DAS NECESSIDADES AOS DIREITOS

 

 

Emílio Garcia Mendez

 

Antônio Carlos Gomes da Costa

 

 

 

Sumário

PARTE I

Emílio Garcia Mendez

1. História da criança como história do seu controle

1.1. A criança: da literatura tradicional ao enfoque histórico

1.2. A criança "abandonada-delinqüente"

1.3. 0 surgimento dos tribunais de menores

1.4. 0 controle sócio-penal das crianças na América Latina

1.5. Conclusão

2. Política da infanto-adolescência na América Latina: políticas públicas, movimento social e mundo jurídico

2.1. 0 movimento dos reformadores

2.2. Reformadores e reformas na América latina

2.3. Dos reformadores ao movimento social

2.4  As tarefas do futuro: elementos para discussão

3. Infância e adolescência: a privação da liberdade nas normas internacionais

3.1. A história da história do problema

3.2. 0 caráter das normas internacionais

3.3. Uso restritíssimo da privação da liberdade, com tendência à sua abolição

3.4. Desarticulação do caráter total da privação da liberdade

3.5. A modo de conclusão

4. O novo estatuto da criança e do adolescente no Brasil: da situação irregular à proteção integral (uma visão latino-americana)

5. A doutrina de proteção integral da infância das Nações Unidas

5.1. A respeito das origens da doutrina da situação irregular

5.2. O tratamento indiscriminado de "menores" abandonados-delinqüentes: uma doutrina em situação irregular

5.3. Uma mudança fundamental de paradigma: a doutrina da proteção integral

6. Das infâncias e das violências

6.1. O estado do problema

6.2. Em torno do conceito de violência

6.3. Violência e realidade social

6.4. O objeto da violência

6.5. Que fazer?

7. Legislação de "menores" na América Latina: uma doutrina em situação irregular

7.1. Sobre as origens da incapacidade da infância e do sentido deste seminário

7.2. O avesso

7.2.1. Uma doutrina: a doutrina da situação irregular

7.2.2. Uma instância judicial: o juiz de menores

7.2.3.  Uma instância administrativo-executiva: os órgãos estatais de assistência à infância

7.2.4. Uma subestimação do vínculo entre a condição material e jurídica da infância: o basismo das organizações não-governamentais

7.2.5. Uma indiferença generalizada: a omissão ativa da sociedade civil

7.3. O direito

7.3.1. A doutrina: a Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral da Infância

7.3.2. A instância judicial: o novo juiz da infância e da juventude

7.3.3. A instância administrativo-executiva: do assistencialismo à política das garantias

7.3.4. As organizações não-governamentais como fiscais dos direitos da infância

7.3.5. Uma sociedade civil de todos e para todos

7.4 Conclusão

8. Adolescentes infratores graves: sistema de justiça e política de atendimento

8.1. A importância do tema

8.2. Os parâmetros da discussão

8.3. As origens

8.4. 0 problema: fenomenologia e percepção

8.5. Da criança abandonada ao adolescente infrator

8.6. O adolescente infrator: sujeito de direitos e deveres

8.7. O adolescente infrator e a competência institucional

8.8. Princípios básicos do atendimento:

a) incompletude institucional e

b) incompletude profissional

8.9. Segurança

8.10. A utopia necessária

 

PARTE II

Antônio Carlos Gomes da Costa

9. De menor a cidadão

9.1. Introdução

9.2. Antecedentes

9.2.1. Considerações gerais

9.2.2. A pré-história da política social brasileira: até 1900

9.2.3. As primeiras iniciativas: 1900-1930

9.2.4. A implantação: 1930-1945

9.2.5. Expansão conflitiva: 1945-1964

9.2.6. A reversão autoritária: 1964-1980

9.2.7. Democratização e crise: 1980-1990

9.3. 80: uma década de mudanças

9.3.1. Procurando um caminho: 80-82

9.3.2. Aprendendo com quem faz: 82-84

9.3.3. Ganhando força: 84-86

9.3.4. Entrando na luta: 86-88

9.3.5. Colhendo a vitória

9.4. Resultados

9.4.1. No panorama legal

9.4.2. No reordenamento institucional

9.4.3. Na melhoria da atenção direta

9.5. 0 impacto de uma década de luta e trabalho

9.5.1. Impacto sobre a política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente no Brasil

9.5.2. Impacto sobre os movimentos e entidades não-governamentais

9.5.3. Impacto sobre as políticas públicas

9.5.4. Impacto sobre o comportamento da sociedade em relação aos direitos da criança e do adolescente

9.5.5. Impacto sobre o mundo empresarial

9. 6. Conclusões

10. Memórias do futuro

Anexo I —1994

Anexo II —Um movimento social amplo

Anexo III — A carta de Brasília

 

 

PARTE I

1 História da criança como história do seu controle

 

1.1 A criança: da literatura tradicional ao enfoque histórico

1.2 A criança "abandonada-delinqüente''

1.3 0 surgimento dos tribunais de menores

1.4 0 controle sócio-penal das crianças na América Latina

1.5 Conclusão.

 

1.1 A criança: da literatura tradicional ao enfoque histórico

 

Naquilo que num sentido amplo pode ser denominado campo sócio-jurídico penal, a literatura relativa a jovens é de uma abundância considerável. Que não se possa afirmar o mesmo a respeito do tema "Crianças—sistema de justiça penal" é uma mera aparência. Além das dificuldades de se encontrar parâmetros objetivos não jurídicos para estabelecer uma diferença clara entre ambas as categorias (crianças e jovens), pode-se afirmar que a "escassez" de trabalhos sobre o tema "Crianças—sistema de justiça penal" deve-se, em grande parte, ao uso eufemístico do termo jovem ou menor, que salvo indicação em contrário, cobre amplamente a intervenção da justiça penal sobre as crianças.

 

A abundância da literatura mencionada anteriormente não se traduz, porém, num maior conhecimento das dimensões reais do fenômeno. Mais que isto, pode-se afirmar que a maioria arrasadora da literatura específica contribui decididamente para aumentar a confusão, mistificando ainda mais o problema. Trata-se de uma literatura que não apenas não resolveu o "nó da questão" — a contradição proteção-controle penal-direitos e garantias — como também nem sequer expôs a questão.

 

O conteúdo essencial da mensagem da literatura tradicional sobre o tema "menores-controle social formal" pode ser resumido da seguinte maneira: os instrumentos jurídicos (penais) aplicados à infância, entendendo-se esta última como um dado ontológico-biológico, percorreu um processo permanente de evolução positiva realizado no interesse dos menores. Não é difícil entender as enormes dificuldades e resistência que encontraram, e finda encontram, todas as tentativas de corroboração empírica das intenções do discurso dominante com os resultados concretos obtidos. O tema dos "menores" com conduta "desviada" tem sido patrimônio quase exclusivo de uma atitude dogmaticamente moralista, que tem impedido durante muito tempo qualquer confrontação séria baseada em argumentos racionais

 

Neste contexto não é de se estranhar que, mesmo sob perspectivas divergentes, o enfoque histórico constitua um elemento comum a quase todas as tentativas de caráter desmistificatório.

 

Se foi a perspectiva histórica que permitiu colocar em evidência a relatividade, arbitrariedade e contingência dos sistemas penais, pode-se afirmar com segurança que a início desta perspectiva nos estudos sobre a infância produziu resultados análogos. Refutando as teses da psicologia positivista que vinculam a categoria infância a determinadas características da evolução biológica, no enfoque histórico esta categoria é apresentada como o resultado de uma complexa construção social que responde tanto aos condicionantes de caráter estrutural quanto às sucessivas revoluções no plano dos sentimentos.

 

Num dos estudos históricos mais profundos e completos sobre a infância, Philippe Aries (1985) apresenta sua tese central alarmando que na sociedade tradicional, até meados do século XVI, não se entendia a infância tal como é entendida hoje. Ao invés disso, ela era encarada como um período de total dependência física, após o qual se adentrava imediatamente no mundo dos adultos. Um exemplo e prova disto é que o desconhecimento sobre a criança por parte da arte medieval não pode ser reduzido a um mero erro ou distração dos artistas.

 

Utilizando-se da pintura da época como documento cuja importância não pode ser desconsiderada, percebe-se que o século XVII apresenta uma inversão da tendência representada pelo retrato da família já organizada em torno da criança. Neste processo de descobrimento-invenção da infância, a vergonha e a ordem constituem dois sentimentos de caráter contrapostos que ajudam a modelar um indivíduo a quem a escola dará forma definitiva. A escola, organizada a partir de três princípios fundamentais (vigilância permanente, obrigação de denunciar e imposição de castigos corporais), cumprir: conjuntamente com a família, a dupla tarefa de prolongar o período da infância, arrancando-a do mundo dos adultos. É o nascimento de uma nova categoria.

Junto às representações de caráter artístico, a percepção do infanticídio constitui outro elemento de importância central na tarefa de reconstrução histórica.

 

Na antiga Roma, o vínculo de sangue contava menos do que o vínculo da escolha. Durante o tempo de Augusto, os recém-nascidos eram expostos nas portas do palácio imperial matando-se os que não eram escolhidos: uma prática que cumpria as atuais funções do aborto. Até a era medieval durante a qual as profundas mudanças ocorridas não conseguiram modificar o fato de que o matrimônio e, em conseqüência, a família, constituíam um âmbito exclusivo da vida privada, o infanticídio continuou tendo uma influência quantitativa de bastante importância. É interessante observar que apesar de no século IV o infanticídio ter começado a ser juridicamente considerado um delito, foi somente no século XVI que começou a haver uma certa repulsa social por parte das classes populares. Repulsa que coincide, por outro lado, com a necessidade estrutural de se possuir uma família numerosa. De acordo com Aries (1985, p. 459), houve três etapas importantes da morte infantil até hoje. A morte como um fato

 

(a) provocado,

(b) aceito e

(c) absolutamente intolerável.

 

Dentre as múltiplas conclusões da investigação de Aries (1985), pode-se destacar as seguintes:

(a) o interesse pelas crianças despertado na Idade Média constitui mais uma tarefa para moralistas que para humanistas;

(b) além do breve período de dependência física, na Idade Média, percebia-se como pequenos adultos aqueles que hoje consideramos claramente como crianças;

(c) a consolidação da descoberta da infância nos séculos XVI e XVII ocorreu conjuntamente com o desenvolvimento dos sentimentos sobre crianças corrompidas, um conceito absolutamente impensável nos séculos anteriores.

 

Compartilhando a necessidade do enfoque histórico, existe outra investigação cuja importância dificilmente pode ser ignorada. Trata-se da obra coletiva dirigida por Lloyd De Mause (1978), dedicada à história da infância. As profundas diferenças com as teses de Aries se devem, entre outros motivos, ao fato de se ter dado um enfoque psico-histórico ao tema.

 

É interessante observar, contudo, que as profundas e explícitas críticas feitas por De Mause à tese de Aries se relacionam mais a uma diferença de programa de ação (ausente da obra predominantemente descritiva de Aries), do que a uma diferença de constatação de fatos históricos. Assim, por exemplo, a "inexistência" da criança no período anterior ao século XVI é explicada não pela falta de amor dos pais, mas sim pela falta de maturidade emocional para tratar a criança como uma pessoa autônoma (De Mause, 1978, 35). De forma similar à classificação realizada por Aries, De Mause estabelece também uma tipologia das etapas da infância, mas sob a perspectiva dos diversos momentos das relações entre pais e filhos (De Mause, 1978, 82-83). No caso do infanticídio, por exemplo, as afirmações de De Mause confirmam e reforçam a tese de Aries, sustentando que tal prática foi considerada normal até o século XIX (pp. 51-52). Mas as profundas divergências entre os dois enfoques podem ser resumidas na acusação de De Mause sobre a tendência das investigações sócio-históricas que justificam, sem indignação moral, as crueldades do passado. Além de polêmica, a investigação de De Mause se destina a mostrar a evolução da infância também como um amplo processo, mas no qual a luta pela diminuição do sofrimento moral e físico ocupa um lugar de crucial importância. Criada a infância e abrindo-se plenamente a possibilidade de sua corrupção (a criança corrupta como sujeito ativo ou passivo), lançam-se as bases que permitem tratar a infância "abandonada-delinqüente" como uma categoria específica.

 

1.2 A criança "abandonada-delinqüente''

 

A história do controle social formal da infância como estratégia específica constitui um exemplo paradigmático de construção de uma categoria de indivíduos débeis para quem a proteção, muito mais que constituir um direito, consiste numa imposição.

 

Por isso, não é sem motivo que uma das obras pioneiras neste campo foi denominada The child savers: the invention of delinquency ("Os salvadores de crianças: a invenção da delinqüência") (A. Platt, 1969).

 

Poucas são as negações das liberdades jurídicas não justificadas pelo moralismo dos protagonistas deste movimento. Trata-se de uma situação que facilita a tarefa de reconstrução histórico-crítica na medida em que não exige um trabalho sofisticado de interpretação do material disponível, mas sim adequada exposição do mesmo.

 

Na escassa documentação histórica dedicada ao tema do controle penal dos "menores" (W. Sanders, 1970), pode-se identificar objetivamente uma certa correspondência com as teses de Philippe Aries, que refletem um tratamento penal predominantemente indiscriminado das crianças por parte dos adultos, pelo menos até o final do século XIX, tanto em nível normativo quando no momento de execução das penas.

 

Se o século XVIII "descobre'' a escola como o lugar de produção de ordem e homogeneização da categoria criança, o século XIX se encarrega da tarefa de conceber e colocar em prática os mecanismos que recolhem e protegem aqueles que foram expulsos ou não tiveram acesso ao sistema escolar.

 

Se, como se verá mais adiante, 1899 constitui uma data que marca uma mudança fundamental na história do controle penal da infância, existem alguns antecedentes que devem ser mencionados, na medida em que ajudam a entender a direção e a lógica dos acontecimentos posteriores.

 

Os primeiros antecedentes modernos do tratamento diferencial no caso dos "menores delinqüentes" podem ser encontrados em disposições destinadas a limitar a divulgação das ações de natureza penal supostamente cometidas por menores. Nesse sentido, existe uma lei suíça de 1862, transformada em lei especial em 1872, com disposições que incluíam também a inimputabilidade penal dos menores de 14 anos (medidas similares podem ser encontradas no código penal alemão de 1871). Porém, em matéria de antecedentes diretos, parecem existir poucas dúvidas de que a "Lei Norueguesa de bem-estar infantil", de 1896, constitui o documento jurídico mais importante. Ela possui todas as características do atual direito dos menores (T. S. Dahl, 1985, 8). Neste sentido, é importante deixar claro que todas as disposições jurídicas de caráter sócio-penal (ambos os termos nascem e se desenvolvem num processo de permanente confusão) contidas na política de reformas referem-se invariavelmente a dois aspectos fundamentais:

 

(a) aumento da idade da responsabilidade penal para afastar completamente as crianças do sistema penal dos adultos e

(b) imposição de sanções específicas para as crianças "delinqüentes" .

 

A evolução e as características dos instrumentos jurídicos destinados ao controle dos menores devem ser necessariamente interpretados à luz da consciência social reinante durante as distintas épocas. As diversas políticas de segregação dos menores, que começam a adquirir caráter sistemático a partir do século XIX, são legitimadas no contexto "científico" do positivismo criminológico e nas conseqüentes teorias da defesa social que derivam desta corrente.

 

Conforme demonstra a essência de muitos documentos da época, a preservação da integridade das crianças está subordinada ao objetivo de proteção da sociedade contra os "futuros" delinqüentes (S. J. Pfhol, 1977, 311). A confusão já existente soma-se a consideração indiscriminada dos conceitos da delinqüência e pobreza, abuso e maus-tratos. Há que se esperar até os nossos dias para ver uma verdadeira organização da consciência e reação social que reconheça o abuso e os maus-tratos à criança como um problema grave, e que, sobretudo, faz parte da esfera pública. Não é de se estranhar que o castigo das crianças venha sendo legitimado durante séculos por razões de obediência, disciplina, educação e religião. Aliás, muitos anos depois que o infanticídio, como ato explicitamente intencional, passou a encontrar forte reprovação jurídica e social, os castigos corporais que excluem a morte eram considerados, sobretudo se realizados por familiares da vítima, como um fato normal. A primeira intervenção do Estado, no caso de uma criança vítima de maus-tratos por parte dos pais, foi não apenas tardia como também ironicamente premonitória. Em 1875, num caso de grande repercussão na imprensa e na opinião pública, a menina Mary Ellen, de 9 anos de idade, foi retirada da guarda de seus pais por autoridades judiciais. A instituição que ativou o caso foi a "Sociedade para a Proteção dos Animais", de Nova York. Este fato coincide com a criação da "Sociedade de Nova York para a Prevenção da Crueldade Contra Crianças" (S. J. Pfhol, 1977, 312).

 

Também a reação aos maus-tratos de crianças, inexistente na consciência social durante séculos, tem sido entendida como o resultado de uma aliança de interesses que não pode simplesmente ser atribuída ao aumento do número de tais ocorrências. Uma interpretação digna de se levar em conta afirma que a luta pelo poder no seio da comunidade médica — neste caso relacionada aos Estados Unidos — através da qual os especialistas em radiologia tentavam superar a função de subordinação na qual estavam confinados por outras especialidades, foi uma causa decisiva na percepção negativa dos maus-tratos como problema de domínio público (idem, pp. 317 e ss.).

 

Neste clima político-cultural, chega o momento que marca um instante fundamental nas práticas sócio-penais de "proteção-segregação" da infância. Em 1899, por meio da "Juvenile Court Act" de Ilinois, foi criado o primeiro tribunal de menores.

 

Nos tópicos seguintes, tenta-se mostrar, resumidamente, as características mais relevantes de tais tribunais, a direção que imprimem à política de controle dos "menores", bem como sua extensão e implantação no contexto latino-americano.

1.3 0 surgimento dos tribunais de menores

 

Inexistentes no século XIX, com a única exceção de Ilinois, em 1930 os tribunais de menores são uma realidade em um número considerável de países. Para oferecer apenas alguns exemplos, os tribunais de menores foram criados em 1905 na Inglaterra, em 1908 na Alemanha, em 1911 em Portugal e na Hungria, em 1912 na França, em 1922 no Japão e em 1924 na Espanha. Na América Latina, foram criados em 1921 na Argentina, em 1923 no Brasil, em 1927 no México e em 1928 no Chile.

 

Como já foi dito acima, a literatura descritiva-apologética sobre o tema "menores-delinqüentes-abandonados" possui uma dimensão quantitativa enorme. Por essa razão, torna-se imprescindível concentrar-se naqueles momentos de criação e divulgação de idéias dominantes constituídas por encontros de caráter internacional. No tocante aos tribunais de menores, não existem dúvidas de que o "Primeiro Congresso Internacional de Tribunais de Menores" realizado em Paris, entre 29 de junho e 1 de julho de 1911, constituiu um documento-chave na tarefa de reconstrução histórica. Dificilmente se poderia imaginar maior audiência do que a existente no Congresso, onde se encontravam presentes as mais altas autoridades francesas no assunto, bem como delegados oficiais e de organizações privadas de quase todos os países europeus e dos Estados Unidos. Três foram as presenças latino-americanas: Cuba, El Salvador e Uruguai, sem que exista qualquer elemento que ponha em dúvida que esta participação foi meramente formal e marginal.

 

Os temas tratados pelo Congresso foram altamente representativos do debate da época, e podem ser resumidos nos seguintes três pontos principais:

 

a) Deve existir uma jurisdição especial de menores? Em quais princípios e diretrizes deverão apoiar-se tais tribunais para obter o máximo de eficácia na luta contra a criminalidade juvenil?

b) Qual deve ser a função das instituições de caridade frente aos tribunais e frente ao Estado?

c) O problema da liberdade vigiada ou probation. Funções dos tribunais posteriormente à sentença.

 

A própria agenda do Congresso, que abriu caminho para a aprovação unânime da criação dos tribunais de menores na França um ano depois, oferece algumas indicações de considerável importância. A primeira parte da primeira pergunta põe em evidência o caráter meramente retórico sobre se deve ou não existir uma jurisdição especial de menores. O detalhe tem importância, já que o forte moralismo que impregna todos estes temas determina a existência de um altíssimo nível de consenso. Salvo pequenas exceções, as contradições neste campo jurídico se caracterizam pela marginalidade e banalidade dos argumentos. Tampouco se pode passar ao largo da segunda parte da primeira pergunta, que oferece bases que permitirão subordinar a tarefa de proteger as crianças às exigências da defesa social. O segundo tema, por sua vez, legitima, com certeza, a participação de instituições de caráter privado na delicada tarefa de controle dos menores.

 

O terceiro tema constitui um dos pontos mais espinhosos do "direito do menor", um aspecto que conserva toda sua vigência e que se refere fundamentalmente à imposição de sentenças de caráter indeterminado, assim como a intervenção da justiça penal com respeito ao comportamento não criminal dos menores.

 

Contudo, a verdadeira importância do Congresso de Paris não deriva nem da enorme adesão que recebeu, nem de sua representatividade no mundo político-judicial. Seu caráter de momento decisivo na história do controle sócio-penal das crianças provém, sobretudo, do fato de que, pela primeira vez, foram expostos de forma sistemática todos aqueles temas que, com pequenas variações, constituem até hoje uma constante, recorrente na arrasadora maioria dos discursos oficiais sobre o menor "abandonado-delinqüente".

 

São dois os motivos mais importantes, declarados pelo Congresso, que servem para legitimar as reformas da justiça de menores: as espantosas condições de vida nos cárceres, onde as crianças eram alojadas de forma indiscriminada com os adultos, e a formalidade e inflexibilidade da lei penal, que, obrigando o respeito, entre outros, aos princípios de legalidade e de determinação da sentença, impediam a tarefa de repressão-proteção própria do direito de menores.

 

A atribuição de um caráter revolucionário a estas reformas por parte de seus recebedores — do qual o contexto latino-americano é um bom exemplo — constitui uma interpretação subjetiva e absolutamente errônea.

 

No discurso de abertura do Congresso, Paul Deschanel, deputado e membro da Academia Francesa, encarregou-se de afirmar o contrário de forma clara e explícita: "Estas conferências são necessárias para demonstrar que as reformas que queremos não têm nada de revolucionário, e podem ser realizadas sem alterar substancialmente os códigos existentes, com uma simples adaptação das velhas leis às necessidades modernas" (Atas, 1912, 48).

Mas a proteção e preservação dos jovens em perigo moral não constitui o único motivo declarado da legitimidade destes tribunais. No final de seu discurso de abertura do Congresso, Deschanel expõe outros motivos que ajudam a compreender a real dimensão dos problemas expostos: "Sinto-me muito feliz por poder transmitir uma fé profunda no futuro dos tribunais para crianças. Tenho certeza de que em alguns anos todos os países civilizados os terão organizado completamente. Estes tribunais se transformarão, em todas as partes, em centro de ação para a luta contra a criminalidade juvenil. Não somente nos ajudarão a recuperar a infância decaída, como também a protegê-la contra o perigo moral. Estes tribunais poderão se transformar, também, em auxiliares da aplicação das leis escolares e das leis do trabalho. Em seu redor, agrupar-se-ão as admiráveis obras da iniciativa privada, sem as quais a ação dos poderes públicos não poderia ser eficaz. Ao mesmo tempo em que manterão a repressão indispensável, proporcionarão uma justiça iluminada, apropriada aos que devem ser julgados. Serão também a melhor proteção da infância abandonada e culpável e a segurança mais eficaz da sociedade" (Atas, 1911, 49).

 

Lendo-se as atas do Congresso e comparando as discussões e propostas com as conclusões (Atas, 1912, 683-685), pode-se apreciar com facilidade a grande influência do delegado americano. A enorme legitimação, a priori, de sua presença se devia ao fato de representar um país que não somente foi pioneiro na matéria, como também foi aquele no qual a política sócio-penal de menores alcançou o maior número de realizações administrativas concretas. Mas não se pode esquecer que os juristas europeus da época que se ocupavam do tema "menores" elogiavam permanentemente o pragmatismo e a flexibilidade dos americanos, que se caracterizavam por seu absoluto afastamento das formas dogmático-jurídicas. Tem razão Anthony Platt (1969, 46) ao afirmar que, se os europeus se caracterizam por sua contribuição ao desenvolvimento da teoria penal, os americanos representam uma posição dominante em matéria de administração da questão penal. A contribuição do delegado americano ao Congresso de Paris, cujos pontos mais importantes convém recordar aqui, confirma plenamente as afirmações de Platt.

 

A clareza da intervenção do delegado americano C.R. Henderson torna supérflua qualquer interpretação ou comentário adicional. Pode-se dizer, em todo caso, que o enfoque de Henderson parte da eliminação total de qualquer tipo de relativismo, fixando categorias absolutas e universais amparadas no marco "científico" do positivismo.

 

Assim, afirma que:

 

"Em primeiro lugar, a psicologia demonstrou a existência de diferenças radicais entre as crianças e os adultos, pondo em relevo os traços característicos da adolescência.

"A criança não é mais um adulto em miniatura, nem em corpo, nem em espírito: é uma criança. Possui uma anatomia, uma fisiologia e uma psicologia próprias. Seu universo não é mais o do adulto. Não é um anjo nem um demônio: é uma criança. O estudo da infância se converteu numa ramificação de uma ciência especial. A divulgação do resultado destas investigações produziu uma revolução nos métodos educativos. Os princípios das investigações deixaram de ser teorias abstratas e especulativas para se transformarem em generalizações resultantes de fatos e experiências empíricas. As escolas-reformatórios se converteram em verdadeiros laboratórios de ciências pedagógicas. Em todos os países civilizados, associações de caráter filantrópico lançaram iniciativas em favor das crianças abandonadas. Seus integrantes descobriram simultaneamente as necessidades da criança e os erros dos procedimentos legais. Muitas dessas pessoas são juristas profissionais" (Atas, 1912, 56).

 

Se o século XVlIl fixa a categoria social da criança tomando como pontos de referência a escola, o início do século XX assiste a uma fixação da categoria sócio-penal da criança, que tem como pontos de referência a ''ciência" psicológica e uma estrutura diferenciada de controle penal.

 

Parece fora de discussão que nem toda política de reformas responde a meras razões humanitárias como conseqüência de mudanças na consciência social, quando se descobre a "incapacidade e debilidade" das crianças, sobretudo ao se tomar em conta o que diz Henderson:

 

"O movimento democrático deste século provocou uma aproximação inédita das classes sociais. Em conseqüência, são muitas as pessoas que compreendem os perigos que correm as famílias trabalhadoras e pobres. Esta é outra influência que favorece uma modificação do direito penal e processual" (Atas, 1912, 57).

O fato dos partidários das reformas repetirem e darem ênfase ao caráter não revolucionário das mesmas é explicado pela estratégia de introduzir mudanças de tipo processual que resguardem o caráter discricionário das medidas a serem adotadas, evitando o conflito com as teorias penais dominantes. Para que o Estado possa exercer as funções de "proteção e controle" (é impossível separar ambos os termos), é necessário modificar radicalmente os princípios processuais próprios do direito iluminista. Isto se consegue, em primeiro lugar, anulando a distinção entre menores delinqüentes, abandonados e maltratados, uma proposta que encontrou eco na Resolução III do VIII Congresso Penitenciário realizado em Washington em 1910.

 

Mas a pedra angular das reformas se baseia em alterar substancialmente as funções do juiz. O delegado belga no Congresso de Paris, o famoso professor de direito penal M. Prins, afirma que a jurisdição de menores deve possuir um caráter familiar (Atas, 1912, 61). Em diferentes graus, todos os delegados concordam com este princípio, cujo requisito para plena realização passa pela anulação da figura de defesa. Neste sentido, tornam-se claras as palavras do delegado italiano que, citando Garofalo, afirma: "... a intervenção do defensor não parece necessária porque quase sempre, em nosso país, a defesa não se limita — diz Garofalo — a oferecer desculpas para os piores atos delituosos, mas também a fazer sua apologia" (Atas, 1912, 250-251).

 

Com pequenas variações, os participantes do Congresso concordam com a necessidade das sentenças de caráter indeterminado. Se a condição indispensável para a proteção é a sentença, somente uma sentença de caráter indeterminado poderá converter a proteção num fato permanente. A delegada belga na Comissão Real de Patronatos, Madame Henry Carton de Wiart, afirma:

 

"A liberdade vigiada deve ser revestida das características de uma sentença indeterminada. Um termo fixo constitui uma proteção temporária. Uma sentença indeterminada converte a proteção em algo de caráter permanente" (Atas, 1912, 545).

 

Com o encerramento do Congresso, abre-se uma nova etapa na política de "controle-proteção" de toda uma categoria de indivíduos cuja "debilidade e incapacidade" deveria ser sancionada jurídica e culturalmente. Apesar das funções centrais outorgadas às instituições privadas, o Estado se reserva, na prática, a tarefa de organizar e supervisionar a assistência sócio-penal, não sendo incomodado por exigências de segurança ou garantias jurídicas. Lançam-se, desta forma, as bases de uma cultura estatal de assistência que não pode proporcionar proteção sem uma prévia classificação da natureza patológica: uma proteção só concebida na medida das distintas variações da segregação que, na melhor das hipóteses, reconhece a criança como objeto de compaixão, mas nunca como indivíduo detentor de direitos.

 

Sem pretender que este ponto se converta numa descrição e análise exaustiva da nova política de controle dos menores, o mesmo proporciona o marco imprescindível de referência para se entender o rumo que toma a política de menores no contexto latino-americano. De forma similar que em outros campos de direito, os juristas latino-americanos redescobriram o problema do controle "sócio-penal dos menores" num marco conceitual previamente formulado. Uma influência maior das correntes antropológicas em criminologia, além dos problemas derivados do processo massivo de imigração em muitos países da região, constituirão os marcos diferenciais de um problema a respeito do qual, por diversas razões, só se apresentam aqui algumas bases para discussão.

 

1.4 O controle sócio-penal das crianças na América Latina

 

Faltam, na América Latina, investigações no campo da história social sobre a especificidade do processo que cria e fixa a categoria infância.

Os escassos dados disponíveis para o período anterior e posterior à conquista carecem de uma sistematização mínima que permita a compreensão dos traços característicos do controle sócio-penal da infância durante tal período.

 

Apesar disso, fica claro que o "descobrimento" da criança "delinqüente-abandonada" como problema específico no campo do controle social ocorreu no início do século XX.

Até meados do século XIX, o retribucionismo contratualista dos (incipientes) códigos penais vigentes costumava distinguir com certa clareza os menores delinqüentes infratores e os menores abandonados ou em estado de perigo moral. Em termos gerais, fixava-se a idade de nove anos como limite da inimputabilidade absoluta, adaptando-se, para os maiores dessa idade, os confusos critérios de discernimento para decidir, por parte dos juizes penais ordinários, a possibilidade de serem aplicadas as sanções correspondentes.

 

Obviamente, o movimento em gestação na Europa, descrito no ponto anterior, não poderia passar despercebido na América Latina.

 

O positivismo "científico" criminológico, importado em sua versão antropológica mais ortodoxa, ainda que sob um manto psicologista, encontrou no "problema dos menores" um campo ideal para estender e consolidar seu poder perante os representantes do dogmatismo jurídico.

 

Num ambiente de agudos conflitos sociais que geravam uma recolocação subordinada no mercado internacional durante as primeiras décadas do século XX, a criação dos tribunais de menores aparecia como a resposta mais adequada, apesar de insuficiente, para o controle de infratores potenciais da ordem.

 

Simultaneamente, e mesmo antes de alguns países europeus foram criados tribunais de menores em 1921 na Argentina, e; 1923 no Brasil,  em 1927 no México e em 1928 no Chile - só para mencionar alguns exemplos.

 

Tomando-se a Argentina como exemplo paradigmático, pode-se perceber que as metáforas utilizadas para legitimar esta nova estrutura jurídica correspondem aos conteúdos de uma classe dirigente agro-pastoril. Nas palavras do diretor da Seção de Menores da Polícia de Buenos Aires, os tribunais de menores eram criados "pela saúde física da raça, por sua saúde moral, pelo porvir das novas gerações, pela grandeza da pátria;  é indispensável cuidar a colheita humana e prestar à infância a atenção que merece... O governo e a sociedade argentina têm dado repetidas provas do quanto lhes preocupa a solução deste problema com a promulgação da Lei 10.903, com a criação dos tribunais de menores, a designação da Delegacia Judicial de Menores como casa de observação e classificação médico-psicológica da infância abandonada e delinqüente..." (C. de Arenaza, 1927, 36).

 

Mas a nova lei leva a novos problemas. Um dos mais importantes se refere à intervenção judicial frente aos casos de abandono material ou moral da infância (ou seja, frente aos comportamentos não "delinqüentes").

 

Apesar de dificilmente se poder conceber uma interpretação mais  ampla do abandono material ou moral do que a contida no artigo 21 da Lei 10.903 (denominada Ley Agote, que inclui a "venda de jornais, publicações ou objetos de qualquer natureza nas ruas ou lugares públicos..."), o fato de os juizes de menores só poderem intervir nos casos em que os menores compareçam como autores ou vítimas de um delito constitui um problema de grande importância para uma cultura político-social que só concebe a proteção como uma forma de controle repressivo.

 

O empenho por cancelar todo tipo de distinção entre menores de delinqüentes e abandonados se converte na profecia que se auto-realiza. Carlos de Arenaza expressa esta situação com as seguintes palavras: "Dá-se que, em determinados casos, simula-se ou acusa-se a criança de uma contravenção para que a ação protetora do Estado possa tornar-se um benefício" .

 

A questão dos menores "abandonados-delinqüentes)" é colocada em termos tais, que somente a eliminação de todo tipo de formalidades jurídicas constitui a única garantia de eficácia das tarefas de "proteção-repressão".

 

Nas palavras de Raul Zahroni (1984), é a minimização formal do controle para se atingir o mínimo de repressão material. Por isto, em termos gerais, a política de reformas não se esgota na criação de uma jurisdição separada daquela dos adultos. Ela trata de elevar, na medida do possível a idade máxima da inimputabilidade para aumentar quantitativamente a parcela da população a ser "protegida", mas despojada de todas as garantias formais do processo penal.

 

Um jurista brasileiro da época oferece uma síntese clara dessas idéias, que dispensa qualquer comentário:

 

"O caráter principal desses tribunais é a simplicidade . Simplicidade na organização. Simplicidade nas práticas do julgamento. Simplicidade na aplicação das medidas de caráter educativo ou coercitivo... Tribunal numeroso equivaleria à morte da luminosa criação . Basta um juiz para julgar. Mas esse juiz deve ser exclusivamente um juiz para menores; não deve, não pode exercer outra função.

 

"Se nas grandes cidades, ou nas regiões onde o coeficiente da criminalidade é mais elevado, se torna necessária a criação de varas especiais do crime, também é imperioso que se designem juizes especiais para o julgamento dos menores. Tais juizes têm a missão espinhosa e dificílima de se tornarem familiares com esse mundo misterioso e quiçá impenetrável que é a alma infantil. Cada qual deles será um juiz calmo, amorável, dedicado ao seu sacerdócio. Juiz-pai, eis a expressão que melhor o deveria caracterizar.

 

"Nada de afectações prejudiciais. Nada de inquirições públicas. Nada de acusação e de defesa.

 

"O critério adaptado é este: segregar o acusado do público, principalmente dos outros menores. Não admitir, senão em casos singulares, a acusação, que busca sempre entenebrecer o quadro, aumentar a culpa do acusado, nem a defesa, que procurando atenuar a mesma culpa, poderá levar ao cérebro do menor a convicção de que o facto delictuoso de que se faz réo é uma ninharia, um nonada, uma ação trivial, perdoável, que ele poderá repetir a vontade, entregue às suas paixões, sem receio de punição.

"O juiz age como pai. É o que diz o juiz Tuthil, de Chicago, atilado e eminente julgador de centenares de menores acusados de faltas mais ou menos graves (L. Brito, 1924, I, 7-80).

 

A confiança cega na "cientificidade" dos instrumentos da medicina, biologia e, sobretudo, da psicologia criminal, utilizados sob o prisma do positivismo, determina objetivamente a destruição do princípio de legalidade. O delinqüente—principalmente a criança—não é mais o comprovado infrator da lei, mas se torna toda uma categoria de indivíduos frágeis a quem os instrumentos científicos permitem detectar exatamente como delinqüentes em potencial. O trabalho do laboratório de biologia infantil do Rio de Janeiro inaugurado em 1936, cópia do Centro Médico Pedagógico de observação de Roma de 1934, constitui um bom exemplo das tendências anunciadas anteriormente.

 

Para dizê-lo com as palavras de seu diretor: "Estes centros de investigação biológica da infância e da adolescência devem ser... dotados de todos os meios indispensáveis, tanto em material como em pessoal, para permitir, tanto quanto possível, a compilação da informação que facilitará o conhecimento da vida dos menores delinqüentes ou abandonados antes da prática do delito..." (L. Ribeiro, 1938, 226).

 

A obsessão por classificar, ordenar e estudar o desenvolvimento dos menores "delinqüentes-abandonados" permite supor que estas investigações oferecem um quadro quantitativo bastante aproximado do panorama geral desta categoria de indivíduos vulneráveis. Nada mais distante da verdade. A descomunal falta de substancia e a imprecisão das definições normativas e "científicas" determinam que os únicos dados disponíveis se referem ao estreito mundo da "anormalidade segregada". As características da criança "delinqüente-abandonada" resultam dos traços das crianças capturadas em algumas das inúmeras instituições totais da "proteção-repressão".

