PEDAGOGIA
E JUSTIÇA
Antônio Carlos Gomes da Costa
Pedagogos e juristas têm atrás de si uma longa tradição de
desconfiança mútua e de críticas recíprocas em que, provavelmente, ambas as
partes tenham razão. Emílio Garcia Mendez
1. Bases
conceituais
A situação do adolescente autor de ato infracional
no Brasil, como de resto em quase todos os países da América Latina, vai de mal
a pior. Os países da Região - segundo Emílio Garcia Mendez
- passam por momentos de ditadura e de democracia, de crise aguda e de prosperidade
relativa, porém o atendimento ao adolescente infrator, como o eletrocardiograma
de um morto, permaneceu sempre o mesmo ao longo de quase todo o século XX.
A década de noventa, com a aprovação unânime da Convenção
Internacional dos Direitos da Criança pela Assembléia Geral das Nações Unidas
em 20 de Novembro de 1989, inicia-se como um tempo de possibilidade real de
reversão desse quadro. De fato, o novo instrumento internacional de Direitos
Humanos, coloca na irregularidade a velha doutrina da situação irregular, pano
de fundo de todas as políticas jurídicas e sócio-educacionais vigentes na
América Latina desde a promulgação pela Argentina, em 1919, da primeira
legislação de menores da Região.
O Código de Menores do Uruguai, que data de 1927, consagrou o
modelo e passou, desde então, a servir de base para todas as legislações menoristas desta parte do mundo.
O Código de Menores brasileiro, fruto do esforço e dedicação
do juiz Francisco de Mello Matos à causa menorista,
não foge a essa tendência. Sua concepção sustentadora é a doutrina da situação
irregular, que também será a base do Código de Menores
de 1979 (Alyrio Cavalceri).
Relembremos as características básicas da doutrina da situação irregular:
1. Não
se dirige ao conjunto da população infanto-juvenil, mas apenas aos menores em
situação irregular;
2. Considera
menores em situação irregular os carentes, abandonados, inadaptados
e infratores;
3. Não
se preocupa com os direitos humanos da população infanto-juvenil em sua
integridade. Limita-se a assegurar a proteção,
para os carentes e abandonados e a vigilância,
para os inadaptados e infratores;
4. Funcionando
com base no binômio Compaixão/Repressão, a justiça de menores chamava à
sua esfera de decisão, tanto os casos puramente sociais, como aqueles, que
envolviam conflito de natureza jurídica;
5. O
conjunto de medidas aplicáveis pelo juiz de menores (advertência, liberdade
assistida, semi-liberdade e internação) era o mesmo,
tanto para os casos sociais, como para aqueles que envolviam conflitos de
natureza jurídica. A internação, por exemplo, podia ser aplicada indistintamente a
menores carentes, abandonados, inadaptados e
infratores;
6. A
inimputabilidade penal do menor de 18 anos significava, na prática, a inexistência de garantias processuais,
quando se lhe atribuía a autoria de infração penal.
Essa doutrina, como já tivemos oportunidade de ver no
primeiro capítulo, começou a ser erradicada da Região latino-americana pelo
Brasil, que com a Promulgação da lei 8069/90 (Estatuto da Criança e do
Adolescente), foi o primeiro país da área a proceder a
adequação substantiva de sua legislação à letra e ao espírito da Convenção
Internacional dos Direitos da Criança, cuja concepção sustentadora é a doutrina
da proteção integral, que se apoia sobre bases
conceituais antagônicas àquelas da doutrina da situação irregular:
1. Pela
doutrina de proteção integral, a legislação deve dirigir-se ao conjunto da
população infanto-juvenil, abrangendo todas as crianças e adolescentes, sem
exceção alguma;
2. Não
se limita à proteção e vigilância, buscando promover e defender todos os
direitos de todas as crianças e adolescentes, abrangendo a sobrevivência (vida,
saúde, alimentação), o desenvolvimento pessoal e social (educação, cultura,
lazer e profissionalização) e a integridade física psicológica e moral (respeito, dignidade,
liberdade, convivência familiar e comunitária). Além de colocá-las a salvo de
todas as foras de situação de risco pessoal e social (negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão);
3. Superar
o binômio compaixão/repressão,
passando a considerar a criança e o adolescente, como sujeitos de direitos
exigíveis com base na lei ;
4. Os
casos sociais e psico-pedagógicos como a pobreza e a inadaptação - passam a ser resolvidos
na esfera administrativa, mediante o encaminhamento e a vigilância do Conselho
Tutelar, um órgão encarregado de receber, estudar e encaminhar casos,
requerendo serviços e, quando necessário, peticionando o Ministério Público,
visando pôr as conquistas do estado de direito para funcionar em favor da
criança ou do adolescente. O Conselho Tutelar aplica as medidas de proteção às
crianças violadas em seus direitos;
5. Em
relação ao adolescente autor de ato infracional, o
Estatuto prevê, em primeiro lugar, a extensão às pessoas entre 12 e 18 anos,
das garantias processuais básicas do direito penal de adultos, estabelecendo
ainda as medidas sócio-educativas aplicáveis ao adolescente considerado
responsável pela autoria de um determinado ato infracional.
