SIM À GARANTIA PARA A
INFÂNCIA E JUVENTUDE DO EXERCÍCIO DOS DIREITOS ELEMENTARES DA PESSOA HUMANA.
NÃO À DIMINUIÇÃO DA IMPUTABILIDADE PENAL
Olympio de Sá Sotto Maior Neto
Procurador de Justiça.
Idealizo a transformação do Ministério Público em Ministério Social. Um
Ministério Social em ação, ação mesmo, com fins e também meios próprios contra
não só as ilegalidades, mas, principalmente, contra as injustiças. Os
privilégios, os pesos e medidas desiguais são inconstitucionais. Assim, o
Ministério Público evoluiria para assumir a responsabilidade daquilo que é mais
significativo na ordem jurídica - a paz social pela justiça sócia - tarefa
máxima da democracia na atual conjuntura da humanidade. O Ministério Público
Social procurará dar a cada um o que é seu, mas, sobretudo, acudir a quem nada
tem de seu, a quem quer, mas não pode viver honestamente, a quem, apesar de
tudo, não prejudique ninguém. O Procurador-Geral será mesmo geral e tornará
prática e total a expressão mais profunda de nossa nomenclatura funcional -
promotor de justiça. Um Ministério Público Social promoverá a justiça social,
cuidará dela e não só de uma justiça pública, estatal oficial. A ordem jurídica
seria adaptada aos dramas contemporâneos. A primazia nos benefícios pertenceria
aos mais necessitados. A tranqüilidade de consciência do Ministério Público
depende de avanço que ele mesmo executará. (Roberto Lyra, “príncipe dos
Promotores de Justiça”, 1952).
O tema pertinente à resposta que se pretenda dar aos adolescentes autores de ato infracional (que, diga-se desde logo, deve ser exatamente aquela prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente e não a advinda do Direito Penal), diz respeito, de forma inafastável, aos integrantes do Ministério Público. É que, de um lado, exercemos parcela da soberania do Estado enquanto titulares exclusivos da ação penal pública e, de outro, temos dever funcional de promover a materialização dos direitos individuais, coletivos e difusos relativos à infância e juventude. Mais que isso: por ser função institucional do Ministério Público a defesa do regime democrático, estamos obrigados a permanente reflexão acerca do conteúdo ideológico das normas jurídicas de modo a impedir que o Direito seja utilizado para praticar injustiças. A existência de responsabilidade política, ética e profissional a impulsionar o cumprimento do papel de efetivos defensores da sociedade brasileira e do Estado de Direito Democrático, serviu como fator determinante para a apresentação da presente tese ao XIII Congresso Nacional do Ministério Público, objetivando então colher a manifestação de todos os Promotores e Procuradores de Justiça do Brasil no sentido da manutenção da imputabilidade penal - conforme previsto no art. 228, da Constituição Federal - somente a partir dos dezoito anos de idade. Também, concluir que as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente restam suficientes ao propósito de se responder com justiça a pratica de atos infracionais por adolescentes.
O primeiro ponto que deve ser ressaltado - e que importa, na prática, fulminar com qualquer proposta de emenda constitucional direcionada à diminuição da imputabilidade penal - contempla a conclusão de que a imputabilidade penal somente a partir dos dezoito anos, trazida à condição de cânone constitucional pela Assembléia Nacional Constituinte de 1988, corresponde à cláusula pétrea e, por isso mesmo, insuscetível de modificação por via de emenda, conforme comando do art. 60, § 4°, da Constituição Federal assim:
“Não será objeto
de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir:... IV –
os direitos e garantias individuais”.
Embora topograficamente distanciada do art. 5°, da Constituição Federal (pois, afinal, pela primeira vez em nossa história constitucional destinou-se um capítulo exclusivo para tratar da família, da criança, do adolescente e do idoso), não há dúvida de que a regra do art. 228, da Constituição Federal, apresenta natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias como anota Gomes Canotilho,
“Os direitos de
natureza análoga são direitos que, embora não referidos no catálogo dos
direitos, liberdades e garantias, beneficiam de um regime jurídico
constitucional idêntico aos destes”.
