O ABANDONO SOCIAL DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA NA ÓTICA DOS COORDENADORES DE INSTITUIÇÕES DE ASSISTÊNCIA A CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA NA CIDADE DE GOIÂNIA
Marcelo Medeiros[2]
Maria das Graças Carvalho Ferriani[3]
Romeu Gomes[4]
Crianças e adolescentes em abandono e
vivendo em situação de risco social representam uma realidade de nossa
sociedade, que deve ser analisada sob os olhos de nossa conjuntura social,
levando em consideração a historicidade desta questão, movida por
acontecimentos sociais, interesses políticos e econômicos. Representam a
concretização e legitimação do abandono social da infância; poderíamos dizer do
descompromisso do Estado para com a família e para o papel social que esta
possui.
“Meninos e meninas de rua” devem ser
percebidos como quaisquer outras crianças e adolescentes; porém, a necessidade
- de cunho material, de afeto ou proteção - impulsiona-as para a rua. São
provenientes de famílias trabalhadoras expropriadas com uma história de vida
marcada pela luta constante pela sobrevivência (MINAYO, 1993).
A denominação “crianças e adolescentes
em situação de rua” é, dentre os inúmeros termos encontrados, a que melhor
expressa a real condição destes indivíduos, que não pertencem à rua, mas
encontram nessa uma circunstância de vida. GRACIANI (1997) compreende este
grupo como oprimidos e relegados pelo sistema social e não como marginais
sociais, sendo que a classificação “de” e “na” rua expressa uma categoria
social que tem a rua como um território de vida e de trabalho resultante de um
processo social de dominação, exploração e de exclusão.
A história do abandono da infância e
adolescência insere-se em uma trama social do mundo contemporâneo, marcado por
um modo de produção excludente, de concentração de renda e, conseqüentemente,
de poder. Permeado por inúmeras crises e remodelado em inúmeras formas,
atualmente tem como modelo o neoliberalismo de mercado, que re-introduz o liberalismo clássico, elitista.
Com isto, há o agravamento paulatino da
distribuição desigual de riqueza e o crescimento das massas desfavorecidas, com
altos índices de desemprego e de miserabilidade, atingindo diretamente e
desestruturando a instituição de maior responsabilidade pela inserção do indivíduo
na sociedade: a família.
Neste contexto, o Estado é um meio de
garantia formal da cidadania, dos direitos à vida, à igualdade, à proteção, à
educação, entre outros, com fins de mediar uma relação justa entre
detentores/concentradores de riquezas e compradores da força de trabalho e a
grande massa. Temos, contudo, em nossa realidade, o Estado como um grande meio
reafirmador das desigualdades estruturais de nosso país, onde as políticas
sociais são entendidas como concessões do Estado, e não como direito.
Nesta ótica, a política de um Estado
Mínimo não intervencionista trabalha em prol da lógica de mercado que, por sua
vez, dita a ordem social do mundo, conforme seus interesses próprios. Nesta
conjuntura, ocorre o descaso e o descompromisso do Estado com as questões de
ordem social, expondo aqueles que possuem menores condições de enfrentá-las às
conseqüências dessa estrutura social. Isto pode ser observado ao analisarmos a
situação dos menos favorecidos economicamente e, mais ainda, face à situação
das mulheres, negros, idosos, crianças e adolescentes.
As políticas de atenção a crianças e
adolescentes em situação de rua surgem da ineficiência e ineficácia do Estado
em suas políticas econômicas, agrárias, habitacionais, educacionais e de saúde.
As instituições de amparo a crianças e adolescentes em situação de rua não
seriam necessárias caso houvessem políticas sociais
eficazes, que dessem conta das causas geradoras desta realidade.