Ocorridas essas transformações, verdadeira mudança de paradigma no plano
jurídico-legal, o sistema de atendimento, ou seja, o aparato. institucional
destinado a operar as novas regras, a por em prática os novos conceitos, deverá
passar por um amplo, corajoso e profundo
processo de reordenamento institucional.
Um processo de reordenamento que
proceda a uma nova divisão de trabalho entre a União Federal, os estados e os
municípios, e que, igualmente; delimite os campos de atuação do Estado e da
sociedade. Um processo de reordenamento, que
introduza as mais que necessárias mudanças de conteúdo, método e gestão na
estrutura e no funcionamento do sistema de administração da justiça juvenil,
abrangendo a atuação da segurança pública, do ministério público, da defensoria
pública e da magistratura da infância e da juventude, culminando com a total
reestruturação da área de ação social especializada encarregada da aplicação
das medidas sócio-educativas.
Não é possível abordar
de per-si a questão da medida
privativa de liberdade. Ela é apenas a manifestação mais contundente e
extrema da fragilidade estrutural e do descompasso funcional do nosso sistema
de administração da justiça juvenil no seu todo. A privação de liberdade é o ponto de repercussão das falhas do conjunto
do sistema.
Portanto, se nos limitamos a detectar e propor alternativas
para as unidades de privação de liberdade consideradas de per-si, estaremos
atuando apenas em uma das faces do problema, ou seja, nos fatores
endógenos ao funcionamento dos
internatos. No entanto, todos sabemos que o que ocorre dentro dos internatos
não é a resultante apenas de fatores internos. Há todo um contexto que
influencia os dinamismos psicossociais no interior
das unidades de internação, que se distribuem em diferentes pontos de seu
entorno institucional, interinstitucional e
sócio-comunitário. Esses fatores
exógenos ao funcionamento do centro de privação de liberdade, se não forem
compreendidos e abordados de maneira adequada, poderão influenciar
negativamente ou mesmo inviabilizar os esforços realizados no plano interno.
2. Pedagogos e
Juristas
Na frase que serve de epígrafe a este artigo, Emílio Garcia Mendez constata a existência de uma longa história de
ressentimentos e de conflitos nas relações entre pedagogos e juristas, para, em
seguida, observar com a acuidade de sempre que, o mais provável, é que nesta
contenda ambas as partes tenham razão.
É neste ponto que, a meu ver, pulsa o coração desta reflexão.
O primeiro desafio é localizar um território comum em que pedagogos e juristas
possam se encontrar e, a partir da perspectiva de cada um, lançar as bases de
um relacionamento construtivo e maduro. Este território - não
tenho nenhuma dúvida - é o da responsabilização
do adolescente.
Quando encaramos o adolescente como pessoa em condição
peculiar de desenvolvimento, percebemos que, tanto em termos físicos, como
cognitivos e emocionais ele já não é mais uma criança, contudo, também ainda
não é uma pessoa adulta. Alguns autores costumam se referir a esta fase da vida
como "um tempo de moratória" entre o fim da dependência
característica da infância e o início dos deveres, responsabilidades
e obrigações próprios da idade adulta.
Quando, por outro lado, encaramos o adolescente como sujeito
de direitos exigíveis com base na lei, temos que admitir que direitos trazem
também deveres, ou seja, que existe uma relação de reciprocidade entre uns e
outros. Dentro dessa perspectiva, a desresponsabilização
do adolescente corresponde, verdadeiramente, à sua objetivação, à negação, de
fato, da sua condição de sujeito de direitos.
