DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM DA CRIANÇA

 

 

Jairo Werner

 

Kátia Alves do Espírito Santo

 

 

Resumo: Os autores abordam diferentes concepções metateóricas e teorias sobre o processo de desenvolvimento e aprendizagem da criança e fazem uma reflexão sobre as suas repercussões na prática pedagógica. Demarcam, ainda, o modelo e a teoria que parecem mais adequados ao estabelecimento de uma proposta pedagógica promotora do processo de desenvolvimento e aprendizagem.

Enfatizam, também, que as propostas voltadas para a criança pré-escolar no Brasil, têm sido assistemáticas, desiguais e insuficientes para demarcar o caráter educativo (ditado pela Constituição), contribuindo para um crescente processo de reprodução da seletividade social. Faz-se necessário, portanto, que os debates entre o Estado e a sociedade civil continuem cada vez mais presentes.

 

Considerações iniciais

 

Antes de discorrermos sobre o tema “Desenvolvimento e Aprendizagem da Criança'', não poderíamos deixar de marcar algumas posições por nós assumidas e defendidas:

- em consonância com a Constituição Brasileira ressaltarmos o caráter eminentemente educacional da creche e da pré-escola. Apesar precárias condições de vida a que estão submetidas as famílias baixa renda no Brasil exigirem o atendimento às necessidades de saúde, nutrição e assistência social, entendemos que não se pode abrir mão da função educativa da creche e da pré-escola;

- reconhecemos as contribuições prestadas pelas iniciativas comunitárias e por grupos da sociedade civil nas diversas modalidades atendimento alternativo à criança de 0 a 6 anos. Julgamos necessário, entretanto, o Estado investir gradualmente na expansão quantitativa e qualitativa dos serviços públicos, evitando, assim, que os serviços de pior qualidade continuem a ser destinados à população de baixa renda. A verba pública deve ser utilizada, prioritariamente, no fortalecimento dos serviços públicos.

Como o programa Brasil-França está voltado para o à criança de baixa renda, possivelmente, o futuro campo de ação junto às modalidades de trabalhos alternativos que, via de regra, são os destinados à população sócio-economicamente mais desfavorecida. O fato do Programa estar preocupado em desenvolver ações de capacitação de recursos humanos profissionais e não-profissionais nos remete hipótese acima.

Aparentemente pode-se pensar na existência de uma contradição irremediável entre as posições por nós defendidas e a nossa participação no processo de discussão e formulação das propostas do Programa. Na verdade, precisamos explicar porque aceitamos tratar da questão capacitação técnica de não profissionais.

Pensarmos que ao participar das discussões que envolvem a importância da prática pedagógica pré-escolar estaremos contribuindo no sentido de que os não profissionais possam avaliar em que medida têm realizado uma ação pedagógica ou, apenas, uma ação assistencialista ou compensatória. Representa, também, uma contribuição tanto para a busca de soluções, enfrentamento e encaminhamento de propostas, quanto para a participação efetiva do cidadão na formulação e fiscalização das propostas de trabalho junto à criança e, não somente, enquanto mão-de-obra barata e despreparada para o desenvolvimento das ações junto à criança de classe popular. Poderíamos refletir, ainda, em que medida o trabalho de não profissionais junto à criança pode ser desenvolvido, face ao estágio anual da demanda existente não encontrar respostas efetivas dos serviços públicos.

O eixo temático desenvolvimento e aprendizagem da criança visa a fornecer as bases teóricas para o desenvolvimento de propostas pedagógicas de trabalho junto à criança em idade pré-escolar. Visa, também, colocar em relevo, para os profissionais das áreas envolvidas na formulação de projetos de capacitação, como as concepções de mundo e os referenciais teóricos influenciam as propostas de trabalho.

1) O modelo mecanicista e sua influência sobre as concepções teóricas de desenvolvimento e aprendizagem na psicologia

Na concepção mecanicista a metáfora básica é a máquina, seja na representação do universo - o cosmo representado por "partículas em movimento'', seja na compreensão do homem como máquina biológica. A concepção mecanicista determinou um modelo de homemreativo'', "passivo", ou seja, um organismo vazio. Nesse sentido, a máquina humana encontra-se em repouso, entretanto em atividade em função de forças extremas. Nessa perspectiva, atividades mentais superiores, como a consciência, a linguagem, a atenção voluntária, o desejar e o perceber, só podem ser compreendidos ao serem reduzidos a fenômenos menos complexos.