Ao fazer uma análise das políticas
sociais destinadas a esta parcela da sociedade, SOUZANETO (1993) afirma que “a história brasileira é carregada da
privação dos direitos sociais à infância e à adolescência. Isso significa que a
ausência de políticas sociais bem estabelecidas já constitui um corolário da
abertura para uma ‘política de genocídio’, presente em toda a história
brasileira da criança e do adolescente.” (p. 79)
Desta forma, instalam-se políticas
assistencialistas que visam resolver um determinado problema sem se preocupar
com as causas e suas possíveis conseqüências. Estratégias voltadas à garantia
das necessidades sociais de emprego, com remuneração justa, educação, saúde,
moradia e lazer com qualidade, teriam maiores chances de quebrar a cadeia
geradora do fenômeno social de crianças e adolescentes em situação de rua. No
entanto, as políticas de atenção à criança e ao adolescente em situação de rua
em nosso país são marcadas por uma trajetória de enorme descompasso político
entre discurso legal, ideologias e práticas, ações governamentais e não
governamentais desuniformes, com as mais diversas concepções sobre a questão do
abandono social da infância (SOUZA NETO, 1993; GREGORI & SILVA, 2000).
Refletindo sobre os agravos individuais
e sociais vividos por crianças e adolescentes em situação de rua, observamos
uma problemática de saúde pública, no entanto ainda pouco entendida como tal,
haja vista o pouco envolvimento do setor saúde junto a estas questões. Na
realidade, conforme aponta MEDEIROS (1999), existe um desvinculamento dos
profissionais da saúde com a questão do abandono social da infância e
adolescência. Este autor, referindo-se à Enfermagem, observou a baixa produção
científica abordando a temática para o período de 1982 a 1998 representando,
assim, o pouco envolvimento com estudos e ações voltados a este grupo por esta
área específica. Nesse sentido, entendemos que a desconstrução desta concepção
de desvinculamento entre as práticas de saúde pública e o abandono social da
infância passa pela compreensão de que, devido à característica
multidimensional implícita neste fenômeno, requer práticas interdisciplinares
e, para tal, torna-se necessário um debate amplo com diversos segmentos da
sociedade, incluindo o setor saúde.
A eficácia de qualquer ação depende do
nível de conhecimento que possuímos da realidade, na qual se insere o objeto a
que se destina a intervenção. Nesse sentido, inúmeros estudos se propõem a
compreender a questão do abandono social da infância e adolescência em nosso
país oferecendo uma significativa contribuição na construção do conhecimento deste
fenômeno social. No entanto, há necessidade de conhecermos as especificidades
locais para que as propostas de ações voltadas a este grupo tenham um melhor
direcionamento e, assim, tenham maiores possibilidades de sucesso (MINAYO,
1993). Desta forma, propomo-nos estudar a realidade goianiense, visto ser este
um fenômeno atual nesta comunidade, unindo-se ao fato de termos nesta
localidade um déficit de conhecimentos concretos sobre a realidade das crianças
e adolescentes em situação de rua.
Diante disto, propusemos neste estudo
analisar as percepções sobre infância e adolescência em situação de rua sob a
ótica dos coordenadores de programas voltados a este grupo em Instituições
governamentais e não governamentais, com vistas a oferecer subsídios para a construção
de propostas de atendimento, no âmbito da saúde pública, às crianças e
adolescentes em situação de rua da cidade de Goiânia.
Este estudo foi construído dentro de
uma abordagem da pesquisa social em saúde (MINAYO, 1994) e realizado no
Município de Goiânia, capital que enfrenta um acelerado crescimento demográfico
e, consequentemente, um alargamento de suas delimitações periféricas. Goiânia é
uma localidade de importância no processo migratório de uma enorme massa da
população rural em busca de outras formas de subsistência, sendo também relatado, de forma mais recente, a migração para esta região
de famílias provenientes de grandes metrópoles, principalmente do sudeste na
busca de melhores chances de sobrevivência. Tem no comércio sua
fonte econômica principal, sendo a agricultura e pecuária também ramos fortes.
No entanto, estes setores atravessam um período de crise evidenciado por um
número crescente de desemprego e subemprego, o que não foge à regra de nosso
país.
MEDEIROS (1999, p.63), estudando as
representações sociais da experiência de vida de meninos em situação de rua no
Município de Goiânia, remete-nos ao fato de que é crescente o número desta
população nesta região. Considerando a inexistência de dados oficiais que permitam
quantificar a presença de meninos(as) nas ruas de
Goiânia, com base em dados extra-oficiais o autor relata existir, na época de
seu estudo, cerca de 80 crianças nesta situação. Isto demonstra a necessidade
de investigações amplas no sentido de se conhecer esta realidade através de
pesquisas específicas para tal, uma vez que o crescimento populacional da
capital, nos últimos cinco anos, tem sido bastante acentuado.