O que é ser sujeito em termos pedagógicos? Para responder a
esta pergunta, temos que pensar nas duas grandes maneiras de encarar e de se
relacionar com o educando, que vigiram entre os
educadores ao longo do século XX, ou seja, os dois grandes paradigmas, que
presidiram a estruturação
da relação educador-educando.
O primeiro é uma concepção do educando como um receptáculo,
no qual o educador deve introduzir conhecimentos, habilidades, hábitos,
valores e atitudes. Trata-se do que
Paulo Freire chamou de educação bancária. Uma relação em que, de fora para
dentro, o educador vai introduzindo, interiorizando, inculcando, introjetando, internalizando, injetando e ministrando
conteúdos, que vão sendo incorporados pelo educando.
O segundo é uma concepção do educando como sujeito do
processo educativo, ou seja, o educando como fonte de iniciativa, de
compromisso e de liberdade. Fonte de iniciativa, no sentido de ele ser o
protagonista de ações, gestos e atitudes no contexto da vida familiar, escolar
ou comunitária. Fonte de compromisso, em decorrência de ele já ser responsável
pelas conseqüências de seus atos. Fonte de liberdade, desde o momento em que
seus atos vão sendo, em medida cada vez maior, conseqüência de suas próprias
escolhas. Tudo isso, naturalmente, dentro dos limites decorrentes de sua
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
A história da educação, ao longo do século XX, é a história
da passagem do paradigma do educando, como objeto passivo da intervenção do
educador à condição de sujeito, ou seja, de fonte de iniciativa, de compromisso
e de liberdade na condução do seu próprio processo de desenvolvimento pessoal e
social.
Por entender que as dimensões jurídica e pedagógica da
responsabilização não são antagônicas nem divergentes, antes, são convergentes
e complementares é que as considero momentos distintos da evolução de um mesmo
processo, o processo da socialização do ser humano e, ao mesmo tempo, de
humanização da sociedade.
A criança, desde tenra idade, quando quebra deliberadamente
alguma norma ou regra da vida familiar costuma ser responsabilizada pelos pais,
que respondem ao seu gesto com reações que vão, desde uma cara feia ou um pito,
até uma palmada. Da mesma forma na escola, geralmente os regimentos escolares responsabilizam os alunos, que quebram
as normas e reage aos seus atos com punições, que vão desde a simples
advertência até a expulsão regimental.
Assim, podermos dizer que existe responsabilização na vida
familiar e na vida escolar. Quando, porém, o adolescente quebra as normas da
vida social mais ampla, cometendo um ato, que, se fosse cometido por adulto
seria crime ou contravenção, a resposta social a esse ato dar-se-á pelo sistema
de administração da justiça juvenil. Aqui, ele não quebrou normas da família ou
da escola, mas infringiu as regras do convívio humano numa escala mais elevada.
Fazer com que ele responda pelo seu ato é uma atitude de
elevado teor pedagógico-social, desde que
lhe seja assegurado o devido processo com todas as garantias previstas na
lei, desde que ele tenha o direito ao
pleno e formal conhecimento do ato que lhe esteja sendo atribuído, o direito à
defesa com todos os recursos a ela inerentes e à presunção da inocência, ou
seja, às garantias processuais.
Terminado o processo, na hipótese de o adolescente ser
considerado responsável pelo cometimento do ato infracional,
eis questão, não lhe serão aplicadas as penas do
Código Penal de adultos, mas uma medida sócio-educativa.
Qual a natureza dessa medida sócio-educativa? Ela deve
responder a duas ordens de exigência, ou seja, ela deve ser urna reação
punitiva da sociedade ao delito cometido pelo adolescente e, ao mesmo tempo,
deve contribuir para o seu desenvolvimento como pessoa e como cidadão.
Assim, como nos âmbitos da família e da escola, a punição é
usada corno recurso educativo, por que não haveria de sê-lo também no âmbito da
vida social mais ampla? Com isto queremos dizer que, de fato, há algo de pena nas
medidas sócio-educativas, que são, por isso mesmo, aplicadas de maneira vertical e impositiva. Isto não quer
dizer, no entanto, que seu conteúdo pedagógico esteja sendo negado. Ao
contrário, à medida em que o adolescente percebe que
não foi vítima de um ato discricionário, mas que teve, através da igualdade na
relação processual, a condição de defender-se, ele percebe que a resposta da
sociedade não é arbitrária. Neste momento, ele está diante de uma dura, mas
eficaz, oportunidade de compreender a justiça como um valor concreto em sua
existência.