 

Com relação ao caráter indeterminado da sentença, salvo raras exceções, o consenso é unânime.

 

A posição do educador e jurista mexicano Manuel Velázquez Andrade constitui uma das poucas exceções à corrente dominante da época. É óbvio, contudo, que sua posição não se origina numa preocupação pela ruptura do princípio da legalidade, ou muito menos pelo temor à violação de certas garantias jurídicas. Sua posição responde a exigências da eficácia na tarefa de repressão da "delinqüência" juvenil sob a perspectiva da defesa social. Mas a posição de Velázquez Andrade é mais curiosa ainda ao se tomar em conta seu firme determinismo biológico na percepção da delinqüência: "Deve-se considerar o anormal sempre como um delinqüente em potencial e tratá-lo com uma profilaxia educativa e social adequada" (M. Velázquez Andrade, 1932, 49).

 

Em todo caso, fica claro o contraste de sua opinião com as idéias de seu tempo:

 

"Conhecemos muitos casos de delitos juvenis cuja causa é a incerteza da duração da reclusão que sempre se considera injusta. A resolução de um juiz que sentencia reclusão ilimitada a um adolescente ou jovem, por todo o período necessário para sua educação ou preparação para o trabalho, é contraproducente para o próprio interessado... Quando o jovem delinqüente não conhece o tempo que durará sua pena, vêmo-lo entregue a um desencorajamento moral constante, a um desanimo difícil de ser vencido, a uma repugnância por qualquer esforço, mesmo que seja em seu próprio benefício;... A má conduta destes jovens parece irredutível a termos desejáveis — ao contrário daqueles que são sentenciados há um tempo determinado. Estes sempre têm uma data que esperam alcançar; observa-se neles uma vontade de não retardá-la ou alongá-la com novos delitos ou reincidências; esforçam-se por parecer — ainda que realmente não o estejam — arrependidos e influenciados pelo tratamento educativo, pelo trabalho ou pelo ambiente higiênico que os rodeia" (pp. 85-86).

 

Citar a posição de Velázquez Andrade (abstraindo-se seu estilo crítico) possui o duplo sentido de, por um lado, mostrar os argumentos de uma voz dissonante a respeito do delicado problema da determinação/indeterminação das sentenças e, por outro, compreender que tais contradições não afetam a essência da cultura dominante neste plano do jurídico. Mais ainda, a proteção aos menores, subordinada às exigências de repressão e controle, parece ser um ponto fora de discussão em seu discurso. Os motivos de caráter político-estrutural, descritos de forma geral no início deste ponto, são transparentes. Além das considerações de caráter racista, muito comuns na época, as propostas de Velázquez Andrade não se abstraem do conflito social reinante. Sua experiência, proveniente da "Casa de Orientação para Varões" —eufemismo utilizado para designar um instituto fechado de detenção de menores, fundado em 1921 em Tlalpan, no México— o conduz a afirmar: "Organizada e administrada a Casa de Orientação para Varões tal como está funcionando, dentro de uma tradição não isenta do caráter de prisão e tomando em conta a condição social de onde provêm os menores delinqüentes, a disciplina cívico-militar é a mais apropriada".

 

Sem pretender de nenhuma forma reduzir a enorme influência dos avanços americanos e europeus no campo da política de menores latino-americana, uma avaliação provisória do que foi dito até aqui poderia conduzir à conclusão errônea de que os projetos e realizações nesta área, na América Latina, constituem um simples reflexo dos acontecimentos nos países desenvolvidos. Existem, contudo, algumas indicações em contrário.

 

Em meados dos anos 30, assiste-se, no campo da teoria criminológica, a um movimento que, tendo como epicentro a Argentina, estende-se a todo o continente. Nos limites da antropologia criminal, desenvolvem-se, cada vez com maior força, as correntes psicológicas e pedagógicas que colocam em dúvida os próprios fundamentos dos mecanismos punitivos: a lei, o juiz e a pena aparecem como os maiores culpáveis.

 

O desenvolvimento dessas tendências não se reduz aos estreitos limites dos consultórios médicos ou às universidades (cuja importância na época não deve ser subestimada).

 

Entre 1884 e 1937, quatro projetos de organização de instituições para menores foram apresentados ao Parlamento Argentino (1884, 1919, 1923, 1937)—como se pode ver, dois deles são anteriores até à criação da primeira lei específica de menores. Convém transcrever aqui um resumo dos fundamentos do projeto de 1923, altamente representativo das idéias dominantes: "Isolar o menor —diz—estudá-lo à luz da observação cotidiana do homem de ciência, significa colocar em relevo sua enfermidade: apresentar o diagnóstico e ensaiar o regime de cura adequado". (Diário de Sessões da H. C. de Deputados da Nação de 16 de agosto de 1923).

 

Os termos do conflito dominante na época fazem referência ao contraste de um enfoque jurídico e um enfoque médico-psicológico da "criminalidade". O problema da inimputabilidade aparece explícita ou implicitamente no centro do debate.

 

Desnecessário dizer que as correntes médico-psicológicas lutam por um aumento da idade da inimputabilidade nos termos das leis penais. A conclusão resultante destas posições conduz paradoxalmente à exigência da extinção dos tribunais de menores. Da forma como a cultura dominante concebe a proteção de seus indivíduos mais vulneráveis, as únicas formalidades admitidas são de caráter puramente disciplinar.

 

Dificilmente se pode encontrar um exemplo mais claro da "medicalização" dos problemas sociais do que o descrito abaixo:

 

"Não havendo castigo para as crianças delinqüentes, mas ação protetora do Estado, que significado teriam os tribunais para menores? Seriam absolutamente inúteis.

"Se as cortes juvenis constituem um aperfeiçoamento das instituições jurídicas dos Estados Unidos e da Europa, podemos resolver nosso problema com um critério mais moderno e dar um passo ainda mais decisivo no sentido de progresso.

 

"Toda criança que tivesse cometido um ato anti-social seria levada diretamente ao Instituto de Observação e Esclarecimento do Departamento Nacional da Criança, e de lá, após um cuidadoso estudo médico-psicológico, seria encaminhada ao estabelecimento mais adequado para seu tratamento médico-pedagógico. Para um critério estritamente científico; o propósito de proteger e não castigar. O tribunal, portanto, é desnecessário". (A. Foradori, 1938, 343).

 

Independentemente das intenções declaradas, as correntes psicológicas da antropologia criminal erguem a obra mais gigantesca de negação e mistificação dos profundos conflitos estruturais, que as sociedades latino-americanas atravessam. Uma vez mais, as interpretações são desnecessárias face à clareza dos protagonistas da época:

 

"Insistiremos no ponto de vista clínico-psico-pedagógico... Aqueles que falam da infância abandonada e delinqüente como um problema social só querem ver as conseqüências de um processo, e não sua origem e evolução" (A. Foradori, 1938, 343).

 

Nas décadas de 40 e 50, inicia-se um lento e contraditório processo de deslegitimação cultural das distintas correntes biopsico-antropológicas que fundamentam o direito dos menores. Na realidade, isto não significa, contudo, uma alteração radical nas características essenciais da política anterior. A indeterminação das sentenças, a confusão entre menores delinqüentes e abandonados, a luta permanente pelo aumento ou diminuição da idade da inimputabilidade penal, mas sobretudo o exercício da "proteção" através das múltiplas variações da segregação, permanecem como temas (e fatos) centrais no discurso e na prática oficiais.

 

A mais importante característica, a partir da década de 40, é a internacionalização e "sociologização" do tema "menores". O primeiro elemento não é novo. Já em 1924, os tribunais de menores haviam sido um tema central do III Congresso Latino-Americano de Criminologia, realizado em Buenos Aires. A este propósito, é interessante enfatizar que nas resoluções do Congresso aparece, objetivamente exposta, uma contradição que a política de "proteção-repressão" não conseguiu resolver até hoje. O mesmo documento estabelece que "a distinção entre menores delinqüentes e menores abandonados é ineficaz para o melhor tratamento dos mesmos"; e, algumas linhas mais adiante, "que o princípio da estrita legalidade dos delitos e da sanções deve ser mantido no direito positivo da garantia das liberdades individuais, que consagram todos os regimes democráticos na América".

 

De toda maneira, será somente após a introdução das correntes sociológicas norte-americanas sobre o tema "menores" que a internacionalização do discurso começará a adquirir maior poso.

 

O "problema" dos menores foi tema do I Congresso Pan-americano de Criminologia, Santiago, Chile, em 1944; do I Congresso Pan-americano de Medicina, Odontologia Legal e Criminologia, Havana, Cuba, em 1946; da I Conferência Pan-americana de Criminologia, Rio-São Paulo, em 1947; do Seminário Latino-Americano sobre Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente, Rio de Janeiro, em 1953; e do I Congresso Hispano-Luso-Americano-Filipino, São Paulo, em 1955 (para citar apenas os mais importantes).

 

Mas a internacionalização do discurso sobre o menor, que alcança seu ponto mais alto na década de 60, não se reduz a um mero intercâmbio de enfoques originados em distintos contextos nacionais. A hegemonia das teorias sociológicas norte-americanas no contexto latino-americano, durante tal período, dificilmente se expressa em outra área com mais força e clareza do que no campo da "juvenile delinquency".

 

Vagas referências de caráter estrutural, desajustes emocionais, falhas de personalidade e pais divorciados substituem a anormalidade física, a decadência da raça e a amoralidade dos imigrantes na legitimação das recorrentes práticas de classificação. Em nome da reeducação, as medidas tutelares se constituem no eufemismo que designa e legitima as novas formas de segregação. Uma indicação interessante deste desenvolvimento é o uso esquizofrênico do termo "menor-delinqüente". Mas a má consciência não se traduz, curiosamente, em qualquer revisão profunda ou radical dos termos do problema. Ao contrário, a capilaridade do controle social ativo dos países desenvolvidos é reforçada como aspiração explícita e objetivo a ser alcançado. Aliás, afirma-se que "não se pode medir com a mesma vara a situação no Chile e nos Estados Unidos. Enquanto em nosso país se considera delinqüente—ainda que inapropriadamente—o menor que comete um ato que se cometido por um adulto constituiria um delito, nos Estados Unidos o termo "delinqüência" abrange uma grande variedade de atos ou de formas de conduta que, em sua maioria, não são perseguidos quando seu autor é um adulto; por exemplo, na descrição jurídica de delinqüência entram as seguintes situações: "faltar habitualmente à escola; ser incorrigível; iludir a autoridade do pai ou tutor; comportar-se de maneira imoral ou indecente; vagar de noite pelas ruas sem justificativa; dedicar-se a ocupações ilegais, etc." (J. Pena Nunez, 1960, 9).

 

O princípio da legalidade torna-se, assim, um "luxo" para indivíduos fortes, ao que, no caso da "delinqüência habitual", os mecanismos de criminalização secundária se ocuparão de dar conteúdo concreto. Para os "menores", o tratamento reservado é outro: "mesmo que o Juiz chegue à conclusão de que o fato não foi cometido, ou que o menor não participou do mesmo, esse poderá aplicar as medidas de proteção estabelecidas na lei, caso o menor se encontre em perigo moral ou material" a Pena Nunez, 1960, 18).

 

Conclusão

 

As tendências que emergem durante os anos 60 tendem a se consolidar na década de 70. Mas, enquanto boa parte das instâncias oficiais legitimavam velhas políticas através de discursos abertos e espaços fechados, a incipiente criminologia crítica latino-americana afirmava que certos problemas nada mais eram que reflexos de condicionantes estruturais. As transformações de caráter geral ofereceriam, por sua vez, as soluções adequadas. Em todo caso, o desafio atual não é simples. Tampouco se trata de uma guinada de 180 graus em nome de um realismo que põe entre parênteses "até nova ordem" a crítica profunda.

 

A política jurídica e social no campo da infância-adolescência constitui o lado contrário de um problema banal. O abandono da luta pelo respeito aos direitos e garantias jurídicas e sociais da infância inclui o risco potencial de transformar todo direito penal num "direito penal de menores".

A informalidade dos mecanismos formais de controle sócio-penal dos menores deve ser colocada em evidência para tirar conclusões que permitam a elaboração de uma política social baseada no respeito profundo aos direitos humanos.

 

Eu excluí, deliberadamente, deste trabalho, o estudo da casuística normativa dos últimos anos, não porque me pareça pouco importante ou por crer que o tema é patrimônio exclusivo dos penalistas. Pelo contrário, o direito da infância e da juventude, assim como todas as práticas de intervenção sócio-penal, são de tal importância para mim que requerem a estreita colaboração de outras disciplinas (tendo em mente, por exemplo, as carências no campo da história social apontadas no início).

 

Definitivamente, trata-se de mudanças nos padrões culturais que demonstram o absurdo de se pensar na proteção dos setores mais vulneráveis de nossa sociedade, declarando sua incapacidade e condenando-os à segregação.

 

2 Política da infanto-adolescência na América Latina: políticas públicas, movimento social e mundo jurídico

 

2.1 0 movimento dos reformadores

2.2 Reformadores e reformas na América Latina

2.3 Dos reformadores ao movimento social

2.4 As tarefas do futuro: elementos para discussão.

2.1 O movimento dos reformadores

 

As páginas seguintes constituem uma primeira tentativa de reconstruir as formas concretas que assumem as relações entre os três atores principais que conformam o universo das políticas da infância e da adolescência no contexto latino-americano: políticas públicas, movimento social e mundo jurídico-institucional.

 

A reconstrução crítica proposta deve ser entendida como um requisito imprescindível da profunda reflexão necessária para encarar as transformações por que passam, nos dias de hoje, esses três atores.

 

A reconstrução das relações entre as políticas públicas, o movimento social e o mundo jurídico-institucional deve partir daquele que pode ser considerado o ponto zero da história da infanto-adolescência. Quer dizer, do momento em que a categoria infanto-adolescência começa a adquirir especificidade, passando a merecer um tratamento diferenciado em todos os planos, particularmente no jurídico.

 

O nascimento do primeiro tribunal de menores em Ilinois EUA, em 1899 pode ser considerado o ponto zero desta história e, ao mesmo tempo, a manifestação mais importante de ruptura com os processos anteriores.

 

As transformações em torno da criação do primeiro tribunal de menores significam a consagração definitiva do surgimento de um novo modelo de controle sócio-penal dos menores no interior do modelo global de controle social dos adultos.

 

Por outro lado, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança constitui a manifestação final de um segundo processo de ruptura que tentaremos, de maneira esquemática, reconstruir.

 

O processo que vai de 1899 (criação do primeiro tribunal de menores) a 1989 (Convenção Internacional dos Direitos da Criança), constitui uma longa caminhada. Uma trajetória que pode ser resumida na passagem do menor da condição de objeto de compaixão-repressão à de criança/adolescente, sujeito pleno de direitos.

 

O movimento social que provoca a primeira grande ruptura no campo da política da infância é o chamado movimento dos reformadores. Basicamente, foram as condições de vida nos cárceres onde menores e adultos eram alojados de forma indiscriminada, assim como a ausência de normas específicas, os elementos que se constituíram nas bandeiras de luta de um movimento que, num período relativamente curto de tempo, conseguiu transformar em realizações concretas todas as suas propostas.

 

Quais são as relações do movimento dos reformadores com o Estado (políticas públicas) e o mundo jurídico?

 

A particular conformação político-cultural dos EUA no começo do século caracteriza-se, neste campo, pela ausência de teóricos influentes no campo do direito e, mais especificamente, no campo do direito penal. Tal situação diferenciava-se completamente do que se passava na Europa. Nos Estados Unidos, um grupo quantitativa e qualitativamente importante de administradores da questão penal determinava a fusão do mundo jurídico e do Estado numa comunidade de ações e interesses.

 

Uma divisão clara se estabelece. O disposto fática e normativamente para os menores não seria trasladado para o mundo adulto. Tal situação assegura uma relação fluida dos reformadores com o Estado e o mundo jurídico. Isto não acontece apenas nos EUA.

 

Também na Europa, embora em menor escala, o fenômeno se repete. Assim é que, entre 1900 e 1925, a idéia e prática de uma jurisdição específica de menores é um fato consumado no âmbito da chamada cultura jurídica ocidental.

 

O fato de as reformas ficarem circunscritas ao mundo da infanto-adolescência explica, então, que a agressividade do movimento dos reformadores e a radicalidade de suas demandas pudessem ser resolvidas pelos canais burocrático-administrativos. Esta circunstância evitou uma confrontação violenta com os que defendiam a situação anterior: um direito penal retribucionista com menores alojados em estabelecimentos destinados a adultos. Essa não-confrontação se explica também pelas funções que as transformações do movimento dos reformadores produziam no plano do controle social do grupo de menores, objeto das políticas de intervenção. As atas do Primeiro Congresso Internacional de Tribunais de Menores, realizado em Paris em 1911, oferecem algumas informações que corroboram o afirmado anteriormente.

 

O delegado dos EUA no Congresso de Paris, em 1911, C.R. Henderson, um especialista na questão da administração penitenciária, dá uma pista sem eufemismos para que se possa entender a plena e imediata aceitação das bandeiras reformistas por parte do Estado. Ele afirma literalmente:

 

"O movimento democrático deste século provocou uma aproximação das classes sociais desconhecida em épocas anteriores. Em conseqüência, são numerosas as pessoas que compreendem o perigo que correm as famílias operárias e pobres. Eis aqui outra influência que favorece a modificação do direito penal" (Atas, 1912, 57).

 

Apesar de o caráter radical das transformações integrar a imagem que o movimento dos reformadores tem de si próprio—imagem ampliada inclusive entre seus epígonos no contexto latino-americano—, alguns reformadores possuem uma imagem do próprio movimento talvez muito mais ajustada à realidade. Esta idéia facilita o entendimento do caráter não-conflitivo que rege a resolução das contradições que deveriam ter provocado as demandas radicais dos reformadores.

 

No discurso de abertura do mencionado Congresso de Paris, Paul Deschanel, deputado e membro da Academia Francesa, encarrega-se de corroborar nossa afirmação anterior ao expressar-se nos seguintes termos:

 

"Estas conferências são necessárias para demonstrar que as reformas que queremos não têm nada de revolucionário e que podem ser realizadas sem alterar substancialmente os códigos existentes, com uma simples adaptação das velhas leis às necessidades modernas" (Atas, 1911).

 

A revolução dos reformadores se condensa em basicamente dois pontos:

 

a) a criação de locais de internação exclusivamente para menores;

b) a criação de uma jurisdição especializada (Cortes Juvenis ou Tribunais de Menores).

 

2.2 Reformadores e reformas na América Latina

 

O movimento dos reformadores emerge no contexto latino-americano num momento histórico marcado pelas seguintes características básicas:

 

(a) agudos conflitos sociais gerados por uma reinserção econômica subordinada no mercado internacional,

(b) uma forte hegemonia cultural do positivismo de corte antropológico.

Além das profundas diferenças de caráter estrutural, alguns aspectos vinculados à cultura jurídica hegemônica na América Latina marcam diferenças decisivas com os acontecimentos já relatados sobre os Estados Unidos.

 

No contexto latino-americano, os códigos penais de corte retribucionista utilizavam o discernimento como único critério para decidir da imputabilidade ou não dos menores a quem se atribuía autoria de infração penal. Estes códigos inspiravam-se nos modelos francês e espanhol.

 

Além da aplicação do critério do discernimento, os códigos penais dispunham que a condição de menor determinava algum tipo de redução da pena. Esta redução era geralmente de 1/3 no caso de pena privativa de liberdade, que era, aliás, praticamente o único tipo de penalidade aplicada neste período. Ao contrário, este sistema não dispunha sobre qualquer diferença a respeito do lugar de cumprimento da pena que deveria executar-se e, de fato, era cumprida nas mesmas instituições penitenciárias previstas para os adultos.

 

Mas se as espantosas condições de vida nas prisões ofereciam aos reformadores latino-americanos uma bandeira de luta forte aquela de seus equivalentes norte-americanos, a particular conformação político-cultural do mundo jurídico, determinava uma constelação de forças completamente diferente.

 

A composição social do movimento reformador latino-americano não se diferenciava em essência daquela dos reformadores norte-americanos. Lá, como aqui, a caridade e a assistência ofereciam oportunidades sumamente interessantes de interação e ascensão social. Caridade e assistência, todavia, devem contrabalançar as exigências dominantes em termos de controle social. Este balanceamento também se fazia necessário em relação ao poder da corporação médico-psiquiátrica. Um poder que emergia como conseqüência lógica do predomínio positivista-antropológico.

 

De todas as maneiras, com poucos anos de diferença dos movimentos ocorridos nos EUA e na Europa, entre 1919 (Argentina) e 1939 (Venezuela), legislações específicas de menores são introduzidas em todos os países latino-americanos. Porém, se as idéias dos reformadores se implantam rapidamente na América Latina, não se pode dizer o mesmo a respeito do programa de transformações concretas que elas implicavam.

 

Dois aspectos fundamentais diferem a "práxis latino-americana" do modelo "puro" dos reformadores:

 

a) a não instalação efetiva dos tribunais previstos na legislação específica;

b) ainda que declarada medida excepcional, persiste de forma quase rotineira na região a prática de colocar crianças e adolescentes em estabelecimentos penais destinados a adultos.

 

Não obstante as "impurezas" apontadas em sua implementação prática, não cabe nenhuma dúvida: no plano ideológico, o modelo preconizado pelos reformadores se impôs de forma ampla e consensual na América Latina.

 

Também aqui, o radicalismo das demandas dos reformadores não gera nenhum conflito no plano das relações estado-movimento social. Isto reside no fato de que as mudanças introduzidas no controle sócio-penal dos "menores", mais uma vez, não se estendem ao mundo do controle penal dos adultos.

 

Para uma leitura histórica, crítica dos modelos dominantes de controle social, a questão dos "menores" não constitui uma exceção. Como na história do cárcere, a análise histórico-crítica do paradigma protecionista-salvacionista dos reformadores permite perceber que a sua crise pertence à fisiologia, e não à patologia do modelo.

 

Há de se ter em conta, além do mais, a coincidência da implantação das novas idéias na América Latina com a crise do positivismo, pelo menos em suas concepções mais grosseiramente antropológicas. Este é um processo que transcorre basicamente nas décadas de 20 e 30 deste século.

 

Posteriormente, nos anos 40 e 50, presenciamos a lenta agonia do modelo protecionista/salvacionista. Este é um processo que se dilata no tempo, basicamente, devido ao caráter fechado e absurdamente "auto-suficiente" de uma parte considerável do mundo jurídico envolvido com esta questão. Ainda assim, de forma bastante independente da esfera jurídica, este período será marcado, em termos globais, por profundas alterações.

 

Ainda que com matizes políticos bem diferenciados, a década de 50 é palco, em toda a América Latina, da instauração de projetos estatizantes e distribucionistas de desenvolvimento, que produzem um forte impacto no campo das políticas sociais.

 

Além do mais, a política social começa a fazer parte, de pleno direito, do âmbito das políticas públicas.

 

A assistência até aqui desenvolvida por instituições de caridade é trazida para o âmbito do Estado. O processo não é simples. As tarefas de promoção social e algumas tentativas de promover uma certa auto-gestão dos problemas sociais começam a figurar entre as tarefas de governo. Muitas das idéias e das práticas dos reformadores, porém, são preservadas neste novo contexto.

 

O movimento dos reformadores (filantropos privados) latino-americanos reduz consideravelmente seu número e capacidade operativa. O assistencialismo e a caridade se retraem para áreas delimitadas e muito específicas (meninas cegas, deficiências, etc...).

 

Por outro lado, a formulação e execução, pelo Estado, de políticas sociais amplas, através de metodologias verticais inibidoras da participação popular, explica a inexistência de um movimento popular no sentido moderno do termo, ou seja, um movimento capaz de aderir ou de se opor às políticas formuladas.

 

Anos mais tarde, as concepções funcionalistas da sociologia americana no campo da "juvenile delinquency" contribuem decisivamente para a crise do positivismo antropológico. Tal enfoque, entretanto, não consegue afirmar-se no mundo dos juristas.

 

Isso ocorre também pela ausência ou deficiência de instrumentos institucionais adequados. Instrumentos capazes de substituir o conceito de ato delitivo por ato desviado, com base na "moderna" política sócio-penal a ser adotada.

Em outras palavras, a forma concreta de como é produzida a mudança radical de paradigma, do positivismo psico-antropológico (com ênfase nos desajustes de caráter individual) às concepções da sociologia funcionalista (com ênfase nos motivos de caráter estrutural teoria das subculturas), demonstra a possibilidade de que profundas mudanças no "enfoque do problema" deixem todo o campo legislativo inalterado.

 

No entanto, as políticas sociais distribucionistas das décadas de 50 e 60 diminuem, de fato e de forma notável, o peso da função do estamento judicial no conjunto das políticas para a infância.

 

A questão das garantias jurídicas, que outra coisa não é senão a concepção da infanto-adolescência como sujeito pleno de direitos, nem sequer figura implicitamente na agenda das políticas sociais do setor. A legislação em vigor facilita a tarefa. A indistinção no plano conceitual e das conseqüências reais, entre os casos de infração da lei penal e a situação irregular do "menor" abandonado, permite que a negação das garantias penais e processuais se produzam, paradoxalmente, sem violar o direito positivo desse "menor".

 

2.3 Dos reformadores ao movimento social

 

A partir da década de 60, nota-se uma lenta e inexorável crise das políticas distribucionistas.

 

A crise fiscal do Estado provoca o esvaziamento das políticas públicas. A rede dos serviços sociais sofre uma deterioração de enorme magnitude (no país onde existia), sendo reduzida, em muitos casos, a uma mera aparência e a uma função simbólica. Nos outros países, a crise nada mais faz do que reduzir as cifras da assistência-caridade e consolidar a já existente cultura da pobreza.

 

É neste contexto que surgem, pela primeira vez, movimentos sociais de luta pelos direitos da infanto-adolescência com padrões políticos-ideológicos completamente diferentes do modelo dos reformadores.

 

A princípio, o mundo jurídico é apenas um mero observador deste processo.

Apesar disso, o Estado produz uma transferência maciça de competências para o mundo jurídico. Tal situação poderia ser definida como a "judicialização" da política da infância.

 

A inexistência de recursos para o setor da infanto-adolescência (situação esta produto da crise, mas principalmente de uma mudança radical de prioridades na provisão de recursos) é substituída por uma ilusão de política social.

 

A ampla competência judicial para casos penais e assistenciais constitui o melhor apoio jurídico para a realização desta transferência.

 

Os governos ditatoriais da década de 70, existentes em uma parte do continente, acentuam e consolidam todo o processo descrito anteriormente.

 

O novo movimento social dedicado ao tema da infanto-adolescência cresce numa oposição ferrenha às políticas públicas ditatoriais, desenvolvendo uma cultura que continua agindo, inclusive muito depois das mudanças políticas ocorridas com a queda das ditaduras.

 

Os movimentos sociais se organizam, especializam-se e se capacitam tecnicamente, e se vinculam e se projetam tanto no plano regional como internacional.

 

A profundidade da crise e a experiência dos governos autoritários afastam o movimento social do Estado e, com isso, desaparece a vontade de influenciar (e isso independentemente das possibilidades reais de realizá-lo) sobre o plano das políticas públicas.

Por outra parte, a identificação do mundo jurídico com o Estado (fato herdado, por um lado, da experiência autoritária e, por outro, por uma caracterização ideológica) efetuada pelo movimento social, faz também com que este último se afaste do mundo jurídico.

 

Como conseqüência da crise fiscal, o Estado reduz dramaticamente, sua intervenção no campo da política social, tanto em termos reais como ideológicos (retirada esta que é acompanhada de uma doutrina de apoio: o Estado subsidiário). O movimento social se afasta do Estado e do mundo jurídico. O mundo jurídico reage contra o isolamento político-social a que é submetido (político-social no sentido mais restrito da palavra), isolando-se ainda mais.

 

Os juristas, tanto conservadores como progressistas, fecham-se a qualquer influência do mundo social neste movimento "negativamente dialético". De acordo com o caso, o resultado consiste, respectivamente, numa imobilidade autoritária ou na produção "tecnicamente pura" de uma nova legislação de menores que, no melhor dos casos, refaz com algum ar de modernidade os velhos modelos do direito assistencial-autoritário.

 

Um sinal da época também se reflete no campo das políticas sócio-jurídicas relativas à infância: a fragmentação.

 

Uma visão fragmentada dos problemas leva a um enfoque fragmentado das respostas que o nível atual da crise eleva à categoria de atomização, permitindo explicar, assim, as características das relações entre o Estado, o movimento social e o mundo jurídico.

 

2.4 As tarefas do futuro: elementos para discussão

 

Em primeiro lugar, trata-se de aprofundar a análise da conjuntura atual de uma forma que ajude a reconstruir a totalidade do universo fragmentado sobre o qual se deve operar.

 

Em segundo lugar, trata-se de identificar, dentro do contexto geral sobre o qual se deve operar, o objetivo prioritário de todos os recursos que se realizam: a melhora integral das condições de vida da infanto adolescência (especialmente de seus setores mais vulneráveis) pode constituir, perfeitamente, um parâmetro amplo e consensual de ação.

 

Além disso, é importante notar que constitui um objetivo que exige e permite a reconstrução da visão fragmentada dos problemas, requisito imprescindível para a formulação de propostas que reconheçam o caráter indefectivelmente complexo das mesmas.

 

Mas, necessariamente, complexidade não significa confusão, no sentido de não se saber onde começam as transformações que ajudam a reverter a situação atual.

 

Sem dúvida, a iniciativa está nas organizações da sociedade civil e deve ser desenvolvida a partir delas.

 

Uma parte importante do movimento social que trabalha em diversos níveis no campo da infanto-adolescência começou a perceber a importância e a necessidade de mudanças no plano jurídico-institucional: a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito da Criança cumpre um papel fundamental neste sentido.

 

Os méritos centrais da Convenção são constituídos por dois aspectos de naturezas diferentes. Por um lado, no que se refere ao seu conteúdo, oferece elementos preciosos para toda mudança de caráter legislativo que pretenda considerar a infanto-adolescência como sujeito de direito e, nunca mais, como objeto de compaixão (poderia afirmar-se que, praticamente, todas as "legislações de menores" da América Latina são colocadas senão na ilegalidade, pelo menos, na ilegitimidade pela Convenção).5

 

Por outro lado, são fundamentais seus efeitos no plano da sensibilização, não só da opinião pública como também dos movimentos sociais que começam agora a se ocupar seriamente da dimensão jurídico-institucional da condição da infanto-adolescência.

 

Para concluir, todo Estado que pretenda avançar na consolidação e aprofundamento da democracia (hoje, um discurso comum em todos os países latino-americanos) deve investir prioritariamente no plano das políticas públicas dirigidas a seus setores mais débeis e vulneráveis. Este investimento (e não "gasto") deve ser entendido como apoio material ao processo de construção da cidadania.

 

O mundo jurídico por seu lado precisa realizar um movimento duplo na direção da ruptura do isolamento.

 

Em primeiro lugar, abandonar a abstração que consiste em se desentender de assumir as conseqüências reais da aplicação das disposições jurídicas. São os eufemismos e os "como se" os elementos que permitem manter uma distinção—de fato inexistente —entre penas e medidas de segurança, ou entre o destino concreto dos menores abandonados ou autores de infração penal (dando apenas dois exemplos dessa questão).

 

Somente assim, o mundo dos juristas poderá acompanhar a prática dos movimentos sociais.

 

Por sua parte, o segmento judicial deveria, sem abandonar a luta por condições materiais que possam melhorar o desenvolvimento de suas atividades, reformulá-las, tanto em função dos recursos técnicos e materiais racionalmente possíveis, como abandonando a ilusão de realizar aquelas tarefas de política social derivadas das omissões das políticas básicas.

 

O desafio consiste em cumprir com as funções de um controle social democrático, evitando a criminalização das desvantagens sociais de fato ou de direito. Uma reforma profunda da legislação, que permitisse separar os aspectos de caráter tutelar ou assistencial (que devem ser objeto de políticas sociais desenvolvidas pelo movimento social e pelo Estado) daqueles vinculados diretamente ao cometimento de atos infracionários, poderia ser uma prioridade na agenda do setor.

 

O movimento social tem a responsabilidade central em todo o processo que tente reverter a grave situação de fragmentação anteriormente descrita.

 

Entretanto, o processo de reformulação de objetivos e prioridades deveria ser feito, simultaneamente, com uma restruturação profunda da cultura dos movimentos sociais.

 

A passagem pelo processo de discussão e defesa da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito da Criança ofereceu, e ainda oferece, os elementos para adquirir o grau de maturidade específico necessário para a vinculação ao mundo jurídico, sem medo de perder a identidade. Neste sentido, quando se fala de restruturação da cultura do movimento social, é conveniente recordar que um dos requisitos desta aproximação consiste em que seja mais profundo do que uma mera tática conjuntural ou superficial.

 

Isto se refere à necessidade de incorporar, plenamente, a dimensão jurídico-institucional em todas as táticas e estratégias de ação permanente.

As experiências bem sucedidas neste campo (o Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil, aprovado pelo Parlamento em julho de 1990, em vigor deste o dia 14 de outubro do mesmo) demonstram que, se o mundo jurídico preexistente a esta nova cultura do movimento social permanece alheio ou se opõe às novas transformações jurídicas, este último (o movimento) cria seu próprio corpo de juristas no mesmo processo de mobilização.

 

Como no plano jurídico, o movimento social deve incorporar a análise macro da conjuntura para orientar sua ação no plano das políticas públicas específicas. É conveniente lembrar que numa decisão como esta, dever-se-á enfrentar os riscos implícitos dos "estruturalistas" que sujeitam a melhora das condições da infância às mudanças radicais ou estratégias no conjunto da sociedade.

 

Mas vale a pena correr o risco. O descuido ou a ignorância deste plano (do mesmo modo que o plano jurídico-institucional) converte o trabalho social num "gracioso artesanato" que, no melhor dos casos, recria, sob um verniz de modernidade, as práticas do assistencialismo mais tradicional.

 

3 Infância e adolescência: a privação da liberdade nas normas internacionais

 

3.1 A história da história do problema

3.2 0 caráter das normas internacionais

3.3 Uso restritíssimo da privação da liberdade, com tendência à sua abolição

3.4 Desarticulação do caráter total da privação da liberdade

3.5 A modo de conclusão.

 

3.1 A história da história do problema

 

No mundo dos adultos, a questão da privação da liberdade é um pouco menos eufemística que no mundo da infanto-adolescência. No mundo dos adultos, o tema da privação da liberdade é o tema da prisão.

 

Paradoxalmente, neste ponto, o mundo dos adultos é menos hipócrita que o mundo da infância. É lógico que se deveria acrescentar um pequeno detalhe: também neste ponto, o mundo da infanto-adolescência foi criado pelos adultos.

 

As ideologias de reeducação e substituição do conceito de pena pelo de medidas de segurança permitiram, no mundo da infanto-adolescência, a criação de uma semântica ocultadora das conseqüências e sofrimentos reais, muitas vezes idênticos aos imperantes no mundo dos adultos. Por este motivo, utilizaremos a expressão "privação da liberdade" entre aspas; por este motivo também, não podemos ignorar que não existem privações de liberdade para adultos e adolescentes, mas sim, existe a privação da liberdade e existem adultos e existem adolescentes.

 

Em outras palavras, pode ser interpretado como se o abandono dos eufemismos e dos "como se" constituísse um dos requisitos imprescindíveis para abordar, seriamente, a questão.

 

E conhecido que não existe uma visão homogênea da instituição prisão. Apesar disso, os múltiplos enfoques podem ser resumidos em duas linhas fundamentais:

 

a) Uma visão tradicional de caráter não histórico, onde a prisão passa a ser uma instituição onipresente na vida da sociedade, sofrendo, apenas, as alterações produzidas por um "processo normal de evolução, modernização e humanização".

 

Mais precisamente são duas as características predominantes desta linha de pensamento:

 

1) a prisão sempre constituiu um elemento central nos dispositivos punitivos da sociedade;

2) as funções da prisão não foram alteradas substancialmente desde suas origens, incertas, até nossos dias.

b) Uma visão histórica da instituição penitenciária cujas conclusões são totalmente opostas à visão anterior.

 

Não é necessário fixar, especificamente, no primeiro enfoque. Uma análise da concepção histórica permite reconhecer, com certa facilidade, o caráter ideologicamente falso da visão não histórica.

 

Para análise da concepção histórica, recomendo três excelentes obras de reconstrução:

Pena e estrutura social de Georg Rusche e Otto Kirchheimer (Editora Temis, Bogotá, 1984), Cárcel y Fábrica de Dario Melossi e Massimo Pavarini (Editora Siglo XXI, México, 1981 ) e Vigiar e Castigar, de Michel Foucault (Editora Siglo XXI, México, 1976).

 

A afirmação sobre a existência da instituição penitenciária como forma específica e central de castigo, em qualquer tempo e lugar, não resiste a mais simples análise histórica.

 

Já nos textos do famoso jurista clássico romano Ulpiano, pode-se ler "Carcer ad continendos, non ad puniendos homines haberi debet". Em outras palavras, a prisão constitui o lugar onde manter os processados ou condenados, até que a culpa seja reconhecida e seja escolhida uma das formas de castigo.

