É POSSÍVEL MUDAR
Antônio Carlos Gomes da Costa
Palavra inicial
I. É possível mudar
II. O novo direito da infância e da juventude no Brasil
III. A política de atendimento
IV. Família, a base de tudo
V. Por onde começar?
VI. E os recursos?
VII. Poder participativo - A nova esperança ética e política
VIII. União - Estado - Município - Uma nova divisão do trabalho social
IX. O Município e a mobilização social em favor da criança e do adolescente
ANEXOS
Palavra
inicial
"A lei há de contribuir para a mudança de mentalidade na sociedade brasileira, habituada, infelizmente, a se omitir diante das injustiças de que são vítimas as crianças e os adolescentes. O respeito à lei com a opressão e o abandono dêem lugar à justiça, à solidariedade e ao Amor". (D. Luciano Mendes de Almeida, Presidente da CNBB).
Este livro se destina aos novos dirigentes municipais de políticas públicas voltadas para o atendimento dos direitos da criança, e do adolescente, da família e da comunidade. Não se trata de um texto técnico, ou seja, não estamos diante de uma obra para especializadas. Longe disso, seu propósito é introduzir uma nova visão e um jeito novo de se fazer política social no município.
Entendemos como dirigentes municipais de políticas públicas, em primeiro lugar, os prefeitos, mas não apenas eles. Os secretários municipais, principalmente os da área social e de planejamento, os vereadores, enquanto legisladores e fiscalizadores da ação do Executivo municipal, os diretores de departamentos e de outros órgãos com atuação nesta área, assim como os presidentes e demais membros dos Conselhos Municipais e Tutelares dos Direitos da Criança e do Adolescente e também de outros Conselhos da área social como os de Saúde, Educação, Cultura e Esporte, sem excluir aquelas primeiras-damas com encargos e responsabilidades no campo da atenção à infância, à família e à comunidade.
A preocupação básica deste trabalho é demonstrar que é possível mudar para melhor a situação das crianças e adolescentes, que nas periferias urbanas, nas áreas centrais de cidade de grande e médio porte e nas zonas empobrecidas subsistem sem condições mínimas de bem-estar e de dignidade.
Para que isso aconteça não é necessário esperar que o País supere o quadro de dificuldades em que atualmente nos encontramos. Ao contrário, é justamente nos momentos de crise que os homens de verdadeiro espírito público são convocados pela sua consciência a rever prioridades e a enfatizar as ações capazes de atender aos direitos mais elementares e básicos dos setores mais frágeis, mais vulneráveis da população.
O ponto de partida para esse tipo de mudança é, antes de tudo, a adoção de um novo enfoque, de uma nova maneira de olhar os problemas do município, revendo hierarquias de decisão consagradas pelo tempo e pelos hábitos políticos do passado, que sempre relegaram o atendimento da população infanto-juvenil a um lugar secundário nas estratégias de governo. Na base desse tipo de atitude, vamos sempre encontrar o velho e surrado refrão, tantas vezes repetido nos bastidores do poder: criança não vota.
Foi a predominância deste tipo de mentalidade que fez com que o atendimento dispensado pelo Poder Público à nossa população infanto-juvenil esteja, hoje entre os piores do mundo. Existem muitos países com renda per capta bem menor que a brasileira, dispensando às suas crianças e adolescentes um tratamento mais humano, mais digno, mais barato e mais eficaz.
A verdade é que, ao longo de quase toda nossa evolução histórica, e, principalmente, durante as últimas décadas de regime autoritário, nossas lideranças públicas perderam de vista uma verdade simples, concreta, elementar: o maior patrimônio de uma nação é o seu povo e o maior patrimônio de um povo são suas crianças e os seus jovens.
Isto quer dizer que o maior patrimônio de um município não são os seus prédios, as suas praças, os seus monumentos, a sua malha viária, a sua indústria, o seu comércio, a sua agricultura. Tudo isso é de suma importância, na medida, e apenas na medida, em que os recursos tributários e outros decorrentes dessa estrutura estejam colocados a serviço da vida, do bem-estar e da dignidade do conjunto da população, a começar pelas crianças e pelos adolescentes.
Nunca se falou tanto de ética na política, como nos últimos meses. A ética, no entanto, tem sido entendida apenas como sinônimo de honestidade. Essa maneira de ver não traduz a inteira verdade dos fatos. Ser ético não é apenas respeitar o dinheiro público, isto é, não roubar. Ser ético, enfatiza o novo Governo, é mostrar-se capaz de, numa conjuntura de dificuldades e de escassez de recursos, ter coragem de priorizar os interesses dos segmentos mais frágeis e vulneráveis da população, em detrimento daqueles setores dotados de maior poder de pressão pessoal, econômica e política sobre os responsáveis pelas políticas públicas.
Norberto Bobbio, o grande pensador e político italiano, afirmou certa vez que tudo é política, mas política não é tudo, ou seja, acima da política deve estar a ética, a limitar as decisões e os gestos dos que lutam para conquistar, manter e ampliar o poder político, dentro das regras do jogo democrático, num Estado de Direito.
No momento em que o Brasil começa e emergir de uma das mais graves crises de sua história, com uma inegável vitória das instituições democráticas, nada mais ético do que priorizar o atendimento, a promoção e a defesa dos direitos da criança e do adolescente. Este, não resta a menor dúvida, é o melhor caminho para esta Nação recuperar o seu autoconceito, a sua auto-estima e a sua autoconfiança, tão desgastadas nos últimos anos.
Nos próximos capítulos, procuraremos mostrar como isto pode ser feito. Conforme veremos, as bases legais, os meios institucionais, os recursos técnicos e até mesmo os mecanismos financeiros para a transformação do quadro atual já existem e estão à disposição dos novos dirigentes municipais. Tudo isso, porém, não funciona sem a imprescindível vontade política dos dirigentes de assumir um compromisso de luta e trabalho em favor da população infanto-juvenil.
O desafio, nesta década final do século XX, é fazer do Brasil um lugar onde cada criança tenha direito de ser criança e cada adolescente tenha condições de olhar sem medo para o futuro. Os dirigentes municipais são uma peça fundamental para que esta meta seja efetiva e plenamente atingida.
Belo Horizonte, março de 1993.
Antônio Carlos Gomes da Costa
1) Este não é um livro para especialistas, mas para todas as pessoas e grupos, que atuam em favor da criança e do adolescente na esfera municipal.
2) Os momentos de dificuldades econômicas devem ser um tempo de avanço, e não de recuo nos programas em favor da criança, do adolescente e da família.
3) Muito mais do que honestidade, a ética na política significa assumir e sustentar a priorização dos interesses dos segmentos mais frágeis e vulneráveis da população.
4) O maior patrimônio de um povo é a sua infância e a sua juventude. Um povo que não respeita suas crianças é incapaz de respeitar a si mesmo e de impor respeito na comunidade internacional.
5) As bases legais, os meios institucionais, os recursos técnicos e os mecanismos financeiros já existem e estão à disposição dos novos dirigentes municipais. Sem vontade e compromisso políticos, no entanto, tudo o que foi conquistado até aqui não resultará em nada de bom, de verdadeiro e de útil para a população infanto-juvenil.
Capítulo I
É possível mudar
"Para se fazer amanhã o impossível de hoje, é preciso fazer hoje o possível de hoje". (Paulo Freire)
No Brasil, morrem por desnutrição e doenças evitáveis 64 crianças de cada mil nascidas vivas. Na região Norte, morrem 313 mulheres em cada mil partos. Mais de 30% das crianças menores de 5 anos estão gravemente desnutridas e 60% da nossa população infantil vive em casas sem esgoto. De cada mil crianças matriculadas na primeira série do 1º grau, 550 na cidade e 885 no campo não terminam a 8ª série. De cada 100 crianças empregadas, 75 não têm carteira assinada, ou seja, estão privadas de direitos trabalhistas e previdenciários.
Todos os anos milhares de crianças e adolescentes, que fazem das ruas seu espaço de luta pela sobrevivência e, até mesmo, de moradia, são vítimas de abuso, violência, discriminação, crueldade e opressão, práticas que também atingem uma parcela considerável da população infanto-juvenil, que subsiste nos bolsões de miserabilidade das periferias urbanas, sem condições mínimas de bem-estar e de dignidade. Essa violência, freqüentemente, tem assumido a forma do extermínio sistemático, provocando manifestações de indignação e repulsa por parte de importantes segmentos da comunidade internacional.
Esses números, amplamente divulgados pelo Pacto pela Infância, são à primeira vista, assustadores, imolizadores da vontade político-social transformadora, geradores de inércia e perplexidade. É nesse campo que floresce o discurso político baseado no binômio diagnóstico-denúncia, duas condições necessárias, mas não suficientes para que as mudanças na realidade realmente aconteçam.
De fato, muitos políticos se acostumaram a esgrimir esses números como armas de palanque, de seminários, de congressos e de entrevistas no Brasil e no exterior, prática comum entre personalidades de ambos os extremos do espectro ideológico.
Certos políticos conservadores, um número, aliás, nada desprezível deles, usam esses dados para associar pobreza e delinqüência, miséria e periculosidade, privação e violência. Contrários que são a qualquer tipo de política social de natureza redistributiva e autopromotora, sua alternativas para o enfrentamento da crise batem sempre nas mesmas teclas: controle radical da natalidade entre a população de baixa renda, aumento dos efetivos policiais, transgressão sistemática das garantias individuais, através de apreensões e prisões cautelares, abaixamento da idade de inimputabilidade penal de 18 para 16 anos e até mesmo para 14 anos e, culminando, a adoção da pena de morte, encarada como mecanismo pedagógico-social dissuasor da violência e da criminalidade inerentes à população destituída de bens e direitos.
Já uma parcela considerável dos políticos que se dizem contrários ao conservadorismo limita-se compulsivamente a demonstrar o caráter estrutural desses problemas, associando-os ao modelo de desenvolvimento injusto, excludente, hostil à emancipação econômica, à promoção social e à libertação cultural das massas espoliadas, implantado no período autoritário e que, em muitos aspectos, continua ainda intocado nesta fase de soerguimento democrático da vida nacional. A solução efetiva, portanto, desses problemas fica relegada para o depois de mudanças estruturais, que ninguém sabe quando virão, se é que virão. Para o momento, a atitude articulada e mais conseqüente diante dessa situação é, no entendimento desses políticos, aprofundar o debate e aumentar as denúncias, com vistas a acelerar o processo de transformação estrutural da realidade.
É certo, porém, que tanto num lado como no outro do espectro ideológico existem lideranças de bom senso, que não pactuam com nenhuma das duas linhas de atuação descritas nos parágrafos anteriores. São pessoas que têm os pés no chão e a cabeça no lugar. São lideranças capazes de exercitar a imaginação política criadora, de mobilizar vontades, de articular recursos e desenhar cenários capazes de fazer convergir as formas sociais na direção de projetos coletivos generosos e amplos no rumo de mudanças concretas nas condições de vida da população.
Em recente entrevista, falando a respeito das crianças e adolescentes que fazem das ruas seu espaço de luta pela sobrevivência e até mesmo de moradia, cujo número é freqüentemente superdimensionado nos discursos políticos, o ex-prefeito Jaime Lerner, de Curitiba, fez uma interessante observação:
"Tudo isso é uma coisa que nos leva à perplexidade e a uma impossibilidade de mudar. Em geral, serve de desculpa para aquelas pessoas que não querem fazer transformações. Eu estou cansado deste discurso que nos coloca como um País condenado, como se não tivesse solução. Por que não tentar decompor esses dados nas cinco mil cidades brasileiras? Se cada cidade fizer a sua parte muito mais fácil".
O que diferencia, afinal, os políticos que fazem dos que não fazem, em termos de atendimento, promoção e defesa dos direitos da população infanto-juvenil em seus municípios?
Depois de muitos anos de trabalho nesta área, atuando nos mais diversos níveis e nas mais diversas funções, posso responder, sem nenhuma dúvida, que é a diferença de enfoque entre as diversas lideranças.
As políticas municipais vitoriosas apresentam, em sua estrutura e seu funcionamento, três componentes de maior importância: descentralização, participação e mobilização.
Descentralização: Entendida não como o município assumir sozinho um determinado problema, eximindo o Estado e a União de qualquer responsabilidade em relação mesmo. A municipalização significa o governo local assumir um papel de protagonista central na formulação e implementação da política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente, sem, contudo, abrir mão do apoio técnico e financeiro dos níveis supramunicipais de governo, de acordo, aliás, com o que determina a Constituição Federal.
Participação: Hoje, a participação da população, através de suas organizações representativas, na formulação das políticas públicas e no controle das ações governamentais em todos os níveis já não é uma deferência do Poder Executivo às entidades com atuação expressiva e reconhecida na área do atendimento aos direitos da criança e do adolescente.
A participação é um direito, como veremos mais adiante, assegurado pela Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Há prefeitos que vêem no exercício desse direito uma perda de seu poder para os Conselhos. Outros, mais lúcidos e coerentes em seu compromisso democrático, no entanto, percebem no exercício do poder participativo pelas entidades representativas da população, institucionalizado nos Conselhos, um elemento potencializador da força de suas administrações, na medida em que sua atuação se traduz no aumento do compromisso do conjunto da sociedade com as políticas formuladas, assegurando ainda mecanismos de maior transparência, vigilância e controle sobre as ações em curso.
Mobilização: É o terceiro componente essencial das políticas bem sucedidas. A mobilização se revela pela capacidade das lideranças públicas, privadas, religiosas e comunitárias de sensibilizar, conscientizar, organizar e comprometer na ação o maior número possível de segmentos, instituições e pessoas do município com a consecução dos objetivos e metas das políticas públicas, entendidas como ações conjuntas, de responsabilidade compartilhada pelo Governo e pela sociedade.
Voltaremos, nos próximos capítulos, a falar de descentralização, participação e mobilização. Na verdade, esse trinômio será o pano de fundo de todos os demais capítulos, pois, em nosso entendimento, aí que se localiza a chave para as mudanças bem sucedidas na política social do município.
Para o momento, é importante deixar bem clara a importância vital desse tripé, que pode ser visualizado e sublinhado na ilustração abaixo e nas aclarações que lhe seguem:
1) Descentralização: O município como fonte de iniciativa e liberdade no diagnóstico, equacionamento e implementação da solução para os problemas do quotidiano da população, como o atendimento aos direitos da população, como o atendimento aos direitos da população infanto-juvenil. O Estado e a União devem coadjuvar, e não tutelar, o poder local.
2) Participação: A população, através de suas organizações representativas, atua juntamente com o Governo no enfrentamento dos problemas sociais, não mais apenas através da doação de dinheiro, bens ou trabalho voluntário para causas sociais, mas ajudando a desenhar (formular) políticas e programas e controles o gasto social público e a quantidade e qualidade dos serviços prestados à população infanto-juvenil.
3) Mobilização: Este é o processo através do qual as forças vivas do Município são chamadas a se engajar no esforço coletivo de enfrentamento dos problemas que afetam o seu quotidiano. Sem mobilização, as ações de Governo, principalmente aquelas de natureza social, tornam-se frágeis, personalizadas, inconsistentes e dificilmente transcendem os limites da gestão de uma determinada equipe.
Os números que abrem esse capítulo são, de fato, grave e dramáticos. Eles, todavia, podem dividir-se em milhares de problemas em nível municipal, a partir de uma decisão política dos prefeitos e demais dirigentes locais, empossados neste início de 1993. Basta tomar a decisão de atacar os problemas de frente abandonando, de vez, as facilidades preguiçosas das generalidades e do pessimismo que, tantas vezes, entre nós, primam em se disfarçar de lucidez e espírito crítico. O desafio é fazer das dificuldades um combustível para a ação transformadora, e não um álibi para a inércia e o descompromisso.
1) Os números que expressam a situação das crianças e do adolescente no Brasil são graves e dramáticos. Isto, contudo, não justifica que nos detenhamos no binômio diagnóstico-denúncia dessa realidade, embora reconhecendo que está é uma fase necessária e até mesmo saudável dos processos de mudança social.
2) Em todas as posições do espectro político-ideológico, vamos encontrar dois tipos de liderança: as que realizam e as que não realizam ações concretas em favor da infância e da juventude.
3) Independente do credo político de seus responsáveis, as ações que dão certo apoiam-se quase sempre no mesmo tripé: Descentralização - Participação - Mobilização.
4) A descentralização se baseia numa divisão de trabalho social entre a União, o Estado e o Município, onde este responde pela formulação, organização e implementação das ações, sem abrir mão do apoio técnico-financeiro dos níveis supramunicipais de governo sempre que isto se revelar necessário.
5) A participação, significando o compartilhamento de responsabilidades entre o Poder Público e entidades não-governamentais na formulação das políticas, assegurados ainda a transparência e o controle das ações do Governo por parte das organizações representativas da população.
6) A mobilização implica a sensibilização, conscientização, organização e comprometimento ativo dos diversos segmentos da vida municipal no trabalho e na luta em favor dos direitos da infância e da juventude.
"Pensado por milhares de cabeças, escrito por milhares de mãos, este Estatuto recebe subsídios de inúmeras pessoas e instituições. Portanto, ele não tem danos. Pertence às crianças e adolescentes deste País. Ele haverá de ser, estamos certos, um instrumento fundamental de habilitação do Brasil para o comprimento de seu grande destino”. (Senador Ronan Tito).
1. A
Constituição
Os anos setenta foram considerados a década emblemática do eclipse do Estado Democrático de Direito na vida brasileira, embora nesse período a economia tenha exibido um desempenho que levou muitos a crerem até mesmo num "milagre brasileiro".
Os anos oitenta, ao contrário, se por um lado são percebidos como o período de avanço gradual do País em direção à democracia, por outro são considerados a década perdida em termos econômicos. Inflação, recessão, estagflação, desemprego e miséria são os termos mais correntes no vocabulário desse período áspero de nossa evolução histórica.
Para os direitos da Criança e do Adolescente, porém, a década de oitenta foi decisiva. Ela, efetivamente, foi o palco do surgimento e do desenvolvimento de uma nova consciência e de uma nova postura em relação à população infanto-juvenil, de um modo geral, e, particularmente, do amplo segmento desse contingente que se encontra em situação de risco pessoal e social.
Esta é uma tarefa não apenas deste ou daquele movimento ou entidade. Para conseguir colocar os direitos da criança e do adolescente na Carta Constitucional, tornava-se necessário começar a trabalhar, antes mesmo das eleições dos parlamentares constituintes, no sentido de levar os candidatos a assumirem compromissos públicos com a causa dos direitos da infância e da juventude.
Nesta nova etapa da luta política pelos direitos da criança e do adolescente, os programas envolvidos são mais numerosos com identidade ideológica e composição social as mais diversas; o compromisso político, no entanto, com a promoção e defesa dos direitos de infância e da juventude é o mesmo em todos eles.
Nesta fase destacam-se:
- a Frente Nacional de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescente;
- a Pastoral do Menor da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil);
- o Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua;
- a Comissão Nacional Criança e Constituinte.
Em setembro de 1986, foi assinada a Portaria Interministerial 449, criando a Comissão Nacional Criança e Constituinte. Esta articulação do setor público federal envolvia os Ministérios da Educação, Saúde, Previdência e Assistência Social, Justiça, Trabalho e Planejamento. Em novembro do mesmo ano, o UNICEF assinou com o Ministério da Educação um termo de Acordo de Cooperação Técnica Financeira, assegurando assim a sua efetiva participação no processo de mudanças no panorama legal que ocorreria nos anos seguintes.
A Comissão Nacional Criança e Constituinte realiza um amplo processo de sensibilização, conscientização e mobilização da opinião pública e dos constituintes: Encontros Nacionais, debates em diversos Estados, ampla difusão de mensagens nos meios de comunicação, eventos envolvendo milhares de crianças em frente ao Congresso Nacional, distribuição de panfletos e abordagem pessoal aos parlamentares constituintes, participação dos membros da Comissão nas audiências públicas dos grupos de trabalho responsáveis pelas diversas áreas temáticas do texto constitucional, carta de reivindicações contendo mais de 1,4 milhões de assinaturas de crianças e adolescentes, exigindo dos parlamentares constituintes a introdução dos seus direitos na Nova Carta.
A iniciativa privada participou também deste esforço nacional. As redes de televisão cederam espaços para divulgação de mensagens. O mesmo fizeram as emissoras de rádio e os jornais. Estima-se que nesta fase o aporte em termo de cessão de espaços nos meios de comunicação superou a casa de US$ 1,8 milhões, conforme a publicação "Acerto de Contas com o Futuro", do Conselho Nacional de Propaganda, órgão de classe do empresariado desta área, cuja contribuição foi decisiva tanto no planejamento, como na execução e na articulação de patrocínio para as atividades de comunicação e mobilização social desenvolvidas neste período.
Duas emendas de iniciativa popular, perfazendo mais de duzentas mil assinaturas de eleitores, foram apresentadas à Assembléia Nacional Constituinte: "Criança e Constituinte" e "Criança - Prioridade Nacional". Seus textos foram fundidos e acabaram entrando no corpo da Constituição com a expressiva maioria de 435 votos a favor e apenas 8 contra.
O caput do artigo 227 introduz na Constituição brasileira o enfoque e a substância básica da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, texto cujo projeto já era conhecido no Brasil quando da elaboração da Carta Constitucional. Assim, em 5 de outubro de 1988, o Brasil incorpora em sua Carta Magna os elementos essenciais de uma Convenção Internacional, que só seria aprovada em 20 de novembro de 1989. Isto ocorreu basicamente em razão da força, da habilidade, da resolução e do compromisso do movimento social que se forjou em torno dos direitos da criança e do adolescente.
2. O Estatuto
da Criança e do Adolescente
O Estatuto da Criança e do Adolescente foi criado para regulamentar as conquistas em favor da infância e da juventude, obtidas na Carta Constitucional de 5 de outubro de 1988. Estas conquistas resultaram de um amplo movimento de mobilização e organização social que tomou a forma de duas emendas populares apresentadas à Assembléia Nacional Constituinte com as assinaturas de mais de duzentos mil cidadãos adultos e de 1 milhão e 400 mil crianças e adolescentes.
A fusão dos textos das emendas Criança e Adolescente e Criança - Prioridade Nacional resultou nos artigos 204 e 227 da atual Constituição brasileira, um elenco inédito de inovações em favor da infância e da juventude do Brasil.
Vale a pena citar aqui o caput do artigo 227 do Texto Constitucional. Ele elenca um amplo conjunto de direitos e constitui-se objetivamente no elo de ligação entre a Constituição Federal e a Convenção Internacional dos direitos da Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1989, ano do 30º aniversário da Declaração Universal dos Direitos da Criança.
A verdade é que os movimentos e entidades de promoção e defesa de direitos, que se mobilizam em favor de crianças e adolescentes, já conheciam o projeto de Convenção e se empenharam em introduzir o conteúdo e o enfoque da Convenção Internacional na Constituição do Brasil.
O caput do artigo 227 manifesta essa postura do movimento social e do legislador constituinte quando estabelece que:
"É dever da família, da sociedade e do Estatuto assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito:
- à vida;
- à saúde;
- à alimentação;
- à educação;
- ao lazer;
- à profissionalização;
- à cultura;
- à dignidade;
- ao respeito;
- à liberdade;
- à convivência familiar ou comunitária.
Além de colocá-los a salvo de toda forma de:
- negligência;
- discriminação;
- exploração;
- violência;
- crueldade;
- opressão".