Decorrente dos pressupostos mecanicistas, a corrente psicológica comportamentalista (behaviorista) propõe uma psicologia objetiva, mas fornece explicações somente para os processos mentais elementares observáveis, ou seja, reduz qualquer fenômeno complexo a simples fórmula S-R (estímulo-resposta). Não podendo então explicar o caráter subjetivo da consciência humana, a psicologia comportamental nega que esta seja objeto da psicologia.

O behaviorismo, enquanto escola psicológica, teve como fundador o norte-americano WATSON. Ele e seus seguidores adotaram o método experimental das ciências naturais e pressupõem que os fenômenos revelam-se diretamente aos olhos do pesquisador, cabendo, portanto, à Psicologia rejeitar toda e qualquer referência à consciência - uma vez que não pode ser observada experimentalmente.

Ao longo da história, o modelo de organismo humano como receptáculo de estímulos, reativo ou passivo, sofre algumas modificações, entretanto, suas premissas básicas, continuaram as mesmas. Os chamados neo-behavioristas (K.S.LASHLEY, C.L. HULL, E.C. HOLMAN, E.R. GUTHRIE e B.F. SKINNER) continuaram direcionados para a tentativa de trazer o modelo de homem cada vez mais perto do modelo mecanicista do universo, apesar de apresentarem certa tolerância em relação aos depoimentos verbais e uma aceitação do conceito de variáveis intervenientes.

A posição teórica comportamentalista assumida por aqueles que compartilham da concepção mecanicista de mundo e de homem vai se refletir sobre a compreensão da relação entre desenvolvimento e aprendizagem e pode ser assim resumida:

- desenvolvimento e aprendizagem são processos idênticos decorrentes de um processo de condicionamento do meio;

- o desenvolvimento corresponde a uma mera seqüência de eventos previsíveis decorrentes da formação de hábitos;

- o sujeito do conhecimento é considerado passivo ou apenas reativo diante do conhecimento e do mundo.

Essas concepções vão se refletir na prática pedagógica (intencionalmente ou não). Em se tratando da relação educativa, o modelo mecanicista imprime marcas autoritárias: o educador (professor ou qualquer adulto que esteja em interação com a criança) torna-se revestido de uma autoridade absoluta, procurando ''passar'' os conteúdos, habilidades, hábitos e atitudes através de treinamento de funções e de métodos - explícita ou implicitamente - coercitivos (prêmios, castigos, ameaças). Diminui, assim, qualquer possibilidade de uma interação dialógica e da colaboração adulto-criança e das crianças entre si. Dessa forma, a relação educativa fica reduzida ao condicionamento da criança, enquanto mera repetidora de conteúdos a serem memorizados e reprodutora de comportamentos previamente selecionados, destituídos de qualquer valor ou significado real para a criança.

Na área da educação da criança pré-escolar podemos identificar a concepção mecanicista de desenvolvimento e aprendizagem nas propostas educacionais compensatórias e preparatórias para a Escola de 1o grau. Infelizmente, no Brasil, grande parte das propostas educativas (quando presentes) em creches, pré-escolas e em programas alternativos comunitários fundamentam-se em concepções mecanicistas.

Outra conseqüência dessa visão é a forma como são compreendidas as questões relativas aos ''problemas'' no desenvolvimento e aprendizagem da criança. Caso a criança não reaja ou responda às expectativas condicionadoras dos adultos, remete-se facilmente a culpa para ela, enquanto portadora de alguma deficiência que a que a impede de reproduzir o comportamento esperado.

2) O modelo organicista e sua influência sobre as concepções teóricas de desenvolvimento e aprendizagem

O modelo organicista utiliza como metáfora básica o organismo, o sistema vivo organizado. A atividade, e não mais os elementos (as peças da engrenagem do modelo mecanicista), é o que caracteriza, essencialmente, o organismo.

O modelo organicista determina uma nova vertente na epistemologia e na psicologia do desenvolvimento, enfatizando uma concepção de homem como organismo "ativo", ao contrário do organismo “reativo" e ''passivo'' do modelo mecanicista. O organismo ativo é agora a própria fonte das ações voltadas para o conhecimento do mundo, porquanto, este organismo não mais depende de uma força externa para desencadear uma série de ações conectadas mecanicamente.