Ou, na observação de Alexandre de Moraes,
“A grande novidade do referido art. 60 está
na inclusão, entre as limitações ao poder de reforma da Constituição, dos
direitos inerentes ao exercício da democracia representativa e dos direitos e
garantias individuais, que por não se encontrarem restritos ao rol do art. 5°,
resguardam um conjunto mais amplo de direitos constitucionais de caráter
individual dispersos no texto da Carta Magna”.
Vale dizer, os menores de dezoito anos a quem se atribua a prática de um comportamento previsto na legislação como crime ou contravenção têm o direito fundamental (que se traduz também em garantia decorrente do princípio constitucional da proteção especial) de estar sujeito às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente (recebendo, se for o caso e como resposta à sua conduta ilícita, as medidas sócio-educativas) e afastados, portanto, das sanções do Direito Penal. É este, inclusive, o pensamento do Fórum DCA (Fórum Nacional de Defesa da Criança e do Adolescente).
Mas mesmo que assim não fosse, deve-se considerar que as discussões sobre tal matéria se relacionam, em regra, ao raciocínio equivocado de que não há previsão legal para responsabilizar os adolescentes autores de ato infracional (argumentando alguns até que a própria lei, isto é, o Estatuto da Criança e do Adolescente, estaria a proteger - quando não a estimular - a prática de atos anti-sociais pelos adolescentes) e, assim, culminando com proposta perversa na direção da diminuição da imputabilidade penal, como se tão só a repressão penal fosse capaz de responder às intrincadas condições determinantes da conduta desviante dos adolescentes ou de superar situações que são, via de regra, de ordem estritamente social. No propósito de reflexão séria, adequadamente multidisciplinar e ideologicamente correta, penso que a análise inicial a se fazer passa pela perfeita identificação de quem falamos: ou seja, das crianças e adolescentes que estão a experimentar situação de absoluto descaso, de secular desassistência e de omissão criminosa por parte do Estado Brasileiro. Não vamos tratar aqui, portanto, do infrator da França, Suíça ou Suécia, mas sim daquele que integra a infância e juventude de um país cuja marca social mais significativa (e trágica) é a má distribuição das riquezas, alcançando, segundo dados do Banco Mundial, o infeliz “status” de campeão mundial das desigualdades sociais (um país extremamente rico, com uma população absolutamente pobre). Se contamos, de um lado, com a concentração absurda da renda nas mãos de poucas pessoas, inevitavelmente, do outro lado dessa mesma moeda, encontraremos cunhada a face da grande maioria da população marginalizada, isto é, à margem dos benefícios produzidos pela sociedade. Nesse passo, então, é necessário - e indispensável - reconhecer a proximidade que existe entre a marginalidade e a delinqüência. Não se trata, evidentemente, de repetir teorias determinantes de indesejável etiquetamento social, tão combatidas pela criminologia crítica, que se insurge corretamente contra o estabelecimento de um vínculo indissolúvel entre a pobreza e a criminalidade. Ou seja, não se quer dizer que todos os pobres sejam criminosos, porque advindas desse raciocínio falso são as ações policiais ilegais, como ocorreu em Vigário Geral, quando pessoas ligadas às forças que deveriam estar prestando segurança à sociedade adentram em casa de favelados e matam todas as pessoas que lá encontraram, partindo do pressuposto absurdo de que o homem morador da favela é sempre um bandido, vez que a pobreza estaria a criar este vínculo indissolúvel com a criminalidade. Há que se constatar o fato verdadeiro da existência de crianças e adolescentes que experimentam condições reais de vida tão adversas, insuperáveis pelos meios tidos como legais ou legítimos, que acabam impulsionados no sentido da criminalidade. Esta é conclusão da qual não podemos nos afastar, sob pena de reprodução do mito - e chavão fácil - do livre arbítrio informador do direito criminal.