"O Estatuto da Criança e do Adolescente é a lei que concretiza e expressa os novos direitos da população infanto-juvenil brasileira. Seu caráter radicalmente inovador representa uma extraordinária ruptura com a tradição nacional e latino-americana neste campo. Ele inova em termos de concepção geral e de processo de elaboração”.
De fato a concepção sustentadora do Estatuto é a chamada Doutrina da Proteção Integral, defendida pela ONU com base na Declaração Universal dos Direitos da Criança. Esta doutrina afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadoras da continuidade do seu povo, da sua família e da espécie humana e o reconhecimento de sua vulnerabilidade, o que torna as crianças e os adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas específicas para o atendimento, a promoção e a defesa de seus direitos.
Quanto à forma de sua elaboração, a nova lei rompeu de modo visceral com os métodos e processos de elaboração legislativa que vigoram há séculos em nosso País. Não é nenhum exagero dizer que literalmente, trata-se de uma lei pensada por milhares de cabeças e escritas por milhares de mãos.
De fato, dezenas de movimentos e entidades aglutinaram-se no Fórum DCA (Fórum Nacional de Entidades Não-Governamentais de Defesa das Crianças e Adolescentes) para coordenar a elaboração e lutar pela aprovação da nova lei, apontada, desde o princípio, como a "Constituição das Crianças e dos Adolescentes do Brasil".
Entre essas entidades, tiveram especial destaque o Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua, a Pastoral do Menor da CNBB, a Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, a Articulação Nacional dos Centros de Defesa de Direitos, a Coordenação dos Núcleos de Estudo ligados às universidades, a Sociedade Brasileira de Pediatria, a Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência (ABRAPIA) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
No campo governamental, os dirigentes e técnicos ligados à articulação Criança e Constituinte desempenharam também um importante papel nesta fase. É de fundamental importância ressaltar o protagonismo político social do Fórum Nacional de Dirigentes Estaduais de Políticas para a Criança e o Adolescente (FONACRIAD). Esta articulação de lideranças do setor público desempenhou um significativo papel na mobilização dos Governos das unidades federadas e das bancadas dos Estados nas duas Casas do Congresso Nacional.
Cabe ainda ressaltar o papel aglutinador da Frente Parlamentar pelos Direitos da Criança, uma articulação de deputados e senadores de todos os partidos, que possibilitou que se imprimisse à luta pelos novos direitos da criança uma dimensão consensual, situando-a acima das divergências ideológicas e partidárias que dividem os homens públicos.
Tal enfoque permitiu que, na Constituinte, o capítulo dos Direitos das Crianças e Adolescentes fosse aprovado com a expressiva maioria de 435 votos a favor e apenas 8 contra. Quando da votação do Estatuto, nas Casas do Congresso Nacional, o fenômeno se repetiu. A aprovação se deu por votação unânime das lideranças de todos os partidos representados no Parlamento.
Quanto às mudanças introduzidas pelo Estatuto é necessário salientar que elas se dividem em três grandes grupos:
a - Mudanças de conteúdo;
b - Mudanças de método;
c - Mudanças de gestão;
a) Mudança de
conteúdo.
O Estatuto da Criança e do Adolescente acrescenta conteúdos novos ao elenco dos direitos da infância e da juventude em nosso País. Essas mudanças abrangem o campo dos direitos individuais (vida, liberdade e dignidade) e o campo dos direitos coletivos (econômicos, sociais e culturais).
Nessa matéria, como já tivemos oportunidade de mencionar, a Constituição brasileira incorporou integralmente as conquistas em favor da criança, contidas no Projeto de Convenção Internacional, antes mesmo dele ser aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989.
Além disso, durante o processo de elaboração do Estatuto, foram também considerados e serviram de referência à sua elaboração outros instrumentos da Normativa Internacional como: as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da justiça Juvenil; o Projeto de Regras Mínimas para os Jovens Privados de Liberdade; a Convenção 138 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), e outros documentos internacionais sobre a matéria.
O mais importante, no entanto, é que esta não foi uma assimilação sem grandeza, ou seja, uma mera cópia dos dispositivos da Normativa Internacional. Ao contrário, cada elemento incorporado teve de passar pelo crivo da experiência dos representantes do movimento social, das políticas públicas e do mundo jurídico, envolvidos na elaboração da nova lei.
Longe de limitar-se à agregação de novos direitos à situação jurídica anterior da criança e do adolescente, o Estatuto promoveu uma verdadeira mudança de paradigma, superando a ultrapassada doutrina latino-americana da Situação Irregular em favor da doutrina da Proteção Integral, consubstanciada na recente Convenção Internacional dos Direitos da Criança e nos demais documentos afins da Normativa Internacional a que já nos referimos.
b) Mudança de
método
Quanto aos métodos e processos, o Estatuto inova profundamente. Não é nenhum exagero dizer que ele instaura uma verdadeira revolução copernicana nesse campo.
Em relação às crianças e adolescentes em estado de necessidade (carentes), o Estatuto aponta na direção da superação do assistencialismo como princípio definidor das relações entre os pobres e o ramo social do Estado, ou seja, as políticas e programas governamentais voltados para o atendimento de suas necessidades.
Superar o assistencialismo é deixar de perceber as crianças, adolescentes e famílias pobres como "feixes de necessidades", para encará-los como sujeitos de direitos exigíveis em lei.
Essa transformação do "portador de carências" em cidadão, sujeito de direitos, é difícil, contraditória e complexa. Isto ocorre porque esse tipo de mudança caminha na contramão de velhas práticas (manipulação, subjugação e controle dos pobres) incrustradas profundamente na estrutura, no funcionamento e na cultura organizacional dos nossos órgãos e instituições responsáveis pelo atendimento à população de baixa renda.
Para mudar essas relações, faz-se necessário substituir o assistencialismo por um novo tipo de trabalho social e educativo emancipador, baseado na noção de cidadania, mudando profundamente o entendimento e as ações ainda prevalecentes nessa área. Só assim será possível, às nossas crianças e adolescentes, transitarem das necessidades aos direitos, da condição de menor (diminuído social) à condição de cidadão, detentor do direito de ter direitos.
Em relação aos adolescentes em conflito com a lei, longe de ser paternalista e ingênuo, o Estatuto é garantista e rigoroso. Garantista, na medida em que estende aos adolescentes a quem se atribui autoria de ato infracional os direitos com que já contavam os delinqüentes adultos: ser preso apenas em flagrante delito ou com ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária, a defesa técnica por profissional habilitado (advogado) e a presunção da inocência. Rigoroso, na medida que, além de manter as medidas existentes no antigo Código de Menores (advertência, liberdade assistida, semiliberdade e internação), acrescenta novas medidas, como a prestação de serviços à comunidade e a obrigação de reparar o dano, impondo, assim, deveres, e não apenas assegurando direitos ao adolescente em conflito com a lei.
A observação criteriosa desses preceitos legais pelo sistema de administração da Justiça Juvenil (Segurança Pública, Ministério e Defensoria Pública, Magistratura da Infância e da Juventude e os órgãos de ação social especializada) concretiza na prática a passagem do modelo correcional-repressivo para um modelo garantista (rigoroso e justo) no trato coma questão do ato infracional cometido por adolescente.
c) Mudanças
na gestão
O Estatuto da Criança e do Adolescente introduz significativas mudanças na gestão da política de atendimento à infância e à juventude no Brasil. Não é nenhum exagero afirmar que ele coloca sobre os próprios pés uma estrutura político-administrativa que, há séculos, vem funcionando "de cabeça para baixo".
Os dois pontos básicos são a revisão das relações entre a União Federal, os Estados e os municípios, e a relação Estado/Sociedade.
Assim a nova estrutura da política de promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente, estabelecida pelo Estatuto, tem por base dois princípios básicos:
1. Descentralização político-administrativa;
2. Participação da população por meio de suas organizações representativas.
Quanto à descentralização político-administrativa, a Constituição limitou as ações da União, restringiu o papel dos Estados e ampliou de forma considerável, as competências e responsabilidades do município e da comunidade.
Assim, cabem "a coordenação e as normas gerais à esfera federal, a coordenação e a execução às esferas estadual e municipal, bem como às entidades beneficentes e de assistência social".
Quanto à União, não resta margem para dúvida, a ela está vedada a execução direta de programas de atendimento, como atualmente ainda ocorre. O novo papel da esfera federal diz respeito à emissão das normas gerais e à coordenação geral da política.
A emissão das normas gerais, segundo a nova lei, deverá ser feita por uma instância colegiada: o Conselho Nacional da Criança e do Adolescente, que, além de deliberativo, deverá ser também paritário, fiscalizador das políticas e controlador das ações.
A função de coordenação das ações na esfera federal deverá ser realizada por um organismo técnico de estrutura simples, leve, ágil e o máximo possível desburocratizada, que deverá operacionalizar as diretrizes e normas do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente ao qual ele está ligado. Trata-se de um órgão e de uma função inteiramente novos, em tudo diferentes das estruturas hoje existentes nesta área.
Cada Estado deverá adaptar as normas federais à sua realidade. A coordenação será exercida de maneira complementar ao trabalho desenvolvido pela União. Já a execução direta de programas pelo Governo estadual deverá ocorrer de forma suplementar ao trabalho realizado pelo município e pelas entidades não-governamentais.
Ao município caberão a coordenação em nível local e a execução direta das políticas e programas em parceria com as entidades não-governamentais que nele atuam. Os Governos federal e estadual já não poderão seguir realizando, como infelizmente ainda ocorre hoje, funções típicas de Governo local.
O perfil básico da nova política de atendimento (promoção e defesa) dos direitos da criança e do adolescente já está traçado no Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabelece:
a) criação de Conselhos Municipais, Estaduais e Nacionais da Criança e do Adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas;
b) manutenção de fundos municipais, estaduais e nacional ligados aos respectivos Conselhos de Defesa da Criança e do Adolescente;
c) criação e manutenção de programas específicos, observada a descentralização político-administrativa;
d) municipalização do atendimento.
A melhor maneira encontrada de assegurar a participação da população, através de suas organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações, foram os conselhos paritários e deliberativos em todos os níveis: municipal, estadual e federal.
É interessante observar que, antes, a população organizada era convocada a participar apenas da execução das ações (via mutirão, por exemplo). Agora, pela Constituição, a cidadania está chamada a participar de atos até aqui privativos dos dirigentes políticos, dos homens de Estado, como a formulação das políticas e o controle das ações em todos os níveis.
3. O novo
paradigma
Como se vê, estamos hoje, no Brasil, diante de um novo paradigma em relação às maneiras de entender e de agir no que diz respeito à infância e à juventude. De fato, a Carta Constitucional e o Estatuto da Criança e do Adolescente trazem, em relação à criança e ao adolescente, três novidades e três avanços fundamentais quando passa a considerá-los:
- Sujeitos de direito;
- Pessoas em condições peculiar de desenvolvimento;
- Prioridade absoluta.
Isto significa que a criança e o adolescente já não poderão mais ser tratados como objetos passivos da intervenção da família, da sociedade e do Estado. A criança tem direito ao respeito, à dignidade e à liberdade, e este é um dado novo que em nenhum momento ou circunstância poderá deixar de ser levado em conta.
Serem consideradas pessoas em condição peculiar de desenvolvimento foi uma das principais conquistas. Isto significa que, além de todos os direitos de que desfrutam os adultos e que sejam aplicáveis à sua idade, a criança e o adolescente têm ainda direitos especiais decorrentes do fato de que:
- Ainda não têm acesso ao conhecimento pleno de seus direitos;
- Ainda não atingiram condições de defender seus direitos frente às omissões e transgressões capazes de violá-los;
- Não contam com meios próprios para arcar com a satisfação de suas necessidades básicas;
- Por se tratar de seres em pleno desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e sócio-cultural, a criança e o adolescente não podem responder pelo cumprimento das leis e demais deveres e obrigações inerentes à cidadania da mesma forma que os adultos.
A prioridade absoluta à criança e ao adolescente entendida como:
- Primazia em receber proteção e socorro em qualquer circunstância;
- Precedência no atendimento por serviço ou órgão público de qualquer Poder;
- Preferência na formulação e execução das políticas sociais públicas;
- Destinação privilegiada de recursos públicos às áreas relacionadas com a proteção da infância e da juventude.
4. Movimento
social/políticas públicas/ mundo jurídico
Não se pode encerrar este relato sem mencionar a importância que teve, na elaboração do Estatuto, a fecunda e dinâmica interação entre o movimento social, as políticas públicas e o mundo jurídico.
Para ressaltar este ponto, cabe citar as palavras do Senador Ronan Tito, em sua justificativa na apresentação do Projeto do Estatuto ao Senado Federal em 30 de junho de 1989:
"O texto, que ora temos a honra de apresentar, assenta a raiz do seu sentido e o suporte de sua significação em três vertentes que raras vezes se entrelaçaram com tanta felicidade em nossa história legislativa. Ele emerge do encontro sinérgico de pessoas e de instituições governamentais e não-governamentais representativas da prática social mais compromissada com a nossa infância e juventude, do mais sólido conhecimento técnico-científico na área e, finalmente, da melhor e mais consistente doutrina jurídica".
Tudo isto nos leva a concluir que o Estatuto da Criança e do Adolescente, mais do que um projeto de sociedade. A aprovação da lei pelo Congresso Nacional e a sua sanção sem vetos, pelo Presidente da república, não transfiguram a dramática realidade brasileira em relação aos direitos da infância e da juventude. Ele, no entanto, deflagra uma tendência irreversível na direção de mudanças que a nossa realidade, de forma tão dramática, necessita e requer.
Esta é a aposta de todos os que, no Brasil dos nossos dias, se empenham no esforço de reconstrução democrática da vida nacional, um esforço que deve começar pelo resgate dos direitos das novas gerações. É para esse novo e verdadeiramente generoso consenso que aponta a nova Constituição da Infância e da Juventude do Brasil, a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990.
1) A convocação da Assembléia Nacional Constituinte permitiu a inclusão no Direito brasileiro dos avanços contidos no Projeto de Convenção dos Direitos da Criança da ONU e de outros instrumentos da Normativa Internacional.
2) Três segmentos da vida brasileira se enlaçaram num compromisso histórico com o ponto de vista e os interesses da população infanto-juvenil: o movimento social, o mundo jurídico e as políticas públicas, a fim de mudar o nosso panorama legal na área dos Direitos da Criança.
3) O Estatuto da Criança e do Adolescente é a lei que cria condições de exigibilidade para os direitos da infância e da juventude, consagrados na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, na Constituição e nas leis.
4) No novo Direito da Infância e da Juventude, cada criança ou adolescente é considerado sujeito de direitos, pessoa em condição peculiar de desenvolvimento e prioridade absoluta.
5) As mudanças introduzidas pelo Estatuto se desdobram em três âmbitos: conteúdo, método e gestão.
6) As mudanças de conteúdo referem-se aos novos direitos individuais e coletivos introduzidos na Constituição e regulamentados no Estatuto. As mudanças de método buscam superar os aspectos assistencialistas e correcional-repressivos da política de atendimento. As mudanças de gestação referem-se à descentralização (nova divisão do trabalho social entre a União, o Estado e o município) e à participação da população na formulação e controle das políticas públicas para a infância e a juventude.
Capítulo III
A política de atendimento
"De fato, estamos avançando para uma evolução conceitual, para uma abordagem conseqüente e estrutural do problema da criança e do adolescente. A sociedade brasileira precisa de uma atitude positiva diante desta questão". (Governador Ciro Gomes)
Conforme o artigo 86 do Estatuto da Criança e do Adolescente, "a política de atendimento far-se-á por um conjunto articulado de ações governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios".
Como se depreende dessa formulação, dois princípios presidem a estruturação da política de atendimento: o princípio da hierarquia e o princípio da complementaridade. Pelo primeiro, se vai do município à União, passando pelos Estados e pelo Distrito Federal. Pelo segundo, se estabelece a concatenação entre os esforços do Estado e da Sociedade.
Mais do que justapor instância e níveis de gestão, a política de atendimento inscrita no Estatuto busca conferir organicidade ao conjunto de ações, governamentais ou não, em favor da infância e da juventude através de uma reconfiguração das diversas modalidades de intervenção presentes na sociedade e, principalmente, no ramo social do Estado brasileiro.
Isto ocorre no momento em que as intervenções são hierarquizadas com base no critério da abrangência das quatro modalidades de atuação previstas nas linhas definidoras do perfil da política de atendimento:
a) Políticas sociais básicas;
b) Política de assistência social;
c) Política de proteção especial;
d) Política de garantias.
Vamos, pois, caracterizar cada uma dessas grandes linhas de ação da política de atendimento, definindo-as a partir do cruzamento de dois eixos fundamentais: a abrangência das intervenções e o perfil dos destinatários. Comecemos, então, pelo nível de amplitude mais includente e pelo perfil de destinatário mais indistinto, ou seja, pelas políticas sociais básicas.
Em princípio, podemos definir como políticas sociais básicas os benefícios ou serviços de prestação pública dos quais podemos dizer: "isto é direito de todos e dever do estado", ou seja, as políticas sociais básicas dirigem-se ao universo mais amplo possível de destinatários, sendo, portanto, de prestação universal. Educação e saúde, por exemplo, são direitos de todas as crianças e deveres do Estado. Não pode, portanto, existir criança ou adolescente, independente da sua condição, que esteja legalmente privado do direito à educação e à saúde. Trata-se de um direito de todos, reconhecido e prestado ao conjunto da população infanto-juvenil sem distinção alguma.
São também políticas sociais básicas a cultura, a recreação, o esporte, o lazer e a profissionalização. Educação e saúde, entretanto, se constituem, no interior da difícil conjuntura econômica-social que o País atravessa, nas áreas que estão a requerer da família, da sociedade e do estado maior ênfase, maior prioridade, embora nunca seja demais reprisar que os direitos elencados no caput do artigo 227 da Constituição constituem uma totalidade orgânica, indivisível em sua inteireza, e que o desatendimento de um deles sempre afeta negativamente a busca da proteção integral.
Já, quando se fala da política de assistência social, não se pode dizer que ela seja "direito de todos e dever do Estado"; a própria Constituição Federal, no artigo 203, delimita a abrangência das ações do aparelho assistencial do Estado àquelas que delas necessitam. Os destinatários da política de assistência são, portanto, as pessoas e grupos que se encontrem em estado permanente ou temporário de necessidade, em razão de privação econômica ou de outros fatores de vulnerabilidade.
De fato, não se pode afirmar que um programa de distribuição de leite, uma cesta básica, um abrigo provisório ou um auxílio material ou financeiro imediato sejam "direitos de todos". As ações de natureza assistencial, portanto, não se dirigem a um destinatário de âmbito universal, ou seja, no nosso caso, ao conjunto da população infanto-juvenil de uma cidade, de um Estado ou do País. As políticas de assistência dirigem-se àquele segmento da população que delas necessitam, ou seja, que se encontre em estado de necessidade.
Em termos de abrangência, as políticas básicas dirigem-se ao universo, ao conjunto da população infanto-juvenil, já a política de assistência social dirige-se a determinados segmentos da população, que em muitas situações, podem constituir-se na fração majoritária da população de uma determinada área.
A terceira linha de defesa da população infanto-juvenil inscrita no Estatuto é constituída pela política de proteção especial, uma realidade bastante conhecida entre nós, um conceito novo, porém, em termos de formulação de políticas públicas. A política de proteção especial não abrange o universo e nem ao menos segmentos determinados da população infanto-juvenil. Sua escala de intervenção são os casos ou, no máximo, grupos de crianças e adolescentes que se encontram em circunstâncias especialmente difíceis, ou como é mais comum dizermos no Brasil, em situação de risco pessoal e social.
A situação de risco pessoal e social se configura com a exposição da criança ou do adolescente a fatores que ameacem ou, efetivamente, transgridam a sua integridade física, psicológica ou moral por ação ou omissão da família, de outros agentes sociais ou do próprio estado.
Na realidade brasileira, nos deparamos com um expressivo elenco de situações de risco pessoal e social ou circunstâncias especialmente difíceis. Assim, podemos incluir nessa categoria:
- As crianças vítimas de abandono e tráfico;
- As crianças vítimas de abuso, negligência e maltrato na família e nas instituições;
- As crianças e adolescentes que fazem das ruas seu espaço de luta pela vida e, até mesmo, de moradia;
- As crianças e adolescentes vítimas de trabalho abusivo e explorador;
- As crianças e adolescentes envolvidos no uso e tráfico de drogas;
- As crianças e adolescentes prostituídos;
- Os adolescentes em conflito com a lei, em razão do cometimento de ato infracional;
- E outras situações que impliquem ameaça ou violação da integridade física, psicológica ou moral das crianças e adolescentes a elas expostos.
Por fim, temos a política de garantias, responsável pela defesa jurídico-juvenil. As políticas de garantias atuam no terreno baldio que existe entre a lei e a realidade, o País-legal e o País-real, buscando diminuir a distância entre esses dois planos da vida social.
O Ministério Público, a Defensoria Pública, a Magistratura e a Polícia são órgãos criados para garantir, assegurar e manter o respeito aos direitos do conjunto dos cidadãos, coibir e, necessário, punir aqueles que os transgridem. Fazem parte da estrutura do Estado e se expandem e complexificam à medida que se consolida entre nós o Estado Democrático de Direito.
As delegacias da mulher, os órgãos de defesa do consumidor e do meio ambiente, os Conselhos ligados à questão de direitos humanos e da cidadania de segmentos específicos como a mulher, o índio, o negro, a população carcerária e outros nesta linha consubstanciam o aparato garantista do Estado.
Por sua vez, a sociedade civil também dispõe de estruturas garantistas, como as Comissões de Direitos Humanos da OAB, as Comissões Justiça e Paz da CNBB, a Associação Brasileira de Imprensa, o Movimento Nacional de Direitos Humanos, diversas das pastorais da linha social da CNBB, o Fórum-DCA, o Movimento Meninos de rua, os Centros de Defesa de Direitos, são todos exemplos de atores sociais garantistas.
Na área da promoção e defesa dos direitos da Criança, os Conselhos de Direitos, organizados nas diversas localidades de um município, constituem-se em uma forte razão para se ter esperança de que, no campo do direito da criança, a distância entre a lei e a realidade haverá de tender a diminuir nos próximos anos.
A política de atendimento aos direitos da criança pode ser representada graficamente por uma pirâmide dotada de quatro patamares de atuação, representando cada uma de suas linhas de ação.
1) Políticas Todas as Universos de Ações básicas
Sociais crianças e população. de saúde,
Básicas. adolescentes. ensino fundamental.
2) Política de As crianças e Segmento de Complementação
Assistência adolescentes população. alimentar,
Social. em estado de abrigo
necessidade. provisório.
3) Política de As crianças e Casos e/ou Plantões de
proteção adolescentes em pequenos recebimento e
especial. situação de risco grupos. encaminhamentos
pessoal e social. de denúncias.
Reabilitação de
drogaditos
Atendimento ao
adolescente infrator
4) Política de garantias As crianças e Casos/grupos Centro de Defesa
adolescentes de Direitos
envolvidos em Ministério Público
conflito de Defensoria
natureza jurídica Pública
Cabe aos Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente formular a política de atendimento no âmbito de sua esfera de abrangência: como acabamos de ver, esta tarefa não pode restringir-se a um determinado aspecto de atenção à população infanto-juvenil, ignorando os demais. A elaboração do Plano Municipal de Atendimento à Criança e ao Adolescente deve, portanto, considerar as diversas linhas de ação política, mesmo aquelas que, como a de proteção jurídico-social, estejam a cargo de outra esfera do Poder Público. Isto, porém, não impede o Conselho Municipal de avaliar a efetividade e a qualidade desses serviços e, se for o caso, atuar junto às autoridades estaduais no sentido de obter sua melhoria.
