A
PROTEÇÃO ESPECIAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES: MAIS UM CAMINHO PARA
SUA EFETIVAÇÃO NO PLANO PREVIDENCIÁRIO
Nicolao Dino de Castro e Costa Neto
Procurador Regional da República; Professor da UFMA.
A
Medida Provisória n° 1.523/96 introduziu diversas modificações no Plano de
Benefícios da Previdência Social – Lei n° 8.213/91. Entre as alterações
processadas, deu-se nova redação ao art.16, §2° da lei citada, da forma
seguinte:
Redação primitiva:
“Art.16
– São beneficiários do Regime Geral da Previdência Social, na condição de
dependente do segurado:
(...)
§2° - Equipara-se a filho, nas
condições do inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado; o menor que,
por determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob
sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e
educação”.
Nova redação:
“Art.16 –
(...)
§2° - O enteado e o menor tutelado
equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a
dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento”.
Após sucessivas reedições, o texto de tal medida provisória foi finalmente convertido em lei. A Lei n° 9.528, de 10.12.97, com efeito, através do seu art. 2°, cristalizou a nova redação do art. 16, §2°, da Lei 8.213/91, nos termos acima apontados.
Com essa inovação, o Diretor do Seguro Social do INSS editou a Ordem de Serviço n° 557/96 (DOU 22.11.96, Seção 1, pág. 24649), considerando a necessidade de estabelecer rotinas para uniformização de procedimentos na aplicação da legislação previdenciária, e frisou, no item 3.1, que o enteado e o menor tutelado são beneficiários do RGPS, na condição de dependente, equiparando-se ao filho, desde que comprovada a dependência econômica.
Assim, somente os enteados e menores tutelados vêm sendo inscritos como dependentes dos segurados. Foram excluídos os menores postos sob guarda em virtude de determinação judicial, ainda que estejam sob a dependência econômica do segurado do RGPS.
A
delineada tentativa de discriminação dos menores sob guarda judicial
encontra-se em flagrante descompasso com princípios insculpidos na Constituição
Federal e no ECA (Lei 8.069/90).
A Constituição Federal estabeleceu no artigo 227, caput, o dever da família, da sociedade e do Estado de “... assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária ...”
Não são palavras vãs, com mero caráter de recomendação. A Carta Fundamental da República instituiu em tal dispositivo norma-princípio informadora de toda a ordem jurídica nacional.
A Constituição contemplou como núcleo de condensação, do qual irradiam-se efeitos sobre toda a elaboração normativa, o dever de proteção integral à criança, inclusive no que concerne à garantia de direitos previdenciários.
Impõe-se,
portanto, não só à família e à sociedade, mas também ao Poder Público o dever
de atuar de molde a estimular e realizar essa finalidade, qual seja a proteção
especial da criança.
Alguém poderia objetar que preceitos constitucionais dessa natureza seriam despidos de imperatividade, constituindo apenas linha diretora de atuação do Poder Público. Não! Inexiste norma constitucional despida de eficácia jurídica. Referindo-se às normas programáticas, pondera Luís Roberto Barroso que “a elas é reconhecido um valor jurídico idêntico ao dos restantes preceitos da Constituição, como cláusulas vinculativas, contribuindo para o sistema através dos princípios, dos fins e dos valores que incorporam”.[1]
Como
decorrência dessa inteira efetividade dos preceitos programáticos, o festejado
jurista elenca os seguintes efeitos:
“a)
revogam os atos normativos anteriores que disponham em sentido colidente com o
princípio que substanciam;
b) carreiam um juízo de inconstitucionalidade para os atos normativos editados posteriormente, se com elas incompatíveis.”[2]
E
mais: sob o prisma subjetivo, tais regras conferem o direito a:
“a) opor-se judicialmente ao cumprimento de regras ou à sujeição a atos que o atinjam, se forem contrários ao sentido do preceptivo constitucional;
b) obter, nas prestações jurisdicionais, interpretação e decisão orientadas no mesmo sentido e direção apontados por estas normas, sempre que estejam em pauta os interesses constitucionais por ela protegidos”.[3]
A produção normativa ordinária que se seguiu ao texto constitucional manteve-se fiel àquela norma-princípio. Prova disso obtém-se não apenas na redação original do art.16, §2° da Lei 8.213/91, mas também nas disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90). O artigo 4° do ECA repete basicamente a norma do caput do art. 227, CF.