 

A análise histórica detalhada de Rusche e Kirchheimer demonstra como, até o século XI, a prisão não figurava nos mecanismos punitivos das sociedades germânicas, a não ser para cumprir as funções indicadas por Ulpiano, ou seja, servir de lugar de contenção, até que a pena propriamente dita fosse decidida.

 

Na passagem do século XV ao XVI, surgem na Inglaterra (Bridewell), Holanda (Rasphuis) e no norte da Alemanha (spinnhaus) instituições fechadas, onde loucos, viciados, incorrigíveis, lunáticos, folgazões e "menores", entre outros, eram retidos sob custódia, por ação do Estado ou a pedido de seus familiares, para evitar que constituíssem um perigo para seu grupo familiar ou para a sociedade em geral.

 

São criadas, deste modo, as bases de uma cultura do seqüestro dos conflitos sociais.

 

Apesar de suas funções se transformarem, a antiga arquitetura da prisão permanece imutável, passando a se constituir num lugar para aqueles com problemas de conduta ou que têm necessidade de aprender os hábitos do trabalho. Trabalho este que começa a ser organizado segundo pautas mais rígidas e pré-estabelecidas para a produção.

 

Mas o enfoque tradicional da prisão confunde a imutabilidade da arquitetura penitenciária com a imutabilidade de suas funções.

 

Mesmo assim, o elemento dá um importante indicador em relação às características deste tipo de "cárcere" (que é novo em relação ao velho modelo, mas que ainda está longe de assumir suas funções modernas).

 

Ninguém é privado de sua liberdade por um tempo preciso e previamente estabelecido.

 

O tempo da privação da liberdade está sujeito à melhora da conduta, à cura, ao aprendizado de um oficio, ou à vontade arbitrária de quem decidiu a reclusão.

 

Uma mudança na função da pena privativa de liberdade começa a ser percebida entre os séculos XVII e XVIII. A privação da liberdade passa a ser uma pena específica, como uma pena a mais dentro de uma ampla relação de dispositivos punitivos (penas pecuniárias, de desterro, trabalhos forçados, castigos corporais, etc.).

 

Mas a duração da pena privativa de liberdade continua sendo uma disposição arbitrária do poder punitivo. Poder, este, difícil de ser separado do poder político, que não é outro senão a vontade do rei, em nome de quem era exercida a justiça.

 

Algo importante está acontecendo na economia política dos castigos. No final do século XVIII, a pena privativa de liberdade adquire a importância e o centro de atenção que a visão tradicional, mencionada no começo deste trabalho, considera válida para qualquer tempo e lugar.

 

Já nos códigos penais do século XIX, a pena privativa de liberdade, também como entidade pré-estabelecida e com duração pré-fixada, converte-se na pena central dentro do dispositivo geral de castigos.

 

Mais uma vez, a visão tradicional faz uma leitura ideológica da questão. O caráter central da pena privativa de liberdade é visto como a culminação de um processo de humanização do sistema penal, que superava, assim, as formas bárbaras dos castigos corporais.

 

A obra clássica de Beccaria, Dei delitti e delle pene, constitui a maior contribuição para a humanização dos castigos, mas muito mais para conseguir certeza jurídica. Certeza, tanto na necessidade da existência de uma norma prévia ao castigo, quanto de uma determinação clara do tempo previsto para a duração da privação da liberdade.

 

No entanto, mais uma vez, uma leitura crítica e alternativa à anterior é possível.

 

A Revolução Francesa pode ser vista como a consagração política das mudanças profundas que estavam acontecendo em nível de organização do conjunto da sociedade.

 

Com a plena instauração de um novo modo de produção, o tempo passa a adquirir um valor completamente diferente.

 

O tempo começa a ter o valor de uma mercadoria. Tempo que, pelo menos formalmente, todos os homens possuem por igual. Por esse motivo, a privação do tempo livre dos homens pode tornar-se a pena democrática por excelência. Para cada infração, é possível estabelecer um tempo exato de privação de liberdade.

 

Paradoxalmente, quem fica fora do processo produtivo, fica fora desta "revolução democrática".

 

A infância, que na realidade é incorporada marginal e clandestinamente ao processo produtivo, fica fora do discurso do processo produtivo.

 

Isto determinará não que a infância fique isenta das práticas de privação de liberdade, mas que as mesmas se organizem sob formas radicalmente distintas de legitimidade.

 

A reeducação ao invés do castigo e as medidas de segurança ao invés de penas, constituirão os eufemismos que legitimam, na prática, privações da liberdade sem processo, sem garantias e sobretudo sem um tempo definido de duração.

 

O hábito de encobrir os conflitos sociais se manifestará plenamente no caso da infância abandonada—delinqüente. Com o apoio de uma sucessão de eufemismos, implantam-se as bases de uma cultura que não sabe, não quer ou não pode prescindir de qualquer forma de segregação e incapacidade, como requisito prévio para outorgar proteção à infância.

 

Veja-se, como um exemplo ilustrativo desta cultura, as palavras da delegada belga ao Primeiro Congresso Internacional de Tribunais de Menores desenvolvido em Paris, em 1911. Dizia a Baronesa Cartons de Wiart (um nome que é todo um programa na história mundial do assistencialismo):

 

"A liberdade vigiada deve ser revestida das características de uma sentença indeterminada. Um termo fixo constitui uma proteção temporária. Uma sentença indeterminada converte a proteção em algo de caráter permanente" (Atas, 1911, 545).

 

O desenvolvimento esquizofrênico desta cultura continuará manifestando-se no futuro, também plenamente no mundo jurídico. Um ilustre juiz de menores e teórico argentino da década de 20 manifesta-o nestes termos: "Dá-se que em determinados casos, simula-se ou acusa-se a criança de uma contravenção para que a ação protetora do Estado possa tornar-se um benefício" (C. de Arenaza, 1927, 38).

 

Eis aí a história do menor como objeto da compaixão-repressão. Este enfoque e as práticas concretas que dele se derivam imperaram e ainda imperam na maioria dos países chamados de cultura jurídica ocidental.

 

3.2 0 caráter das normas internacionais

 

A incorporação do problema da privação da liberdade na normativa de caráter internacional é muito recente. Ela abriga uma mudança na sensibilidade social, porém, muito mais, constitui o motor das transformações desejadas.

Em outras palavras, esta história é a história das transformações da menoridade como objeto da compaixão-repressão à infanto-adolescência como sujeito pleno de direito.

 

Sob estas premissas histórico-metodológicas, quero analisar, de forma sintética e esquemática, os quatro instrumentos de caráter internacional mais relevantes nesta área.

 

São eles:

 

1) As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Jovens, adotadas pela Assembléia Geral na sua resolução 40/33 de 29 de novembro de 1985 (que serão mencionadas como "Regras de Beijing");

2) A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989 (que será chamada de "Convenção das Nações Unidas");

3) As Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da delinqüência juvenil (citados doravante como "Diretrizes");

4) As Regras Mínimas das Nações Unidas para a proteção dos jovens privados de liberdade (citados daqui por diante como "Regras Mínimas").

 

Dos quatro instrumentos mencionados, três são de caráter específico e o quarto (A Convenção das Nações Unidas) constitui um documento geral de proteção da infanto-adolescência com disposições específicas sobre o tema da privação da liberdade.

 

Não vou fazer uma análise detalhada das normas contidas nestes documentos. Interessa-me mais fazer uma análise seletiva de algumas de suas disposições mais importantes, sobretudo para enfocar dois aspectos:

a) o tipo de cultura sócio-jurídica que estes documentos expressam;

b) a permanente evolução da consciência sócio-jurídica internacional numa direção concreta que pode ser definida como de transito "do menor como objeto da compaixão-repressão à infanto-adolescência como sujeito pleno de direitos".

 

Em primeiro lugar, as normas internacionais constituem uma ruptura clara com o espírito jurídico da velha legislação "protecionista-salvadora", que estabelecia delitos, infrações ou atos antisociais em função da própria condição do menor (paradoxalmente um sujeito extremamente vulnerável). E o que interessa aqui, mais do que a semântica, é que as conseqüências reais dessas definições constituíam segregações e privações de liberdade iguais às que ocorriam pelo cometimento de um delito.

 

O ponto 2. 2b das Regras de Beijing é a manifestação clara desta ruptura, estabelecendo, claramente, o princípio da legalidade:

 

"Infração é todo comportamento (ação ou omissão) penalizado pela lei, de acordo com o respectivo sistema jurídico."

 

Tenho interesse em sublinhar outra característica das normas internacionais sobre a matéria: a velocidade com que elas se modificam, numa direção que consolida a idéia da infância como sujeito de direitos.

 

Por exemplo, as Regras de Beijing definiam no seu ponto 2. 2c o "menor infrator como todo jovem a quem se acusa do cometimento de uma infração, ou que seja considerado culpado pelo cometimento de uma infração".

 

Considerar infrator o acusado é explicado pela persistência da velha ideologia "protecionista-salvadora" que necessitava vitimar ou culpabilizar como requisito prévio à outorga de proteção.

 

Uma definição assim desapareceu da letra e do espírito das Regras de Riad.

 

Vejamos outro exemplo ainda mais claro da evolução mencionada. As Regras de Riad, no seu ponto 3.1, estabelecem que no âmbito da aplicação das regras "as disposições pertinentes das regras não só serão aplicadas aos menores infratores, como também aos menores que possam ser processados por realizar qualquer ato concreto que não seria punido se fosse praticado por adultos".

 

Esta última disposição significa admitir, pelo menos de fato, a existência de delitos estabelecidos em função da maioria condição do sujeito. As "Diretrizes" são terminantes a este respeito, dispondo no seu ponto 54:

"Com o objetivo de impedir que se prossiga com a estigmatização, humilhação e incriminação dos jovens, deverá ser promulgada uma legislação pela qual se garanta que todo ato que não se considere um delito, nem seja castigado quando cometido por um adulto, também não deverá ser considerado um delito, nem ser objeto de castigo quando cometido por um jovem".

 

Até aqui nos ocupamos do tema do ato infracional, na medida em que, freqüentemente, sua conseqüência é a privação da liberdade. Considerada esta última especificamente, as Regras de Riad definem a privação da liberdade de um modo que, praticamente, elimina a possibilidade de que esta seja declarada de uma forma sub-reptícia. O capítulo II, sobre "Efeito e aplicação das Regras", inciso b do ponto 10, define:

 

"Por privação de liberdade, entende-se toda forma de detenção ou privação, assim como a reclusão em outro estabelecimento público ou privado, ordenada por qualquer autoridade judicial, administrativa ou outra autoridade pública, de onde o jovem não possa sair livremente".

 

3.3 Uso restritíssimo da privação da liberdade, com tendência à sua abolição

 

Em relação ao uso da privação da liberdade, seja para fins processuais ou como execução de pena, os quatro instrumentos internacionais são absolutamente claros em caracterizá-la como medida de:

— última instância;

— caráter excepcional;

— mínima duração possível.

 

Os instrumentos internacionais são tão categóricos neste ponto que me animaria a dizer que "invertem o ônus da prova", no sentido de que obrigam o sistema da justiça penal a demonstrar que todas as alternativas existentes já foram tentadas, ou, pelo menos, descartadas racional e eqüitativamente pela autoridade judicial (refiro-me aqui aos artigos 13, 13. 1, 13. 2 , 1 7b, 1 7c e 19. 1 das Regras de Beijing, ao ponto 45 do capítulo de Política Social das "Diretrizes", ao ponto 1 das Perspectivas Fundamentais das Regras Mínimas, que utiliza inclusive a palavra "abolir" ("O sistema de justiça de menores deverá respeitar os direitos e a segurança dos jovens e fomentar seu bem-estar físico e mental. Não deveria ser economizado esforço para abolir na medida do possível, a prisão de jovens"). Por último, também é claro neste sentido, o inciso b do artigo 37 da Convenção Internacional.

 

3.4 Desarticulação do caráter total da privação da liberdade

 

Também neste ponto, as normas internacionais constituem uma ruptura radical com a velha concepção "protecionista-segregacionista", que propunha a criação de serviços especiais e exclusivos para os privados de liberdade. Concepção esta que consolidava a separação e aumentava a distancia entre o mundo livre e o mundo da prisão, transformando em absolutamente impossível qualquer tipo de reintegração social.

 

As normas internacionais, neste caso tomam claro partido pela doutrina do "incompleto institucional" (neste ponto, faço referência específica a Antônio Carlos Gomes da Costa), no sentido de eliminar as diferenças entre o mundo da prisão e o mundo livre, utilizando, a menos que seja impossível, os serviços normais da comunidade.

 

Neste sentido, o ponto 82, inciso f, das Regras Mínimas não deixa lugar a dúvidas:

"Todo o pessoal deverá reduzir ao mínimo as diferenças entre a vida dentro e fora do centro de detenção, que tendam a diminuir o respeito devido à dignidade dos jovens como seres humanos".

 

Outra vez, interesso-me em enfocar o progresso realizado também nesta área. O art. 26.6 das Regras de Beijing estabelece:

 

"Será estimulada a cooperação interministerial e interdepartamental para proporcionar uma adequada formação educacional e, se for o caso, profissional, ao jovem institucionalizado para garantir que, ao sair, não esteja em desvantagem no plano educacional".

 

Os pontos 58 e 80 das Regras Mínimas estabelecem, respectivamente:

 

"Deverão ser utilizados todos os meios possíveis para garantir que os jovens tenham uma comunicação adequada com o mundo exterior, comunicação esta que é parte integrante do direito a um tratamento justo e humanitário e é indispensável para preparar a reintegração do menor na sociedade. Os jovens deverão ser autorizados a se comunicarem com seus familiares, seus amigos e outras pessoas ou representantes de organizações prestigiadas do exterior, a saírem dos centros de detenção para visitar seu lar e sua família e poderão sair do estabelecimento, com permissões especiais, por motivos educativos, profissionais ou outras razões de importância. Em caso do jovem estar cumprindo uma pena, o tempo passado fora do estabelecimento deverá ser contado como parte do período de cumprimento da sentença".

 

Ponto 80: "... Os centros de detenção deverão aproveitar todas as possibilidades e modalidades de assistência corretivas educativas, morais, espirituais e de outra índole que estejam disponíveis na comunidade e que sejam idôneas, em função das necessidades e dos problemas particulares dos jovens reclusos".

 

Para concluir, creio que o valor positivo intrínseco destas normas internacionais foi demonstrado claramente. A tarefa, agora, consiste em lutar, em todos os níveis, para que sejam implementadas. A responsabilidade dos organismos internacionais está fora de discussão. O ponto 10 dos considerandos das Regras Mínimas, por exemplo:

 

"Insta a todos os órgãos competentes do sistema das Nações Unidas, em particular do Unicef, as comissões regionais e os organismos especializados, os institutos das Nações Unidas para a prevenção do delito e o tratamento do delinqüente, e a todas as organizações intergovernamentais e não governamentais interessadas em colaborar com a Secretaria e adotar as medidas necessárias para garantir um esforço conciliador e firme, dentro de suas respectivas esferas de competência técnica, para a aplicação das Regras".

 

3.5 A modo de conclusão

 

Estou convencido de que os avanços na consciência social e jurídica, nacional e internacional, permitirão perceber, num futuro não muito longe, os absurdos e a ineficácia das práticas de privação de liberdade. A prisão ideal é só aquela que não existe.

 

Infelizmente, ainda faltam mecanismos de caráter regional que garantam e ajudem a tradução das disposições mais avançadas na matéria, no nível das legislações nacionais. Felizmente, estou convencido que no Brasil a nível normativo, o Estatuto da Criança e do Adolescente constitui uma excelente exceção.

 

Como latino-americano, vejo com esperança e, por que não dizê-lo, com inveja o processo brasileiro. Por tudo isso, a esperança contém duas aspirações concretas:

a) que, no Brasil, a realidade normativa se transforme em realidade social, e;

b) que esta realidade não seja restrita ao Brasil, sobretudo num período em que, além da infância, a integração latino-americana constitui também uma prioridade absoluta.

 

4 O novo Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil: da situação irregular à proteção integral (uma visão Latino-Americana)

 

O novo "Estatuto da Criança e do Adolescente" foi aprovado pela Lei federal 8.069, de 13 de julho de 1990, por uma quase completa unanimidade nas duas câmaras do Congresso Nacional. Esta lei, "que dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente" (art. 1°), tem uma história que está indissoluvelmente ligada ao seu conteúdo radicalmente novo.

 

Comparando o Estatuto com o resto das legislações de "menores" no contexto latino-americano, torna-se fácil perceber, rapidamente, algumas diferenças consideráveis.

 

O Estatuto consta de 267 artigos, sendo que os artigos 259 a 267 são suas disposições finais e transitórias. Esta lei que entrou em vigor em 14 de outubro de 1990 substituiu integralmente o velho Código de Menores de 1979 (Lei 6.697).

 

É evidente a clareza da ruptura do Estatuto com toda a tradição legislativa latino-americana sobre a matéria.

 

Pela primeira vez, uma construção do direito positivo, vinculada à infanto-adolescência, rompe explicitamente com a chamada doutrina da "situação irregular", substituindo-a pela doutrina da "proteção integral", também denominada de "Doutrina das Nações Unidas para a proteção dos direitos da infância". Esta doutrina, que consta de um enorme consenso no contexto internacional, está formada por quatro instrumentos básicos:

 

a) Convenção Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança;

b) Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras de Beijing);

c) Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil;

d) Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade.

 

Das várias inovações apresentadas pelo Estatuto, é interessante colocar em evidência as quatro que melhor o caracterizam:

 

— Municipalização da política de atendimento direto (art. 88, I).

— Eliminação de formas coativas de reclusão por motivos relativos ao desamparo social, através da eliminação da figura da situação irregular. O art. 106 dispõe de forma taxativa (garantista) os motivos possíveis para a privação da liberdade (flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial competente).

— Participação paritária e deliberativa governo/sociedade civil, estabelecida através da existência de "Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente" nos três níveis da organização política e administrativa do país: federal, estadual e municipal (art. 88, I).

—Hierarquização da função judicial, sendo transferido aos Conselhos Tutelares, com ação exclusiva na órbita municipal, tudo aquilo relativo à atenção de casos não vinculados ao âmbito da infração penal, nem a decisões relevantes possíveis de produzir alterações importantes na condição jurídica da criança ou do adolescente (arts. 136 e 137).

 

A ruptura substancial com a tradição "minorista" latino-americana é explicada a partir da dinâmica particular com que foi regida a relação de três atores fundamentais no Brasil da década de 80: os movimentos sociais, as políticas públicas e o mundo jurídico.

 

Num âmbito geral, o caso brasileiro, até a década de 80, não é muito diferente do que acontece no resto da América Latina. A partir da década de 40 começa o declínio definitivo das práticas de caridade e da privatização de assistência pública. Com maior ou menor ênfase, na década de 50 surge a ideologia e a prática das políticas públicas.

 

O Estado populista-distribucionista cobre, com relativa eficiência, o campo das políticas básicas. As omissões do sistema, que do ponto de vista quantitativo têm pouco peso relativo, são resolvidas através de intervenções supletivas de caráter judicial. Para isto, as legislações de menores, precedentes a este processo, outorgam poderes muito amplos aos juizes, poderes estes que são trazidos numa competência ilimitada penal-tutelar. Os movimentos sociais nesta área específica são ainda inexistentes.

 

É a partir da década de 60 que se assiste a um lento mas inexorável processo de crise, que provoca um forte impacto nas políticas distribucionistas. As políticas públicas diminuem real e ideologicamente, aumentando, assim, a transferência de resolução de deficiências para o mundo jurídico. Obviamente, os recursos materiais não são transferidos na mesma proporção.

 

Os juizes, forçados pela competência tutelar, transformam-se em ilusionistas assistenciais, estreitando, com isso, uma identificação com as políticas públicas em crise. A década de 70 aumenta estas tendências.

 

Esta é a hora do autoritarismo e das reformas legislativas parciais. Seu conteúdo não se encontra desvinculado de sua forma. Pequenas e seletas comissões de juristas ampliam os enunciados de caráter declarativo na área legislativa da proteção da infância, ao mesmo tempo em que ensaiam alquimias de redução da idade da imputabilidade penal, e similares, como forma de resposta propagandística à inquietação causada na "opinião pública" pelas manifestações das deficiências estruturais.

 

Como se sabe, os efeitos perversos das deficiências estruturais tendem a se manifestar em outro lugar que não naqueles onde se originam. O fio invisível que une a prisão à (não) escola talvez seja a mais patética das evidências.

 

Em suma, os movimentos sociais (mais comumente denominados organismos não governamentais) que lutam na área da infanto-adolescência crescem e se consolidam numa oposição total ao autoritarismo, assim como também àqueles setores que, objetivamente, identificam-se de alguma maneira com tais práticas: as políticas públicas e o mundo jurídico.

 

Os movimentos sociais não são convidados a participar dos processos de reformas legislativas, mas sua reação é a mais completa indiferença.

 

É a partir da década de 80 que se começa a difundir, no contexto latino-americano, o processo de discussão da "Convenção Internacional dos Direitos da Criança".

 

Pela primeira vez, os movimentos sociais concentram sua atenção, e depois seus esforços, num instrumento de caráter jurídico. A Convenção introduz, pela primeira vez, a dimensão jurídica dos problemas da infanto-adolescência na ação dos movimentos sociais. No Brasil, o movimento mais intenso deste processo coincide com a etapa de ampla discussão da convenção constituinte encarregada de redigir uma nova Constituição. Desta maneira, os movimentos sociais conseguem colocar na nova Constituição, aprovada em 5 de outubro de 1988, os princípios básicos contidos na Convenção Internacional, muito antes desta última ser aprovada em 20/11/89.

 

O art. 227 da nova Constituição introduz a categoria da prioridade absoluta no que concerne aos problemas da infância, estabelecendo:

 

"É dever da família, da sociedade e do Estado garantir à criança e ao adolescente, com prioridade absoluta, o direito à vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

 

"§ 1° O estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente com a participação de entidades não governamentais e obedecendo aos seguintes preceitos:

 

I — Utilização de uma porcentagem dos recursos públicos em programas de saúde na assistência materno-infantil;

II — Criação de programas de prevenção e atenção especializada para portadores de deficiências físicas ou mentais, assim como programas de integração social do adolescente portador de deficiência, através de sua preparação para o trabalho, a convivência e a facilidade de acesso aos bens e serviços, eliminando preconceitos e obstáculos arquitetônicos...".

 

Estando os movimentos sociais conscientes da importância da dimensão jurídica dos problemas, o passo seguinte se tornou quase óbvio. Era necessário converter os princípios gerais do art. 227 da Constituição em legislação nacional concreta. Um Fórum nacional para a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes (Fórum-DCA) traçou um plano estratégico de ação, no qual o primeiro lugar era ocupado pela tradução, em termos de direito positivo, das conquistas já alcançadas. Assim, foi determinada uma estratégia dividida em três etapas:

 

— mudanças no panorama legislativo;

— reordamento das instituições;

— melhorias nas formas de atendimento direto.

 

O processo de construção da nova legitimidade jurídica acabou sendo tão heterodoxo como seus resultados. A maioria dos expertos em direitos de "menores" não aceitou as regras do jogo propostas pelos movimentos sociais. Neste campo, os movimentos sociais no Brasil inverteram a ordem "natural" imperante na América Latina.

 

Um grupo de juristas com uma enorme sensibilidade social teve a correta intuição da necessidade de se adotar uma função inteligente e generosamente subordinada. Era necessário transformar, numa nova ordem jurídica, a rica experiência e prática dos movimentos sociais e do setor mais avançado das políticas públicas.

 

O Estatuto se tornou, assim, o instrumento mais adequado para propor a reprodução ampliada das experiências de maior êxito da década de 80, experiências estas que foram desenvolvidas à margem, contra ou na indiferença das leis vigentes. Não há nada mais errado do que acusar a nova lei de um caráter utópico. Não existe nada nela que não tenha sido ensaiado, com êxito, em algum momento, em algum lugar deste vasto Brasil.

Pelo contrário, não há nada que não tenha sido deixado de lado sem a prévia demonstração do concreto fracasso. Está claro que o caráter das transformações incluiu a mudança nos parâmetros utilizados para se decidir o fracasso ou o êxito das políticas e dos programas.

 

A melhoria nas condições de vida da infância substituiu as míopes e conjunturais políticas de controle social como indicador correto de êxito ou fracasso. A convivência, e não controle, constituiu a idéia básica para se garantir a paz social e a preservação dos direitos do conjunto da sociedade.

 

No contexto da doutrina preponderante, os fracassos dos programas de atenção direta constituíram "crônicas de mortes anunciadas" na geografia latino-americana.

 

Sob a ótica da doutrina da "situação irregular", a proteção da infância aparece subordinada à ideologia da defesa social.

 

No primeiro Encontro Internacional de Tribunais de Menores ocorrido em Paris em 1911, a Baronesa Carton de Wiart, expressava, nos seguintes termos, uma síntese perfeita:

 

"A liberdade vigiada deve-se revestir das características de uma sentença indeterminada. Um termo fixo constitui uma proteção temporária. Uma sentença indeterminada converte a proteção em algo de caráter permanente".

 

Em outras palavras, a partir do momento em que as políticas-programas de proteção estão subordinadas à lógica da defesa social, estas devem incluir ameaças concretas para dissuadir aos potenciais infratores da ordem social. Este enfoque dá por certo, no caso concreto da infanto-adolescência, a legitimidade e inevitabilidade das práticas de institucionalização (privação de liberdade), tanto em relação a situações de desamparo, como em relação ao rompimento das disposições penais. Mas para cumprir com as funções dissuasivas os programas políticas de institucionalização devem proporcionar à sua clientela institucional condições de vida que sejam, pelo menos, inferiores às do universo da população livre, potencialmente objeto das intervenções.

Numa situação estrutural de pobreza crítica, como a da América Latina, condições de vida institucionais inferiores à da população livre conspiram direta e abertamente contra até mesmo o mais ingênuo dos ideais de ressocialização. Condições de vida inferiores às da população livre, significa hoje, sofrimentos reais diametralmente opostos a qualquer política de preservação-proteção.

 

O espírito e a letra do Estatuto concentraram o desafio representado pelos fracassos reiterados das políticas-programas de proteção e prevenção. A nova lei admite a complexidade do problema, incorporando—sujeita aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar da pessoa em desenvolvimento (art. 121 a 125)—a privação da liberdade como o último recurso das medidas sócio-educativas (arts. 112 a 120).

 

É interessante observar a estrita enumeração de direitos individuais (arts. 106 a 109) e garantias processuais dados a quem for acusado de um ato infracional. Convém lembrar que o art. 1° do Estatuto "dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente", e que o art. 2° introduz, por seu lado, uma complexidade positiva geralmente ausente nas legislações latino-americanas: "Considera-se como criança, para efeitos desta lei, toda pessoa até doze anos de idade incompletos e como adolescente, aquela pessoa entre doze e dezoito anos de idade".

 

O ato infracional, com todas suas conseqüências, só pode ser cometido por adolescentes. Cometendo uma criança uma ação que se fosse cometida por um adolescente seria caracterizada como um ato infracional, o art. 105 dispõe que, neste caso, dever-se-iam aplicar as medidas dispostas no art. 101, que estabelece:

 

"Tendo sido verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98 (ameaça ou violação dos direitos previstos nesta lei), a autoridade competente poderá determinar, entre outras, as seguintes medidas:

 

I — Encaminhamento aos pais ou responsáveis, através de uma declaração de responsabilidade;

II — Orientação, apoio e acompanhamento temporário;

III — Matrícula e freqüência obrigatória em algum estabelecimento oficial de ensino fundamental;

IV — Introdução da criança ou do adolescente em algum programa oficial ou comunitário de auxílio à família;

V — Pedido de tratamento médico, psicológico e psiquiátrico, num sistema de internação em hospitais ou tratamento ambulatorial;

VI — Introdução num programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento para alcoólicos e toxicômanos;

VII — Abrigo em alguma entidade;

VIII — Colocação numa família substituta”.

 

"Parágrafo único. O abrigo é uma medida provisória e excepcional, utilizado como forma de transição para a colocação numa família substituta, não implicando, assim, em privação de liberdade".

 

Além disso, é importante ressaltar que a gestão de uma situação como a que foi anteriormente descrita, escapa da órbita judicial para ser conduzida pelos chamados Conselhos Tutelares.

 

Esta nova instituição, que libera os juizes de um acúmulo de tarefas específicas de política social, e que lhes permite concentrarem-se em suas funções específicas jurisdicionais, não se inibe de controlar as ações do Conselho Tutelar nas hipóteses previstas pela própria lei (art. 198, VII e parágrafo único). O parágrafo único outorga à agora denominada "Justiça da Infância e da Juventude", competência plena para:

 

a) ter conhecimento de pedidos de guarda e tutela;

b) ter conhecimento das ações de destituição do pátrio poder e da perda ou modificação da tutela ou da guarda;

c) suprir a capacidade ou o consentimento para o casamento;

d) ter conhecimento de pedidos em relação ao exercício de pátrio poder, com incompatibilidade paterna ou materna;

e) conceder a emancipação, nos termos da lei, quando faltem os pais;

f) designar um curador especial em casos de apresentação de queixas ou representação ou de outros procedimentos judiciais ou extrajudiciais, cujos interesses da criança ou do adolescente estejam presentes;

g) ter conhecimento de ato de pensão alimentícia;

h) determinar o cancelamento, a ratificação e o fornecimento das certidões de nascimento e de óbito.

 

De todas as modificações introduzidas pelo Estatuto, a mais interessante talvez seja aquela que cria os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente em nível federal, estadual e municipal. Estes órgãos paritários (50% governamental e 50% não governamental), deliberativos (com capacidade de tomar decisões e não apenas consultivos, como é a tradição) e controladores de ações em todos os níveis, constituem consagração jurídica da articulação dos esforços do Estado e da sociedade civil (art. 88).

 

Corresponde aos Conselhos dos Direitos — em seus diferentes níveis — fixar as diretrizes das políticas da área. Além de consagrar a articulação de esforços, os Conselhos representam a tentativa maior de racionalização e otimização do funcionamento dos programas de atendimento direto. De acordo com o disposto no art. 91, as entidades não governamentais só poderão funcionar depois de registradas no Conselho Municipal dos Direitos, o qual comunicará tal registro ao Conselho Tutelar e à autoridade judicial da respectiva localidade. Segundo o parágrafo único do art. 91, as entidades poderão ter seu registro negado pelo Conselho Municipal caso apresentem irregularidades, plano de trabalho incompatível com os princípios desta lei ou que tenham pessoas inidôneas em seus quadros. Mais que isso, os programas de abrigo deverão adotar (segundo o art. 92) aqueles princípios consoantes com a lei, tais como: preservação de vínculos familiares, participação na vida da comunidade, etc.

 

Como se pode ver, apenas um órgão cuja legitimidade emane do Estado e da sociedade civil possui faculdades reais para controlar, detalhadamente, a qualidade e a oportunidade de programas de atenção direta.

 

Mas, se os Conselhos dos Direitos têm a responsabilidade de traçar as diretrizes das políticas de atenção direta, cabe aos Conselhos Tutelares o tratamento de casos de crianças e adolescentes. Igualmente, os casos de infração penal atribuídos a adolescentes são reservados à autoridade judicial, nos termos da lei.

 

O Conselho Tutelar, de acordo com o art. 131, é o órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente definidos pelo Estatuto. A lei dispõe (art. 132) que em cada município deve ser criado, no mínimo, um Conselho Tutelar composto de cinco membros, eleitos por cidadãos da localidade para um mandato de três anos, com direito à reeleição.

 

Como já foi dito, as atribuições do Conselho Tutelar (art. 136) estão concentradas, basicamente, na atenção de casos onde os direitos da criança ou do adolescente estejam, concretamente, ameaçados ou violados (art. 98) ou na hipótese de uma criança cometer um ato que se fosse cometido por um adolescente seria considerado como um ato infracional (art. 105).

 

Por último, e como conseqüência da reafirmação do princípio da hierarquização da função judicial, o art. 137 dispõe que as decisões do Conselho Tutelar só poderão ser revistas pela autoridade se for a pedido de alguém que tenha legítimo interesse na matéria.

 

Outra importante instituição introduzida pelo Estatuto é a "Remissão". A Remissão consiste na autoridade que o representante do Ministério Público tem para evitar o processo antes de ter sido iniciado o procedimento judicial, considerando, para isso, as circunstâncias e conseqüências do fato, assim como a personalidade do adolescente e sua maior e menor participação no ato infracional (art. 126).

 

Na instituição da Remissão, encontra-se mais uma vez a hierarquização da função judicial, já que de acordo com o art. 128 "a medida aplicada por força da remissão poderá ser revista judicialmente, a qualquer momento, através de pedido expresso do adolescente ou de seu representante legal, ou do ministério público".

 

Desde 14 de outubro de 1990 o Estatuto está em vigor no Brasil. Sem dúvida, em termos de direito positivo, é a melhor interpretação da Doutrina das Nações Unidas para a Proteção Integral da Criança e do Adolescente. A tarefa, agora, para o governo e para o povo do Brasil, consiste em realizar o que começou como um projeto de lei e terminou se tornando um projeto da sociedade.

 

Os movimentos sociais e os representantes das políticas públicas do campo da infância estão, hoje, trabalhando simultaneamente na segunda e terceira etapas do plano estratégico originariamente formulado: reforma das instituições e melhoria nas formas de atenção direta.

 

Paralelamente à enorme mobilização que a criação dos Conselhos requer e implica, o conjunto das instituições envolvidas está sendo submetido a uma restruturação que não pode deixar de ser verdadeiramente profunda.

 

Sob uma perspectiva latino-americana e de uma situação de insatisfação com políticas traçadas do alto por "grupos de expertos", o caso brasileiro oferece um novo paradigma para enfocar os problemas da infanto-adolescência.

 

O desafio consiste não em copiar as disposições do Estatuto, senão em enriquecer a discussão a partir de uma experiência concreta. O Brasil necessita confrontar, imperiosamente, no plano latino-americano, sua proposta de uma concreta articulação jurídica de esforços governamentais e não governamentais. O resto da América Latina precisa começar a adequar suas legislações aos princípios da proteção integral, dos quais alguns instrumentos já foram convertidos em lei nacional.

 

Parece importante reproduzir aqui uma crítica feita, no contexto nacional, por alguns grupos, ao novo Estatuto. Essa crítica se refere ao caráter "altamente avançado" do instrumento para uma sociedade como a latino-americana.

 

Na sua época, as críticas ao caráter avançado das leis de abolição da escravidão concentravam seus esforços de argumentação numa direção parecida. É certo que a implementação de leis que implicam esforços de participação popular para a sua aplicação é mais difícil que as experiências de técnicas centralizadoras. As várias vias da integração latino-americana são um bom exemplo do dilema anterior.

Apesar disso, a experiência da construção e do fortalecimento da democracia através da implementação do Estatuto demonstra que vale a pena o esforço.

 

A nível latino-americano, o Brasil lança o desafio de uma utopia concreta. Mais que nunca, os dirigentes das políticas públicas e os movimentos sociais na área da infância-adolescência têm, agora, a palavra.

 

5 A doutrina de Proteção Integral da Infância das Nações Unidas

 

5.1 A respeito das origens da doutrina da situação irregular

5.2 O tratamento indiscriminado de ''menores" abandonados-delinqüentes: uma doutrina em situação irregular

5.3 Uma mudança fundamental de paradigma: a doutrina da proteção integral.

 

5.1 A respeito das origens da doutrina da situação irregular

 

Uma rigorosa análise histórica demonstra que a história da infância é a história de seu controle. Esta perspectiva parte da repulsa de se considerar a infância como uma categoria ontológica, sustentando, pelo contrário, que a mesma constitui o resultado de um complexo processo de construção social cujas origens podem ser encontradas por volta do século XVII. Em outras palavras, isso significa afirmar que a infância de hoje não foi notada como uma categoria diferenciada dos adultos, antes de tal período. Esta posição remonta ao excelente e já clássico trabalho de Philippe Aries (1985), que, utilizando uma fonte de documentos completamente heterodoxa—como a pintura da época—demonstra que antes do século XVII, depois de passado o período estrito de dependência materna, esse indivíduos pequenos se integram totalmente ao mundo dos adultos. As fontes documentais de Aries mostram aqueles que hoje consideramos natural e obviamente como crianças vestindo as mesmas roupas dos adultos e realizando suas mesmas atividades

 

Depois do século XVII, a utilização do retrato de família, como fonte específica, permite demonstrar uma clara inversão de tendência. Aqueles pequenos indivíduos aparecem, agora, com roupas diversas situados no centro do retrato familiar. Uma história crítica posterior permitirá perceber, com nitidez, o alto preço que a infância pagou por esta nova centralidade: perda total de autonomia de origem de uma cultura jurídico-social que vincula, indissoluvelmente, a oferta de "proteção" à prévia declaração de algum tipo de incapacidade. Parece possível identificar, aqui, a gênese e a pré-história da chamada doutrina da situação irregular.

