DOS CONTRATOS DE ESTÁGIO, REGIDOS PELA LEI Nº 6.494/77

 

 

Jorge Luiz Souto Maior

Juiz do Trabalho, SP.

 

 

É sempre uma satisfação muito grande para mim participar de eventos organizados pelo Ministério Público do Trabalho, primeiro porque tenho a oportunidade de rever muitos amigos e segundo por saber da seriedade dos propósitos dessa Instituição.

 

Não digo isto para fazer aquela velha média costumeira dos congressos jurídicos Vejam o próprio exemplo do tema aqui posto em discussão: o contrato de estágio. Trata-se de tema extremamente relevante, seja pela sua importância para a sociedade, seja pelas várias controvérsias que podem advir da interpretação das leis que lhe são pertinentes.

 

É bastante oportuno, portanto, pôr tal tema em debate, ainda mais no formato como este evento se realiza, ou seja, promovendo uma interação entre a sociedade civil e alguns representantes do Estado, para que, conjuntamente, esclareçam fatos e leis, como forma de evitar desnecessários conflitos futuros. 

 

Indo diretamente ao assunto, a figura jurídica do contrato de estágio é alvo de grande interesse para alguns, pelo fato de permitir a utilização do trabalho humano, sem os custos do direito do trabalho, vez que nos termos dos arts. 3o e 4o da Lei n. 6.494/77, nos contratos de estágio não há a formação de vínculo empregatício. O contrato de estágio, portanto, configura-se, conseqüentemente, uma porta aberta para a diminuição do custo da produção. 

 

Mas, é evidente que o contrato em questão não se instituiu com tal propósito. Sua finalidade é propiciar uma integração de educação com o  “mundo do trabalho”, conforme prevê, aliás, a Lei  n. 9.394/96, das diretrizes e bases da educação nacional, sem seu art. 1o § 2o .

 

Além disso, do ponto de vista da educação, a colocação do estudante em contato com o mundo do trabalho é importante, como fator de complementação do ensino, do ponto de vista do mercado do trabalho, esta situação só se justifica de forma excepcional, pois o que deve privilegiar a busca do pleno emprego conforme previsto no art  170 da Constituição Federal. E, emprego significa prestação de serviços com aplicação dos direitos trabalhistas  (art. 7o).

 

Para que os interesses da colocação não representem uma fórmula para que se aniquilem os direitos trabalhistas, alguns pressupostos de ordem jurídica se inserem no presente tema e é bom que sejam aqui esclarecidos:

 

1. Em primeiro lugar, trata-se de técnica de interpretação jurídica que as leis que criam alguma situação excepcional são interpretadas restritivamente, isto é, os casos excepcionais previstos nas leis são limitados, não comportando qualquer tipo de interpretação da lei que vise à ampliação dos casos. Assim, as hipóteses fáticas devem se encaixar perfeitamente na previsão legal, sob pena de se aplicarem a elas as leis de caráter geral.

 

Em termos concretos, portanto, os contratos de estágio não significarão a formação de um vínculo de emprego apenas quando os requisitos legais, interpretados de forma restrita, forem perfeitamente respeitados.

 

E que requisitos são esses ?

 

Há requisitos formais e essenciais para a formação do contrato de estágio.

 

Sob o ponto de vista formal, é preciso que:

 

a)  A instituição de ensino institua o estágio curricular na sua programação didático pedagógica, fixando carga  horária, duração do estágio  (art  4o, do Decreto nº 87.497/82).

 

b) Se realize um termo de compromisso entre o estudante e a empresa concedente da oportunidade de trabalho com interveniência da instituição de ensino  (§ 1o , do art. 6o do Decreto n°. 87.497/82), sendo que a instituição de ensino poderá recorrer a agentes de integração públicos ou privados, para a formação do termo de compromisso;

 

c) Se efetive uma sistemática supervisão e avaliação do estágio (letra d, do  art 4o do Decreto n. 87.497/82).

