PROTEÇÃO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES E A AMEAÇA DO ÁLCOOL E DO FUMO
José Quintana Freitas
Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul
A partir do art. 227 da CF de 1988, foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13.7.90), com o fim de assegurar os direitos estipulados na Carta Magna.
Rotulados como de absoluta prioridade, os direitos de crianças e adolescentes como direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária devem ser assegurados pela família, pela sociedade e pelo Estado.
Assim, entre os vários direitos de crianças e adolescentes figuram: direito à saúde, à educação, à dignidade, à profissionalização e ao respeito, devendo ser considerada sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento.
O que se observa, na realidade, é que não só não são propiciadas condições pelo Estado, sociedade e família para a satisfação daqueles direitos, como pouco vem sendo feito no enfrentamento das ameaças que o "progresso" vem acarretando ao normal desenvolvimento de crianças e adolescentes.
Muitos são os problemas que atingem crianças e adolescentes. Desde a falta de condições econômicas de muitas famílias a inviabilizar o normal desenvolvimento físico e mental daqueles que lá "crescem", até os fatores externos à família, dentre eles, a falta de competência e seriedade do Estado em promover a educação escolar suficiente para a formação de cidadãos livres; e os fatores que estão diluídos no mar de desigualdades e verdadeira alienação.
Enquanto não é promovida a educação de forma satisfatória à massa de crianças e adolescentes de camadas menos favorecidas, outros fatores concorrem para o comprometimento do desenvolvimento físico e mental daqueles que deveriam vir a tomar-se pessoas produtivas, somando para a sociedade e não atentando contra ela.
Entre os fatores que concorrem para esse comprometimento, ainda que não os mais graves, mas bastante sérios, aparecem o consumo de bebidas alcoólicas e fumo por crianças e adolescentes.
Estatísticas vêm demonstrando que mulheres estão até mesmo a ultrapassar o percentual masculino, em algumas regiões, no consumo de tabaco, sendo que expressivo número de adolescentes. Porém, entre os homens fumantes, muitos estão abaixo dos 18 anos.
Semelhante é a situação em relação ao consumo de bebidas alcoólicas.
Os simplistas podem considerar despicienda a discussão e a busca de coibição de fornecimento de tais produtos aos indivíduos em formação, em virtude de outras práticas nocivas estarem disseminadas no contexto social, tais como as drogas ilícitas. Todavia, assim como as drogas ilícitas, aquelas chamadas lícitas são prejudiciais a crianças e adolescentes, pois são nocivas ao desenvolvimento físico e mental e consistem o caminho para as ilícitas.
Segundo Odon Ramos Maranhão, em “Curso Básico de Medicina Legal”, Ed. RT, ano 1989, p. 324, o álcool consiste em tóxico capaz de determinar intoxicação exógena, sendo uma das causas de determinação de perturbações psíquicas.
Tanto o álcool, como o fumo têm o fornecimento a crianças e adolescentes proibido, tendo em vista a nocividade à saúde deles e a tradição de tais produtos a eles consiste crime, além de infração à legislação sanitária.
Há necessidade de ação para que a lei seja observada e a ganância não se sobreponha ao interesse público de que crianças e adolescentes tenham um normal desenvolvimento.
Infração à legislação
sanitária
A venda de bebida alcoólica ou tabaco a crianças e adolescentes constitui infração à legislação sanitária.
Segundo a Lei 6.437, de 20/08/77, sem prejuízo das sanções penais e de natureza cível, as infrações àquela lei comportam penalidades como: advertência, multa, apreensão do produto, suspensão de vendas, interdição parcial ou total do estabelecimento, cancelamento da autorização para funcionamento e do alvará de licenciamento etc., conforme o art. 2º. Estas penalidades são aplicadas na esfera administrativa.
Entre as várias infrações sanitárias figuram: a não-notificação de doenças que devam sê-lo; fornecer, vender medicamentos, drogas e correlatos sem a necessária prescrição médica; promover coleta ou armazenamento de sangue para fins de transfusão, sem a observância das disposições legais; comercializar produtos biológicos e imunoterápicos sem a devida conservação.
Ainda, conforme o art. 10, XXIX, da mesma lei, consiste infração transgredir outras normas legais e regulamentos destinados à proteção à saúde, com todas aquelas penalidades.
Há norma legal que proíbe a venda de bebida alcoólica (art. 81, II da Lei 8.069/90) e de fumo (art. 81, III da Lei 8.069/90; e art. 7° da Portaria, 1.050/90,do Ministério da Saúde) a crianças e adolescentes, na busca de proteção da saúde deles, eis que pessoas em desenvolvimento, conforme o art. 6° do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Assim, o descumprimento de tais normas, além das sanções penais e de natureza cível, importa na possibilidade de adoção das penalidades administrativas da Lei 6.437/77.
Cabe ao Ministério da Saúde e às Secretarias de Saúde a fiscalização e autuação das infrações, com a instauração de processo administrativo.
Por outro lado, a Portaria 1.050, de 8/08/90 do Ministério da Saúde, ao disciplinar sobre a propaganda relativa ao fumo, em seu art. 7°, estipula: fica proibida a venda de cigarros, cigarrilhas, charutos e produtos derivados do fumo a menores de 18 anos. Ainda, no art. 17, ratifica que a violação aos incs. V e XXIX do art. 10 da Lei 6.437/77, consiste infração sanitária em caso de inobservância do contido na portaria.
Logo, a venda daqueles produtos consiste infração sanitária,
como já enunciado.