O Pacto pela Infância, a continuidade do grande processo de mobilização social em favor da criança e do adolescente, que teve início no período pré-Constituinte, enfatiza três áreas fundamentais de atenção à população infanto-juvenil brasileira neste momento de dificuldades que o País atravessa: Educação, Saúde e Proteção. Esta é uma forma válida e necessária de priorizar aspectos fundamentais do atendimento, com vistas a deter o acelerado processo de degradação pessoal e social das novas gerações.
Priorizar, contudo, não significa excluir, ou seja, deter-se apenas nesses aspectos em detrimento dos demais. A base objetiva e concreta do processo, de decisão do Conselho Municipal a esse respeito, deve ser a análise da situação da criança e do adolescente no município que, como veremos mais adiante, é um passo fundamental no processo de formulação da política de atendimento. A análise de situação é que permitirá visualizar o que fazer primeiro, onde concentrar mais recursos, que tipo de intervenção utilizar e, da mesma forma, detectar aqueles aspectos menos agudos, capazes de esperar algum tempo por uma abordagem sistemática, seja pelo Poder Público, seja pelas organizações não-governamentais.
Outra decisão importante, a ser tomada no âmbito da formulação da política de atendimento, é de como proceder à divisão do trabalho social relativo à criança, ao adolescente e à família no município, ou seja, o que caberá a cada secretaria ou órgão municipal e a parte que deverá ficar sob a responsabilidade das entidades não-governamentais.
1) A política de Atendimento aos Direitos da Criança e do Adolescente far-se-á por um conjunto articulado de ações entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios (art. 86 do ECA).
2) O atendimento aos direitos da população infanto-juvenil compreende quatro linhas básicas de políticas públicas e de ações não-governamentais:
(a) as políticas sociais básicas;
(b) a assistência social;
(c) a proteção especial e
(d) as garantias.
3) As políticas sociais básicas são universais, dirigem-se ao conjunto da população infanto-juvenil. A política assistencial dirige-se ao segmento dessa população encontrado em estado de necessidade. A proteção especial responde pela atenção às crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social. E, finalmente, a política de garantias atua na proteção, através dos mecanismos legais, das crianças e adolescentes envolvidos em situações onde exista conflito de natureza jurídica.
4) O Pacto pela Infância enfatiza três áreas básicas de atuação em favor da infância e da juventude: Educação, Saúde e Proteção.
5) O primeiro passo para a formulação da política de atendimento à criança e ao adolescente no município (traçada pelo Conselho Municipal de Direitos) deve se fazer realizar uma Análise da Situação das Crianças e adolescentes no âmbito local.
6) O Plano Municipal de Atendimento à Criança e ao Adolescente deve envolver as políticas básicas, a assistência social e a proteção especial à população infanto-juvenil, cuidando também de atuar no sentido de melhorar, quando necessário, as ações garantistas a cargo do Estado.
Capítulo IV
"A família, enquanto elemento básico da sociedade, é o meio natural para o crescimento e o bem-estar de todos os seus membros, em particular das crianças e jovens. Deve ser promovida, ajudada e protegida, a fim de que possa assumir plenamente suas responsabilidades no seio da comunidade". (Resolução 2542 da Assembléia Geral da ONU)
A partir dos anos setenta, o mundo assistiu a uma verdadeira irrupção da pessoa humana no Direito Internacional. Este fenômeno se refletiu positivamente sobre a legislação, as políticas públicas e as maneiras de entender e agir em muitos países em relação ao atendimento às necessidades e a respeito dos direitos de importantes segmentos da população.
O mecanismo propulsor dessa tendência foi a celebração pelas Nações Unidas de uma série de Anos Internacionais, cada um deles contemplando a reflexão, o debate, a mobilização e as intervenções efetivas na situação de um determinado grupo social.
Assim, o Ano Internacional da Mulher, da Criança, do Deficiente e da Juventude continua expandindo sua influência positiva, tanto no plano da normativa internacional, como em grande número de legislações, políticas e programas nacionais. Ano que vem, 1994, será o Ano Internacional da Família. Um dos eventos preparativos para sua realização foi realizado em Curitiba - II Conferência Mundial e I Encontro Nacional Preparatório ao Ano Internacional da Família, 21 a 26 de novembro/92 - promovido pela UIOF (União Internacional de Organizações Familiares). Esta iniciativa propiciou que órgãos de Governo, entidades não-governamentais e pessoas com interesse e atuação nesse campo, vindas de todo o País, pudessem se encontrar, discutir e assumir uma posição conjunta em relação à situação da política familiar no Brasil.
Entendemos que a celebração de um Ano Internacional dedicado a este tema configura-se, para todos os que se preocupam com a questão de família, na tão ansiada oportunidade histórica de colocarmos este tema na "ordem do dia" da política social brasileira.
A problematização em escala mundial da realidade familiar nos parece ser síntese de toda a dinâmica evolutiva do "processo de irrupção da pessoa humana no Direito Internacional" a quem nos referimos no início deste capítulo.
Isto ocorre porque situações como as da mulher, da criança, do jovem, do deficiente e do idoso encontram seu estuário natural na família.
Em termos de mobilização, este fato nos abre a grande oportunidade de pessoas, grupos e organizações que atuam nos mais diversos campos do trabalho social e educativo se articularem para um debate maduro sobre a trajetória, a estrutura, o funcionamento, os desafios e as perspectivas da política social brasileira nesta década do século XX.
Encarada do ponto de vista da política de atendimento, promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente no município, a questão da família assume uma dimensão de atualidade e urgência, que não poderemos deixar de levar em conta, sob pena de não criarmos as condições de implementar as medidas de proteção previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.
A Constituição Federal, as Constituições Estaduais, a grande maioria das Leis Orgânicas Municipais e também o Estatuto estabelecem que o atendimento, com absoluta prioridade, aos direitos da Criança e do Adolescente constitui um dever da família, da sociedade e do Estado.
O artigo 227 da CF, aliás, antes de elencar os direitos da população infanto-juvenil, declara que eles fazem parte dos deveres das gerações adultas.
Outro importante da legislação brasileira é reconhecer à criança e ao adolescente o "direito à convivência familiar e comunitária", considerando que o respeito pela sua integridade passa pela manutenção dos seus vínculos com o continente afetivo da família e com os elos sócio-culturais com a sua comunidade de origem.
Um amplo conjunto de dispositivos, visando garantir a prevalência da família como a forma mais básica e natural de atenção à infância e à adolescência, perpassa toda a nossa legislação, assumindo maior densidade, coerência e sistematização no Estatuto, que traz como um de seus principais avanços a separação dos casos sociais - encaminhados aos Conselhos Tutelares - daqueles que envolvem conflito de natureza jurídica, estes, sim, matéria de decisão judicial.
De fato, uma das grandes falhas do antigo Código de Menores foi agrupar sob o mesmo rótulo de "menores em situação irregular" crianças e adolescentes (i) desprovidos de meios para satisfação de suas necessidades básicas (carentes), (ii) privados de qualquer tipo de assistência familiar (abandonados) e (iii) em conflito com a lei em razão do cometimento de delito (infratores). A conseqüência prática desse amalgamento dos casos puramente sociais com aqueles que envolviam conflito de natureza jurídica foi transformar os juizados de menores no desaguadouro dos problemas sociais do município, forçando-os a assumir, além da sua natureza função judicante, o papel de simulacro de órgão de assistência social.
Assim, a Justiça de Menores tornou-se o tribunal onde se julgava e se decidia a situação das crianças e adolescentes que se achavam em situação irregular por "manifesta incapacidade dos pais para mantê-los", ou seja, por pobreza pura e simples.
Tal mecanismo colaborou de maneira decisiva no surgimento e na consolidação, entre nós, da mentalidade de que as crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, mais que um problema das políticas sociais do município, são "um problema do juiz" e dos órgãos estaduais criados para servir-lhes de retaguarda, as FEBEM(s) (Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor).
Este argumento permitiu que, durante quase todo este século, os dirigentes municipais pudessem abster-se de assumir maiores compromissos ou responsabilidades em relação ao chamado "problema do menor".
Essa "estadualização" do problema gerou um mecanismo perverso de cassação pelos juizes de menores do direito à convivência familiar e comunitária de milhares de crianças e adolescentes, cujo único "delito" cometido foi, realmente, o de serem pobres. Sem contar com retaguardas adequadas na política social do município, a alternativa com que contavam os juizes de menores era "deportar" os "menores em situação irregular" para as FEBEM(s), a fim de que fossem confinados em instituições totais especialmente estruturadas para servir de mecanismo executor as medidas por eles aplicadas.
Hoje, quando olhamos essas práticas sob o ângulo do novo direito da infância e da juventude, contido na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, é que podemos compreender a verdadeira extensão, a assustadora profundidade e a chocante sistematicamente com que o Código de Menores (Lei 6.697/79) e a Política Nacional do Bem-Estar do Menor (Lei 4.513/64) estruturaram um mecanismo jurídico, social e político para funcionar na contramão do direito à convivência familiar e comunitária das crianças e adolescentes da população de baixa renda.
O reflexo institucional dessa política antifamília, disseminada em todo o País pela FUNABEM, foi a criação nos órgãos estaduais (FEBEMs) de redes de internatos, para atender, em regime de institucionalização total, além dos jovens em conflito com a lei por cometimento de ato infracional, uma grande maioria de crianças e adolescentes carentes e abandonadas. Daí esse trágico fenômeno típico na América Latina, dos prisioneiros sociais, isto é, pessoas privadas de liberdade sem terem cometido nenhum delito a não ser, naturalmente, o de serem pobres em sociedades como as nossas.
A Justiça de Menores, no interior desse modelo, passou a ser utilizada, não como mecanismo de controle social do delito, mas como mecanismo de controle social da pobreza, uma vez que os juizes se viram convocadas a, numa triste simulação de dirigente social, atuar no terreno baldio (área de não-cobertura) das políticas públicas.
Felizmente, esse tempo está terminado. Com o advento do Estatuto, como já dissemos, apenas os casos que envolvem conflito de natureza jurídica irão para as mãos do Juiz da Infância e da Juventude, os demais terão como destino o Conselho Tutelar. Ao magistrado caberá aplicar as medidas de proteção, que, como veremos, constituem esferas inteiramente distintas de atuação.
As medidas sócio-educativas são aplicáveis pela Justiça da Infância e da Juventude, destinando-se apenas aos adolescentes autores de ato infracional, conforme o artigo 112 do ECA:
I - Advertência;
II - Obrigação de reparar o dano;
III - Prestação de serviços à comunidade;
IV - Liberdade assistida;
V - Inserção em regime de semiliberdade;
VI - Internação em estabelecimento educacional;
VII - Qualquer das medidas previstas no Artigo 101, I a VI.
As medidas de proteção são aplicáveis pelo Conselho Tutelar e se destinam às crianças e adolescentes "ameaçados ou violados" em seus direitos, seja:
(i) por ação ou omissão da sociedade ou do Estatuto,
(ii) por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis e
(iii) em razão de sua conduta.
São medidas de proteção (Art. 101 do ECA):
"I - encaminhamento aos pais ou responsáveis, mediante termo de responsabilidade;
II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III - matrícula e freqüência obrigatória em estabelecimento de ensino fundamental;
IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente;
V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico em regime hospitalar ou ambulatorial;
VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento de alcoólatras e toxicômanos;
VII - abrigo em entidade;
VIII - colocação em família substituída."
O estabelecimento desses dois conjuntos de medidas - sócio-educativa e de proteção - e dessas duas instâncias de decisão - Justiça da Infância e da Juventude e Conselho Tutelar - permitiu, como veremos em outro capítulo, uma base racional e sólida para a divisão do trabalho social e educativo dirigido à criança e ao adolescente entre o Estado e o município.
Em relação às crianças e aos adolescentes em circunstâncias especialmente difíceis e em estado de necessidade, a principal função do Poder Público municipal é coordenar, estruturar e apoiar técnica e financeiramente a rede de entidades que vai servir de retaguarda ao Conselho Tutelar, porta de entrada dos casos e situações sob responsabilidade direta do Poder local.
Em relação às entidades de atendimento, o Estatuto, em seu artigo 90, afirma que elas são responsáveis pelo planejamento e execução de programas de proteção e sócio-educativos, destinados à criança e ao adolescente em regime de:
"I - orientação e apoio sócio-familiar;
II - apoio sócio-educativo em meio aberto;
III - colocação familiar;
IV - abrigo;
V - liberdade assistida;
VI - semiliberdade;
VII - internação".
É interessante observar que, ao elencar e hierarquizar os diversos regimes de atendimento à criança e ao adolescente, o Estatuto não estabelece conjuntos distintos para as medidas sócio-educativas, mas agrupa-as numa mesma escala, que vai se estreitando à medida que avança, conforme se pode visualizar no esquema.
Este elenco de regimes de atenção à crianças e ao adolescente nos permite observar que, quanto mais ascendermos na escala hierárquica, mais se adensam os fatores de risco e que, portanto, de um ponto de vista lógico, mais recursos de especialização são necessários para estruturar os programas em razão da complexidade crescente das situações a serem abordadas.
Porém, o mais importante a se observar nesta escala é que ela nos permite visualizar e situar o papel da família como a instância básica de intervenção, se quisermos realizar um trabalho realmente preventivo. No caso das crianças e adolescentes em situação de risco ou em estado de necessidade, o verdadeiro trabalho preventivo, ou seja, a primeira linha de defesa da criança e do adolescente é aquela representada pelos programas de orientação e apoio sócio-familiar.
É curioso observa que, no Brasil, um simples olhar sobre a rede de programas e ações em favor da criança e do adolescente em situação de risco e/ou em estado de necessidade evidencia a pouca importância que tanto o governo como as entidades não-governamentais têm dado a questão da família como alicerce de qualquer ação realmente preventiva. Tudo se passa, entre nós, como se a primeira linha de defesa da criança e do adolescente em circunstâncias difíceis fosse os programas sócio-educativos em programa aberto.
Chega a ser impressionante o fato de que grandes articulações da sociedade civil, como o amplo movimento social em favor das crianças e adolescentes que fazem das ruas seu espaço de luta pela vida e até mesmo de moradia, passam ao largo da questão da família, como se abordar o problema por este ângulo constituísse, na verdade, retrocesso em relação à estratégia político-social desses grupos.
Este é um problema cujo enfrentamento extrapola os objetivos do presente trabalho. Pretendemos, no entanto, nos debruçar sobre ele em outro momento, com o intuito de elucidar as motivações mais profundas desta elisão da família nas ações de atenção direta e de mobilização social em favor das crianças e dos jovens em situação de risco pessoal e social, não só no Brasil, como em outros países do Terceiro Mundo.
Nossa omissão e falta de experiência neste domínio são tão grandes que até hoje não se definiu, em termos mínimos, o que é o que deve ser um programa de orientação e apoio sócio-familiar. Pouco sabemos sobre qual a estrutura e o funcionamento dos programas de atendimento organizados para operar neste tipo de regime de atenção à família, que é a primeira das grandes linhas de defesa do Estatuto, quando se trata da proteção dos direitos da criança e do adolescente .
Sem alimentar jamais a pretensão de formular uma proposta de política familiar, no sentido amplo, propomo-nos atuar num âmbito mais estrito, formulando algumas propostas no sentido de subsidiar, nos municípios brasileiros, o processo de estruturação de uma rede de retaguardas para os Conselhos Tutelares, que tenham como alicerce os serviços de orientação e apoio sócio-familiar, na condição de elemento motor da política de família na esfera municipal de governo.
O documento "Informe sobre a Situação Social no Mundo - 1989", do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais Internacionais, dedica seu primeiro capítulo à questão da família, enfatizando o impacto sobre a estrutura familiar das grandes mutações que o mundo vem conhecendo neste final do século XX:
"Em muitas regiões do mundo, a família, como unidade fundamental da sociedade e como ponto de apoio, socialização e atenção para seus membros, sofreu uma notável transformação estrutural na última geração. Criou-se, assim, uma grande inquietude quanto à capacidade da família de cumprir suas finalidades em relação a seus membros e à sociedade em geral. Em conseqüência, se reconheceu que as organizações governamentais e outras instituições sociais devem ajustar suas políticas e serviços para adequá-los a essa situação".
É no macro dessa percepção que pretendemos inserir o processo de implantação do Estatuto, de maneira geral, e, com uma especial ênfase e prioridade, os serviços de orientação e apoio sócio-familiar, como um novo tipo de resposta jurídica e social às grandes mudanças econômicas, políticas e culturais, no seu impacto sobre a criança, o adolescente e a família.
Depois de procurar conhecer o que existe no Brasil, em termos de programas de apoio à família, de ouvir pessoas e organizações com experiência conhecida nesse campo, de tomar contanto com as tendências da comunidade internacional a respeito dessa importante questão, nos foi possível perceber que uma estratégia de atenção à família no município deve apoiar-se em quatro tipos básicos de ação:
(i) promoção;
(ii) formação;
(iii) orientação;
(iv) proteção.
Estes são os caminhos pelos caminhos pelos quais se pode fortalecer a estrutura familiar e, através desse fortalecimento garantir às crianças e adolescentes o direito a um continente afetivo e à segurança material tão necessários ao seu normal desenvolvimento como seres humanos e como cidadãos.
A promoção da
família no município
Muito se pode fazer para promover a família no Município a partir do conhecimento e do reconhecimento de sua importância e da magnitude e profundidade das mudanças pelas quais o Brasil e o mundo vêm passando nestes tempos de tantos riscos e oportunidades. As ações nesse campo devem partir do reconhecimento de que:
- As novas tendências em política social reconhecem que a família e a comunidade exercem papel fundamental na melhoria das condições de bem-estar e de dignidade da população como um todo e, particularmente, de seus segmentos mais vulneráveis;
- Além de suas funções reprodutivas, afetivas, sociais, culturais e econômicas para seus membros, a família é o fundamento da coesão social e, com tal, mais do que uma instituição a ser mantida, é um valor humano a ser respeitado em sua inteireza e em seu dinamismo próprios;
- O surgimento de novas formas de família, como resultante da integração de uma multiplicidade de fatores sobre a vida quotidiana da população, deve gerar por parte da sociedade e do Estado novos esforços no sentido de compreender e ajudar, evitando-se a criação de barreiras, tanto no plano da convivência social, como no do acesso a bens e serviços;
- A institucionalização de crianças, de adolescentes, de pessoas idosas e deficientes é um mal a ser evitado e, para isso, é necessário fortalecer as famílias, não só por meio de mecanismos sócio-econômicos de apoio, mas através de ajuda humana para o enfrentamento de dificuldades e desafios;
- Valores, como a manutenção da solidariedade familiar entre as gerações, através do concurso de todos os membros da família em face de fenômenos como a urbanização, a industrialização, a grande mobilidade da população ativa, devem ser incentivados e fortalecidos;
- O reconhecimento do papel da mulher e a luta contra qualquer forma de discriminação no interior ou no contexto da vida familiar, tanto no que se refere à mulher como mãe, como trabalhadora, como a mulher cidadã, levando em conta nesse processo as crianças e adolescentes do sexo feminino, freqüentemente desconsideradas em seus direitos e necessidades, principalmente nas periferias urbanas e áreas rurais pauperizadas.
- Culminando esse pequeno elenco de pontos fundamentais a serem considerados, é de fundamental importância que a manutenção do vínculo familiar seja o mais possível preservado, ou seja, que nenhuma criança seja separada de seus pais por motivo de pobreza (art. 23 do ECA) e que a adoção e a institucionalização sejam somente utilizadas como recursos extremos, quando já não couber, realmente, nenhuma outra alternativa.
Com base nestes pontos pode e deve o município desenvolver uma política de promoção da família, envolvendo os diversos segmentos das políticas sociais públicas e os movimentos e entidades da sociedade civil: entidades de atendimento e defesa de direitos; clubes de serviço; sociedade de pediatria; igrejas; sindicatos e organizações empresariais; seções locais da OAB; meios de comunicação social e, com especial ênfase, os professores, técnicos e diretores de escola.
Estes grupos, atuando conjuntamente, poderão estabelecer uma pauta comum de ação, onde cada segmento assume uma parte das responsabilidades e das tarefas, com vistas a desenvolver um amplo trabalho de valorização da vida familiar, de reflexão sobre os problemas da família, de divulgação da legislação e das ações das políticas e programas existentes no País sobre essa matéria, de criação no município de um processo de mobilização social, que permita aumentar o nível de informação a respeito desse tema e, principalmente, despertar valores e suscitar atitudes novas em relação a essa dimensão fundamental da vida humana.
Encontros, seminários, publicações de artigos, entrevistas impressas ou transmitidas pelo rádio e televisão são meios e modos de se colocar a questão da família na ordem do dia na vida dos municípios e na agenda de suas iniciativas em favor da melhoria da conveniência humana e da qualidade de vida de seus cidadãos.
Há muitas coisas que os pais de família precisam saber e que os jovens, que amanhã serão pais, necessitam conhecer, e que não são suficientes ou adequadamente transmitidas, nem pelas escolas, nem pelos meios de comunicação social. Em termos de formação para a vida familiar, há uma verdadeira pedagogia social a ser construída a partir do município.
Para isso é muito importante que o Conselho Municipal de Direitos crie uma comissão especial apenas para cuidar das questões que dizem respeito à estruturação da política de orientação e apoio sócio-familiar em âmbito local.
Esta comissão deve manter o seu caráter paritário e envolver pessoas e organizações que possam ajudar nesse processo de educação não-formal, visando elevar o nível de conhecimento e difundir novos valores, hábitos, atitudes e habilidades em relação a problemas que os novos tempos introduziram na pauta da educação familiar.
Questões como o diálogo e a qualidade de convivência entre as gerações, a educação sexual, os direitos das crianças e dos adolescentes, a preparação dos jovens para o mundo do trabalho, a gravidez precoce, o uso de drogas, a violência familiar, as relações da família com a escola, o impacto dos meios de comunicação social sobre a família e tantos outros temas precisam e devem ser assimilados no âmbito da educação familiar.
Importante, porém, é que estes temas não sejam tratados de modo estreito, envolvendo apenas certos grupos e não o conjunto da sociedade; são as famílias das periferias urbanas e os empobrecidos das áreas rurais que devem ser os destinatários privilegiados deste tipo de esforço, que não deve, naturalmente, limitar-se apenas a eles.
A produção de cartilhas, folhetos, pequenos manuais pode ajudar muito nesse tipo de trabalho. Vídeos, filmes e slides que, depois de exibidos, possam ser objeto de reflexão e debate, são outro tipo de instrumento com que se pode contar nesse tipo de esforço coletivo.
Os recursos humanos para essas tarefas sempre existem no próprio município ou em outros municípios da vizinhança. São médicos, professores, advogados e pessoas que, mesmo sem ter formação acadêmica superior, por sua experiência de vida, sua trajetória, seus trabalhos e suas lutas adquiriram conhecimentos que devem e merecem ser socializados mais amplamente na vida da comunidade. É muito importante que as pessoas mais simples participem desse processo como agentes, como sujeitos conscientes, e não como massa de manobra, ou meros objetos ou "pacientes" da ação dos grupos com mais estudo e melhor condição econômica.
As organizações comunitárias, as associações de pais e mestres, as igrejas, os clubes de serviços, os sindicatos e outras organizações existentes no município podem servir de espaço de realização, de difusores e mesmo de agentes dessa capacitação que, por meio da educação não-formal, pretende elevar o nível de conhecimento e a capacidade das famílias enfrentarem e resolverem de forma mais satisfatória os graves problemas com que hoje se defrontram.
