CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRABALHO INFANTO-JUVENIL
Saulo de Castro Bezerra
Promotor de Justiça de Goiânia.
Vivemos num país de tristes
contrastes. Mesmo expressamente prevista na Constituição Federal e no Estatuto
da Criança e do Adolescente, por força da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de
dezembro de 1998, a proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a
menores de dezoito anos e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos de
idade, em 1995 a Organização Internacional do Trabalho – OIT constatou que
temos cerca de 2,8 milhões de jovens entre 10 e 14 anos de idade trabalhando e
8,1 milhões de adolescentes, na faixa etária de 14 a 19 anos, inseridos
precocemente no mercado de trabalho.
Mas, infelizmente, o trabalho infantil não é "privilégio" apenas nosso, tanto que no mês de fevereiro de 1997, em Haia, na Holanda, 85 países, inclusive o Brasil, se reuniram para criar a Marcha Global Contra o Trabalho Infantil e Pela Educação, movimento que visa promover os direitos de crianças e adolescentes de todo o mundo, notadamente o de receberem educação gratuita e de qualidade, de viverem livres da exploração econômica e da realização de qualquer trabalho que possa comprometer seu desenvolvimento físico, espiritual, mental, moral ou social.
Aqui, no
país que pretende ser a sétima economia mundial, a garantia dos direitos
fundamentais dos menores de 18 anos de idade não tem sido uma tarefa fácil.
Talvez mais por ignorância que por má-fé, não raro ouvimos discursos
emocionados em defesa do trabalho infantil, reproduzidos pelo senso comum, sem
qualquer reflexão mais profunda sobre os malefícios de sua existência. Usam,
como principal argumento, dentre tantos outros, a trágica realidade econômica e
social de milhares de famílias brasileiras, condenadas que estão a viver na
mais absoluta miséria.
Afirmam ser "melhor o menino trabalhar e ajudar no sustento da casa do que estar nas ruas roubando ou pedindo esmolas" como se esta fosse a solução mais adequada para os problemas enfrentados pelos nossos jovens. Mas, claro, tal raciocínio vale somente para os filhos das classes mais pobres e despossuídas, justamente aqueles que vivem distantes de qualquer benefício social.
É notória a enorme distância que estamos da solução desse grave problema, mas já passa da hora de termos, sociedade e poder público, vontade política e, principalmente, coragem para quebrar o falso mito segundo o qual o trabalho é dignificante para o jovem. Ao contrário. O trabalhador precoce se vê forçado a afastar-se daquelas atividades adequadas à pessoa de sua idade junto à família, à escola e à sociedade, o que acaba por provocar irremediável prejuízo a toda sua formação. As crianças que se encontram trabalhando, aparentemente resolvendo situação imediata provocada pela miséria, serão no futuro aqueles que não conseguirão inserção adequada no mercado de trabalho e a precocidade não lhes renderá nada de positivo no seu projeto de vida.
Isto se explica porque o jovem trabalhador compromete-se politicamente, à medida em que é retirado do sistema educacional, que em tese o prepararia para a cidadania plena em uma sociedade cada vez mais exigente e complexa. A evasão escolar, que é a conseqüência imediata do trabalho infanto-juvenil, representa a mais absurda e evidente violação dos direitos à educação e à informação, limitando ainda mais as perspectivas pessoais e sociais do pequeno trabalhador sendo, certamente, um de seus mais nefastos efeitos.
Os prejuízos psicossociais são claros e de fácil constatação à medida em que se dá um rompimento entre o nível de maturidade da criança e a responsabilidade por ela assumida, afetando o desenvolvimento de sua personalidade e, irremediavelmente, de sua capacidade crítica e de transformação social. Para não falarmos nos inúmeros riscos à saúde, as debilidades físicas e mentais que comprometem todo seu futuro, acarretadas pelas atividades desenvolvidas, em sua maioria, de forma inadequada.
Por ser
extremamente mal remunerado, o trabalho infantil vem seduzindo cada vez mais
empresários inescrupulosos, preocupados somente com seu enriquecimento e lucro
fácil. Para tanto, retiram postos de trabalho adulto para
empregar crianças com baixos salários, sem garantia de seus direitos
previdenciários e trabalhistas, fomentando o desemprego e perpetuando
este sistema de exploração e pobreza que, ao reduzir a renda familiar, cria um
ciclo vicioso de difícil rompimento.
O trabalho
infanto-juvenil deve ser sempre combatido com a efetivação dos direitos da
cidadania e com o reconhecimento de que vivemos num país miserável onde, não
raras vezes, a subsistência da família se dá com o labor de suas crianças.
Desta forma, apenas a conscientização dos prejuízos provocados pelo trabalho
precoce, transformado no álibi para a ausência de políticas de atenção à
criança e ao adolescente, não basta e, exatamente por isso, devemos reafirmar o
raciocínio de ser a garantia da educação de qualidade e permanência na escola o
melhor remédio para todas as crianças e adolescentes que se encontram
indevidamente nas ruas de nossas cidades, sendo exploradas em seu trabalho e
até mesmo sexualmente, num flagrante desrespeito ao direito de serem tratados
com respeito e dignidade.
O discurso
favorável ao trabalho infantil tem seduzido muitos, por ser a opção mais cômoda
à medida em que transfere responsabilidades, o que
acaba por justificar sua existência, além de não exigir qualquer mobilização
social capaz de levar o Estado a assumir seu papel, seja para ampliar a rede de
escolas integrais, com educação de qualidade capaz de promover a iniciação ao
trabalho e profissionalização verdadeira, medidas essas que, sem prejuízo de
outras, irão proteger a criança e o adolescente de uma ocupação futura sem
dignidade. Paralelamente, a implementação de programas de subsistência
familiar, de renda mínima para garantir a manutenção da criança no seio da sua
família seriam poderosos remédios para o rompimento do atual quadro de
exploração e miséria.
Temos
avançado nestes últimos anos, mas o Brasil não pode mais se omitir na
proposição e oferta de serviços básicos para sua juventude. Não podemos
continuar achando natural uma criança de apenas 11 anos de idade, trabalhadora
no corte de cana-de-açúcar, negar seu próprio direito à cidadania, quando diz
ao promotor de Justiça: "A escola não é para nós. É para quem pode comprar
livros, estudar em casa, ler jornais. A gente nunca sabe nada. A gente precisa
trabalhar para comer.."