CRIANÇA E MENOR NA SOCIEDADE BRASILEIRA:
SERVIÇOS, CUIDADOS E EXCLUSÃO
Fabíola
Zioni Gomes
Rubens
de C. Ferreira Adorno
Sociólogos, mestres em Saúde Pública.
Este trabalho discute as condições para
emergência e o desenvolvimento de programas de saúde infantil. Assim como,
discorre sobre o conceito de criança, saúde e serviços de saúde prevalentes em
determinados períodos históricos. Também, as relações com os interesses
político-econômicos dominantes, e os aspectos sociais do conhecimento são
considerados para refletir melhor sobre
a questão criança x menor na sociedade brasileira.
Para se discutir o crescimento e
desenvolvimento, enquanto prática de saúde pública, é necessário fazer alguns
comentários sobre como se estruturam os serviços de saúde a respeito do caráter
social de sua formação.
Pode-se considerar como clara a
existência de uma estreita relação entre saúde e sociedade, tanto no sentido da
maneira como os homens vivem, ser geradora da temática de saúde, como no
sentido de que as intervenções sobre ela são produzidas a partir das relações
sociais.
Na identificação de problemas, na
definição de causas, na elaboração de medidas terapêuticas ou preventivas e na
definição de prazos e prioridades, outros elementos, além daqueles oriundos do
conhecimento científico ou de normas racionais de conduta, são determinantes.
Entende-se
por serviço de saúde o exercício legitimado da Medicina, Odontologia e outras
práticas de saúde pública, cujo fim explícito é preservar e restaurar a saúde
da população (Singer) [1]. Para o autor desta definição, os
serviços de saúde relacionam-se desde sua origem com a própria evolução do
capitalismo industrial.
A revolução industrial - avanço
tecnológico aplicado ao campo da produção - levou à substituição do trabalhador
individual, manufatureiro e proprietário de seus instrumentos de trabalho, por
unidades de produção baseadas no pleno aproveitamento da máquina e
arregimentação de quantidades cada vez maiores de mão-de-obra.
Nesse sentido, os serviços de saúde nascem
e se desenvolvem com o intuito de produzir condições materiais
e ideológicas indispensáveis ao desenrolar da vida política, social e econômica
em determinados moldes. Assim, para cada conjuntura econômico-social de
um país, produz-se uma organização dos serviços de saúde adequada às
necessidades de manter e reproduzir a força de trabalho e garantir a
preservação dessa estrutura.
Se a organização dos serviços de saúde é
influenciada pela sociedade como um todo, é do conhecimento científico que ela
vai tirar normas para sua atuação.
Vale lembrar que, se a ciência, entendida
como um dos componentes do conhecimento humano, não pode ser considerada como
desvinculada do momento histórico em que se dá esse conhecimento, assim como,
os serviços de saúde serão afetados em sua organização e avanço por outras
instâncias, que não as do pensamento e reflexão.
Considerou-se os dois problemas:
a. Características históricas, portanto,
político-ideológicas dos serviços de saúde; e
b. Complexidade dos fenômenos a serem
tratados por eles (processo saúde-doença, processo crescimento-desenvolvimento,
por exemplo), infere-se que o acompanhamento e controle deste
último processo, em nível de políticas públicas e de programas específicos para
o setor saúde, dificilmente poderá ser executado com desenvoltura suficiente.
A complexidade das questões do
crescimento e desenvolvimento pode ser considerada consensual entre os autores
e profissionais da área.
No que se refere aos serviços de saúde,
muitos elementos poderiam ser escolhidos para discussão. Selecionou-se, porém,
uma questão específica, ou seja, comentar-se-à, no
presente trabalho, como a criança é entendida pelos serviços de saúde e como
esta compreensão é orientada pela conjuntura político-social, conferindo às propostas
técnico-científicas um conteúdo político-ideológico.
Escolheu-se este tema em função de se ter
notado - já há algum tempo - um certo esvaziamento do debate político em torno
da questão da saúde.