No que tange ao instituto da guarda, houve específico tratamento no Estatuto, mercê de sua relevância social para a proteção da criança e a realização dos seus direitos fundamentais de assistência material, moral e educacional, sendo objetável inclusive aos pais (ECA, art.33, caput).
Tudo isso foi aparentemente olvidado pelo novel legislador. Rompendo com a diretiva constitucional em destaque e sua perfeita interação com o ECA, o Poder Público, com base na regra agora vigente, vem deixando ao desamparo, sob o ângulo previdenciário, as crianças e adolescentes sob guarda judicial, ignorando a relação de dependência econômica daí emergente.
Estar-se-ia
diante de uma hipótese de inconstitucionalidade? A resposta à pergunta remete à observação de
Jorge Miranda, acerca da inconstitucionalidade por omissão, segundo a qual “a
violação da Constituição, na verdade, provém umas vezes da completa inércia do
legislador e outras vezes da sua deficiente atividade...”[4]
E, ainda: “o significado último da inconstitucionalidade por omissão consiste
no afastamento, por omissão, por parte do legislador ordinário, dos critérios e
valores da norma constitucional não exeqüível”.[5]
Para melhor alinhavo da tese sustentada, vale acentuar que a inconstitucionalidade por omissão também pode conduzir a uma inconstitucionalidade por ação. Tal ocorre em se tratando de omissão parcial porque dela pode resultar, em última análise, violação ao princípio da isonomia, ante o tratamento desigual destinado a pessoas em situação semelhante e que deveriam receber tratamento uniforme da lei, mas não o receberam em virtude da emissão de comando normativo ordinário insuficiente.[6]
Por outro lado, quando o legislador revoga lei que conferia exeqüibilidade a uma norma constitucional, está a praticar inconstitucionalidade por ação, no que se refere ao ato revogatório. Neste sentido, sejam destacadas as palavras de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira: “Sublinhe-se que, uma vez satisfeita uma incumbência constitucional, o legislador não pode voltar atrás, revogando a lei e criando desse modo uma inconstitucionalidade por omissão. A lei revogatória configuraria uma inconstitucionalidade por ação”.[7]
A situação delineada no início - pretexto para este trabalho - parece querer confirmar o que foi dito acima. Tudo, de fato, estaria levando a crer que a exclusão evidenciada no texto legal configuraria uma inconstitucionalidade.
Mas aquilo que constitui a indisfarçável intenção do legislador não pode converter-se em realidade jurídica. Vislumbra-se aqui típica hipótese em que o Poder Público precipitou-se pelo caminho conducente a uma situação de inconstitucionalidade, a qual não se completou, todavia, por circunstâncias alheias à vontade legislativa manifestada. Explica-se.
A alteração da
redação do art. 16, §2°, da Lei 8.213/91, acarreta obviamente implícita
revogação da disposição anterior. Sendo assim, ao modificar a primitiva redação
do §2°, art.16, o legislador estaria enveredando pelo caminho da
inconstitucionalidade por omissão,
ainda que de modo parcial, porquanto privaria a plena exeqüibilidade do art.
227 da Constituição, emitindo regra incapaz de propiciar a máxima concretude do preceito constitucional retrocitado,
no que tange à proteção integral das crianças e adolescentes sob guarda
judicial.