 

Mas a construção social da categoria infância seria impossível de se entender sem mencionar a instituição que contribuiu decisivamente para a sua consolidação e reprodução ampliada: a escola. No entanto, nem todos os integrantes desta nova categoria têm acesso à instituição escola, e, inclusive, uma parte dos matriculados acabam expulsos da mesma por diversos motivos. Tal é a diferença sócio-cultural que se estabelece no interior do universo infância, entre aqueles que permanecem vinculados à instituição escola e aqueles que não têm acesso ou são expulsos dela, que o conceito genérico infância não poderá incluir a todos. Os excluídos se converterão em "menores".

 

Para a infância, a família e a escola cumprirão as funções de controle e socialização. Para os "menores", será necessária a criação de uma instância de controle sócio-penal: o tribunal de menores (que, não por acaso, recebe esta denominação desde suas origens).

 

Em outras oportunidades, já fiz referência aos momentos de criação, reprodução ampliada, e finalmente, exportação para a América Latina desta instituição de controle específico denominada tribunais de menores (E. Garcia Mendez, 1988 a 1990). Por outra parte, a análise específica deste processo permite afirmar que se tratou muito mais da introdução de uma cultura sócio-jurídica da "proteção-repressão" do que de uma implantação institucional sistemática. Isto significa que, ainda hoje, os tímidos enunciados de direitos nas legislações latino-americanas não encontram, salvo honrosa exceção, nem os mecanismos concretos de execução na prática e nem sequer os instrumentos técnico-processuais que permitam ações jurídicas perante a sua violação.

 

Imagine-se, em sentido contrário, por exemplo, os complexos mecanismos técnico-processuais, penais e administrativos à disposição daqueles portadores dos direitos que emanam de um instrumento jurídico como o cheque.

 

A estrutura jurídico-institucional do tribunal de menores corresponde ao processo sócio-cultural de construção da subcategoria específica "menores" dentro do universo global da infância. A criação do primeiro tribunal deste tipo em Ilinois, EUA, em 1899, constitui o ponto zero da história moderna do controle desta categoria vulnerável, considerada como objeto da "proteção-repressão". Entre o princípio deste século e a metade da década de 20, esta cultura institucional já havia sido instaurada em quase todos os países europeus. Entre 1919 (Argentina) e 1939 (Venezuela), este processo se repete no contexto latino-americano. No entanto, não corresponde à produção de leis de menores, a não ser numa mínima proporção, a criação das estruturas institucionais dispostas pelas próprias leis.

 

Existe, neste caso, a tentação de tratar de se explicar a falta de materialização das disposições legislativas apelando, basicamente, aos argumentos das deficiências orçamentárias ou à irrelevância das conseqüências reais da lei na América Latina, herdeira da cultura do "se respeita mas não se cumpre", produto do período da conquista e da colonização. As causas reais desta situação são, no entanto, muito mais complexas, remontando ao estado da correlação de forças entre os saberes-poderes "científicos" que disputavam, na época, o patrimônio sobre estes sujeitos vulneráveis: a corporação jurídica e a corporação médica.

 

Convém recordar, aqui, que a introdução desta idéia institucional no contexto latino-americano se realiza no marco de uma hegemonia do pensamento positivista de corte antropológico, cujo cientificismo aparecia diretamente vinculado à capacidade de verificação empírica dos seus enunciados.

 

Por isso, não é de se estranhar a existência de uma forte tendência à abordagem médica dos problemas sociais, onde estruturas de caráter jurídico são, no mínimo, irrelevantes.

 

Neste sentido, a opinião de um autor da época é nítida e altamente representativa ao afirmar: "Não havendo castigo para as crianças delinqüentes, senão ação protetora do Estado, que significado teriam os tribunais para menores? Seriam completamente inúteis. Se as cortes juvenis constituem um aperfeiçoamento das instituições jurídicas dos Estados Unidos e da Europa, nós (argentinos) podemos resolver nosso problema com um critério mais moderno e dar um passo ainda mais decisivo no sentido do progresso. Toda criança que tivesse cometido um ato anti-social seria levada diretamente ao Instituto de Observação e Classificação do Departamento Nacional da Criança e deste lugar, depois de um minucioso estudo médico-pedagógico, seria enviada ao estabelecimento mais adequado para seu tratamento médico-pedagógico . Para um critério estritamente científico, o propósito é proteger e não castigar. O tribunal, portanto, é desnecessário" (A. Foradori, 1938, p. 343).

 

Apesar desta afirmação "radical" a existência de leis de menores em todos os países latino-americanos, e em menor proporção de tribunais específicos, pode ser entendida como uma solução de compromisso entre o poder de ambas as corporações. Mais ainda, a prática real dos tribunais demonstra a funcionalidade, em termos de eficácia como instrumento de controle, deste pacto de cavalheiros realizado na década de 30 de nosso século.

 

Paradoxalmente, o caráter científico deste acordo descansa em um instrumento que por sua ambigüidade e absoluta falta de taxatividade torna-se a negação das próprias premissas que o próprio positivismo incorpora no seu discurso legitimador: a doutrina da situação irregular.

 

Somente a análise histórico-crítica permite mostrar os mecanismos que explicam a assombrosa sobrevivência de uma doutrina como a da situação irregular que, na prática, resultou na negação de todas e de cada uma de suas declaradas funções. O enfoque proposto remonta à necessidade de analisar sua metodologia e lugar institucional de produção, assim como sua capacidade de criar mitos e utopias negativas em função da manutenção de uma certa ordem e de sua autoconservação.

 

Parece-me audacioso, apesar de não desprovido de sentido, começar traçando um certo paralelismo entre a doutrina da situação irregular e alguns dos mitos—jamais realizados—que se encontram na base da doutrina do chamado socialismo real.

 

Em primeiro lugar e, ao contrário do que sucede em outras áreas do direito, onde o grosso da produção teórica é realizada por indivíduos que não pertencem ao sistema (judicial) encarregado de sua aplicação, um levantamento da literatura existente no contexto latino-americano demonstra que os textos "clássicos" do direito de menores são produzidos, na sua maioria, por pessoas que têm ou tiveram responsabilidades institucionais diretas em sua aplicação.

 

Além disso, parece-me oportuno lembrar aqui que a doutrina da situação irregular aparece praticamente hegemônica na América Latina até bem avançados os anos 80.

 

Em segundo lugar, esta doutrina também mostrou uma eficiência na criação do mito relativo a uma excelência em seus ideais, desvirtuados pela prática. Uma excelente legislação de menores latino-americana, mas que não se aplica, constituía até pouco tempo atrás uma idéia hegemônica fundamental do sentido jurídico e "comum" no nosso continente.

 

Em terceiro lugar, não há dúvidas de que os eufemismos e os "como se" e, por último, o desentendimento das conseqüências reais de sua aplicação são as bases que ajudam a entender sua sobrevivência, apesar do caráter fisiológico do fracasso dos seus declarados objetivos. A miséria dos programas de ressocialização, o tratamento indiscriminado de menores "supostamente" abandonados e "supostamente" delinqüentes e os milhares de jovens confinados em instituições penitenciárias para adultos constituem, apenas, a ponta do "iceberg" de um imenso processo de mistificação.

 

Em quarto lugar, convém perguntar se não são outras funções, e não aquelas declaradas, as que ajudam a manter uma doutrina que a consciência sócio-jurídica nacional e internacional contribuiu decisivamente, nos últimos tempos, para colocar em situação irregular. O muro de Berlim não foi o primeiro e, certamente, tampouco será o último a cair.

 

5.2 O tratamento indiscriminado de "menores" abandonados-delinqüentes: uma doutrina em situação irregular

 

A análise das funções concretas da doutrina da situação irregular remonta às vicissitudes das políticas sociais básicas no contexto latino-americano. A essência desta doutrina se resume na criação de um marco jurídico que legitime uma intervenção estatal discricionária sobre esta parte do produto residual da categoria infância, constituída pelo mundo dos "menores". A indistinção entre abandonados e delinqüentes é a pedra angular deste magma jurídico. Neste sentido, a ampliação do uso da doutrina da situação irregular resulta inversamente proporcional à expansão e qualidade das políticas sociais básicas.

 

Em termos gerais para todo o contexto latino-americano, as deficiências estruturais provocadas pela crise dos anos 30, somadas ao massivo processo de imigração, determinaram um crescimento significativo do mundo dos "menores". A falta de recursos, ou se preferem, a falta de uma vontade política que permitisse priorizar aquelas categorias vulneráveis mais afetadas pela crise, motivaram a "judicialização" deste problema. A doutrina da situação irregular constituiu o apoio jurídico ideal para legitimar as prioridades estabelecidas.

 

As políticas distribucionistas ensaiadas, com maior ou menor intensidade, a partir da década de 50, refletem-se positivamente no campo das políticas sociais básicas dedicadas à infância. Os "menores" diminuem na América Latina, e com eles, a incidência da aplicação da doutrina da situação irregular.

 

Estas transformações, no entanto, não afetam a essência da cultura das intervenções. Os "menores" se convertem de objeto do direito a objeto das políticas públicas. A prova está no fato de que o panorama legislativo permanece substancialmente sem modificações. O caráter ambíguo e indeterminado das disposições jurídicas permite sua consolidação como compartimento estanque e como variável independente das políticas sociais.

 

Com uma mudança de orientação na corporação médica, substituída pelos planificadores sociais, o velho pacto de cavalheiros é recriado sobre bases que incorporam a modernidade sociológica das tecnologias institucionais.

Abrangendo uma onímoda competência penal-tutelar, as políticas distribucionistas dos anos 50 e seus efeitos, que se expandem até bem avançados os anos 60, permitem ao novo-velho direito de "menores" desenvolver-se mais intensamente na face penal, deslocando o poso de sua legitimidade do individual antropológico ao estrutural sociológico.

 

Os desajustes emocionais, os desvios em relação a uma família ideal e abstrata e as novas teorias das subculturas criminais substituem, nas recorrentes práticas de institucionalização-segregação privadas do menor esboço de garantias, as concepções antropológico-positivistas de degeneração das raças, baseadas em fatores hereditários. A declaração de abandono material ou moral, faculdade discricionária do juiz, constitui a coluna vertebral da doutrina da situação irregular. Também aqui, nada mudou.

 

O tristemente célebre art. 21 da Lei argentina 10.903 (Lei Agote) demonstrou um assombroso vigor legislativo e uma enorme capacidade de penetração em todo o continente. Este artigo estabelecia: "Em conseqüência dos artigos anteriores, será entendido por abandono material ou moral ou perigo moral, a incitação pelos pais, tutores ou guardiões, à execução pelo menor de atos prejudiciais à sua saúde física ou moral, a mendicância ou a vagabundagem por parte do menor, sua freqüência em lugares imorais ou de jogo, ou com ladrões ou gente viciada ou de mal-viver, ou que não tendo completado os 18 anos de idade venda jornais, publicações ou objetos de qualquer natureza que seja, nas ruas ou lugares públicos ou quando nestes lugares exerçam ofícios longe da vigilância de seus pais ou guardiões ou quando sejam ocupados em trabalhos ou empregos prejudiciais à moral ou à saúde".

 

Mas a própria discricionariedade ilimitada desta lei, mostrou-se em relação àqueles casos em que a suspensão definitiva impedia que se continuasse legitimizando a ação estatal através do sistema judicial; por isso, as leis de reformas sucessivas que tratam do regime penal da menoridade (Lei 22.278) se ocupam de especificar que: "Qualquer que seja o resultado da causa, se pelos estudos realizados aparecer que o menor se encontra abandonado, com falta de assistência, em perigo material ou moral ou apresenta problemas de conduta, o juiz disporá definitivamente do mesmo ex-offício, prévia audiência dos pais, tutor ou guardião".

 

É óbvio, nesta altura, que o exemplo argentino não constitui, de modo algum, um caso isolado. Assim, por exemplo, o art. 32 da lei chilena de menores 16.618, de 1966 (atualmente em vigor), dispõe que: "Antes de se aplicar ao menor de dezoito anos algumas das medidas contempladas na presente lei, por um ato que cometido por um maior constituiria um delito, o juiz deverá estabelecer a circunstância de ter sido cometido tal ato e a participação que o menor tenha tido. No entanto, ainda que se chegue à conclusão de que o ato não foi cometido ou que o menor não teve nenhuma participação nele, o juiz poderá aplicar as medidas de proteção que esta lei contempla, sempre que o menor se encontre em perigo material ou moral".

 

A lenta, mas irreversível, crise fiscal do Estado latino-americano, que se desenvolve a partir do fim da década de 60, novamente coloca em discussão, com uma insólita crueza, os velhos problemas que deram origem a esta história.

 

A década de 70 aparece marcada por um autoritarismo que não pode deixar de repercutir no campo das políticas sociais básicas. A contração do gasto social público, especialmente na área de seus setores mais vulneráveis, determina novamente um crescimento desmedido do universo dos "menores".

 

Na década de 80, estas tendências crescem e se tornam ainda mais agudas. No entanto, o surgimento de movimentos sociais que começam a considerar a infância como um potencial sujeito de direitos impedem a concretude de um novo pacto de corporações. O mundo jurídico se isola totalmente dos movimentos sociais e, de forma crescente, do setor mais avançado das políticas públicas. A essência da doutrina da situação irregular se resume em operações de alquimia jurídica, lideradas por grupos de experts que manipulam, para cima ou para baixo, os duvidosos critérios da imputabilidade-inimputabilidade.

 

A crise dos anos 80 se manifesta com ferocidade, nesta zona da política social na figura simbólica da criança da/na rua. Sua melhor definição, como uma ilha rodeada de omissões por todos aqueles que de uma forma ou de outra possuem alguma responsabilidade institucional a respeito, ajuda a entender melhor as vicissitudes da doutrina da situação irregular. Seu fracasso e crise definitiva não impedem, entretanto, que esta se manifeste como um castelo de cartas que, desfazendo-se em mil pedaços, volta a reconstruir-se cada vez, apoiada em omissões mais flagrantes e eufemismos mais frágeis. As disposições jurídicas da intervenção policial para realizar o trabalho sujo das (não) políticas sociais constitui a mais patética das evidências. A propriedade de ave Phoenix da doutrina da situação irregular em corpos legislativos latino-americanos de recente aprovação e, inclusive, impregnados das melhores intenções, requer uma análise e uma explicação.

 

Em primeiro lugar, esta sobrevivência remonta ao caráter hegemônico de uma cultura que não quis, não pode ou não soube pensar na proteção de seus componentes mais vulneráveis fora dos marcos de uma prévia declaração de algum tipo de institucionalização estigmatizante. Em segundo lugar, sua atual persistência se relaciona a uma certa incapacidade dos movimentos sociais para perceber a importância e a especificidade do vínculo existente entre a condição material e jurídica da infância. Em terceiro lugar, sua capacidade como instrumento de controle e, ainda mais, como sucedâneo ideológico da retração de gasto público a converte em duplamente funcional para aqueles projetos que privilegiam, objetivamente, a concentração da renda e, por último, a instauração de um "salve-se quem puder" do darwinismo social.

 

Mas nem tudo "cheira a podre na Dinamarca". Nos últimos anos, uma radical inversão de paradigma começa a se instalar na consciência jurídica e social. A Convenção Internacional dos direitos da Criança constitui, ao mesmo tempo, a evidência e o motor destas transformações.

 

5.3 Uma mudança fundamental de paradigma: a doutrina da proteção integral

 

Com o termo "Doutrina da Proteção Integral dos Direitos da Infância" se faz referência a um conjunto de instrumentos jurídicos de caráter internacional, que expressam um salto qualitativo fundamental na consideração social da infância. Reconhecendo como antecedente direto a "Declaração Universal dos Direitos da Criança", esta doutrina aparece representada por quatro instrumentos básicos:

 

1. a Convenção Internacional dos Direitos da Criança

2. as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil (Regras de Beijing);

3. as Regras Mínimas das Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade

4. as Diretrizes das Nações Unidas para Administração da Justiça Juvenil (Diretrizes de Riad).

 

Não há dúvidas de que, apesar de não ser o primeiro em termos cronológicos, a Convenção constitui o instrumento mais importante na medida em que proporciona o marco geral de interpretação de todo o resto desta normativa. Mas não são apenas razões de caráter estritamente jurídico que explicam a importância da Convenção. Além disso, foi precisamente este o instrumento que teve o mérito de chamar a atenção, tanto dos movimentos sociais quanto do setor mais avançado das políticas públicas, sobre a importância da dimensão jurídica no processo de luta para melhorar as condições de vida da infância.

 

A Convenção constitui, sem dúvida alguma, uma mudança fundamental determinando uma percepção radicalmente nova da condição da infância.

 

Do menor, como objeto da compaixão-repressão, à infância-adolescência, como sujeito pleno de direitos, é a expressão que melhor poderia sintetizar suas transformações. A Convenção constitui um instrumento jurídico para o conjunto do universo infância e não somente para o menor abandonado-delinqüente, como resultava da letra e, mais ainda, da práxis das legislações inspiradas na doutrina da situação irregular.

 

É necessário que se diga claramente, as legislações de menores na América Latina são absolutamente incompatíveis com a letra e o espírito da Convenção Internacional (exceção feita à nova lei brasileira). Neste sentido, o processo de ratificações, que progressivamente está convertendo a Convenção em lei nacional de um número crescente de Estados latino-americanos, estabelece uma situação de dualidade jurídica que se torna imperioso resolver.

 

Convém recordar que a adequação da legislação nacional pode adquirir duas modalidades da natureza radicalmente diversa:

 

1) uma adequação formal-eufemística, ou

2) uma adequação real, que signifique a introdução efetiva daqueles princípios gerais do direito que a Convenção incorpora de forma explícita, com todas as conseqüências jurídicas e de política social que isto implica.

 

O primeiro tipo de adequação faz referência à possibilidade de recriar, uma vez mais, o velho pacto de cavalheiros que permita salvar as aparências no seio da comunidade internacional. A tecnologia jurídica requerida neste caso resulta relativamente simples; trata-se de incorporar uma série de direitos em termos de enunciados gerais, "esquecendo-se" de introduzir as técnicas que garantam, senão o seu cumprimento, pelo menos uma ação jurídica concreta perante a sua violação. Neste campo, foram os eufemismos e as "boas intenções" que permitiram manter, por décadas, uma visão idealizada das consideradas "melhores legislações de menores". O "Código del Nino" do Uruguai constitui o melhor dos exemplos. Durante anos, a ausência de um paradigma como aquele oferecido pela Convenção permitiu que aquele instrumento jurídico fosse apresentado como um modelo —  desvirtuado na prática — para a América Latina.

 

Foi apenas recentemente que o eminente jurista uruguaio, Dr. Rodolfo Schurmann Pacheco, afirmou com clareza que o "Código del Nino" do Uruguai, aprovado no início de 1934, poderia, sem dúvida alguma, ter sido declarado inconstitucional já no mesmo ano de sua promulgação. Este código viola flagrantemente a própria constituição uruguaia, também de 1934, que dispõe, taxativamente, sobre o princípio de igualdade perante a lei (R. Schurmann Pacheco, 1991).

 

De um modo quase geral, e como resultado da incorporação dos princípios básicos do direito iluminista, produto da Revolução Francesa, quase todas as constituições latino-americanas incluem o preceito relativo de que ninguém poderá ser detido se não for em flagrante delito ou por ordem escrita da autoridade competente. Com a única exceção da lei brasileira nenhuma legislação de "menores" latino-americana incorpora este princípio básico nas normas específicas.

 

Torna-se óbvio que todo o processo de adequação da legislação nacional aos princípios da Convenção deverá começar pela incorporação dos princípios constitucionais, que são lei suprema da nação.

 

Mas, inclusive, além dos princípios constitucionais, a doutrina da proteção integral estabelece princípios básicos do direito que deverão ser levados em conta, rigorosamente, no momento de adequação da legislação nacional.

 

Por este motivo, resulta altamente conveniente apresentar um quadro das disposições normativas da Convenção, e de outros instrumentos da doutrina da proteção integral, para se notar, com maior clareza, a direção que o processo de adaptação deve assumir.

 

Este exercício de comparação inclui o texto da nova lei brasileira para demonstrar sua existência real numa normativa de caráter nacional.

 

Princípios jurídicos básicos substanciais e processuais, convenção

internacional, convenção de Beijingeca, princípio de humanidade

 

Baseia-se no princípio da responsabilidade social do Estado e na obrigação de assistência para o processo de ressocialização. Deriva-se daqui a proibição de penas cruéis e degradantes.

 

Art. 37 inc. a, inc. c

Art. 1 1.4.

Arts. 15, 16, 17, 18, 126

 

Princípio de legalidade

Traduzida na proibição de existência de delito e pena sem a pré-existência de lei anterior (nullum crimen. nulla poena sine lege).

 

Art. 37 inc. b

Art. 40 inc. 2.a

Art. 2  2.2b

Art. 17, 17.1.b

Arts. 110, 108, 103

 

Princípio de jurisdicionalidade

Pressupõe a existência dos requisitos essenciais da jurisdição: juiz natural, independência e imparcialidade de órgão.

Art. 37 inc. d

Art. 40 inc. 2.III

Art. 40 inc. 2

Art. 40 inc. 3.b

Art. 14 14.1

Art. 111

 

Princípio do contraditório

Pressupõe uma clara definição dos papéis processuais (Juiz, defensor, Ministério Público).Art. 40 inc. 2.b.II

Art. 40 inc. 2.b.III

Art. 40 inc. 2.b.IV

Art. 40 inc. 2.b.VI

Art. 7 7.1

Arts. 110, 111

 

Princípio da inviolabilidade da defesa

Pressupõe a presença de defensor técnico em todos os atos processuais desde o momento em que se imputa o cometimento de uma infração.

Art. 37 inc. d

Art. 40 inc. 3

Art. 7 7.1

Art. 15 15.1

Arts. 111, III 124, III 206

 

Princípio de impugnação

Pressupõe a existência da possibilidade de se recorrer perante um órgão superior.

Art. 37 inc. d

Art. 40 inc. 2.b.V

Art. 7 7.1

Art. 198, 137

 

Princípio da legalidade do procedimento

Pressupõe que o tipo de procedimento deve estar fixado por lei e não pode ficar sujeito à discricionalidade do órgão jurisdicional.

Art. 40 inc. 2.b.III

Art. 17 17.4

Art. 110

 

 

Princípio da publicidade do processo

Faz referência à possibilidade que os sujeitos processuais devem possuir, de ter acesso às atas do processo. Ao mesmo tempo, refere-se à conveniência de se proteger a identidade da criança e do adolescente como forma de evitar a estigmatização.

Art. 40 inc. 2.b.VII

Art. 8 8.1  8.2

Art. 143

 

Parece não haver dúvidas no sentido de que o Estatuto da Criança e do Adolescente do Brasil representa uma adequação substancial à doutrina da proteção integral chegando, inclusive, a uma superação positiva de seus princípios básicos em muitos aspectos. Tal superação se refere, especificamente, tanto à inclusão minuciosa de garantias substanciais e processuais destinadas a assegurar os direitos consagrados, quanto à institucionalização da participação comunitária no controle da elaboração e execução das políticas públicas.

 

A evolução concreta da consciência social e a possibilidade de se realizar uma história dos direitos humanos demonstram, claramente, que estes últimos não pertencem ao reino da ontologia. Os direitos humanos constituem, pelo contrário, o resultado de um complexo processo de lutas nos campos econômico, político, cultural e jurídico. A doutrina da proteção integral reflete, em parte, esta consciência e, em parte, apresenta-se como um programa de ação futura.

 

Seria tolo e arrogante afirmar que o Estatuto da Criança e do Adolescente do Brasil não é um instrumento sujeito a melhorias. No entanto, seria muito mais tolo e arrogante ignorar as fontes reais desta possível superação positiva. A Constituição Federal, a Convenção Internacional e as experiências concretas da sociedade civil marcam o único caminho de sua futura evolução.

 

Numa recente publicação, produto de um seminário latino-americano pelos direitos da infância, os responsáveis das cinco instituições organizadoras (Unicri, Unicef, llanud, IIN e DNI) afirmavam: "Resulta paradoxal, e é de se esperar que positivamente premonitório, que no contexto da 'década perdida' a comunidade internacional tenha sido capaz de superar conflitos de diversas naturezas para construir uma Carta Magna dos direitos da infância. Um instrumento que se torna imprescindível colocar e que não constitui nenhuma retórica vazia, nem uma vara mágica para se enfrentar graves problemas estruturais. A Convenção constitui, isso sim, um poderoso instrumento a partir do qual e com o qual é possível criar as condições políticas, jurídicas e culturais para que a década de 90 se transforme numa década ganha para a infância. Para isto, a tarefa consiste em articular e traduzir. Articular os esforços da sociedade civil e dos organismos governamentais e traduzir as diretrizes da Convenção Internacional em corpos jurídicos e políticas sociais no plano nacional. A melhoria das condições de vida da infância latino-americana requer reformas institucionais e mudanças legislativas.

 

Converter o tema da infância em prioridade absoluta constitui o pré-requisito político-cultural destas transformações...''

 

Duas conclusões imediatas podem ser deduzidas desta última afirmação. Em primeiro lugar, que a percepção da infância como sujeito pleno de direitos constitui um processo de caráter irreversível no seio da comunidade internacional e, em segundo lugar, que o continente latino-americano precisa hoje, mais que nunca, de utopias positivas concretas para elaborar um futuro melhor.

 

Por isso, parece-me imperioso concluir estas reflexões tornando minhas as palavras de um cidadão de nossa América (Gabriel García Marquez): "...Sentimo-nos com o direito de acreditar que ainda não é muito tarde para se empreender a criação da utopia contrária. Uma nova e arrasadora utopia da vida, onde ninguém possa decidir pelo outro até mesmo a forma de morrer, onde, realmente, o amor seja certo e a felicidade seja possível, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, por fim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra''.

 

6 Das infâncias e das violências

6.1 0 estado do problema

6.2 Em torno do conceito de violência

6 3 Violência e realidade social

6.4 0 objeto da violência

6. 5 Que fazer?

 

6.1 O estado do problema

 

A compreensão do tema da violência contra crianças e adolescentes na atual conjuntura não está isenta de riscos e problemas, alguns dos quais poderiam e deveriam ser evitados.

 

Sob a perspectiva da indignação, a denúncia da situação aparece de forma imediata, como uma tentação inevitável. No entanto, é possível perguntar se a denúncia desprovida de uma análise mais detalhada resulta no instrumento mais eficaz para a redução e a eliminação de tais práticas.

 

Esta argumentação parte da suposição de que o universo portador da indignação não é ainda suficientemente amplo para identificar a existência deste tipo de violência entre as causas que travam o desenvolvimento social.

 

As manifestações isoladas a favor ou em relação à inevitabilidade do fenômeno—o que na realidade constitui um eufemismo para sua legitimidade—constituem um claro indicador de uma certa aceitação social que se coloca na base do problema.

 

A apresentação das formas mais cruéis e manifestas de violência como "inerentes à estrutura", o que não é o mesmo que afirmar sua vinculação com a estrutura, constitui uma das formas mais sutis de legitimidade. Considerando esta situação, qualquer estratégia de redução e eliminação da violência supõe uma soma de indignação mais compreensão das causas reais que lhe dão origem.

 

Determinar a dimensão quantitativa e qualitativa do fenômeno é condição necessária, ainda que insuficiente, para transcender a descrição ingênua e/ou anedótica. Torna-se imperativo, portanto, organizar e dar um rumo definido à indignação para permitir seu crescimento e sua eficácia.

 

No entanto para determinar a dimensão quantitativa do "extermínio" de crianças e adolescentes é preciso enfrentar um aspecto que, paradoxalmente, até hoje foi evitado ou considerado como óbvio. Estou referindo-me a uma caracterização mais precisa do conceito de extermínio. Conceito cujo conteúdo tem sido formulado pelos meios de comunicação, provocando inúmeras interpretações paralelas e contraditórias, que objetivamente têm tido como resultado a elevação ou diminuição do fenômeno segundo interesses facilmente manipuláveis. Neste sentido, resulta óbvio que a centralização da informação, estratégia fundamental de qualquer plano de combate a este tipo de violência, somente será possível se organizada em torno de um critério único facilmente identificável. Proponho, em conseqüência, designar com a expressão "extermínio" aos homicídios dolosos contra menores de 18 anos, praticados por motivos extrafamiliares com a pretensão de impor uma "ordem" extralegal e com alguma característica objetiva ou subjetiva de sistematicidade.

 

Parece importante agora se deter na discussão conceitual da violência. Em outras palavras, isto pressupõe a firme convicção de analisar a violência como requisito prévio ao combate à violência.

 

6.2 Em torno do conceito de violência

 

O conceito de violência está longe de ser unívoco. Pelo contrário, está carregado de significantes emotivos que o legitimam ou condenam, mas que impedem sua compreensão e explicação. No campo do "sentido comum", a violência aparece quase sempre como sinônimo do conceito de agressão. Por isso, parece importante começar por estabelecer uma distinção entre ambos os conceitos, na medida em que o conceito de agressão—muito mais relacionado às ciências naturais—não supõe, necessariamente, uma relação social. No contexto desta análise, a violência pressupõe uma relação social.

 

Esta primeira distinção resolve apenas negativamente alguns dos problemas já indicados. É preciso, portanto, estabelecer uma definição positiva que ajude na explicação do fenômeno.

 

Das inumeráveis definições existentes, aquela formulada por Johan Galtung (1975) parece a mais pertinente e adequada. Para este autor, estamos na presença de violência naquelas situações onde o desenvolvimento efetivo de uma pessoa, em termos físicos e espirituais, resulta inferior a seu possível desenvolvimento potencial. Deste modo, a violência é definida como a causa da diferença entre realidade e potencialidade. Trata-se de uma definição não-ideológica, suficientemente abrangente para incluir suas variáveis mais importantes e, ao mesmo tempo, suficientemente específica para oferecer as bases mínimas para uma operacionalização concreta.

 

Utilizando a definição de Galtung, é possível afirmar, por exemplo, que em uma determinada época onde existam os meios potenciais para se combater uma certa enfermidade ou para se alimentar uma população, a morte por inanição ou por uma enfermidade evitável representa um claro indicador de violência.

 

Esta definição não impede que se avance para posteriores especificações, tais como a violência direta e indireta, física e psíquica, manifesta e latente (é óbvio que os tipos de violência direta e física estão estreitamente relacionados com o conceito de violência pessoal). Com exceção da violência latente, as demais têm conceitos auto-explicáveis. A violência latente, por outro lado, caracteriza-se por um tamanho grau de instabilidade na situação atual que é capaz de produzir, imediatamente, uma diminuição do desenvolvimento das atuais potencialidades.

 

Neste contexto conceitual, é possível identificar uma situação de violência estrutural como aquela em que as causas da diferença entre realidade e potencialidade aparecem fazendo parte da fisiologia, e não da patologia do funcionamento do sistema social.

 

6.3 Violência e realidade social

 

Partindo-se da recusa a uma concepção ontológica da realidade, ou seja, partindo-se do fato de que a realidade é resultado de um processo socialmente construído, é possível afirmar que não existem ações que, intrinsecamente, possam ser definidas como violentas.

 

Tanto a violência como seu oposto, a paz, resultam imediatamente dependentes de um consenso socialmente construído. Das múltiplas interações possíveis no universo social, somente uma parte delas é construída-percebida como violenta. Uma segunda seleção tem lugar, por sua vez, para construir uma parte desta violência como violência criminal. Assim, se o agente da primeira seleção é formado pelos mecanismos gerais de poder e socialização, o agente específico da segunda seleção resulta do sistema da justiça penal (entendido este no sentido mais amplo possível: normas jurídicas, corpos de segurança, tribunais, instituições penitenciárias, etc.). Sob esta perspectiva, parece óbvio que violência e violência criminal são construções sociais, cujo maior ou menor grau de arbitrariedade está diretamente relacionado aos conceitos de consenso e racionalidade. Nesta linha de raciocínio, é possível afirmar que a existência da violência aparece diretamente relacionada a sua visibilidade e esta última, por sua vez, à qualidade do objeto da mesma.

 

Não é necessária uma análise profunda para compreender o caráter muito mais visível da violência pessoal, comparando-a com a violência de caráter estrutural. Tais tipos de violência, independentemente da existência de uma relação causal entre ambas, podem ocorrer sem que exista uma relação imediatamente direta entre elas. Em verdade, e tal e qual afirma Galtung, é possível imaginar a presença de violência pessoal em casos onde esta esteja ausente da estrutura, da mesma maneira que é possível considerar a hipótese da existência de violência estrutural em condições onde não se registram casos de violência pessoal. No entanto, isto não impede afirmar que a violência estrutural tem sua origem em violências de caráter pessoal, do mesmo modo que um indivíduo que exerce uma violência de tipo pessoal é o resultado de um processo de socialização em condições de violência estrutural.

 

A complexidade deste problema se expande posteriormente na medida em que é possível registrar a existência de violências pessoais que respondem e são funcionais a expectativas fortemente arraigadas na estrutura.

 

6.4 O objeto da violência

 

O tipo de percepção social do objeto da violência constitui uma variável fundamental para explicar a reação social que esta provoca. Neste sentido, somente uma análise ingênua, mal intencionada e não histórica se atreveria a afirmar a existência de uma percepção social homogênea que abarcasse o ser humano em geral. Este enfoque torna-se coerente com a perspectiva construtivista adotada.

 

Aceitando-se a tese de Philippe Aries (1985), é preciso aceitar que a infância, tal qual é entendida hoje, resulta inexistente antes do século XVI. Obviamente, isto não significa negar a existência biológica destes indivíduos. Significa, em realidade, reconhecer que antes do século XVI, a consciência social não admite a existência autônoma da infância como uma categoria diferenciada do gênero humano. Passado o estrito período de dependência física da mãe, estes indivíduos se incorporavam plenamente ao mundo dos adultos.

 

Utilizando uma fonte tão heterodoxa como a arte da época, Philippe Aries demonstra a existência da infância como categoria autônoma diferenciada somente depois de um processo, que pode ser caracterizado como de revolução nos sentimentos, ocorrido entre os séculos XVI e XVII. O retrato de família, predominante na arte do século XVII, mostra estes sujeitos, antes inexistentes, formando parte do centro do mundo familiar. A história posterior permitirá afirmar que a infância pagará um preço muito alto por esta nova centralidade social: a incapacidade plena (social e, mais tarde, também jurídica) e, no melhor dos casos, converter-se em objeto da proteção-repressão. Estas são suas características mais significativas.

 

No entanto, a análise dos mecanismos que confluem no processo de construção social da infância não estaria completa se deixássemos de lado a consideração da instituição que colabora decisivamente na homogeneização e reprodução ampliada da categoria infância: a escola. Sua função de agente socializador fundamental estabelece, pela sua presença ou ausência, um corte decisivo no interior do universo infância. Por motivos que não cabe aqui explicar, em algumas sociedades baseadas em mecanismos de exclusão, uma parte considerável da infância não terá acesso à instituição escola, ou mesmo tendo, não disporá dos recursos (entendendo-se este conceito num sentido mais amplo possível, não restrito aos aspectos meramente materiais) suficientes para nela permanecer.

 

A diferença estabelecida entre a infância-escola e a infância-não-escola é de tal magnitude que um único conceito não poderá abarcá-las: os excluídos se converterão em "menores".

 

Para a infância-escola que quase sempre coincide com a infância-família, estas duas instituições cumprirão as funções imprescindíveis de controle-socialização. Para os "menores", será necessário criar uma estrutura diferenciada de controle social: o tribunal de menores (que recebe esta denominação não por acaso).

Na medida em que o vínculo estabelecido entre o processo de exclusão e os mecanismos específicos de controle não é transparente, torna-se necessário fazer uma análise histórico-crítica para revelar tal relação.

 

O I Congresso Internacional de Tribunais de Menores, realizado em Paris em 191 1, oferece algumas indicações preciosas para este tipo de análise. Destinado a legitimar e a estender esta nova instituição, o Congresso de Paris fixa as bases de uma cultura da proteção-repressão e do menor objeto de compaixão que chegará hegemonicamente até nossos dias e que, pela primeira vez, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989) e, mais especificamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) no contexto latino-americano, tentarão desafiar.

 

O delegado norte-americano no Congresso, Ch. Henderson, verdadeira estrela do mesmo, por representar o país possuidor do maior número de realizações concretas neste campo, coloca a questão em termos tais que dispensa interpretações posteriores. Explicando perante o plenário do Congresso os motivos que originaram a criação destes tribunais, afirma:

 

"O movimento democrático deste século provocou uma aproximação inédita das classes sociais. Em conseqüência, são muitas as pessoas que compreendem os perigos que correm as famílias trabalhadoras e pobres. Esta é outra influência que favorece uma modificação do direito penal e processual" (Atas, 1912).

 

Além das funções declaradas destes tribunais, não fica difícil perceber as diferenças em seu funcionamento real, caso se trate de sociedades onde os mecanismos de exclusão estejam mais ou menos arraigados e mais ou menos espalhados no conjunto da estrutura; em outras palavras, de acordo com o grau de violência estrutural presente na sociedade. Deste modo, o grau de cobertura real das políticas sociais básicas destinadas à infância determinará, em boa medida, a extensão e a qualidade do funcionamento real desta instância diferenciada de controle.

 

É óbvio que não se necessita de informação estatística detalhada para afirmar que, tendencialmente, os mecanismos específicos de controle da infância em sociedades de caráter desenvolvido se concentram muito mais naquelas situações que poderíamos denominar de individualidades patológicas. Pelo contrário, nas nossas sociedades latino-americanas, uma parte considerável das deficiências quantitativas e qualitativas das políticas sociais básicas procurou-se resolver através da "judicialização" do problema do "menor".

