RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇÃO
PATERNO-FILIAL
Professora Doutora de Direito Civil, SP.
Sumário: 1. Primeiras palavras – o enfrentamento do tema e o
modo eleito para a sua consideração e delimitação. A decisão pela interface
disciplinar na busca da fundamentação do fenômeno da responsabilidade
paterno-filial. 2. O arco filosófico
da circunstância relacional humana, entre pais e filhos. A família na base da
cidade aristotélica. A família pode ser uma associação baseada em outra coisa
que não a dominação ou a dependência? 3.
A concepção jus-naturalista de família e a distinta visualização do pátrio
poder. Autoridade marital e autoridade
paterna na escola do direito natural moderno, conforme Dufour. 4. O desafio da modernidade para
demonstrar, racionalmente, os
fundamentos da autoridade e da dependência entre os seus componentes: a) Qual o fundamento natural ou
racional para a responsabilidade dos pais diante dos filhos? b) Há uma precedência paterna na
determinação externa da vida dos filhos?
c) O que há, nos filhos, que
determina a autoridade dos pais? 5.
Os critérios para a definição da autoridade e, conseqüentemente, da
responsabilidade paterno-filial, sob o enfoque do jus-naturalismo moderno: o fundamento, a titularidade e a extensão.
1. Primeiras palavras
O
enfrentamento do presente tema – que me foi especialmente deferido, neste
conclave, pela conhecidíssima e eterna gentileza de nosso Presidente, o Dr.
Rodrigo da Cunha Pereira – descortinou para mim, ao tempo em que me dediquei a
imaginar como construir esta exposição, um panorama tão
variado e rico, que não tenho hoje nenhuma dúvida de que se trata de
mais um daqueles assuntos que não se esgotam, que não autodesenham os seus
próprios limites, mas, ao contrário, oferecem de modo contínuo e incessante, ao
pesquisador, ao estudioso e ao operador do direito, um fabuloso manancial de
aspectos que podem ser sempre e sempre percorridos, sem o risco do esgotamento
da seiva profícua que o vivifica.[1]
Pessoalmente,
na minha atividade acadêmica, tenho dedicado muita atenção e grande esforço de
pesquisa à volta da temática da responsabilidade civil, mormente esta conhecida
como indireta, da qual se diz ora ser uma responsabilidade
subjetiva – por culpa presumida – ora se tende a dizer ser uma responsabilidade objetiva, por se lhe
conferir cada vez menos o ônus probatório da culpa.[2] Estou a me
referir à responsabilidade dos pais pelos danos causados pelos seus filhos
menores, conforme é a regra da Lei Civil que ainda vige, o Código de 1916, em
seu art. 1521, especialmente.
Tem me
sensibilizado, igualmente, nesta vertente da relação paterno-filial em
conjugação com a responsabilidade, este viés naturalmente jurídico, mas
essencialmente justo, de se buscar compensação indenizatória em face de danos
que pais possam causar a seus filhos, por força de uma conduta imprópria,
especialmente quando a eles é negada a convivência, o amparo afetivo, moral e
psíquico, bem como a referência paterna ou materna concretas, acarretando a
violação de direitos próprios da personalidade humana, magoando seus mais
sublimes valores e garantias, como a honra, o nome, a dignidade, a moral, a
reputação social, o que, por si só, é profundamente grave.
Mas,
dizia-lhes antes, o descortinamento do tema, conforme minha concepção,
permitiu-me logo verificar que havia um estreitamento na temática que me fora
presenteada, de sorte que a preocupação com a responsabilidade deveria cingir-se à civil e, sob este viés,
deveria decorrer dos laços familiares que matizam a relação paterno-filial.
Ora,
assim visualizado o tema, impôs-se, prontamente, para mim, esta idéia de que
deveria tratá-lo sob as tintas da responsabilidade civil propriamente dita,
costurando os conceitos – tão conhecidos, para mim e para tantos dos senhores –
da urgência da reparação do dano, da re-harmonização patrimonial da vítima, do
interesse jurídico desta, sempre prevalente, mesmo à face de circunstâncias
danosas oriundas de atos dos juridicamente inimputáveis...
E não
me satisfiz com esta idealização estrutural, já bem formatada na minha mente.
Pensei
ainda mais e concluí que a insatisfação vinha de um fato muito simples: se
íamos nos reunir em Congresso de Direito de Família, certamente a pujança do
tema deveria – como o sadio ramo de trigo que se enverga ao ritmo do vento, mas
não se quebra – inclinar-se para um outro lado e suscitar outra ordem de
inquietações, além daquelas (importantíssimas igualmente, não resta dúvida) que
se condensa na preocupação com a vítima – quer a vítima de danos produzidos por
filhos menores e indenizáveis pelos seus pais, quer a vítima consolidada na
pessoa do próprio filho, pela violação de seus direitos de personalidade,
principalmente – na recuperação de sua normalidade patrimonial ou moral, como
instrumento de superior categoria e valoração, endereçado à mantença da
dignidade da pessoa humana.
Pensei
então que seria adorável e certamente oportuno revirar os alicerces mais profundos
do assunto para trazer à tona as inquietações, as dúvidas, as questões que nem
sempre são do interesse imediato do direito, mas que são, indubitavelmente, a
sua raiz mediata. Melhor de tudo, pensei, esta busca, ainda que
significativamente difícil para mim, revelaria aquela nova maneira de se
procurar desvendar e descrever o fenômeno jurídico a partir de sua interface
com os fenômenos não-jurídicos que o antecedem.
Este
é, senhores, o rico caminho da interdisciplinaridade, que admite – a um agrupamento
de pessoas como este nosso de hoje, sob as dobras da diversidade de pensamento,
de linhas e de construções científicas, dobras essas que caracterizam e
personificam o IBDFAM – que nos sentemos uns ao lado dos demais, sociólogos,
antropólogos, psicólogos, filósofos e homens do direito. Sem castelos ou
prisões. Sem moldes pré-estruturados e estratificados. Mas absolutamente
abertos à contemplação da vida como ela é, e atentos aos contornos do caminho
que leva à realização pessoal e plena de cada um dos homens, enquanto membro do
grupo familiar que o abriga e guarda.
E a
inquietação intrigante que se encontrava presa dentro de mim, emergiu e
expandiu-se, desdobrando-se na mais singela das perguntas: Por que impõe-se – e repercute no Direito de Família – a
responsabilidade advinda da relação paterno-filial?
Em que
bases extrajurídicas estariam assentadas as razões, as justificativas e os
fundamentos da imposição de tal dever?
Poderia,
acaso, a filosofia fornecer alguma base para a discussão da responsabilidade
civil na relação paterno-filial?
Poderia,
acaso, a psicologia adequadamente explicar qual o liame existente entre pais e
filhos, que seja capaz de gerar e de justificar a concretude desta
responsabilização, à face de terceiros, mas – e principalmente – à face deles
próprios, um em ralação ao outro?
Sim,
certamente sim, do mesmo modo como outros segmentos de apreciação e formulação
do conhecimento humano, como a antropologia, como a sociologia, e como todas as
demais persecuções científicas que tenham por objeto de interesse imediato o
homem e sua circunstância relacional humana.
E
assim, sob este desenho pré-jurídico, sob esse matiz fundante, sob esta
inquietação acerca da raiz, decidi mudar o curso de minha apreciação, a qual
lhes trago hoje, deixando-a sob suas mais que competentes considerações e
críticas.
1.2. O arco filosófico da circunstância relacional humana, entre pais e filhos.
Levando
o conceito de responsabilidade civil para suas bases mais longínquas, que o
confundem com o termo genérico da responsabilidade,
e o dever clássico da prestação do devido, a filosofia, por exemplo, tem sim,
muito que dizer.
Basicamente,
ela tem muito que dizer sobre essa responsabilidade na relação entre pais – ou
só o pai, ou só a mãe – e filhos, sempre que a idéia de família estiver
presente ou for o centro das suas questões.
Há, a
propósito, uma longa história do conceito de família na própria história da
filosofia, além da história das instituições civis. E essa é uma história que
vem desde os gregos – portanto, desde o início da filosofia ocidental – e que
se confunde muitas vezes com a própria filosofia política, com o próprio
pensamento em torno do direito e das sociedades.