Segundo o Dr. Antônio Fernando do Amaral e Silva, a
imputabilidade é a capacidade de a pessoa receber uma pena, que não é,
necessariamente, de natureza criminal. A pena pode ser de natureza civil,
administrativa, fiscal e outras. Isto nos leva a pensar que, em sua dimensão
punitiva, as medidas aplicáveis ao adolescente autor de ato infracional
são, na verdade, penas de natureza sócio-educativa, isto é, cujo objetivo
principal é o desenvolvimento do adolescente corno pessoa e como cidadão.
Cremos que, se pedagogos e juristas, compreenderem
verdadeiramente a responsabilização, como território comum entre a pedagogia e a justiça todos sairão ganhando: a justiça, a pedagogia e o
adolescente.
3. A dimensão
pedagógica das garantias
processuais
O primeiro passo na direção de uma justiça juvenil capaz de
respeitar o adolescente, como sujeito de direitos exigíveis com base na lei, e,
ao mesmo .tempo, como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento, é
identificar e explicitar com clareza a dimensão pedagógica das garantias
processuais.
O processo permite ao adolescente responder, no sentido mais
pleno da palavra, pelas conseqüências dos seus atos. Embora as circunstâncias
sejam, em si mesmas, notoriamente difíceis, o fato é que a relação ato/conseqüência se apresenta diante dele com a nitidez e a
concretude, que os discursos pedagógicos,
normalmente, não conseguem alcançar.
O adolescente, ao ter que responder perante a Justiça da
Infância e da Juventude pelos seus atos, tendo de ouvir as acusações e de
defender-se, está na verdade - mais do que pelo discurso das palavras -
educando-se pelo curso dos acontecimentos.
As garantias processuais têm uma irrecusável natureza
pedagógica. Elas se explicitam sob a forma de um conjunto de práticas e
vivências a que o jovem é submetido e que, o seu conjunto, lhe possibilitam
inteirar-se da extensão e da gravidade dos seus atos.
Essas práticas e vivências devem expressar - antes e acima de
qualquer outra coisa - o rigoroso cumprimento dos dispositivos legais, em
termos de prazos, ritos e etapas. A lei deve nitidamente pairar acima de todos
os envolvidos no processo, inclusive do magistrado. Estando isso claro, o
adolescente terá a sensação de que não está submisso a urna
engrenagem opaca e arbitrária, mas à severidade da justa reação da
sociedade a um fato delituoso.
Uma experiência dessa natureza é marcante na vida de qualquer
um e se bem conduzida - pode ser verdadeiramente educativa. O ato infracional está num patamar distinto das faltas cometidas,
por exemplo, na família e na escola. A reação da sociedade, nesse caso, deve ir
além do puramente educativo. Ela deve expressar, de maneira nítida, a dimensão
de severidade e justiça requerida pela quebra das normas de convivência social.
4. A dimensão
jurídica do trabalho
educativo
Assim como os juristas devem estar abertos ao entendimento
pleno da dimensão educativa das garantias processuais, também os educadores envolvidos
na aplicação das medidas sócio-educativas devem estar abertos à dimensão
jurídica de seu trabalho.
Em que consiste a dimensão jurídica da ação sócio-educativa?
A primeira realidade à qual o educador, ou seja, o técnico envolvido na
aplicação das medidas sócio-educativas deve estar atento é que - como ocorre
com os policiais e os agentes penitenciários - ele é um funcionário encarregado
de fazer cumprir a lei.
A medida sócio-educativa é uma medida imposta, uma medida
coercitiva, que decorre de uma decisão judicial. Portanto, é fundamental que o
educador, além do conhecimento específico relativo à sua área de atuação, tenha
também uma consistente e sólida formação legalista básica.
Quando falamos em formação legalista básica, estamos falando
de algo que vai além do conhecimento dos dispositivos legais e da sua
aplicação. Na verdade, estamos falando de uma formação, ou seja, de uma atitude
legalista. O técnico deve conhecer o conceito de controle social do delito e
sua evolução. Deve deter também o domínio claro da noção de sistema de
administração da justiça juvenil, compreendendo ainda os distintos modos de
reação não formal da sociedade ao delito.
