o filho que esteja agindo assim. Para o sucesso de nosso trabalho, é de suma importância os pais realizarem essa separação. Separar o filho, aquela criança maravilhosa que os pais têm em seus corações, do comportamento atual provocado pelo uso de drogas, é o que vai permitir a criação de um canal de comunicação com amorosidade, condição sine qua non, para a promoção da parada do uso de drogas pelo filho. Para facilitar essa “ginástica mental”, usamos a idéia da droga como um “encosto”, um espírito mau. Explicamos aos pais que, o que não presta é a droga, não o filho, que continua aquela criança amorosa de antes. A droga se apossa do filho feito um “encosto”, e este passa a ter o comportamento daquele “espírito mau” que é a droga. Por mais que queira, que tenha boas intenções, o filho não consegue resistir ao “encosto-droga”. A droga estabelece uma relação de dependência com o filho tão grande que, como um “encosto”, acabam sendo confundidos um com o outro. Para afastarmos o filho das drogas, temos de traze-lo cada vez mais para perto de nós, e não tentar afastar a droga, o “encosto”, batendo no filho, pois assim o “encosto” gruda mais ainda. Para nós, a maneira mais prática de fazer isso é abraçando o filho tão apertado que não sobre espaço para a droga ficar entre eles, pais e o filho. Nesse processo, o objetivo é que os pais percebam que o filho continua sendo seu filho, aquela pessoa maravilhosa que sempre tiveram, e que estão momentaneamente (comparando com a eternidade) separados pelos sentimentos de fracasso, de impotência, da quebra de respeito, levando a uma comunicação com agressividade, associados com o uso de drogas do filho. Só não podem esquecer que é seu filho e que eles são seus pais.

 

2) O medo de perda provoca uma resistência inicial a qualquer mudança que possa levar à saída do filho de casa. Quando pequenos, os limites são claros e precisos e os filhos não estão em condições de questionar em função de sua total dependência. Quando crescem ou adolescem, por essa dependência não existir mais em sua totalidade, temos um sentimento que, se pusermos limites que eles não aceitem, eles podem ir embora. Diante disso, os pais passam cada vez menos a por limites, chegando ao ponto de aceitar todas as imposições do filho e perdem a função de protetor. Num processo gradual, os filhos deixam a escola, distanciam-se da família, trocam velhos amigos por amigos do meio das drogas, cometem delitos. E, impotentes diante disso, poder perdê-lo de vez para as drogas, para um traficante, para uma bala perdida. O caminho mais fácil para perdermos um filho é termos medo de perdê-lo. O que os pais não podem esquecer é que o amor que os liga aos filhos aponta para os dois lados, isto é, dos filhos para os pais também. O que pode estar existindo, é a não manifestação desse amor, o que é verdade para ambos os lados.

 

3) O sentimento de impotência, como decorrência dessa perda dos limites, dificulta os pais de assumirem a responsabilidade total sobre a parada do uso de drogas do filho. Na grande maioria, os pais acreditam que a parada do uso de drogas depende da boa vontade e da determinação do filho. Eles dizem, desculpabilizando-se, que não foram eles que levaram o filho a usar droga, que eles proporcionaram tudo para que ele fosse normal, desde as condições materiais até emocionais e afetivas, e que se seu filho não quiser parar de usar, ninguém poderá fazer nada por ele. A questão é que não basta ele querer parar de usar drogas. Não depende de sua boa vontade. Não esqueçamos que “o caminho do inferno está cheio de boas intenções”. Os filhos freqüentemente afirmam que param quando quiserem, mas se deixarmos por conta de sua própria boa vontade deixaremos uma responsabilidade enorme em suas mãos. Mãos jovens demais para uma responsabilidade tão grande. Felizmente essa responsabilidade é nossa, enquanto pais e adultos, pois somos maduros, experientes e capazes o suficiente para enfrentarmos com determinação essa tarefa. Devemos assumir que a decisão do filho parar de usar drogas é nossa, não importando se ele vai ajudar ou não.