A lição mais importante que aprendi nesses meus quase vinte e três anos de Ministério Público foi a de que a realidade social e a Justiça devem estar presentes em todos os momentos da vida do Direito. A atuação do jurista despreocupada com esses conteúdos se traduz em comportamento profissional meramente burocrático, que, antes de ter o condão de auxiliar na construção de nova ordem social, apresenta efeito contrário, auxiliando na manutenção do status quo - injusto - vigente. Nesse aspecto, assente-se que nossa atividade profissional, centrada apenas na proposta de responder às conseqüências dos fatos criminosos, significa parca colaboração para o propósito de ver instalada uma sociedade progressivamente melhor e mais justa. Tão só encaminhar para as cadeias públicas ou para o sistema de segregação oficial os autores de fatos criminosos não auxilia em nada - afora uma imaginada prevenção geral - à tarefa de impedir ou prevenir a prática de novos delitos. Daí a preocupação com a realidade social brasileira ser o ponto central da reflexão vinculada à violência praticada por e contra crianças e adolescentes, conjugando-se o pensamento de que nossa infância e juventude (e suas famílias) estão visceralmente ligadas a uma situação de miserabilidade. Segundo estatísticas do IBGE, cerca de 56% (cinqüenta e seis por cento) dos brasileiros integram famílias cuja renda per capita é inferior a meio salário mínimo (que, diga-se, mesmo quando percebido por inteiro se mostra insuficiente para atender às necessidades básicas do trabalhador e de sua família, correspondendo hoje, inclusive, a 18% (dezoito por cento) do seu valor real quando instituído em 1940). Vale lembrar que existe no país cerca de trinta milhões de pessoas (cidadãos?!) vivendo em situação de indigência, ou seja, abaixo da linha da pobreza. Nesse quadro social, evidente resta que o primeiro enfrentamento no sentido de evitar a criminalidade e a violência infanto-juvenil deve buscar a superação da condição de marginal (insista-se, à margem dos benefícios produzidos pela sociedade) infelizmente vivenciada pela maioria das crianças e adolescentes brasileiros. Evitando-se a marginalidade, além de se estar cumprindo os ditames do Estatuto da Criança e do Adolescente (assim como de todos os demais documentos internacionais pertinentes aos direitos fundamentais das crianças e adolescentes), certamente se estará impedindo o aumento do índice de delinqüência infanto-juvenil. No momento em que o Poder Público responder concretamente ao seu dever institucional de assegurar a todas as crianças e adolescentes - com prioridade absoluta - o exercício dos direitos elementares da cidadania, indiscutivelmente caminharemos para contexto real inibidor da marginalidade e, de conseqüência, determinante de efetiva prevenção à criminalidade.
Outro ponto que comparece merecedor de destaque pertinente à filosofia que permeia as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente e consistente na regra geral de que se deve respeitar as crianças e os adolescentes enquanto pessoas em peculiar fase de desenvolvimento. Referente ao adolescente autor de ato infracional, tal máxima deve se traduzir em visão interdisciplinar que englobe os avanços científicos na área médica, de modo a se identificar os comportamentos que seriam, por assim dizer, próprios da adolescência. Tais estudos indicam coexistirem na denominada “síndrome da adolescência normal”, além da reprodução do comportamento e usos do grupo (a conduta social, a fala, a vestimenta, etc.), também o insurgimento contra os valores estabelecidos pela sociedade. Já ouvi a crítica no sentido de que me refiro aos autores de atos infracionais como se todos eles fossem santos. Bem pelo contrário, falo na perspectiva de que nenhum deles é santo, porque ninguém passa pela adolescência sem a prática de atos anti-sociais ou infracionais.