Já de
uma forma muito sofisticada, o tema da família aparece nessa ligação com a
política justamente no pensamento político de Aristóteles, quando, em sua Política, apresenta uma explicação da pólis (cidade) como sendo uma associação
de várias associações menores, das quais a originária é a família.
A
cidade, antes de ser uma reunião de poderes, de instituições, de leis, é uma
associação de famílias. Essa concepção aristotélica da cidade como uma reunião
de famílias, célebre na história da filosofia política, não prosseguiu,
todavia, com grande repercussão desde a Idade Média.
A
partir do longo período medieval, a concepção da vida política se verá
derivada, em especial, das próprias instituições e da presença efetiva de
certos poderes ou autoridades, perdendo-se de certa forma a idéia grega de que
a cidade é uma grande família. Mais do que isso, quer no período medieval, quer
nos períodos subseqüentes (em especial naquele em que se desenvolve o
jus-naturalismo moderno), será possível encontrar longas considerações
jurídicas a respeito do que a família é ou deva ser.
Mas há
algo na concepção aristotélica que é fundamental, que talvez não convenha
esquecer, mesmo quando se desviar a atenção para as concepções mais modernas.
Trata-se do seguinte, resumindo este aspecto: Por que a cidade é uma associação
máxima que resulta da reunião de outras associações que resultam, por sua vez,
da reunião de associações menores que são, enfim, as famílias? Porque,
justamente, a família é uma associação natural humana (como a cidade, de certa
forma, será de maneira mais complexa), onde as relações dentro dessa associação
são naturalmente determinadas. O que permitiria, assim, conceber não só a
família, não só a cidade, mas qualquer associação, é a sua condição de elo de ligações naturais.
Há,
bem sabe e lembra Aristóteles, vários tipos diferentes de associações, e
conseqüentemente vários tipos diferentes de cidades, de famílias e de
comunidades de toda ordem. A conseqüência é que, se for o caso de tentar uma
classificação dos tipos de cidade ou dos tipos de família, isso só será possível
se for definido um critério para a tipologia.
Esse
critério é buscado por Aristóteles para a classificação das cidades; e é
encontrado não como critério único, mas como critério duplo: primeiro, uma
cidade pode ser governada por um só, por poucos ou por muitos; segundo, o
governo pode ser puro ou corrompido. Conseqüência: há seis tipos de cidades –
três tipos puros (monarquia, o
governo de um só; aristocracia, o
governo de poucos; politéia, o governo
de muitos) e três tipos impuros, corrompidos, que são correspondentes às três
formas puras (respectivamente: tirania,
oligarquia e democracia).
E para
a família? Diferentemente do que ocorre com a cidade, para o caso da família
não há critério que permita sua classificação em vários modelos puros; existem,
certamente, vários tipos de família, no sentido de que há famílias com
diferenciados números de componentes, que se beneficiam ou não de servos,
propriedades, etc. Mas, diferente do que ocorre com a cidade (onde o poder pode
estar na mão de um só, ou não), no caso da família o comando familiar está
sempre nas mãos dos pais, e para certas funções está exclusivamente em poder do
pai. Em outras palavras: em Aristóteles, assim como em toda a tradição grega, é
um consenso entre os autores a idéia de que são os pais que têm autoridade
sobre seus filhos, e que é o marido que tem autoridade sobre sua esposa (ou
suas esposas).
Por
que essa autoridade masculina, paterna e marital?
Porque ela é, como toda autoridade, uma autoridade natural, segundo a visão
filosófica de Aristóteles.
Ora,
segundo a concepção clássica, então, será por uma necessidade natural humana
que os filhos devam obedecer aos pais e a mulher deva obediência ao marido. Se
a família antiga, assim, é patriarcal, é porque a natureza inteira o é.
Essa concepção clássica, que obviamente se encontra em completo descompasso com a
contemporaneidade, é a concepção que, como se sabe, mais dominou as teorias ou
doutrinas em torno da família, por toda a história da humanidade. De fato,
Aristóteles está mais presente do que distante em certos aspectos: ainda que
nunca mais se tivesse desenvolvido a idéia de que a cidade é uma reunião de
famílias, por praticamente toda a história da humanidade se manteve a idéia de
que a família é a mais originária das associações naturais, e que sua
composição envolve uma autoridade natural dos pais sobre os filhos e do marido
sobre a mulher.
Por
isso mesmo, pressinto que a análise do tema, a partir de Aristóteles seja
relevante, na medida em que deixa claro o que sempre estará em questão, na
composição da família: a família é uma associação na qual alguém tem poder
sobre outrem, restando saber, primeiro, a
quem e por que se deve esse poder e, segundo, se a família não pode ser uma associação baseada em outra coisa que
não a dominação ou a dependência.
Sempre
que se tratar das relações de família e da responsabilidade envolvida nas
relações de família, fundamental será que se trate, também, da base dessa relação.
A inquietação
tipicamente pós-moderna assenta-se em buscar a resposta à pergunta: no seio da
família da contemporaneidade desenvolve-se ainda, e tipicamente, uma relação de poder ou é possível afirmar,
por exemplo, que a ênfase relacional se encontra deslocada para a afetividade?
O tema
da responsabilidade nas relações de família envolve necessariamente essa visão
clássica da autoridade, para bem ou para mal.
O
olhar histórico de contemplação pretérita sobre o assunto admite afirmar que é
marcante essa significação da família do passado mais como uma relação de poder do que como uma relação de afeto. Por conseqüência, a família aparece
tradicionalmente como uma associação cujos benefícios se dirigem mais para os
pais (e mais ainda para o pai ou o marido) do que para os filhos (ou para a
mulher).
A
tradição patriarcal, de índole francamente autoritária, na concepção das
relações de família, pretendeu muitas vezes, e na intenção de justificar-se
como instituição civil, fazê-lo por vieses imaginados racionais ou científicos.
E
mesmo que uma tal justificação fosse ideológica e impossível, o principal
argumento utilizado para a defesa da autoridade do patriarca foi, desde os
gregos, a existência de uma hierarquia ou de uma dependência natural. Essa
idéia – que está na base das concepções antigas e clássicas de família e que se
faz notar principalmente na imposição da autoridade nas relações familiares –
curiosamente aparecerá também como índice, no pólo oposto dessa relação, vale
dizer, aparecerá como o fator de consagração da responsabilidade dos pais
diante dos filhos, assim como do marido diante da mulher.
O que
a tradição mostra, enfim, é que a concepção da autoridade é baseada numa idéia
de natureza, mas ao mesmo tempo essa
idéia de natureza traz uma concepção de responsabilidade
muito equivalente.
A primeira explicação para a
idéia de que a associação mais primitiva é a família, pode ser vista, ainda em
Aristóteles, por meio de sua afirmação de que a família é o resultado da
associação daqueles seres que "não
podem, por natureza, ficar separados um do outro". Refere-se, o
filósofo grego, ao homem e à mulher.
Ou
seja: Aristóteles até concebe que as famílias tenham ou não posses, que tenham
ou não filhos, mas não concebe uma família sem a idéia de casamento, e muito
menos concebe as famílias homoafetivas. A concepção corrente da família brasileira até muito pouco tempo
era vulgarmente aristotélica, ainda
que a prática da família brasileira
fosse muitas vezes o inverso da sua imagem...
E
porque o novo Código Civil não incluiu as uniões homoafetivas entre as
entidades familiares, talvez seja o caso de dizer que, em termos oficiais,
ainda estamos na visão aristotélica de
família, onde essa associação originária só é legítima se obedecer ao que a
sociedade patriarcal considera normalidade
sexual e moral.
Mas
enfim, a idéia original é a de que a família é uma associação que decorre da
natureza humana, na medida em que decorre de uma necessidade de vida em comum,
que Aristóteles, e novamente a tradição posterior a ele, atribuirá à relação
entre homem e mulher.
E que
relação é essa? Uma relação física, apenas, ou uma relação de dependência?
Aristóteles
coloca que é uma relação de dependência, especialmente da mulher em relação ao
homem: esta, sozinha, não apenas não é capaz de procriar, como não seria capaz
de subsistir, e muito menos comandar uma cidade ou um exército. E não seria
capaz por quê? Porque, por sua constituição natural, ela seria mais fraca que o
homem, incapaz, enquanto só ele seria capaz para a prática de certas ações que
demandam força e prudência.
Aristóteles
quer apontar, portanto, uma deficiência, uma debilidade natural na mulher,
visível seja por sua comparação ao homem, seja por sua própria compleição.