A atividade espontânea e inerente designa o caráter essencial do organismo nessa perspectiva. A atividade consiste na transição contínua de um estado a outro, em uma sucessão incessante, em função de determinada finalidade (causa teleológica). O modelo organicista alinha-se na perspectiva funcionalista que sustenta que os processos mentais devem ser compreendidos em função de sua utilidade para o organismo e da sua adaptação ao meio.

Outra característica básica desse modelo é a visão holística do homem, ou seja, a representação do organismo como um todo organizado, com uma forma ou estrutura, onde o significado das partes depende do todo. A preocupação com os princípios de organização do todo e com os conceitos de estrutura e função passam a ter mais relevância do que as partes e elementos isolados.

Nessa perspectiva de homem como um sistema organizado e ativo, resulta que o conhecimento do mundo é o produto da interação entre o sujeito do saber e as coisas em si. Conseqüentemente, o desenvolvimento cognitivo é considerado como decorrente dos próprios esforços (individuais) do sujeito. Busca-se nas estruturas e funcionamento do organismo humano as explicações pelas quais o sujeito capta a realidade. Desse ponto de vista, quando mudam as estruturas psíquicas ocorre também uma mudança qualitativa no modo do homem conhecer o mundo (níveis ou estágios). Assim, enfatiza-se a importância dos processos cognitivos sobre os produtos do conhecimento.

A concepção organicista alinha-se na visão de mundo individualista, veiculando conceitos como ''dons'', 'talentos", "aptidões" e "maturidade" - ou seja, características individuais que determinam como o indivíduo atua sobre o mundo e constrói seu conhecimento.

A influência desse modelo determina a compreensão dos comportamentos ou conquistas do indivíduo como decorrentes de suas estruturas psíquicas. Por sua vez, as mudanças nessas estruturas são mudanças em níveis de organização ou de estágios. A experiência é vista como um valor de facilitação ou inibição do curso do desenvolvimento.

O principal referencial teórico da psicologia que se encontra em consonância com as concepções acima referidas é o interacionista-construtivista, sendo JEAN PIAGET seu principal representante.

PIAGET, um dos teóricos da Epistemologia Genética, empreende o estudo dos mecanismos e do processo de aumento do conhecimento. Seu foco de interesse é a análise do processo de transição dos vários estágios do conhecimento: dos considerados níveis "elementares" aos ''mais complexos''.

A posição teórica piagetiana pode ser considerada interacionista, pois se baseia na concepção de homem enquanto organismo ativo que está em constante interação como meio através de suas capacidades de incorporação de experiências a esquemas mentais já existentes e da formação de novos esquemas em função dos dados assimilados. Portanto, é a partir de seus próprios esquemas - formados ou a serem formados - que esse homem vai se adaptar ao meio. Assim, PIAGET postula dois mecanismos do organismo na sua interação com o meio:

- assimilação: incorporação de experiências a esquemas mentais já existentes, pela própria atividade do sujeito;

- acomodação: modificação do organismo que reage face aos dados novos assimilados, transformando os esquemas mentais.

Para se adaptar ao ambiente, o indivíduo tem que realizar constantes estados de equilíbrio entre a assimilação e a acomodação.

É possível comparar tal sistema de adaptação homem-ambiente até com a de um organismo simples como a ameba. A diferença em relação ao homem reside, apenas, no fato do organismo ameba não ter entre seus mecanismos de interação com o meio a capacidade intelectual. Esse exemplo, empregado por PIAGET, acaba por ressaltar o papel da atividade intelectual humana. Esta, entretanto, é concebida sob a ótica e o evolucionista. PIAGET não foi capaz de compreender o papel do histórico-social na formação do intelecto humano.

PIAGET postula uma construção evolucionária na relação sujeito com o meio externo. Logo, a inteligência não nasce totalmente acabada, mas é construída na interação com o meio (meio, porém, destituído de historicidade).

É importante ressaltar que a concepção piagetiana de interação com o meio é bastante restritiva, uma vez que é aplicável a qualquer organismo vivo carecendo de uma abordagem relativa ao papel desempenhado pelas interações sócio-culturais. Falta a essa abordagem – fundamentada no modelo organicista - a compreensão do homem enquanto ser social construído e marcado pelas suas experiências sociais e culturais. Em outras palavras: o termo interação é utilizado no referencial teórico piagetiano, tão somente, como interação entre o sujeito e o mundo físico, deixando de fora qualquer interação sujeito(s)/sujeito(s) em suas realidades sócio-culturais.