Essa formação jurídico-criminológica
básica permitirá ao técnico ter uma visão mais plena da natureza do processo de
cumprimento de uma medida sócio-educativa, ao compreendê-la como parte
fundamental de uma política que - embora
tenha como núcleo o desenvolvimento pessoal e social do adolescente - está
inserida no contexto maior do controle social do delito juvenil.
Como isso se reflete no dia a dia do trabalho social e
educativo desenvolvido junto aos adolescentes responsabilizados pela autoria de
ato infracional? O primeiro ponto que devemos ter bem
claro é que não se pode e nem se deve promover a (des)responsabilização técnica daquele que foi judicialmente
considerado responsável por determinado delito. A função do educador é
compreender e, não, absolver. Faz parte do desenvolvimento pessoal e social do
jovem em conflito com a lei o processo de confrontação com a sua própria
realidade pessoal e social. E nela, é claro, estão incluídos os seus delitos.
Desse confronto com a própria realidade, da avaliação dos
seus atos e das suas conseqüências sobre o meio social e, sobretudo, sobre suas
vítimas é que nasce a consciência responsabilizante
sem a qual a especificidade da ação sócio-educativa não se consome.
O trabalho desenvolvido junto ao adolescente autor de ato infracional deve ser parte de uma pedagogia voltada para a
formação da pessoa e do cidadão, portanto, para a formação e desenvolvimento do
sentido de responsabilidade do educando para consigo mesmo e com os outros.
O caminho para isso não é, de maneira alguma, revolver os
fatos que o trouxeram ao sistema de justiça juvenil e, muito menos, centrar
neles qualquer tipo de abordagem. O caminho mais correto,
a nosso ver, consiste em criar condições - através da presença de educadores em
seu entorno, dispostos a manter com ele uma relação de abertura, reciprocidade
e compromisso – para que ele, sentindo-se compreendido e aceito, tome
consciência da natureza e da extensão de seus próprios atos.
Criar as condições para que o adolescente se sinta
responsável, não só pelo seu passado, mas pelo seu presente e pelo seu futuro
deve ser o alvo central da ação sócio-educativa, que desenvolvemos junto a ele.
A dimensão pedagógica da responsabilização deve ser uma extensão da sua
dimensão jurídica.
Se na dimensão jurídica, a responsabilização se dá pelo
devido processo com todas as garantias
básicas asseguradas, no plano pedagógico a responsabilização se dá por um
processo de conscientização acerca de si mesmo, de suas iniciativas, de sua
liberdade e do seu compromisso consigo mesmo e com os outros na família, na
escola, no trabalho, na comunidade e na sociedade em sentido mais amplo.
A consideração da medida sócio-educativa como parte da reação
da sociedade a um delito constitui,
assim, o núcleo da dimensão jurídica - não em sentido formal, mas substantivo -
do trabalho do educador.
5. Direitos e deveres, a
questão de sempre
Aprovado por acordo de lideranças entre todos os partidos no
Congresso Nacional, o ECA veio para acertar o passo do Brasil com a
comunidade internacional, em termos de direitos humanos das novas gerações.
Trata-se da incorporação substantiva à nossa legislação ordinária da letra e do
espírito da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada por
unanimidade pela Assembléia Geral da ONU em 20.11.89 e inserida, quando ainda
em projeto, no extraordinário e seminal artigo 227 da Constituição Brasileira.
Ao contrário do antigo Código de Menores que se dirigia
apenas aos menores em situação irregular (carentes,
abandonados, inadaptados e infratores), o Estatuto
destina-se a todas as crianças e adolescentes, sem exceção alguma. Enquanto a
velha lei se preocupava apenas com a proteção para os carentes e abandonados e,
com a vigilância, para os inadaptados e infratores, o
Estatuto procura assegurar condições de exigibilidade de todos os direitos para
todas as crianças. Por isso a concepção que o fundamenta é conhecida como
Doutrina da Proteção Integral das Nações Unidas.
Adeptos incorrigíveis dos instrumentos de controle social da
infância gestados no regime de exceção - o Código de
Menores e a Política Nacional de Bem-Estar do Menor - desde a entrada em
vigência do novo direito, tentam sistematicamente denegrí-lo,
descredenciá-lo e desmoralizá-lo perante
à população, distorcendo o seu conteúdo e falseando a sua interpretação.