Ora, para determinadas faixas sociais, a ocorrência de uma crise na adolescência é facilmente reconhecida e aceita, como o demonstra o dia-a-dia nos Juizados da Infância e da Juventude, bem assim em outros espaços de atendimento e/ou tratamento dos adolescentes. Para estes, admite-se que referida fase crítica propicia reflexos dos conflitos internos na conduta cotidiana e desviante, seja no âmbito familiar ou escolar, ou ainda no seu próprio relacionamento com os demais segmentos sociais. Todavia, os filhos das classes populares, das famílias empobrecidas e despossuídas, não encontram essa mesma compreensão. Já estes, freqüentemente, são vistos pela sociedade como dotados de natureza perversa, de má-índole, sendo considerados irrecuperáveis, como os bandidos em relação aos quais o meio social precisa se precaver. Na realidade, com apoio no estudo de outros ramos do conhecimento científico que não o Direito, deve-se reconhecer aos adolescentes, sejam eles da classe social que forem, a possibilidade - absolutamente normal - de se insurgirem e violarem as regras estabelecidas pela sociedade. Há até uma música que fala disso, do rebelde sem causa, que materialmente tem tudo, recebe toda a atenção e afeto dos pais, conta com a consideração social e, mesmo assim, revolta-se. Se os nossos filhos - vale dizer, os que possuem oportunidade de vida digna e de melhor alcance da felicidade - rebelam-se, não é difícil imaginar que, com muito maior razão, os filhos das classes excluídas no contexto social também se revoltem contra a estrutura injusta que lhes é imposta. Quando, no momento da elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, discutia-se a questão relativa à possibilidade de aplicação da medida sócio-educativa de internamento em razão do descumprimento reiterado e injustificado da medida judicial anteriormente estabelecida (conforme norma afinal prevista no art. 122, inc. III), ouvi o argumento de que este internamento seria necessário, até por três meses, para que o adolescente, descumpridor das determinações judiciais, levasse um susto e nunca mais desatendesse às sentenças da Justiça da Infância e da Juventude. Inconformado com tal naipe de raciocínio, respondi que só defendia este ponto de vista quem tinha certeza de que os próprios filhos jamais seriam encaminhados para uma unidade de internação, onde o susto pelo qual se quer que os filhos dos outros passem pudesse implicar na prática de violências físicas, psicológicas e sexuais. A idéia a predominar quando se analisa a imposição de qualquer medida ao autor de ato infracional é a de que, se a medida é justa, deve ser aplicada a qualquer adolescente, independentemente da classe social a que ele pertença.
Como assunto correlato, é de se destacar que a defesa da diminuição da imputabilidade penal, via de regra, apresenta o argumento de ser inviável sustentar que um adolescente de 16 ou 17 anos não tenha conhecimento do que seja certo ou errado. Trata-se, bem o sabemos, de um raciocínio equivocado, porquanto a imputabilidade não se estabelece tão-só a partir do discernimento, da capacidade de reconhecer o caráter ilícito do fato. Uma criança de 8 anos de idade, por exemplo, pode ter a consciência da ilicitude da sua conduta e, portanto, discernimento, mas não se concebe seja ela considerada penalmente imputável.
Assim é porque, além da capacidade de entender o caráter ilícito do fato, para a imputabilidade é necessário a capacidade de se determinar de acordo com este entendimento. Também o adolescente, ao passar por fase crítica na formação de sua personalidade, sofre extraordinárias e negativas influências no que tange ao componente volitivo da imputabilidade, de molde a não se poder considerá-lo com capacidade de determinação conforme eventual consciência de ilicitude. As infrações decorrentes da condição de imaturidade bio-psicológica reclamam a intervenção no sentido da orientação, assistência e reabilitação, buscando-se alcançar o inerente potencial dirigido à sociabilidade. Essa linha de pensamento é que levou o legislador da nova Parte Geral do Código Penal (Lei n° 7.209/84) a manter o preceito da inimputabilidade para os menores de 18 anos constando da exposição de motivos o seguinte:
“Manteve o
Projeto a inimputabilidade penal ao menor de 18 anos. Trata-se de opção apoiada
em critérios de Política Criminal. Os que preconizam a redução do limite, sob a
justificativa da criminalidade crescente, que a cada dia recruta maior número
de menores, não consideram a circunstância de que o menor, ser ainda
incompleto, é naturalmente anti-social na medida em que não é socializado ou
instruído. O reajustamento do processo de formação de caráter deve ser cometido
à educação, não à pena criminal. De resto, com a legislação de menores
recentemente editada, dispõe o Estado dos instrumentos necessários ao
afastamento do jovem delinqüente, menor de 18 anos, do convívio social, sem sua
necessária submissão ao tratamento do delinqüente adulto, expondo-o à
contaminação carcerária”.