Ora,
sob o preconceito dessa idéia de que a mulher é fisicamente, mas também
racionalmente, inferior ao homem, Aristóteles sequer foi um dos primeiros: a
idéia já estivera colocada com todas as letras por Demócrito de Abdera, quando
recomendou que a mulher não se exercite na
palavra, porque isso é coisa perigosa, ou que ser governado por uma mulher é, para o homem, a suprema violência.[3]
Esse
argumento pretensamente naturalista de que a mulher é inferior ao homem hoje
nos assusta com sua brutalidade? Pois foi o principal argumento utilizado em
quase toda a história da humanidade para tentar justificar o poder patriarcal
ou masculista[4] sobre as mulheres. É esse o
principal argumento utilizado hoje em dia para justificar a violência doméstica
contra as mulheres e meninas no Brasil, assim como a violência generalizada
contra as mulheres e meninas em regimes fundamentalistas como o do Taleban, que
por uma certa e infeliz contingência tem sido constantemente focado e criticado
em nossos dias.
Numa
palavra, o argumento da debilidade ou incapacidade natural da mulher é o
argumento mais utilizado para tentar justificar a autoridade do homem em
relação à mulher dentro da estrutura familiar, ao mesmo tempo em que a
dependência da mulher em relação ao homem, nessa mesma estrutura.
O
nosso tema aqui não é, diretamente, essa relação patriarcalista entre homens e
mulheres, entre maridos e esposas, entre pais e filhas, e por isso não é o caso
de levar adiante a análise e a crítica dessa concepção irracional que sempre
insiste em se manifestar até hoje na concepção dos papéis do homem e da mulher
na família.
Mas é
fundamental que tenhamos começado por apontá-la, pois ela é a base para aquela
outra relação que constitui, aqui, o nosso tema principal: a relação entre pais e filhos.
O que
a história mostra, e as histórias do pensamento e das instituições mostram
junto, é que, se a relação entre homens e mulheres, em família, foi sempre
baseada numa concepção naturalista de dependência e subordinação da mulher, com muito mais razão será apontada uma
dependência e subordinação dos filhos em relação aos pais.
Se a
própria subordinação da mulher era vista como necessária, mesmo sendo a mulher
um indivíduo adulto e experiente, o que dizer então, e sempre, de pessoas que
tinham pouca experiência ou não tinham experiência nenhuma? Pessoas que não
tinham condições de se manterem sozinhas? Dir-se-á não apenas que dependiam
muito mais dos adultos na relação familiar, mas, conseqüentemente, que deviam,
na mesma proporção, muito mais obediência.
Se a família,
nessa concepção clássica e reiteradamente patriarcal, foi tida como uma relação
de poder praticamente despótico, cujo pater
era o detentor exclusivo ou principal de todo o poder de decisão quanto à
liberdade e o destino dos integrantes da família, então os filhos estiveram,
certamente, numa posição muito próxima à escravidão: sua
dependência física, material e moral foi eternamente a causa do seu
dever incessante de obediência.
Se
assim é, o que dizer, então, de uma concepção de família que a vê como uma associação daqueles que não podem deixar
de estar unidos (Aristóteles), ao mesmo tempo em que o homem é, naturalmente, o cabeça de sua
família (cultura grega, teologia judaico-cristã, direito romano...)?
Nessa
associação, o elo de ligação e o índice dos deveres não se indicam pelo amor,
não se matizam pela recíproca generosidade, não se caracterizam pela mútua
proteção, mas sim se realizam por meio da dominação. E se trata de dominação
porque, na concepção patriarcal clássica, jamais haverá um espaço para que a
mulher e os filhos assumam, contra a vontade do pai, o posto que deveria lhes
corresponder.
O
correr histórico desnudará a certeza de que, para se vislumbrar a igualdade de
direitos entre homem e mulher – e também entre pais e filhos – na condução da
família, serão necessários milênios.
Mas
esse longo tempo, necessário certamente para a concepção dessa igualdade de
direitos, de certa forma seria necessário, também, para a concretude da própria responsabilidade paterna como um dever dos pais, em lugar de um poder dos pais.
A
idéia de responsabilidade paterna que
existe hoje não encontra grandes referências nas concepções antigas de natureza
humana e de família. É verdade que o mundo antigo concebeu deveres dos pais, dos chefes de família; mas a concepção de responsabilidades civis é muito mais
recente. Por quê? Porque, se a simples responsabilidade envolvida no dever de assistência é classicamente
determinada pelo poder do pai sobre sua família, a responsabilidade envolvida nos danos decorrentes da má gestão dessa chefia de família não decorre mais
do arbítrio desse mesmo pai de família.
Vale
dizer: na concepção antiga e tradicional de família, o pater tinha obrigações, mas tinha também poder suficiente para
arbitrar quais seriam essas obrigações,
já que era senhor de suas mulheres e de seus filhos.
Ao
contrário, em concepções mais recentes de família – e que remontam, no máximo,
ao início do período moderno – os pais de família têm certos deveres que
independem do seu arbítrio, porque agora quem os determina é o Estado.
1. 3. A concepção jus-naturalista de família e a
distinta visualização do pátrio poder.
A
partir do Renascimento e da modernidade, ser chefe de família continuou
significando deter um poder privilegiado e amplo, mas que já não é mais um
poder superior à capacidade – cada vez mais visível – dos outros integrantes da
família. A modernidade abre espaço para uma transformação
lenta, mas radical, na concepção
de família, já que investe pela primeira vez (especialmente no âmbito do
jus-naturalismo) na idéia de igualdade entre homem e mulher quanto à capacidade
para chefiar a família.
Quem
mostra isso com muita ênfase, desde a década de 1970, é um dos maiores
historiadores do jus-naturalismo, Alfred Dufour. Num ótimo estudo publicado
originalmente em 1975, mas retomado e desenvolvido anos
mais tarde, denominado Autoridade marital
e autoridade paterna na escola do direito natural moderno,[5] Dufour mostra que uma das maiores
contribuições do jus-naturalismo foi inovar na concepção dos direitos entre os
integrantes da família.
Neste
estudo, Dufour mostra que tanto a relação entre homem e mulher recebeu
inovações importantes no ambiente jus-naturalista, como também as recebeu a
relação entre pais e filhos, ainda que em menor medida. No que diz respeito à
relação entre homens e mulheres, autores como John Locke no século XVII, mas
também como Christian Wolff, e seu discípulo Daniel Nettelbladt, no século
XVIII, investiram na idéia de que a mulher, como o homem, detém uma autoridade
natural sobre os filhos, e efetivamente equivalente à do homem.
No que
respeitasse, pois, à autoridade sobre os filhos, a mulher teria os mesmos
direitos que o homem, e por razões naturais diferentes daquelas que eram
alegadas por Aristóteles ou por toda a tradição medieval cristã: a mulher, como
o homem, é causa da existência dos
filhos, e isso torna a sua autoridade natural. Esta lógica é menos restritiva do que a concepção anterior, mas é ainda,
sem dúvida, um reconhecimento tímido do potencial racional da mulher, já que
ela não é desenhada, ainda, como uma possível autoridade equivalente à de seu
próprio marido.
No que
respeita à relação paterno-filial, por outra parte, nota-se que as mudanças
serão também visíveis, embora se mostrem menores do que a relativa equalização
de direitos ou de autoridade entre homem e mulher. Todavia, apesar do seu menor
peso, dar-se-á igualmente, nesta circunstância relacional, uma mudança
suficiente para caracterizar, enfim, a concepção da relação entre pais e filhos
como uma relação na qual sempre haverá uma
responsabilidade dos pais em relação às necessidades dos filhos, a ponto de
se poder dizer que é aí que nasce, propriamente, uma concepção articulada de responsabilidade civil na relação
paterno-filial.
Esta
interferência do jus-naturalismo moderno na reformulação da concepção em tela,
ocorrida nos séculos XVII e XVIII, fez com que se realizasse, aos poucos, a
noção propriamente jurídica de responsabilidade – que se desenvolve até se
tornar responsabilidade civil, no
início do século XIX – e também porque é aí, na modernidade, que a condição
jurídica dos filhos dentro da família passa a ser apresentada segundo critérios
que se pretendem racionais ou científicos, para além dos antigos critérios do
costume.