Diferentemente das atividades de promoção e formação, que não requerem uma estrutura especializada, ou seja, um mecanismo institucional diferenciado para serem postas em prática, a orientação e a proteção sócio-familiar já requerem a estruturação de um serviço próprio para serem implementadas.
O serviço de Orientação e Apoio-Familiar deve ser a primeira retaguarda para os Conselhos Tutelares, embora não necessite ter ação limitada apenas aos casos e situações que passem por esses Conselhos. Entendemos que tal serviço pode e deve ter atribuições de natureza mais ampla.
A orientação familiar é o reconhecimento de que as dificuldades das famílias de onde vêm as crianças em situação de risco pessoal e social, material. Existem importantes necessidades humanas que freqüentemente são desconsideradas nos programas sociais dirigidos à população de baixa renda.
A orientação sócio-familiar pode ir desde o fornecimento de informações acerca do acesso a serviços ou de mecanismos legais, até o aconselhamento para enfrentamento e solução de problemas humanos mais complexos vividos no interior da família.
Essa orientação pode ser feita pelo atendimento de casos ou situações consideradas individualmente ou com grupos de famílias com problemas do mesmo tipo em áreas como violência, drogadição, prostituição, delinqüência e outras. É claro que à medida que se decida ir ampliando o que fazer nessa linha torna-se necessário o concurso de pessoal mais especializado, como assistentes sociais, psicólogos, educadores, advogados e outros.
No campo da proteção às famílias em dificuldade, principalmente aqueles cujos filhos passam pelo Conselho Nacional Tutelar ou pela Justiça da Infância e da Juventude, o serviço de orientação e apoio sócio-familiar deve estar apto para prestar diretamente ou encaminhar a família a setores competentes para prestar-lhe proteção nos seguintes âmbitos:
(i) ajuda sócio-material;
(ii) apoio humano;
(iii) de assistência judiciária.
A ajuda material pode ser prestada de maneira direta, ou, preferencialmente, indireta, encaminhando a família a outro serviço onde, através de um acordo operacional, se lhe garanta atendimento pronto e efetivo em algum tipo de ajuda material de emergência.
O apoio humano deve ser dado em caráter emergencial e, se necessário, como mais freqüente, continuado pela equipe do próprio serviço, que conforme o caso, pode recorrer externamente a recursos de especialização de que não disponha.
A assistência judiciária, necessária em certo número de casos, pode ser prestada diretamente pelo serviço de orientação sócio-familiar, caso venha a dispor de profissional habilitado para esse fim; em caso da não disponibilidade de advogado próprio (situação mais comum) a própria equipe de serviço deverá encaminhar o caso à Defensoria Pública ou outra agência, governamental ou não, em condições de prestar assistência judiciária gratuita.
Estamos conscientes do fato de que muitos municípios não possuem uma estrutura de recursos humanos capaz de instalar um Serviço de Orientação e Apoio Sócio-Familiar com muitos recursos de especialização; isto é, no entanto, não é motivo para que este tipo de serviço não seja organizado. O importante é que a equipe, ainda que pouco estruturado em termos técnicos, seja treinada para a função e saiba agir com bom senso, respeitando sempre os limites da sua própria capacidade de atuação e sabendo como e onde ajuda, quando isso se fizer necessário.
O importante é que fique claro que o Serviço de Orientação e Apoio Sócio-Familiar se coloque como um esforço sistemático no sentido de melhorar a situação de dificuldade, através da melhoria de qualidade das relações e o aprofundamento da compreensão e do desempenho dos papéis nas relações dos pais ou responsáveis entre si e destes com os filhos, sem perder de vista o seu contexto mais amplo de vida.
Nesse sentido, três grandes objetivos devem ser perseguidos:
a) O desenvolvimento de atitudes favoráveis ao normal desenvolvimento pessoal e social das crianças e dos adolescentes;
b) A melhoria do desempenho da família em suas relações com a comunidade da qual é parte e com o contexto institucional relacionado com suas necessidades e direitos;
c) O desenvolvimento da capacidade de tomar e implementar decisões em questões que dizem respeito à situação presente e futura do grupo familiar.
Como se vê, trata-se basicamente de um trabalho sócio-educativo, no sentido de prevenir ou enfrentar as tensões e conflitos que afetam a vida familiar, nos planos das relações interpessoais no seu seio e também no das relações da família com o contexto comunitário e sócio-institucional mais amplo.
Através deste tipo de serviço, é possível trabalhar problemas como:
- A violência (abuso, negligência e maltrato) contra a criança, o adolescente e a mulher na família:
- Os cuidados com os deficientes físicos e mentais;
- A prevenção e o manejo da gravidez precoce:
- Adolescentes em conflito com a lei;
- Crianças e adolescentes envolvidos em uso e tráfico de drogas, assim como a prostituição;
- E, enfim, de todas as situações capazes de colocar em risco a integridade física, psicológica ou moral das crianças e adolescentes.
Como se pode ver, os Serviços de Orientação e Apoio Sócio-Familiar deverão prestar assistência de natureza bastante ampla, tendo como finalidade geral o fortalecimento das famílias em dificuldade, de modo a evitar a sua degradação, especialmente nos municípios de grande e médio porte, onde os mecanismos informais de ajuda têm sua eficácia reduzida pela tendência à massificação e o anonimato no que se refere às relações das políticas públicas com os seus destinatários.
É sempre importante observar, no seu desdobramento, os problemas com que lidam os serviços de orientação e apoio sócio-familiar implicam, para os profissionais que neles atuam, uma relação muito estreita com as áreas de saúde, educação desenvolvimento comunitário e assistência jurídica existentes nos municípios.
O desenvolvimento dessa linha de serviços pode ter para as crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social alguns impactos da maior relevância:
a) A redução da venda e do tráfico de crianças, como das adoções (nacionais e internacionais) através da melhoria das condições de manutenção do vínculo familiar;
b) A diminuição da institucionalização compulsória, seja de crianças abandonadas e deficientes, seja de adolescentes em conflito com a lei;
c) A melhoria das condições de permanência daquelas crianças e adolescentes que se vêem forçados a sair de casa em razão da violência dos pais ou responsáveis entre si e/ou contra seus filhos e dependentes;
d) o aumento da capacidade da família fazer valer os seus direitos e buscar ajuda social e jurídica, quando estes se vejam ameaçados ou transgredidos, usando os mecanismos existentes na Constituição, nas leis e nas organizações governamentais e não-governamentais de atendimento, promoção e defesa da criança, do adolescente e da família.
Outra possibilidade é que o Serviço de Orientação e Apoio Sócio-Familiar venha assumir um importante papel educativo em questões relacionadas com a planificação familiar e com a melhoria da situação da mulher, desde que seus membros sejam capacitados, técnica e politicamente, para o exercício desse tipo de atividade em relação às famílias em situação de especial dificuldade.
Capítulo V
Por onde começar?
"Vá ao encontro do seu povo,
Ame-o,
Aprenda com ele,
Sirva-o,
Planeje com ele,
Comece com ele aquilo que ele sabe,
Construa sobre aquilo que ele tem".
(Kwame Krumá)
O primeiro caso do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, no cumprimento de seu mandato de formular a política de atendimento aos direitos da população infanto-juvenil, é, sem dúvida alguma, promover a análise da situação desse segmento da população, objetivando saber em que ponto o município se encontra nesse campo e para onde se faz necessário caminhar ao longo dos próximos anos.
Esta é uma tarefa de natureza basicamente técnica. Trata-se de natureza basicamente técnica. Trata-se, porém, de um pré-requisito fundamental para que o município possa desenhar sua política, atendendo realmente às necessidades mais sentidas de suas crianças e jovens. Os membros do Conselho poderão constituir uma comissão, envolvendo pessoas do município que tenha condições, em termos de capacidade e disponibilidade, para dedicar-se a esta tarefa, ou poderão ainda recorrer ao apoio técnico de organizações governamentais ou não-governamentais com atuação e competência nesta área.
O diagnóstico visa levantar a situação das crianças e adolescentes no município em relação ao atendimento de seus direitos consagrados na Constituição e nas leis. Através dele é possível obter-se uma visão dos principais problemas, tanto em termos de cobertura (atendimento/desatendimento), quanto no que diz respeito à efetividade das ações desenvolvidas em favor da população infanto-juvenil.
Para realizar a análise de situação, devemos definir as áreas a serem diagnosticadas (políticas sociais básicas, assistência social, proteção especial garantias), qual a indagação básica (pergunta geradora) em relação a cada área, quais os indicadores que nos permitem saber o que está acontecendo, quais os indicadores que nos permitem saber o que está acontecendo, quais as informações necessárias para construir esses indicadores, e como e onde buscar essas informações.
Uma vez delineada o que e como queremos saber, a etapa seguinte é a coleta das informações, a ordenação e comentário analítico do material obtido e a elaboração e divulgação do relatório final da análise da situação da criança e do adolescente no município.
A situação econômica do município, os seus dados demográficos e territoriais, as condições sanitárias, as condições de habilitação e as formas de organização social são informações que devem introduzir e emoldurar os dados e informações mais específicas relativas às políticas, programas e ações em favor da criança e adolescente.
No âmbito mais estrito da atenção infanto-juvenil, a análise de situação deve abranger:
a) Os níveis de atendimento às necessidades básicas nas áreas de saúde, educação, cultura, lazer, esporte e profissionalização;
b) As condições de assistência àqueles que se encontram em estado de necessidade por falta de alimentação, vestuário, abrigo e outras condições mínimas de bem-estar e de dignidade;
c) A existência e as formas de proteção especial às vítimas de abandono e tráfico, de abuso, negligência e maltrato na família e nas instituições, as crianças e adolescentes que vivem e trabalham nas ruas, as envolvidas em exploração laboral, drogadição, prostituição e conflito com a lei;
d) A situação das garantias à liberdade, ao respeito e à dignidade das crianças e adolescentes em face do sistema de administração da justiça juvenil e de outras instâncias da sociedade e do Poder Público.
Onde buscar essas informações? As fontes são múltiplas. Elas abrangem o exame das estatísticas do IBGE, os dados e informações existentes nós órgãos de pesquisa e nas secretarias e órgãos estaduais voltados para o planejamento e a execução das políticas sociais, as secretarias e outros órgãos municipais com atuação nesta área, as organizações não-governamentais, os especialistas e as pessoas com atuação reconhecida e expressiva em favor da criança, a polícia, a Justiça da Infância e da Juventude, as próprias crianças e adolescentes, assim como suas famílias.
Os procedimentos que podem ser adotados para se obter as informações necessárias são também numerosos e variam conforme a situação, a natureza das fontes, o nível de detalhamento pretendido e as condições de acesso ao que se pretende. Eles vão desde a análise de documentos até a observação direta de um determinado fenômeno, passando pelos questionários, entrevistas, estudos de casos, dramatização, histórias de vida e outras.
A elaboração do relatório deve proceder à descrição e organização das informações obtidas, indicando os vazios de cobertura em cada área e aqueles setores em que as ações existentes não se estão revelando adequadas e eficazes. A estrutura do relatório deve ser lógica e sua linguagem a mais clara e acessível.
Além dos conselheiros governamentais e não-governamentais e das autoridades do Executivo, vereadores, técnicos, lideranças privadas. Trabalhistas, religiosas e comunitárias, enfim, todas as pessoas que se interessem pelo conteúdo do relatório devem ter acesso a ele. Entendemos mesmo que a apresentação inicial do relatório deve ser feita num seminário amplo, aberto à participação de todas as forças vivas da sociedade local.
Uma vez concluído, divulgado e discutido o relatório, o passo seguinte é elaborar o Plano Municipal de Atendimento à Criança e ao Adolescente, estabelecendo as prioridades, formulando os objetivos, definindo as estratégias e prevendo os recursos necessários para sua execução. A análise da situação da criança deve ser base do planejamento, isto é, as deficiências e lacunas apontadas no diagnóstico devem estar refletidas nos objetivos e metas do plano.
O Plano Municipal é um instrumento de abrangência ampla. Para a consecução de seus objetivos convergentes e complementares, cada área de política setorial deve elaborar um programa composto, por sua vez, de projetos destinados a delinear as intervenções orientadas para os aspectos mais específicos da realidade.
A execução do Plano Municipal de Atendimento à Criança e ao Adolescente envolve "um conjunto coordenado de ações governamentais e não-governamentais ". Isto implica a necessidade de se criar um mecanismo de coordenação no nível do Executivo. Esta instância coordenadora pode ser o órgão responsável pelo planejamento municipal ou um grupo constituído por representantes dos órgãos e entidades envolvidas na implementação do plano ou ainda o próprio chefe do Executivo municipal.
Ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente cabe controlar, através do acompanhamento e da fiscalização das ações, a implementação do plano em termos da sua execução físico-financeira e de suas conseqüências práticas para as crianças, adolescentes e famílias beneficiadas.
Para se aferir o mérito, a relevância e o impacto das ações realizadas faz-se necessário proceder à avaliação sistemática dos resultados obtidos, tendo como parâmetro os objetivos e métodos propostos na fase de formulação.
Tanto por motivos de natureza técnica (eficiência e eficácia do processo) como por razões de natureza política (democratização das relações) é importante ter sempre em conta a necessidade de que a avaliação seja sempre conduzida de maneira mais participativa possível, envolvendo os diversos segmentos relacionados com as questões em pauta.
Capítulo VI
E os recursos?
"A criança é nossa mais
rica matéria-prima. Abandoná-la à sua própria sorte ou desassisti-la em suas
necessidades de proteção e amparo é crime de lesa-pátria". (Tancredo
Neves)
Em política social, antes de perguntarmos: - "Quanto custa fazer isto? - devemos perguntar: - Quanto custa não fazer isto?"
Só assim poderemos vislumbrar o impacto de nossas omissões sobre a realidade pessoal e social daqueles a quem se dirige nosso trabalho.
Foi com essa preocupação que os Fundos Nacional, Estadual e Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente foram introduzidos no Estatuto. Através deles, se estabelece, em cada um dos três níveis da Federação, um mecanismo de financiamento das ações deliberadas pelos Conselhos, de modo que o processo de formulação de políticas não se veja reduzido, pela falta de meios, a um mero exercício de bons sentimentos, boas idéias e boas intenções.
Como veremos, os Fundos podem receber recursos de um conjunto diversificado de fontes, tanto do Poder Público, como de pessoas e organizações da sociedade civil. A composição das dotações de um Fundo, quando consideradas as suas fontes, nos permite ter uma visão do nível real de compromisso, isto é, de adesão concreta de uma comunidade local com o atendimento aos direitos de sua população infanto-juvenil.
De fato, a análise da proveniência dos recursos direcionados a um determinado Fundo municipal nos permite observar se o compromisso do Poder Público local (Executivo e Legislativo) com a Criança e o Adolescente é concreto ou meramente retórico. Assim também, poderemos mensurar a dimensão do apoio das esferas federal e estadual do governo às crianças daquele município, bem como a participação financeira das pessoas das organizações não-governamentais preocupadas com esta questão.
O significado político de um Fundo municipal é que ele permite a concentração dos recursos nas mãos do Conselho, propiciando condições para que o município possa traçar uma política global de atendimento à sua população infanto-juvenil. Esse tipo de política evita a pulverização dos recursos, a superposição e o paralelismo de ações, que sempre resultam em ineficácia e desperdício, como, infelizmente, é extremamente ocorrer em nosso país.
Quanto à estruturação e ao funcionamento dos fundos existem ainda muitas dúvidas. Os municípios criam e instalam os Conselhos de Direitos e depois ficam, freqüentemente, embaraçados no processo de organização e operacionalização dos Fundos. Isto é de certa forma natural e até mesmo esperado uma vez que, no Brasil, não temos tradições, em nível local, de atuar através deste tipo de mecanismos político-financeiro.
Podemos dividir as dificuldades em relação aos Fundos em dois grupos:
a) O primeiro constituído por questões de natureza substantivamente política;
b) O segundo, abrangendo aspectos técnicos, ligados à estrutura e funcionamento desse mecanismo novo de nossa política social.
As questões políticas em relação aos Fundos são duas: (i) é possível organizá-los como entidades autônomas, isto é, independentes do Poder Público local? E (ii) os recursos devem ser destinados a apoiar ações em todas as linhas da política de atendimento, estabelecidas pelo Estatuto, ou delimitar a sua cobertura financeira a um conjunto mais restrito de iniciativas?
Quanto à primeira questão, parece já não haver muitas dúvidas. O exame da legislação sobre a matéria aponta claramente que, sendo recursos públicos, ainda que de origem governamental e não-governamental, as dotações dos Fundos devem ter o mesmo tratamento previsto na legislação para o conjunto das verbas públicas em nosso País.
Quanto à segundo questão, a resposta não pode ser tão simples e direta. Impõe-se, neste aspecto, a necessidade de introduzir-se uma distinção entre a esfera de deliberação, em termos de formulação de políticas, e a esfera de apoio financeiro, quando se considera a atividade do conselho Municipal de direitos, que é o órgão politicamente gestor do Fundo.
Em termos de formulação da política de atendimento (conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais) aos direitos da criança e do adolescente, a esfera de atribuições do Conselho Municipal é de natureza ampla. Isto quer dizer que o Conselho deve deliberar, como já vimos antes, sobre as políticas sociais básicas, as políticas de assistência social e de proteção especial, sem deixar de preocupar-se com as ações de natureza garantista a cargo do Poder Público estadual, Segurança Pública, Ministério Público, Defensoria Pública e Justiça da Infância e da Juventude.
Em termos de apoio financeiro, com recursos do Fundo municipal, as atribuições dos Conselhos de Direitos são, na forma de presente organização de nossa política social, basicamente de natureza restrita. Os Conselhos devem, em princípio, eximir-se de apoio a ações de atenção direta no campo das políticas básicas, concentrando seus recursos nas ações destinadas ao atendimento das crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social e/ou em estado de necessidade.
Por que isto ocorre? Isto ocorre porque as políticas sociais básicas, educação, saúde, esporte, cultura, lazer e profissionalização, contam já com um nível de estruturação jurídico-administrativo, que prevê mecanismos próprios de organização e de financiamento, prescindindo, assim, do concurso dos recursos do Fundo para o financiamento de suas ações. Algumas delas contam, inclusive, com seus próprios Fundos e Conselhos, como é o caso da educação e da saúde.
Assim, somente em caráter excepcional é que ações de natureza específica, âmbito restrito e prazo curto das políticas sociais básicas poderão receber apoio do Conselho dos Direitos com recursos do Fundo Municipal. Normalmente, esses recursos deverão ser destinados prioritariamente para:
a) Apoio a ações de atendimento direto a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social e/ou em estado de necessidade;
b) Capacitação dos recursos humanos dos programas de atendimento (pessoal dirigente, técnico e auxiliar), visando à melhoria das formas de atenção direta, assim como o desenvolvimento de atividades formativas destinadas a elevar os níveis de competência técnica e política dos próprios membros dos Conselhos Municipais;
c) Apoio a processos de mobilização social (sensibilização, conscientização, organização e engajamento) dos diversos segmentos da sociedade local na política de atendimento, promoção e defesa dos direitos da população infanto-juvenil;
d) Atividades de estudo e pesquisa, principalmente nas áreas de análise da situação da criança e do adolescente no município e de avaliação das ações em curso, de modo que se possa ter um conhecimento mais objetivo do seu mérito, de sua relevância e do seu impacto sobre as crianças, adolescentes, famílias e comunidades.
Outra distinção importante a ser feita na relação Conselho/Fundo é em relação à gestão do Fundo pelo Conselho de Direitos. Impõe-se, neste aspecto, estabelecer a distinção entre dois níveis de gestão:
(i) a gestão política e
(ii) a gestão administrativa do Fundo.
A gestão política do Fundo é de competência única e exclusiva do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, entendida como a parte de sua atribuição de formular a política de atendimento, através, não só do desenho das ações, mas também, e fundamentalmente, garantindo os recursos para sua efetiva implementação.
Já a gestão administrativa do Fundo, não resta dúvida, esta é da competência do Executivo municipal, através da secretaria ou departamento responsável pelo gerenciamento dos recursos públicos municipais. Cabe salientar, no entanto, que os recursos do Fundo devem estar depositados em uma conta especial e que só poderão ser utilizados mediante deliberação do Conselho de Direitos, que é, em última análise, quem determina em que, quando e de que maneira o dinheiro público destinado à criança e ao adolescente deve ser empregado.
Quanto aos aspectos de natureza mais técnica, relativos à estruturação e ao funcionamento dos Fundos, passaremos a elencar aqui recomendações do CBIA nesta área, que refletem, de forma fiel, a legislação vigente a respeito dessa matéria. Para isso, utilizaremos a cartilha O Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, elaborada sob a coordenação da equipe do escritório do Rio Grande do Sul, com a participação de um expressivo conjunto de entidades governamentais e não-governamentais, dando assim prosseguimento aos esforços desenvolvidos em Brasília por Paulo Brum e um expressivo grupo de especialistas e lideranças de diversos segmentos interessantes no assunto.
Observações e recomendações relativas à estrutura e funcionamento dos Fundos Municipais
1) As atribuições dos Conselhos de Direitos em relação aos Fundos Municipais:
a) Elaborar o "Plano Municipal de Atendimento à Criança e ao Adolescente" e o "Plano de Aplicação dos recursos do Fundo".
b) Estabelecer as diretrizes políticas e os parâmetros técnicos aplicáveis ao processo decisório em relação aos recursos do Fundo.
c) Examinar e aprovar os balancetes mensais e o balanço anual do Fundo.
d) Solicitar, a qualquer tempo e a seu critério, as informações necessárias ao acompanhamento (controle e avaliação) das atividades subsidiadas com recursos do Fundo.
e) Mobilizar os diversos segmentos da sociedade local para a participação na constituição do Fundo, na sua destinação e na fiscalização do seu uso.
2) O Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente é uma "unidade de Administração Direta" e, como tal é administrado pelo Executivo municipal.
3) O órgão do Executivo (secretaria ou departamento) responsável pelas finanças do município deve prestar contas regularmente ao Conselho Municipal, assim como, cumprindo as determinações do Decreto-Lei 200/67, ao Tribunal de Contas.
4) O ordenador de despesas relativas aos recursos do Fundo deve ser funcionário público municipal.
5) Os recursos não contemplados no orçamento, que forem recebidos pelos fundos, passarão a integrá-lo após aprovação do Legislativo municipal, sob a forma de créditos adicionais.
6) Como qualquer outro setor da Administração Pública, o controle interno dos Fundos é feito pelos seus gestores político administrativo com vistas ao atendimento pleno de seus objetivos. Tal controle deverá:
a) promover a eficiência e a economia nas operações;
b) salvaguardar os recursos contra desperdícios e perdas indevidas;
c) reduzir passivos e custos a um mínimo;
d) assegurar precisão e confiabilidade nas informações internas;
e) atingir os objetivos e metas programados;
f) os modelos de controle deverão atender às peculiaridades de cada entidade, levando-se em conta a sua dimensão e a complexidade de suas ações.
7) As entidades beneficiadas com recursos do Fundo deverão prestar contas de seu uso ao respectivo Conselho.
8) O controle externo dos recursos do Fundo é feito pela Câmara de Vereadores e pelo Tribunal de Contas e deverá integrar a prestação de Contas do Administrador Municipal.
9) Os Fundos são "o produto de receitas especificadas que, por lei, se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação" (art. 71 da Lei 4.320/64).
1) A criação dos Fundos Nacional, Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, pela Lei 8.069/90, foi uma resposta à necessidade de se criar um mecanismo inovador e amplo de financiamento para as ações em favor da população infanto-juvenil.