A posição teórica de PIAGET, no que se refere à relação entre desenvolvimento e aprendizagem, pode ser considerada, em termos gerais no seguinte modo:

- a aprendizagem está sempre subordinada (dependente) ao desenvolvimento;

- o sujeito do conhecimento é um sujeito ativo que produz os conhecimentos através de seus próprios esforços mentais.

A aprendizagem subordina-se, portanto, aos ritmos individuais de maturação e de desenvolvimento e aos esquemas mentais que cada indivíduo tem à sua disposição.

Os pressupostos dessa teoria apontam para uma prática pedagógica permissiva, pois deslocam o centro da relação pedagógica para o aluno, ficando o ensino submetido às "diferenças'' individuais, dependendo da maturidade e do interesse da criança.

Uma prática pedagógica dessa natureza, acaba por deixar o aluno ''entregue a si mesmo'', pois ignora que as atividades mentais do homem são socialmente constituídas, numa perspectiva histórica e cultural.

A concepção organicista vem exercendo influência decisiva sobre o desenvolvimento de novas práticas e métodos de ensino. No que se refere às práticas desenvolvidas na pré-escola a prioridade deixou de ser o preparo para a escola e passou a ser o desenvolvimento do interesse e da curiosidade da criança. O objetivo deixou de ser o preparo para a vida, mas passou a ser o de acompanhar a vida da criança sem inibi-la ou limitá-la.

No que se refere aos "problemas" que a criança apresenta no seu desenvolvimento e aprendizagem, estes deixaram de ser entendidos, em princípio, como “deficiência" (visão mecanicista ) e passaram a ser vistos como decorrentes da imaturidade. A ''imaturidade" é conseqüência da falta de estímulos e experiências que, por sua vez, podem retardar as mudanças nas estruturas psíquicas da criança.

Esse modelo explicativo além de continuar centrando a ''culpa'' dos "problemas" na criança estende a responsabilidade ao meio sócio-familiar, adequando-se, assim, à idéia de "privação cultural". A proposta piagetiana aliada às noções de "privação cultural", por sua vez, têm gerado uma série de iniciativas de educação pré-escolar de cunho compensatório para crianças de baixa renda.

Finalmente, é bom frisar que tanto as teorias como as práticas decorrentes da visão organicista do mundo de homem têm encontrado muita aceitação em função de serem bastante compatíveis com a ideologia individualista dominante.

3) A perspectiva histórico-social e sua influência sobre as concepções de desenvolvimento e aprendizagem

Ainda que não se possa definir uma representação metafórica de homem como nos modelos anteriores, tendo em vista ser, ainda, um modelo em construção, podemos considerar que numa perspectiva histórico-social o homem não é representado nem pela máquina nem pelo organismo (ser vivo), mas como ser social constituído intrinsecamente por relações histórico-sociais.

O aspecto social desse modelo refere-se ao modo como os homens estabelecem relações entre si e com o mundo. Todas essas relações constituem as relações sociais que são produzidas pelos próprios homens em função de determinadas condições históricas.

Somente a partir das relações sociais podemos compreender o que, como e por que os homens agem, pensam, atribuem, conservam ou transformam o sentido das suas relações com o meio, instauram um determinado tipo de sociabilidade, produzem idéias um representações pelas quais procuram explicar e compreender o mundo, a sociedade e suas próprias relações sociais.

Para compreender o homem é necessário compreender a origem das relações sociais enquanto processos históricos.

O aspecto histórico, entretanto, não remonta a uma visão de história como sucessão de fatos no tempo ou como progresso das idéias, mas ao modo como homens concretos em condições objetivas criam os instrumentos e as formas culturais da sua existência social, reproduzindo e transformando o social, o econômico, o político e o cultural.

O modelo histórico-social estabelece uma nova compreensão da relação cognitiva sujeito-objeto. Enquanto o modelo mecanicista enfatiza o objeto (empirismo) e o modelo organicista privilegia o sujeito (idealismo), ele, ao contrário, propõe o princípio da não predominância de um sobre o outro, ou seja, o princípio da interação entre sujeito-objeto (perspectiva dialética).