É certo
que esta concepção jus-naturalista, assim como traçada, guarda uma grande
distância com respeito à concepção contemporânea ou pós-moderna. Contudo, penso
que dedicar uma certa atenção à maneira como os autores modernos trabalharam o
assunto, pode dizer muito à contemporaneidade, quando somos convidados a
considerar a família como uma entidade real, concreta, cuja significação e
cujas necessidades talvez não estejam mais definidas unicamente pela lei ou
pelo arbítrio do juiz.
4. O desafio da modernidade para demonstrar, racionalmente, os fundamentos da autoridade e da dependência entre os seus componentes
Ao
tratar da família, os autores modernos tinham, então, o desafio de demonstrar racionalmente quais os fundamentos da
autoridade e da dependência entre os seus componentes. É claro que o tema desta
autoridade em família era (como sempre é) um princípio corrente; mas, por mais
consensual que fosse a idéia de autoridade marital e paterna, no plano da
teoria jurídica havia sempre a necessidade de evidenciar os seus fundamentos.
Um dos paradoxos originados dessa tarefa, todavia, foi a
revelação, por vezes, de que uma certa prática por quase todos aceita não tinha
fundamentos tão racionais, como se
poderia imaginar.
Qual
efetivamente seria a razão e o fundamento da existência perenizada de um pátrio
poder, a significar uma autoridade dos pais sobre os filhos, garantida pelo
Estado, e que permite àqueles determinar a vida destes? O que é que, enfim,
impulsiona o Estado a conceder e garantir um tal poder?
A
argumentação original é, novamente, a que se aperfeiçoa na noção da natureza.
Os
filhos vêm ao mundo na dependência completa dos pais, e assim permanecem
enquanto não se tornam, eles mesmos, adultos ou emancipados. A dependência
natural é tão certa e inegável, que sequer pode ser recusada pelos pais.
Perfeitamente compreensível e aceitável.
Mas a
questão que insiste em não calar, e que decorre desta singela verdade, versa
sobre a dúvida de qual seria a origem
da autoridade dos pais?
Ou, em
outros termos, por que a dependência dos
filhos equivale a uma dominação por
parte dos pais, a uma autoridade destes sobre aqueles, enfim?
O
pátrio poder, justamente, não é um poder acidental,
involuntário. Ele é exercido pelos pais como dominação sobre os filhos. Já que é uma dominação, talvez o pátrio
poder não envolva nenhum componente
afetivo. Ao menos, nenhum componente positivamente
afetivo, como a generosidade com respeito aos filhos.
Ao
contrário, talvez o seu sentido seja sempre, ou prioritariamente, negativo, no
sentido de um aproveitamento ou ‘usufruto’
dos filhos, um exercício desenvolvido – talvez – mais em benefício dos próprios
pais, do que para a alegria ou proveito dos filhos. Por que isso? Porque, de
ponta a ponta, na relação entre pais e filhos simbolizada pelo pátrio poder, os filhos não têm poder nenhum.
A
idéia de pátrio poder, assim, pressupõe algo semelhante à antiga concepção da
subordinação da mulher ao homem: ela é
devida segundo a natureza. Ela é devida porque a
parte dominada na relação é mais fraca, é mais débil... Numa palavra, é
dependente da outra.
Talvez.
Mas o
que causa esta dependência, de fato? A natureza,
como se fosse uma condição sem conserto ou mudança? Ou as circunstâncias, como se fosse uma condição determinada unicamente
pela maior força do dominador?
Se a
reflexão nos fizer passear os olhos para a história da condição feminina,
facilmente observar-se-á que a causa da dependência reside exatamente na
segunda opção: o que historicamente determinou, às mulheres, a ausência de
direitos e a submissão ao patriarcado foi uma circunstância de imposição pela
força, reiterada pelos costumes e pelas instituições, ao mesmo tempo em que
endossada pelo próprio direito.
Desde
a Antigüidade, o homem é caput de sua
mulher e das mulheres de sua família. Não porque tenha sido um desejo das
mulheres. Mas elas sempre viveram em um mundo dominado por instituições
patriarcais, cuja estrutura não permitia a própria modificação.
O
mesmo pode ser descrito para a situação dos filhos.
Desde
sempre, e com mais forte razão, os pais – mas principalmente o
pai – são caput dos infantes.
Em parte, por causa de uma concreta dependência dos filhos, que não têm nem
forças, nem meios, nem, principalmente, experiência para emancipar-se na vida.
Mas, em parte porque a família foi sempre constituída como um domínio
particular de quem o instaurou. O círculo familiar, no qual o chefe de família
é senhor dos membros da família, funciona como uma monarquia particular, como bem lembraria Cesare Beccaria, no capítulo
26 de seu tratado Dos delitos e das penas.
A
definição tradicional e jurídica de família, então, e por todos os motivos,
está muito longe da definição de uma relação
afetiva. Ela define diretamente uma espécie muito particular de domínio e
dominação.
Na
família marcada pelo pátrio poder, como compreender, assim, algum fundamento natural ou racional para a
responsabilidade dos pais diante dos filhos?
Se
esta responsabilidade, desde o início, diz respeito a uma dependência dos
filhos em relação aos pais, então ela é determinada mais pelos filhos do que
pelos pais?
Ou
determinada mais pelo Estado do que pelos filhos?
Num ou
noutro caso, não é, certamente, uma responsabilidade determinada pelos próprios
pais, porque não cabe a eles decidir a sua validade ou não. Se lhes coubesse,
não seria, então, responsabilidade. Seria assunção volitiva de obrigação.
Há,
concretamente, uma condição de dependência dos filhos em relação aos pais que
é, sim, uma dependência natural, em
dois sentidos: primeiro, porque os
pais são causa dos filhos; segundo,
porque os filhos, para se manterem, precisam do auxílio dos adultos; e como só
existem porque seus pais os deram à existência, são estes que devem ser
encarregados da sua subsistência.
A
obrigação primeira dos pais em relação aos filhos é, certamente, a transmissão
da cultura. Lévi-Strauss esclarece que, para que se passe da natureza (os meros
impulsos, o simples biológico, nossa parte mais animal) para a cultura (o
humano, o criado), para que se passe do individual para o social, são
necessários três interditos básicos: canibalismo, parricídio e incesto. Dada a
condição humana de indefensão, para que os filhos sobrevivam, as suas
necessidades vitais primeiras serão satisfeitas pela mãe, por um período
relativamente prolongado em relação às outras espécies animais.
Os
filhos, assim, são um encargo natural
trazido pela união dos pais: o nascimento dos filhos obriga os pais a manterem
os próprios filhos, como se os filhos fossem, de certa forma, uma culpa deles
próprios, que não incumbe ao Estado assumir. Ou seja, mesmo nos termos em que
os filhos dependem dos pais para sobreviver e se desenvolver, não cabe, à luz
do viés da Antigüidade que está em foco, tentar enxergar, aí, nenhuma relação
afetiva.
Se ela
ocorrer também, tanto melhor, é um excedente. Aos olhos do Estado, a relação
entre pais e filhos é a de uma sociedade causada
por vontades completamente particulares, que não têm poder nem legitimidade
para transferir sua causalidade ao
Estado, se este não o desejar. Porque causam
os filhos, os pais causam,
conjuntamente, todos os gastos envolvidos na sua manutenção e desenvolvimento.
Se
assim é, raciocine-se: por qual motivo o Estado ou outra entidade que não os
próprios pais, poderia ou deveria ser considerado co-responsável nessa criação?
Se – e somente se – considerarmos que
por nenhum motivo, então, de fato, a relação paterno-filial pode ser avaliada
como uma relação de um senhor com seus
próprios bens. Apenas isso.
Assim
entendida, contudo, a relação paterno-filial não envolve, é claro, o poder
paterno de decidir pela vida ou morte dos filhos (isto era coisa dos déspotas
antigos), mas envolve, sim, uma precedência
na determinação externa da vida dos filhos.
Quem
deve decidir o destino e as preferências dos filhos, seria o caso de se
perguntar – o Estado ou os pais? Ou, ao menos, quem tem precedência nessa
decisão – o Estado ou os pais? Não importa qual seja a resposta que se dê, se a
opção for por um dos dois – o Estado ou os pais – se estará, com isso, aceitando
a idéia de que os filhos são coisa...
Na
verdade, saindo enfim desse plano que concebe a autoridade paterna como pátrio
poder, encontra-se o verdadeiro desafio
de definir quem deve ter precedência para decidir sobre os destinos da criança ou
do jovem atrelado, ainda, à vida em família.
Sem
dúvida, a essência da pós-modernidade responde e estampa a concepção
contemporânea mundializada, ao menos em sociedades assemelhadas à nossa: é a própria criança ou jovem, sempre, que deve
ter precedência na determinação do seu destino. Sempre. Ainda que esteja
sob o pátrio poder, ou sob o poder familiar, como prefere a nova Lei Civil
Brasileira [6], ou ainda que esteja sob a dependência dos pais ou do
Estado.
Pais e
Estado – assim como toda a sociedade, afinal – não podem, em momento nenhum,
tratar a criança como coisa só pelo fato de ser ela sem experiência ou sem
atividade produtiva, sem maturidade espiritual ou sem autonomia material. A
criança, apesar de seu estado de extrema e concreta dependência, é um ser
humano como qualquer outro, é um ser desejante e emotivo como qualquer outro,
que sente dor diante da crueldade alheia e revolta por não lhe ser concedida à
liberdade que é capaz de administrar sozinha. E é por ser dotada desse desejo e
dessa necessidade que a criança, enfim, é dotada de dignidade e assim deve ser
respeitada. Não respeitar essas necessidades e negar a relevância do desejo é
tratar a criança como coisa, é efetivamente ser violento com ela, o que afasta,
em definitivo, qualquer relação ética com a criança.[7]
Senhores.
Se é o caso de pensar a responsabilidade na relação entre pais e
filhos, vale a pena pensá-la apenas pelo viés do direito ou é o caso de
pensá-la a partir especialmente da ética? É o caso de pensá-la em ambos os
planos, necessariamente, inclusive porque nenhum deles é válido sem o outro, na
consideração da responsabilidade.
Qualquer
que seja o tema proposto, a respeito da responsabilidade,
ele será um tema tanto jurídico quanto
ético. Numa perspectiva ética, como fica essa responsabilidade? Ela não
pode, de forma alguma, negar validade ao desejo da criança. O contrário
demonstrará a vida em família como uma relação de violência, justamente porque
é uma relação de neutralização e de dominação apenas, o que é muito bem
mostrado, entre outros autores, por Michel Foucault, em seus vários estudos
sobre as relações de poder, mas especialmente a Microfísica do poder e, mais ainda, na sua última obra, a História da sexualidade.[8]
Importante
também é verificar que as considerações acerca da responsabilidade na relação
entre pais e filhos não devem se reduzir ao fato de se averiguar quais são as
obrigações que já existem, ou que decorrem desta relação por sua própria condição e estrutura natural, nem de se averiguar quais são os meios de compensação de danos na má gestão
dessa autoridade paterna, por vez patriarcal.
É
claro que envolve estes aspectos também, mas de forma alguma deve se restringir
a eles, pois, se ficarem, as considerações, restritas a essa perspectiva
técnica, talvez não se ampliem satisfatoriamente os horizontes. Talvez seja
necessário – e até imprescindível – ir a um ponto outro, de estranha inversão,
e verificar que é preciso conhecer o que
há, nos filhos, que determina a autoridade dos pais.
Questão
muito curiosa, essa, porque parece inverter a própria idéia de autoridade.
Afinal, se alguém tem autoridade sobre um outro, que coisa mais extravagante
haveria do que a idéia de que a autoridade é medida por quem está a ela
subordinado?
De fato,
a questão é extravagante.
Mas
será que pode ser garantido algum resultado positivo à questão oposta, que é
mesmo a questão clássica, de saber qual é o poder que a autoridade tem por sua própria vontade ou potência? Ao que
parece, ela sempre foi útil para conceber a relação dos pais com os filhos como
um pátrio poder, como uma relação de dominação dos filhos pelos
pais. E sendo apenas isso, os benefícios ou as garantias desta relação, para os
filhos, são mais produto da sorte do que das
necessidades dos filhos. Ou não?
Deixo
essa questão em aberto, porque o mais importante, segundo me parece, é o
enfrentamento da outra questão: o que há,
nos filhos, que determina a autoridade dos pais?
5.5. Os critérios para a
definição da autoridade e, conseqüentemente, da responsabilidade
paterno-filial, sob o enfoque do jus-naturalismo moderno: o fundamento, a titularidade e a extensão.
Esta
questão é, de certa forma, esboçada pelo jus-naturalismo, como mostra Alfred
Dufour, no estudo antes mencionado, sendo certo que a partir de então ocorreram
algumas inovações de peso na concepção jurídica da relação entre pais e filhos.
Pela
primeira vez, provavelmente, apareceu no pensamento jurídico moderno a idéia de
que os filhos não são propriedade dos
pais, ainda que estejam necessariamente sob sua custódia e autoridade. Não
há, entre esses autores do pensamento jurídico moderno, um perfeito consenso em
todos os aspectos, mas há pontos em comum que permitem, imagino, uma visão
sistemática do conjunto.
O que
Dufour mostra em seu estudo é que há três
critérios distintos para a definição da autoridade paterna, todos
inovadores no sentido de superarem a antiga concepção de que a autoridade
paterna é algo inquestionável, ou decididamente arbitrário. Esses três
critérios, por terem uma significação moderna, podem soar estranhos à compreensão contemporânea; mas contêm elementos
únicos para que a mesma autoridade paterna, e a
responsabilidade nessa relação, seja repensada hoje em dia. Os critérios
para a definição dessa autoridade, e conseqüentemente das condições da sua
responsabilidade, são: o fundamento;
a titularidade; a extensão.
A
respeito do critério relativo ao fundamento da autoridade paterna, há três formas de expressá-la, segundo o
jus-naturalismo moderno: uma fundamentação hierárquica, uma fundamentação
convencionalista e uma fundamentação funcional.
A fundamentação
hierárquica lembra, em parte, as concepções antigas e consiste na
concepção de que a autoridade dos pais sobre
os filhos no quadro da sociedade familiar tem como fundamento a natureza. Essa é a posição, por exemplo,
de Hugo Grotius (autor do tratado Do
direito de guerra e de paz, de 1625), que considera que os pais, por
gerarem os filhos, têm direito sobre suas pessoas como quem tem direitos sobre
qualquer coisa de que seja o criador. É, na verdade, a primeira das concepções
da autoridade paterna desenvolvida dentro do jus-naturalismo e será, em
conseqüência, muito combatida, mesmo dentro de seus domínios, especialmente
porque carrega ainda algo das concepções pré-jus-naturalistas.
Mas
ela é inovadora na medida em que coloca como base para a concepção da
autoridade a necessidade de um critério
que seja racional. Para Grotius, esse critério racional é a natureza, mas a natureza que ele vê é
semelhante à que a teologia via quando analisava a relação entre o homem e
Deus: já que Deus é o criador dos homens, os homens são como objetos que
pertencem a Deus; identicamente, já que os filhos são criação original dos pais,
são como que objetos que lhes pertencem, ou cuja liberdade depende diretamente
dos pais.
A
linha jus-naturalista de pensamento manterá, nos dois séculos seguintes, a
idéia de natureza como base para se
pensar a liberdade e os direitos; mas trabalhará uma outra idéia de natureza, ou verá, a partir da mesma natureza, outras necessidades e outros direitos,
seja para os pais, seja para os filhos.
A fundamentação
convencionalista consiste numa
idéia que se assemelha muito à concepção jus-naturalista do contrato social, e
está presente, por exemplo, no Leviatã (1651)
de Hobbes: da mesma forma como a vida em sociedade só existe porque os cidadãos
consentem com sua existência, a vida em
família também só existe porque os filhos assim o consentem. Mesmo que a
família seja uma associação onde há uma certa relação de poder, não à toa muito
assemelhada com a relação que um monarca tem com seus súditos, o que ocorre é
que esse poder só existe porque os súditos, isto é, os filhos, o aceitam.
A
idéia – ainda que bastante curiosa – é reveladora de um certo poder por parte dos filhos, coisa que talvez não se visse em
Grotius, e que certamente não se via antes do jus-naturalismo. É uma ousadia
gigantesca, em termos teóricos, conceber que há algo na vontade dos filhos que
determina o poder dos próprios pais, ainda mais porque se trata de algo que não
está sob o poder dos pais: a razão dos
filhos, a vontade dos filhos.
Os
pais, de fato, podem obrigar as ações dos filhos, mas não podem obrigar sua
vontade, seu desejo. Da mesma forma como é inútil legislar a consciência na
vida civil, na vida familiar essa tentativa também é completamente inútil. Isso
significa, do ponto de vista de Hobbes que, se a sociedade familiar está
estabelecida (e ela certamente vem de fatores naturais), é igualmente verdade
que a sua continuidade e perpetuidade depende diretamente do arbítrio de quem
está abaixo do poder. Ora, este é um modo de análise absolutamente novo na história do pensamento jurídico.
Na
mesma linha, um outro autor do século XVII, Samuel Pufendorf, em seu tratado Do direito de natureza e das gentes (1672), dirá que a autoridade paterna é a autoridade mais antiga e a mais sagrada que
se acha entre os homens. Ou seja, o que marca a validade dessa autoridade é
um valor moral que Pufendorf atribui
à autoridade paterna, porque, para ele, o
sagrado não é aquilo que decorre do divino, mas é aquilo que é tido como moralmente válido.
É um
passo que vai além da simples geração dos filhos como sendo base para a
autoridade paterna (como era em Grotius), porque, segundo Pufendorf, o que
determina a autoridade dos pais sobre os filhos não é a simples geração, mas a
semelhança: há validade na autoridade desde que os filhos sejam semelhantes a nós e estejam, como nós, igualmente dotados
daqueles direitos naturais comuns a todos os homens.
Vale
dizer, a autoridade paterna tem um fundamento
natural que envolve, agora, a moral.
Num certo sentido, a autoridade depende, também, dos filhos, porque ela só é
válida na medida em que os pais cumprem obrigações perante os filhos. Essas
obrigações, se não são impostas pela vontade dos filhos (como talvez fosse o
caso em Hobbes), ao menos são moralmente necessárias, e nenhuma autoridade pode
ser concebida se não houver, reciprocamente, o cumprimento das obrigações por
parte dos próprios pais.
Assim,
segundo Pufendorf, a condição paterna
envolve moralmente um encargo, do qual os pais não têm como escapar
moralmente (ainda que possam dele escapar materialmente).
O que
se extrai de Hobbes e de Pufendorf, se tomados em conjunto, é a revelação de
que a paternidade, mesmo que envolva um
poder sobre os filhos, envolve necessariamente um dever quanto aos filhos. Não importa se em função da vontade dos filhos (concepção de Hobbes)
ou se em função da moralidade da
própria relação (como em Pufendorf).
Em
qualquer caso, não está mais nas mãos dos pais, apenas, todo o arbítrio sobre o
valor dessa autoridade e a sua correspondente responsabilidade. Essa idéia é
extremamente reveladora, porque mostra a fragilidade a que se pode expor a
idéia de domínio dos filhos pelos pais. Esse domínio, sempre que os filhos não
o desejarem porque é violento, ou sempre que for contrário à necessidade moral
da relação, não pode ser legítimo.
Por
seu turno, a fundamentação funcional consiste numa concepção do final do
jus-naturalismo que tenderá a ser continuada após o jus-naturalismo moderno:
ela considera que a sociedade familiar tem uma finalidade – o sustento e educação ou formação dos filhos –
e que a autoridade é válida em função de cumprir essa finalidade.
Se a
finalidade é natural ou voluntária, pouco importa; o que importa é que ela é
irrecusável, e que nenhuma família poderia ser concebida sem que tivesse como
finalidade conjunta a formação dos seus integrantes.
Na divisão de poderes e funções dentro da própria família, aos pais cabe, como
adultos e ainda como geradores, proverem a formação dos filhos, e a estes cabe
obediência na medida em que recebem a formação ou dependem dela.
Caso
não mais dependam, todavia, seja da formação, seja dos pais para receber a
formação, nada mais de potestativo resta como elo
para essa estrutura familiar. Quem formula bases teóricas para uma tal
concepção, por exemplo, são jus-naturalistas do final do
século XIX, como o inglês John Locke, e outros do correr do século
XVIII, como Christian Wolff, Thomasius, Burlamaqui e Barbeyrac.
Uma
passagem de Locke, nesse sentido, é esclarecedora: Os filhos, confesso, não nascem [em] estado pleno de igualdade,
embora nasçam para ele. Quando vêm ao mundo, e por algum tempo depois, seus
pais têm sobre eles uma espécie de domínio e jurisdição, mas apenas
temporários. Os laços dessa sujeição assemelham-se aos
cueiros em que são envoltos e que os sustentam durante a fraqueza da infância.
Quando crescem, a idade e a razão os vão afrouxando até caírem finalmente de
todo, deixando o homem à sua própria e livre disposição.[9]
Talvez
esta seja, dentre as concepções elementares do jus-naturalismo em torno da
relação paterno-filial, a mais próxima da contemporaneidade, mas é importante
notar o que ela ainda mantém de essencialmente moderno: a relação de obediência
e de autoridade se mantém na medida em que se mantém, antes de tudo, a relação
de segurança e formação.
O que
há de novo e importante nessa concepção, buscando compará-la, inclusive, com as
demais que já eram esboçadas pelo século XVII é o fato de que ela diz algo
radical: a relação entre pais e filhos deve ser pensada em benefício, principalmente,
dos filhos. E é a primeira vez em que isso é dito. E é porque a relação entre
pais e filhos deve ser pensada sempre tendo em vista prioritariamente o
benefício dos filhos, que aos pais cabe a educação deles, e a estes está
legitimada a desobediência em caso de irresponsabilidade ou incapacidade dos
pais.
Além
da concepção da autoridade paterna a respeito da sua fundamentação, há ainda as
concepções a respeito da titularidade e a respeito da extensão:
A
respeito da titularidade, a vertente precípua de indagação quer verificar
quem é titular do pátrio poder – o pai ou a mãe? Com esta questão, dá-se o
retorno ao papel da mulher na família. Como aqui a referência, ainda que
temporariamente, está sendo o pensamento moderno, ou seja, os
séculos XVII e XVIII, é claro que não se encontrará uma defesa
entusiasmada de uma igualdade de direitos para o homem e a mulher no que
respeita a esse título. Pelo contrário, para a maioria dos pensadores modernos,
o pai tem uma autoridade maior que a mãe, inclusive porque a mulher está sob
sua autoridade, na mesma família.
Ainda
assim, haveria uma defesa de igual titularidade entre homem e mulher na direção
da família, entre os modernos? Sim, houve e ela está, por exemplo, em autores
como John Locke e Thomasius, quer dizer, aqueles mesmos autores que, diante da
indagação sobre o fundamento da autoridade, fixaram-no na obrigação que têm os
pais para com a educação dos filhos. De modo semelhante, eles reconhecerão um
igual direito entre o pai e a mãe, quanto à detenção da autoridade sobre os
filhos, em função justamente desse igual poder, ou
igual obrigação, para educar.
É
possível assim concluir, de uma forma curiosa, acerca da finalidade da
autoridade dos pais: esta autoridade serve, segundo este pensamento, para
indicar a obrigação, dos pais ou de um dos pais, de prover a educação dos
filhos. É para isso que se forma a sociedade familiar e, talvez mesmo, a
sociedade conjugal. De forma que a titularidade de nada vale se não for
exercida como cumprimento de certas finalidades as quais, segundo tais autores,
são naturais tanto do ponto de vista dos filhos quanto do ponto de vista dos
pais. A educação, portanto, é o índice principal tanto da autoridade quanto da
responsabilidade dos pais, que somente nessa hipótese se confundem
evidentemente.
A
respeito da extensão, como elemento identificador e qualificador da
autoridade paterna, caberia indagar até
onde e até quando ela se impõe sobre os filhos?
É uma
questão delicada, na medida em que envolve a concepção dos filhos como sendo ou
não propriedade dos pais. No pensamento jus-naturalista, essa idéia tende a se
enfraquecer pela primeira vez, mas é ainda um referencial para sustentar a
idéia de dependência dos filhos em relação aos pais. Não importa qual seja a
fundamentação da autoridade paterna, ela sempre tem uma necessidade de justificação racional.
Mesmo
no caso da idéia de uma fundamentação natural (que era a concepção de Grotius),
em que os pais têm autoridade simplesmente por gerarem os filhos, já existe uma
certa restrição do poder paterno, na medida em que esse poder necessita, mesmo
aí, abandonar o arbitrarismo.