 

Sob o ponto de vista essencial, é crucial o estágio:

 

a.  Tenha “condições de proporcionar experiência prática na linha de formação”  do estudante  (§ 1o da lei 9.494/77);

 

b.  Propicie a  complementação do ensino e da aprendizagem e serem planejados, executados, acompanhados e avaliados em conformidade com os currículos, programas e calendários escolares;

 

c.  Valha como instrumento de integração em termos de treinamento prático, de aperfeiçoamento técnico – cultural, cientifico e de relacionamento humano”    2o, do mesmo artigo).   

 

Excepciona o art. 2° da mesma Lei, que o estágio poderá ser independente do aspecto profissional direto e específico, assumindo a forma de  extensão, mediante a participação do estudante em empreendimentos ou projetos de interesse social”.

 

Existem, portanto, dois tipos de estagio: o curricular e o de ação comunitária, conforme, alias, especificam os §§ 1ºe 2º do art 3° da Lei em questão.

 

O estágio curricular, definido no art 2° do Decreto n° 87.490/82, é procedimento didático-pedagógico, cujos limites e objetivos devem ser traçados pela instituição de ensino à qual está vinculado o estudante, dispondo a respeito.

 

a.  Da inserção do estágio curricular na programação didático-pedagógica;

 

b.  De carga horária, duração e jornada do estágio, tendo, obrigatoriamente, duração, no mínimo, de um semestre;

 

c.  Das condições de desenvolvimento do estágio, nos termos da Lei n° 6.404/77; e,

 

d.  Da forma de organização, orientação, supervisão e avaliação do estágio  (art. 4° do Decreto n° 87.497/82).

 

O Decreto em questão não regula a atividade do estágio de ação comunitária. De qualquer forma, os termos do art. 2° da Lei n° 06.404/77 não deixa dúvida de que esse tipo de estágio deve atender a empreendimentos e projetos de interesse social, não se podendo entender como tal, o mero engajamento do estudante no mercado de trabalho, exercendo qualquer atividade sem relação ao seu currículo escolar, pois isso, ao contrário, trata-se de procedimento alheio ao interesse social, já que propicia o trabalho sem as garantias inerentes à relação de emprego, constituindo, ao mesmo tempo, fator de concorrência desleal com aqueles que, não sendo estudantes, procuram o mesmo engajamento no mercado de trabalho e forma de enriquecimento ilícito daqueles que usufruem da prestação de serviços falsos estagiários, uma vez que deixam de pagar a outro trabalhador os direitos inerentes a relação de emprego.

 

O estágio previsto no art. 2o da Lei 6.494/77, deve ser reservado, portanto a raras hipóteses em que a satisfação do interesse social se faça com empreendimentos ou projetos sob a forma de ação comunitária, como aliás, define o § 2° , do art. 3o da mesma Lei.

 

Assim, ordinariamente, limita-se o estágio às hipóteses de estágio curricular, cuja validade está sujeita ao cumprimento das formalidades e objetivos previstos em lei, conforme acima explicitados.

 

Fora dessas hipóteses e não se respeitando os requisitos formais ou essenciais da formação do contrato de estágio há a formação do vínculo de emprego entre o estudante e a empresa tomadora dos serviços.

 

Na circunstância de ser negada validade ao contrato de estágio, configurando-se o vinculo de emprego diretamente com o tomador de serviços, restaria alguma responsabilidade para a instituição de ensino ?

 

Bom aqui a questão não é pacifica, mas parece que  resta sim responsabilidades para a instituição de ensino quanto a eventuais créditos trabalhistas que forem reconhecidos ao estudante, quando a instituição de ensino deixe de cumprir as suas obrigações na formação de tal contrato, pois, nesta hipótese a relação educacional sai de cena, entrando em seu lugar uma relação jurídica de caráter meramente mercantil. Agindo de forma irregular e favorecendo,  com a sua incúria, a fraude aos direitos trabalhistas, a instituição de ensino deixa seu papel de educadora, para se inserir no quadro de uma mera intermediadora de mão-de-obra, saltando-se, desta situação, sua responsabilidade quanto aos créditos trabalhistas devido ao trabalhador.

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 Lembre-se que os contratos de estágio se formalizam “sob responsabilidade e coordenação da instituição de ensino”, conforme prevê o art. 2o do Decreto n° 87.497/82.

 

2.  Em segundo lugar, sob um prisma um pouco mais amplo, vislumbra-se a atuação do Ministério Público também para coibir as práticas abusivas da elaboração de contrato de estágio.

 

Como se disse acima, a formação de contratos de estágio só se justifica de  forma excepcional no contexto do mercado de trabalho. Mesmo que não haja nenhuma lei prevendo expressamente um tal limite, a fixação de um limite de 10% de estagiários para cada setor da empresa, com relação ao número de empregados efetivos, parece mais que razoável.

 

Neste aspecto assumem relevância jurídica a noção de abuso de direito e o princípio de que o contrato de estágio deve se constituir uma exceção no mercado de trabalho, sob pena de ser agredida a norma constitucional da busca do pleno emprego  (art 170).

 

Ainda que a formação de contratos de estágio possa interessar particularmente ao estudante, às empresas, e mesmo às instituições de ensino, na medida em que são obrigadas a instituir este tipo de atividade e também porque tal prática as auxilia na diminuição da inadimplência, há de se ter em mente que o interesse a ser preservado é o interesse público  (art. 8o da CLT e não os interesses privados em questão. Uma generalização dos contratos de estágio se faz em detrimento do todo social, pois diminui sensivelmente o mercado de trabalho para os pais de família que dependem de emprego para promoverem a sobrevivência sua e de seus familiares e segundo porque gera um desequilíbrio de todo o custo da política de proteção social, que tem como base de incidência principal a formação da relação de emprego.

 

Neste segundo aspecto, talvez o que mais importe seja a sensibilização das instituições de ensino para a importância que sua atuação, como fornecedoras de mão de obra ao mercado de trabalho, pode gerar no seio social. Uma tal sensibilização se concretizaria com uma mera solicitação de que adotem uma postura de negar a formação de contratos de estágio com empresas que buscam esse tipo de contrato uma fórmula mágica para reduzirem os custos da produção.

 

De todo modo, vale lembrar que se analisadas as causas com um pouco mais de rigor, a atitude de uma empresa que busca nos contratos de estágio a sua principal fonte de produção de riqueza, configura-se como infração da ordem econômica, visto que, tornando regra aquilo que seria exceção, tal empresa adota uma postura de concorrência desleal com outras empresas do mesmo ramo, fazendo incidir o art. 20, da Lei  n° 8.884/94, que define como infração da ordem econômica, dentre outras atitudes: “limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa”.

 

Recorde-se, ainda, que a ordem econômica é fundada  na valorização do trabalho humano”  (art. 170, CF) e que a busca do pleno emprego é um dos princípios gerais da atividade econômica  (inciso VIII, do art 170, CF), o que reforça a consideração de que tal prática se insere mesmo como infração da ordem econômica, sujeitando o infrator (empresa e administrador) ao pagamento das multas previstas nos arts. 23 e seguintes da Lei n° 8.884/94.

 

Vale ainda destacar, por oportuno, que mesmo a instituição de ensino , no caso de possibilitar a formação de contratos de estágio de forma abusiva, poderá ser considerada infratora da ordem econômica, nos termos do que prevê o art. 17 da mesma lei, que assim dispõe, expressamente. “Serão solidariamente responsáveis as empresas ou entidades integrantes de grupo econômico, de fato ou de direito, que praticarem infração da ordem econômica”.

 

Como se vê, o fato de ter o ordenamento jurídico previsto a possibilidade da formação de um contrato de um contrato de prestação de serviços, sem a formação do vínculo de emprego, como o contrato de estágio, não significou que tenha abandonado o principio da proteção do trabalho humano, que se concretiza, como regra, com a necessária aplicação do direito do trabalho. O contrato do estágio possui um papel importante na complementação do processo educativo, mas não pode, em hipótese alguma, transformar-se em mola - mestra do processo produtivo.

 

É importante que as instituições de ensino tenham a ciência dos aspectos jurídicos que envolvem o contrato de estágio, se não para não correrem o risco de uma condenação quanto a eventuais créditos trabalhistas reconhecidos aos estudantes em contratos de estágio mal formados, mas para que, evitando a generalização desmedida e irregular dos contratos de estágio, não quebrem o equilíbrio do mercado de trabalho  (o que, certamente, agrava nosso maior problema, que é o desemprego), contribuindo, assim, de forma responsável, para a construção de uma sociedade justa.