Este estudo foi realizado junto a
instituições que propõem oferecer suporte e/ou trabalhar junto a esta
população, sejam elas de caráter governamental ou não governamental. Isto
significa que procuramos por aquelas que desenvolvem ações assistenciais
direcionadas à recuperação, prevenção e suporte aos meninos e meninas que saem
das ruas em busca de abrigo ou de uma forma de retomar às
suas casas e famílias. Não centramos a atenção, neste momento, naquelas
instituições ligadas ao aparato jurídico legal.
Utilizamos como instrumento para a
coleta de dados a entrevista semi-estruturada gravada em fita cassete,
realizada mediante o conhecimento, pelo entrevistado, de nossos objetivos e
respectiva concordância e assinatura de termo de consentimento livre e
esclarecido, segundo portaria do Conselho Nacional de Saúde (Resolução 196/96).
Utilizamos também a observação e registros em diário de campo.
Para a análise de nossos dados
utilizamos a Análise de Conteúdo - Modalidade Temática proposta por BARDIN
(1979). Os dados foram interpretados após leituras sistematizadas e agrupados
mediante o surgimento de estruturas relevantes e, destas, estabelecemos núcleos
de sentido, construídos a partir do grupo social estudado.
Na etapa seguinte, e partindo da
identificação dos núcleos de sentido, confrontamos as nossas observações com a
construção teórico-científica e com as falas dos coordenadores dos programas
procedendo assim à análise dos resultados, através de dois aspectos de análise:
“as percepções” e “a violência do não ter”.
1. O espaço da pesquisa
Durante a realização de nosso estudo,
as políticas municipais voltadas às crianças e aos adolescentes em situação de
rua concentravam-se na Fundação Municipal de Desenvolvimento Comunitário
(FUMDEC), estando aí vinculadas a um projeto de grande extensão intitulado
Cidadão 2000 e, dentro deste projeto, mais especificamente, encontravam-se sob
a responsabilidade da Divisão de Proteção e Defesa da Infância e Adolescente
(DPDIA).
Ligados a esta última instância
executora, haviam programas voltados para crianças e adolescentes em situação
de risco social, onde foram observados as seguintes instituições e projetos em
andamento: 505 - Crianças, Casa de Passagem, Casas Lares, Projeto Educadores de
Rua, além de convênios com instituições para desintoxicação.
No período de coleta de dados havia, em
Goiânia, oito instituições voltadas especificamente para a atenção a crianças e
adolescentes em situação de rua, sendo duas casas de passagem, uma masculina e
outra feminina, ambas instituições governamentais. Existiam, ainda, cinco casas
lares - o que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) caracteriza
como instituições abrigos -, sendo três masculinas e duas femininas, todas não
governamentais (QNG). No entanto, recebiam alguma ajuda financeira ou de
pessoal do através da Prefeitura Municipal. Observamos ainda a presença
relevante de educadores de rua ligados às casas de passagem, exercendo suas
funções diretamente na rua ou na própria casa.
2. Os coordenadores
Foram atores sociais de nossa pesquisa
os coordenadores ligados às instituições de atenção a crianças e adolescentes
em situação de rua, sendo realizadas nove entrevistas, duas em casas de
passagem, quatro em casas lares, uma com responsáveis pela
equipe de educadores de rua, uma em instituição de desintoxicação e uma
com responsáveis diretos pela DPDIA.
Quanto à escolaridade, sete dos nove
entrevistados possuíam terceiro grau completo (pedagogos ou assistentes
sociais) e apenas dois tinham o nível médio. O sexo feminino foi preponderante
e a idade, em média, foi de 34 anos. Dois coordenadores exerciam trabalho voluntário, sendo os demais contratados, com
vínculo empregatício formal como Município. O tempo de trabalho na instituição
estava entre um ano e meio a sete anos, e o tempo de trabalho com esta
população, entre um ano e meio e 20 anos.
A carga horária de trabalho, mínima,
encontrada foi de oito horas diárias, sendo que nas casas-lares, os
coordenadores faziam uma jornada de trabalho significantemente maior, pois lá residiam, o que não ocorreu em apenas uma das casas-lares.