Existe,
no pensamento moderno, sempre a idéia de uma finalidade, ou de uma necessidade,
a governar a ação humana, e em especial a ação potestativa. Isso vale
diretamente para a autoridade paterna, na medida em que o pai não pode ir
contra as necessidades dos filhos, ou as finalidades coletivas dessa relação
(como a educação).
Ora,
mesmo no caso em que se considera, como em Grotius no início do século XVII,
que só o pai é titular do poder paterno e que este lhe é devido tão somente por
ser genitor, isso ainda não é suficiente para dar, a ele, direito de vida ou
morte sobre os filhos. Essa restrição ao arbítrio paterno é constante na figura
do pai.
Assim,
na definição do direito equivalente, ou seja, do que está em poder do pai ou
dos pais para arbitrar a respeito dos filhos, há uma tendência nesse pensamento
moderno a desenvolver a idéia de que podem fazer o que não prejudicar a
finalidade original da relação de família. Ou seja, os pais podem fazer o que
quiserem com os filhos e com seus bens, desde que não signifique isso uma
diminuição de segurança dos próprios filhos. Ao contrário, o que cabe aos pais
em termos de segurança dos filhos é justamente a sua formação em conjunto com a
preservação de seus bens. Isso quando não significar, como em Locke, que a
própria formação envolve ensinar aos filhos a preservar os próprios bens.
A
extensão dessa autoridade dos pais equivale, portanto, a considerar que a
autoridade continua enquanto continua o processo de formação dos filhos. A
partir do momento em que os filhos já são dotados de experiência suficiente
para se manterem sozinhos em suas próprias vidas, cessa concretamente a missão
original e natural dos pais com respeito à sua formação e, também, com respeito
à tutela dos seus bens.
Mas o
resultado desse encerramento, em vez de significar uma libertação de um poder
opressivo, pode significar, como coroação de toda a história familiar, a fundação
de uma identidade entre pais formadores e filhos já formados, eqüalizados agora
não só em seus direitos naturais, mas no que lhes cabe como direitos civis: ao
final do processo de autoridade paterna, de formação familiar, de dependência
dos filhos em relação aos pais, o que temos é uma outra associação, cujos laços
mais fortes que os laços determinados pela vida civil a todos os cidadãos são
justamente os laços do afeto, quando tais laços tenham tido a devida
oportunidade de se formarem, ao longo de todo esse percurso.
A
história das concepções de autoridade paterna não começara no pensamento
moderno e não terminará com ele. E a história propriamente dita da
responsabilidade envolvida nessa autoridade, se aparece com clareza nos
modernos, tenderá a continuar.
De
modo que seria possível estender essa história da concepção do poder paterno,
cada vez mais distinto da concepção clássica e mais ainda da concepção antiga
de pátrio poder, para os tempos atuais. Mas não é o objetivo desta palestra.
A intenção
desta referência aos modernos é encontrar, na história do pensamento jurídico,
uma fonte racional para se pensar a responsabilidade paterna fora daqueles
moldes que vinham, desde os gregos, fixando a idéia de que os pais têm um poder
equivalente à sua vontade ou seu arbítrio, sem medidas estabelecidas seja pela
natureza, seja pela moral, seja pela razão, seja pelo desejo.
E a
modernidade nos apresenta esta medida, certamente pela primeira vez.
A
autoridade paterna existe somente enquanto corresponde a uma obrigação,
obrigação fundamentalmente de prover o sustento e a formação; mas essa
obrigação é definida cada vez mais pelas necessidades dos filhos e cada vez
menos pelos arbítrios dos pais ou do pai.
A
grande prova de que os filhos deixam de ser coisas nas mãos despóticas dos
próprios pais é a existência crescente de sua liberdade para interferir na
determinação dos rumos de toda a família. Quando o mundo moderno se conclui na
passagem do século XVIII para o XIX, os filhos já tinham, dentro do pensamento
político e pedagógico, uma importância nunca antes vista.
Ainda
que a prática pedagógica e a prática social, assim como a própria dogmática
civilista, se demorem a absorver essas concepções, elas são uma conquista
estabelecida no interior da modernidade. Como diz Alfred Dufour: "Ao substituir um universo de
hierarquias naturais por um universo de autoridades consentidas em favor de
aplicação, no domínio das ciências sócio-morais, do método das ciências físicas
e matemáticas, os teóricos do Direito natural moderno não se contentaram em
lançar as bases de uma nova ordem moral e política emancipada da tutela da
teológica."[10]
O que os filósofos jus-naturalistas causaram, com sua revolução
metodológica no tratamento do assunto, foi a necessidade de dar ao pensamento
em torno da autoridade e da responsabilidade paterna bases exclusivamente
racionais, bases necessariamente científicas. É com esse pensamento moderno,
enfim, que o cálculo e a definição dos papéis em família exige ser pensado fora
de modelos, mas unicamente dentro da observação das relações humanas como elas
concretamente se dão.
Tendo
isso em vista, podemos passar para um outro registro, que é o de considerar a
validade dessa fundamentação racional da autoridade e da responsabilidade paterna.
A questão é válida desde que se mantenha válido o princípio de que aos pais não
cabe qualquer arbítrio contrário à necessidade dos filhos. Essa é uma lição dos
modernos, que cabe diretamente a nós, hoje.
Retomemos
algo que foi perguntado mais atrás: o que
há, nos filhos, que determina a autoridade dos pais?
Essa
questão é mais ousada do que parece à primeira vista, porque pressupõe o
questionamento de algo que o costume usa considerar inquestionável, a
autoridade paterna.
Ora,
se os pais detêm alguma autoridade sobre os filhos, o que determina a
legitimidade das suas decisões?
À luz
dos modernos, poderíamos dizer que é o benefício dos filhos, sempre. A julgar
pelo que nos esclarece a filosofia jurídica moderna, jamais, não importa qual
seja a fundamentação da autoridade, os pais estão livres de atender às
necessidades dos filhos.
Os
pais que têm aquele poder quase absoluto sobre os filhos porque são genitores e
estão, na verdade, subordinados a uma necessidade da natureza inteira, que é a
de preservação de todos os seus elementos constituintes.
O
direito quase divino dado aos pais, segundo Grotius, sobre seus filhos (porque
estes vieram daqueles) não significa, jamais, o direito de retirar-lhes a vida.
Pense-se nisto a partir do ponto de vista do filho, por outro lado. É claro que
não há nada na sua estrutura natural que peça a sua morte, a sua própria
destruição, o seu aprisionamento ou seu suplício. Mas tudo na sua natureza pede
proteção e orientação.
Exatamente
como na vida civil. Não há nada no súdito ou no cidadão que peça a extinção da
sua liberdade. Ao contrário, a sua natureza em sociedade pede liberdades,
direitos, segurança da parte do poder soberano.
Parece-me
correto, então, dizer que a relação de obediência e orientação só é válida na
medida em que ofereça segurança aos atores aí envolvidos, e, prioritariamente,
aos que mais dependem dessa segurança, na família, isto é, os filhos.
Talvez
toda a autoridade dos pais possa, por isso mesmo, ser reduzida a esse único
princípio – sua potência, ou sua responsabilidade, para garantir segurança aos
filhos.
Essa
redução, completamente legítima e reveladora do essencial, dá à idéia de poder
paterno um significado que retira qualquer pontificação negativa. Com ela, o poder paterno não desaparece, mas
se torna uma atividade voltada para o benefício do receptor, portanto para um
benefício que é público e não privado. É essa publicidade do poder paterno,
dentro da sociedade familiar, que permite chamar a esse
poder, na verdade a essa generosidade, uma
autoridade em certa medida.
Quando
a autoridade se apresenta não como entidade castradora ou opressora, mas
formadora e protetora, a criança se vê continuada nos próprios pais. Ao
contrário, quando ela se vê explorada ou de alguma forma neutralizada, o que
ela vê não são os seus protetores, mas os seus inimigos mais diretos.
O
índice a determinar se a relação entre pais e filhos é uma relação entre
formadores mútuos ou entre inimigos mútuos é, especialmente, a necessidade dos
filhos.
Essa
idéia não estaria, em contrapartida, dando aos filhos um poder que eles não têm
ou não deveriam ter? A saber: o poder de, pelo próprio desejo, quando não pela
própria birra, recusar a orientação e proteção dos pais?