O debate sobre a determinação social do
processo saúde-doença, sobre o direito à saúde como uma questão política e de
extensão da cidadania, a tomada da questão da saúde pelos
movimentos sociais urbanos constituíram traços importantes do setor ao
longo dos anos 70. Terminariam, porém, por serem absorvidos institucionalmente
tanto em nível internacional (Alma-Ata, 1978) [2] como em nível nacional, principalmente depois da transição
negociada.
O
debate, no entanto, acabou por concentrar-se, principalmente, na organização de
um Sistema Nacional de Saúde com as características necessárias para maior
extensão e cobertura da população, fazendo com que os problemas que extrapolam
a assistência médica fossem tratados secundariamente.
Assim, discutir "crescimento e
desenvolvimento" como um problema a ser assumido pelo setor da saúde,
dentro de uma perspectiva mais ampla do que o acompanhamento antropométrico e a prevenção de doenças, pode ser oportuno
no sentido de contribuir para a elaboração de um novo conceito de saúde e de
saúde pública, para novas propostas práticas e políticas para o setor.
Para colaborar com este debate,
acredita-se importante esclarecer como, em determinados momentos históricos, a
sociedade refletiu sobre a criança e como essa reflexão se traduziu em termos
de práticas sociais e/ou institucionais.
A
Criança: do descobrimento à ruptura do Pacto Colonial
Até o século XIX não se registraram
intervenções sistemáticas sobre a saúde da criança. No entanto, não deixaram de
ocorrer reflexões e práticas sobre ela, que diziam respeito ao tipo de conjuntura
social em que eram elaboradas.
O período colonial, por ser polarizado
socialmente, permite mostrar mais claramente esta relação. Em termos gerais, o
colonialismo pode ser entendido pelas palavras de Novais[3].
Escravismo, tráfico negreiro, formas
várias de servidão foram, portanto o eixo em torno do qual se estrutura a vida
econômica e social do inundo ultramarino. A estrutura agrária fundada no
latifúndio se vincula ao escravismo e através dele às linhas gerais do sistema:
as grandes inversões exigidas pela produção só encontram rentabilidade,
efetivamente, se organizadas em grandes empresas.
Em síntese, a estrutura fundamental dos
sistemas de colonização se traduzia em: latifúndio, escravidão e monocultura.
Esse tipo de organização social engendrava
um padrão de relações sociais caracterizado pelo autoritarismo e descompromisso social que, além de marcar toda a época
colonial e diversas fases da História do Brasil, constitui, ainda hoje, um
padrão significativo.
No que diz respeito à assistência médica,
o Brasil-Colônia não registrava trabalhadores livres em número suficiente para
justificar medidas de atendimento médico ou de saúde pública, uma vez que a
grande massa de trabalhadores, nesta época,
era constituída por escravos - considerados legalmente como coisas de propriedade do senhor fura. Não competia ao poder
colonial zelar pela sua saúde.
A escassa população pobre, não-escrava,
valia-se de assistência filantrópica e religiosa.
Para as tropas militares existia a figura
do Cirurgião-Mor que superintendia o exercício da cirurgia e dos hospitais
militares. Ao Físico-Mor ou a seus delegados competia a supervisando exercício
da farmácia, da medicina, de curandeiros e de prática de saneamento das
cidades.
A questão da saúde, envolvendo uma
preocupação com a assistência médica ou com a higiene das cidades, era
subalterna ou inexistente; os problemas de higiene eram de responsabilidade das
autoridades locais, que se limitavam a impedir a proliferação da imundície nas
ruas e nos quintais.
Até meados do século XVIII a questão da
saúde só se colocava a partir da simples percepção da relação entre
"sujeitar cidade/doença", o que poderia prejudicar o comércio de
produtos coloniais.
No entanto, desde o século XVI, as nações
européias centrais colocavam-se diante da questão da produtividade econômica,
que era entendida como relacionada à existência de uma população numerosa,
crescente, sadia e plenamente empregada.
Essa preocupação com a população não foi
transportada para o Brasil, por vários motivos. Em primeiro lugar, pelo fato de
essas preocupações terem sido mais bem registradas na Alemanha, Inglaterra e
França do que nos estados peninsulares. Em segundo lugar, a economia colonial
organizava-se de forma suplementar à metrópole. Esta deveria ser rica às
expensas da colônia, que deveria produzir com um mínimo de investimento. Vale
lembrar, ainda, que a mão-de-obra nas colônias era escrava, o que não
justificava medidas de controle de saúde.
Nesse contexto, explica-se a inexistência
de uma política para crianças e/ou para o conjunto da população. A concepção de
criança na colônia fica bem exemplificada pelo texto a seguir:
Oh!
Como estou feliz que morreu meu filho...
Quando
eu morrer cinco criancinhas (estarão) a me rodear.
Entra!
Mamãe! (no paraíso)...
Observando que essa reação era bastante
comum na colônia, um viajante europeu assim se manifestou:
Não
posso ter uma opinião boa sobre o futuro de um lugar onde assim se dissolvem os
mais fortes laços dos seres deste mundo (Costa)[4]
Esta concepção de criança correspondia à
forma de organização social engendrada pelo sistema colonial.
Assim como o individual adulto não
existia socialmente fora dos limites da propriedade rural (ou de sua extensão
citadina), a criança só era vista corno um elemento posto a serviço do poder
paterno. Para a família, cujo "epicentro" repousava na figura
paterna, a criança/filho só poderia receber urna atenção genérica. Até o século
XIX, a infância não foi tematizada, nem pela família
nem pelo Estado.
Este ponto pode ser explicado pelo fato
de a estrutura social da Colônia ser polarizada entre proprietários e
não-proprietários. A sobrevivência estava ligada à conquista e posse da
propriedade, processo esse extremamente violento e dependente, em boa medida,
da energia e capacidade do adulto-pai, cuja figura não poderia ser desgastada,
sequer em termos de desvio de atenções e/ou perda de prestigio.
Para reforçar essa concepção de criança,
a tradição católica concorria com a imagem de criança como ser purificado, sem
mácula, um "anjo". Toda a preocupação iconográfica da época era
coberta pela figura dos "anjinhos", cuja morte não seria motivo de
dor, conforme dizia a canção: "Feliz anjinho que vai pro céu"[5].
Essa tradição (que parece ter sido
aproveitada pelos jesuítas para compensar a alta mortalidade de crianças
indígenas na época) pode ter contribuído significativamente para que a vida
biológico-moral da criança não fosse valorizada[6].
Segundo Costa[7]:
Na
colônia, a representação social da criança monopolizava o sentido de sua vida,
os papéis culturais de "filho incapaz" e de "anjinho"
superpunham- se e obscureciam sua condição de etapa biológico-moral no
desenvolvimento do adulto... Entre o adulto e a criança, as ligações existentes
eram as de propriedade e da religião. Um fosso as separava. Os elos que uniriam
a cadeia das gerações só foram criados quando a família dispôs de
representações da criança como matriz físico-emocional do adulto... Esta
recodificação da imagem da criança deveu-se em grande parte à reação dos higienistas.
Para o autor, a concepção colonial sobre
família, crianças e mulheres fez com que até o século XJX não se registrasse
preocupação com o crescimento e o desenvolvimento da criança. A criança como
filho, elemento secundário da casa senhorial, não merecia maior destaque.
A família - ao contrário da visão ideal
de família burguesa - não estava centrada no cuidado da prole: mesmo em nível
de valores e princípios, explícitos ou não, a família baseava-se na manutenção
do patrimônio. Neste contexto, as relações pessoais e de afetividade não
apareciam como centrais. O caráter das relações era dado pelo predomínio do
pai, do adulto.
A partir de 1700, a estrutura social
começou a apresentar algumas brechas. Essas mudanças advinham da atividade
mineradora, que «queria elementos livres, tanto da escravidão como da
propriedade fura e uma administração centralizada para controlar a produção, o
que leva ao desenvolvimento dos primitivos núcleos urbanos.
No bojo dessas mudanças, começavam a
surgir um novo elemento que seda a possibilidade de desenvolvimento do trabalho
livre, cujo locus
não seria o mundo da propriedade rural, mas aquele da cidade colonial.
Pressupondo-se que a saúde pública
aparece para atender questões que podem constituí barreiras ao desenvolvimento
econômico, sua emergência, no Brasil, esteve relacionada à necessidade de
controle do ambiente urbano, tanto no contexto das relações dos homens com o
meio físico, como no contexto das relações sociais, que eram desenroladas
dentro das condições ditadas pelo modo de vida urbano, e deste urbano colonial
com a Metrópole.
Principalmente a partir do século XVIII,
com o surto da expansão urbana, a estratégia de dominação da Metrópole passou a
enfatizar a segurança da cidade. Entre as várias estratégias elaboradas pelo
Estado - militarização da população, controle urbano/sanitário, e outras - uma das que mais se destacou foi a questão da higienização da família.
Entende-se por higienização
da família o processo relacionado à implantação de uma visão de mundo para o
conjunto da sociedade, visão essa necessária à manutenção do poder da Coroa
Portuguesa (Estado), que fora relativamente contestado pelas elites coloniais,
cujos interesses não mais coincidiam diretamente com aqueles das classes
dominantes portuguesas.
Além disso, essas elites impunham às
cidades - locus
do poder metropolitano - uma lógica da propriedade rural, dado que a cidade era
vista como extensão dessa propriedade.
Ao trazer para a cidade o padrão de
ocupação do espaço e das relações sociais do mundo rural, eram essas elites as
grandes responsáveis pelo caos urbano que tanto ameaçava a colônia: "... a anatomia urbana da Colônia
mostra como a casa, ocupando todo o lote, delimitava a ma, o privado impunha-se
ao público que desembocava no desrespeito aos locais públicos, no
descumprimento das normas de limpeza" (Costa)[8]
O controle espacial pelas famílias
proprietárias era reforçado pelo monopólio do poder. Apesar de amparar-se na
própria legislação municipal portuguesa, esse poder não correspondia mais às
expectativas do Estado português.
Em primeiro lugar, já não existia uma
correspondência automática entre os interesses do latifúndio e da Metrópole. Em
segundo, nos dizeres de Costas, "a
família não formava cidadãos e sim parentes... a participação dos indivíduos
nas sociedades resumia-se à defesa do grupo a que pertenciam... Donde a oposição
que o Estado sofria quando os convocava para o cumprimento das tarefas
nacionais...".
Não satisfeita em criar uma elite autocentrada e dependente do pai e do clã, a família
colonial pretendia impor-se como modelo para o conjunto da sociedade: "...na medida em que dominava o meio urbano
reduzia as outras camadas sociais a seu modo de ser..."[9]
Esse padrão de comportamento, em relação
ao público, precisou ser quebrado pela Coroa para manter a cidade livre da
sujeira que, pela criação de doenças, perturbava as atividades comerciais - e
da invasão de outras potências européias.
Para responder a essas contradições, o
Estado, entre outras estratégias, passou a intervir por meio da criação de uma
visão de mundo que compatibilizasse as elites agrárias com seu projeto de
dominação. Esta questão fica clara quando se analisa o discurso higienista que se afirmava, a partir do século XVIII,
refletindo essa articulação entre Medicina, saúde e sociedade em termos da
criação de condições superestruturais (ideológicas e políticas) para manutenção
da ordem.
O papel ideológico da Medicina, no
sentido de moldar comportamentos compatíveis com o projeto econômico vigente,
era desenvolvido, naquele momento, em relação às famílias da elite agrária, mas
não se prendia à necessidade de resolver contradições dadas em nível da
estrutura de produção, mas à necessidade de adequar a tradição colonial dessas
elites às novas exigências econômicas e políticas advindas com o fim do pacto
colonial e com as transformações que vinham ocorrendo na estrutura social
brasileira. Esse processo exigiu uma ofensiva ideológica que foi travada
principalmente pela estratégia higienista, cujo alvo
principal foi a reestruturação do núcleo familiar, por
sua vez, implicava na mudança da concepção desenvolvida tradicionalmente sobre
a criança.
Os cuidados gerais que a criança havia
recebido durante todo o período colonial foram substituídos – pela ação da
higiene e da puericultura – por uma assistência sistematizada quanto a condutas
alimentares, disciplinares, pedagógicas e mesmo de vestuário. Para desempenhar
esses cuidados, a família precisava redefinir o papel do pai e da mãe;
precisava, principalmente, organizar-se em novos moldes.
Essa nova forma de organização familiar e
o objetivo pelo qual ela passaria a se pautar (procriar e educar crianças
sadias para a Nação carente de uma população forte e produtiva) eram
compatíveis com a nova ordem que se pretendia instaurar a partir do século XIX:
não mais uma Colônia voltada para interesses externos, não mais uma agregação
de propriedades rurais regidas por interesses locais, mas uma
Nação Independente, voltada para a produção e acumulação de capital.
Identificando o interesse do Estado com o
interesse nacional e ambos a uma conduta entendida como “natural” e, portanto,
desejável, a higiene passava a descrever o tipo de família e de educação necessários
para a criação de um adulto identificado como a Nação/Estado.
Para Costa[10], “a medicina social percebia
que o processo de urbanização forçava a mudança da família e que o Estado,
apoiando a expansão da saúde pública, lhe havia creditado uma certa confiança
que competia explorar até onde fosse possível...”. Citando autores da época, o
autor afirma que a higiene era concebida como
... a parte da ciência médica que nos dá os preceitos e as regras
necessárias tanto à aquisição como à conservação da saúde e se referem a
exercícios, banhos, sono, paixões, trabalhos intelectuais, enfim, ensina a
evitar as coisas nocivas e fazer um bom uso das coisas úteis. Nada mais
coerente com esta definição que a ingerência médica em todos os setores de vida
pública e privada... Esse cuidado... tinha objetivos explícitos, dos quais o
mais importante era a proteção das mulheres e crianças.
No entanto - ainda que obedecendo a uma
racionalidade científica mais avançada do que os paradigmas anteriores - a
higiene e a medicina da época também estavam impregna pelo caráter social do
conhecimento do qual nenhuma disciplina científica pode ser considerada isenta.
Nesse sentido, saúde em geral e a saúde
da criança em particular começavam a se conformar não só como um campo de
intervenção técnica, mas como um campo de normatização
da vida cotidiana, de acentuado caráter ideológico.
Pelas publicações próprias e intenso
debate teórico, os higienistas desenvolviam
concepções sobre as relações Medicina/saúde e Estado que - a exemplo das
propostas de higienização da família - eram imbuídos
de conteúdo ideológico.
Conforme Machado e col[11].:
Para
que se preserve a saúde de uma população, portanto, há necessidade de
implantação de uma sociedade onde não se suscitem paixões, onde reine a ordem,
onde tudo funcione... A medicina, conhecendo o homem e as alterações de seu
organismo provocadas pela desordem, deve guiar o processo de estabelecimento e
o funcionamento desta sociedade... Oferece o saber do corpo, que deve ser
disseminado por toda a sociedade - fazendo com que cada um evite a paixão e a
desordem - e que deve ser a base do funcionamento do
corpo social... Temperança, contingência, moderação nos costumes, tranqüilidade
da, alma - virtudes que se opõem à turbulência e desordem em defesa da vida,
virtude cujo exercício é relacionado a uma sociedade que o permite, que o
funde.
Viu-se, até aqui, como a concepção de
criança esteve relacionada aos problemas administrados pela sociedade colonial.
A
Criança: da cafeicultura ao Projeto Industrial
No final do século XIX, nas primeiras
décadas do século XX, era outro o projeto dominante na sociedade brasileira.