3. As percepções
Após esta breve descrição do cenário
onde se desenvolveram as ações políticas de atenção às crianças e aos
adolescentes em situação de rua no Município de Goiânia, apresentaremos a
discussão sobre o discurso de nossos atores sociais com base nos aspectos de
análise anteriormente citados.
3.1. A violência do não ter
Os atores sociais tecem considerações
unânimes sobre quem são as crianças e o adolescente em situação de rua. Direta
ou indiretamente, todos os coordenadores pesquisados caracterizaram a criança e
o adolescente em abandono social como aqueles que, nesta fase da vida, fazem da
rua uma forma de sobrevivência, e são compelidos para esta realidade por algum
tipo de violência, seja esta estrutural ou familiar, e continuam a sofrer
violências de inúmeras naturezas no ambiente da rua.
Conceitualmente MINAYO (1994) aponta
que a violência pode ser dividida em estrutural, de resistência e de
delinqüência. A primeira, consiste naquela ligada às desigualdades sociais que
levam à opressão e à discriminação de grupos vulneráveis. A violência de
resistência constitui-se das diferentes formas de resposta dos grupos, classes
e indivíduos oprimidos. A violência de delinqüência é caracterizada como aquela
que se revela nas ações fora da lei socialmente reconhecida.
Para os atores sociais, várias são as
formas de violência vividas por esta população:
“Começam a sofrer violência na família, não é só espancamento não,
violência da fome, violência do não ter..., eu vejo como uma criança segregada
dos direitos que deveriam ter; quer por conta da família, quer por conta do
governo, quer por culpa da sociedade.” (Coordenador
03)
As falas dos atores sociais vêm ao
encontro das colocações de pesquisadores desta temática onde se afirma, mais
uma vez, o fenômeno crianças e a adolescentes em situação de rua como o topo
máximo de uma exclusão social, realizada por fatores históricos, econômicos e
políticos de nossa sociedade, sendo a violência, sofrida por crianças e
adolescentes, uma configuração concreta desta exclusão social.
Para DREXEL & IANNONE (1991), a
violência contra a criança e o adolescente é um fato comum em nossa sociedade.
O Brasil é o quarto colocado mundial em violência familiar contra a criança.
Para estes mesmos autores, a violência não é só familiar, também provém do
Estado e da sociedade civil, sendo que as políticas desenvolvidas no Brasil com
a criança e o adolescente são falhas em todos os sentidos, levando-os a um
estado de miséria e desproteção que os empurra cada vez mais para condições
subumanas, com a violação de seus direitos fundamentais.
“Necessidade, tanto material quanto afetiva, é produto de uma situação
estrutural de nosso país. A má distribuição de renda, o desemprego, falta de
investimento na educação, falta de estrutura para manter as famílias.” (Coordenador 02)
Nos estudos de MEDEIROS (1999, p. 114),
sobre as representações sociais da rua para meninos do Município de Goiânia, a
análise da categoria empírica “A gente Não Tem” é apresentada como um dos significados da rua para crianças e
adolescentes envolvidos na pesquisa. Para estas crianças, o “não ter”
representa, da mesma forma que para nossos coordenadores, a falta da família,
de condições mínimas de sobrevivência, a falta de futuro.
Verificamos inúmeros fragmentos nas
falas dos coordenadores que reafirmam o encontro das percepções destes sobre
crianças e adolescentes em situação de rua, com a construção teórica existente
da temática:
“Um adolescente totalmente violado em seus direitos, vítima de uma
sociedade que não tem uma ética, e não tem uma conduta moral, não tem uma
distribuição de renda, não tem um salário digno, e por isso as famílias entram
em crise. O salário do pai que não existe, a falta da mãe, a falta da
constituição familiar, a .falta de escola, a falta de uma política de
assistência adequada, a limitada distribuição de renda do país, falta de
reforma agrária.., vitimas de um sistema.”
(Coordenador 08)
Para os atores, a violência sofrida por
estas crianças assume várias formas passando pela violência física, violência
do abandono, violência sexual e violência emocional, sendo que todas possuem
como pano de fundo uma violência de abandono e exclusão social, vivido pelas
famílias destas crianças e adolescentes.