 

No entanto, apesar destas diferenças de não pouca importância, não é possível afirmar que a violência contra crianças e adolescentes seja patrimônio exclusivo das sociedades menos desenvolvidas. O que se pode afirmar, sem dúvida, é a existência de um vínculo mais ou menos direto entre o tipo de sociedade e a visibilidade e qualidade da violência.

 

Neste contexto, parece importante apresentar a hipótese que identifica a existência de um vínculo forte entre as formas brutais e manifestas da violência contra a infância-adolescência e o status e a função desta última na chamada sociedade ocidental.

 

A história (inclusive a recente) permite afirmar que a percepção social da infância em geral supõe a presença de um alto grau de violência latente, rápida e facilmente transformável numa violência direta com manifestações de brutalidade.

 

Durante séculos, a cultura e o direito legitimaram, mais ou menos abertamente, a violência exercida contra a infância, inclusive com mais ênfase quando se tratava daquela cometida dentro do núcleo familiar. Não se passaram ainda mais de dez anos desde a reforma do código penal espanhol que caracterizava as lesões, inclusive as graves, cometidas pelos pais contra os filhos como "excesso nos legítimos meios de correção". Resulta interessante, e, em certa medida, premonitório, que uma mudança significativa na reação social durante as manifestações de violência contra a infância esteja estreitamente relacionada e tenha como modelo a proteção dos animais.

 

É apenas em 1896, na cidade de Nova York, que se registra o primeiro processo judicial efetivo por causa de maus-tratos causados a uma menina de 9 anos de idade pelos seus próprios pais. A parte cível de tal causa foi a Sociedade para a Proteção de Animais de Nova York, de onde posteriormente surgirá a primeira liga de proteção à infância.

 

A reconstrução crítica da história da cultura da violência permite estabelecer um paralelismo que ajuda a entender a especificidade da forma mais brutal e manifesta da violência na conjuntura atual: o extermínio sistemático, por parte de grupos organizados, de uma parte do universo infância.

 

Se as formas cotidianas da violência contra a infância em geral (maus-tratos, abusos, etc.) constituem um traço comum, produto de uma cultura que coloca esta categoria numa posição de inferioridade subordinada na escala social, o extermínio representa uma versão brutal dessa mesma cultura que se exerce não contra a infância em geral, mas, sim, contra aquela parte residual da categoria infância constituída pelo mundo dos "menores".

 

A análise do perfil das vítimas do extermínio nas últimas pesquisas específicas realizadas parece confirmar plenamente este enfoque.

 

Estes resultados permitem afirmar que, em condições de violência estrutural, quem não encontra um lugar definido, nem no sistema educativo, nem no sistema produtivo, constitui um alvo potencial das formas mais agudas e diretas da violência.

 

As formas agudas de violência sistemática contra uma parte do universo infância não constituem um fenômeno novo. Novos são, por sua vez, sua visibilidade e um marco jurídico (o Estatuto da Criança e do Adolescente) que tenta modificar uma cultura da inferioridade-subordinação, sobre a qual a violência se manifesta, cresce, legitima-se e consolida-se. Depende do resgate da posição subordinada na percepção social da subcategoria da infância constituída pelos "menores", a não efetivação do extermínio como parte definitiva do cotidiano da vida real.

 

Traduzir as necessidades dos "menores" em direitos de toda a infância-adolescência constitui o pré-requisito político desta transformação imperiosa.

 

A quebra do ciclo da impunidade jurídica depende da quebra do ciclo — muito mais sutil e perverso — da impunidade sócio-cultural.

 

A vigência do Estatuto, uma lei única em seu tipo no contexto latino-americano, colocando pela primeira vez a infância como sujeito de direitos, permite afirmar que as práticas de exclusão não encontram sua legitimidade em nível da estrutura jurídica. Em conseqüência, subestimar as possibilidades do direito constitui um erro cuja gravidade só é comparável à sua superestimação.

 

6.5 Que fazer?

 

Esta breve e modesta análise da conjuntura da violência contra a infância não estaria completa se não se registrassem os avanços realizados no último ano. Mas antes de entrar numa também breve descrição de seus conteúdos, parece importante e oportuno destacar que estes avanços constituem o resultado de uma articulação de esforços dos setores mais conscientes e preocupados pelo tema, tanto do governo como da sociedade civil.

 

Por mais modestos que estes esforços possam parecer, e comparando-se com a gravidade do problema, eles conseguiram que o tema da violência contra crianças e adolescentes passasse do insignificante espaço dedicado por alguns meios sensacionalistas na sua seção policial a um amplo espaço na seção política da grande imprensa nacional. Por outra parte, o trabalho silencioso e sistemático da Comissão Nacional contra a Violência contra Crianças e Adolescentes, vinculada ao Ministério de Justiça e composta por membros governamentais e não-governamentais, começa a dar resultados que podem ser medidos pelo número crescente de inquéritos abertos em muitos Estados da federação. Além disso, o Sistema de Registro e Vigilância da Violência já implantado no estado da Bahia por iniciativa do Unicef, com assessoramento do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV) e com o apoio da FCBIA e da Fundação Faculdade de Direito da Bahia, começa a produzir as primeiras informações necessárias para acabar com uma visão impressionista da violência que permita monitorar e corrigir as políticas específicas que estão sendo implantadas em cada área.

 

Por último, é preciso recordar que a luta pela redução e eliminação da violência, enfrenta uma batalha decisiva a cada dia.

 

Fazer com que o grau de indignação pela morte de qualquer cidadão, independente de sua raça, posição social ou religião, tenha exatamente a mesma intensidade, constitui o requisito mínimo de uma sociedade livre.

7. Legislação de "menores" na América Latina: uma doutrina em situação irregular

7.1 Sobre as origens da incapacidade da infância e do sentido deste seminário

7.2 0 avesso:

7.2.1 Uma doutrina: a doutrina da situação irregular;

7.2.2 Uma instância judicial: o juiz de menores;

7.2.3 Uma instância administrativo-executiva: os órgãos estatais de assistência à infância;

7.2.4 Uma subestimação do vínculo entre a condição material e jurídica da infância: o basismo das organizações não-governamentais; 7.2.5 Uma indiferença generalizada: a omissão ativa da sociedade civi

7.3 0 direito:

7 3.1 A doutrina: a Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral da Infância;

7.3.2 A instância judicial: o novo juiz da infância e da juventude;

7.3.3 A instância administrativo-executiva: do assistencialismo à política das garantias;

7.3.4 As organizações não-governamentais como fiscais dos direitos da infância;

7.3.5 Uma sociedade civil de todos e para todos

7.4 Conclusão.

 

7.1. Sobre as origens da incapacidade da infância e o sentido deste seminário

 

Durante o II Encontro Nacional do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, realizado em Brasília em 1989, aconteceu um fato simpático e curioso, embora de profundo significado, com o qual gostaria de começar este exercício de reflexão coletiva. Na Câmara dos Deputados do Congresso Nacional uma menina-representante dos movimentos sociais peruanos — foi convidada a falar por um menino brasileiro com as seguintes palavras: "Agora, uma companheira peruana nos contará como é a vida lá na América Latina". Por trás deste episódio esconde-se uma realidade que é necessário conhecer e reconhecer para superar: um enorme isolamento, imposto e auto-imposto, reforçado pela língua, tem-nos mantido durante séculos separados cultural e politicamente. De igual maneira, apesar de menos evidente, um processo análogo pode ser verificado entre o resto dos países latino-americanos de língua castelhana.

 

Desta constatação, surge uma primeira e necessária indicação estratégica: a superação do isolamento relativo do e com o Brasil só pode ser o resultado de uma integração latino-americana que surja da busca comum de soluções de problemas reais e urgentes.

 

Um deles, sem dúvida, encontra-se nos temas aqui em debate.

 

O termo "isolamento relativo" faz referência a um processo de unidade negativa latino-americana que se manifesta com uma força inusitada no campo da chamada legislação de "menores".

 

Até o surgimento do "Estatuto da Criança e do Adolescente", em julho de 1990, todas as legislações menoristas latino-americanas se assemelham umas às outras como uma gota d'água.

 

Desde a tosca e pioneira lei de Patronato argentina de 1919, passando pelos complexos e "modernos" códigos "Melo Matos" do Brasil, de 1927, e da "Criança" do Uruguai, de 1934, até as mais recentes legislações de mera adequação formal à Convenção Internacional, é possível verificar uma assombrosa continuidade que se manifesta na negação formal e substancial da criança e do adolescente como sujeitos de direitos.

 

Parece-me importante esclarecer que não faço, aqui, um uso ingênuo ou arbitrário dos conceitos formal e substancial. Diversamente do direito iluminista de adultos (de sexo masculino, convém acrescentar), onde os direitos fundamentais podem ser violados no processo de aplicação e execução da Lei, a cultura jurídica da menoridade (e da condição da mulher) imprime e legitima profundas desigualdades desde o próprio nível de formulação da norma jurídica. Assim, a quase totalidade dos códigos penais latino-americanos que punem severamente o aborto mostram-se sumamente indulgentes em relação ao infanticídio produzido pela mãe sob influência do estado puerperal, quando cometido para ocultar sua desonra. Paradoxal e tragicamente, esta atenuante abrange também os pais, irmãos, maridos e filhos para ocultar a desonra de sua filha, irmã, esposa ou mãe. Este exemplo concreto refere-se ao art. 81 do Código Penal argentino, podendo ser encontrado com meras variações de formulação em praticamente todos os códigos de nossa região.

Esta negação formal dos direitos fundamentais — incluindo explicitamente as mais elementares garantias constitucionais — é causa e conseqüência de uma cultura da incapacidade social, sobre a qual a incapacidade jurídica logo se assenta consensual e hegemonicamente.

 

Em muitas oportunidades já fiz referências à gênese e ao desenvolvimento de uma cultura da "compaixão-repressão", que, com fortes raízes no contexto dos EUA do fim do século XIX e da Europa do começo deste século, se instala e se expande na nossa região latino-americana sob o rótulo de uma aberração jurídica denominada doutrina da "situação irregular". Uma cultura que, baseando-se na exclusão social, reforça e legitima esta situação introduzindo uma dicotomia perversa no mundo da infância. Uma cultura que constrói um muro jurídico de profundas conseqüências reais, destinado a separar crianças e adolescentes dos "outros", dos "menores", os quais constrói como uma espécie de categoria residual e excrescência a respeito do mundo da infância.

 

De tudo isso, surge a profunda necessidade de resgatar a infância esquecida, construindo também uma nova semântica da inclusão. Para isso, proponho descer, uma vez mais, às origens do inferno da gramática da exclusão.

 

Numa das mais profundas e detalhadas pesquisas de caráter histórico sobre a prática do abandono de crianças na Europa Ocidental, John Boswel (1991) oferece uma informação de inusitada riqueza que, por esta razão, parece-me imprescindível reproduzir integralmente:

 

"Palavras que significam 'criança', 'menino' e 'menina', por exemplo, são utilizadas regularmente para significar 'escravo' ou 'servo' em grego, latim, árabe, sírio e em muitas línguas medievais. É isto uma sutileza filológica e social? Nas democracias ocidentais modernas, todo homem dotado de faculdades mentais normais alcança a condição de adulto independentemente de atingir uma determinada idade. A distinção fundamental em relação às faculdades sociais e políticas surge entre crianças e adultos e todos ocupam ambas as posições sucessivamente. No entanto, por um longo período no curso da história ocidental, somente uma minoria entre os adultos pôde alcançar tal independência. O resto da população permanecia, por toda a vida, numa situação jurídica equiparável à 'infância', no sentido que tais relações permaneciam sob o controle de algum outro. Um pai, um senhor, um patrão, um marido, etc. Surge a tentação de deduzir, deste vínculo lingüístico, que as crianças ocuparam a posição de escravos, mas é mais provável que a conexão verbal seja ligada ao fato de que os próprios papéis sociais (escravo, servo, servo de gleba, etc.) eram equivalentes ao papel social da 'criança', quanto a poder e condição jurídica, seja qual fosse a idade da pessoa.

 

Palavras que significam 'criança' designavam adultos de condição servil durante toda a Idade Média e, freqüentemente, é impossível saber com exatidão, ante a ausência do contexto adequado, se a definição se baseava sobre a condição ou sobre ambos" (pp. 26 e 27).

 

Esta longa citação, de significado ambíguo, coloca-nos frente a uma alternativa igualmente esclarecedora da situação da infância que enfrentamos hoje em dia. Seja porque a infância fosse equiparada aos adultos em condição servil, seja porque estes últimos fossem equiparados à infância, em ambos os casos explica-se a naturalidade com que todos e cada um dos direitos fundamentais foram e são ainda hoje sistematicamente negados, às vezes em nome da "compaixão" e às vezes em nome da "repressão".

 

Paradoxalmente, no avesso das técnicas de dominação e submissão, que se manifestam em negação da condição de sujeito de direitos, se constrói a estratégia oposta de formação da cidadania para a maioria marginalizada de nossa infância latino-americana.

Fica claro, assim, que o título deste III Seminário Latino-Americano deveria constituir-se, então, num programa concreto de ação futura.

 

7.2  O avesso

 

Poucos cenários parecem mais adequados do que este para tentar uma reflexão séria sobre o tema da legislação da infanto-adolescência a nível latino-americano. Reflexão que, especificamente, deve ser traduzida em um balanço das relações entre a condição material e a condição jurídica da infância.

 

No contexto sócio-econômico da chamada "década perdida", resulta supérfluo insistir com cifras para demonstrar a existência de dois tipos de infância na América Latina. Uma minoria com suas necessidades básicas amplamente satisfeitas (crianças e adolescentes) e uma maioria com suas necessidades básicas total ou parcialmente insatisfeitas (os menores).

 

Qualquer análise das legislações vigentes, baseadas na doutrina da situação irregular, permite demonstrar que para a primeira categoria (crianças e adolescentes) as leis de menores são, no mínimo, absolutamente indiferentes. A discricionariedade da legislação vigente permite — e fico tentado a utilizar a palavra exige — que seus eventuais conflitos com a lei penal se resolvam por canais distintos daqueles previstos no texto da lei. De igual maneira, os conflitos de natureza não penal resolvem-se normalmente através do código civil ou das leis conexas. A expressão criança impune-proprietária constitui a melhor síntese do espírito da lei nesta hipótese.

 

Para os outros — "os menores" — as leis baseadas na doutrina da "situação irregular" condicionam e determinam sua existência cotidiana desde o nascimento até sua eventual "transferência" social, via adoção ou submissão a algum tipo de confinamento institucional, através da internação. A expressão criança sancionada-expropriada constitui a síntese acabada desta segunda hipótese.

 

Este controle específico sobre a parte mais vulnerável do universo infância se assenta, por ação ou omissão, em cinco fundamentos básicos:

 

1) uma doutrina,

2) uma instância judicial,

3) uma instância administrativo-executiva,

4) uma subestimação do vínculo entre a condição material e jurídica da infância e

5) uma indiferença generalizada.

 

7.2.1 Uma doutrina: a doutrina da situação irregular

 

No mundo jurídico, entende-se como doutrina o conjunto da produção teórica elaborada por todos aqueles ligados, de uma ou de outra forma, ao tema, sob a ótica do saber, da decisão ou execução. Normalmente, em todas as áreas do direito dos adultos a produção teórica encontra-se homogeneamente distribuída entre os diferentes segmentos do sistema, o que, estimulando-se a pluralidade dos pontos de vista, assegura eficazes contrapesos intelectuais na interpretação das normas jurídicas. Os avanços da doutrina aparecem, invariavelmente, acompanhados por contradições e discrepância.

 

Radicalmente diferente resulta o panorama da produção teórica do direito de "menores" no contexto da doutrina da situação irregular. A ideologia da ''compaixão-repressão'', até pouco tempo hegemônica, determinou uma uniformidade assustadora de pontos de vista. Esta característica obedece tanto ao fato de que a piedade sempre se manifesta como dogma quanto ao de que praticamente toda a produção teórica foi realizada pelos mesmos sujeitos encarregados de sua aplicação (os juizes de menores). Esta situação explica o fato de que poucas doutrinas sejam mais difíceis de definir do que aquela da "situação irregular".

 

Na realidade, trata-se de uma doutrina jurídica que tem pouco de doutrina e nada de jurídico, se por jurídico entendemos — no sentido iluminista — regras claras e pré-estabelecidas de cumprimento obrigatório para os destinatários e para aqueles responsáveis por sua aplicação. Esta doutrina constitui, na realidade, uma colcha de retalhos do sentido comum que o destino elevou à categoria jurídica. Sua missão consiste, na realidade, em legitimar a disponibilidade estatal absoluta de sujeitos vulneráveis que, precisamente por esta situação, são definidos em situação irregular.

 

Nesse sentido, as hipóteses de entrada no sistema carecem em absoluto de taxatividade.

 

Crianças e adolescentes abandonados, vítimas de abusos ou maus-tratos e supostos infratores da lei penal, quando pertencentes aos setores mais débeis da sociedade, constituem os clientes potenciais desta definição. Mais ainda, como uma espécie de auto-ironia, as leis de menores expandem os limites da disponibilidade estatal ao resto da infância que se encontrar em perigo material ou moral. Neste contexto, a arbitrariedade não pode, jamais, constituir a exceção e sim o comportamento cotidiano daqueles encarregados de sua aplicação.

 

 

 

 

7.2.2 Uma instância judicial: o juiz de menores

 

Poucas figuras resultam mais longe da essência da função jurisdicional do que o próprio juiz de menores, no contexto desta doutrina. No direito moderno, a figura do juiz aparece como a face oposta da arbitrariedade e da discricionariedade. Dirimir imparcialmente conflitos, mediante a sujeição estrita à lei, constitui o imperativo categórico de sua ação. Sob a doutrina da situação irregular, o juiz de menores encarna uma figura diametralmente oposta à anterior. O juiz de menores representa a realização institucional da ideologia da "compaixão-repressão".

 

Em todo texto clássico de direito de menores o comportamento adequado do juiz está equiparado à figura do "bom pai de família". Convém relembrar, aqui, que entre as inúmeras obrigações deste último não figura a de conhecer o direito para sua correta aplicação. O caráter absolutamente discricionário de suas funções coloca-o na situação paradoxal de estar, tecnicamente, impossibilitado de violar o direito. Além disso, a escassa ou nula importância dada às matérias sob sua jurisdição o exime, na prática, de submeter-se a instâncias superiores de revisão. Sua dupla competência tutelar e penal (sendo que o tutelar constitui-se em sinônimo de tudo), unida à miséria de seus recursos técnicos e financeiros, lhe outorgam poderes absolutos que, definitivamente, traduzem-se em nada.

 

Mas, além dessas funções simbólicas, o juiz de menores cumpre uma função real de enorme importância no contexto das políticas neoliberais de ajuste. Suas intervenções, principalmente quando, registradas pelos meios massivos de comunicação, produzem impacto, contribuem para criar a ilusão frente à opinião pública de que "alguma coisa está sendo feita para enfrentar o problema dos 'menores".

 

7.2.3 Uma instância administrativo-executiva: os órgãos estatais de assistência à infância

 

Esgotado o modelo distribucionista dos anos 50, a crise fiscal do Estado que surge no final da década de 60 causou estragos irreversíveis nas políticas sociais básicas, especialmente naquelas dedicadas à infância. As velhas instituições assistenciais, que até as primeiras décadas deste século estiveram nas mãos da Igreja, passaram gradualmente para a esfera pública estatal. A expansão das políticas básicas em educação e saúde reduziram o alcance e o sentido de tais instituições. Em conseqüência, uma atenção "especializada" marcou sua ação institucional a partir da década de 50.

 

Crianças e adolescentes portadores de deficiências, mães adolescentes e um reduzido grupo de jovens de comportamento "anti-social" constituíram sua clientela privilegiada.

 

Quando, no começo dos anos 70, a ressaca das primeiras políticas de ajuste fiscal depositou em suas praias o novo produto da época—o menino de rua—seus reflexos estavam acabados. Algumas entidades ignoraram a nova realidade sendo incapazes de modificar a velha cultura institucional. Outras tentaram "modernizar-se" numa versão caricatural das novas organizações não governamentais, ensaiando programas alternativos de uma dimensão quantitativa tão reduzida que não conseguiram sequer influir simbolicamente na realidade circundante. Ainda hoje, não consigo entender em relação a que coisas tais programas públicos podem ser alternativos. A única resposta possível talvez seja afirmar seu caráter de substituto ideológico da retração das políticas sociais básicas.

 

Quanto a seu vínculo com a justiça, a relação destas instituições aparece marcada, quase sem exceção, por uma conflitualidade perversa que, colocando esporadicamente em discussão as decisões do juiz, não chega, jamais, a questionar as normas jurídicas nas quais são sustentadas as decisões deste último.

 

Aquelas instituições governamentais que não quiseram, não puderam ou não souberam transcender as práticas assistencialistas resultaram, e em muitos casos resultam ainda hoje, aliados objetivos fundamentais para a manutenção do status quo jurídico. Além disso, e apesar da boa vontade de alguns de seus técnicos, quem não entendeu o caráter político-jurídico das transformações necessárias foi, no entanto, paradoxalmente "eficiente" para identificar a nova clientela institucional. Como numa versão moderna de um rei Midas social, tiveram e têm êxito em converter em "menores" toda a criança objeto de sua proteção.

 

 

7.2.4 Uma subestimação do vinculo entre a condição material e jurídica da infância: o basismo das organizações não-governamentais

 

A existência das ONGs é de data relativamente recente no campo das políticas para a infância. Uma primeira dificuldade de compreensão surge do fato de que o termo ONG tenta cobrir uma realidade altamente heterogênea. Entretanto, sob a perspectiva que nos interessa, parece-me importante e possível estabelecer uma primeira e elementar distinção entre aquelas organizações que nascem estreitamente ligadas ao Estado, com a proposta de oferecer serviços só institucionalmente alternativos ao setor governamental, e aquelas que se caracterizam por um maior grau de autonomia político-técnica.

 

No caso das ONGs do primeiro tipo, sua existência e desenvolvimento estão condicionados, obviamente, à mera vontade governamental. Por outro lado, dentro das organizações do segundo tipo abre-se uma ampla gama de possibilidades, que inclui desde a mera oferta de serviços até a formulação de estratégias complexas destinadas a influir na estrutura jurídico-institucional das políticas para a infância. Um certo basismo, muitas vezes justificadamente alimentado pela negligência estatal, manteve por muito tempo estas organizações afastadas das instâncias e estruturas encarregadas da tomada real de decisões.

 

Asfixiadas pela resolução de problemas imediatos, muitas destas organizações estiveram incapacitadas de perceber que o contexto jurídico existente regulava a qualidade e a quantidade de boa parte dos problemas cotidianos que deviam ser enfrentados. Ao mesmo tempo, impedia a ampla reprodução de experiências bem sucedidas realizadas em escala reduzida.

 

7.2.5 Uma indiferença generalizada: a omissão ativa da sociedade civil

 

Uma combinação de fatores relacionados às quatro áreas acima descritas contribuíram para manter consciências tranqüilas no contexto de um mal-estar social crescente. As respostas assistencialistas, que é o mesmo que dizer fragmentárias, a problemas de profunda raiz estrutural provocaram uma percepção dos problemas da parte mais vulnerável da infância como, prioritariamente, associados a patologias de caráter individual. O problema da infância em situação de alto risco não consegue ser vinculado a insuficiente ou inexistente oferta de serviços, mas à negligência ou ignorância de sua utilização por parte de seus potenciais destinatários.

 

7.3  O direito

 

Nos últimos anos, estes cinco fundamentos da indiferença, ignorância e incompetência começaram a desmoronar seriamente. No campo da luta pelos direitos da infância, a década de 80 conjugou dois fatos de central importância na América Latina. O lento e difícil processo de redemocratização política e a discussão e aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança. A mobilização da sociedade, em geral, e dos grupos relacionados ao tema da infância, em particular, produziram alterações reais ou potenciais nas cinco bases de sustentação antes mencionadas.

 

Antes de analisar as transformações iniciadas pela Convenção Internacional, parece-me importante assinalar algumas características de seu impacto real na região.

 

Em primeiro lugar, não creio que haja dúvidas em relação à ruptura radical que a Convenção representa em termos do enfoque jurídico da infância. Trata-se de um instrumento decisivo e fundamental que torna ociosa qualquer discussão que ponha em dúvida a compreensão da categoria infanto-adolescência como dotada de sujeitos plenos de direito. A Convenção nos coloca, neste campo, parafraseando Norberto Bobbio, na necessidade de trabalhar na proteção dos direitos consagrados, abandonando discussões bizantinas sobre sua justificação (N. Bobbio, 1990, 16).

 

Imediatamente após a sua aprovação pela Assembléia Geral das Nações Unidas em novembro de 1989, a maioria dos países latino-americanos já a tinham ratificado, promulgando-a depois como lei nacional. A vigência simultânea e antagônica da Convenção Internacional e os velhos textos baseados na doutrina da situação irregular criaram uma situação de esquizofrenia jurídica em boa parte dos países da região.

 

A vigência da Convenção determinou a existência de quatro situações diferentes que acho necessário identificar:

 

1) Países onde o efeito da Convenção foi nulo, tanto em termos da reação do poder executivo e judiciário quanto em termos da mobilização da sociedade civil.

2) Países onde a Convenção provocou iniciativas governamentais e não governamentais de reforma legislativa que se encontram, atualmente, em curso.

3) Países que realizaram uma adequação formal e eufemística da Convenção, deixando inalterados o espírito e a substancia da doutrina da situação irregular.

4) Países que realizaram um processo real de adequação substancial ao espírito e letra da Convenção Internacional. Neste caso — onde sem nenhuma dúvida o Brasil deve ser incluído e também, apesar de algumas limitações, a nova legislação do Equador — a mudança radical do conteúdo da velha lei esteve indissoluvelmente relacionada a um enorme processo de mobilização social. Tanto os juristas quanto às técnicas jurídicas souberam articular e traduzir as demandas da comunidade que age nas esferas governamentais e não-governamentais.

 

Além disso, acho conveniente fazer um comentário adicional sobre a situação criada naqueles países que promulgaram a Convenção e mantiveram, ao mesmo tempo, a velha lei de menores baseada na doutrina da situação irregular.

 

Alguns juizes de menores colocaram o problema da inaplicabilidade da Convenção — de forma totalmente errônea, segundo meu ponto de vista — alegando o caráter programático e não operativo da Convenção. Mesmo assim, e salvo honrosas exceções, a corporação judicial não desenvolveu qualquer esforço para alterar a velha lei e torná-la operativa. Enfim, esta discussão sobre o caráter operativo ou programático da Convenção poderia ser juridicamente pertinente, mas torna-se politicamente irrelevante.

 

A inexistência de casos concretos de aplicação da Convenção Internacional por parte dos juizes de menores reafirma a necessidade imperiosa de empreender a tarefa árdua e difícil da reforma legislativa.

 

Temos, agora, os elementos mínimos para rever as modificações que a vigência da Convenção Internacional introduz nos setores já analisados.

 

 

 

7.3.1 A doutrina: a Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral da Infância

 

Apesar de não ser cronologicamente o primeiro texto, a Convenção Internacional contribui decisivamente para consolidar um corpo de legislação internacional denominado "Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral da Infância". Com esta denominação referimo-nos a:

 

— A Convenção das Nações Unidas dos Direitos da Criança;

— As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores;

— As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade;

— As Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil.

 

Este corpo de legislação internacional modifica total e definitivamente a velha doutrina da situação irregular. Em outras oportunidades já fiz um comentário concreto e específico sobre o fato de que a doutrina da proteção integral incorpora todos os princípios fundamentais do direito à nova legislação para a infância, em forma vinculante para os países signatários. Em outras palavras, esta nova doutrina deslegitima política e sobretudo juridicamente o velho direito de "menores" colocando-o paradoxalmente em situação totalmente irregular. Ainda são enormes os esforços de difusão que devem ser realizados para sua cabal compreensão por parte do mundo jurídico.

 

Da vigência da doutrina de proteção integral é possível deduzir algumas pautas básicas e essenciais para a reforma legislativa.

 

O reconhecimento da criança e do adolescente como sujeito pleno de direitos constitui o ponto nevrálgico do novo direito. A proibição taxativa de detenções ilegais ou arbitrárias, reconhecendo o princípio constitucional de que nenhum habitante da república poderá ser detido a não ser em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade competente, deve necessariamente produzir impacto fundamental na forma como as políticas para a infância foram concebidas até agora.

 

 

 

7.3.2 A instância judicial: o novo juiz da infância e da juventude

 

Como exemplo pioneiro incluído na legislação mais avançada da América Latina, o Estatuto da Criança e do Adolescente do Brasil hierarquiza a função judicial devolvendo sua capacidade plena e específica de dirimir conflitos de interesses de natureza jurídica a um novo tipo de juiz.

 

A nova legislação para a infância torna-se um instrumento complexo que exige um profundo conhecimento do direito. A fundamentação rigorosa das medidas adotadas e uma correta e ponderada interpretação da Lei constituem os parâmetros de ação do juiz para a infância. A divisão de competências e responsabilidades com o Ministério Público, assim como a obrigatoriedade da presença do advogado (ECA, art. 207; Código de Menores do Equador art. 170), colocam as bases mínimas para que a arbitrariedade seja substituída pela justiça.

 

7.3.3 A instância administrativo-executiva: do assistencialismo à política das garantias

 

O novo contexto jurídico coloca desafios extraordinários aos velhos órgãos de assistência. A ratificação e promulgação da Convenção lhes impõe a obrigação moral e jurídica de trabalharem junto com os movimentos sociais e com o mundo jurídico numa reforma legislativa que traduza, substancialmente, o conteúdo da Convenção. Por sua vez, depois da reforma — e reconhecidas as garantias constitucionais básicas para a infância — as políticas de proteção especial não podem mais ser alimentadas coativamente. Quebrado definitivamente o ciclo perverso da apreensão, rotulação, confinamento e deportação institucional, duas linhas de ação concreta desenham-se em forma nítida.

 

A infância em risco, produto das diferentes situações de abandono, começa e deve ser percebida como o resultado direto da omissão ou inexistência das políticas sociais básicas. O ''menino de rua" é, antes de tudo, o "menino sem escola". A frase pioneira e premonitória de Antônio Carlos Gomes da Costa, sobre o menino de rua como "uma ilha cercada de omissões", possui hoje todos os elementos para ser compreendida e analisada em sua total extensão e profundidade.

A assistência não pode ser mais cúmplice da omissão generalizada.

 

Para os outros — os adolescentes em conflito com a lei — a assistência deve transformar-se numa política estrita de garantias que colabore na confirmação da categoria adolescente infrator como uma precisa categoria jurídica e nunca mais como uma vaga categoria sociológica.

 

7.3.4 As organizações não-governamentais como fiscais dos direitos da infância

 

Pouco pode ser dito sobe as transformações a serem feitas neste campo e muito, pelo contrário, sobre os fatos que efetivamente ocorreram. O processo de mobilização em torno da Convenção provocou uma nova relação dos movimentos sociais com a esfera do jurídico. O poso condicionante negativo da doutrina da situação irregular para o trabalho cotidiano colocou os movimentos sociais, de forma natural e espontânea, na rota da reforma legislativa. No avesso de uma infância postergada aparecem com clareza os direitos a serem assegurados e protegidos.

 

Uma manifestação palpável desta tendência é o nascimento, sobretudo no Brasil, de um novo tipo de ONG: os Centros de Defesa dos Direitos da Infância.

 

A adequação substancial da Convenção Internacional (o ECA), promovida e realizada com a participação ativa dos movimentos sociais, permitiu superar, também sob a perspectiva da sociedade civil organizada, um horizonte assistencialista sem futuro nem projeção. A ampla reprodução das melhores experiências realizadas em escala reduzida somente foi e será possível no contexto anteriormente descrito.

 

Um novo desafio surge para os movimentos sociais: encarar a árdua e difícil articulação com os governos para o desenho e fiscalização de um novo tipo de políticas públicas.

 

No Brasil, os "Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente" proporcionam sustentação política e legitimidade jurídica para o desenvolvimento desta utopia concreta.

 

 

7.3.5 Uma sociedade civil de todos e para todos

 

De forma similar ao doloroso processo de aprendizagem sobre o fato de que as aventuras autoritárias na América Latina não são possíveis sem a cumplicidade da sociedade civil, estamos aprendendo que as ilegais e, sobretudo, inúteis operações de "limpeza das ruas" também não seriam possíveis. Daí surge a necessidade de um vasto trabalho de esclarecimento destinado a demonstrar a impossibilidade de uma sociedade realmente democrática e moderna com uma infância postergada em suas necessidades vitais. Estou convencido que o mesmo afirmava, há pouco tempo, o Sr. James Grant, Diretor Executivo do Unicef, ao dizer que "a democracia é boa para a infância". Em outras palavras, não há política para a infância fora da política.

 

No Brasil, esta proposta alcançou a categoria de princípio constitucional de prioridade absoluta; façamos com que seja para todos e, principalmente, por todos.

 

7.4 Conclusão

 

Duas tarefas de distinta natureza figuram hoje com prioridade na agenda de todos aqueles preocupados pelos direitos da infância. Produzir mudanças legislativas em consonância substancial com a doutrina de proteção integral e, onde tal tarefa já foi realizada, defender e aprofundar as conquistas alcançadas.

 

A reforma da lei constitui um passo absolutamente fundamental, sendo, no entanto, somente o começo de uma nova etapa nos esforços para melhorar as condições de vida da nossa infância e adolescência.

 

É bom recordar que a oposição à lógica de percepção das necessidades em termos de direito não virá somente daqueles setores tradicionalmente catalogados como afins ao pensamento conservador. A cultura da "compaixão-repressão" costuma manifestar-se, também, sob formas aparentemente progressistas.

 

O processo de abolição da escravidão nos EUA no século XIX teve a particularidade de provocar uma oposição generalizada entre setores com pontos de vista aparentemente irreconciliáveis. Um fio sutil de desprezo e subestimação pelos direitos uniu, durante um longo período, aqueles que pressagiavam o colapso definitivo do sistema de produção como conseqüência das mudanças instauradas com aqueles que sustentavam que a incapacidade ontológica dos escravos lhes impediria de sobreviver a uma liberdade para a qual não estavam preparados.

 

A passagem do Avesso ao Direito não é magicamente irreversível. Da nossa vontade, otimismo e capacidade, dependerá sua instalação definitiva na consciência social.

 

8 Adolescentes infratores graves: sistema de justiça e política de atendimento

 

8.1 A importância do tema

8.2 Os parâmetros da discussão

8.3 As origens

8.4 O problema: fenomenologia e percepção

8.5 Da criança abandonada ao adolescente infrator

8.6 O adolescente infrator: sujeito de direitos e deveres

8.7 O adolescente infrator e a competência institucional

8.8 Princípios básicos do atendimento:

a) incompletude institucional e

b) incompletude profissional

8.9 Segurança

8.10 A utopia necessária.

 

8.1. A importância do tema

 

Não faltam informações estatísticas detalhadas para confirmar a reduzida dimensão quantitativa dos adolescentes infratores graves (submetidos à medida de privação de liberdade), principalmente se comparada a outras categorias da infanto-adolescência em situação de risco.

 

Esta cifra não é superior a 100 na maioria das unidades federadas, sendo de aproximadamente 200 e 1.250 nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente.

 

Supõe-se, neste texto, que o adolescente infrator grave é todo aquele que recebeu a medida de privação de liberdade prevista no art. 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Mas a experiência concreta demonstra que, no momento atual de implementação do ECA, nem todo infrator grave resulta realmente privado de liberdade e, o que é pior, nem todos aqueles adolescentes privados de liberdade são infratores graves.

 

No primeiro caso, formas privadas e extralegais de violência tendem a completar a diferença do menor número de privados de liberdade. No segundo caso, privações de liberdade ilegais ou ilegítimas aumentam, ilegal e/ou ilegitimamente, a dimensão real dos problemas existentes, criando um alarme social que aumenta a demanda social por mais privações de liberdade.

 

Nesse contexto, fica evidente o paradoxo de que uma política adequada para a privação de liberdade se constitui em uma política para a vida e uma política para a liberdade.

Três razões de natureza diferente reforçam, posteriormente, a importância deste tema: uma razão jurídica, uma razão política e uma razão ética.

 

A razão jurídica: deriva-se da obrigatoriedade do cumprimento das disposições contidas no ECA (considerando-se, sinteticamente, o art. 125).

 

A razão política: resulta da capacidade contaminante negativa sobre o conjunto das políticas governamentais e não-governamentais, que resulta da falta de respostas adequadas a este item particular.

 

A razão ética: pode ser resumida na potencialidade pedagógica de construção da cidadania contida numa resposta adequada a esta questão. Somente uma sociedade que aprende a respeitar os "piores", aprende a respeitar todos (Gomes da Costa, 1992).

 

8.2. Os parâmetros da discussão

 

Desde seu aparecimento específico e autônomo, o problema da "delinqüência juvenil" constitui um tema recorrente que impõe, ciclicamente, sua presença dominante no conjunto das políticas dirigidas à infância e à adolescência, no contexto latino-americano. Em conjunturas de crise manifesta, sua existência pode ser tida como óbvia.