2) Os Fundos Municipais são formados por recursos do orçamento municipal, transferências do Estado e da União e doações de pessoas físicas e jurídicas que, no conjunto, configuram um elenco amplo de alternativas de captação financeira.
3) Os recursos que integram os Fundos são recursos públicos e, portanto, sujeitos às leis e normas que regulamentam essa matéria.
4) Os recursos que compõe os Fundos Municipais devem ser direcionados, prioritariamente, aos programas de atendimento a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social e/ou em estado de necessidade, podendo também utilizá-los na capacitação de recursos humanos, na mobilização social e na produção de estudos e pesquisas.
5) O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente é o gesto político do Fundo, isto é, delibera sobre seus fins e sua destinação. O gestor administrativo dos Fundos é o órgão encarregado pelas finanças do município.
6) O controle interno do Fundo é feito pelos seus gestores políticos e administrativos. O controle externo é feito pelo Legislativo municipal e pelo Tribunal de Contas.
Capítulo VII
Poder
participativo
A nova esperança ética e política
"Devemos buscar a sociedade organizada para participar; o Governo não deve gerenciar sozinho. E a experiência da co-gestão tem sido altamente positiva, com várias entidades e instituições dando sua contribuição". (Governador Albuíno Azeredo).
Participação, conquista e desafio.
A participação da população na formulação das políticas públicas e no controle das ações governamentais é, ao contrário do que temem muitos dos nossos dirigentes, um fator de fortalecimento do município, nesta complexa e desafiador etapa inicial dos anos noventa. São muitas as razões que nos levam a pensar dessa forma. Ao longo das próximas páginas, pretendemos elencar algumas delas.
A Constituição de 5 de outubro de 1988 reconheceu, finalmente, no município, a base do nosso sistema federativo, rompendo com séculos de tradição centralizadora e autoritária, herança trágica do passado colonial, que subsistiu durante todo o curso da nossa evolução histórica.
As duas décadas de regime autoritário só fizeram fortalecer essa tendência, que vem do fundo de nossa formação. A reforma tributária de 1965 fortaleceu a União, restringiu os Estados e, praticamente, esmagou os municípios em termos de receita. A ela vieram somar-se os Textos Constitucionais de 67 e 69, que fortaleceram o Executivo federal e debilitaram imensamente o legislativo.
A conseqüência desse conjunto de medidas foi que o Governo federal passou a ter que assumir funções típicas do Poder local, superpondo-se aos Estados e municípios, através do exercício das chamadas competências concorrentes. Esse modelo significou, na prática, o esvaziamento da Federação e a instalação, entre nós, de um verdadeiro Estado Unitário.
Os efeitos desse modelo sobre as políticas sociais foram extremamente perversos e, infelizmente, suas conseqüências prolongam-se ainda até os dias de hoje. Os grandes pacotes fechados, contendo programas pré-estruturados, vinham cair com freqüência nas mãos dos prefeitos, que, sem receita própria, aderiram de maneira incondicional às imposições de Brasília. Os centros urbanos são um dos emblemas desse período. O período do "pires na mão" e do "pega ou larga" diante das "ofertas" dos órgãos federais.
A partir da segundo metade dos anos setenta, no entanto, começam a surgir experiências inovadoras em alguns municípios. É o tempo da "distensão lenta, gradual e segura" do regime militar. Os controles políticos rígidos de iniciativa e de criatividade para o nível local de governo.
São desse período duas experiências que acabaram por obter repercussão nacional, entusiasmando muitos município a procurarem seguir, com maior ou menor sucesso, as pegadas dos pioneiros: a administração de Dirceu Carneiro em Lages, Santa Catarina, e a de Amaro Coyre, em Boa Esperança, no Espírito Santo. O primeiro, do MDB, o segundo, do PDS, dois dirigentes municipais que foram capazes de romper com sucesso as amarras do municipalismo de cabresto daqueles tempos difíceis, ainda que situados em pontos diferentes no campo partidário.
A nova Carta Magna recolheu o que havia de melhor, no patrimônio de idéias e experiências, acumulado nesse período, incorporando-o no seu texto. Assim, a participação deixa de ser um fenômeno à margem da legislação, para passar a constituir um dos pilares institucionais da nova democracia brasileira.
A elaboração de Lei Orgânica própria em cada município, a participação das associações representativas no planejamento municipal, a iniciativa popular na apresentação de projetos de lei, por manifestação de pelo menos 5% do eleitorado, o plebiscito e o referendo, introduzidos como meios de consulta direta ao conjunto da população, o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção, a ação popular, visando anular ato lesivo ao patrimônio público, passam a constituir a nova ferramenta da reconstrução democrática da vida nacional brasileira, abrindo possibilidade de participação inéditas em todo o curso anterior da nossa trajetória com o povo-nação.
Hoje, segundo o professor Luís de La Mora, um estudioso do fenômeno da participação, três posturas disputam a hegemonia em relação a essa nova dimensão da nossa democracia.
A primeira é a participação sem crítica, defendida por aqueles dirigentes que só admitem a "participação" não-governamenal em suas administrações num clima de plena e total submissão, funcionando apenas como chancela e respaldo de suas iniciativas no campo social.
A segunda é a daqueles que defendem a crítica sem participação, ou seja, não acreditam em nenhuma alternativa que não passe por uma mudança radical nas estruturas e, portanto, recusam-se a envolver-se em qualquer tipo de mudança parcial da realidade.
A terceira é a posição daqueles que já compreenderam a democracia como um processo que implica, ao mesmo tempo, consenso e divergência: consenso, na aceitação das regras básicas do jogo democrático; divergência, na madura compreensão do fato que a conflitividade de pontos de vista e de interesses, longe de ser um sinal de debilidade, é um indicador de saúde e força da vida democrática em todos os níveis e situações.
Para levar à prática essa terceira posição, temos que mudar nossa maneira de entender e agir em relação a aspectos consagrados da nossa cultura política e administrativa.
Vejamos alguns deles:
a) Nossas estruturas administrativas são, freqüentemente, lentas, burocráticas, pesadas demais para conviver com o ritmo e a intensidade das demandas dos diversos segmentos da população;
b) Os prefeitos temem que a abertura do processo de participação venha a solapar-lhes a autoridade legitimamente conquistada nas urnas;
c) Os vereadores temem que os Conselhos se tornem um poder concorrente com o legislativo municipal, esvaziando seu papel de portadores dos interesses comunitários junto ao Executivo;
d) Os funcionários municipais temem que a estrutura e o funcionamento de seus órgãos sejam questionados em sua eficácia e, até mesmo, em sua existência e, em nome da defesa de seus interesses profissionais, refugiam-se no corporativismo mais obtuso e estreito;
e) Aqueles setores da iniciativa privada que sempre desfrutaram de uma intimidade lucrativa com o poder (concessionários, empreiteiras, fornecedores e prestadores de serviço) logo percebem que a transparência e a participação de outros segmentos da sociedade na administração pública vai contra a lógica de seus interesses e, "antes que o mal cresça", procuram por todos os meios desacreditar e obstruir as iniciativas que caminham no sentido da participação; mal remunerados, desmotivados e ressentidos, freqüentemente os funcionários públicos procuram desgostar pelo ceticismo pessimista das inovações, criando bolsões passivos e ativos de resistência a qualquer mudança de paradigma na Administração municipal.
Essas dificuldades são extremamente reais e fazem parte do dia-a-dia da nossa vida administrativa. Diante de tudo isso, é de se perguntar: vale a pena lutar para romper este quadro estagnador e contraproducente? Entendemos que sim e damos aqui alguns motivos que pulsam na base da nossa convicção:
- Através da participação, as organizações representativas da população "tomam pulso" da situação do município, ao visualizar e discutir o que precisa e o que pode ser feito no marco dos recursos existentes;
- Esse processo, desagregador em si mesmo, acaba atraindo e envolvendo na busca de soluções pessoas competentes e criativas dedicadas e outras atividades fora da administração pública e, portanto, isentas de sua maneira peculiar de encarar a realidade. A introdução de novos enfoques, convém lembrar, é sempre um ganho para a gestão do interesse coletivo;
- Uma vez conscientizada da real situação pelas suas lideranças, a população torna-se naturalmente mais realista, passando a compreender melhor por que certas coisas não foram possíveis a valorizar melhor aquilo que, efetivamente, se conseguiu;
- A disposição de contribuir na arrecadação melhora, em razão do mais amplo conhecimento pela população dos propósitos e do trabalho do governo municipal;
- As resistências às mudanças diminuem, à medida que, dentro e fora do serviço público, um número maior de pessoas passa a ter uma consciência mais clara dos destinos da coletividade;
- Rompida a distância entre governantes e governados, o trabalho conjunto emerge como conseqüência natural das responsabilidades compartilhadas e dos desafios assumidos em parceria;
- A transparência impõe, por si mesma, um clima natural de contenção e de austeridade por parte dos funcionários e dirigentes no trato com a coisa pública;
- A Câmara de Vereadores se fortalece e se legitima ao abrir os espaços legais, e ao colocar-se, perante a população, como o suporte político e o controlador por excelência das ações do Executivo em favor do bem comum.
A mais importante dessas razões, no entanto, é que as Administrações municipais que mais deram certo no Brasil, nos últimos anos, foram aqueles que souberam ouvir, envolver e mobilizar as melhores energias e talentos da comunidade na busca de soluções dos problemas que afetam o seu dia-a-dia.
O mais importante para nós, neste momento, é evidenciar o vínculo profundo de todo esse processo histórico-social com a política de atendimento, promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente no município, que é, aliás, uma das faces mais importantes, ainda que pouco conhecida e valorizada, do reencontro do Brasil com a democracia.
As recentes mudanças no panorama legal brasileiro, na área da promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente, abriram amplos espaços de participação à cidadania organizada na formulação e no controle das políticas públicas. O campo de ação que se estende diante dos que querem trabalhar e lutar pelos direitos da população infanto-juvenil é vasto, complexo e comporta possibilidades inéditas de ação. Ocupá-lo de forma competente, responsável e madura tornou-se o grande desafio deste início de década para todos os que atuam nesse campo.
É certo que, para tirar do papel as conquistas legais, é de fundamental importância a criação dos Conselhos Nacional, Estaduais e municipais previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente. E isto, com maior ou menor dificuldade, vem ocorrendo. A cada dia, novos Estados e municípios vão se juntando ao grupo dos que já produziram suas leis e estão empenhados na implantação desse fundamental mecanismo de participação.
No entanto, uma vez implantados, os Conselhos têm experimentado uma dificuldade muito grande em cumprir o papel que deles se espera. Essa dificuldade não resulta primordialmente da falta de competência técnica de seus membros. Na verdade, ela decorre antes de dificuldades de natureza política, seja na definição do papel dos Conselhos, seja na delimitação de seu espaço ou na correta compreensão das suas possibilidades e limites.
Trata-se de um fenômeno perfeitamente compreensível quando consideramos as vicissitudes da nossa formação histórica. Somos um País construído de fora para dentro e de cima para baixo. Nossa experiência de participação de cidadania organizada na formulação e no controle das políticas públicas é muito pequena. Praticamente não existe. Que fazer, então, para enfrentar essa secular deficiência?
A resposta a essa questão deve ser buscada em nossa experiência recente, ou seja, no grande esforço de mobilização social e política que veio culminar nas extraordinárias conquistas em favor da infância e da juventude introduzidas na Constituição de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Um dos momentos de maior impacto da luta pelas Diretas-já no Brasil foi, sem dúvida alguma, o comício do Rio de Janeiro, quando centenas de milhares de pessoas saíram às ruas para exigir a volta do País à democracia. O primeiro orador foi o advogado Sobral Pinto, um homem então com quase noventa anos, figura emblemática da luta pelos Direitos Humanos e pela justiça no Brasil.
Diante da enorme multidão concentrada em torno do palanque e ampliada às dimensões do País pelo rádio e pela televisão, o Dr. Sobral Pinto limitou seu discurso a uma única frase, tirada do artigo 1º da constituição Federal: "Todo o Poder emana do povo e em seu nome será exercido".
Ditas do alto da exemplar coerência de quase um século de vida inteira e exemplarmente à defesa das liberdades, as palavras do Dr. Sobral Pinto galvanizaram a Nação. Naquele momento, nenhum democrata brasileiro deixou de sentir o impacto emocional, ético e político do seu discurso, um discurso que pôs a nu em praça o regime de exceção.
A Constituição de 5 de outubro de 1988 veio acrescentar alguma coisa de muito importante às palavras ditas por Sobral Pinto naquele instante memorável, ao afirmar no parágrafo único do artigo 1º: "Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".
Essas palavras inauguram uma possibilidade nova de exercício do poder democrático no Brasil. Ao lado da dimensão representativa, a democracia brasileira torna-se também uma democracia participativa. A partir daí o poder pode ser exercido já não mais apenas pelos representantes eleitos, todavia também diretamente, dentro das formas estabelecidas na Constituição e nas leis.
Muitos, no entanto, são os obstáculos ao exercício direto do poder político pela população. O professor italiano Norberto Bobbio costuma apontar três dos principais: a tecnificação, a burocratização e a dimensão demográfica das grandes democracias de massa neste final de século XX.
O primeiro obstáculo é a tecnificação. A tecnificação diz respeito aos elementos de especialização, em termos de conhecimento, exigidos para a tomada de certas decisões muito complexas e de grande mérito e relevância em termos de impacto político.
O segundo obstáculo é a burocratização. A cada dia o sistema de regulamentação das atividades na esfera do poder público vai assumindo caráter cada vez mais intrincado e, portanto, de compreensão dificilmente acessível ao comum das pessoas.
O terceiro obstáculo é a dimensão demográfica das sociedades modernas, que inviabiliza assembléias populares e outras formas de participação direta pela dificuldade de envolver o conjunto de uma população em atividades desse tipo.
Por aí, pode-se ver que foi um grande desafio, para os redatores do Estatuto da Criança e do Adolescente, encontrar um mecanismo que permitisse à população, "através de suas organizações representativas, participar da formulação das políticas e do controle das ações em todos os níveis", em tudo o que diga respeito ao atendimento, à promoção e à defesa dos direitos da criança e do adolescente.
Depois de amplas e democráticas discussões, o caminho escolhido para viabilizar a "participação da população, através de suas organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis" foram os Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Através dos Conselhos, se introduziu o princípio da colegialidade nas atividades de desenho, normatização e vigilância das políticas públicas dirigidas ao atendimento, promoção e defesa dos direitos da população infanto-juvenil.
Esses Conselhos são paritários, deliberativos, normativos, formuladores de políticas e controladores das ações, em todo os níveis, isto é, no nível da União, dos Estados e dos Municípios. Estas são as características inéditas no que diz respeito aos Conselhos da área social no Brasil, portanto, vale a pena determo-nos um pouco mais em cada uma de suas características básicas.
Os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente são paritários, isto é, têm igual número de membros governamentais e não-governamentais. Isto quer dizer que as decisões emanadas por maioria de um Conselho não são decisões do Governo e nem da sociedade. Cada decisão do colegiado significa que pessoas do Governo e pessoas da sociedade civil foram capazes de construir um consenso sobre determinado item da política de atendimento aos direitos da população infanto-juvenil.
Nenhum dos lados do conselho, o governamental e o não-governamental, pode impor a sua vontade de maneira unilateral. Isto implica a exigência do diálogo e da disposição para a identificação de pontos comuns sobre os quais se possa avançar.
Outra característica muito importante dos Conselhos é o seu caráter deliberativo. Não se trata, pois, de um Conselho Consultivo, um Conselho que dá apenas sugestões, palpites e opiniões. Os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente são decisores públicos colegiados, isto é, que for decidido no conselho deve ser transformado em política pública pelos órgãos competentes das administrações federal, estaduais ou municipais.
A função normativa dos Conselhos dos Direitos da Criança decorre da sua atribuição de emitir portarias, resoluções, pareceres e outros instrumentos que orientem, no contexto de suas atribuições, o cumprimento das disposições contidas na legislação.
Qualquer norma emitida pelo Conselho deve guardar uma observância e um respeito estritos às disposições legais concernentes à matéria que estiver sendo objeto de sua regulamentação.
O papel controlador dos Conselhos está relacionado à transparência das ações desenvolvidas para o atendimento, a promoção e a defesa dos direitos da criança e do adolescente. Essa transparência deve ser total e estender-se a todos os momentos e aspectos relativos ao funcionamento dos programas e ações em curso na esfera do poder público ou das entidades não-governamentais que operam com recursos públicos.
O gasto social público, os cronogramas de execução físico-financeira dos programas e o mérito, a relevância e o impacto junto à população infanto-juvenil devem ser objeto de um constante, severo e sistemático controle por parte do Conselho Municipal, sob pena de, por omissão, os conselheiros tornarem-se co-responsáveis pelas distorções e abusos cometidos pelos órgãos de governo e pelas entidades não-governamentais responsáveis pela implementação da política de atendimento à criança e ao adolescente no município.
Capítulo VIII
União -
Estado - Município
Uma nova divisão do trabalho social
"Não é do governo federal para o Governo municipal que vamos resolver o problema. É da família para o município, para o Estado, para a União. É assim que vamos trabalhar." (Governador Vilson Kleinubing)
Nos sistemas federativos verifica-se a divisão de funções entre os diversos níveis de governo, que se sobrepõem no território, gozando de doses determinadas de autonomia política e administrativa.
Assim, a União, os Estados e os municípios são detentores de determinadas competências no âmbito de suas atribuições.
No que se refere á política social, no entanto, em termos práticos, a repartição de encargos para a prestação de serviços à população tem sido ainda marcada pela indefinição de fronteiras funcionais entre as três esferas.
Isto se dá pela prevalência fática da competência concorrente, ou seja, os vários níveis de governo podem desincumbir-se, ao mesmo tempo, de uma mesma função.
No que se refere às políticas sociais (saúde, educação e assistência) a Constituição de 5 de outubro avançou bastante, buscando superar as dificuldades e impasses gerados pela indefinição de competências, que gera duplicação de esforços, de um lado, e de outro lacunas na prestação de certos serviços, acarretando desperdício de recursos físicos, materiais, financeiros e humanos.
A responsabilidade de um determinado nível governamental pela prestação de um determinado serviço facilita a relação usuário-governo e, principalmente, o controle social da população sobre a ação governamental.
Outra vantagem decorrente de uma clara divisão de competências é que ela contribui para eliminar os chamados conflitos institucionais que, via de regra, refletem interesses corporativos, político-partidários e econômicos que não dizem respeito aos interesses e reais necessidades do público destinatário das ações em pauta.
Finalmente, é importante ressaltar que somente através de um divisão claramente definida de trabalho social torna-se possível uma repartição adequada correspondência entre recursos e encargos.
A chamada teoria das escalas, desenvolvida por técnicos do IBAM, pode ser aplicada à ação governamental, para se identificar a conveniência ou não de determinado nível de governo absorve determinado serviço.
Enquanto esquema técnico de repartição de encargos, a teoria das escalas considera os seguintes aspectos:
a) escala do alcance espacial (geográfica);
b) escala econômica;
c) escala financeira;
d) escala técnica;
e) escala político-institucional.
A escala geográfica considera a difusão espacial de custos e benefícios da ação governamental. Ela nos permite identificar se a prestação de um determinado serviço deve ser federal, municipal ou estadual ou metropolitano. Os limites territoriais são naturais, enquanto que os limites político-institucionais são inteiramente artificiais, ou seja, decorrem diretamente da legislação.
A escala econômica visa encontrar a solução organizacional menos custosa para a prestação de um dado serviço. Às vezes o mais lógico é fragmentar os recursos ao nível dos diversos municípios. Outra vez, no entanto, a racionalidade econômica recomenda a sua concentração nas mãos do Estado ou na União.
A escala financeira diz respeito à capacidade dos níveis infrafederais de governo contarem com recursos tributários suficientes para dar conta do que lhes é atribuído na divisão político-institucional do trabalho social entre a União, os estados e os municípios. O descompasso entre competência e recursos desequilibra o sistema federativo e acaba por limitar, em termos práticos, a autonomia municipal.
A escala técnica diz respeito aos requisitos, em termos de concentração de recursos de especialização, para o desempenho adequado de uma determinada função em termos de complexidade tecnológica do serviço, qualificação dos recursos humanos necessários à sua prestação, natureza e complexidade das instalações e equipamentos requeridos e, finalmente, os métodos e processos de gerência e operação.
A escala político-institucional identifica a solução de caráter normativo utilizada na regulamentação de determinadas funções ou atividades do setor público.
A consideração da escala político-institucional envolve a consideração de quatro aspectos:
a) competência legal;
b) competência de fato;
c) representação dos interesses;
d) controle.
A competência legal define os limites jurídicos - institucionais para atribuição de responsabilidade pela prestação de um determinado serviço. A competência de fato diz respeito á distribuição efetiva dos instrumentos de estímulo e controle necessários para a lida quotidiana com um dado problema (tributação, estímulos, regulação, etc.). A representação dos interesses diz respeito às relações Estado-Sociedade na gestão e prestação de serviços à população. Finalmente, o controle é o aspecto da escala político-institucional que visa garantir, assegurar níveis de transparências que permitam aos usuários dos serviços ou às organizações que os representam o acesso às informações que permitam o adequado acompanhamento das ações governamentais.
A nova estrutura da política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente está definida no art. 204 da Constituição Federal e se baseia em dois princípios:
a) a descentralização político-administrativa;
b) a participação da população, por meio de suas organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.
Quanto à descentralização político-administrativa, a Constituição limitou as ações da União, restringiu os Estados e ampliou de forma considerável o papel dos municípios.
Assim, cabem "a coordenação e as normas gerais à esfera federal, a coordenação e execução às esferas estadual e municipal, bem como às entidades beneficentes e de assistência social".
Com base nessa escala político-institucional, à União está vedada a execução direta de programas de atendimento como, infelizmente, ainda ocorre. O novo papel da esfera federal de governo se restringe à emissão das normas gerais e à coordenação nacional da política de atendimento.
A emissão das normas gerais, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, que é deliberativo, paritário, formulador das políticas e controlador das ações.
Já a coordenação nacional da política de atendimento implica o apoio técnico e financeiro aos níveis infrafederais de governo (Estados e municípios) e às organizações não-governamentais.
A função de coordenação deverá ser executada por um organismo técnico de estrutura simples, ágil e desburocratizada, que deverá operacionalizar as normas e diretrizes do CONANDA, do qual será o braço executivo, servindo ainda de "correia de transmissão" entre o Conselho e o conjunto dos órgãos da Administração Pública federal implicados no atendimento à criança e ao adolescente.
Quanto aos Estados, cada um deles deverá adaptar as normas federais à sua realidade. A coordenação será exercida numa relação de articulação (convergência e complementaridade) com os esforços desenvolvidos nessa área pela União. Já a execução de programas de atenção direta pela esfera estadual deverá ocorrer de forma suplementar ao trabalho desenvolvido nos municípios, salientando-se o fato de que, no que se refere às crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, os limites são hoje bastante claros e precisos.
Ao município caberá, com apoio técnico e financeiro do Estado e da União, organizar e estruturar uma rede de programas de proteção, que sirvam de retaguarda para os Conselhos Tutelares. Ao Estado, com apoio técnico e financeiro da União, caberá estruturar os programas e ações destinados a servir de suporte e retaguarda à Justiça da Infância e da Juventude. Como se vê, o papel dos municípios relaciona-se, fundamentalmente, com a aplicação das medidas de proteção previstas no Estatuto, enquanto o Estado deve enfatizar as medidas sócio-educativas.