 

 

4) O sentimento de culpa vem muitas vezes disfarçado de cansaço e de um não querer mais lutar pelo filho. A pergunta que os pais mais nos fazem é: “onde foi que eu errei?”. Esse sentimento de culpa, herança de nossa sociedade judaica-cristã especializada em apontar o errado, o pecado, o mal feito, esquece totalmente e completamente o positivo, o certo, o bom. Nós vamos para o céu não por termos feito muitas coisas boas, mas por não termos pecado. Da mesma maneira, a família vivencia o uso de drogas do filho. Até o momento estavam acertando, tinham um filho maravilhoso, e faziam coisas boas e certas. De repente, a culpa aniquila tudo de positivo que eles fizeram e já conseguiram na educação dos filhos. Além disso, o filho que até então era maravilhoso e querido é reduzido a um drogado. A comunicação é feita em torno das cobranças, das drogas, da culpa, gerando raiva, impedindo soluções. Proporcionar à família fazer um resgate de tudo de bom que já viveram, do filho maravilhoso que eles têm e com isso perceber que acertaram mais do que erraram, vai favorecer o restabelecimento de uma comunicação entre pais e filhos.

 

Criando um canal de comunicação de amorosidade

 

Após convencer a família a assumir a responsabilidade de fazer o filho parar com o uso das drogas, o próximo passo é criar um canal de comunicação pelo qual os pais possam conversar com o filho, sem os vícios anteriores de culpa, cobrança, raiva, depreciações e mágoas, que só servem para provocar distâncias, dificultando qualquer comunicação. A característica básica deste canal é a amorosidade. Tudo que é comunicado ao filho como a preocupação, os limites, as regras, é permeado por essa amorosidade. Embora os pais tenham muito amor pelos filhos, no cotidiano não expressam sua amorosidade. Usando a racionalidade, sem aproximar o discurso da afetividade, o pai pode dizer ao filho: “Você não vai nessa festa, porque com certeza vai fumar maconha e se juntar com seus amigos drogados”. Utilizando um canal de amorosidade, evitando justificativas racionais e falando de seus sentimentos na primeira pessoa, a mesma intervenção poderia ser: “Eu não quero que você vá a essa festa, porque amo muito você e vou ficar extremamente preocupado com a possibilidade de você fumar maconha, pois certamente encontrará seus amigos e será muito difícil para você dizer não”. É sair de uma comunicação racional, na qual o embate de opiniões encontra um terreno fértil e interminável que acaba em agressões, para uma comunicação emocional, na qual os pais falam dos seus sentimentos, do sofrimento diante do risco de perder o filho para as drogas, não fornecendo espaço para discussões. É abandonar o foco das drogas e centrar no filho. Sair da visão: “meu filho tem um problema (as drogas)”, para: “meu filho tem uma grande dificuldade em relação às drogas”. A partir deste salto, os pais investirão no filho e não nas drogas. Na nossa experiência com o grupo de pais de filhos vivendo uma situação especial de uso de drogas, o Grupo Multifamília, a maneira mais prática de promovermos a criação desse canal de amorosidade, é provocando uma aproximação pelo abraço e pela declaração de amor ao filho. O abraço por si só não é terapêutico, mas é veículo para o estabelecimento de um vínculo de amorosidade. Por isso, temos de fazer algumas considerações a respeito desse abraço:

 

1) Se crescer, perde o colo - Com muita freqüência, na entrada da puberdade, os filhos perdem o colo, os abraços, o contato físico com os pais. É um processo de afastamento dos dois lados. Por um lado, as mudanças físicas como as curvas, seios, cheiros, músculos, deixam os pais um pouco sem jeito no contato físico com os filhos, até então quase que assexuados, ou considerados como tais, e de uma hora para outra “sem percebermos”, temos uma mulher ou um homem, “sexuados” em casa. A evitação do contato é quase certa. Para superar essa barreira “sexuada”, o que não é fácil, os pais continuam abraçando os filhos como se ainda fossem suas criancinhas, e os infantilizam durante o abraço com expressões do tipo: “meu bebê”, “meu filhinho”, e outras expressões, no intuito às vezes de serem mais afetivos, e menos “físico-sexuados”. Por outro lado, o filho que está adolescendo, quer ser confirmado como adulto e muitas vezes também confunde o crescimento e autonomia, que deve ser conquistada, com o afastamento físico e emocional dos pais. Nossa cultura popular ajudada pelas teorias psicológicas do início do século, principalmente de influência psicanalítica, tem criado no imaginário da população que o adolescente para crescer tem de afastar-se dos pais. Dessa forma, a autonomia está associada a rompimento. Para nós, contudo, crescimento também está profundamente associado à capacidade e maturidade para estabelecer e manter os vínculos afetivos. Essa aprendizagem se faz fundamentalmente dentro do espaço familiar. Em todas as culturas, a família dá a seus membros o cunho da individualidade. A experiência humana de identidade tem dois elementos: um sentido de pertencer e um sentido de ser separado. A família é a matriz da identidade onde esses elementos se misturam (Paccola, 1994). O processo de individuação, que o adolescente passa, tem como significado encontrar sua individualidade, de sentir-se um sujeito único portador de uma personalidade dentro do seu espaço familiar, e ocorre ao mesmo tempo em que o processo de pertencimento, que é o sentimento de fazer parte de uma família sem perder sua identidade. Esses processos ocorrem simultaneamente, pois quanto mais eu sou autônomo e me sinto confirmado na minha subjetividade, mais eu posso pertencer a uma família sem ter receio de perder minha identidade. Portanto, precisamos entender que pais e filhos precisam dar continuidade à expressão da amorosidade no período da adolescência, confirmando para ambos a continência que o contato corporal assegura e fortalecendo o vínculo amoroso que deve vigorar durante toda nossa existência.