A
idéia de natureza, de certa maneira, se preserva aí, sem, todavia, deixar uma
reserva para a violência agora pelo lado da parte mais fraca, ou inferior na antiga hierarquia.
Como
diria Espinosa, a essência do homem é o
desejo, e não há como pretender eliminar o desejo em quem quer que seja,
muito menos na criança, que comumente vive em estado de hilaridade.
O
perigo para qualquer ser humano em qualquer relação, e isso vale para pais e
filhos na relação de família, não é o desejo que se manifesta por qualquer das
partes, mas a violência que pode decorrer das próprias ações. A violência é,
por definição, a própria ação contrária à natureza de algo ou de alguém. Se o
desejo é natural, um ato violento não decorre necessariamente do desejo humano,
mas de uma compreensão equivocada do que se deseja ou do que se necessita
verdadeiramente.
Isso
vale para qualquer relação humana, isso vale também para as relações de
família: assim como não cabe aos pais serem violentos com os filhos, não cabe
aos filhos serem violentos com os pais. O que não representar violência,
todavia, não representa perigo à natureza de cada uma das partes, e portanto
merece toda concessão, ou, para usarmos a palavra que deve sempre estar
presente, merece toda liberdade.
A
responsabilidade dos pais consiste principalmente em dar oportunidade ao
desenvolvimento dos filhos, consiste principalmente em ajudá-los na construção
da própria liberdade. Trata-se de uma inversão total, portanto, da idéia antiga
e maximamente patriarcal de pátrio poder. Aqui, a compreensão baseada no
conhecimento racional da natureza dos integrantes de uma família quer dizer que
não há mais fundamento na prática da coisificação familiar.
As
relações de família, já que se dão no interior de uma sociedade, tendem a
atravessar constantemente essa tensão que ora distancia, ora aproxima, as
relações de poder e as relações de afeto. Consideremos que a relação em família
não precise ser uma relação de poder, ainda que haja quem considere isso impossível.
Mas se ela não é uma relação de poder, ou de dominação, o que ela é ou pode
ser? Somente uma relação afetiva.
Isso, para o que entendemos por família, faz sentido, mas a concorrência entre
afeto e interesses familiares não é tão evidente quanto deveria, o que exige,
do civilista que se dedica hoje ao tema das relações de família, uma atenção
especial à condição dessas pequenas sociedades como ligações mantidas
nuclearmente pelo afeto.[11]
Conceber
as famílias como associações determinadas pelo afeto significa necessariamente
recusar que sejam determinadas por uma relação de dominação ou poder.
Paralelamente,
significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em
termos, justamente, de afeto e proteção. Poder-se-ia dizer, assim, que uma vida
familiar na qual os laços afetivos são atados por sentimentos positivos, de
alegria e amor recíprocos em vez de tristeza ou ódio recíprocos, é uma vida
coletiva em que se estabelece não só a autoridade parental e a orientação
filial, como especialmente a liberdade
paterno-filial.
Uma
vida familiar que, ao contrário, é marcada pelas relações de ódio é claramente
uma vida na qual se perdeu qualquer equilíbrio afetivo, porque já não se
percebem, aí, identidades, semelhanças, generosidades. Pior: concebe-se que
alguma paz só pode ser conquistada se, se impuser, de qualquer das partes, uma
tirania da opressão sobre a parte inimiga. Aí já não se trata
mais de responsabilidade numa relação paterno-filial, mas de uma
responsabilidade mais apropriada àquilo que Grotius chamava de direito de guerra.
Que
contribuição pode dar, assim, a filosofia, e especialmente a filosofia moderna,
para a consideração racional ou ética da responsabilidade nas relações de
família? Diria que uma contribuição precisa e espantosamente necessária hoje em
dia: a reflexão sobre o sentido, nas relações de família, dos laços afetivos
como laços inquebrantáveis apesar do próprio desaparecimento dos modelos
tradicionais de família.
O que
torna esses laços inquebrantáveis é mais que o fracasso ou a natureza nefasta
dos laços de poder e dominação, quando estes infestam a concepção que uma
família pode ter de si própria. Os laços afetivos são inquebrantáveis porque,
como mostrava já Pufendorf, sempre estiveram na origem das relações de família,
porque ela é o lugar natural dessa prática da identidade entre os seus
integrantes.
Seria,
posteriormente, a excessiva carga institucional dada às relações familiares que
voltaria a dificultar a compreensão da família como campo de liberdade
coletiva; mas, como o desejo de identidade e união é mais forte do que o desejo
de dominação e disputa, nenhuma autoridade ou responsabilidade fora desse
interesse exclusivo na proteção e na formação dos filhos pode ser
verdadeiramente válido.
É
isso, principalmente, o que os modernos nos mostram a respeito da
responsabilidade nas relações de família: elas
só são legítimas enquanto se concentram no interesse
pela formação e pela liberdade dos filhos.
Notas:
* Palestra proferida no III Congresso Brasileiro de Direito de Família – Família e Cidadania: o novo Código Civil
Brasileiro e a ‘vacatio legis’, em 26.10.2001, promovido pelo Instituto
Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e pela OAB/MG, na cidade de Ouro
Preto (MG).
[1] Registro, com grande honra, que para a elaboração
desta palestra, contei com a generosidade da inteligência de certos colegas de
assunto, aos quais sou extremamente grata, e que, com sua colaboração
inestimável, deixaram estas notas mais sofisticadas, com um
certo ar interdisciplinar, pelo qual tanto ansiei. São eles: Fernando Dias Andrade (filósofo e
professor), Sandra Olivan Bayer
(advogada), Giselle Groeninga
(psicóloga e mediadora), Águida Arruda
Barbosa (advogada e mediadora), Maria
Berenice Dias (desembargadora), Rodrigo
Cunha Pereira (advogado e professor) e Euclides
de Oliveira (advogado e professor), todos, à exceção do primeiro, membros
e/ou dirigentes do IBDFAM.
[2] Dentre a riquíssima bibliografia que pode ser
consultada a respeito do assunto, registro em especial a formidável obra de Albertino Daniel de Melo, professor
titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais,
denominado A responsabilidade civil pelo
fato de outrem, nos direitos francês e brasileiro, Ed. Forense, Rio de
Janeiro, 1972. E, ainda, como ponto de partida para a visualização desta
divergência qualificatória da responsabilidade indireta dos pais pelos danos
causados por seus filhos menores, recomendo a leitura das singulares 18 linhas
de comentários ao art. 1523 do Código Civil em vigor que a Professora Maria Helena Diniz registra em seu Código Civil Anotado, Editora Saraiva,
São Paulo (minha edição é a de 1995, gentilmente dedicada pela autora).
[3] Respectivamente, fragmentos 110 e 111 dos ditos de
Demócrito.
[4] A expressão masculista,
em lugar de machista, se deve a Marilena Chauí, em Repressão sexual, essa nossa (des)conhecida.
[5] A. Dufour, "Autorité maritale et autorité
paternelle dans l'école du droit naturel moderne", Archives de philosophie du droit, t. 20, Paris, 1975.
[6] A este respeito, leia-se os
bem talhados capítulos Poder Familiar,
de Paulo Luiz Netto Lobo, e Parentesco e Filiação, de Rosana Fachin, ambos contidos na obra
coletiva coordenada por Rodrigo da Cunha
Pereira e Maria Berenice Dias,
denominada Direito de Família e o novo
Código Civil, Editora Del Rey, Belo Horizonte: 2001.
[7] F.D. Andrade, "Sobre ética e ética jurídica",
http://sites.uol.com.br/grus/eej.htm
[8] Análise do assunto se encontra em F.D. Andrade, Filosofia do direito, parte IV ("Direito e justiça"),
previsto para 2002.
[9] Locke, Segundo
tratado sobre o governo, cap. VI, § 55.
[10] A. Dufour,
p. 124.
[11] A propósito, é devidamente
inovadora a contribuição de Silvana
Maria Carbonera, em seu estudo sobre "O papel jurídico do afeto nas
relações de família", em L.E. Fachin
(org.) Repensando fundamentos do Direito
Civil brasileiro contemporâneo, Rio de Janeiro, Renovar, pp. 273-315.
Sobre a autora:
Giselda
Maria Fernandes Novaes Hironaka, Professora Doutora do Departamento de Direito Civil da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. Sócia fundadora e Diretora da Região
Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.