Ao conceber o homem como um conjunto de “relações sociais” - e não como uma máquina (mecanicismo) e nem como um mero representante da sua espécie biológica, - "homo sapiens" (organicismo) – o modelo histórico-social instaura uma nova concepção do processo de desenvolvimento e aprendizagem, vista como uma construção social. Na concepção histórico-social, admite-se que o homem constrói o conhecimento partir da interação ativa com o ambiente. O conceito de interação, entretanto, não é o mesmo utilizado nas teorias do modelo organicista que a consideram como fruto da ação do sujeito sobre os objetos e o meio imediato, ou seja, desprovidos da sua historicidade e descontextualizados sócio-culturalmente.

O modelo histórico-social influenciou o enfoque do psicólogo russo L.S. VYGOTSKY, denominado, na psicologia, de sócio-histórico. Diferentemente da perspectiva piagetiana - que vê o sujeito do conhecimento de forma individual e descontextualizada e o desenvolvimento cognitivo como resultado dos próprios esforços mentais desse sujeito - VYGOTSKY considera que os processos psíquicos do homem são constituídos a partir de relações interpessoais internalizadas.

A posição teórica de VYGOTSKY em relação à origem social dos processos mentais superiores pode ser reconhecida na importância do papel que ele atribui à linguagem no desenvolvimento desses processos. A linguagem se adquire, primeiramente, nas relações interpessoais, ou seja, na sociedade. Gradualmente, a linguagem vai sendo internalizada e se transformam em instrumento do pensamento.

Com a aprendizagem da linguagem, o pensamento da criança é transformado radicalmente. No que se refere à linguagem verbal, a partir do momento em que ela entra em cena, o pensamento da criança torna-se, progressivamente, verbal e sua fala racional. O surgimento do pensamento verbal não se dá de forma mecânica. A internalização da linguagem e o desenvolvimento do pensamento verbal ocorrem através de um longo processo de mudanças. Essas mudanças alteram completamente o modo do sujeito operar a realidade.

O pensamento tipicamente humano é constituído pela linguagem. Nesse contexto, a linguagem tem as seguintes funções:

- função de organizar a inteligência;

- função de planejamento das ações e solução de problemas;

- função de regular os comportamentos;

- função de comunicação e expressar do pensamento.

Fica, assim, explícita a influência das experiências sócio-culturais no desenvolvimento dos processos psíquicos superiores (pensamento, atenção voluntária, memória, raciocínio etc).

Para VYGOTSKY a relação entre os processos de desenvolvimento e aprendizagem não é vista como homóloga (behaviorismo) e nem é compreendida como um processo que subordina a aprendizagem ao desenvolvimento (PIAGET). Para ele os processos de desenvolvimento e aprendizagem constituem um processo unitário. Tais processos influenciam-se mutuamente, sendo a aprendizagem a base histórico-social do desenvolvimento.

Os conceitos formulados por VYGOTSKY sobre as relações desenvolvimento e aprendizagem são explicitados na conceituação das seguintes categorias: desenvolvimento real, zona de desenvolvimento proximal e desenvolvimento potencial.

O desenvolvimento real indica o nível de desenvolvimento das funções mentais da criança, caracterizado pelo que ela consegue realizar por si própria, sem auxílio dos adultos ou de crianças mais experientes, e o que caracteriza retrospectivamente o nível de desenvolvimento alcançado.

O desenvolvimento potencial é tudo aquilo que uma criança ainda não consegue realizar de forma independente, mas que realiza quando em colaboração com outras pessoas mais experientes.

A zona de desenvolvimento proximal indica a distância entre o desenvolvimento real e o desenvolvimento potencial. Para a criança atingir o desenvolvimento potencial é necessário que se instaure um processo de colaboração e ajuda mútua com os outros sujeitos sociais, através de ações partilhadas na zona de desenvolvimento proximal.

Ao definir o conceito de zona de desenvolvimento proximal, VYGOTSKY caracteriza o desenvolvimento prospectivamente. Essa conceituação traz implicações decisivas para a prática pedagógica, pois enfatiza que sob a orientação do adulto ou da colaboração de outros companheiros mais experientes, a criança soluciona problemas que não teria condições de realizar sozinha.