Do uso de álcool e fumo
Segundo o psicólogo Eduardo Kolime, em “Psicologia do Fumante”, ed. Francisco Alves, pp. 20 e 21, hábito é "a necessidade do emprego continuado de uma droga, cuja supressão provoca transtornos psíquicos e físicos". Ensina que a dependência (ou toxicomania) é uma das formas de hábito, consistindo na repetida administração de uma droga, sendo o mais importante e grave tipo daquela necessidade.
A toxicomania importa, além da tolerância (necessidade de ser aumentada a dose para a obtenção do mesmo efeito), nos fenômenos:
dependência
psíquica ou hábito propriamente dito - é o acostumar-se ao emprego de uma droga, cuja supressão provoca
transtornos emocionais pela necessidade da mesma;
dependência física - é a necessidade
do uso da droga para impedir o aparecimento de sintomas somáticos mais ou menos
sérios, que constituem na síndrome da abstinência.
Assim, o fumo consiste substância que gera dependência psíquica e o álcool
dependência física, principalmente.
Conforme Odon Ramos Maranhão, mesma ob. cit., p. 381, o alcoolismo consiste em toxicomania, "ou seja uma farmacodependência". Citando conceito da Organização Mundial da Saúde, alcoólatras são "bebedores excessivos, cuja dependência do álcool chega a ponto de acarretar-lhes perturbações mentais evidentes, afetando a saúde física e mental, suas relações individuais etc.".
Conforme este autor, a farmacodependência, ou toxicomania, importa em problemas psicológicos (o apetite mórbido ter repercussões mentais) e biológicos (ocorrem reações psicopatológicas e anatomopatológicas), além de problemas sociais.
Em tratando-se de um indivíduo em formação, onde os valores ainda são indefinidos, onde a personalidade está a estruturar-se e há a procura da autoconfiança, os efeitos do consumo de tais produtos são mais graves, pois a pessoa é também fisicamente mais frágil. Aquele que fornece bebida alcoólica ou fumo a uma pessoa em desenvolvimento está a concorrer para o possível comprometimento de seu desenvolvimento.
Dos ilícitos penais
Segundo o art. 132 do CP, o comerciante que vende (sem entrar no mérito da validade do ato jurídico) e todo aquele que fornece bebida alcoólica ou fumo a crianças e adolescentes está a expor a saúde do recebedor a perigo direto e eminente, com destaque para a forma de dolo eventual.
Aqueles mesmos fornecedores de tais substâncias podem estar incursos no art. 278 do mesmo diploma legal, pois o álcool e o fumo são nocivos à saúde, principalmente em se tratando de pessoas em desenvolvimento. Não engloba as substâncias entorpecentes (drogas ilícitas), pois estas são contempladas pela Lei 6.368/76, que alterou o art. 281 do CP, com penas específicas para cada delito e com a majoração de um a dois terços quando visar a menores de 21 anos (art. 18, III).
Ainda, o art. 63, l, do Decreto Lei 3.688/41, aponta como contravenção penal o ato de servir bebida alcoólica a menor de 18 anos.
Diante do conflito de normas penais, há de ser admitido o crime do art. 278 do CP, nos casos específicos dos núcleos daquele dispositivo, tais como: vender, fabricar, expor à venda, ter em depósito para vender, ou, de qualquer forma, entregar para consumo coisa ou substância nociva à saúde. No caso de bebida alcoólica, dependendo das circunstâncias do fato, tais como o conhecimento de que a pessoa era menor de 18 anos, seu aspecto físico, movimento no estabelecimento, tipo de estabelecimento, quantidade de bebida etc., pode ser admitido o crime.
O autor entende que a contravenção ocorrerá no caso específico de servir bebida alcoólica a menor de 18 anos e, de forma mais objetiva, sob a forma de dolo eventual por quem está a servir, sem a necessidade de atender-se os detalhes necessários à configuração do crime.
Ilícitos penais, segundo
o Estatuto da Criança e do Adolescente
Ainda que o legislador não tenha criado dispositivos específicos para cada uma das proibições do art. 81, na proteção dos interesses de crianças e adolescentes há que ser tomado de forma genérica o disposto no art. 243, compreendendo toda a substância cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica (drogas lícitas, pois a Lei 8.069/90 não revogou a Lei 6.368/76 que disciplina sobre aquelas ilícitas).
Portanto, o fornecimento, seja a que título for, de bebida alcoólica ou fumo a crianças e adolescentes constitui crime também previsto no art. 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo que neste caso, uma vez que tinha previsão legal no art. 278 do CP, ao ser inserido na Lei 8.069/90, encontrou nesta uma forma privilegiadora, pois reduz a pena que era de um a três anos para de seis a dois anos, ambas de detenção, quando a vítima for criança ou adolescente.
Além da pena privativa da liberdade, excepcionalmente a ser cumprida, também cabe a pena pecuniária, sendo que esta, pelos indicativos da moderna tendência penal, há de mostrar-se mais efetiva e deve ser arbitrada em um valor coibitivo daquela prática de ilícito.
Assim, sem a pretensão de esgotar o assunto, mas preocupado em levantar a discussão sobre o tema, em trazer alguns aspectos decorrentes de meditações que o dia-a-dia de uma Curadoria implicam e com o propósito de contribuir com algum subsídio legal de fontes nem sempre disponíveis no cotidiano, o autor acredita que tenha contribuído, de algum modo, para que outros também enfrentem a ameaça que o álcool e o fumo consistem para o desenvolvimento de crianças e adolescentes.
Nota sobre o artigo
Documento disponível em
http://www.mp.rs.gov.br/hmpage/homepage2.nsf/pages/CIJ_ProtFumo