Dessa omissão parcial decorreria também situação configuradora de inconstitucionalidade por ação, na medida em que se daria tratamento díspar a pessoas em posições ontologicamente idênticas. Não se há de negar, com efeito, que o menor sob guarda e dependência econômica do segurado do RGPS está na mesma situação jurídica do “enteado” e o “menor tutelado” referidos na nova redação do art. 16, §2°, da Lei n° 8.213/91.
Não haveria justificativa racional nem fundamento lógico a respaldar a exclusão da criança e adolescente sob guarda[8]. Pior que isso: a desigualação pretendida pelo legislador destoaria completamente dos valores proclamados pela Constituição, no tocante à proteção integral das crianças e adolescentes.
Assim, o tratamento discriminatório colimado implicaria quebra de isonomia e, pois, inconstitucionalidade por ação.
Seja como for, a ambivalência que permeou tal retrocesso legislativo estaria a conduzir a uma situação discrepante do Texto Maior, revelando, noutro passo, desvio de poder[9], já que não se teria a conformação da nova norma com a finalidade constitucionalmente estabelecida no art. 227.
Tudo isso, porém, pode ser contornado, eliminando-se a hipótese de inconstitucionalidade, se forem levados na devida conta o princípio da unidade da ordem jurídica e, de igual sorte, o ideal de melhor aproveitamento dos atos jurídicos, como vetores da máxima compatibilização das leis com a Constituição.
A interpretação conforme a Constituição traduz, em síntese, a busca da conformação, em sua maior dimensão possível, do plexo de leis e atos normativos com o Estatuto Constitucional. Entre várias interpretações viáveis, deve-se optar, dessarte, por aquela que melhor se harmonize com o texto constitucional.
Nessa esteira de raciocínio, para que a situação jurídica decorrente da inovação legislativa em comento não seja tida ainda como inconstitucional, é necessário que se reconheça que a omissão constante do art. 16, §2° (nova redação) da Lei 8.213/91, no tocante à guarda, não resultou na exclusão da eficácia jurídica do art. 33, §3° da Lei 8.069/90[10], tampouco retirando a força imanente do art. 227, caput, e §3°, II, da Constituição Federal.
Noutras palavras, o incômodo silêncio do art. 16 da Lei 8.213/91, no que concerne à guarda, não implicou revogação da regra do art. 33, §3°, da Lei 8.069/90. Não se tem aí, como poderia parecer à vista primeira, revogação tácita, visto que não há incompatibilidade lógica entre as duas disposições, havendo, agora, apenas complementação de uma em relação à outra.
A regra do art. 33, §3° do ECA é específica e, naquilo que diz respeito à proteção integral da criança e do adolescente, é coerente com o sistema jurídico arquitetado a partir da norma constitucional.
Demais, em se tratando de regra posta em estrita sintonia com a norma-princípio do art.227, caput, e §3°, II, CF, não se pode presumir sua revogação implícita pelo só fato de a norma definidora da nova redação do art. 16, §2°, da Lei 8.213/91, haver silenciado quanto à situação das crianças e adolescentes amparados pelo instituto da guarda.
Bem
oportuno é o escólio de Carlos Maximiliano, para quem “a incompatibilidade
implícita entre duas expressões de direito não se presume; na dúvida, se
considerará uma norma conciliável com a outra. O jurisconsulto Paulo ensinara
que – as leis posteriores se ligam às anteriores, se lhes não são contrárias; e
esta última circunstância precisa ser provada com argumentos sólidos”.[11] Logo
em seguida, assinala o autor que, para que haja a ab-rogação, “a
incompatibilidade deve ser absoluta e formal, de modo que seja impossível
executar a norma recente sem postergar, destruir praticamente a antiga”. (op. e
pág. cits.)
Ora,
não há inconciliabilidade entre as duas disposições.
A nova redação do art. 16, §2°, da Lei 8.213/91 não vedou a outorga da condição
de beneficiário do RGPS à criança sob guarda. E, não proibindo – apenas
omitindo -, não afastou a aplicação do disposto no art.33, §3° do ECA, plenamente vigente, eficaz e sintonizado com o texto
constitucional.