A aplicação, contudo, de outras escalas, como a técnica e a financeira, junto à escala político-institucional, aponta a existência de uma área de interação entre o Estado e o município no que diz respeito à implementação das medidas sócio-educativas. Nesse sentido, o município pode e deve colaborar na implementação de medidas não-privativas de liberdade por razões de natureza técnica, como evitar afastar os adolescentes destinatários dessas medidas de sua comunidade de origem.
Ao município caberá a coordenação em nível local e a execução direta das políticas e programas em parceria com as entidades não-governamentais que nele atuam. Os governos federal e estadual já não podem seguir realizando, como infelizmente ainda ocorre hoje, funções típicas do governo local.
Capítulo IX
O município e
a mobilização social
em favor da criança e do adolescente
"Em torno deste compromisso com a criança é que nós hoje esperamos dar um passo à frente no sentido que a questão da criança e do adolescente deixa de ser um escândalo nacional e internacional pela dimensão de pobreza, de indigência e de violência que nos tem caracterizado até então e que ela passe a ser parte de uma nova página, onde no Brasil se diga que pelo menos a Criança e o Adolescente se vai respeitar". (Herbert de Souza/IBASE).
No início dos anos oitenta, através do projeto Alternativas de Atendimento a Meninos de Rua (UNICEF-SAS-FUNABEM), um passo decisivo foi dado no sentido de se romper com a política de atendimento implementada na década anterior.
Diante do fracasso dos centros de triagem e dos grandes internatos massivos e desumanos e diante da não-efetivação das promessas mobilizadoras dos núcleos preventivos (de concepção pré-estruturada e de gestão centralizada), sentiu-se a necessidade de efetivar uma profunda revisão nas práticas de atendimento.
O novo caminho consistiu em procurar "aprender com quem está fazendo", abrindo-se mão das idéias e modelos preconcebidos típicos da política social praticada até então pelo regime militar.
O primeiro passo nessa direção foi identificar, registrar e divulgar um conjunto de experiências que estivessem dando certo.
Os programas identificados nesse período eram mais simples, democráticos, baratos e eficazes do que aqueles implementados pelo Poder Público. Sua orientação era basicamente preventiva, isto é, eles procuravam evitar que as crianças e adolescentes ingressassem no ciclo perverso da institucionalização compulsória: apreensão, triagem, rotulação, deportação e confinamento.
Durante o processo de socialização do patrimônio de idéias e experiências desenvolvido por esses programas, deu-se um fato novo e inesperado: o surgimento de uma liderança conhecida e reconhecida em nível nacional que, além de empenhar-se tecnicamente na melhoria do atendimento, passou a preocupar-se também com a dimensão política da situação das crianças e adolescentes que faziam das ruas seu espaço de luta pela sobrevivência e até mesmo de moradia.
A culminância, e, ao mesmo tempo, o fechamento dessa primeira fase, foi a organização, em rede nacional, de um amplo movimento social e político em favor dos meninos e meninas de rua.
O debate político acerca das crianças e adolescentes em circunstância especialmente difíceis acabou evidenciando o fato de que a moldura legal da política de atendimento prevalecente naquele período, longe de ser um facilitador, era um obstáculo aos esforços de democratização e melhoria da qualidade das ações em curso.
O aprofundamento desse tipo de reflexão foi tornando cada vez mais claro o fato de que a legislação menorista vigente (o Código de Menores - Lei 6.697/79 e a Política Nacional de Bem-Estar do Menor - Lei 4.513/64) era parte daquilo que os democratas brasileiros já haviam batizado de "entulho autoritário", ou seja, a PNBEM e o Código de Menores guardavam grande coerência com o conjunto da legislação outorgada pelo regime, como o AI-5, a lei de Greve, a Lei de Imprensa ou outros instrumentos de controle e submissão da sociedade pelo Estado.
O advento da Assembléia Nacional constitui-se na grande oportunidade histórica de reversão desse quadro. Nessa etapa, o eixo estratégico do processo de mobilização se desloca do movimento social em favor dos meninos de rua, para uma articulação mais ampla e pluralista, que se materializou na organização de duas emendas populares: "Criança e Constituinte" e "Criança - Prioridade Nacional".
A elaboração, divulgação e encaminhamento dessas emendas contaram com a participação de um amplo e diversificado arco de forças, envolvendo ativistas, leigos e religiosos, dos direitos da criança, dirigentes e técnicos de políticas públicas, empresários, artistas e redes de comunicação social, num esforço pragmático, generoso e ecumênico, para inserir na Carta Magna os novos Direitos da Infância e da Juventude do Brasil.
As duas emendas acabaram aprovadas e, da sua fusão, resultou o "extraordinário e seminal" artigo 227 da Constituição Federal, sendo que o texto dos artigos 203 e 204 também teve nelas a sua origem.
Com a entrada em vigor da nova Carta Magna, em 5 de outubro de 1988, o desafio passa a ser o da regulamentação das conquistas ali contidas em favor da população infanto-juvenil. Nessa etapa da evolução do processo de mobilização, o eixo estratégico mais uma vez se desloca. Agora, o centro dinâmico das articulações é o Fórum-DCA, o Fórum Nacional de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança.
Em torno do Fórum se aglutinam pessoas do mundo jurídico e das políticas públicas, que, sob a hegemonia do movimento social em favor da criança, iniciam o histórico processo de elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente que, como já vimos, foi uma lei, literalmente, pensada por milhares de cabeças e escrita por milhares de mãos em praticamente todos os quadrantes dessa Nação-Continente.
Com a aprovação do Estatuto pelo Congresso Nacional e sua sanção, sem vetos, pelo Presidente Fernando Collor, em 13 de julho de 1990, o processo de mobilização nacional ingressa numa nova etapa de sua evolução, uma etapa marcada pela abrangência e pela complexidade das ações a serem desenvolvidas simultaneamente em três grandes frentes de luta e trabalho:
a) as mudanças no panorama legal;
b) o reordenamento das instituições que atuam na área;
c) a melhoria efetiva das formas de atenção direta à população infanto-juvenil.
Em setembro de 1990, na sede das Nações Unidas em Nova York, representantes de 159 países, entre eles 71 chefes de governo e chefes de Estado, realizaram a Conferência de Cúpula Mundial pela Infância.
Nesse histórico evento, sem precedentes em nível mundial, foram estabelecidas metas a serem alcançadas até o ano 2000, nos campos da saúde materno-infantil, da educação e da proteção das crianças e adolescentes encontrados em circunstâncias especialmente difíceis.
O Brasil, na pessoa de seu mais alto magistrado, o Presidente da República, compareceu a esse evento e comprometeu-se com o Plano Mundial de Ação ali elaborado, discutido e aprovado. A face nacional desse grande esforço foi a articulação do Pacto pela Infância, nascido para tirar do papel as extraordinárias conquistas em favor da população infanto-juvenil contidas na Convenção Internacional dos direitos da Criança e do Adolescente e no Plano de Ação resultante da Cúpula Mundial pela Infância.
A esse respeito, vale a pena reproduzir aqui o registro dos fatos dessa nova articulação, contido na publicação Pacto pela Infância, organizada pelo UNICEF, enquanto Secretaria Executiva do Pacto, que a partir de 20 de maio de 1992 passa a constituir-se no eixo central do esforço nacional de mobilização em favor da infância e da juventude.
"Quase dois anos depois da Cúpula Mundial, em outubro de 1991, um grupo ainda pequeno reuniu-se no Brasil para criar um movimento que passou a chamar-se Pacto pela Infância, não apenas para fazer valer os compromissos assinados pelo Presidente Fernando Collor, na ONU, como para comprometer a sociedade civil e os poderes constituídos com a decisão de mudar uma realidade cruel e impiedosa que fere milhões de crianças no Brasil.
"Um mês depois, o Pacto pela Infância já somava mais de cem representantes da sociedade civil e das instituições públicas.
"São empresários ligados à FIESP e ao Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE), as três centrais sindicais (CUT, Força Sindical e CGT), a Confederação Nacional da Indústria e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a LBA, a Pastoral da Criança, Sociedade Brasileira de pediatria, Fórum-DCA, ABERT, OAB, Conselho Nacional de Propaganda e Ministros de Estado. Nessas duas reuniões já haviam sido delineados os alvos principais do movimento: melhoria de saúde e da educação e combate à violência. O Manifesto de Indignação foi divulgado nos principais jornais do País. O próximo passo estava decidido: era preciso convocar os governadores para ampliar os poderes de ação do Pacto.
"A terceira reunião, em abril de 1992, definiu o local e os documentos básicos para a Reunião de Cúpula dos governadores pela Criança, realizada no dia 20 de maio de 1992, no auditório da Organização Mundial de Saúde, em Brasília.
"No dia 20 de maio ocorreu um fenômeno histórico no Brasil. Os líderes da sociedade brasileira se reuniram por um dia para discutir exclusivamente a situação e a ação em favor da criança. Essa reunião de cúpula incluiu 24 dos 27 governadores de Estado, líderes sindicais, empresas privadas, a Ordem dos Advogados do Brasil, cinco ministros de Estado, a Sociedade Brasileira de Pediatria, o Conselho Nacional de Propaganda, a Associação Brasileira das Empresas de Rádio e Televisão, o instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, a CNBB, a ABI, o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, parlamentares, a Frente Nacional de Prefeitos - enfim, o que de mais representativo a sociedade brasileira construiu nos mais variados segmentos sociais. Naquele dia, o Brasil mostrou o quanto levou a sério o compromisso de atingir as metas do Encontro Mundial de Cúpula pela Criança, que reuniu chefes de Estado há dois anos, e não só decidiu preparar um plano de ação de âmbito nacional, como também avançou e resolveu adotar planos estaduais com o apoio dos governos e das organizações não-governamentais nos Estados. Cada governador presente à reunião apresentou suas sugestões, relatou medidas que de uma forma ou de outra vem adotando em seu Estado.
Ao final da reunião, os governadores assinaram um único compromisso, detalhado em catorze itens e alguns adendos, todos centrados na decisão de melhorar a saúde da criança, reduzindo mortes e doenças, dar educação fundamental a todas elas, melhorar a qualidade de ensino e romper definitivamente o ciclo de impunidade que estimula a violência nas ruas das grandes cidades brasileiras.
"Aquela não foi mais uma reunião, como temem em geral os que já têm a vista cansada de assistir ao mesmo filme. Os governadores se comprometeram a preparar um plano de ação e apresentá-lo até o dia 12 de outubro, Dia da Criança, e de se reunirem novamente em maio de 1993, para dividir experiências, apresentar projetos e metas já alcançadas. O Pacto pela Infância vai continuar, agora com o compromisso dos governadores. O movimento, que reúne as mais representativas organizações da sociedade civil brasileira, inclusive aquelas que vivem em conflito por força da diferença de interesses, vai continuar propondo ações comuns para beneficiar a vida das crianças.
"Esta é a única maneira - a única - de enfrentar os problemas que afetam as crianças no Brasil. Só uma ação conjunta, nacional, acima dos interesses dos grupos envolvidos, pode encontrar uma solução e tirar as crianças da rua, dar-lhes saúde e educação para toda a vida".
Anexos
Quadro
sinóptico comparativo entre o código de menores e a política nacional do
bem-estar do menor (lei 4.513/64 e 6.697/79) e o Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei 8.068/90)
Aspecto considerado Código de Menores (lei 6.697/70) e lei 4.513/64 Estatuto da Criança e do Adolescente
1) Base doutrinária Direito tutelar do menor. Os menores são objetos de medidas judiciais quando se encontram em situação irregular, assim definida legalmente.Proteção integral: a lei assegura os direitos de todas as crianças e adolescentes sem discriminação de qualquer tipo.
2) A concepção político-social implícita. Trata-se de um instrumento de controle social da infância e da adolescência, vítimas das omissões e transgressões da família, da sociedade e do Estado em seus direitos básicos.Trata-se de um instrumento de emancipação social voltado para o conjunto da população e da juventude do País, garantindo proteção especial àquele segmento considerado pessoal e socialmente mais sensível.
3) Visão da criança e do adolescente. Menor em situação irregular: objeto de medidas judiciais. Sujeito de direito, condição peculiar de pessoas em desenvolvimento prioridade absoluta.
4) Posição do Magistrado. O Código não exigia fundamentação das decisões relativas à apreensão e confinamento de menores. Era subjetiva.Garante à criança e ao adolescente o direito à ampla defesa com todos os recursos a ela inerentes. Limitou os poderes absolutos do juiz.
5) Em relação à apreensão. Era antijurídico. Preconizava (art. 99, § 4º) a prisão cautelar hoje inexistente para adultos.Restringe a apreensão apenas a dois casos:
a) flagrante delito de infração penal;
b) ordem expressa fundamentada do juiz.
6) Objetivo Dispor sobre a assistência a menores entre 0 e 18 anos, que se encontrem em situação irregular, e entre 18 e 21 anos, nos casos previstos em lei através da aplicação de medidas preventivas e terapêuticas.Garantia dos direitos pessoais e sociais, através da criação de oportunidades e facilidades a fim de propiciar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade.
7) Efetivação em termos de política social. As medidas previstas restringiam-se ao âmbito
a) da Política Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM e congêneres);
b) Segurança Pública;
c) Justiça de Menores, Políticas sociais básicas, Políticas assistenciais (em caráter supletivo) Serviços de proteção e defesa das crianças e adolescentes vitimizados Proteção jurídico-social.
8) Princípios estruturadores da política de atendimento. Políticas sociais compensatórias (assistencialismo) centralizadas na União e nos Estados.Municipalização das ações Participação da comunidade organizada na formulação das políticas e no controle das ações.
9) Direito de defesa. Considerava que o menor acusado de infração penal já era "defendido" pelo curador de menores (promotor público).Garante ao adolescente a quem se atribui autoria de infração penal defesa técnica por profissional habilitado (advogado).
10) Mecanismos de participação. Não abria espaços à participação de outros atores que limitem os poderes das autoridades judiciárias e administrativas.Prevê instâncias colegiadas de participação (conselhos paritários Estado/sociedade) nos níveis federal, estadual e municipal.
11) Vulnerabilidade sócio-econômica. Os menores (i) carentes, (ii) abandonadas e (iii) infratores devem passar todos pelas mãos do juiz.Os casos de situação de risco pessoal e social são atendidos por uma instância sócio-educacional colegiada: o Conselho Tutelar.
12) Infração. Todos os casos de infração penal passam pelo juiz.Os casos de infração que não impliquem grave ameaça ou violência à pessoa podem ser beneficiados por remissão (perdão) como forma de exclusão ou suspensão do processo.
13) Internamento. Medida aplicável a crianças e adolescentes por pobreza (manifesta incapacidade dos pais para mantê-los), sem tempo e condições determinados, e também aos casos de infração penal.Medida só aplicável a adolescentes autores de ato infracional grave, obedecidos os princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
14) Caráter social. Penalizava a pobreza através de mecanismos como:
a) cassação do pátrio poder;
b) imposição de medida de internamento a crianças e adolescentes pobres.A falta ou insuficiência de recursos deixa de ser motivo para a perda ou suspensão do pátrio poder. Através do Conselho Tutelar, desjuridicionaliza os casos exclusivamente sociais.
15) Crimes e infrações cometidos contra criança e adolescente. Era omisso a esse respeito.Pune o abuso do pátrio poder, das autoridades e responsáveis pelas crianças e jovens.
16) Fiscalização do cumprimento da lei. Não há fiscalização do Judiciário por nenhuma instância governamental. Da mesma forma, os órgãos do Executivo não executam, via de regra, uma política de participação e transparência.Prevê participação ativa da comunidade e, através dos mecanismos de defesa e proteção dos interesses difusos e coletivos, pode levar as autoridades omissivas ou transgressoras ao banco dos réus.
17) Internamento provisório. Era, na aplicação do Código de Menores, medida das mais rotineiras. Só haverá internamento provisório em caso de crime cometido com grave ameaça ou violência à pessoa.
18) Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM). O Código de Menores tinha como retaguarda dos juizes a FUNABEM e suas congêneres estaduais - FEBEM(s).O Estatuto propicia a extinção da FUNABEM e preconiza o reordenamento dos órgãos estaduais.
19) Funcionamento da política. A política era traçada pela FUNABEM e executada nos Estados pelas FEBEM(s) e congêneres com apoio técnico e financeiro do órgão nacional.Ao órgão nacional caberá apenas a função de coordenar a política no âmbito nacional.
20) Estrutura - FUNABEM - FEBEM(s) - Justiça de Menores - Segurança Pública - Programas municipais e comunitárias. Conselhos paritários, fundos e instâncias técnicas em todos os níveis: União, Estado e município.
21) Elaboração - Elaborado por um seleto grupo de juristas.Elaborado a milhares de mãos pelo motivo social em favor da criança e do adolescente, articulado pelo Fórum-DCA (Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa da Criança e do Adolescente), com apoio técnico-judiciário de um competente grupo de juristas da magistratura, dos ministérios públicos, contando também com o apoio de advogados e defensores públicos.
Anexo II
A criança e o
adolescente na Constituição Federal
Título VIII
Da ordem social
Da família, da criança do adolescente e do idoso
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º. O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º. O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º. Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º. Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º. O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.
§ 7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva, por parte de instituições oficiais ou privadas.
§ 8º. o estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para cobrir a violência no âmbito de suas relações.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não-governamentais e obedecendo aos seguintes preceitos:
I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil;
II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.
§ 2º. A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.
§ 3º. O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7º., XXXIII;
II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas;
III - garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola;
IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica;
V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade;
VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado;
VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins.
§ 4º. A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.
§ 5º. A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros.
§ 6º. Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
§ 7º. No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se-á em consideração o disposto no art. 204.
Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeito às normas da legislação especial.
Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.
§1º. Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares.
§ 2º. Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos.
Da Seguridade
Social
Seção IV
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivo:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV - a habilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.
Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:
I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal, e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como as entidades beneficentes e de assistência social;
II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.
(Fonte: João Gilberto Lucas Coelho, Criança e Adolescente: Prioridades Nacionais/Prioridades Municipais).
As ações básicas de saúde são municipalizadas, através do Sistema Único de Saúde, com a reunião de recursos e instituições de todos os níveis governamentais, ou seja, em cada município deverá existir a articulação entre Prefeitura, Secretaria Estadual de Saúde, Ministério da Previdência, Ministério da Saúde. Outras instituições públicas e a sociedade organizada para o atendimento unificado à saúde.
O município passa a ter papel preponderante neste tipo de serviço onde nem todos atuavam.
Os orçamentos locais terão de prever verbas para a saúde, além das repassadas pelos órgãos federais e estaduais.
Na questão da saúde da criança e do adolescente, como prioridades, atentar para:
- Programas materno-infantis que compreendam alimentação e acompanhamento médico;
- Exames e acompanhamento pré-natal. Parto, de preferência, com o médico que acompanhou a fase pré-natal;
- Impressões digitais da mãe e do pezinho do recém-nascido;
- Ficha de saúde de cada criança nascida, para acompanhamento de possíveis problemas e controle de cumprimento das fases de vacinação;
- Campanhas de vacinação, até que se tenha universalizado a prática da vacina em idades certas;
- Ações públicas de prevenção de doenças, saneamento e outros cuidados fundamentais e amplos;
- Encaminhamento aos centros especializados de casos que requeiram tratamentos mais sofisticados.
Em alguns municípios vem sendo recuperada a relação médico-paciente, em especial na área da pediatria, com médicos públicos responsáveis por grupos definidos de crianças e, por isto mesmo, com amplo conhecimento da situação de saúde de cada uma delas.
À medida que o Sistema Único de Saúde for sendo implantado, em cada município deverá ser organizada a Comissão interinstitucional reunindo todos os órgãos públicos da área e mais entidades da sociedade civil, para decidir e co-gerir programas de saúde.
Antigos vícios ainda prejudicam o Sistema Único de Saúde. Muitas vezes fatores partidários influem no repasse de verbas entre a União e Estados ou destes para os seus municípios, o que não pode acontecer num sério e amplo programa de saúde. Aos poucos, estas dificuldades irão sendo superadas pelo amadurecimento institucional e da própria sociedade.
O Município tem responsabilidade fundamental e prioritária com dois setores da educação, exatamente aqueles que mais atingem a criança e o adolescente:
1) É do município o dever de fornecer o ensino fundamental, obrigatório e gratuito, a todos os que estejam na idade de cursá-lo, dos sete aos 14 anos, e para aqueles que não tiveram oportunidade anterior de freqüentar a escola na idade própria. Para desincumbir-se desta tarefa essencial, o município deve receber apoio técnico e financeiro da União e do Estado. Este poderá oferecer diretamente o ensino fundamental, em situações específicas ou até que o município tenha condições plenas de fazê-lo.
2) É do município o dever de atender a população de zero aos seis anos em creches e pré-escolas. Igualmente, deverá receber o apoio técnico e financeiro federal e estadual. A creche e a pré-escola para os filhos é também um "direito social fundamental" dos trabalhadores na relação de emprego e, portanto, o município poderá agir junto com as empresas para ambos desincumbirem-se da obrigação.
O ensino fundamental é um direito básico, que pode ser cobrado através da Justiça. Se o Poder Público não estiver oferecendo ou apresentar irregularidades, isto significa, pela Constituição, crime de responsabilidade da autoridade competente.
A novidade da atual Constituição é que o direito ao ensino fundamental gratuito foi ampliado para aqueles que não cursarem no período dos sete aos 14 anos. Eles também têm direito a vagas. Será necessário organizar o ensino noturno e especial para os que já ultrapassaram a idade normal.
O município deve ainda recensear todos os alunos em idade escolar e fazer a chamada deles.
Os pais têm obrigação de colocar os filhos na escola.
Pela nova Constituição, cada município poderá ter o seu sistema de ensino, devidamente organizado e com características próprias, articulado com o estadual e o federal. Certos conteúdos, para além do núcleo mínimo nacionalmente unificado, por exemplo, serão ministrados num determinado município e não em outros.
Da receita resultante dos impostos, incluindo a recebida como transferências, o município precisa aplicar não menos do que 25% no ensino.
Os programas de alimentação e assistência à saúde nas escolas devem ser financiados com contribuições sociais e outros recursos orçamentários. Devem ainda ser desenvolvidos programas de material didático-escolar e transporte para os educandos do ensino fundamental.
O município comprará vagas ou oferecerá bolsas de estudo, quando não tiver capacidade suficiente em suas escolas. Podem receber verbas públicas as escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas.
Especial atenção merece a educação para crianças e adolescentes que apresentem deficiências, bem como a especializada para os chamados superdotados.
Também os programas de assistência social, que fazem parte da seguridade, terão normas gerais e coordenação nacional, mas execução, de preferência, municipalizada.
A assistência social volta-se para quem dela precisar, isto é, não depende de contribuições previdenciárias para atendimento.
São seus objetivos:
- Proteger a família, a infância, a adolescência, a maternidade e a velhice;
- Amparar crianças e adolescentes carentes;
- Promover a integração ao mercado de trabalho;
- Habilitar ou reabilitar pessoas portadoras de deficiência ou garantir-lhes assistência quando não possuam meios próprios ou da família.
Na área da assistência social, em conexão com o setor educacional, o município deve cuidar das creches e pré-escolas, de forma que todas as crianças de zero a seis anos, que necessitem, a elas tenham acesso.
Programas de alimentação, especialmente para mulheres grávidas e em fase de amamentação e para crianças pequenas. Quando possível, a ampliação destes programas para outras faixas.
Projetos de empreendimentos comunitários, novas formas de trabalho e produção cooperativada.