 

O Brasil atual não constitui uma exceção. Até agora, as respostas a este problema têm transitado por duas posições igualmente equivocadas.

 

O retribucionismo repressivo manifesta-se sob a idéia de um aumento indiscriminado da repressão, através da proposta de redução da idade da imputabilidade penal. Essa resposta não só se mostrou completamente inútil, como também contribuiu para o agravamento posterior do problema.

 

O fato, como está demonstrado, de que por trás de um número significativo de infrações penais graves cometidas por adolescentes apareçam adultos como instigadores, possui como conseqüência automática o recrutamento de adolescentes, para fins criminais, com idade inferior àquela proposta como novo limite de imputabilidade penal (geralmente 16 anos), aumentando a dimensão quantitativa do universo dos infratores graves (considere-se, por exemplo, o número de delitos relacionados com o tráfico de drogas).

 

Além de sua inutilidade, esta proposta é também contrária à letra e ao espírito da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, lei nacional do Brasil.

 

O falso paternalismo anticidadão: constitui-se numa repulsa ao reconhecimento da possibilidade de infrações penais graves cometidas por adolescentes, amparando-se numa falsa e eufemista ideologia tutelar.

 

Esta posição aceita, implicitamente, como certa, a existência de um vínculo automático (falso) entre pobreza e criminalidade. Seu resultado concreto consiste em aceitar reclusões que, de fato, implicam uma verdadeira privação de liberdade, despida de todas as garantias que uma medida de tal natureza deve necessariamente incluir.

 

Esta falsa polêmica entre as duas posições se desenvolveu num território jurídico-cultural cujos limites e parâmetros foram sutilmente impostos pela ideologia tutelar, produto da chamada "doutrina da situação irregular". Seu resultado concreto são os milhares de jovens internados na América Latina—inclusive uma boa parte em prisões para adultos — em instituições totais em que "oficialmente" não estão privados de sua liberdade.

 

A posição garantista do ECA: O Estatuto da Criança e do Adolescente muda radicalmente, pela primeira vez na história latino-americana, os parâmetros jurídicos da discussão oferecendo as bases para o desenvolvimento de um debate que permita colocar o problema na sua justa dimensão. Em correspondência absoluta com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, o adolescente infrator deixou de ser, no Brasil, uma vaga categoria sociológica, a quem se pode impor medidas (penas-sofrimentos) de caráter indeterminado, para se converter numa precisa categoria jurídica, sujeito dos direitos estabelecidos na Doutrina da Proteção Integral. Os itens seguintes constituem um conjunto de reflexões destinadas a superar o debate estéril que tem no binômio impunidade-repressão a sua maior manifestação.

 

8.3. As origens

 

A inexistência do problema da delinqüência juvenil como tema específico autônomo e consistente, antes do final do século XIX, constitui uma indicação valiosa e imprescindível para uma abordagem desprovida de preconceitos. Uma prova disso é que os códigos penais de corte retribucionista do século XIX estabeleciam como única diferença normativa a redução de 1/3 da pena — que geralmente consistia em privação de liberdade — tratando-se de menores de 18 anos. Não era prevista nenhuma diferença para a fase de execução da sentença. Adultos, crianças e adolescentes eram colocados, indiscriminadamente, nas mesmas instituições penitenciárias. A ausência de um tratamento diferenciado era reflexo também da inexistência da infância como uma categoria diferente do mundo dos adultos na consciência social.

 

Em primeiro lugar, os estudos históricos mais sérios e profundos sobre a categoria infância demonstram que esta aparece — como sujeito diferenciado em relação ao mundo dos adultos — somente depois do século XVI (Aries, 1987). Após esta data, um novo tipo de organização familiar e a escola, como momento público específico da vida social, dão início a um longo e complexo processo de consolidação e reprodução ampliada deste novo sujeito. Pelo fim do século XVIII, materializa-se um processo de construção social da categoria criança que pode ser resumido com a expressão: "da indiferença à centralidade".

 

Entretanto, nem todos os sujeitos pertencentes a esta categoria possuem uma referência familiar e/ou têm acesso à instituição escolar. São tais as diferenças que se estabelecem no interior desta categoria, entre incluídos e excluídos, que um conceito único não pode englobar todos. A infância (escola-família) se transformará — em um processo posterior de diferenciação — em crianças e adolescentes. Os excluídos se constituirão em "menores". Para crianças e adolescentes, a família e a escola cumprirão as funções de controle e socialização, requisito imprescindível para a integração no corpo social. Para os excluídos, será necessário criar um instrumento especifico que desenvolva essas funções.

 

Neste sentido, parece não existir dúvida de que os tribunais de menores, tais como foram concebidos e postos em prática, tentaram preencher este vazio de socialização. Criados pela primeira vez em Ilinois, EUA, em 1899, esta hipótese tem sua confirmação em um trabalho clássico sobre o tema cujo próprio título dispensa maiores comentários .

 

Referimo-nos à obra de A. Platt, El descubrimiento de la infância: la invención de la delicuencia (1974).

 

Rapidamente, a idéia dos tribunais de menores se estende pelo continente europeu. Desde o aparecimento do primeiro tribunal (em 1905, na Inglaterra) até 1921, todos os países europeus, com exceção da Itália, tinham completado sua criação. Um processo similar ocorreu na América Latina começando em 1919, na Argentina, e terminando em 1939, na Venezuela. É importante ressaltar que a característica "latino-americana" deste órgão específico de controle está no fato de que as novas disposições normativas (leis de menores) se converterão, apenas, em uma medida mínima numa nova realidade institucional (tribunais de menores).

 

Dois exemplos são suficientes para ilustrar esta realidade. Na América Latina, a primeira lei de menores foi a lei "Agote" da Argentina de 1919, que obviamente previa a criação de um tribunal de menores de âmbito nacional. Tal institucionalização ainda não se concretizou, ficando esta competência nas mãos de alguns juizes ordinários. Somente em 1938, foi criado o primeiro tribunal de menores da Argentina, ainda que sua competência fosse, apenas, para a Província de Buenos Aires. O segundo exemplo diz respeito à Colômbia, onde a lei 98, de 1920, que cria a figura do juiz especializado de menores, materializa-se somente em Bogotá. Em 1926, existiam apenas 4 juizados na Colômbia. Os dois casos são altamente representativos das tendências gerais do continente.

 

Daí se pode deduzir facilmente que, se a retaguarda jurídica se concretiza principalmente no plano das idéias, sem chegar a se materializar, muito mais acentuada será esta tendência no plano das retaguardas sociais propriamente ditas.

 

Além disso, é importante sublinhar que a centralização adquirida pela categoria infância, durante o processo de seu "descobrimento", possui uma contrapartida de não pouca importância, que se manifesta na declaração prévia de algum tipo de incapacidade, independentemente da intenção de reprimir ou proteger. Sobre a incapacidade social desenvolvida através de séculos, estabeleceram-se consensualmente as bases de uma incapacidade jurídica, cujos efeitos culturais negativos chegam até os nossos dias.

 

Estas duas características—incapacidade e não materialização concreta das políticas sociais e judiciárias—impregnaram definitivamente o direito e a política da infância na América Latina.

 

8.4. O problema: fenomenologia e percepção

 

Os eufemismos, os "como se", o desentendimento das conseqüências reais das políticas adotadas e principalmente a não verificação empírica das decisões, determinarão as características essenciais do chamado direito de menores na América Latina. Um direito que, baseado na ambigüidade antijurídica da doutrina da situação irregular, acabou por construir um monstro bicéfalo indiferenciado: o menor abandonado-delinqüente.

 

Neste contexto jurídico que se move dentro dos parâmetros de uma cultura da "proteção-repressão", torna-se impossível identificar a especificidade dos comportamentos delinqüentes.

Diferente do direito penal de adultos, onde o delito constitui uma ação típica, antijurídica e culpável, o direito de menores converterá o delito em uma vaga categoria sociológica. A inexistência de parâmetros objetivos para medir a dimensão quantitativa real da delinqüência juvenil será substituída por instâncias externas, tanto ao sistema da justiça, quanto às políticas sociais: uma opinião pública, que se move a golpes de alarme social.

 

Se o próprio conceito de opinião pública é, por si mesmo, problemático, constituindo, muitas vezes, a menos pública das opiniões o alarme social se caracteriza por um movimento onde a dimensão quantitativa real dos fatos que a originam se constitui em uma variável independente da reação social. O chamado teorema de Thomas ajuda a entender melhor esta situação ao estabelecer que "se um evento é definido como real (independentemente de sua existência), suas conseqüências são reais".

 

Qualquer enfoque racional sobre o tema da chamada "delinqüência juvenil" deve admitir que existem, somente, três fontes possíveis de informação potencialmente capazes de medir a dimensão — e eventualmente a gravidade — da mesma:

 

1) as estatísticas oficiais;

2) as pesquisas setoriais específicas;

3) a opinião pública.

 

Além das dificuldades intrínsecas que as duas primeiras fontes devem afrontar, mesmo em situações político-econômicas ideais, existe o problema adicional dos parâmetros objetivos para a realização de tal medição. Por esta razão, as deficiências parciais ou totais das duas primeiras fontes tendem a ser cobertas, por um movimento quase fisiológico, pela menos objetiva e mais distorcível das fontes que é a opinião pública. É possível que a partir de atos graves cometidos por adolescentes, de dimensão quantitativa incerta ou reduzida, criem-se situações de alarme social cujas conseqüências, em termos de políticas específicas, costumam estar marcadas pela arbitrariedade, ilegalidade e/ou pela inutilidade.

 

Seguindo esta linha de raciocínio, pode-se defender, seriamente, a aversão a qualquer concepção ontológica da delinqüência juvenil. Em outras palavras, isto significa afirmar que o perfil concreto da delinqüência juvenil depende, em grande parte, do sistema (legislativo-executivo) que a defende e controla.

 

Esta posição não implica, de forma alguma, negar a importância e a entidade real de problemas sociais graves. Significa admitir que os distintos graus da problemática social podem ser percebidos-construídos a partir de ângulos completamente diferentes: enfermidade, desajuste emocional, perturbações próprias da idade, tendências criminais inatas, etc.

 

Por todas as razões expostas até aqui, é possível entender a necessidade imperiosa de se encarar o tema do adolescente infrator a partir do angulo da relação específica entre os jovens e o sistema de justiça.

 

No debate relativo à chamada "delinqüência juvenil", duas variáveis de diferente natureza, mas de central importância, devem ser detalhadamente consideradas: as condições materiais e as condições jurídicas. Trata-se, obviamente, de duas variáveis dinâmicas que devem ser entendidas em sua permanente evolução.

 

8.5. Da criança abandonada ao adolescente infrator

 

Neste momento, não é necessário deter-se exaustivamente para demonstrar a deterioração crescente das condições materiais de uma infância inserida no contexto de uma profunda crise estrutural, cuja "década perdida" dos anos 80 constitui sua melhor expressão. Esta deterioração crescente da condição material da infância se manifesta, de forma nítida, no setor dos excluídos dentro do universo infância: "os menores".

 

Três momentos de preocupação, sobre os quais se pode inserir conjunturalmente o alarme social, marcam o nível de deterioração da condição material da infância, ao mesmo tempo em que indicam a percepção social do problema:

 

a) a criança abandonada da década de 60, objeto de uma visão e explicações onde imperam as causas individuais de corte psicológico. Neste caso, as soluções se expressam de forma radicalmente dicotômica: adoção (prévia declaração de estado de abandono) ou estratégias de manutenção e reforço dos vínculos familiares. Os motivos estruturais — e, portanto, as propostas de solução — resultam inexistentes ou permanecem em um segundo plano;

 

b) o menino de rua da década de 70 e 80, objeto de duas visões que se sucedem nos períodos 1980-1985 e 1985-1990. Até o fim do primeiro período, ainda impera uma visão místico-política dominada por um paradigma das necessidades. O menino de rua constitui, alternadamente, nestas visões, a antecipação de uma nova era ou o signo inequívoco da deterioração e das contradições de um sistema próximo a seu colapso definitivo. As propostas de superação, produto deste enfoque, não consideram nem remotamente o plano jurídico, limitando-se a posicionamentos de corte simbólico-individual. Convém lembrar que esta posição, superada no Brasil, ainda persiste com maior ou menor intensidade em muitos países latino-americanos. Durante o segundo período, surge uma visão radicalmente diferente da anterior, que tem o Brasil, sem dúvida alguma, como seu epicentro de origem e que está dominada por uma leitura das necessidades em termos de direitos. O menino de rua como "uma ilha cercada de omissões" (Gomes da Costa, 1992) possibilita enfocar o problema de tal forma que permite perceber, com nitidez, a importância e a qualidade do vínculo entre as condições materiais e jurídicas da infância. O conteúdo e o processo concreto de produção do ECA constitui a melhor síntese desta inversão radical de paradigma. A nova concepção do "menor" como cidadão-criança/cidadão-adolescente é causa e conseqüência, ao mesmo tempo, do enorme processo de mobilização que culmina e se inicia com o ECA.

 

c) o adolescente infrator ou o problema da delinqüência juvenil. Este tema impõe sua presença, ciclicamente, na opinião pública, mais como resultado de campanhas de alarme social bem sucedidas, do que como um crescimento qualitativo e quantitativo da entidade real do problema. Sua consideração nos leva, diretamente, a uma análise serena do tema, a partir dos dados que oferece a atual conjuntura nacional.

Em primeiro lugar, é possível afirmar que o alarme social perante a delinqüência juvenil carece de existência autônoma. O mesmo resulta, invariavelmente, dependente de uma política de ordem pública (ou de um clamor por uma nova política de ordem pública), que tem sua origem e projeta soluções de/para o conjunto da sociedade. Entretanto, e considerando novamente o teorema de Thomas, seus efeitos reais são indiscutíveis. Com a ausência de pesquisas setoriais específicas, as estatísticas (policiais e judiciais) constituem potencialmente o único contrapeso importante, mais ou menos objetivo, para o movimento da opinião pública que está na base do alarme social. Além das deficiências intrínsecas das estatísticas policiais (as condenações judiciais em geral, e não somente no contexto brasileiro, não superam jamais 10-15 % das detenções), ainda impera, para a categoria adolescência, o conflito explícito entre uma cultura da proteção-repressão e um marco jurídico que, rompendo completamente com a doutrina da situação irregular, coloca definitivamente a categoria adolescência como sujeito pleno de direitos. No velho contexto da doutrina da situação irregular, as forças policiais eram colocadas, institucionalmente, para realizar o trabalho sujo, produto da ausência de políticas sociais básicas e de proteção especial. No contexto atual, determinado pelo ECA, a ausência ou debilidade de retaguardas sociais adequadas costuma provocar intervenções policiais marcadas pela ilegalidade e/ou inutilidade, intervenções estas que contribuem para o posterior aumento das estatísticas oficiais. Eis aqui uma parte não desprezível das bases "reais" do alarme social em nível de opinião pública.

 

8.6. O adolescente infrator: sujeito de direitos e deveres

 

Realizadas estas prévias considerações, é possível enfrentar com seriedade o tema das infrações penais, com vários níveis de gravidade, cometidas por adolescentes, sujeitos de direitos, mas, de igual forma, sujeitos de obrigações precisas. São três os motivos principais que determinam a consideração prioritária deste problema:

 

a) a existência indiscutível de atos graves de relevância penal atribuídos a adolescentes, apesar de quantitativamente reduzidos (uma média real estimada de homicídios cometidos por adolescentes no Rio e em São Paulo não chega, de maneira nenhuma, a 8 por mês, considerando-se as duas cidades conjuntamente);

b) o direito indiscutível de toda sociedade à segurança pública e individual;

c) o fato, como diferentes conjunturas específicas demonstram particularmente nas grandes capitais do Brasil, de que o alarme social produzido por infrações graves cometidas por adolescentes tende a comprometer o conjunto das políticas para a infância.

 

O marco jurídico proporcionado pelo ECA elimina definitivamente o debate estéril sobre a relevância penal dos comportamentos sociais negativos atribuídos aos adolescentes. O conteúdo do art. 103 permitiria dispensar maiores comentários.

 

Esse artigo define taxativamente como ato infracional aquela conduta prevista em lei como contravenção ou crime. A capacidade jurídica para assumir a responsabilidade pela conduta descrita anteriormente começa aos 12 anos, tal como prevê, em sentido contrário, a redação tecnicamente pouco feliz do art. 105.

 

Mas, apesar da clareza do art. 103, persistem ainda hoje os velhos vícios da cultura menorista, que confundem a prática de comportamentos indesejáveis (para quem?) com a ação estrita de uma infração penal. O cumprimento das regras do jogo, impostas pelo Estatuto, determina a desjudicialização e, em conseqüência, o tratamento não coativo dos chamados comportamentos socialmente negativos. A parte mais severa do ordenamento legal previsto no ECA deve ser interpretada simultaneamente com o conjunto de garantias destinado ao adolescente a quem é atribuída a autoria do ato infracional: proibição de detenções ilegais ou arbitrárias (art. 106) e reafirmação de garantias e do devido processo (art. 110 - 111). Judicialmente verificada a prática do ato infracional, compete à autoridade (judicial) a aplicação de algumas das medidas previstas no art. 112. Agora não é o momento de se ocupar do resto das medidas sócio-educativas que não impliquem a privação de liberdade. Convém, ao contrário, recordar brevemente que, de acordo com a letra e o espírito do Estatuto, a esfera municipal e a sociedade civil organizada neste âmbito estão perfeitamente legitimadas para intervir —nos termos da lei — na aplicação de tais medidas. E, mais importante ainda, que o funcionamento incorreto das medidas alternativas da privação de liberdade provoca um crescimento ilegal e inútil do uso da mesma.

 

A utilização não eufemística do termo "privação de liberdade" (art. 121) para designar a medida de internação constitui uma exceção única e saudável no contexto das legislações menoristas latino-americanas. Isto indica a intenção inequívoca do espírito do Estatuto de superar o falso dilema impunidade-arbitrariedade, substituindo-o pela combinação harmoniosa do binômio severidade-justiça. A delineação de uma política de internação deve ser composta, necessariamente, pelo resultado de uma interpretação correta do disposto nos art. 121 a 125 do ECA, à luz do conjunto das disposições do Estatuto e de outros instrumentos internacionais que formam a Doutrina da Proteção Integral.

 

O art. 121 define o caráter da medida privativa de liberdade em concordância absoluta com a Doutrina da Proteção Integral, como estritamente sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Por seu lado, o art. 122 estabelece taxativamente que a medida de internação só poderá ser aplicada quando:

 

I — tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa;

II — por reiteração no cometimento de outras infrações graves;

III — por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.

 

§ 1 °. O prazo de internação na hipótese do inciso III deste artigo não poderá ser superior a três meses.

 

§ 2°. Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada.

Além do caráter inequívoco destas disposições, estas deveriam ser interpretadas à luz do § 2° do art. 122, considerado de forma específica. Pode-se afirmar que esta última disposição "inverte o ônus da prova", obrigando o juiz a demonstrar, fundamentalmente, os motivos que impossibilitaram a aplicação de uma medida diferente da internação. No entanto, considerando-se o conjunto das disposições do Estatuto, estes motivos só poderão se referir àquelas disposições taxativamente estabelecidas na própria lei.

 

A não aplicação de uma medida alternativa da privação de liberdade, devido a deficiências institucionais, poderá levar a ações pertinentes para corrigir esta situação, mas jamais poderá constituir um motivo para justificar a privação de liberdade.

 

Sobre o disposto nos arts. 123 e 124, sua clareza dispensa maiores comentários, permitindo vincular sua impossibilidade de cumprimento apenas a uma omissão deliberada por parte da autoridade competente. O parágrafo único do art. 123 merece um comentário adicional, no sentido de que a obrigatoriedade de atividades pedagógicas — em condições de privação de liberdade — constitui uma imposição incontestável para a instituição responsável pela execução da medida.

 

8.7. 0 adolescente infrator e a competência institucional

 

A respeito da responsabilidade institucional da execução concreta da medida de privação de liberdade, é necessário ater-se primordialmente ao disposto pelo art. 125 e § 1° do art. 121.

 

Ao contrário do estabelecido em outras disposições do Estatuto e até em preceitos constitucionais fundamentais (art. 227, CF), o art. 125 designa exclusiva e inequivocamente o Estado como o responsável absoluto "para velar pela integridade física e mental dos internos...".

 

Considerando as disposições constitucionais, em matéria de segurança, a palavra "Estado" se refere outra vez, e de maneira inequívoca, às unidades federadas.

 

Consciente da possibilidade de existência de infrações penais graves cometidas por adolescentes e, ao mesmo tempo, de sua reduzida dimensão quantitativa, o legislador previu uma única e acertada exceção ao princípio da municipalização do atendimento previsto no art. 88.

 

A descentralização municipal da implementação da medida de privação de liberdade conduziria à criação de uma oferta excessivamente superior ao potencial máximo da demanda. Deixa-se aqui de lado, deliberadamente, o problema posterior da dimensão e irracionalidade que esta atomização provocaria.

 

Ao contrário, surge, bem diferente disso, no interior dos princípios já mostrados, a possibilidade de estabelecer, excepcionalmente, consórcios municipais, onde a demanda real fosse necessária.

 

Quanto à dimensão quantitativa nas unidades de internação, o respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (art. 121) exige que não se ultrapasse a quantidade de 40 ou 50 internos por unidade. Tais unidades deverão formular sua política detalhada de atendimento, com base em dois princípios irrenunciáveis: a incompletude institucional e profissional.

 

8.8. Princípios básicos do atendimento:

 

a) incompletude institucional e b) incompletude profissional.

 

O primeiro princípio consiste em tornar a instituição responsável pela execução da medida o mais dependente possível dos serviços normais do mundo exterior (educação, saúde, lazer etc.), como forma de antecipação concreta da finalidade declarada de plena reintegração social. Este princípio se vê legitimado tanto em experiências concretas bem sucedidas, quanto nas normas específicas da Doutrina da Proteção Integral, encontrando, além disso, fundamento no disposto no § 1° do art. 121.

 

O segundo princípio se refere à necessidade de quebrar a cultura da "solidariedade negativa" que invariavelmente se estabelece no interior das instituições totais. Trata-se de proporcionar bases estruturais para impedir a tendência à cumplicidade anti-pedagógica entre educadores e educandos. Com exceção do mínimo de pessoal de direção e infra-estrutura imprescindível, a maioria dos educadores deveria compartilhar a experiência do trabalho com infratores com outras atividades diferentes no mundo da "normalidade''. É aconselhável, portanto, que estes educadores não possuam um vínculo administrativo, nem total, nem permanente, com a instituição.

 

8.9. Segurança

 

Para abordar este tema, é necessário livrar-se de eufemismos e preconceitos, colocando como princípio superior a ser respeitado a integridade física e mental dos internos (art. 125).

 

Este tema deve ser considerado, portanto, à luz do fato de que uma proporção, de não desprezível importância, de adolescentes assassinados constitui o resultado concreto da falta ou ausência de uma política adequada de contenção e segurança.

 

Por este motivo, e somente nos casos em que as circunstâncias aconselhem uma estratégia diversa, a instituição competente (PM) deve garantir a segurança externa das unidades de internação, podendo intervir internamente apenas na hipótese de expressa solicitação escrita do responsável da unidade e prévia autorização da autoridade judicial responsável pela medida.

 

8.10. A utopia necessária

 

Por último, é necessário acrescentar que todos os esforços de implementação desta medida — excepcionalíssima — deverão estar combinados com um empenho cultural sobre o conjunto da sociedade para ajudá-la (nos) a liberar-se (nos) da necessidade do seqüestro de conflitos sociais que uma sociedade mais justa colocaria em evidência como absurda.

 

A medida de privação de liberdade deve ser permanentemente construída — (de-construída) à luz da utopia positiva que estabelece que a prisão ideal é somente aquela que não existe.

 

PARTE II

 

9 De menor a cidadão

 

9.1 Introdução

9.2 Antecedentes:

9.2.1 Considerações gerais:

9.2.2 A pré-história da política social brasileira: até 1900;

9.2.3 As primeiras iniciativas: 1900-1930;

9.2.4 A implantação: 1930-1945;

9.2.5 Expansão conflitiva: 1945-1964;

9.2.6 A reversão autoritária: 1964-1980;

9.2.7 Democratização e crise

9.3  80: uma década de mudanças;

9.3.1 Procurando um caminho: 80-82;

9.3.2 Aprendendo com quem faz: 82-84;

9.3.3 Ganhando força: 8486;

9.3.4 Entrando na luta: 86-88;

9.3.5 Colhendo a vitória

9.4 Resultados:

9.4.1 No panorama legal;

9.4.2. No reordenamento institucional:

9.4.3 Na melhoria da atenção direta

9.5 O impacto de uma década de luta e trabalho:

9.5.1 Impacto sobre a política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente no Brasil;

9.5.2 Impacto sobre os movimentos e entidades não-governamentais;

9.5.3 Impacto sobre as políticas públicas;

9.5.4 Impacto sobre o comportamento da sociedade em relação aos direitos da criança e do adolescente;

9.5.5 Impacto sobre o mundo empresarial

9.6 Conclusões.

 

9.1. Introdução

 

Ao longo dos anos oitenta o Brasil foi palco de um importante conjunto de transformações no que se refere ao atendimento, à promoção e à defesa dos direitos da infância e da juventude. A culminância deste processo foi, com toda certeza, a aprovação pelo Congresso Nacional e a sanção pelo Presidente da República do Estatuto da Criança e do Adolescente, uma lei avançada, que rompe radicalmente com a tradição brasileira e latino-americana neste campo e, ao mesmo tempo, incorpora ao direito positivo do país as concepções e os mecanismos da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989, assim como de outros documentos da normativa internacional.

 

O propósito deste trabalho é (i) proceder ao registro sumário dos antecedentes e das principais fases da evolução deste processo, (ii) apontar os resultados obtidos e (iii) sinalizar o impacto das mudanças sobre o comportamento da sociedade e do Estado brasileiros em relação aos direitos das crianças e adolescentes.

 

Trata-se, portanto, de uma tentativa de compreensão do caso brasileiro de mudanças no panorama legal relativo à infância e à juventude, tendo como ponto de partida a percepção do caráter original e prefigurador desta experiência.

 

No período de 1986 a 1990, as forças vivas da sociedade e do Estado, que atuam em favor da ampliação e vigência plena dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil, foram capazes de produzir um significativo elenco de mudanças através de sua participação no processo de elaboração legislativa em todos os níveis. Neste sentido, podemos apontar:

 

a) A introdução de um avançado capítulo sobre os direitos da criança e do adolescente na Constituição Federal;

b) A inserção destes mesmos direitos, de forma mais detalhada, nas Constituições de quase todos os estados e nas leis orgânicas de centenas de municípios brasileiros;

c) A regulamentação dos direitos conquistados na Constituição, através de uma lei codificada contendo 267 artigos (22 artigos a mais do que o corpo do texto da Carta Magna). Uma lei que tem como paradigma os mais recentes avanços da Normativa Internacional e, como conteúdo, o melhor da experiência acumulada pelo movimento social brasileiro.

 

Nossa convicção, ao proceder este relato, é de que o patrimônio de idéias e experiências que o movimento social brasileiro acumulou neste campo poderá ser útil a todos aqueles que se proponham a assegurar para as nossas crianças e jovens o mais elementar e fundamental dos direitos que é, sem dúvida alguma, "o direito de ter direitos".

 

9.2. Antecedentes

 

9.2.1 Considerações gerais

 

A evolução histórica do atendimento, da promoção c da defesa dos direitos da criança e do adolescente no Brasil, para ser captada em sua inteireza e em seu dinamismo, deve ser vista enquanto momento de um processo mais amplo ao nível da sociedade e do Estado, ou seja, da política social. Em cada fase da progressão da experiência nacional nesta área, é possível indicar a posição relativa do atendimento aos direitos da criança no quadro mais amplo das relações entre os pobres e o ramo social do Estado.

 

Tal intento implica, para maior clareza, a necessidade de enquadrarmos os antecedentes histórico-sociais do período que mais nos interessa—os anos 80 do século XX—numa breve periodização da evolução das políticas sociais públicas no Brasil.

 

Assim passaremos a apresentar a evolução resumida da política social brasileira dividindo a sua trajetória em seis períodos básicos:

 

a) Pré-história — até 1900;

b) As Primeiras Iniciativas —  1900-1930;

c) A Implantação — 1930-1945;

d) Expansão Conflitiva — 1945 - 1964;

e) Extensão Autoritária — 1964 - 1980;

f) Democratização e Crise — 1980-1990.

 

9.2.2 A pré-história da política social brasileira: até 1900

 

Da chegada dos colonizadores até o início do século XX não se registra, no corpo do Estado brasileiro, a presença de ações que possam ser caracterizadas como política social.

 

O atendimento às necessidades da população neste campo foi, durante os primeiros quatrocentos anos de nossa história, uma função entregue totalmente à Igreja Católica.

 

Neste período a instituição típica de atendimento aos doentes, aos pobres, aos idosos, aos órfãos e às viúvas e outros desamparados foram as Santas Casas de Misericórdia, a instituição de atendimento mais típica desse período e cuja origem remonta ao século XVI.

 

As Santas Casas eram auxiliadas no seu trabalho de atendimento à pobreza pelas irmandades, confrarias, ordens e outras organizações de caráter religioso que proliferaram intensamente no Brasil durante este período.

Em termos de direitos, o traço mais importante dessa fase é a extensão da cidadania civil (abolição da escravatura) ao conjunto da população no final do século XIX.

 

9.2.3 As primeiras iniciativas: 1900-1930

 

Esta fase é marcada pelo início das lutas sociais lideradas por trabalhadores urbanos. Em 1923 surge a primeira Caixa de Aposentadoria e Pensão (Ferroviários), embrião de toda a política previdenciária, eixo dorsal da futura ação social que já começa a delinear-se no Estado.

 

Em 1922 começa a funcionar o primeiro estabelecimento público de atendimento a menores do Distrito Federal (Rio de Janeiro). Em 1927, o Brasil cria o seu primeiro Código de Menores, cujo autor foi Mello Mattos, juiz de Menores da capital da República. Assim, o Brasil começa a implantar o seu primeiro sistema público de atenção às crianças e jovens em circunstâncias especialmente difíceis.

 

9.2.4 A implantação: 1930-1945

 

A revolução de 1930 é a expressão política da quebra do predomínio do setor agrário-exportador na condução do Estado e da sociedade brasileiros. O período que se segue à derrubada das oligarquias rurais do poder político é marcado pela incapacidade de qualquer grupo social de formular e implementar um projeto político legítimo e coerente para a Nação.

 

Essa situação oportuniza o surgimento de um Estado autoritário, com características corporativas, que faz das políticas sociais o instrumento de incorporação das populações trabalhadoras urbanas ao projeto nacional do período que ficou conhecido no Brasil como Estado Novo, regime político que passou a vigorar no país a partir de 1937.

 

Nesta fase de implantação efetiva do Estado-Social brasileiro várias reivindicações sociais e políticas da sociedade foram atendidas: legislação trabalhista, sufrágio ampliado, obrigatoriedade do ensino básico, generalização da cobertura previdenciária para várias categorias de trabalhadores, primeiras medidas preventivas e repressivas contra o aumento abusivo dos preços (Leis de Crimes contra a Economia Popular).

No que se refere ao atendimento às crianças e jovens em circunstâncias especialmente difíceis, o regime nascido da Revolução de 1930, em sua fase mais autoritária, cria o SAM — Serviço de Assistência ao Menor, em 1942. Trata-se de um órgão do Ministério da Justiça e que funcionava como um equivalente do Sistema Penitenciário para a população menor de idade.

 

A orientação do SAM é, antes de tudo, correcional-repressiva. Seu sistema de atendimento baseava-se em internatos (reformatórios e casas de correção) para adolescentes autores de infração penal e de patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios urbanos para os menores carentes e abandonados. Até 1945, o órgão responde bem às finalidades para as quais foi criado e estabelecimentos similares aos da Capital da República são criados em vários estados.

 

Além do SAM, surgem neste período diversas entidades federais de atenção à criança e ao adolescente ligadas à figura da primeira Dama do País:

 

— Legião Brasileira de Assistência (LBA): Uma agência nacional de assistência social voltada inicialmente para apoio aos combatentes na II Guerra Mundial e suas famílias e, posteriormente, à população carente de modo geral;

— Fundação Darcy Vargas: Organismo de cooperação financeira que apóia a implantação de hospitais e serviços de assistência materno-infantil em diversos pontos do país;

— Casa do Pequeno Jornaleiro: Programa de atenção a meninos de famílias de baixa renda baseado no trabalho informal (venda de jornais) e no apoio assistencial e sócio-educativo;

— Casa do Pequeno Lavrador: Programa de assistência e aprendizagem rural para crianças e adolescentes filhos de camponeses;

— Casa do Pequeno Trabalhador: Programa de capacitação e encaminhamento ao trabalho de crianças e adolescentes urbanos de baixa renda;

— Casas das Meninas: Programa de apoio assistencial e sócio-educativo a adolescentes do sexo feminino com problemas de conduta.

 

Estes programas baseavam-se no oferecimento de assistência e educação básica, assim como em estratégias de trabalho/geração de renda. Alguns de seus propósitos e componentes lembram, em certa medida, os atuais programas de atendimento alternativo a meninos e meninas de rua. A grande diferença situa-se na vinculação destas iniciativas à ação direta do Governo central e ao caráter marcial e compulsório das práticas pedagógicas desenvolvidas nesse período.

 

9.2.5 Expansão conflitiva: 1945-1964

 

Terminada a ditadura do Estado Novo, a Carta Constitucional muda em 1946, enchendo-se de inspiração liberal. A estrutura do ramo social do Estado brasileiro, no entanto, permanece constante.

 

Na sociedade como um todo, assim como no interior da administração pública, passam a coexistir duas tendências, uma de aprofundar as conquistas sociais do período anterior em relação à população de baixa renda, a outra no sentido de frear e manter sob controle da burocracia estatal a tendência à mobilização e à organização que passa a surgir no meio da população pobre.

 

Em razão deste visceral antagonismo entre reformistas e conservadores, o país assiste ao permanente adiar de decisões básicas para a consolidação da política social do Estado brasileiro. A Reforma do Ensino é um claro exemplo disso. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional tramitou no Congresso Nacional durante treze anos (1948 a 1961), o mesmo ocorrendo com a questão da unificação previdenciária.

 

No início dos anos 60, as massas de trabalhadores e camponeses começam a romper com os mecanismos de controle herdados do Estado Novo. A expressão desta ruptura dá-se por meio de tentativas de organização autônoma e por reivindicações no sentido de uma política social efetivamente redistributiva e autopromotora.

 

Com a ampliação, ainda que incipiente, da participação política semi-autônoma dos segmentos populares coloca-se o impasse: ou a sociedade civil organizada ou o Estado corporativo teriam de ceder progressivamente espaço ao outro e tender ao desaparecimento. A coexistência dos dois modelos de estruturação torna-se politicamente inviável.

Os acontecimentos que se seguem mostram o desaparecimento destas duas grandes tendências. O regime militar de 1964 vem destruir, ao mesmo tempo, a política social corporativa tutelada pelo Estado e frear e silenciar o embrião de organização autônoma da população de baixa renda.

 

No que se refere ao atendimento aos direitos da criança e do adolescente, neste período ressaltou a criação da Campanha Nacional de Merenda Escolar, a criação do SAMDU (Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência) e pela sistemática decadência do SAM, que passa a ser execrado perante a opinião pública pela imprensa de oposição ao governo. Seu caráter repressivo, embrutecedor e desumanizante é desvelado à opinião pública, que passa a conhecê-lo como "universidade do crime" e "sucursal do inferno".

 

9.2.6 A reversão autoritária: 1964-1980

 

Quando se apagam as luzes do período democrático (1946-1964), o Estado brasileiro passa por grandes transformações. Não se fala mais em política social como um fim em si, mas como um meio para atingir outras finalidades. O atendimento às necessidades sociais passa a ser feito em nome dos efeitos econômicos ou da racionalidade tecnocrática.

 

Nesta nova concepção, o gasto social público passa a atender a uma dupla finalidade: fortalecer determinados segmentos do setor empresarial e atender às necessidades básicas dos segmentos mais vulneráveis da população. O Banco Nacional de Habitação (BNH) articula-se organicamente com os interesses dos empresários da construção civil e dos agentes financeiros. O Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) passa a considerar obrigação sua sustentar e manter a iniciativa privada na área de saúde. Como se vê, a missão institucional dos organismos sociais públicos junto a seus destinatários passa a ser "um aspecto entre outros" a ser considerado pelos dirigentes do aparelho do Estado.

 

Os programas sociais deste período são marcados pelas seguintes características básicas:

 

a) Ocorrência de paralelismos, desperdícios, superposição e até mesmo antagonismos entre programas de origens diversas;

b) Centralismo burocrático que traz, para o âmbito do estado e do município, programas de decisão e ação federais, desfigurando, desta forma, o caráter federativo da República;

c) Muitos programas têm um claro sentido de controle social das populações pobres, reduzindo-as a objeto passivo da intervenção assistencial do Estado;

d) A participação dos destinatários se fazia sob a forma de "mão-de-obra" para execução de determinadas ações ou em decisões sem maior relevância;

e) A instrumentalização político-eleitoral de ações tópicas, chegando mesmo a comprometer o caráter social de certas ações;

f) O efeito político desmobilizador, através da sistemática sonegação da iniciativa e da criatividade das bases comunitárias;

g) A desuniformidade de critérios na distribuição das verbas, recebendo mais quem melhor acesso e simpatia obtenha em relação aos decisores públicos:

h) Não-coincidência entre a pauta de prioridades do Estado e as necessidades objetivas das comunidades pobres;

i) Retenção da maior parte dos recursos em atividades de intermediação e controle, fazendo com que apenas uma parcela mínima dos recursos destinados à área social chegasse realmente aos destinatários.