Trata-se
de interpretação sistemática de dois preceitos legais, com os olhos voltados
para a conformação de ambos com a norma-princípio do art. 227 da Constituição
da República.
Aproxima-se,
também, da interpretação integrativa da
lei com a Constituição que, nas palavras de Jorge Miranda, consiste “em
interpretar certa lei (com preceitos insuficientes e, nessa medida,
eventualmente inconstitucionais) completando-a com preceitos da Constituição
sobre esse objeto que lhe são aplicáveis e porque diretamente aplicáveis”. (op.
cit., pág.265)
Através
dessa via, busca-se a preservação da unidade da ordem jurídica, com vistas à
interpretação das normas ordinárias em máxima consonância com as diretivas
impostas pela Lei Fundamental.
Por derradeiro, pode-se concluir, à luz das premissas postas, que:
a) a modificação introduzida na Lei n° 8.213/91 pretendeu excluir do regime previdenciário crianças e adolescentes sob guarda do segurado do Regime Geral da Previdência Social;
b) tal pretensão contraria a norma-princípio contida no art. 227 da Constituição, o qual preconiza a proteção integral das crianças e adolescentes;
c) é possível conciliar a disposição do art. 16, §2° (nova redação), da Lei n° 8.213/91, com o art.33, §3°, da Lei n° 8.069/90, vigente e eficaz, por ser esta última regra específica no campo da proteção integral, além de encontrar-se plenamente harmonizada com o art. 227 da Constituição;
d) sem a completa validade da regra do art. 33, §3°, da Lei n° 8.069/90 - da qual se pode extrair a proteção previdenciária ao menor sob guarda do segurado -, aquela modificação legislativa estaria contaminada de inconstitucionalidade, seja porque implicaria privação da plena exeqüibilidade do art. 227 da Constituição Federal, seja porque acarretaria tratamento díspar entre menores em idêntica situação jurídica, cristalizando violação ao princípio da igualdade.
1 - BARROSO, Luís Roberto: O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro:
Renovar, 3ª edição, pág.116
2 - Idem, ibidem,
pág.117
3 - Idem, ibidem,
pág.118
4 -
MIRANDA, Jorge: Manual de Direito
Constitucional, Tomo II. 3ª edição. Coimbra: Coimbra Editora, págs.520/521
5 - Idem, ibidem, pág.521
6 - Calha, mais uma vez, o ensinamento de Jorge Miranda: “Por outro
lado, algumas omissões parciais implicam, desde logo, inconstitucionalidade por
ação, por violação do princípio da igualdade, sempre que acarretem um
tratamento mais favorável ou desfavorável prestado a certas pessoas ou a certas
categorias de pessoas, e não a todas as que, estando em situação idêntica ou
semelhante, deveriam também ser contempladas do mesmo modo pela lei” (obra
cit., pág.522)
7 - CANOTILHO, J.J. Gomes e MOREIRA, Vital: Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, pág.263
8 - Lembre-se CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELO ao frisar que “é agredida
a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos
pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão
no benefício deferido ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto” (O conteúdo jurídico do princípio da
igualdade; Malheiros Editores, 3ª edição, pág.38)
9 - Tal se verifica, no âmbito da produção legislativa, “quando a
discricionariedade legislativa tenha sido exercida, não para realizar os
concretos fins constitucionais, mas sim para prosseguir outros, diferentes ou
mesmo de sinal contrário àqueles” (CANOTILHO
e VITAL MOREIRA; obra cit, pág.264)
10 - Lei n° 8.069/90, art.33, §3°: “A guarda confere à criança ou
adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito,
inclusive previdenciários”
11 -
MAXIMILIANO, Carlos: Hermenêutica e
Aplicação do Direito. 10ª edição. Rio de Janeiro: Forense, pág.358