Voltados para a criança e o adolescente, existem os aspectos fundamentais de propiciar condições para que a família os mantenha e, quando esta não existir, os programas de guarda e de adoção, através dos juizados especializados. O município deve fiscalizar e incentivar instituições que cuidem da assistência às crianças e adolescentes, inclusive aquelas de internamento - quando este se fizer necessário.
A Constituição Federal define ainda, a colaboração das associações - certamente que, em especial, as de moradores - no planejamento municipal. Elas devem ser ouvidas na definição de grandes políticos tanto pela Prefeitura como pela Câmara de Vereadores ou comissões técnicas desta.
Alguns analistas sugerem a criação de conselhos eleitos junto às subprefeituras ou administrações de distrito ou regiões em que se subdivida um município ou área urbana de uma cidade.
Pelas regras constitucionais já citadas, o ensino público, a assistência social, a saúde e os programas para crianças e adolescentes devem ter participação comunitária na sua definição e implementação.
As organizações da sociedade civil têm direito a informações dos órgãos públicos, questionar e denunciar perante o Legislativo ou o Tribunal de Contas, acionar a Justiça em nome de seus associados.
Portanto, o novo regime constitucional centra-se fortemente no exercício não só individual, mas também coletivo da cidadania, base da democracia.
Por outro lado, estes instrumentos participativos não negam ou suprimem a democracia representativa. Pelo contrário, tornam a representação mais autêntica e menos manipulada. São utilizados há décadas em vários países, tendo recebido um forte incremento a partir do final da Segunda Grande Guerra, exatamente para rever o fracasso anterior a ele de formas representativas mais rígidas e menos participadas.
Tramita, no Congresso Nacional, projeto referente a uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, muito importante para o cumprimento das inovações constitucionais. Haverá, ainda, um plano nacional de educação para facilitar a articulação dos sistemas e a aplicação dos recursos.
A Constituição de 1988 dá um prazo de dez anos para a universalização do ensino fundamental e a erradicação do analfabetismo que hoje atinge em torno de 20% da população brasileira.
Quadro comparativo entre as metas do Encontro de Cúpula das Nações Unidas e a situação do Brasil
(Fonte: Pacto pela Infância/Reunião de Cúpula de Governadores pela Criança, 20.05.92)
Cúpula da ONU e a situação do País
I - Sobrevivência, desenvolvimento e proteção da criança
a) Entre 1990 e o ano 2000, redução de um terço nas taxas de mortalidade infantil e de menores de 5 anos;
a) Taxa de mortalidade infantil da ordem de 64 óbitos em cada mil crianças nascidas vivas, variando de 47,9/1000 no Sul até 135,6 no Nordeste. A mortalidade neonatal é de 30/1000.
b) Entre 1990 e o ano 2000, redução de 50% nas taxas de mortalidade materna;
b) Mortalidade materna de: 120/100.000 nascidos vivos (313/100.000 na região Norte a 70/100.000 no Sudeste).
c) Entre 1990 e o ano 2000, redução de 50% nas taxas de desnutrição grave e moderada entre menores de 5 anos;
c) Prevalência de desnutrição em: 30,7 das crianças menores de 5 anos.
d) Acesso universal à água limpa e saneamento básico;
d) 59% (91% na zona rural) das crianças brasileiras com menos de 5 anos de idade vivem em casas sem saneamento básico adequado, mas 73,4% dos domicílios estão servidos por abastecimento de água (60,1% em 1980).
e) Até o ano 2000, acesso universal à educação básica e conclusão da educação de 1º grau de pelo menos 80% das crianças em idade escolar;
e) 85% das crianças de 7 a 14 anos freqüentam escola. De cada 1.000 alunos que ingressam, somente 200 concluem a 8ª série.
f) Redução de 50%, no mínimo, na taxa de analfabetismo entre os adultos com relação a 1990 (o grupo etário apropriado será definido em cada país), com ênfase na analfabetização das mulheres;
f) 18,8% da população com mais de 15 anos é analfabeta.
g) Melhoria na proteção às crianças que vivem em circunstâncias particularmente difíceis;
g) 30% da população de 10 a 17 anos estão incorporados ao mercado de trabalho; as relações trabalhistas formais (carteira assinada) alcançam apenas 25,6% (57% em São Paulo) das crianças e adolescentes na faixa etária de 10 a 17 anos não moram com a mãe.
a) Atenção especial à saúde e à nutrição das meninas, das gestantes e lactantes;
a) 6 milhões de gestantes, nutrizes e crianças participam de programa suplementar de alimentação.
b) Acesso de todos os casais a informações e serviços essenciais à prevenção de gestações demasiadamente precoces, freqüentes, tardias ou numerosas;
b) Prevalência de anticoncepção em 71% das mulheres com vida sexual ativa. Destas, 44% já foram esterilizadas.
c) Acesso de todas as gestantes a cuidados pré-natais e durante o parto, a atendentes treinados, assim como a assistência médica nas gestações de alto risco e nas emergências obstétricas;
c) 65% de cobertura em assistência pré-natal. Entretanto, 30% das mulheres começam a receber essa assistência tardiamente. A atenção hospitalar ao parto atinge 70% dos casos.
d) Acesso universal à educação primária, com ênfase particular nas meninas, e programas intensivos de alfabetização de mulheres;
d) A taxa de analfabetismo em mulheres de 15 anos e mais é de 20,6% (18,6% entre os homens dessa mesma faixa).
a) Redução de 50% nos níveis de desnutrição grave e moderada entre os menores de 5 anos com relação a 1990;
a) Prevalência de desnutrição grave e moderada de 5,1% e leve de 25,6% nas crianças menores de 5 anos. Todas as formas: 31,7%.
b) Redução para menos de 10% na incidência de baixo peso ao nascer (2,5kg ou menos);
b) O percentual de crianças com baixo peso ao nascer é de 14,8%.
c) Redução de um terço nos níveis de anemia das mulheres com relação a 1990;
c) Prevalência de anemia ferropriva em 40% dos grupos vulneráveis (gestantes e crianças).
d) Eliminação virtual dos distúrbios causados pela deficiência de iodo;
d) 34,5% da população da área endêmica nos Estados do Maranhão, Pará, Goiás, Minas Gerais e Bahia é afetada pelo bócio.
e) Eliminação virtual da deficiência de vitamina A e suas conseqüências, incluindo a cegueira;
e) A hipovitaminose A de nível grave atinge a 25% da população na região semi-árida do Nordeste.
f) A ampliação das condições para que todas as mulheres possam amamentar seus filhos exclusivamente ao seio, durante 4 a 6 meses, e continuar a amamentação acrescida de alimentação complementar, durante o segundo ano de vida da criança;
f) A duração do aleitamento materno é de apenas 67 dias em média e do aleitamento misto, 130 dias.
a) Erradicação de pólio até o ano 2000;
a) Nenhum caso de poliomielite em 1989.
b) eliminação do tétano neonatal até 1995;
b) Incidência de 400 casos de tétano neonatal por ano (0,07/100.000).
c) Redução de 90% dos óbitos associados ao sarampo e de 90% dos casos de sarampo até 1995, em comparação aos níveis anteriores à imunização;
c) 40/100.000 casos de sarampo em 1990 (incidência).
d) Preservação de um alto nível de cobertura imunológica (pelo menos 90% dos menores de 1 ano até o ano 2000) contra difteria, coqueluche, tétano, sarampo, pólio, tuberculose e tétano nas mulheres em idade fértil;
d) Cobertura vacinal em menores de 5 anos: 89,7% sarampo, 85,3% BCG, 75,4% DPT e 92,8% pólio.
e) Redução de 50% nos óbitos causados pela diarréia em menores de 5 anos e redução de 25% na taxa de incidência da diarréia;
e) Percentual de óbitos por diarréia em menores de 1 ano: 16,6% (32,3% na região Norte e 8,3% na Centro-Oeste;
e). Na área rural o déficit de saneamento está estimado em 6,4% em abastecimento de água em 13,1% em serviços de disposição de dejetos e águas servidas.
f) Redução de um terço nos óbitos resultantes das infecções respiratórias agudas em menores de 5 anos;
f) A infecção respiratória aguda (IRA) é a terceira causa de morte entre menores de 5 anos. Na região Sul é a principal causa de mortalidade infantil (18,9% do total de óbitos).
a) Extensão das atividades de desenvolvimento da criança durante a primeira infância, incluindo intervenções apropriadas e de baixo custo baseadas na família e na comunidade;
a) 5% das crianças de 0 a 3 anos estão cobertas pelos serviços de creche, maternal ou pré-escola. 32% das crianças de 4 a 6 anos têm este tipo de atendimento.
b) Acesso universal à educação básica e conclusão da educação de 1º grau por, pelo menos, 80% das crianças em idade escolar, através da escolaridade formulou ou de educação informal, com nível equivalente de aprendizagem, dando ênfase à redução das atuais desigualdades entre meninos e meninas;
b) Acesso: 86% das crianças de 7 a 14 anos freqüentam a escola. Permanência e progressão: de 100 crianças que iniciam a 1ª série só 51% concluem a 4ª série e 20% a 8ª . 33% dos alunos matriculados na 1ª série são repetentes. Aprendizagem: 17,72% dos alunos da 3ª série da escola pública brasileira atingem os conteúdos mínimos curriculares em Português e 8,11% em Matemática.
c) Redução de 50% no mínimo, da taxa de analfabetismo entre os adultos com relação a 1990, com destaque para a alfabetização da mulher;
c) Em 1990, 18,3% da população brasileira de 15 anos ou mais era analfabeta.
d) Ampliação das oportunidades de aquisição, por indivíduos e famílias, dos conhecimentos, habilidades e valores necessários por uma vida melhor, promovidos por todos os canais educacionais, incluindo os meios de comunicação de massa, outras formas tradicionais e modernas de comunicação, e a ação social, com sua eficácia medida em termos de mudanças comportamentais.
Melhor proteção às crianças que vivem em circunstâncias difíceis, e empenho na procura de solução para as causas fundamentais dessa situação 65,4% e 79,4% dos jovens do Nordeste e Sudeste, respectivamente, somente estudam, enquanto 4,2% e 2,7% não exercem qualquer atividade (estudo, trabalho ou afazeres domésticos). A mão-de-obra infanto-juvenil é mal remunerada em comparação com a mão-de-obra adulta mesmo quando possui escolaridade mais elevada. Contagens parciais no Rio e Janeiro e em Fortaleza indicam que o número de meninos de rua, em cada uma dessas cidades, é superior a mil.
Anexo V
A - SUGESTÕES DE DECRETO DE REGULAMENTAÇÃO DO FUNDO MUNICIPAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
B - ROTEIRO DE PROVIDÊNCIAS PARA A CRIAÇÃO E FUNCIONAMENTO DO FUNDO (EXTRAÍDOS DE CARTILHA FUNDO MUNICIPAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - CBIA-ESUF-RS)
A - SUGESTÕES DE DECRETO DE REGULAMENTAÇÃO DO FUNDO MUNICIPAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Regulamenta o Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e dá outras providências.
O Prefeito Municipal de ..., no uso de suas atribuições legais decreta:
CAPÍTULO I
DOS OBJETIVOS
Art. 1º. Fica regulamentado o Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, criando pelo art..., da Lei nº...., que será gerido e administrado na forma deste decreto.
Art. 2º. O Fundo tem por objetivo facilitar a captação, o repasse e a aplicação de recursos destinados ao desenvolvimento das ações de atendimento à criança e ao adolescente.
§ 1º. As ações de que trata o caput do artigo referem-se prioritariamente aos programas de proteção especial à criança e ao adolescente exposto à situação de risco pessoal e social, cuja necessidade de atenção extrapola o âmbito de atuação das políticas sociais básicas.
§ 2º. Dependerá de deliberação expressa do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente a autorização para aplicação de recursos do Fundo em outros tipos de programas que não o estabelecido no § 1º.
§ 3º. Os recursos do Fundo serão administrados segundo o Plano de Aplicação elaborado pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente e aprovado pelo Legislativo municipal.
DA OPERACIONALIZAÇÃO DO FUNDO
Art. 3º. O Fundo ficará subordinado operacionalmente à Secretaria Municipal de (ou Secretaria Especial ou o Gabinete, ou Junta criada especialmente para tal fim, ou ao contador do Município, ou a outro ente que o Executivo Municipal eleger para a execução das atividades de orçamento e contabilidade dos recursos do mesmo)...
Art. 4º. São atribuições do Secretário Municipal de ...:
I - coordenar a execução dos recursos do Fundo, de acordo com o Plano de Aplicação previsto no § 3º do art. 2º;
II - apresentar ao Conselho Municipal de Diretos o Plano de Aplicação devidamente aprovado pelo Legislativo Municipal;
III - preparar e apresentar ao Conselho Municipal de Direitos, demonstração mensal da receita e da despesa executada do Fundo;
IV - emitir e assinar notas de empenho, cheques e ordens de pagamento de despesa do Fundo;
V - tomar conhecimento e dar cumprimento às obrigações definidas em convênios e/ou contratos firmados pela Prefeitura Municipal e que digam respeito ao Conselho Municipal de Direitos;
VI - manter os controles necessário à execução das receitas e das despesas do Fundo;
VII - manter, em coordenação com o setor de patrimônio da Prefeitura Municipal, o controle dos bens patrimoniais com carga ao Fundo:
VIII - encaminhar à contabilidade-geral do Município:
a) mensalmente, demonstração da receita e da despesa;
b) trimestralmente, inventário de bens materiais;
c) anualmente, inventário dos bens móveis e imóveis e balanço geral do Fundo;
IX - firmar, com o responsável pelo controle da execução orçamentária, a demonstração mencionada anteriormente:
X - providenciar, junto à contabilidade do Município, a demonstração que indique a situação econômico-financeira do Fundo;
XI - apresentar ao Conselho Municipal de Direitos a análise e a avaliação da situação econômico-financeira do Fundo detectada na demonstração mencionada;
XII - manter o controle dos contratos e convênios firmados com instituições governamentais e não-governamentais;
XIII - manter o controle da receita do Fundo;
XIV - encaminhar ao Conselho Municipal de Direitos, relatório mensal de acompanhamento e avaliação do Plano de Aplicação.
DOS RECURSOS DO FUNDO
Art. 5º. São receitas do Fundo:
I - dotação consignada anualmente no orçamento municipal e as verbas adicionadas que a lei estabelecer no decurso de cada exercício;
II - dotações de pessoas físicas e jurídicas, conforme o disposto no art. 260 da Lei 8.069, de 13.7.90; (este artigo, no que diz respeito à pessoa jurídica, não foi, até o momento, regulamentado)
III - valores provenientes das multas previstas no art. 214 da Lei 8.069, de 13.7.90, e oriundas das infrações descritas nos arts. 228 a 258 da referida lei;
IV - transferências de recursos financeiros oriundos dos Fundos Nacional e Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente;
V - doações, auxílios, contribuições, transferências de entidades nacionais, internacionais, governamentais e não-governamentais;
VI - produto de aplicações financeiras dos recursos disponíveis, respeitada a legislação em vigor, e da venda de materiais, publicações e eventos;
VII - recursos advindos de convênios, acordos e contratos firmados entre o Município e instituições privadas e públicas, nacionais e internacionais, federais, estaduais e municipais, para repasse a entidades executoras de programas integrantes do Plano de Aplicação;
VIII - outros recursos que porventura lhe forem destinados.
Art. 6º Constituem ativos do Fundo:
I - disponibilidade monetária em bancos, oriunda das receitas especificadas no artigo anterior;
II - direitos que porventura vier a construir;
III - bens móveis e imóveis, destinados à execução dos programas e projetos do Plano de Aplicação.
Parágrafo único. Anualmente processar-se-á o inventário dos bens e direitos vinculados ao Fundo, que pertencem à Prefeitura Municipal.
Art. 7º A contabilidade do Fundo Municipal tem por objetivo evidenciar a situação financeira e patrimonial do próprio Fundo, ,observados os padrões e normas estabelecidas na legislação pertinente.
Art. 8º A contabilidade será organizada de forma a permitir o exercício das funções de controle prévio, concomitante e subseqüente, inclusive de apurar custos dos serviços, bem como interpretar e analisar os resultados obtidos.
DA EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA
Art. 9º Imediatamente após a promulgação da Lei de Orçamento, o Secretário Municipal de ... apresentará ao Conselho Municipal o quadro de aplicação dos recursos do Fundo para apoiar os programas e projetos contemplados no Plano de Aplicação.
Art. 10 Nenhuma despesa será realizada sem a necessária cobertura de recursos.
Parágrafo único. Para os casos de insuficiência ou inexistência de recursos poderão ser utilizados os créditos adicionais, autorizados por lei e abertos por decreto do Executivo.
Art. 11 A despesa do Fundo constituir-se-á de :
I - financiamento total ou parcial dos programas de proteção especial constantes do Plano de Aplicação;
II - atendimento de despesas diversas, de caráter urgente e inadiável, observado o § 2º do art. 2º.
Parágrafo único. Fica vedada a aplicação de recursos do Fundo para pagamento de atividades do Conselho Municipal de Direitos.
Art. 12 A execução orçamentária da receita processar-se-á através de obtenção do seu produto nas fontes determinadas neste decreto e será depositada e movimentada através da rede bancária oficial.
DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 13 O Fundo terá vigência indeterminada.
Art. 14 Este decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
PREFEITO MUNICIPAL
B - ROTEIRO DE PROVIDÊNCIAS PARA A CRIAÇÃO E FUNCIONAMENTO DO FUNDO
1) Projeto de Criação
O Poder Executivo, com a participação da comunidade, elabora o Projeto e o encaminha ao Poder Legislativo para a aprovação. Após é sancionado pelo Prefeito. Normalmente, cria-se o Conselho de Direitos, o Conselho Tutelar e o Fundo de Direitos na mesma Lei.
2) Regulamentação
Sancionando a Lei de criação, o Prefeito providenciará na regulamentação, detalhando seu funcionamento por Decreto.
3) Indicação do Administrador
O Prefeito designa, através de portaria, o administrador do Fundo.
4) Abertura de Conta Especial
O Administrador abre, em banco oficial, a conta do Fundo.
5) Elaboração de Plano de Ação
O Conselho de Direitos elabora; o Prefeito inclui seus pontos fundamentais no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias; a Câmara examina e aprova; o Prefeito sanciona.
6) Montagem do Plano de Aplicação
O Conselho de Direitos elabora tendo como base o Plano de Ação e a Lei de Diretrizes Orçamentárias.
7) Aprovação do Orçamento
O Prefeito integra o Plano de Aplicação na proposta orçamentária e a envia à Câmara. Esta examina e aprova. O Prefeito sanciona.
8) Recebimento de Recursos
O Administrador registra as receitas do Fundo.
9) Ordenação das Despesas
O Administrador, segundo Plano de Aplicação, efetua as despesas previstas.
10) Prestação de Contas
O Administrador, através de balancete, presta contas, mensalmente, ao Conselho de Direitos e, anualmente, ao Conselho de Direitos, à Câmara e ao Tribunal de Contas.
ESBOÇO DE ANTEPROJETO DE LEI MUNICIPAL DISPONDO SOBRE A POLÍTICA MUNICIPAL DE ATENDIMENTO AOS DIRETOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE/MINISTÉRIO PÚBLICO DE SÃO PAULO
Lei Municipal n..., de... de...de 19...
Dispõe sobre a política municipal de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, e dá outras providências.
O PREFEITO MUNICIPAL
Faço saber que a Câmara Municipal decreta e eu sanciono a seguinte lei:
DAS DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 1º. Esta lei dispõe sobre a política municipal de atendimento dos direitos da criança e do adolescente e estabelece normas gerais para a sua aplicação.
Art. 2º. O atendimento dos direitos da criança e do adolescente, no âmbito municipal, far-se-á através de:
I - Políticas sociais básicas de educação, saúde, recreação, esportes, cultura, lazer, profissionalização e outras que assegurem o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social da criança e do adolescente, em condições de liberdade e dignidade;
II - Políticas e programas de assistência social, em caráter supletivo, para aqueles que dela necessitam;
III - Serviços especiais, nos termos desta lei.
Parágrafo único. O município destinará recursos e espaços públicos para programações culturais, esportivas e de lazer voltadas para a infância e a juventude.
Art. 3º. São órgãos da política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente:
I - Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente;
II - Conselho Tutelar.
Art. 4º. O município poderá criar os programas e serviços a que aludem os incisos II e
III do art. 2º ou estabelecer consórcio intermunicipal para atendimento regionalizado, instituindo e mantendo entidades governamentais de atendimento, mediante prévia autorização do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.
§ 1º. Os programas serão classificados como de proteção ou sócio-educativos e destinar-se-ão a:
a) orientação e apoio sócio-familiar;
b) apoio sócio-educativo em meio aberto;
c) colocação familiar;
d) abrigo;
e) liberdade assistida;
f) semiliberdade;
g) internação.
§ 2º. Os serviços especiais visam a:
a) prevenção e atendimento médico e psicológico às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão;
b) identificação e localização de pais, crianças e adolescentes desaparecidos;
c) proteção jurídico-social.
DO CONSELHO MUNICIPAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Art. 5º. Fica criado o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, órgão deliberativo e controlador da política de atendimento, vinculado ao Gabinete do Prefeito, observada a composição paritária de seus membros, nos termos do art. 88, inciso II, da Lei Federal 8.069/90.
Parágrafo único. O Conselho administrará um fundo de recursos destinado ao atendimento dos direitos da criança e do adolescente, assim constituído:
I - Pela dotação consignada anualmente no orçamento do município para assistência social voltada à criança e ao adolescente;
II - Pelos recursos provenientes dos Conselhos Estadual e Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente;
III - Pelas adoções, auxílios, contribuições e legados que lhe venham a ser destinados;
IV - Pelos valores provenientes de multas decorrentes de condenações em ações civis ou de imposição de penalidades administrativas previstas na Lei 8.069/90;
V - Por outros recursos que lhe forem destinados;
VI - Pelas rendas eventuais, inclusive as resultantes de depósitos e aplicações de capitais.
Art. 6º O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente é composto de (...) membros , sendo:
I - 1 (um) representante da Secretaria da Educação;
II - 1(um) representante da Secretaria da Saúde;
III - 1 (um) representante da Secretaria de Ação Social;
IV- 1 (um) representante da Secretaria de Finanças e Planejamento;
V - 4 (quatro) representantes de entidades não-governamentais de defesa ou atendimento dos direitos da criança e do adolescente.
§ 1º. Os conselheiros representantes das secretarias serão indicados pelo Prefeito, dentre pessoas com poderes de decisão no âmbito da respectiva secretaria, no prazo de 10 (dez) dias, contados da solicitação para a nomeação e posse pelo Conselho.
§ 2º. Os representantes de organizações da sociedade civil serão eleitos pelo voto das entidades de defesa e de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, com sede no município, reunidas em assembléia convocada pelo Prefeito, mediante edital publicado na imprensa, no prazo estabelecido no parágrafo anterior, para a nomeação e posse do Conselho.
§ 3º. A designação dos membros do Conselho compreenderá a dos respectivos suplentes.
§ 4º. Os membros do Conselho e os respectivos suplentes exercerão mandato de 2 (dois) anos, admitindo-se a renovação apenas por uma vez e por igual período.
§ 5º. A função de membro do Conselho é considerada de interesse público relevante e não será remunerada.
§ 6º. A nomeação e posse do primeiro Conselho far-se-á pelo Prefeito Municipal, obedecida a origem das indicações.