Nesta quadra, vale enfatizar a importância das medidas sócio-educativas, ao tempo em que significam a resposta da lei - severa, mas justa - à prática de atos infracionais por adolescentes. Tanto quanto ocorreria com um adulto que comete um ilícito penal, também o adolescente praticante de ato infracional será responsabilizado pela sua conduta, ao contrário do que indevidamente se difunde. Como se sabe, as medidas sócio-educativas vão desde a advertência, passando pela obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade ou inserção no regime de liberdade assistida, até as restritivas ou privativas de liberdade (semi-liberdade e internação). Já foi dito que o nosso esforço - de todos os profissionais atuantes na área da infância e juventude - deve visar neste momento a efetivação dos programas capazes de garantir a execução das medidas sócio-educativas, principalmente a de liberdade assistida vez que apresenta as melhores condições de êxito quando direcionada a interferir positivamente na realidade familiar e social do adolescente, tencionando resgatar, mediante apoio técnico, as suas potencialidades (aliás, o acompanhamento, auxílio e orientação, a promoção social do adolescente e de sua família, bem como a inserção no sistema educacional e no mercado de trabalho, certamente importarão o estabelecimento de projeto de vida capaz de produzir ruptura com a prática de delitos, reforçados que restarão os vínculos entre o adolescente, seu grupo de convivência e a comunidade). As medidas de advertência, obrigação de reparar o dano e prestação de serviços à comunidade indicam nítida prevalência do caráter educativo ao punitivo. É que as técnicas educativas voltadas à autocrítica e à reparação do dano se mostram muito mais eficazes, já que produzem no sujeito infrator a possibilidade de reafirmação dos valores éticos-sociais, tratando-se-o como alguém que pode se transformar, que é capaz de aprender moralmente e de se modificar (as técnicas de conteúdo punitivo, segundo as teorias da aprendizagem, eliminam o comportamento somente no instante em que a punição ocorre, reaparecendo porém, e com toda a força, tão logo os controles aversivos sejam retirados).
Quanto à internação, carece sua aplicação de reflexão profunda, porquanto se apresenta como a medida sócio-educativa com as piores condições para produzir resultados positivos.
Com efeito, a partir da segregação e da inexistência de um projeto de vida, os adolescentes internados acabam ainda mais distantes da possibilidade de um desenvolvimento sadio.
Privados
de liberdade, convivendo em ambientes de regra promíscuos e aprendendo as
normas próprias dos grupos marginais (especialmente no que tange a responder
com violência aos conflitos do cotidiano) a probabilidade (quase absoluta) é de
que os adolescentes acabem absorvendo a chamada identidade do infrator,
passando a se reconhecer, sim, como pessoas cuja história de vida, passada e
futura, resta indestrutivelmente ligada à delinqüência (os irrecuperáveis,
como dizem deles). Desta forma, quando do desinternamento, certamente estaremos
diante de cidadãos com categoria piorada, ainda mais predispostos a condutas
violentas e anti-sociais. Daí a importância de se observar atentamente as novas
regras legais referentes à internação, especialmente aquelas que dizem respeito
à excepcionalidade da medida, sua brevidade e, a todo tempo, o respeito à
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (de ressaltar também o novo
elenco de direitos pertinentes ao adolescente internado, conforme disposição do
art. 124 do ECA). Na verdade, ao com ela concordarmos, sempre o fazemos numa
perspectiva de que venha a servir, como dizem os laudos técnicos, para
introjeção de valores éticos e sociais, na trilha da emenda e da ressocialização.