 

2) E se me rejeitar? - Outro fator que dificulta esse abraço, é o medo dos pais de não serem correspondidos e de se sentirem rejeitados. É importante os pais perceberem que abraçarão os filhos, não por eles filhos, mas por eles pais, pois estão construindo um canal de comunicação de amorosidade com o filho, para por meio deste canal trabalharem a parada do uso de drogas do filho. Um bom treino é começar abraçando uma arvore muito bonita, sentindo toda a emoção dessa interação com a natureza. A árvore nada faz e o homem não se sente rejeitado por isso. Se o filho recusa o abraço, não importa, a missão do pai é consegui-lo, mesmo quando este estiver dormindo. O processo é mais importante que os resultados imediatos.

 

3) E se eu não tiver vontade? - Na coleção das dificuldades em abraçar o filho, uma outra questão levantada pelos pais é que somente devem abraçar o filho quando sentirem vontade. Eles alegam que o abraço deve ser espontâneo. A questão é que não podemos esquecer que o abraço aqui é usado como um veículo para criar um canal de comunicação. Ele não está sendo apenas uma expressão afetiva, mas tem uma intenção, uma estratégia, um objetivo certo. Quando orientamos os pais a abraçar os filhos no mínimo três vezes ao dia, (como uso de antibiótico) orientamos que não esqueçam da intenção, e no momento do abraço mentalizem: “Estou criando um canal de comunicação de amorosidade com você”. Esta mentalização é importante, porque lembra constantemente aos pais seu objetivo e impede que esse abraço se reduza a uma manifestação afetiva que pode trazer tanto sentimentos positivos, mas com muita freqüência, todas as mágoas e outros sentimentos que podem comprometer a estratégia. O abraço não pode ser espontâneo, tem que ser estratégico.

 

 

Declarando e formalizando posições

 

Esta etapa, que apresentaremos de forma sintética, faz parte do processo de instrumentalização dos pais, e portando não é o objetivo principal deste trabalho.

 

Junto à criação do canal de comunicação de amorosidade com o filho, é de suma importância que os pais tomem algumas posições diante do uso de drogas do filho. Essas posições tomam forma de declaração para toda a família. Todos os membros da família devem participar do processo, porque todos estão implicados, fazem parte da mesma família, e o processo de mudança vai favorecer a todos os filhos e principalmente ao casal, que com muita freqüência apresenta um problema subjacente ao do filho.

 

Solicitamos aos pais que através de uma reunião familiar formal, apresentem para todos os membros da família, estas declarações, e as assumam como suas decisões e não dos profissionais envolvidos no processo.

 

1) Declaração de amor incondicional ao filho – “Nós te amamos muito e não vamos abrir mão de você para droga nenhuma, para traficante nenhum, e para onde você for, iremos te buscar”. Essa deve ser a primeira declaração, pois vai nortear e dar sentido a todas as outras. Não importa se o filho acredite, aceite ou faça chacotas. Na nossa experiência, quando eles fazem isto, é porque tanto os filhos quanto os pais não sabem o que fazer com os sentimentos gerados por essa declaração, às vezes, há muito tempo esquecidos. Essa declaração arrasta todo e qualquer diálogo para o canal de comunicação de amorosidade, saindo do racionalismo das idéias.