 

No campo do atendimento aos direitos das crianças e jovens em circunstâncias especialmente difíceis, a atuação do Estado neste período foi presidida por dois diplomas legais da maior importância:

 

a) A Lei 4.513/64, que estabelecia a Política Nacional de Bem-Estar do Menor;

b) A Lei 6.697/79 (Código de Menores), que tratava da proteção e vigilância aos menores em situação irregular.

 

Estas duas leis não se dirigiam ao conjunto da população infanto-juvenil brasileira. Seus destinatários eram apenas as crianças e jovens considerados em situação irregular. Entre as situações tipificadas como situação irregular encontrava-se a dos menores em estado de necessidade "em razão da manifesta incapacidade dos pais para mantê-los". Desta forma, as crianças e adolescentes pobres passavam a ser objeto potencial de intervenção do sistema de administração da Justiça de Menores.

Além dos mais, havia um único conjunto de medidas aplicáveis o qual se destinava, indiferentemente, ao menor carente, ao abandonado e ao infrator.

 

A PNBEM (Política Nacional de Bem-Estar do Menor) estabelecia para todo o país uma gestão centralizadora e vertical, baseada em padrões uniformes de atenção direta implementados por órgãos executores inteiramente uniformes em termos de conteúdo, método e gestão. O órgão nacional dessa política chama-se Funabem (Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor), os órgãos executores estaduais eram as Febem(s) (Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor).

 

Embora se propondo a substituir, através de uma nova política de atendimento, as práticas correcionais-repressivas do antigo SAM, a Funabem acabou sucumbindo a elas. Isto veio a ocorrer devido à incidência de fatores de natureza diversa nos momentos de transição, implantação e implementação da política que se propunha a superar as práticas do antigo SAM.

 

Registra-se, nesse período de modernização conservadora da vida brasileira, uma nova maneira de entender e uma nova maneira de intervir nessa realidade.

 

O enfoque correcional-repressivo, que via o menino como ameaça social, é substituído pelo enfoque assistencialista, que passa a percebê-lo como um carente. Assim, a noção de periculosidade cede espaço central na estratégia de atendimento para a noção de privação.

 

O assistencialismo dirige-se à criança e ao jovem perguntando pelo que ele não é, pelo que ele não sabe, pelo que ele não tem, pelo que ele não é capaz. Daí que, comparado ao menino de classe média, tomado como padrão da normalidade, o menor marginalizado passa a ser visto como carente bio-psico-sócio-cultural, ou seja, um feixe de carências.

 

Erigido sobre essa visão, o atendimento pautou-se pela tentativa de restituir à criança e ao jovem tudo o que lhe havia sido sonegado no âmbito das relações sociais. Isso levou à adoção dos centros de triagem, nas capitais, e das redes oficiais de internatos, no interior, como modelo básico de atendimento público ao menor em todo o país.

Ocorre que a Funabem, ao ser criada, bem como muitas de suas congêneres estaduais, herdou do órgão antecessor prédios, equipamentos, materiais e sobretudo pessoal — e, com esse pessoal, a cultura organizacional do passado.

 

Isso determinou que, na prática, o modelo correcional-repressivo de atendimento nunca fosse, de fato, inteiramente superado. O modelo assistencialista conviveu, durante toda a sua vigência hegemônica, com as práticas repressivas herdadas do passado.

 

Com o início do processo de abertura democrática, no final dos anos 70, surge entre os educadores e trabalhadores sociais da área, um movimento de educação progressista.

 

O menino deixa de ser visto como um feixe de carências e passa a ser percebido como sujeito de sua história e da história de seu povo, como um feixe de possibilidades abertas para o futuro. Agora se pergunta o que ele é, o que ele sabe, o que ele traz e do que ele é capaz.

 

Ocorre, no entanto, que a instauração de nenhuma dessas fases foi capaz de eliminar a anterior. Assim, os enfoques e práticas correcionais-repressivos, assistencialistas e educativos passaram a conviver, de forma justaposta, no interior da Funabem e das suas congêneres estaduais.

 

Na segunda metade dos anos 70, o regime militar inicia um processo de "distensão lenta, gradual e segura". O padrão de atendimento às crianças e jovens em circunstancias especialmente difíceis, baseado no ciclo perverso da institucionalização compulsória resultante da aplicação das leis 4.513/64 e 6.697/79, começa a provocar o repúdio ético e político dos setores da sociedade mais sensíveis à questão dos direitos humanos.

 

De fato o ciclo "apreensão/triagem/rotulação/deportação e confinamento" começa a ser conhecido tanto pela perversidade de suas práticas, como pela ineficácia de seus resultados. Convencidos da inadequação da proposta que vinha sendo implementada até então, os dirigentes da Funabem optam pelo trabalho com as crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social em suas próprias comunidades de origem.

Um grande programa nacional é concebido e estruturado de forma centralizada, vertical e padronizadora, como era do feitio das políticas públicas neste período. O Plimec (Plano de Integração Menor-Comunidade) é implantado em todo o país, através dos chamados Núcleos Preventivos cuja função é atender à criança e ao adolescente em seu meio de origem de modo a evitar que, premidos pela necessidade de participar da estratégia de sobrevivência das suas famílias, eles acabem tornando-se trabalhadores de rua ou meninos e meninas que fazem do espaço público seu lugar de moradia e de luta pela vida.

 

Contudo, a padronização e o verticalismo do Plimec enrijeceu de modo excessivo a proposta dos núcleos preventivos, não lhes permitindo adaptar-se de modo efetivo às demandas e peculiaridades da realidade local.

 

Somente em alguns poucos estados onde a comunidade técnica foi capaz de ludibriar os rígidos critérios e padrões do Governo central é que o programa, através da gestão democrática e do planejamento a partir da realidade local, foi capaz de atingir os níveis de maturidade técnica e legitimidade política que dele esperavam os seus formuladores.

 

Isto, porém, ocorreu apesar do órgão nacional e não por causa dele.

 

De qualquer modo, este é um indicador de que as coisas começavam a mudar. O fracasso do Plimec em nível nacional suscitou reflexões, autocríticas e avaliações que, na década seguinte, passarão a ter uma importância decisiva no curso dos acontecimentos.

 

A segunda metade dos anos 70, porém, já não encontra o Estado como protagonista solitário das ações no campo social. Os setores populares, cuja reorganização tivera início no princípio da década já emergem como uma força de oposição e como um interlocutor ativo e crítico dos dirigentes e técnicos das políticas públicas.

 

De fato, com o fim do período democrático iniciado em 1945, o Estado autoritário se desvencilhou da pressão das massas e trilhou seus caminhos desembaraçado de qualquer tipo de pressão dos setores populares.

No entanto, o mesmo mecanismo que levou o Estado a formular suas políticas "de costas para o povo" teve efeitos ambíguos, pois, paradoxalmente, criou possibilidades para o desenvolvimento nas periferias urbanas e áreas rurais pauperizadas de fontes de ação social autônoma, coisa que no Brasil não ocorria desde a década de 20, com a dissolução do anarco-sindicalismo, introduzido no país por trabalhadores europeus, principalmente italianos e espanhóis.

 

Vários são os sinais que atestam, no final dos anos 70, o surgimento de um movimento social de tipo novo entre a população de baixa renda. Um movimento social que se constitui "como esfera de organização e de interesse separada do Estado", ou seja, como sociedade civil. Vejamos alguns destes sinais:

 

— Ao lado das antigas associações de amigos de bairros surgem novas associações de moradores independentes e combativas, desatreladas dos patrocinadores convencionais deste tipo de iniciativa;

— Contestando as velhas lideranças sindicais atreladas à burocracia estatal, surgem os grupos de oposição sindical, com propostas de organização de um novo sindicalismo no país;

— Movimentos contra a carestia denunciam o processo de decisão na área econômica, que impõe cada vez mais restrições e sofrimentos aos assalariados de baixa renda. Mães, trabalhadores, professores e funcionários públicos integram esta nova forma de ação social independente;

— Movimentos culturais e grupos de teatro e música popular organizam-se nas periferias. Muito desses movimentos expressam em suas manifestações um forte acento na cultura afro-brasileira.

— Uma "imprensa de bairro" aparece, tornando esses trabalhos, lutas e experiências do segmento mais esclarecido e resoluto, práticas e vivências compartilhadas por milhares de pessoas.

 

A participação da Igreja neste processo de ação social autônoma tem sua raiz nas profundas mudanças de concepção no trabalho pastoral que têm início nas reformas que se seguiram ao Concílio Ecumênico Vaticano II.

 

Segundo as novas concepções, a evangelização integral pressupõe "uma salvação do homem todo e de todos os homens". Tal percepção impulsiona os novos padres a propor aos fiéis o debate de suas condições de vida e da ação necessária a melhorá-la. Isto se dá principalmente nas CEB(s), comunidades eclesiais de base, levando as populações marginalizadas à ascensão a novos patamares de consciência e organização.

 

É importante salientar aqui o fato de a Igreja possuir uma dimensão da temporalidade diferente da dos demais atores. Ela opera com horizontes de tempo sem limites. Importa menos que as mudanças ocorram agora ou demorem anos para ocorrer. O importante é prepará-las, trabalhar para que venham.

 

Na área do atendimento às crianças e jovens em circunstâncias especialmente difíceis, o fracasso do Plimec, no âmbito da prática governamental junto com os CSU (Centros Sociais Urbanos) e outras iniciativas da mesma natureza, somado com a emergência de um movimento social de tipo novo, preparam e conferem inteligibilidade aos acontecimentos decisivos que haverão de caracterizar a marcha dos anos 80.

 

9.2.7 Democratização e crise: 1980-l990

 

Os anos oitenta são considerados a "década perdida" em termos de desenvolvimento econômico no Brasil. Se por um lado, no entanto, as condições objetivas do país conheceram um forte e acelerado processo de degradação, por outro, os avanços políticos e institucionais rumo ao estado democrático de direito foram realmente inegáveis.

 

Em meio a uma permanente conjuntura de crise econômica, o País elegeu um presidente civil, elaborou uma nova Carta Constitucional com ampla participação democrática dos mais diversos segmentos da sociedade. Reviu corajosamente a legislação herdada do autoritarismo e elevou a um nível, até então inédito, o exercício das liberdades públicas.

 

Como um dos momentos da fase seminal desta floração democrática é que, no início dos anos 80, começam a amadurecer as condições que haverão de engendrar, em meados da década, um amplo movimento social em favor das crianças e adolescentes em circunstancias especialmente difíceis.

Este movimento chegará ao final da década com um significativo saldo de conquistas e realizações em favor da infância e da juventude, com uma identidade, estrutura e um funcionamento diferenciados dos demais segmentos do movimento social, exibindo ainda uma organização ampla e capilar em todo o país.

 

Acima de tudo, entretanto, é importante salientar que a força transformadora e o vivo compromisso que animam esta luta têm sido suficientes para superar os duros reveses que, nos últimos anos, impactaram negativamente o desempenho de outros segmentos organizados e comprometidos com mudanças no Estado e na sociedade brasileira.

Este processo, porém, será analisado de forma mais detida na próxima seção deste trabalho: Oitenta: Uma década de mudanças.

 

9.3. 80: uma década de mudanças

 

9.3.1 Procurando um caminho: 80-82

 

O fracasso do Plimec e a ascensão do movimento social trouxeram uma certa perplexidade aos setores que, mesmo vinculados às políticas públicas, se haviam comprometido com a necessidade de mudanças nas concepções e práticas convencionais de atendimento a crianças e jovens em circunstancias especialmente difíceis.

 

A "distensão lenta, gradual e segura", proposta pelos militares, empurrada pela sociedade, já começava a tomar um ritmo mais acelerado e a nova etapa já recebia uma denominação nova: "abertura democrática". Apesar das estruturas do poder arbitrário ainda estarem em plena vigência, havia no ar uma confiança na irreversibilidade do processo de redemocratização do país. Isto criava uma ambiência favorável e, de uma certa maneira, estimulava a ousadia.

 

Se, em tantos setores do movimento social, mudanças significativas estavam ocorrendo o que estaria se passando na área do atendimento não-governamental a crianças e adolescentes das periferias urbanas e das áreas rurais pauperizadas?

 

O simples olhar sobre a paisagem urbana nas grandes e médias cidades brasileiras apontava uma realidade muito dura: milhares de crianças e adolescentes fazendo das ruas seu espaço de luta pela sobrevivência e até mesmo de moradia.

 

Era preciso aprender a olhar aqueles meninos a olho nu, com o olhar desarmado das categorias estigmatizantes do Código de Menores (situação irregular) e da PNBEM (Política Nacional de Bem-Estar do Menor). Chamá-los de menores era enquadrá-los nas categorias inscritas nas leis de controle social da infância e da juventude que, só agora, nos espíritos mais críticos, começavam a ser percebidas como parte do entulho autoritário que a reconstrução democrática da vida nacional, um dia, haveria de banir do panorama legal brasileiro.

 

O Código de Menores e a PNBEM começavam, assim, a perfilar junto com os demais ordenamentos do regime autoritário, como os atos de exceção, a Lei de Greve, a Lei de Segurança Nacional, a Lei de Imprensa e tantos outros instrumentos de controle da sociedade por parte do Estado.

 

O avanço das reflexões nesta linha permitiu perceber o menino de rua como a figura emblemática da situação da infância e da adolescência no Brasil. Por trás dos meninos e meninas que estão nas ruas, vamos encontrar as periferias urbanas onde milhões de famílias subsistem sem condições mínimas de bem-estar e de dignidade. Indo mais além, por traz da duríssima realidade das periferias vamos encontrar as zonas rurais pauperizadas, a cruel realidade rural brasileira responsável pela expulsão de milhões de famílias do campo em direção às regiões metropolitanas e às grandes e médias cidades.

 

A correta compreensão destes fatos conduzia à percepção de que uma abordagem inovadora da questão do atendimento aos meninos e meninas de rua poderia ser um começo para um processo de reversão da política brasileira de atendimento aos direitos da infância e da juventude. Não se tinha, neste momento, uma visão muito nítida da natureza e dos desdobramentos do que vinha pela frente. Uma coisa, no entanto, era certa: era preciso começar a fazer alguma coisa. Nesse sentido, encarar o trabalho social e educativo junto aos meninos e meninas de rua através da ótica e da prática das alternativas comunitárias de atendimento era certamente um caminho promissor. Valia a pena seguir por esta trilha, mesmo tendo que, em alguns trechos, ir abrindo caminho com os próprios pés.

 

Estes foram os tipos de sentimentos e percepções que levaram um grupo de técnicos do Unicef, da Funabem e da SAS (Secretaria de Ação Social) do Ministério da Previdência e Assistência Social a darem início ao Projeto Alternativas de Atendimento a Meninos de Rua, com base em um termo de acordo celebrado entre dirigentes das três instituições.

 

9.3.2 Aprendendo com quem faz: 82-84

 

Constituída a equipe, seu primeiro passo foi começar a aprender a fazer com quem está fazendo. Assim, teve início o processo de identificação, registro e divulgação de experiências bem sucedidas de atendimento a meninos e meninas que estavam nas ruas ou nas comunidades pobres.

 

O clima de criatividade institucional que marcou aquele período levou o grupo a desenvolver uma estratégia de aprendizagem/ensino chamada "semitágio" (termo resultante da fusão da palavra seminário com a palavra estágio) o qual permitia a reflexão conjunta e aprofundada sobre uma experiência na qual o grupo tinha oportunidade de imergir de forma completa.

 

Oficinas, reuniões e encontros, junto com a produção de cartilhas e vídeos, formaram os canais de socialização da riqueza produzida nos semitágios, encontros que duravam uma semana e que além de espaço de transmissão e produção de idéias, conhecimentos e posturas, serviram também para oportunizar a criação e o estreitamento de laços de amizade entre as pessoas, gerando, desta maneira, um profundo sentido de pertinência e de vínculo entre os participantes destas jornadas.

 

Do processo desenvolvido nesta fase dois produtos emergem com grande nitidez:

— O primeiro é um patrimônio de idéias e experiências capaz de ser usado tanto para a geração de novos programas de atendimento, como para a melhoria dos programas existentes;

— O segundo foi um grupo de lideranças emergentes, conhecido e reconhecido em escala nacional, representativo do que havia de melhor em termos de compromisso político e de competência real nas atividades junto aos meninos e meninas nas ruas e em suas comunidades de origem.

 

O evento mais forte e mais característico desta fase foi o I Seminário Latino-Americano de Alternativas Comunitárias de Atendimento a Meninos e Meninas de Rua, realizado em Brasília no mês de novembro de 1984. Ali, o atendimento alternativo revelou-se perante a Nação com toda sua força e com todo seu frescor de planta nova, emergindo com vigor na rica e diversificada floração do movimento social brasileiro naquele período.

 

Não resta dúvida de que, a partir daquele evento, as alternativas comunitárias de atendimento se impuseram com uma crítica em ato ao velho modelo assistencialista e correcional-repressivo resultante da articulação entre o Código de Menores e a desgastada Política Nacional de Bem-Estar do Menor.

 

9.3.3 Ganhando força: 8486

 

O passo seguinte foi organizar um movimento nacional amplo em favor dos meninos e meninas de rua. Isto não foi uma tarefa difícil. Na verdade, já havia meio caminho andado na fase anterior. Tratava-se agora de imprimir uma feição e uma identidade política aos grupos de pessoas interessadas que, em nível local, estadual e nacional, já se articulavam de maneira informal em torno da questão dos meninos e meninas de rua. Foram organizadas as comissões locais, depois as comissões estaduais e estas, finalmente, elegeram em 1985 a Coordenação Nacional do Movimento Meninos e Meninas de Rua, que foi, sem sombra de dúvida, o evento e a conquista mais importante deste período.

 

9.3.4 Entrando na luta: 86-88

 

Em maio de 1986 realiza-se em Brasília o I Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Este grande evento vem pôr em evidência perante o país inteiro a natureza política e a identidade progressista do Movimento Nacional.

As crianças e adolescentes que compareceram ao encontro tinham passado por um processo de discussão nos níveis local e estadual, de modo que o grau de consciência política exibido por eles nos debates em plenário e nas reuniões em pequenos grupos surpreendia os observadores mais céticos.

 

Os meninos discutiram saúde, família, trabalho, escola, sexualidade, direitos e outros temas nesta linha. Em todos os grupos, porém, uma palavra emergia com espantosa freqüência e nitidez: violência.

 

Os meninos denunciavam a constante e sistemática violação de seus direitos de pessoas humanas e de cidadãos. Denunciavam a violência pessoal na família, nas ruas, na polícia, na justiça e nas instituições de bem-estar do menor.

 

Mas denunciavam também a violência da falta de terra, de salário digno para os pais, de trabalho, de habitação, de escolas, de programas de capacitação para o trabalho e de condições dignas de cultura, esporte, lazer e recreação.

 

Esse nível de maturidade e de organização espantou a muitas pessoas. Aqueles que estavam junto com os meninos e meninas acabaram por se convencer de que era chegada a hora de iniciar a luta pelos direitos da criança e do adolescente no campo dos direitos. A convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte configurava um momento e uma oportunidade únicos de pôr o estado democrático de direito, desde o início de sua construção, para funcionar em favor das crianças e adolescentes do Brasil.

 

Esta era uma tarefa não apenas deste ou daquele movimento ou entidade. Para conseguir colocar os direitos da criança e do adolescente na Carta Constitucional, tornava-se necessário começar a trabalhar, antes mesmo das eleições dos parlamentares constituintes, no sentido de levar os candidatos a assumirem compromissos públicos com a causa dos direitos da infância e da juventude.

 

Nesta nova etapa da luta política pelos direitos da criança e do adolescente, os programas envolvidos eram numerosos, com identidade ideológica e composição social as mais diversas; o compromisso político, no entanto, com a promoção e defesa dos direitos da infância e da juventude era o mesmo em todos eles.

Nesta fase destacam-se:

 

— A Frente Nacional de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes;

— A Pastoral do Menor da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil);

— O Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua;

— A Comissão Nacional Criança e Constituinte.

 

Em setembro de 1986, foi assinada a Portaria Interministerial n. 449, criando a Comissão Nacional Criança e Constituinte. Esta articulação do setor público federal envolvia os Ministérios da Educação, Saúde, Previdência e Assistência Social, Justiça, Trabalho e Planejamento. Em novembro do mesmo ano, o Unicef assina com o Ministério da Educação um Termo de Acordo de Cooperação Técnica e Financeira, assegurando assim a sua efetiva participação no processo de mudanças no panorama legal que ocorreria nos quatro próximos anos.

 

A Comissão Nacional Criança e Constituinte realiza um amplo processo de sensibilização, conscientização e mobilização da opinião pública e dos constituintes: Encontros nacionais, debates em diversos estados, ampla difusão de mensagens nos meios de comunicação, eventos envolvendo milhares de crianças em frente ao Congresso Nacional, distribuição de panfletos e abordagem pessoal dos parlamentares constituintes, participação dos membros da Comissão nas audiências públicas dos grupos de trabalho responsáveis pelas diversas áreas temáticas do texto constitucional, carta de reivindicações contendo mais de 1,4 milhão de assinaturas de crianças e adolescentes, exigindo dos parlamentares constituintes a introdução dos seus direitos na Nova Carta.

 

A iniciativa privada participou também deste esforço nacional. As redes de televisão cederam espaços para divulgação de mensagens. O mesmo fizeram as emissoras de rádio e os jornais. Estima-se que nesta fase o aporte em termos de cessão de espaços nos meios de comunicação superou a casa de USS 1,8 milhão, conforme a publicação "Acerto de Contas com o Futuro" do Conselho Nacional de Propaganda, órgão de classe do empresariado desta área, cuja contribuição foi decisiva tanto no planejamento, como na execução e na articulação de patrocínio para as atividades de comunicação e mobilização social desenvolvidas neste período.

Duas emendas de iniciativa popular, perfazendo mais de duzentas mil assinaturas de eleitores, foram apresentadas à Assembléia Nacional Constituinte: "Criança e Constituinte" e "Criança—Prioridade Nacional". Seus textos foram fundidos e acabaram entrando no corpo da Constituição com a expressiva maioria de 435 votos a favor e apenas 8 contra.

 

O caput do art. 227 introduz na Constituição brasileira o enfoque e a substancia básica da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, texto cujo projeto já era conhecido no Brasil quando da elaboração da Carta Constitucional. Assim, em 5 de outubro de 1988, o Brasil incorpora em sua Carta Magna os elementos essenciais de uma Convenção Internacional que só seria aprovada em 20 de novembro de 1989. Isto ocorreu basicamente em razão da força, da habilidade, da resolução e do compromisso do movimento social que se forjou em torno dos direitos da criança e do adolescente.

 

A síntese de todo o esforço realizado encontra-se condensada no extraordinário e seminal caput do art. 227 da Constituição onde se lê:

 

"Art. 227 — É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à conivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, crueldade e opressão".

 

9.3.5 Colhendo a vitória

 

Conquistada a vitória na Constituição, faltava elaborar a lei ordinária que revogasse, de uma vez por todas, a velha legislação do período autoritário. Nesse momento, num gesto de extraordinária maturidade política, as entidades não-governamentais articularam-se no Fórum-DCA: Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.

 

A articulação do Fórum deu-se em torno de três princípios básicos:

— o respeito à identidade;

— o respeito à autonomia;

— e o respeito ao dinamismo de cada uma das entidades-membro.

 

Milhares de encontros, congressos, seminários, reuniões e jornadas foram realizados em todo o País. Centenas de manifestações, contendo subsídios, chegaram ao Grupo de Redação e foram consideradas na elaboração do Estatuto que foi apresentado, a um só tempo, nas duas Casas do Congresso Nacional: O Senado Federal e a Câmara dos Deputados.

 

Três forças se uniram em torno do Estatuto da Criança e do Adolescente, a lei que regulamentou as conquistas constitucionais e revogou o Código de Menores e a Política Nacional de Bem-Estar do Menor:

 

a) O mundo jurídico: representado por juizes, promotores de justiça, advogados e professores de direito;

b) As políticas públicas: representados por assessores progressistas da Funabem e por dirigentes e técnicos dos órgãos estaduais reunidos no Fonacriad—o Fórum Nacional de Dirigentes de Políticas Estaduais para a Criança e o Adolescente;

c) O movimento social: representado pelo Fórum-DCA e por um considerável grupo de entidades não-governamentais que lhe manifestaram apoio, solidariedade e incentivo durante a campanha, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) e a Abrinq (Associação dos Fabricantes de Brinquedos), que representou o mundo empresarial.

 

De todos estes atores do processo, sem sombra de dúvida, o mais importante foi o movimento social. Ele convocou, liderou e uniu os demais protagonistas em torno de sua estratégia de luta e trabalho, que se baseia em três pontos básicos: a) mudanças no panorama legal; b) reordenamento institucional; c) melhoria das formas de atenção direta. Aprovado pelo Congresso Nacional, o Estatuto da Criança e do Adolescente foi sancionado pelo Presidente da República, tornando-se a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990.

 

 

 

 

9.4. Resultados

 

9.4.1 No panorama legal

 

Nesta área podemos apontar como resultado deste processo:

 

a) os artigos 204 e 227 introduzidos na Constituição Federal via emenda popular;

b) a introdução de dispositivos específicos em favor da criança e do adolescente, via emenda popular, em 18 das 26 unidades federadas brasileiras;

c) a introdução do dispositivo criando Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente na lei orgânica de centenas de municípios em todas as regiões do país;

d) a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, uma lei que conta com 267 artigos e que equivale a uma verdadeira Constituição da Criança e do Adolescente do Brasil.

 

9.4.2 No reordenamento institucional

 

Nesta área podemos apontar como resultado deste processo: —a extinção da Funabem e a sua substituição pelo CBLA (Centro Brasileiro da Infância e da Adolescência) que tem como missão institucional o apoio à implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente em todo o País; —a criação, nos estados e municípios, de instancias colegiadas (conselhos, fóruns e frentes) voltados para a promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente; —início do processo de desmontagem e revisão das práticas de atendimento das antigas Febem(s).

 

9.4.3 Na melhoria da atenção direta

 

Nesta área podemos apontar como resultado deste processo: a) a implantação de serviços de assistência médica psico-social e jurídica a crianças e adolescentes vitimizados (do tipo SOS Criança) em mais de dez capitais e cidades de grande e médio porte;

b) o fechamento de internatos e sua substituição por outras alternativas de atendimento em diversos estados brasileiros ainda antes da entrada em vigor do Estatuto;

c) a montagem de plantões interinstitucionais de atendimento operacionalmente integrados entre as áreas de segurança, justiça e bem-estar social;

d) criação de centros de defesa (plantões de assistência jurídico-social) em uma dezena de capitais brasileiras;

e) criação de coordenadorias do Ministério Público na área da infância e da juventude em vários estados—membros da federação;

f) articulação entre as Polícias Militares de todo o país no sentido de aprimoramento da técnica de ação do policiamento ostensivo e da padronização de procedimentos para a incorporação do Estatuto à ação policial;

g) início de montagem de um Sistema Nacional de Capacitação à Distancia na área de crianças e jovens em circunstancias especialmente difíceis com tendência a expandir-se a outras áreas da política social.

 

9.5. O impacto de uma década de luta e trabalho

9.5.1 Impacto sobre a política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente no Brasil

 

O novo ordenamento jurídico da questão da infância e da juventude introduz basicamente três tipos de inovações na política de promoção e defesa de direitos:

 

1) as mudanças de conteúdo;

2) as mudanças de método;

3) as mudanças de gestão.

 

O Estatuto, além de introduzir novos conteúdos no elenco de ações da política de atendimento, como defesa jurídico-social e a assistência médica e psico-social às crianças e adolescentes vitimizados, reorganiza o campo das políticas públicas. Essa reorganização agrupa e hierarquiza as políticas dividindo-as em:

 

a) políticas sociais básicas;

b) políticas assistenciais;

c) programas de proteção especial para as crianças e jovens em circunstancias especialmente difíceis. No âmbito dos métodos e processos, a nova lei introduz dois enfoques de tipo realmente novo. Na área do trabalho sócio-educativo, ela substitui as práticas assistencialistas e correcionais repressivas por uma proposta de trabalho sócio-educativo emancipador baseado na noção de cidadania.

 

No campo judiciário, a doutrina da situação irregular, de caráter subjetivo e discricionário, é substituída pela concepção garantista, que cria salvaguardas jurídicas capazes de assegurar à criança e ao adolescente o respeito à sua condição de sujeito de direitos, pessoas em condição de sujeito de direitos, pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e prioridade absoluta.

 

No que diz respeito à gestão, o Estatuto regulamenta as conquistas do art. 204, que assegura a participação popular, por meio de suas entidades representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. Para concretizar este avanço, o Estatuto cria os Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente. Conselhos fortes, deliberativos, paritários, formuladores das políticas e controladores das ações.

 

9.5.2 Impacto sobre os movimentos e entidades não-governamentais

 

No início da década de 80 tínhamos no Brasil apenas programas de atenção direta. Hoje, o quadro é bem outro. Os programas e ações não-governamentais se diversificaram e se alçaram a patamares mais elevados de complexidade e organização.

 

Após uma década de luta e trabalho, podemos encontrar entre os programas não-governamentais as seguintes modalidades:

 

a) programas que atuam somente através da atenção direta a determinado número de crianças e/ou adolescentes;

b) programas que, além do atendimento, se dedicam também à promoção e defesa de direitos;

c) programas que se dedicam apenas à promoção e defesa de direitos;

d) redes de programas que se dedicam à atenção direta;

e) redes de programas que se dedicam à promoção e defesa de direitos.

 

Essa diferenciação estrutural e funcional dos programas decorreu do processo de complexificação da luta e do trabalho desenvolvido ao longo dos anos 80.

 

9.5.3 Impacto sobre as políticas públicas

 

O processo desenvolvido ao longo dos anos 80 não deixou de afetar as políticas públicas. A "crítica em ato" dos programas alternativos e o impacto das denúncias dos ativistas da promoção e defesa de direitos acabaram gerando entre os órgãos executores da PNBEM (Política Nacional de Bem-Estar do Menor) as seguintes situações:

 

— Algumas Febem(s) chegaram ao final da década com os mesmos padrões de estrutura e funcionamento do início dos oitenta;

— A maioria das Febem(s) diferenciou suas linhas de atenção, introduzindo, ao lado dos programas convencionais, ações de tipo novo como educação de rua, assistência jurídica ao educando e serviços do tipo SOS Criança;

— Em um número reduzido de estados a Febem ou órgão congênere foi extinto e, em seu lugar, mesmo antes da vigência do estatuto, foi criada uma organização de outro tipo;

— Em um dos estados (São Paulo) criou-se uma Secretaria de Estado que, durante mais de três anos, atuou paralelamente com a Febem e, agora, com a vigência do Estatuto está desmontando o órgão executor da PNBEM, assimilando sua clientela a uma rede de programas e ações de tipo novo.

 

9.5.4 Impacto sobre o comportamento da sociedade em relação aos direitos da criança e do adolescente

 

Entre os meses de março e abril de 1987, o Juiz de Menores do Rio de Janeiro, Dr. Liborni Siqueira, decidiu fazer um tipo de operação muito comum no Brasil: a apreensão indiscriminada pela polícia das crianças e adolescentes pobres que se encontram nas ruas.

 

Este tipo de ação é conhecido em todo o país por designações como "operação pente-fino", "operação cata-pivete", "operação arrastão" e outras denominações nesta linha. Trata-se de uma manifestação das mais típicas da linha correcional-repressiva de atendimento.

 

O Projeto de Estatuto da Criança e do Adolescente era conhecido pelos ativistas de defesa de direitos, mas ainda estava em debate no Congresso Nacional.

 

Ocorreu que, quando o juiz baixou uma portaria determinando a apreensão indiscriminada, ele encontrou uma reação, a princípio espontânea e depois organizada dos mais diversos segmentos da sociedade e do Estado do Rio de Janeiro.

 

Os movimentos e entidades de promoção e defesa de direitos fizeram protestos formais e informais, vigílias e manifestações. Entraram com denúncias, recursos e pedidos de habeas corpus na justiça e mobilizaram parlamentares e a opinião pública contra atitude arbitrária do magistrado. Também os meninos deram entrevistas e participaram de diversas manifestações.

 

A imprensa conferiu muita evidência ao conflito, dando ênfase especial à nova postura da sociedade. Os órgãos públicos: Defensoria Pública, FEEM (Fundação Estadual de Educação do Menor) e o Ministério Público se manifestaram contrários à "operação", isolando o juiz no próprio campo governamental. Por fim, a Polícia Militar recusou-se, pela primeira vez, a cumprir uma ordem que, mais do que repressiva, era arbitrária.

 

Assim, após um mês de combate aberto contra o conjunto da sociedade, o juiz de menores adiou indefinidamente o cumprimento de sua portaria, desistindo do seu intento repressivo.

 

Num país onde a tradição é que as leis que ampliam os direitos da população empobrecida não pegam, ou seja, não entram em vigência prática, o Estatuto da Criança e do Adolescente mostrou-se capaz de vigir mesmo antes da sua aprovação pelo Congresso e sanção pelo Presidente da República.

 

O Código de Menores, que permitia o tipo de atitude assumida pelo juiz, viu-se revogado na prática, antes mesmo que a lei que haveria de sucedê-lo fosse aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República.

9.5.5 Impacto sobre o mundo empresarial

 

Além dos empresários do setor de comunicação e publicidade, cujo apoio já tivemos oportunidade de destacar quando falamos da mobilização social, antes, durante e depois da elaboração da nova Carta Constitucional, é importante ressaltar aqui o papel desempenhado por outros segmentos do empresariado.

 

A Fundação Emílio Odebrecht, entidade social ligada a uma das maiores empresas de construção civil do país, que vinha se dedicando à questão da juventude de forma bastante difusa, engajou-se no processo de luta por mudanças no panorama legal, reordenamento institucional e melhoria das formas de atenção direta à infância e à juventude.

 

Como partícipe deste movimento, cujas raízes situam-se no movimento popular, a Fundação Odebrecht organizou eventos, apoiou publicações, financiou viagens e exerceu pressão direta sobre os parlamentares no sentido de obter necessário apoio à efetivação das reformas legais em curso.

 

Outro notável exemplo de participação do empresariado nos é dado pela Abrinq (Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos), uma entidade empresarial que congrega um importante ramo da indústria de bens de consumo e que, após tomar conhecimento e conscientizar-se da importância do processo em curso, engajou-se inteiramente na luta por reformas legais em favor da infância e da juventude.

 

A Abrinq financiou publicações divulgando os novos direitos, participou no lobby junto ao Congresso Nacional pela aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente e criou uma fundação cujo compromisso básico é com a promoção e a defesa dos direitos da infância e da juventude.

 

A Fundação Abrinq financiou a produção de um livro de repercussão internacional sobre o extermínio de crianças no Brasil (Guerra dos Meninos, de Gilberto Dimenstein) e foi uma das entidades que liderou o esforço pela ratificação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança pelo Congresso Nacional.

Vê-se, por estes dois exemplos, que o empresariado, além de apoio material e financeiro, funções tradicionais deste setor, pode ser também fonte de ajuda política na implementação dos direitos da infância e da juventude.

 

9.6 Conclusões

 

O movimento social em favor das crianças e adolescentes, como vimos ao longo das várias etapas deste trabalho, é um ator recente no palco das lutas sociais no Brasil. Suas raízes mais fundas situam-se no fim dos anos 70 e no início da década de 80.

 

Além da pouca idade, outras características distinguem e diferenciam este movimento no conjunto do chamado movimento social brasileiro:

 

a) Ele tem um pé no movimento popular, nas lutas ligadas à estrutura da sociedade de classes e ao chamado conflito redistributivo, que confronta as elites dominantes e as camadas mais oprimidas e reprimidas do povo. Já o outro pé da luta em favor dos direitos da criança e do adolescente está firmemente assentado nos movimentos libertários, que se articulam contra as omissões e transgressões que implicam violações dos direitos individuais e coletivos de segmentos específicos da população como as mulheres, os negros, os índios e outros nesta linha;

 

b) Como decorrência da situação exposta no item anterior, o movimento em favor da criança tem sua militância distribuída entre setores ligados aos programas comunitários das periferias urbanas, ao associativismo de moradores e, ainda que em menor escala, sindicatos e associações de trabalhadores. Por outro lado, é bastante significativa nesta articulação a presença de pessoas e organizações típicas das classes médias urbanas e intelectualizadas: professores, profissionais liberais, técnicos que atuam nas políticas públicas, assim como magistrados, promotores de justiça e defensores públicos, sem deixar passar em branco a presença—ainda que reduzida—de policiais civis e militares;

 

c) Outro fator, que nos parece uma característica marcante do movimento em favor da criança, é a capacidade por ele demonstrada de operar nas conjunturas políticas mais adversas, superando dificuldades consideradas intransponíveis por outros setores do movimento social, como, por exemplo, a interlocução construtiva com os diversos segmentos do espectro político-partidário. Esta característica, a nosso ver, vem de uma intuitiva aplicação prática por suas lideranças do princípio bobbiano de que "tudo é política, mas a política não é tudo". De fato, argumentos e compromissos de natureza ética têm sido capazes de unir, na luta pelos direitos da criança, pessoas e grupos com diferenças nada desprezíveis no campo político-ideológico;

 

d) Também o freqüentemente rígido divisor de águas Estado-sociedade tem sido, não raro, rompido pelo movimento em favor da criança e do adolescente. A luta pelas reformas legais, por exemplo, foi capaz de unir dirigentes e técnicos de políticas públicas a setores da sociedade civil organizada em torno do objetivo de varrer do panorama legal brasileiro os dispositivos elaborados no período autoritário: o Código de Menores (Lei 6.697/79) e a Política Nacional de Bem-Estar do Menor (Lei 4.513/64).