Mas a realidade é outra, até porque exsurge impossível imaginar ressocialização
através da segregação. Não se trata, é bom deixar bem claro, de assumir postura
lírica, sustentando que não se deva utilizar a medida de internamento. Haverá
casos em que comparecerá ela como necessária, mas no propósito induvidoso de
buscar interromper um ciclo delinqüecial já desencadeado. Entretanto, não se
imagine - por ignorância - que a instituição total seja apta a tratamento
e emenda, porque a ressocialização só se dará efetivamente através de
atividades no mundo externo à unidade, quando se estabelece convívio sadio - e
com oportunidades - do adolescente na comunidade em que vive. A finalidade da
internação é, então, estabelecer oportunidades para que o adolescente possa
ter, como modo de vida, algo que não o mantenha na trilha da
criminalidade.
Em outro aspecto fundamental, considerado que a contestação e o inconformismo
já se dão quando tratamos da medida sócio-educativa de internação e, em
especial, quanto aos espaços destinados à execução da mesma, o que se dizer
então da proposta de aplicação aos adolescentes autores de atos infracionais da
sanção penal (com seu caráter meramente retributivo) e estabelecer o sistema
penitenciário brasileiro como o local para o cumprimento da mesma. É também sob
essa ótica que deve ser analisada a matéria referente à imputabilidade penal,
traduzindo-se na seguinte indagação: que benefícios adviriam – para o
adolescente, a sociedade e o próprio sistema de Justiça – com a diminuição da
imputabilidade penal? Na verdade, contaríamos com a seguinte opção: mantemos os
adolescentes entre 16 e 18 anos submetidos a julgamento pela Justiça da
Infância e da Juventude e sujeitos às medidas sócio-educativas ou, de outro
lado, passamos a submetê-los à Justiça Penal e respectivas sanções. Mas aqui,
sem nos afastarmos da realidade e dos ideais de justiça, há que se levar em
consideração - e criticamente - o tipo de sistema penitenciário (ou até justiça
penal) para o qual se pretende encaminhar esses adolescentes.
Em conferência recentemente realizada, o Professor Francisco de Assis Toledo
informava que no sistema penitenciário brasileiro há cerca de 40.000 vagas. Não
obstante, se se for olhá-las sob a ótica da Lei de Execuções Penais, é de se
duvidar da existência de tantas vagas, porque por certo foram desconsideradas
em tal levantamento as exigências legais quanto às celas, que devem ser
individuais e com determinada metragem mínima. De qualquer sorte, imaginando-se
que existam mesmo tais vagas, há hoje, integrando a população carcerária, perto
125.000 presos. A superpopulação corresponde, portanto, a três vezes mais do
que a capacidade do próprio sistema. E pior do que isso: são aproximadamente
300.000 os mandados de prisão não cumpridos, de pessoas para quem a resposta da
justiça apenas foi no sentido da obrigatoriedade da privação de liberdade e que
estão andando por aí, como se nada tivesse acontecido.
Insista-se na
pergunta: devemos continuar defendendo a proposta do Estatuto da Criança e do
Adolescente das pequenas unidades de internação, fiscalizadas pelo Ministério
Público, com um corpo técnico qualificado, permitindo a realização de
atividades externas, contemplando a possibilidade de reinserção no sistema
educacional, acesso ao mercado de trabalho, etc., (enfim, buscando estabelecer
um novo projeto de vida para o adolescente em conflito com a lei), ou vamos
optar pela resposta do Direito Penal, em que o adolescente, entre 16 e 18
anos, vá ser mais um número no contexto da superpopulação carcerária (com a
promiscuidade que lhe é inerente) ou na cifra dos 300.000 mandados de prisão
não cumpridos, para a sua sorte e da própria sociedade (porque, convenhamos, é
menos ruim que ele fique em liberdade, sem a execução da respectiva pena, do
que venha a integrar o falido sistema penitenciário brasileiro e dele regressar
como cidadão de pior categoria).
A resposta que se quer então colher dos membros da Instituição incumbida da
defesa dos valores sociais mais significativos (e que, frise-se, já rompeu
definitivamente com as suas raízes de patrocinador dos interesses dos reis e
dos poderosos para se constituir na mais legítima defensora da sociedade, com a
visão clara de que tal tarefa importa defender prioritariamente aqueles que se
encontram afastados da possibilidade de exercício dos direitos elementares da
cidadania) é a de que nada justifica a diminuição da imputabilidade penal, seja
pelo prisma do princípio da proteção integral como informador de toda
legislação pertinente à infância e juventude (e a Associação Brasileira de
Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude, em todos os
seus Congressos, registra conclusão nesse sentido), seja no aspecto de medida
relacionada à política criminal (e o próprio Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária, acolhendo parecer do penalista Rolf Koerner Junior),
pronunciou-se de maneira contrária à Proposta de Emenda à Constituição n°
301/96, de Jair Bolsonaro e Outros).
Cabe destaque também ao posicionamento unânime assumido pelos juristas participantes da Oficina “ad hoc”, do III Seminário Latino-Americano sobre os Direitos da Criança (quais sejam, Antonio Fernado do Amaral e Silva, Benedito Antonio Dias da Silva, Breno Moreira Mussi, Carlos Eduardo de Araújo Lima, Carlos Magno Cerqueira, Dalmo de Abreu Dallari, Edimar Rocha Penna, Edmundo Oliveira, Edson Lucas Viana, Esther Kosovisk, Roberto Maurício Genofre, João Marcelo de Araújo Junior, José Henrique Pierangelli, José Roberto Santoro, Judá Jessé de Bragança Soares, Luiz Vicente Cernicchiaro, Marcel Esquivel Hoppe, Marco Aurélio Paioletti Martins Costa, Melba Mirelles Martins, Munir Cury, Noeval de Quadros, Olympio de Sá Sotto Maior Neto, Paulo Afonso Garrido de Paula, Renê Ariel Dotti, Romero de Oliveira Andrade e Wanderlino Nogueira), no sentido da manutenção do art. 228, da Constituição Federal (e cujas conclusões estarei encampando na presente tese).
Por fim, a certeza de que a manifestação do XIII Congresso Nacional do Ministério Público acerca do presente tema – assim como dos demais levados à sua deliberação – estará a contribuir para o alcance daquilo que é indicado como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: o de construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Conclusões
1 - A regra do art. 228, da Constituição Federal, corresponde à cláusula
pétrea e, portanto, implica limitação expressa e material ao poder
reformador, nos exatos termos do art. 60, § 4°, da Carta Magna.
2 - A inimputabilidade não significa irresponsabilidade e impunidade, ficando os adolescentes autores de atos infracionais sujeitos às medidas sócio-educativas, previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.
3 - É necessária imediata implantação ou implementação dos programas relativos às medidas sócio-educativas, que se têm mostrado, nos locais onde foram corretamente instalados, aptos a ser resposta social justa e adequada à prática de atos infracionais por adolescentes, com eficiência maior que a pura e simples retribuição penal e o conseqüente ingresso do jovem no sistema penitenciário.
4 - Para efetivo combate à criminalidade infanto-juvenil, indispensável à adoção de todas as medidas políticas e administrativas (e também judiciais) no sentido de distribuição da justiça social, de modo a universalizar o acesso às políticas sociais públicas (cumprindo-se o comando constitucional da prioridade absoluta em favor das crianças e adolescentes).
5 - A fixação da imputabilidade penal a partir dos 18 anos de idade tem por fundamento critério de justiça e de política criminal adequados à realidade brasileira, devendo haver por parte do Ministério Público defesa intransigente da sua manutenção em sede constitucional.