CRUZ NETO, SOUZA & ASSIS (1993) apontam para o fato de que,
“ao lidar com famílias de crianças que buscam na rua sua sobrevivência, a desconstrução do modelo familiar tradicional e o surgimento de outro modelo em que a escassez material, as precárias condições de moradia, a pouca qualificação profissional, a baixa escolaridade, enfim, toda uma sorte de carências impõem limites e impedem a ultrapassagem para uma vida melhor.” (p.65; p. 86)
Como síntese das características
encontradas para famílias em situação de rua ou com membros em situação de rua
pelos pesquisadores acima citados, temos uma história de luta e miserabilidade;
sofrimento direto ou indireto dos efeitos dos processos migratórios vividos em nosso pais; pertencem em grande maioria a uma etnia negra ou
a descendentes; as famílias em geral, possuem em média uma alta densidade de
pessoas por domicílio; e quase sempre são chefiadas por mulheres. O uso de
substâncias psicotrópicas, incluindo o álcool, faz-se presente muito comumente
e os conflitos familiares são quase uma constante. Sendo que para estes
autores, a dificuldade de sobrevivência acaba também limitando as relações
afetivas (CRUZ NETO, SOUZA& ASSIS, 1993).
Muitos coordenadores forneceram algumas
características desta população:
“A maioria não são de Goiânia, são do entorno ..., cidades vizinhas...”(Coordenador 02)
“Não tem auto-estima e não tem a menor perspectiva de vida.”(Coordenador 03)
“99% deles começam no subemprego, pai alcoólatra, mãe alcoólatra.”(Coordenador 03)
Tais características se assemelham às apresentadas por DREXEL & IANNONE (1991) tais como,
“...não pensam no futuro próximo ou distante, são imediatistas; organizam-se em grupos e andam em bandos; deixam a casa pressionados pela miséria e/ou violência; provêm de famílias migrantes; muitos não sabem o próprio nome; não valorizam a propriedade alheia; têm dificuldade de se envolver emocionalmente, com medo do abandono.”
A intersecção das percepções de nossos
atores sociais com o discurso teórico não ocorre ao acaso, sendo resultado de
um avanço de movimentos sociais em prol da garantia dos direitos humanos onde,
estes coordenadores, de alguma forma estão envolvidos. Em uma fala podemos
observar este fato:
“O cidadão o ano 2000 não surgiu por ocaso, surgiu através de lutas
realizadas por uma parcela da sociedade que já lutavam em favor das crianças e
adolescentes em Goiânia... vem legitimar o ECA.” (Coordenador 08)
Somente com uma visão global deste
fenômeno de exclusão social, vivida por crianças e adolescentes, estes atores
sociais terão maiores chances de atuarem de forma efetiva nesta realidade.
Ao iniciarmos este estudo, tivemos a
intenção de compreender alguns aspectos da realidade do Município de Goiânia no
que se refere à assistência a crianças e adolescentes em situação de rua. Para
tanto, buscamos nas percepções dos coordenadores de instituições que respondem
às políticas destinadas à minimização dos danos causados pelo abandono social
da infância e adolescência elementos para compreendermos um pouco sobre esta
realidade. Entendemos ser este um primeiro passo no sentido de buscar subsídios
para a elaboração de propostas alternativas que possam intervir nas possíveis
causas desta situação de abandono social, ainda que no universo da área da
saúde.
Um dos aspectos que foi possível
constatarmos neste estudo foi que as percepções dos atores sociais envolvidos
nesta realidade política e institucional demonstram grande ligação com os dados
teóricos encontrados. Fazem uma representação do abandono social da infância e
juventude como resultado de uma desestruturação político-social do país que
deixa suas marcas no abalo das bases familiares, provocando desagregações no
núcleo familiar.
O grande parâmetro para as ações
mediadas por coordenadores destas instituições é o cumprimento do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA, 1990); no entanto, os mesmos reconhecem inúmeras
limitações, principalmente quando caracterizam suas atividades como “terciárias
ou curativas”, voltadas para a minimização de danos causados pelo desamparo
social e desrespeito à dignidade humana, em que sobrevivem estas crianças e
adolescentes, sendo que possuem poucas possibilidades de uma atuação voltada
para questões preventivas.