 

Assim, força nucleadora da promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente tem esse movimento sido capaz de unir, em torno da consecução de objetivos necessários e concretos, alguns segmentos da vida brasileira que, longe de diluírem-se num todo indiferenciado, continuam guardando entre si distancias, reservas, divergências e até mesmo antagonismos nos campos político e ideológico.

 

No coração de todo esse processo pulsa, a nosso ver, uma condição chave em termos subjetivos, que é a disposição de cada um dos atores envolvidos nesta história — apesar das inúmeras diferenças — não se afastarem muito uns dos outros e de, nos momentos decisivos, caminharem de mãos dadas. Caminhar compartilhando a certeza de que um bem-maior — o presente e o futuro das novas gerações — é que está em jogo na luta, que se trava hoje no Brasil, entre a cidadania e a barbárie.

 

10 MEMÓRIAS DO FUTURO

"Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Vão nos afastemos muito, vamos de mãos dadas". Carlos Drummond de Andrade

 

Em 1983, depois de dirigir por mais de seis anos a Escola Febem "Barão de Camargos" em Ouro Preto — experiência relatada no livro Aventura Pedagógica (Columbus/1990) — fui convocado pelo então Governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, para a presidência da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor. Assim, teve início a minha trajetória de dirigente de política pública na área do atendimento, da promoção e da defesa dos direitos das crianças e adolescentes em circunstancias especialmente difíceis.

 

Vindo diretamente do trabalho de linha para a direção, fui o primeiro presidente saído dos quadros da própria Fundação. Já no meu discurso de posse, eu proclamava a necessidade de a instituição romper de forma definitiva com as práticas assistencialistas e correcionais-repressivas e de generalizar para o conjunto de seus programas e unidades de atendimento um tipo de trabalho sustentado numa concepção pedagógica crítica e transformadora, que tivesse como raiz e destino o nosso quotidiano trabalho social e educativo junto às crianças e jovens.

 

A primeira providência foi, através de um ofício-circular a todos os setores da fundação, abolir a palavra "menor". Em seu lugar, propúnhamos o emprego dos termos criança, adolescente e educando, pondo fim, desta maneira, à designação estigmatizante com que as leis de controle social do regime autoritário rotulavam a infância e a juventude marginalizadas.

 

O tempo e a experiência, entretanto, logo vieram mostrar-me que não bastava o esforço isolado de melhorar o trabalho social e educativo e abolir as referências pejorativas aos nossos destinatários. A situação era muito mais complexa e implicava um conjunto muito mais amplo, profundo e diversificado de medidas.

 

Foi nesse momento que eu percebi que a Funabem e as Febem(s), enquanto retaguardas dos juizados de menores, nada mais eram do que os depósitos onde a sociedade e o Estado não resolviam, mas escondiam (jogavam para debaixo do tapete), o resíduo, o subproduto do modelo econômico-social vigente no país.

 

Compreendi, então, que não eram apenas os educadores e trabalhadores sociais que estavam errados e teriam que ser corrigidos, mas também o sistema de administração da Justiça da Infância e da Juventude, em sua totalidade, que precisava ser passado a limpo, isto é, ser revisto em conteúdo, método e gestão.

Foi assim que começou amadurecer em meu espírito a percepção de que o caminho não era tentar resolver os inúmeros problemas, que nos eram causados pelo Código de Menores (Lei 6.697/79) e sua irmã siamesa, a Política Nacional de Bem-Estar do Menor (Lei 4. 513/64). O caminho — e isto ficava cada vez mais claro — era colocar o Código e a Política Nacional, eles sim, como o principal problema a ser enfrentado.

 

O mais interessante é que isto não acontecia apenas em Minas. Pessoas sérias, competentes e comprometidas como Cecília Ziliotto, Maria Ignez Bierrenbach e Mangabeira Unger, em São Paulo e no Rio de Janeiro, embora imbuídas dos mesmos propósitos mudancistas que nos animavam, enfrentavam grandes dificuldades, quando tentavam introduzir mudanças realmente profundas na estrutura e no funcionamento dos chamados órgãos executores de seus estados.

 

A percepção da questão em sua inteira verdade levou-me a assumir posições que nem sempre foram compreendidas e que, em mais de uma ocasião, implicaram, para mim, ônus pessoal e político nada desprezível.

 

Isto ocorreu, por exemplo, quando, numa Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembléia Legislativa de Minas Gerais, eu disse, literalmente, que era preciso "desfebenizar Minas". E não fiquei aí. Expliquei aos parlamentares e à imprensa que "eu não podia considerar-me um dirigente de política pública, mas um síndico de uma massa falida".

 

A verdade é que, num Brasil que avançava em seu processo de redemocratização, não cabia mais um conjunto de práticas de controle social da infância e da juventude de características tão marcadamente autoritárias como aquelas da política de atendimento inscrita no Código de Menores e na PNBEM. À violência das polícias e às medidas subjetivas e discricionárias dos juizes somavam-se as práticas de atendimento assistencialistas e correcionais-repressivas dos órgãos executores, para resultar num sistema sobre cuja perversidade tudo o que se escreveu até hoje é muito pouco, quando se pensa em retratar, realmente, o que foram as últimas décadas para as crianças e adolescentes em situação de risco em nosso país.

Para abrir o debate em Minas Gerais e no Brasil acerca dos rumos desta questão, a Febem-MG criou, em 1984, a revista Itinerário, cujo nome evocava a necessidade de se traçar novas rotas, procurar novos caminhos.

 

Logo no primeiro número, escrevi uma matéria, que pretendia ser, ao mesmo tempo, um estudo de futuro e uma afirmação de vontade política. Chamava-se 1994 (dez anos adiante da data em que o trabalho estava sendo produzido). Tratava-se de uma entrevista simulada com o coordenador da Política Estadual para Promoção e Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes em Minas Gerais. O entrevistado falava da situação vivenciada por ele num sistema de atendimento municipalizado e fazia referências ao passado que, na realidade, era nossa presente situação naquele já longínquo 1984.

 

Hoje, o tema do reordenamento institucional volta a entrar na ordem dia. Naquela época era o sonho de um dirigente de política pública e de sua equipe, que muitos consideravam um bando de visionários ou, na melhor das hipóteses, intelectuais idealistas e bem intencionados, mas incapazes de acompanhar a marcha dos acontecimentos. Agora é lei. E todos os que atuamos nesta área estamos convocados a cumpri-la. Ainda faltavam anos para 1994, mas, as transformações previstas naquele texto já estavam ou deveriam estar, por imposição legal, acontecendo.

 

Em 1986, eu já não era mais Presidente da Febem-MG. Como Secretário Municipal de Educação de Belo Horizonte, no entanto, continuei participando da Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, criada pelo meu grande amigo Hélio Augusto de Souza, um nome que não poderá jamais ser esquecido, quando se for escrever a história das lutas sociais no Brasil em favor da infância, sob pena de termos uma história mutilada.

 

Hélio, lá em São José dos Campos, levantou a bandeira da municipalização. Eu senti que era por ali o caminho e passei a atuar a seu lado na Frente. Depois de vários encontros nacionais, realizados num clima de grande mobilização de esperanças, tivemos o Congresso Nacional da FNDC em Brasília, já sem o nosso fundador, que, vítima de grave enfermidade, viria a nos deixar pouco depois.

 

Nesse memorável Congresso, em companhia da Regina Helena Pedroso, Deodato Rivera e outros frentistas, redigimos a Carta de Brasília, o documento que mais influenciou a redação da Emenda Popular "Criança Prioridade Nacional", que viria a fornecer o conteúdo básico dos arts. 204 e 227 da Constituição Federal.

 

Estes acontecimentos, dos quais tive a felicidade de participar, são, para mim, prefigurações dos momentos que, agora, estamos vivendo. São memórias de esperança.

Por isso é que decidi resgatar aqui dois textos da revista Itinerário e a Carta de Brasília, o documento maior da FNDC. Decidi incluí-los, como anexo a este pequeno depoimento, que tem a intenção de jogar luzes sobre algumas passagens do texto que abre a 2a parte deste volume.

 

Depois da minha passagem pela Febem e pela Prefeitura de Belo Horizonte, muita coisa aconteceu. A saga do Fórum-DCA, que é a culminância de toda essa caminhada, está a merecer uma abordagem ampla e profunda. O movimento Meninos de Rua, a Pastoral do Menor, da CNBB, os núcleos de estudo ligados às Universidades, os centros de defesa e o Fonocriad são protagonistas de uma história que o Brasil merece conhecer mais profundamente, para que possamos aprender, como Nação, a sermos melhores para nossa infância e a nossa juventude.

 

Estas são, por tudo isso, memórias do futuro. Dedico-as, por isso mesmo, a todos os companheiros e companheiras que, nos estados e municípios, querem pôr fim às formas arbitrárias e arcaicas com que o Estado e a sociedade, até aqui, relacionaram-se com as crianças e adolescentes que mais necessitam de respeito, compreensão e apoio—aqueles que, por omissão da família, da sociedade e do Estado, encontram-se em situação de risco pessoal e social.

 

Anexo I

1994

 

"Na origem de todas as grandes obras houve uma fermentação de sonhos, projetos e aspirações. Houve uma dedicação apaixonada àquilo que não existia para que chegasse a existir. Houve uma intuição de possibilidades inéditas e um lançar-se furiosamente para o futuro. Não basta ter grandes desejos para realizá-los. Mas ninguém realiza grandes obras sem ter tido grandes desejos". José Comblim.

 

A visão do real como totalidade solidária e concreta possibilita-nos um posicionamento crítico perante o problema do tempo. O passado deixa de ser lembrança ou reminiscência para, incorporado na experiência que progride, tornar-se memória, isto é, referência e permanente lição, que nos permite compreender o presente e projetar o futuro. Afinal, o que é o projeto, senão a memória de coisas que ainda não aconteceram, mas cuja possibilidade se acha inscrita nos movimentos e contradições do presente?

 

Esta é uma entrevista com o dirigente do órgão que, em 1994, coordena e executa, no interior da Política Social do Governo de Minas Gerais, ações destinadas a promover e garantir em nosso Estado os direitos da criança, particularmente entre as camadas mais pobres da população.

 

Alguns, baseando-se no jargão tecnocrático dos anos 70, poderão ver nesta entrevista imaginária um exercício do que se convencionou chamar de futurologia. Para mim, no entanto, esta não é uma projeção linear do presente. Trata-se, antes, de uma busca de superação, e não de continuação do que fazemos hoje. Mais do que uma simulação futurológica, a entrevista que se segue é a afirmação de uma vontade política transformadora, presidida por uma consciência crítica da nossa realidade e — por que não? — um exercício de esperança nos homens de nosso tempo.

 

C — COORDENADOR DA POLÍTICA ESTADUAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

 

R — REPÓRTER

R — Coordenador, qual a estrutura do órgão pelo qual o senhor responde?

 

C — Nossa estrutura é bastante resumida. Ela se constitui de um escritório central, de uma unidade de triagem, que serve de retaguarda direta ao Juizado de Menores, de um complexo de atendimento aos infratores e de um Centro de Estudos, Pesquisas e Formação de Educadores.

R — E aquela imensa rede de Escolas que a Febem-MG, possuía até dez anos atrás? Que foi dela? Foi desativada?

 

C — Não. Esta rede de atendimento está mais ativada do que nunca. Só que ela não pertence mais a órgão ligado ao Governo Estadual. Foi municipalizada.

 

R — Mas os municípios não resistiam a assumir a responsabilidade do atendimento institucional da infância e da adolescência marginalizadas?

 

C — Esta foi uma postura que a maioria dos municípios viu-se obrigada a assumir nos anos que antecederam à ampla reforma tributária de meados da década de 80. A partir daí, o município foi reconhecido como base da Federação e esfera do poder público mais próxima do povo e de seus problemas. Depois da revisão geral da legislação tributária, gradativamente, as prefeituras foram assumindo, a nível local, as crianças e adolescentes atingidos pelo processo de marginalização.

 

R — Como o senhor analisa a relação da reforma tributária com o problema do menor marginalizado?

 

C — O município é a base da Federação, mas não era reconhecido como tal. A rua, o calçamento, a rede de esgoto, os postes de luz passam pelo município. O estado e a União são esferas, por natureza, mais distantes dos problemas sociais quotidianos das comunidades. No entanto, a estrutura tributária anterior à reforma privilegiava a União, restringia o estado e esmagava o município. A concentração chegou a tal ponto que do total arrecadado 81% iam para a União, 15 % para o estado e apenas 4% ficavam no município. Desta forma, os prefeitos, embora sensibilizados e pressionados por uma realidade social dramática, pouco ou nada podiam fazer. A reforma tributária permitiu às prefeituras a municipalização e a regionalização do trabalho assistencial e educativo dirigido à infância e adolescência carentes de apoio público.

 

R — Como isto ocorreu?

 

C — Quase todas as prefeituras assumiram o atendimento a estas crianças e adolescentes atingidos pela marginalização, a nível local, através de órgãos ligados às suas secretarias da área social. As unidades da Febem no interior foram assumidas pela prefeitura da cidade onde se achavam localizadas e, no caso das cidades pequenas, por um consórcio de prefeituras. A partir daí, os casos de crianças ou adolescentes marginalizados passaram a ser resolvidos no nível local ou, no máximo, numa cidade vizinha. Isto diminui drasticamente o número de crianças sem referência alguma que há dez anos atrás lotavam a Febem.

 

R — Em que sentido a municipalização contribuiu para racionalizar a distribuição dos recursos destinados às crianças?

 

C — Antes havia muitos órgãos federais e estaduais, voltados para estes problemas, agindo paralelamente e todos com aparelhos administrativos posados, lentos e dispendiosos. O orçamento destinado ao menor se consumia em grande parte na manutenção destas estruturas, fazendo com que a parte deste recurso que atingia diretamente a criança, em forma de bem ou serviço, fosse muito pequena, irrisória mesmo, em relação ao todo. Era como uma pedra de gelo que, por força de passar por muitas mãos, chegava bastante reduzida ao seu destinatário último. Hoje o custo indireto do atendimento caiu muito. Isto permitiu um salto, não só quantitativo, mas também qualitativo no trabalho desenvolvido nesta área.

 

R — Ao lado da municipalização o senhor apontaria alguma outra tendência responsável pela imensa mudança verificada na abordagem do problema da infância e adolescência marginalizadas em Minas Gerais?

 

C — Sim. Aponto a comunitarização das iniciativas. Com o crescimento dos movimentos comunitários entre nós, o poder público foi deixando de atuar sozinho nesta área. Gradativamente, as comunidades foram assumindo, elas próprias, o chamado "problema do menor marginalizado", através de iniciativas que, apoiadas pelas prefeituras e pelas lideranças públicas, religiosas e privadas, atendem às crianças e adolescentes sem arrancá-los do continente afetivo da família e das vinculações sócio-culturais de seu meio de origem.

 

R — O senhor acredita que estas iniciativas evitaram os internamentos e preveniram a marginalização dos menores?

C — Acredito que o maior responsável pela diminuição dos internamentos não foram os chamados programas preventivos e, sim, a justiça social que, naquela época, o governo e a sociedade civil passaram a perseguir com mais vigor. A política de pleno emprego.

 

A revisão das relações entre o capital e o trabalho. A política de saúde baseada na medicina preventiva e na integração com os demais setores voltados para o social. A política de habitação e desenvolvimento comunitário. A política educacional que, com o aumento da assistência ao educando e a ampliação e diversificação das atividades escolares para o campo não-formal, a partir da zona rural e das periferias urbanas, revolucionou a face da escola pública. A utilização social dos latifúndios improdutivos conteve o fluxo de migrantes e permitiu às prefeituras equacionar e resolver os problemas dos cinturões da miséria que as envolviam. Esses, a meu ver, foram os grandes responsáveis pela inflexão da escalada trágica da marginalização do menor que hoje presenciamos.

 

R — Lembro-me que, há dez anos atrás, a Febem-MG tinha mais de 30 CIAMEs (Centros Integrados de Atendimento ao Menor). O que aconteceu com eles?

 

C — O CIAME foi um programa que nasceu no terreno baldio da escola pública. Ali se praticava, através de pequenos grupos de crescimento, a educação não-formal da criança e do adolescente: lazer, artesanato, educação pelo trabalho, teatro, jornal, atividades ocupacionais as mais variadas. A forma do relacionamento educador-educando tinha por base o respeito à realidade sócio-cultural do educando. Isto fez com que o programa de CIAMEs exercesse uma função profética em relação à educação pública. Através do curso dos acontecimentos, mais do que pelo discurso das palavras, o programa denunciou a educação vigente e anunciou possibilidades novas. Após o Congresso Mineiro de Educação, que foi o grande divisor de águas na história da educação brasileira nestas últimas décadas, a escola pública assumiu progressivamente características mais próximas da realidade e dos interesses histórico-sociais concretos de sua clientela, fazendo com que hoje este programa esteja inteiramente assimilado pela Secretaria de Estado da Educação, através de seus programas de atuação comunitária.

 

R — O Centro de Triagem ainda funciona como há dez anos?

C — Não. A grande diferença é que este Centro é hoje o espaço de um amplo trabalho interinstitucional que congrega setores de diversas áreas. Na mesma estrutura física integrada, ali funcionam setores do Juizado de Menores, da Secretaria de Segurança, da Secretaria de Saúde, da Secretaria de Educação, da Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social. Bem como um Serviço de Assistência Jurídica ao Menor (conveniado com as Faculdades de Direito), um sub-escritório da OAB que vela pelos direitos humanos, a Pastoral do Menor e uma Sala de Imprensa que, além da cobertura normal, presta inestimáveis serviços ao Centro na área de utilidade pública.

 

R — Qual a função do Centro de Estudo, Pesquisas e Formação de Educadores (Cepefe)?

 

C — Este Centro serve de retaguarda às prefeituras na área da atividade assistencial e educativa dirigida à criança e ao adolescente marginalizados. Nele são formados e desenvolvidos programas educativos voltados para a formação dos diversos tipos de profissionais destinados a atuar nesta área. Os cursos são ministrados aqui no Cepefe, que conta, inclusive, com local de hospedagem ou nas próprias cidades onde estão localizadas as entidades assistidas.

 

Outra função do Cepefe é capacitar os comissários de menores em todo o estado, num trabalho de cooperação técnica com os Juizados. Qualquer pessoa, para habilitar-se ao exercício da função de comissário de menores, passa pelos cursos de Direito do Menor, Psicologia da Adolescência, Relações Humanas, Estrutura e Funcionamento da Política Social do Governo de Minas Gerais. Estes cursos têm sua programação elaborada em conjunto com o Poder Judiciário e são ministrados sob sua supervisão. Por fim, o Cepefe fornece e defende, junto aos diversos órgãos de decisão da política social em nosso Estado, estudos contendo análise e sugestões de alternativas para os diversos problemas na área da infância e da adolescência marginalizadas.

 

R — Como a política estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente convive com o clientelismo político?

 

C — Isto é coisa do passado. Não existe mais. O clientelismo foi uma herança trágica do autoritarismo. E sendo trabalho basicamente municipal e comunitário dirigido ao menor, o envolvimento da liderança política é não só necessário como imprescindível para o êxito de nossa política social. Os políticos agem de forma coerente com os programas partidários e têm como meta apenas o bem comum. Dispensar o seu concurso no processo decisório que preside o trabalho em cada comunidade seria não só prejudicar o alcance da ação social e educativa, como também desconsiderar a vontade das comunidades que eles legitimamente representam.

 

R — Em que Governo estas mudanças tiveram início?

 

C — O grupo de educadores que mais se empenhou no sentido de lutar por uma nova política do Estado para as crianças e adolescentes marginalizados começou a entrar na Febem-MG na gestão do doutor Luiz Gonzada Teixeira, Governo Aureliano Chaves, que muito fez pelo menor em Minas. No entanto, só com a ascensão do governador Tancredo Neves, é que representantes deste grupo assumiram a presidência e as diretorias da Fundação.

 

R — Foi, então, o Governo Tancredo Neves que implantou esta nova política?

 

C — Não inteiramente. O secretário do Trabalho e Ação Social, deputado Ronan Tito de Almeida, dirigente do sistema operacional ao qual pertencia a Febem-MG, afirmava sempre que não pretendia plantar eucaliptos para serem cortados em meia dúzia de anos, mas pretendia, isto sim, plantar jequitibás, cedros, aroeiras e jacarandás para serem colhidos em décadas. A equipe dirigente da Febem interpretou a colocação do secretário como uma diretriz, no sentido de mudar tudo o que fosse possível mudar e implantar tendências irreversíveis na direção daquelas mudanças que, no prazo de um mandato, não seria possível viabilizar inteiramente. Assim foi traçado. Assim foi feito.

 

R — O documento de Diretrizes Básicas da Febem-MG, há dez anos atrás apontava na direção do que temos hoje. Qual o projeto do órgão que o senhor coordena para a virada do século?

 

C — Como coordenador da Política Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, meu desejo é que trabalhemos e lutemos tanto pela viabilização e garantia destes direitos entre nós que, no ano 2.000 estes direitos estejam tão arraigados na consciência dos homens públicos, na sensibilidade dos dirigentes privados e na vontade da opinião pública, que seja inteiramente desnecessário ao Governo do Estado de Minas Gerais manter um órgão para promovê-los e lutar por eles. A função deste órgão terá sido, então, assumida pela sociedade inteira.

 

Anexo II

 

Um movimento social amplo

 

Dedico este trabalho à irmã Maria do Rosário, da Pastoral do Menor de São Paulo, e ao irmão Raimundo Rabelo Mesquita, do Centro Salesiano do Menor-CESAM de Belo Horizonte, dois operários incansáveis da luta pela promoção e defesa dos direitos humanos das crianças e adolescentes marginalizados, em nossa Pátria.

 

Sem dúvida, um dos aspectos mais cruéis do regime autoritário, que nas duas últimas décadas imprimiu em todos os setores da vida nacional o selo da injustiça e da desigualdade, foi a frieza e o alheamento com que se viu conduzida neste período a questão dos direitos humanos das crianças e adolescentes das camadas mais pauperizadas da população.

 

Os milhões de crianças e adolescentes que subsistem nas periferias urbanas e na zona rural em situação infra-humana, sem as mínimas condições de bem-estar e de dignidade, constituem-se no subproduto de um modelo econômico que, em sua opção cega pelo crescimento a qualquer preço, desconsiderou totalmente o custo social do seu projeto concentrador e excludente.

 

Passou a fazer parte da paisagem urbana das grandes e médias cidades brasileiras a figura do "pivete", do "trombadinha", do menino de rua cuja simples presença, em alguns casos, é o bastante para justificar o alerta e a repressão da sociedade marginalizadora, incapaz de reconhecer-se e de avaliar-se naqueles que ela mesma produziu.

 

Desta forma, o chamado problema do menor marginalizado é freqüentemente associado à questão da segurança pública. Pesquisas de opinião, levadas junto aos mais diversos setores da população, apontam para a necessidade de ações mais eficazes na área da infância e da adolescência marginalizadas, como forma de atacar pela raiz o problema da criminalidade e da violência nos grandes centros.

 

Neste enfoque, os órgãos executores da política de bem-estar do menor, emergem, com clareza inequívoca, como órgãos de bem-estar da sociedade marginalizadora, os quais, ao efetivarem a retirada das ruas de milhares de crianças e adolescentes degradados, pessoal e socialmente, garantem a segurança e o bem-estar da sociedade que os marginalizou.

 

No interior desta visão da realidade, é comum cobrar-se dos órgãos executores da política de bem-estar do menor que eles tirem os "pivetes" da rua, como se cobra dos serviços de limpeza urbana a retirada do lixo acumulado nas vias públicas.

 

Há indícios, contudo, que nos autorizam a ter esperança de que na sociedade civil uma nova consciência e uma nova postura em relação a esta questão vêm, a cada dia, nascendo, tomando forma, ganhando corpo.

 

Assim, passaremos a enumerar alguns sinais que apontam na direção de uma novidade qualitativa no posicionamento da sociedade como um todo em relação à promoção e à defesa dos direitos humanos das crianças e adolescentes marginalizados.

 

A inteligência universitária, após décadas de silêncio em relação ao problema, vem se manifestando de forma articulada, firme e conseqüente. Um número considerável de trabalhos acadêmicos de boa qualidade vem sendo produzido nos cursos de pós-graduação. Para enumerar apenas alguns, a título de exemplo, podemos citar a excelente tese de Leda Schneider, "Marginalidade e Delinqüência Juvenil", "O Dilema do Decente Malandro", de Maria Lúcia Violante; "O Mundo do Menor Infrator", coletânea de trabalhos de vários cientistas sociais, organizada por José J. Queirós; "Violência de Pais contra Filhos", de Viviane Nogueira de Souza; "A Criança Marginalizada e o Atendimento Pré-Escolar", de Ecléia Guazelli; "Meninos de Rua—Valores e Expectativas dos Menores Marginalizados de São Paulo", de Rosa Maria Fischer Ferreira; "Menor Institucionalizado—Um Desafio para a Sociedade", de Angela Valadares Dutra de Souza Campos.

Esta literatura de cunho predominantemente sociológico tem contribuído enormemente na desinterpretação das obviedades que, ao longo de décadas, acumularam-se em relação a esta temática fundamental do nosso tempo e da nossa circunstancia.

 

Ao lado da literatura acadêmica, vem surgindo vigorosa, pela contundência e dramaticidade da realidade que retrata, uma literatura-testemunho. Trata-se de depoimentos de jovens que, submetidos ao arbítrio e à prepotência da sociedade marginalizadora, foram capazes de denunciar a prática das instituições, das famílias e da sociedade como um todo, em depoimentos que vão fundo nas mazelas da moralidade e da legalidade vigentes em nosso meio social. Nesta linha podemos citar os excelentes trabalhos de Herzer (A queda para o alto) e de Eliane Maciel (Com licença, eu vou à luta).

 

O sucesso de público alcançado por estas duas obras é um dado indicativo e importante, acerca da penetração deste tipo de testemunho na sensibilidade e na consciência da opinião pública mais esclarecida do País.

 

Ainda na linha das obras que despertam e mobilizam opiniões e sentimentos para a questão da marginalização da nossa juventude é importante ressaltar o trabalho dos jornalistas Carlos Alberto Lupi ("Agora e na hora da nossa morte...") e Luís Fernando Emmediato ("Geração abandonada").

 

A arte e a literatura também não têm passado ao largo desta questão. O livro Pivete, de Henry Correia de Araújo e o filme "Pixote: A lei do mais fraco" são dois exemplos de produções artísticas que obtiveram significativa penetração junto ao grande público. Na música, Chico Buarque e Gonzaguinha têm contribuições interessantes nesta vertente.

 

Ao lado destas obras de testemunho e denúncia, surgidas cada vez em maior número em nossa paisagem artístico-cultural, é importante ressaltar a existência de movimentos sociais que levam a uma prática concreta de denúncia e enfrentamento das arbitrariedades cometidas pela sociedade marginalizadora através de seus órgãos e instituições. Neste grupo, podemos citar o Movimento de Defesa do Menor, dirigido por Lia Junqueira, a Associação de Ex-Alunos da Funabem e as subcomissões de Direito do Menor, que estão surgindo junto às Comissões de Direitos Humanos da OAB em diversas unidades da Federação.

 

Importantíssimo, em nível de sociedade civil, têm sido os movimentos que, sem polemizar com os órgãos e instituições governamentais existentes na área, realizam um tipo de trabalho que vem a se constituir numa critica em ato à ação dos órgãos e políticas atuantes e vigentes no setor público.

 

Estes movimentos são muitos e estão espalhados por quase todo o País. Para ilustrar, citaremos alguns dos que nos parecem mais relevantes: os chamados programas Meninos de Rua, acompanhados e incentivados pelo Unicef, caracterizam-se por não separar a criança e o adolescente marginalizados da sua circunstancia. O trabalho, geralmente ligado à geração de renda pelo adolescente, como parte da estratégia de sobrevivência dele e de seu núcleo familiar, preocupa-se em organizar os jovens em grupos democráticos e participativos de modo a fazer de cada um o sujeito de seu crescimento pessoal e social, ou seja, de sua educação, com a preocupação básica de não separá-lo do continente afetivo de sua família, nem das vinculações sócio-culturais com o seu meio de origem. Nesta linha, é importante citar os trabalhos pastorais junto ao menor, que têm seu ponto alto, hoje, na prática desenvolvida pela Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo, que, através de um trabalho junto aos menores infratores da cidade, vem dando um autêntico testemunho do quanto pode conseguir a abertura e a compreensão solidária dirigida a esses jovens através de um novo protagonista da pedagogia deste nosso tempo de crise e de infortúnio: o educador social de rua. Casais e jovens voluntários de credos diversos, aos quais ultimamente já se somam alguns humanistas ateus, escrevem esta página nova do trabalho social e educativo dirigido aos marginalizados.

 

Outros exemplos de trabalhos alternativos que se constituem numa critica em ato ao que se faz nos órgãos oficiais ligados à execução da PNBEM (Política Nacional do Bem-Estar do Menor) são o Salão do Encontro, em Betim, dirigido por Noemi Gontijo, e o Centro Salesiano do Menor, dirigido pelo irmão Raimundo Rabelo Mesquita, e que já conta com similares em diversas regiões do País. Estas experiências, a primeira na área da produção artesanal e a segunda na área de prestação de serviços em empresas têm de comum o fato de dirigirem-se ao jovem trabalhador no sentido de prepará-lo para a vida produtiva através de um processo participativo, crítico e democrático.

 

Também das periferias urbanas partem e se articulam movimentos que nos incentivam a olhar com esperança para o futuro. Das associações e das creches comunitárias surgem iniciativas tendentes a organizar as comunidades para cobrar do Poder Público ações concretas e efetivas referentes à promoção e garantia dos direitos básicos da sua população infantil.

 

Como exemplo de iniciativa nesta linha, podemos citar o movimento de luta por creches (Movimento Pró-Creche) que hoje reúne mais de 30 creches comunitárias na periferia de Belo Horizonte e, após realizar, em janeiro de 1984, o I Congresso Mineiro de Luta por Creches, vem conseguindo apoio governamental para as creches junto a órgãos ligados ao poder público municipal, estadual e federal.

 

Entendemos, no entanto, que o grande saldo deste movimento tem sido a sua capacidade de organizar na periferia uma vontade coletiva crítica e transformadora, que, em torno da luta pelos Direitos da Criança, vem possibilitando a essas comunidades articularem-se na defesa de seus pontos de vista e de seus interesses sociais concretos também em outras áreas.

 

Como se vê, após duas décadas de autoritarismo marcial, a tendência no sentido da promoção e defesa dos direitos humanos das crianças e adolescentes marginalizados é hoje, realmente, um movimento social amplo. Já penetrou tantas consciências, já articulou tantas vontades, já perpassou tantas instancias da sociedade civil brasileira, que atualmente podemos dizer que até mesmo os órgãos executores da Política Nacional de Bem-Estar do Menor, bafejados pela aura renovadora que vem da sociedade civil e por ela empurrados, já começam a rever suas práticas institucionais no sentido de fazer com que o trabalho marginalizado supere as limitações repressivas e assistencialistas, ainda incrustadas em suas práticas, assumindo, de vez, uma postura basicamente educativa.

Estas tantas vontades políticas transformadoras, ainda em larga medida dispersas e desencontradas, precisam articular-se de forma orgânica e conseqüente para, então, se transformarem numa grande vontade nacional coletiva, uma vontade capaz de criar para nossas crianças e adolescentes marginalizados não uma vaga numa instituição, mas um espaço na sensibilidade e na consciência dos homens de nosso tempo, para que, juntos, possamos realizar as mudanças estruturais que possibilitem concretamente a cada criança a liberdade de ser criança e a cada adolescente o direito de ter um projeto de vida, um futuro, uma esperança e as condições necessárias de bem-estar e de dignidade para caminhar em sua direção.

 

Anexo III

 

A Carta de Brasília

 

A Mobilização da Cidadania

Nós, cidadãos brasileiros, membros da Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança — provenientes dos mais diversos setores sociais, categorias profissionais e convicções filosóficas, políticas e religiosas —, reunidos em Brasília, de 21 a 25 de outubro de 1986, por ocasião do IV Congresso "O Menor na Realidade Nacional", neste limiar da eleição do Congresso Constituinte, que terá por função reconstruir no plano jurídico a vida democrática nacional,

 

Considerando

que o maior patrimônio de uma Nação é o seu povo, e o maior patrimônio de um povo são as suas crianças e jovens,

 

Proclamamos

à consciência da Nação Brasileira como um todo, e dos legisladores constituintes em particular, os seguintes princípios:

 

Primeiro

Que a Nova Carta incorpore e consagre os princípios da Declaração Universal dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, com o voto do Brasil, em 20 de novembro de 1959, assim como estabeleça as garantias de sua plena vigência em nosso País.

 

Segundo

Que o direito inalienável da cidadania, em suas dimensões civil, política e social, seja efetivamente ampliado e garantido a todas as crianças e jovens, enquanto credores de compromissos, responsabilidades, deveres e obrigações por parte do Estado e da Sociedade.

 

Terceiro

Que o novo modelo de desenvolvimento, a ser adotado e gerido pela Nação, seja centrado na pessoa humana e fundamentado nos princípios de eqüidade e justiça social, orientando-se no sentido de criar amplas possibilidades de emancipação política e econômica e de promoção social e cultural do conjunto dos cidadãos, e não apenas de alguns segmentos sociais.

 

Quarto

Que a nova Constituição estabeleça as bases para uma ampla reforma democrática do Estado brasileiro—nas esferas federal, estadual e municipal—, implicando um profundo reordenamento institucional, com a revisão de concepções, métodos e processos nas relações intra e extragovernamentais, no que diz respeito à garantia dos direitos básicos do cidadão-criança e do cidadão-adolescente.

 

Quinto

Que os movimentos e entidades da sociedade civil comprometidos com a promoção e a defesa dos direitos básicos da infância e da adolescência sejam formalmente considerados interlocutores válidos, representativos e legítimos nas questões que dizem respeito aos destinatários de sua ação: a criança e o jovem .

 

Sexto

Que seja consagrado na nova Carta, como direito de todas as crianças e jovens, o acesso às políticas sociais básicas de educação, saúde, alimentação, habitação, transporte, lazer e cultura —e, na idade e em condições convenientes, também de trabalho.

 

Sétimo

Que sejam destinatários de leis e programas especiais as crianças e os jovens em situações sociais adversas, tanto pessoais (deficiência física ou mental) como sociais (abandono, negligência, infração penal e outras)—assim como os adultos deficientes mentais—, garantindo-se-lhes assim os seus direitos de pessoa humana e de cidadãos, através de programas especiais de assistência e proteção.

 

Oitavo

Que se consagre, como princípio estruturador das políticas sociais, que o município, ao nível do poder público, e a comunidade local, ao nível da sociedade civil, são as instancias adequadas de operacionalização dos programas destinados às crianças e aos jovens. Assim, deve caber à União traçar as grandes diretrizes e estabelecer as prioridades, à unidade federada adequá-las às realidades estaduais e supervisionar sua implementação, e ao município executá-las com a vigilância e a participação legalmente formalizada das comunidades locais.

 

Nono

Que, sendo a família, a escola e a comunidade local o espaço vital do desenvolvimento harmônico e pleno da criança e do jovem, a nova Constituição consagre claramente o papel central desses três níveis de organização da vida quotidiana, e determine a criação de condições que lhos possibilitem desempenhar plenamente as suas funções no desenvolvimento pessoal e social da infância e da juventude.

 

Assim,

Nesta esperada véspera de nova Constituição,

 

Conclamamos:

 

A. Os futuros legisladores constituintes a corresponderem aos anseios nacionais de resgate pleno da cidadania, nascidos do maior movimento de massas e da maior mobilização patriótica da nossa história, a qual possibilitou a transição pacífica para o regime democrático;

 

B. E a todos os cidadãos brasileiros a aprofundarem a organização e a mobilização em torno dos ideais de construção de uma Pátria livre, soberana, fraterna e socialmente justa, que assegure a cada criança o direito de ser criança, e a cada jovem o direito e as condições de olhar sem medo para o seu futuro — o futuro da Nação brasileira.

Esta é a "Carta à Nação Brasileira'', extraída no IV Congresso" O Menor na Realidade Nacional'', realizado em Brasília, de 21 a 25 de outubro de 1986, promovido pela Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança.