HISTÓRIA SOCIAL DA CRIANÇA E DA FAMÍLIA
Francisco Quintanilha Veras Neto
A vida escolástica contribuiu para revelar o progresso do sentimento da infância na mentalidade comum, tornou-se um meio de isolar as crianças durante um período de formação moral e intelectual. P. 166.
Essa
evolução se deu do século XV ao XVIII. Não há referências precisas a idade dos
alunos nos textos medievais. A preocupação com a idade se torna fundamental no
século XIX. P. 166.
Os alunos
iniciantes tinham em geral 10 anos, mas era considerado natural que um adulto
desejoso de aprender se misturasse a essa clientela.
No início
da Idade Média as escolas podiam funcionar numa esquina ou num galpão.
Forrava-se o chão com palha. No século XIV são incorporadas as carteiras.
Nestas aulas reuniam-se meninos de seis anos com pessoas com mais de 20 anos.
P. 167.
Não havia
gradação nos currículos, a escola apenas repetia as mesmas rotinas. Não havia
controle da vida quotidiana dentro da escola, pela precariedade do ensino e do
mestre. Não havia preocupação com a mistura de idades, pois se era indiferente
à própria idéia de idade. Assim que entrava na escola, a pessoa imediatamente
ingressava no mundo dos adultos. P. 168
No século
XIII, os colégios eram asilos para crianças pobres, fundadas por doadores, onde
as crianças pobres recebiam bolsas. No século XV, essas pequenas comunidades
democráticas tornaram-se institutos de pesquisa, não havia apenas bolsistas.
Agora, figuravam também, alguns administradores e professores. Os institutos
foram submetidos a uma hierarquia autoritária que passou a ser ensinada no
local. O colégio fornece o modelo das grandes instituições escolares do século
XV e XVII, os colégios dos Jesuítas e os colégios oratorianos. O
estabelecimento de uma regra de disciplina completou a evolução que conduziu ao
colégio moderno, instituição complexa, não apenas de ensino, mas de vigilância
e enquadramento da juventude. P.170
"Essa
evolução da instituição escolar está ligada a uma evolução paralela do sentido
das idades e da infância. No início, o senso comum aceitava sem dificuldade a
mistura das idades. Chegou um momento em que surgiu uma repugnância nesse
sentido, de início em favor das crianças menores. Os pequenos alunos de
gramática foram os primeiros a ser distinguidos. Mas essa repugnância não parou
neles. Estendeu-se também aos maiores, alunos de lógica e de física e a todos
os alunos de artes, embora a idade de alguns deles lhes permitisse exercer fora
da escola funções reservadas aos adultos. (...)"
Com isso
pretendiam garantir a moralidade. "...Os educadores inspiravam-se então no
espírito das fundações monásticas do século XIII, dos dominicanos e
franciscanos, que conservavam os princípios da tradição monástica, mas haviam
abandonado a clausura, a reclusão, e tudo o que restava do cenobitismo
original. É certo que os estudantes não estavam comprometidos por nenhum voto.
Mas, durante o período de seus estudos, eles foram submetidos ao modo de vida
particular destas novas comunidades. Graças a esse modo de vida, a juventude
escolar foi separada do resto da sociedade, que continuava fiel à mistura das
idades, dos sexos e das condições sociais. Esta era a situação ao longo do
século XIV." P. 170
"Mais tarde,
o objetivo fixado para esse tipo de existência, a meio caminho entre a vida
leiga e a vida monástica, se alterou. No início, ele fora considerado um meio
de garantir a um jovem clérico uma vida honesta. A seguir, adquiriu um valor
intrínseco, tornou-se a condição imprescindível de uma boa educação, mesmo
leiga (...).” Composto outrora de uma pequena minoria de cléricos letrados, ele
se abriu a um número crescente de leigos, nobres e burgueses, mas também a
famílias mais populares, como veremos adiante. O colégio tornou-se uma
instituição essencial da juventude: o colégio com um corpo docente separado,
com uma disciplina rigorosa, com classes numerosas, em que se formariam todas
as gerações instruídas do Ancién Regimen. O colégio constituía, se não na realidade
mais incontrolável da existência, ao menos na opinião mais racional dos
educadores, pais, religiosos e magistrados, num grupo de idade maciço, que
reunia alunos de oito/nove anos, até mais de 15, submetidos a uma lei diferente
da que governava os adultos. P. 171
"Desde
o início do século XV, pelo menos, começou-se a dividir a população escolar em
grupos de mesma capacidade, que eram colocados sob a direção de um mesmo
mestre, num único local. A Itália, por exemplo, durante muito tempo, permaneceu
fiel a essa forma de transição. Mais tarde, ao longo do século XV, passou-se a
designar um professor especial para cada um desses grupos. Porém, os grupos
continuaram ocupando um local comum. Essa formação ainda subsistia, na
Inglaterra, na segunda metade do século XIX. Finalmente, as classes e seus
professores foram isolados em salas especiais e essa
iniciativa, de origem flamenga e parisiense, gerou a estrutura moderna
de classe escolar. Assistimos, então, a um processo de diferenciação da massa
escolar, que no início do século XV era desorganizada. Esse processo
correspondeu a uma necessidade ainda nova de adaptar o ensino do mestre ao
nível do aluno. Esta preocupação opunha-se tanto aos métodos medievais de
simultaneidade ou de repetição, quanto à pedagogia humanista, que não
distinguia a criança do homem e confundia a instrução escolar - uma preocupação
para a vida - com a cultura - uma aquisição de vida. Essa distinção de classes
indicava portanto, uma conscientização da particularidade da infância ou da
juventude, e do sentimento de que, no interior dessa infância ou dessa
juventude, existiam várias categorias. A instituição do colégio hierarquizado
no século XIV já havia retirado a infância escolar da barafunda em que, no
mundo exterior, as idades se confundiam. A criação das classes no século XVI
estabeleceu subdivisões no interior dessa população escolar.” P. 173
O sistema
de classe dividia os alunos de acordo com a sua idade e desenvolvimento de
acordo com Baduel. No primeiro terço do século XVI, Thomas Plater, com dezoito
anos, dizia que se sentia uma galinha no meio dos pintinhos. P. 173
Antes a criança precoce era bem quista, o novo
sistema escolar eliminava as crianças muito pequenas de qualquer sistema
escolar, concentrando-as em classes mais baixas ou ainda fazendo-as repetir o
ano, refletia a divisão de uma primeira infância mais longa e a infância
propriamente escolástica. Até o meio do século XVI, considerava-se a primeira
infância a idade de cinco/seis anos. Aos sete anos ele podia entrar para o
colégio. Mais tarde a data da entrada para a classe de gramática foi retardada
para 9-10 anos. A primeira infância até os 10 anos era isolada da infância
escolar. O sentimento utilizado para retardar a entrada na escola era de que as
crianças nesta faixa de idade eram imbecis, fracas. P. 176.
A
repugnância pela precocidade marcou esta divisão. Porém essa divisão não era
perfeita, pois as crianças de 10 e 14 anos, assim como os rapazes de 19 e 25
anos, freqüentavam as mesmas classes no século XVII e XVIII. Até o final do
século XVIII, não se teve a idéia de separá-los. No início do século XIX se
separavam os barbudos com mais de 20 anos, mas não se considerava estranho a
presença de adolescentes atrasados. De fato, não se sentia a necessidade de
distinguir a segunda infância da adolescência e da juventude.
A separação
final só se deu mais para o fim do século XIX, graças à difusão, entre a
burguesia, de um ensino superior: universidade ou grandes escolas.
Hoje o
jovem operário, que conclui apenas o primeiro grau, entra para o mundo do
trabalho que ignora essa distinção escolar das idades.
"O
período da segunda infância – adolescência - foi distinguido graças ao
estabelecimento progressivo e tardio de uma relação entre a idade e a classe
escolar. Durante muito tempo no século XVI e, até mesmo, no século XVII, essa
relação foi muito incerta." P. 177
No século
XIX a correspondência entre a idade e a classe tornou-se cada vez maior.
"...Os mestres se habituaram a compor a suas classes em função da idade
dos alunos. As idades. outrora confundidas, começaram a se separar na medida em
que coincidiam com as classes, pois desde o fim do século XVI a classe fora
reconhecida como uma unidade estrutural. Sem o colégio e suas células vivas, a
burguesia não dispensaria às diferenças mínimas de idade de suas crianças a
atenção que lhes demonstra, e partilharia nesse ponto da relativa indiferença
das sociedades populares." P. 177
Vygotisky
atribui enorme importância ao papel da interação social no desenvolvimento do
ser humano. O processo de desenvolvimento humano é socialmente constituído.
Critica o paradigma botânico e zoológico adotado na pesquisa psicológica para
explicar o desenvolvimento infantil. Compara o estudo da criança a um processo
de maturação de um organismo.
Para
Vygotiski, a maturação biológica é um fator secundário no desenvolvimento das
formas complexas de comportamento humano, pois estas dependem da interação da
criança com a cultura. P. 57
Sua crítica
esta no fato de que: a convergência da psicologia animal com a humana encontra
limites sérios para a explicação dos processos intelectuais mais sofisticados,
que são especificamente humanos. A estrutura fisiológica humana, aquilo que é inato,
não é suficiente para produzir o indivíduo humano na ausência do ambiente
social. O modo de agir, de pensar, de sentir, valores, conhecimentos, visão do
mundo, depende da interação do ser humano com o meio físico e social. Vigotisky
chama a atenção para a ação recíproca existente entre organismo e meio e
atribui especial importância ao fator humano presente no ambiente. P. 58.
O caso
verídico das meninas lobas demonstra que, para se humanizar, o indivíduo
precisa crescer num ambiente social e interagir com outras pessoas. Não
apresentavam comportamento humano, não permaneciam em pé, andavam com o apoio
das mãos, não falavam, se alimentavam de carne crua ou podre, não produziam
utensílios, nem pensavam de modo lógico. O homem é fraco e insuficiente isolado.
O
desenvolvimento do sujeito não é um processo previsível, universal, linear ou
gradual. O desenvolvimento está intimamente ligado ao ambiente sócio-cultural
em que a pessoa se insere e se processa de forma dinâmica e dialética através
de rupturas e desequilíbrios. O bebê humano é despreparado para lidar com a
realidade de seu meio. Inicialmente sua atividade psicológica é bastante
elementar e determinada pela sua herança biológica. Os fatores biológicos têm
preponderância sobre os fatores sociais no início do desenvolvimento da
criança. Os processos elementares são de origem biológica e as funções
psicológicas superiores, de origem sócio-cultural. A história do comportamento
da criança nasce do entrelaçamento destas duas linhas. P. 59
Desde
pequenas as crianças estão em forte interação com os adultos, que não só
asseguram a sua sobrevivência como mediam sua relação com o mundo. O
comportamento da criança recebe influência dos costumes e objetos de sua
cultura. Na nossa cultura ocidental dorme no berço, usa roupas para se aquecer
e, mais tarde, talheres para comer, sapatos para andar. Com a ajuda dos adultos
adquirem aquelas habilidades que foram incorporadas pela civilização ao longo
dos milênios: ela aprende a sentar, a andar, a comer com talheres, a tomar
líquidos em copos etc.
Um exemplo,
é a criança que conhece todas as marcas de carros. Podemos encarar isto como
habilidades inatas da criança, mas, na verdade, resulta de um processo
compartilhado. O desenvolvimento se dá com constantes interações com o meio
social em que vive. Os membros imatura da espécie humana vão se apropriando dos
modos de funcionamento psicológico, do comportamento e da cultura, enfim do
patrimônio da história da humanidade. Essa atividade que antes precisou ser
mediada (atividade interpsicológica ou atividade interpessoal). A estrutura
humana complexa é produto de um processo de desenvolvimento profundamente
enraizado nas ligações entre história individual e história social.
ARIÈS,
Philippe. História Social da Criança e da Família. 2ª ed. Ed. LTC. Rio de
Janeiro. 1978. 279 p.