O cumprimento real do
ECA-90 será uma realidade quando tivermos em nosso pais a garantia dos
direitos sociais estipulados em nossa constituição, com observância ao respeito
aos direitos humanos, o que só será possível mediante a valorização e
efetivação de políticas sociais básicas como a garantia de educação, saúde,
moradia em condições dignas, emprego, entre inúmeras outras políticas que
valorizem o ser humano em integralidade e sem discriminações.
Neste contexto, as políticas de atenção
a crianças e adolescentes em situação de abandono social em nossa realidade são
aparatos que não visam sanar o problema, e sim, minimizar a questão. Não
estamos aqui questionando a importância destas instituições. Ao contrário,
acreditamos que, enquanto frutos de uma luta social, representam a única chance
de resgate de cidadania que estas crianças e adolescentes possuem, além de
terem uma responsabilidade social de reflexão e compreensão do fenômeno e luta
para a garantia de políticas realmente eficazes, não apenas paliativas, mas que
dêem conta da diminuição ou erradicação da exclusão social da infância.
Desta forma, sentimos a necessidade de,
cada vez mais, lutarmos para o aperfeiçoamento e garantia de qualidade dos
serviços prestados por estas entidades. Esta pesquisa levantou alguns pontos
obscuros que requerem a necessidade de outros estudos, sendo também útil para
nos demonstrar a necessidade de um maior compromisso dos profissionais da área
de saúde para esta realidade social que deve ser vista como um fenômeno
multidimensional e, portanto, requer uma atuação interdisciplinar.
NOTAS SOBRE OS AUTORES:
[1] Enfermeira, aluna de pós-graduação
Nível Mestrado do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil da Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. (michella.câmara@bol.com.br)
[2] Doutor em Enfermagem, Professor
Adjunto da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás. Rua 227,
Qd. 68 s/n, FEN-UFG; St. Leste Universitário - Cep: 74605-080 - Goiânia - GO. (marcelo@fen.ufg.br)
[3] Doutora em Enfermagem, Professora
Titular do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e
Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo. Endereço: Av. Bandeirantes, 3900: Monte
Alegre - Cep: 14040-902 - Ribeirão Preto - SP. (caroline@glete.eerp.usp.br)
[4] Doutor em Saúde Pública,
Pesquisador Associado do Instituto Fernandes Figueira/Fundação Oswaldo Cruz: Av. Rui Barbosa, 716; Flamengo - Cep: 22250-020 - Rio de
Janeiro - RJ. (romeu@iff.fiocruz.br)
O desenvolvimento deste estudo contou
com o apoio do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Saúde Integral (NEPSI) da
Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás (FEN - UFG).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8069/90. São Paulo:
Atlas, 1990.
CÂMARA, M.F.B.; MEDEIROS, M.; FERRIANI,
M.d.G.C.; GOMES, R. O abandono social da infância e
adolescência na ótica dos coordenadores de instituições de assistência a
crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de Goiânia. Rev. Bras. Cresc. Desenv. Hum., São
Paulo, 12 (1), 2002.
CRUZ NETO, O.; SOUZA, E.R.; ASSIS, S.G. Rede familiar: a reconstrução pela
desconstrução. In: MINAYO, M.C.d.S. O
limite da exclusão social: meninos e meninas de rua no Brasil. São
Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 1993. Capítulo 3, p.65-96.
DREXEL, L.; IANNONE, L.R. Crianças e miséria: vida ou morte? 6ª ed. São Paulo: Editora
Moderna, 1991. (Coleção Polêmica)
GRACIANI, M.S.S. Pedagogia social da rua: análise e sistematização de uma
experiência vivida. São Paulo: Cortez, 1997.
GREGORI, M.F.; SILVA, C.A. Meninos de rua e instituições: tramas,
disputas e desmanche. São Paulo: Contexto, 2000.
MEDEIROS, M. Olhando a lua pelo mundo
da rua: representações sociais da experiência de vida de meninos em situação de
rua. Ribeirão Preto, 1999. [Tese de Doutorado - Escola
de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo].
MINAYO, M.C.S. (Org.). O limite da exclusão social: meninos e
meninas de rua no Brasil. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco, 1993.
MINAYO, M.C.S. (Org.). O desafio do conhecimento: pesquisa
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SOUZA NETO, J.C. De menor a cidadão: filantropia, genocídio, políticas assistenciais. São Paulo: Nuestra América, 1993.