A concepção de VYGOTSKY sobre a relação entre desenvolvimento e aprendizagem introduz questões que tem implicações pedagógicas no trabalho com a criança pré-escolar e escolar:

- aquilo que a criança realiza hoje com o auxílio do adulto ou de outras crianças realizará sozinha amanhã;

- os processos de desenvolvimento não são coincidentes com os da aprendizagem, entretanto, o desenvolvimento progride de forma mais lenta e atrás do processo de aprendizagem. É através da aprendizagem (significativa e não mecânica) que resulta o desenvolvimento mental, especificamente humano e culturalmente organizado.

A criança, ao longo de suas vivências, dispõe da colaboração e ajuda mútua de adultos e de outras crianças. É nesse espaço de interação e interlocução que qualquer ação educativa deve se constituir, viabilizando a aprendizagem de novos conhecimentos e habilidades, a partir de motivos sociais significativos, localizados historicamente, enquanto referência para as crianças.

Numa perspectiva histórico-social, qualquer prática pedagógica deve se configurar num espaço de interação e interlocução, o aluno é concebido não apenas como um sujeito ativo, mas também interativo, ou seja, constrói o seu conhecimento na e pela ação compartilhada com outros sujeitos.

A relação pedagógica é centrada tanto no professor quanto nos alunos e na interação e ajuda mútua dos alunos entre si. É na atividade conjunta e no esforço partilhado que o aluno se apropria das habilidades e conhecimentos culturais e escolares.

Nessa direção o trabalho educacional com a criança em idade pré-escolar não enfatiza a transmissão mecânica de conteúdos e habilidades (perspectiva preparatória) e nem apenas o processo (pré-escola com um fim em si mesma), mas valoriza tanto o conteúdo como o processo, co-construídos de forma significativa, e tendo como referência o entorno sócio-cultural da criança.

Tomar como referência o sócio-cultural não significa instituir urna prática pedagógica diferenciada, menos exigente, para crianças de baixa renda. Significa valorizar os conhecimentos e as habilidades sócio-culturais do aluno transmitir-lhe novos conhecimentos científicos sobre o mundo físico e social.

Outro aspecto fundamental decorrente da concepção histórico-social do desenvolvimento e aprendizagem diz respeito à compreensão dos "problemas" que as crianças enfrentam no seu processo de desenvolvimento. Esses problemas não serão analisados a partir da ênfase individual, que endereça a ''culpa'' à criança, mas a partir do próprio contexto sócio-cultural. Por exemplo: se a criança em seu meio sócio-cultural é capaz de utilizar a linguagem e os instrumentos conforme as características do seu grupo e não consegue aprender os conhecimentos escolares é porque o trabalho educacional não está organizado para atender a diversidade social e cultural das crianças e, assim, para construir com elas novos conhecimentos e habilidades.

Considerações finais

A ênfase desse texto foi centrada na questão do desenvolvimento e aprendizagem da criança. Para abordar as diferentes teorias sobre desenvolvimento e aprendizagem e refletir sobre as suas repercussões na prática pedagógica, procuramos ultrapassar os limites geralmente impostos pelos debates que se situam, exclusivamente, em torno dos referenciais teóricos. Para tal, tomamos como referência os modelos que inspiram e sustentam tais teorias, refletindo sobre os confrontos que se estabelecem entre eles. Buscamos, também, demarcar o modelo e a teoria que nos parecem mais adequados ao desenvolvimento de uma proposta pedagógica promotora (e não imobilizadora) do processo de desenvolvimento e aprendizagem da criança.

Quanto às propostas voltadas para a criança pré-escolar, no Brasil, enfatizamos que elas tem sido assistemáticas, desiguais e insuficientes para demarcar seu caráter educativo, contribuindo para um crescente processo de reprodução da seletividade social. Os fatores responsáveis por essa grave situação encontram-se, prioritariamente, na esfera sócio-econômica e política. O enfrentamento dessas causas implicam um amplo processo de discussão entre o Estado e a sociedade civil acerca das perspectivas que devem orientar o trabalho voltado para a infância no País.

Esperamos poder contribuir com discussões de caráter teórico-prático para a superação da perspectiva assistencialista e excludente presente nas atuais propostas de atenção à criança em idade pré-escolar. Para tanto, é preciso situar, também, a discussão no espaço político-ideológico, considerando a criança enquanto cidadã.