 

2) Declaração de intolerância ao uso de drogas – “Não toleramos em nossa família o uso de drogas, e faremos o possível e o impossível para você parar seu uso, porque te amamos muito”. Essa segunda declaração deixa claro que só há uma opção que é a parada do uso de drogas. Costumamos dizer que o adolescente tem duas opções: Ou ele pára de usar drogas ou ele pára de usar drogas, e só pode escolher uma das duas. Ela também abre espaço para todas as atitudes que os pais devam tomar que impeçam que o filho faça uso de drogas. Os pais devem vasculhar o quarto do filho na procura de incensos, papelotes, drogas, que devem ser jogados no vaso e dada descarga, e depois comunicar ao filho.

 

3) Declaração de responsabilidade – “Estamos assumindo diante de você o compromisso de faze-lo parar de usar droga, e para isso faremos o possível e o impossível”. Deixar a responsabilidade de parar com o uso sobre o adolescente é uma sobrecarga muito grande para ele. Nós acreditamos que ele tem a maior boa intenção, mas como já afirmamos, de boa intenção o inferno está cheio. Nosso filho é um adolescente em dificuldade, e precisa que os pais, e nós adultos tomemos essa atitude de responsabilidade, e de compromisso diante de um problema tal como o uso de drogas que requer maturidade, segurança, experiência , firmeza, compromisso. Por mais que os pais tenham dificuldades, e todos os adultos têm, estão muito mais preparados do que esse adolescente para assumir essa responsabilidade.

 

4) Declaração de não compactuar com segredos – “Não guardaremos segredos de seu uso de drogas, e compartilharemos com todas as pessoas que possam nos ajudar nesse processo”. O segredo alimenta o tráfico, protege o traficante, e mantém o uso de drogas pelo adolescente. O único beneficiário do segredo é o traficante. A quebra do segredo visibiliza uma situação de dificuldade e promove uma tomada de posição, um enfrentamento da situação em relação à família. É nesse momento ou algum momento após, que os pais procuram ajuda para enfrentar esse problema. A quebra do segredo também vai além de dar início ao processo de parada de uso de drogas pelo adolescente, vai bloquear o contato com o traficante e paralisar a rede do tráfico. Se mantivermos segredo diante do uso do filho, seremos jogados na lógica perversa do tráfico. Encobriremos nosso filho e ele vai continuar a fazer uso da droga. Ele pode usar nosso medo e nossa vergonha para ficarmos calados, para fugir de nossas decisões. É importante fazermos um cerco, criarmos uma rede de apoio e não poderemos criá-la se fizermos segredo da situação e não pedirmos colaboração e ajuda. A revelação, o jogo aberto protege os pais, pois permite a estes tomar decisões que com certeza protegerão seu filho de situações de risco.

 

 

 

Finalizando a título de começo de processo

 

Nós apresentamos o início de um processo, que é o de seduzir a família para participar, assumir com a responsabilidade de juntos, família e profissionais, promoverem a parada do uso de drogas do filho. É importante deixar claro que o que apresentamos aqui é somente parte desse trabalho, visto que o acompanhamento e instrumentalização são processos muito mais extensos e complexos e envolvem outras etapas que não serão apresentadas nesta publicação. A continuidade desse trabalho é o que ocorre no que intitulamos Grupo MultiFamília e consiste em acompanhar os pais nessa aventura até a parada do uso de drogas, dando apoio em suas recaídas, trabalhando o uso da autoridade em vez do poder, comemorando as pequenas vitórias como grandes sucessos, e o tempo todo encontrando nas dificuldades dos pais as soluções para seus problemas.

 

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Notas: 

 

[1] Valdi Craveiro Bezerra - Hebeatra (Clínico de Adolescentes), Gestalt Terapeuta, Terapeuta de Família e Coordenador do Adolescentro – FHDF.

 

[2] Ana Carolina Bessa Linhares - Psicóloga, Psicoterapêuta de Adolescentes, Terapeuta de Família, Facilitadora de Biodança, Mestranda em Psicologia Clínica da UnB, Coordenadora de Pesquisa e Treinamento do Adolescentro – FHDF.

 

[3] Nos referimos sempre a "pais" considerando ambos quando vivem juntos e/ou a um dos dois quando a família for uniparental.

 

[4] Filho será o termo genérico usado tanto para o sexo masculino como para o sexo feminino.

 

[5] Texto extraído em: http://www.adolec.br/bvs/adolec/P/cadernos/capitulo/cap18/cap18.htm