Art. 7º Compete ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente:
I - Formular a política municipal dos direitos da criança e do adolescente, definido prioridades e controlando as ações de execução;
II - Opinar na formulação das políticas sociais básicas de interesse da criança e do adolescente;
III - Deliberar sobre a conveniência e oportunidade de implementação de programas e serviços a que se referem os incisos II e III do art. 3º desta lei, bem como sobre a criação de entidades governamentais ou realização de consórcio intermunicipal regionalizado de atendimento;
IV - Elaborar seu Regimento Interno;
V - Solicitar as indicações para o preenchimento de cargo de conselheiro, nos casos de vacância e término de mandato;
VI - Nomear e dar posse aos Membros do Conselho;
VII - Gerir fundo municipal, alocando recursos para os programas das entidades governamentais e repassando verbas para as entidades não-governamentais;
VIII - Propor modificações nas estruturas das secretarias e órgãos da administração ligados à promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente;
IX - Opinar sobre o orçamento municipal destinado à assistência social, saúde e educação, bem como ao funcionamento dos Conselhos Tutelares, indicando as modificações necessárias à consecução da política formulada;
X - Opinar sobre a destinação de recursos e espaços públicos para programações culturais, esportivas e de lazer voltadas para infância e a juventude;
XI - proceder à inscrição de programas de proteção e sócio-educativos de entidades governamentais e não-governamentais, na forma dos arts. 90 e 91 da Lei 8.069/90;
XII - Fixar critérios de utilização através de planos de aplicação das doações subsidiadas e demais receitas, aplicando necessariamente percentual para o incentivo ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente, órfão ou abandonado, de difícil colocação familiar;
XIII - Fixar a remuneração dos membros do Conselho Tutelar, observados os critérios estabelecidos no art. 34 desta lei.
Art. 8º O Conselho Municipal manterá uma secretaria geral, destinada ao suporte administrativo-financeiro necessário ao seu funcionamento, utilizando-se de instalações e funcionários cedidos pela Prefeitura Municipal.
DO CONSELHO TUTELAR
Seção I - Disposições gerais
Art. 9º Fica criado o Conselho Tutelar, órgão permanente e autônomo, não-jurisdicional, encarregado de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, composto de cinco membros, para mandato de três anos, permitida uma reeleição.
Art. 10 Os conselheiros serão eleitos em sufrágio universal e direto, pelo voto facultativo e secreto dos cidadãos do município, em eleição presidida pelo juiz eleitoral e fiscalizada pelo representante do Ministério Público.
Parágrafo único. Podem votar os maiores de dezesseis anos, inscritos como eleitores no município até três meses antes da eleição.
Art. 11 A eleição será organizada mediante resolução do juiz eleitoral, na forma desta lei.
Seção II - Dos requisitos e do registro das candidaturas
Art. 12 A candidatura é individual e sem vinculação a partido político.
Art. 13 Somente poderão concorrer à eleição os candidatos que preencherem, até o encerramento das inscrições, os seguintes requisitos:
I - Reconhecida idoneidade moral;
II - Idade superior a vinte e um anos;
III - Residir no município há mais de dois anos;
IV - Estar em gozo dos direitos políticos;
V - Diploma em curso universitário;
VI - Reconhecida experiência na área de defesa ou atendimento dos direitos da criança e do adolescente.
Art. 14 A candidatura deve ser registrada no prazo de três meses antes da eleição, mediante apresentação de requerimento endereçado ao juiz eleitoral, acompanhado de prova do preenchimento dos requisitos estabelecidos no artigo anterior.
Art. 15 O pedido de registro será autuado pelo cartório eleitoral, abrindo-se vista ao representante do Ministério Público para eventual impugnação, no prazo de cinco dias, decidindo o juiz em igual prazo.
Art. 16 Terminando o prazo para registro das candidaturas, o juiz mandará publicar edital na imprensa local, informando o nome dos candidatos registrados e fixando prazo de quinze dias, contando da publicação, para o recebimento de impugnação por qualquer eleitor.
Parágrafo único. Oferecida impugnação, os autos serão encaminhados ao Ministério Público para manifestação, no prazo de cinco dias, decidindo o juiz em igual prazo.
Art. 17 Das decisões relativas às impugnações caberá recurso ao próprio juiz, no prazo de cinco dias, contados da intimação.
Art. 18 Vencidas as fases de impugnação e recurso, o juiz mandará publicar edital com os nomes dos candidatos habilitados ao pleito.
Seção III - DA realização do pleito
Art. 19 A eleição será convocada pelo juiz eleitoral, mediante edital publicado na imprensa local, seis meses antes do término dos mandatos dos membros do Conselho Tutelar.
Art. 20 É vedada propaganda eleitoral nos veículos de comunicação social, admitindo-se somente a realização de debates e entrevistas.
Art. 21 É proibida propaganda por meio de anúncios luminosos, faixas fixas, cartazes ou inscrições em qualquer local público ou particular, com exceção dos locais autorizados pela Prefeitura, para utilização por todos os candidatos em igualdade de condições.
Art. 22 As cédulas eleitorais serão confeccionadas pela Prefeitura Municipal, mediante modelo previamente aprovado pelo juiz.
Art. 23 Aplica-se, no que couber, o disposto na legislação eleitoral em vigor, quanto ao exercício do sufrágio direto e à apuração dos votos.
Parágrafo único. O juiz poderá determinar o agrupamento de seções eleitorais, para efeito de votação, atento à facultatividade do voto e às peculiaridades locais.
Art. 24 À medida que os votos forem sendo apurados, poderão os candidatos apresentar impugnações que serão decididas de plano pelo juiz, em caráter definitivo.
Seção IV - Da proclamação e posse dos eleitos
Art. 25 Concluída a apuração dos votos, o juiz proclamará o resultado da eleição, mandando os nomes dos candidatos e o número de sufrágios recebidos.
§ 1º. Os cinco primeiros mais votados serão considerados eleitos, ficando os demais pela ordem de votação, como suplentes.
§ 2º. Havendo empate na votação, será considerado eleito o candidato mais idoso.
§ 3º. Os eleitos serão nomeados pelo juiz eleitoral, tomando posse no cargo de conselheiro no dia seguinte ao término do mandato de seus antecessores.
§ 4º. Ocorrendo a vacância do cargo, assumirá o suplente que houver obtido o maior número de votos.
Seção V - Dos impedimentos
Art. 26. São impedidos de servir no mesmo Conselho marido e mulher, ascendentes e descendentes, sogro e genro ou nora, irmãos, cunhados, durante o cunhadio, tio e sobrinho, padrasto ou madrasta e enteado.
Parágrafo único. Estende-se o impedimento do conselheiro, na forma deste artigo, em relação à autoridade judiciária e ao representante do Ministério Público com atuação na Justiça da Infância e da Juventude, em exercício na Comarca, Foro Regional ou Distrital.
Seção VI - Das atribuições e funcionamento do Conselho Tutelar
Art. 27 Compete ao Conselho Tutelar exercer as atribuições constantes dos arts. 95 e 136 da Lei Federal 8.069/90.
Art. 28 O presidente do Conselho será escolhido pelos seus pares, na primeira sessão, cabendo-lhe a presidência das sessões.
Parágrafo único. A falta ou impedimento do presidente assumirá a presidência, sucessivamente, o conselheiro mais antigo ou o mais idoso.
Art. 29 As sessões serão instaladas com o mínimo de três conselheiros.
Art. 30 O Conselho atenderá informalmente as partes, mantendo registro das providências adotadas em cada caso e fazendo consignar em ata apenas o essencial.
Parágrafo único. As decisões serão tomadas por maioria de votos, cabendo ao presidente o voto de desempate.
Art. 31 As sessões serão realizadas em dias úteis, no horário das ...às...
Art. 32 O Conselho manterá uma secretaria geral, destinada ao suporte administrativo necessário ao seu funcionamento, utilizando-se de instalações e funcionários cedidos pela Prefeitura Municipal.
Seção VII - Da competência
Art. 33 A competência será determinada:
I - Pelo domicílio dos pais ou responsável;
II - Pelo lugar onde se encontre a criança ou adolescente.
§ 1º. Nos casos de ato infracional praticado por criança, será competente o Conselho Tutelar do lugar da ação ou omissão, observadas as regras de conexão, continência e prevenção.
§ 2º. A execução das medidas de proteção poderá ser delegada ao Conselho Tutelar da residência dos pais ou responsável, ou do local onde se sediar a entidade que abrigar a criança ou adolescente.
Seção VIII - Da remuneração e da perda do mandato
Art. 34 O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e adolescente poderá fixar remuneração ou gratificações aos membros do Conselho Tutelar, atendidos os critérios de conveniência e oportunidade e tendo por base o tempo dedicado à função e as peculiaridades locais.
§ 1º. A remuneração eventualmente fixada não gera relação de emprego com a Municipalidade, não podendo, em nenhuma hipótese e sob qualquer título ou pretexto, exceder à pertinente ao funcionalismo municipal de nível superior.
§ 2º. Sendo eleito funcionário público municipal, fica-lhe facultado, em caso de remuneração optar pelos vencimentos e vantagens do cargo, vedada a acumulação de vencimentos.
Art. 35 Os recursos necessários à eventual remuneração dos membros do Conselho Tutelar terão origem no fundo administrativo pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Art. 36 Perderá o mandato o conselheiro que se ausentar injustificadamente a três sessões consecutivas ou a cinco alternadas, no mesmo mandato, ou for condenado por sentença irrecorrível, por crime ou contravenção penal. Parágrafo único. A perda do mandato será decretada pelo juiz eleitoral, mediante provocação do Ministério Público, do próprio Conselho ou de qualquer eleitor, assegurada defesa.
DAS DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS
Art. 37 No prazo de sete meses, contados da publicação desta lei, realizar-se-á a primeira eleição para o Conselho Tutelar, observando-se quanto à convocação o disposto no art. 1º desta lei.
Art. 38 O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, no prazo de quinze dias da nomeação de seus membros, laborará o seu Regimento Interno, elegendo o primeiro presidente, e decidirá quanto à eventual remuneração ou gratificação dos membros do Conselho Tutelar.
Art. 39 Fica o Poder Executivo autorizado a abrir crédito suplementar para as despesas iniciais decorrentes do cumprimento desta lei, no valo de R$... .
Art. 40 Esta lei entre em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
1. Quanto à indicação dos representantes de entidades no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (art. 6º, § 2º):
A) Nos municípios onde houver associação que congregue as entidades de defesa e de atendimento a lei poderá estabelecer a escolha dos representantes em assembléia geral, especialmente convocada para essa finalidade.
B) Nos municípios onde houver subseção da OAB a lei poderá estabelecer que a convocação da assembléia das entidades seja feita por seu presidente.
C) Nos municípios onde inexistirem entidades em número suficiente para o preenchimento das vagas dos representantes da sociedade civil, a lei poderá estabelecer que caberá à Câmara Municipal a respectiva indicação, dentre pessoas com experiência na área de defesa ou atendimento dos direitos da criança e do adolescente.
2. Quanto à criação de mais de um Conselho Tutelar: a lei poderá ter como critério o número de zonas eleitorais existentes no município, podendo a cada zona corresponder um Conselho Tutelar, ou um Conselho para duas ou mais zonas, consoante as necessidades locais. A adoção de critério diverso, tal como número de habitantes e divisão por bairros ou distritos, implicaria dificuldades no processo de votação. Havendo mais de uma zona eleitoral e sendo único o Conselho tutelar a ser criado, a lei deverá prever qual o juiz competente para o processo eleitoral.
(Esboço elaborado pelo Centro de Apoio Operacional das Curadorias de Menores do Ministério público do Estado de São Paulo)
PARTICIPAR É PRECISO
Antônio Carlos Gomes da Costa
O Estatuto da Criança e do Adolescente não é uma lei que se faz sem nós. Ele requer a nossa participação. O poder e a força do Estado não bastam, por si mesmos, para pôr em prática o novo direto da infância e da juventude. O que temos nas mãos é uma legislação que pressupõe uma clara ruptura com a passividade e o alheamento que, historicamente, marcaram a atualização da grande maioria das pessoas e grupos que trabalham em favor da criança, quando se trata do exercício do direito de participar na condução da coisa pública.
O que é participar politicamente em favor dos direitos da criança? O que isto exige de cada pessoa em termos de empenho, de dedicação, de preparo? Quais são os pressupostos e as necessidades a serem satisfeitas para termos uma participação de qualidade, uma participação capaz de se traduzir em avanços e conquistas na causa pela qual nos empenhamos?
Participar nas decisões federais é uma tarefa difícil. Exige deslocamentos caros que, freqüentemente, implicam dispêndios pesados demais para a maioria dos movimentos e entidades que atuam em nível local. Por outro lado, a agenda dos dirigentes nacionais de políticas públicas é bastante carregada de viagens, audiências, reuniões, eventos e outros compromissos. Fica difícil para uma entidade sem ligações em Brasília ter acesso aos decisores desse nível.
Nos Estados, embora com menos empecilhos, as coisas ocorrem de forma bastante semelhante ao que se passa no plano federal. Os contatos nem sempre podem ser feitos com a necessária brevidade e freqüência. É comum que os dirigentes, ao receber grande número de pleitos e reivindicações, acabem deixando tudo nas mãos de assessores que nem sempre se empenham devidamente para conseguir o que foi solicitado. Outras vezes, as coisa se perdem nos labirintos das burocracias inertes e descompromissadas.
Essas razões que nos levam a salientar a importância da participação no nível municipal de poder. É aí, de fato, que as acontecem. Os dirigentes estão mais perto do povo e a sua abordagem é uma operação menos laboriosa e complexa que nas esferas do Estado e da União. Quando se trata desta questão, é comum as pessoas lembrarem de que todos nós moramos no município. Ninguém reside no Estado ou na União, que, na verdade, são apenas convenções de natureza legal.
É no município que está a rua sem calçamento, o esgoto a céu aberto, o poste sem iluminação, a escola sem vaga, o posto de saúde que não funciona, os meninos nas ruas sem qualquer atendimento, a placa na fábrica ou canteiro de obras dizendo "não há vagas". Enfim, é no município que estoura a grande maioria dos problemas dos cidadãos, mesmo aqueles gerados por atos ou omissões cometidos nos outros níveis da Federação.
Como se vê, muito importante participar em nível municipal, mesmo reconhecido que, embora o prefeito e seus auxiliares sejam mais próximos e acessíveis, a participação no município encerra também sua dose de risco e complicação. Isto acontece porque, como ocorre freqüentemente nas pequenas cidades, as pessoas são muito visadas e, não raro, se acham expostas às pressões e contrapressões do poder local. É preciso, por isso mesmo, agir com maturidade e precaução.
A participação é um exercício cívico da maior relevância. A pessoa que dedica parte de seu tempo a esta tarefa merece o respeito e o apreço dos seus concidadãos. Lutar pelo bem comum gratifica as pessoas, fortalece os movimentos, entidades sociais e, freqüentemente, resulta em benefícios concretos para a comunidade de uma rua, de um bairro, de uma cidade.
Foi pensando em todas essas coisas e reconhecendo o quanto nossas práticas de relacionamento com os diversos níveis de governo precisam mudar que me decidi a enumerar alguns pontos acerca do que me parece ser um processo de participação articulado e conseqüente. Trata-se, antes de tudo, de aspectos a serem levados em conta pelos cidadãos que se propõem atuar junto ao Poder Público, na defesa de um ponto de vista, de um interesse ou de uma causa que diga respeito à coletividade.
Assim, os pontos que me parecem fundamentais para uma participação de qualidade são os seguintes:
(1) acesso a informações;
(2) acesso aos espaços de decisão;
(3) capacidade de interlocução;
(4) capacidade de negociação;
(5) capacidade de articulação;
(6) capacidade de pressão;
(7) criatividade institucional e comunitária.
Sem pretensão de esgotar o assunto, que é vasto e complexo, passo a tecer alguns pequenos comentários acerca de cada um dos itens enumerados.
1. Acesso a
informações
É muito importante que o maior número possível de pessoas tenha acesso a informações. Jornais, boletins, recortes selecionados sobre temas de interesse, murais, divulgação através de cartazes, programas de rádio, missas, serviços de alto-falantes, visitas, reuniões, correspondências, são apenas alguns dos muitos canais que podem ser usados para que informações isentas e corretas atinjam o maior número possível de pessoas, grupos e entidades. É um erro informações ou divulgar informações incorretas ou de procedência duvidosa (boatos), que possam induzir as pessoas a erros de juízo e de atuação diante dos fatos.
O dirigente ou a entidade que sonega informações a seus dirigidos ou filiados, na verdade, está longe de ser democrático. Informação é poder. Quem retém informação está, no fundo, procurando reter uma parcela de poder a mais em suas mãos. Democratizar ao máximo as informações é, portanto, uma prática muito importante para a saúde de qualquer relação que se pretenda democrática.
2. Acesso aos
espaços de decisão
Chegar às pessoas que tomam decisões (os decisores): prefeito, secretários, dirigentes de órgãos e departamentos é sempre um problema. Muitas vezes as pessoas e grupos costumam servir-se de um padrinho, de um "pistolão", de um intermediário, o qual, prestado o "favor", passa a considerá-las devedoras geralmente de votos e outras formas de apoio e obediência política. Este é um exemplo dos velhos caminhos de se ter acesso aos decisores públicos.
Existem, no entanto, caminhos novos. Esses caminhos (com ou sem intermediários) consideram o acesso aos decisores um direito inerente à condição de cidadão e, por isso, as pessoas não devem fidelidade e obediência a quem intermediou o contato. Na verdade, na maioria dos casos, basta um grupo organizado apresentar e solicitar-se antecipadamente uma audiência ou dirigente que este dificilmente haverá de deixar de receber a pessoa ou delegação designada para a conversa com a autoridade. É prudente que, nessas conversas, se evite sempre que possível enviar uma só pessoa. Isto evita incidentes e entendimento distorcido ou inadequado do que foi tratado com a autoridade.
3. Capacidade
de interlocução
O contrato com as autoridades públicas não deve, como alguma vezes ocorre, ser uma mobilização dramática de nervos e sentimentos. As pessoas não devem "dramatizar" situações para tocar o coração do dirigente. A conversa deve ser serena, conduzida em linguagem respeitosa, usando argumentos racionais e, sempre que possível, os pleitos e reivindicações devem ser acompanhados de algum dado numérico, fotografia ou depoimentos objetivos e claros de pessoas diretamente envolvidas nas situações em pauta. Os testemunhos ou provas documentais não devem ser longos e nem reiterativos, isto é, ficar repetindo toda a vida a mesma coisa.
Outro ponto importante é que o grupo deve procurar imaginar os argumentos que possam ser usados pela autoridade e procurar, na fase de preparação, formular os contra-argumentos e designar quem pode desenvolvê-los com maior poder de convencimento e conhecimento de causa.
4. Capacidade
de negociação
É preciso que o grupo desenvolva uma capacidade de negociação. É importante definir previamente quando ceder ou não ceder frente a determinadas posturas ou argumentos da autoridade. As pessoas encarregadas de conduzir uma negociação devem ter gosto e jeito para este tipo de tarefa, o importante é que em momento algum se deve fechar as portas do diálogo franco e maduro com as autoridades. Numa negociação, é fundamental que as partes se respeitem e não se deixem levar por questões paralelas que desviem a atenção do ponto principal ou despertem emocionalismo e ressentimentos.
5. Capacidade
de articulação
Cada proposta apresentada às autoridades deve contar com uma base social a mais ampla e diversificada possível. Os grupo que lutam em favor dos direitos da criança e do adolescente devem procurar pessoas e grupos, movimentos, entidades ou mesmo personalidades importantes que possam ter qualquer motivo para apoiar o que se está pleiteando.
Nunca é demais lembrar aqui a força nucleadora da criança. Esta é uma causa capaz de unir as pessoas acima de divergências religiosas, sociais, políticas, partidárias e ideológicas. É fundamental, portanto, agir com lucidez e pragmatismo, buscando fazer articulações e alianças com todos os setores que, num determinado momento, estejam dispostos a abraçar a causa e empenhar a bandeira da promoção e defesa dos direitos da infância e da juventude. Quanto mais setores significativos de uma comunidade estiverem fechados no apoio a uma reivindicação, menor, naturalmente, será a resistência a ser enfrentada por este pleito.
6.
Capacidade de pressão
No caso de a autoridade manter-se numa postura de alheamento ou hostilidade às propostas e reivindicações apresentadas em favor da criança e do adolescente, é válido, cessados todos os recursos de sensibilização e abertura de um entendimento objetivo e respeitoso, o recurso a mecanismos de pressão.
A primeira forma de pressão a ser adotada é a pressão positiva: manifestações respeitosas, abordagem de setores com influência sobre a autoridade em questão, abaixo-assinados, cartas-abertas amplamente divulgadas, mensagens e segmentos diversos da comunidade comunicando os fatos de maneira honesta e objetiva e solicitando apoio através de apelos à autoridade.
Se as pressões positivas não surtem nenhum efeito positivo, os recursos são as formas negativas (constrangedoras) de pressão como: impetrar ação judicial, organizar ato público ou passeata, publicar denúncias na imprensa, pedir apoio a entidades de defesa dos direitos da criança no sentido de que se manifestem de forma contundente junto ao decisor público indiferente ou hostil aos direitos da criança e do adolescente.
É de boa política, no entanto, que em momento algum o dirigente seja desrespeitado em sua autoridade ou que se use em relação a ele linguagem que não seja condizente com a dignidade do seu cargo.
7.
Criatividade institucional e comunitária
O Brasil passa por um momento de grandes dificuldades. Os recursos financeiros são escassos e devem ter seu uso pensado em termos de se obter o máximo de qualidade, produtividade e eficiência com o custo per capta o mais baixo possível. Isto não quer dizer que se deva reservar o pior para os pobres. Isto quer dizer que os programas e ações - desde que empregados de forma criativa os seus recursos - podem, em muitos casos, conciliar qualidade e custos compatíveis.
Outro aspecto de grande relevância da criatividade institucional e comunitária é o exercício da imaginação política criadora no sentido de garantir às ações desenvolvidas não apenas maturidade técnica, mas o máximo possível de legitimidade, representatividade, transparência e aceitabilidade, de modo a garantir-lhes a evolução de continuidade no curso das turbulências normais da conflitividade da vida democrática.
A consideração destes sete pontos pode conduzir a processo de participação que, se não forem capazes de reverter os aspectos negativos de uma determinada realidade num prazo curto, servirão, pelo menos, para instaurar tendências irreversíveis na direção pretendida, isto é, que a criança e o adolescente sejam prioridades na lei e na realidade.
Notas:
Anexo I - Quadro sinóptico comparativo entre o Código de Menores e a Política Nacional do Bem-Estar do Menor (Lei 4.513/64 e 6.697/79) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90).
Anexo II - A criança e o adolescente na Constituição Federal.
Anexo III - Saúde, Educação e Assistência Social no Município. Fonte; João Gilberto Lucas Coelho. Criança e Adolescente: Prioridades nacionais/Prioridades municipais.
Anexo IV - Quadro comparativo entre as metas do Encontro de Cúpula das Nações Unidas e a situação do Brasil. Fonte: Pacto pela Infância/Reunião de Cúpula de Governadores pela Criança (20.5.92).
Anexo V - A) Sugestão de Decreto de Regulamentação do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. B) Roteiro de providências para a criação e funcionamento do Fundo.
Anexo VI - Esboço de anteprojeto de lei municipal dispondo sobre a política municipal de atendimento aos direitos da criança e do adolescente.
Anexo VII - "Participar é Preciso" - Antônio Carlos Gomes da Costa.