A primeira acusação é de que o Estatuto só fala em direitos.
Não impõe nenhum dever às crianças e adolescentes. Tudo indica que esses irados
detratores não leram nem mesmo o Capítulo 1 da nova lei que, no seu artigo
sexto, traz a regra básica de interpretação de todos os demais artigos:
Na
interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se
dirige, as exigências de bem-comum, os
direitos e deveres (grifo nosso) individuais e coletivos e a condição
peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
A segunda acusação é de que o Estatuto é paternalista
e benevolente com os adolescentes autores de infração. Nada mais falso e
enganoso O Estatuto responsabiliza
penalmente o adolescente autor de ato infracional.
Pelo novo direito, o adolescente (pessoa entre 12 e 18 anos), a quem se impute
a autoria de ato infracional deve ser processado e,
se considerado responsável, ser-lhe-á aplicada a
medida sócio-educativa que melhor corresponda à natureza e à gravidade do ato
praticado. Como ocorre com os delinqüentes adultos, o adolescente terá direito
ao devido processo com todas as garantias próprias do estado democrático de
direito.
Em termos práticos, vê-se que o Estatuto apenas estendeu aos
adolescentes garantias, como o direito à defesa e à presunção da inocência,
próprias. do direito penal de adultos. Dizer que isso é proteção descabida é
apenas má-fé ou auto-tapeação.
A natureza das medidas aplicáveis aos adolescentes
responsabilizados penalmente pela autoria de ato infracional
desmente fragorosamente qualquer acusação de benevolência e paternalismo. Ao
contrário, trata-se de uma pedagogia baseada - antes de mais
nada - na severidade e na justiça.
A advertência, primeira e mais branda medida, é reduzida a
terno e assinada, sendo, portanto, geradora de antecedentes. A obrigação de
reparar o dano, segunda medida sócio-educativa, é a própria expressão da
exigência de rigor no cumprimento do dever. A prestação de serviços à
comunidade aprofunda de maneira ainda mais nítida o sentido responsabilizador
característico das medidas sócio-educativas. A liberdade assistida é, na
prática, mais rigorosa e exigente que a liberdade condicional do direito
penal de adultos. A semi-liberdade
corresponde claramente à prisão-albergue e a internação é definida - sem meios
termos pelo Estatuto - como "medida privativa
de liberdade".
O que falta então, para que isso se cumpra? Até agora,
tem-nos faltado vontade política e compromisso ético
para estruturarmos em cada unidade federada um SIRPA (Sistema de
Responsabilização Penal do Adolescente), que realmente funcione, como adequada
resposta formal da sociedade aos delitos praticados por pessoas entre 12 e 18
anos.
Um SIRPA bem estruturado significa um policiamento ostensivo
que, tanto tem de severo e vigilante,
como de íntegro e respeitador dos direitos humanos. Uma polícia judiciária
eficiente na investigação dos delitos e respeitadora dos prazos legais e da
integridade física, psicológica e moral
dos adolescentes sob custódia do Estado. Um Ministério Público, uma
Defensoria Pública e uma Magistratura da Infância e da Juventude de espírito.
rigoroso e de orientação estritamente garantista.
Finalmente, encerrando esse elenco de condições, um conjunto de retaguardas
adequadas, em termos de ação social especializada, para o fiel cumprimento das
medidas sócio-educativas.
O anúncio pelo Governo Brasileiro de um PLANO NACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, nos autoriza a ter esperanças de que uma nova postura diante
dessa questão esteja finalmente se delineando. Não é possível que continuemos a ver nossa população, inescrupulosamente manipulada
pelas viúvas do autoritarismo - investir contra os Direitos Humanos - em geral
- e contra o Estatuto, em particular, responsabilizando-os pela violência e
pela impunidade resultantes do descumprimento sistemático pelo Estado do
disposto nas normas internacionais, na Constituição e nas leis. Enquanto o novo
direito não sair efetivamente do papel, será muito difícil calar o coro dos
equivocados e deter a marcha da insensatez que, sem dúvida alguma, corrói as
bases estreitas de um estado democrático de direito que continua a não existir,
em termos práticos, para o segmento mais frágil e mais vulnerável da nossa
população.