A sociedade e o Estado viam-se às voltas
com a criação e manutenção de condições para o desenvolvimento da cafeicultura;
setor hegemônico na economia, o café consolidava no Estado uma oligarquia
rural, para a qual a questão social era um "caso de policia".
A saúde pública era entendida ou
praticada como forma de garantir a produção e o escoamento do café. Dar as
políticas de saneamento de portos e cidades próximas à cultura do café e/ou de
combate às doenças que dificultassem a imigração (febre amarela, varíola).
Acompanhando o processo de expansão do
café, registravam-se a expansão urbana, o crescimento populacional, as atividades
comerciais e a crescente complexidade da sociedade brasileira.Também, junto com
os braços para o café, vieram as idéias anarquistas que contribuíram para
convulsionar o país. Em 1917, ocorria a maior greve do período. A Nação parava.
O Estado, que agia de maneira repressiva, foi, pouco a pouco, obrigado a mudar
a concepção do problema social.
É nesse contexto que surgiram
preocupações mais sistematizadas com assistência às crianças, ainda marcadas, porém,
por um conteúdo de controle social e decorrente da necessidade de investir
sobre a força de trabalho ou sobre as relações
capital-trabalho. Surgiram, também, os primeiros passos para a criação
dos serviços de saúde.
Em termos de serviços de saúde, datam de
1920 as primeiras preocupações com o atendimento à criança, via serviço de
higiene infantil; datavam também nessa época a regulamentação da licença à
gestante e à puérpera (30
dias para cada uma das situações) e a proibição do trabalho fabril para menores
de 12 anos. A mortalidade infantil e a necessidade de atender a criança foram
discutidas no Segundo Congresso Brasileiro de Proteção à Infância[12].
Esses ratos mostram a emergência da
questão das condições de vida e da saúde da criança no contexto da questão
social, que já se configurava como problema do Estado Nacional ainda que com
vestígios de "questão de policia".
A preocupação com a higiene infantil
inspirava-se no modelo médico-sanitário baseado na filosofia de saúde pública
adorado nos EUA desde o século anterior. Essa filosofia era voltada para o
atendimento da população imigrante carente (dos EUA), com ações de enfermagem
domiciliária, prevenção de tuberculose, tratamento de doenças venéreas e
atendimento materno-infantil pelos Centros de Saúde e de Educação Sanitária,
que visavam, de modo especial, a higiene individual, pré-natal, infantil e
escolar, aproveitado a oportunidade apresentada pela infância para a
implantação de hábitos sadios[13].
Registrava-se, nessa época, o
aparecimento concomitante da educação sanitária e da higiene infantil, ambas
com a mesma orientação filosófica, que centrava no comportamento do indivíduo
as raízes de seus problemas, sem refletir sobre as suas condições concretas de
existência, sobre o saber popular elaborado a respeito dos temas de saúde e
sobre a estratégia de vida elaborada pelas camadas populares diante das
pressões do cotidiano.
A transmissão de informações sobre
higiene extrapolava a racionalidade
interna à medida que englobavam afirmações sobre comportamentos desejáveis do
ponto de vista moral e que pretendiam desenvolver uma consciência cívica
nacional, guardando uma semelhança temática com as propostas dos séculos XVIII e XIX em relação às elites da época,
ainda que revestidas de maior "cientificidade" e orientadas para
moldar o comportamento das classes populares urbanas e agitadas pelos
movimentos sociais dos anos 20, pelas crises econômicas e pela fragilidade das
políticas sociais que começavam a se desenvolver.
A proposta da educação sanitária
justificava-se em termos de sua própria eficiência e lógica interna em relação
à aquisição de saúde. Se não dava a idéia de uma identificação total entre
higiene e moral, não deixava de relacionar conotações moralistas e de propostas
patrióticas ao comportamento esperado em saúde. Traziam também mensagens de
conteúdo racista que não destoavam do ideário e de paradigmas científicos da
época.
Essas afirmações são inferidas a partir
da leitura de documentos e discursos da época. Na sessão inaugural do Segundo
Congresso Brasileiro de Higiene[14], realizado em 1928, os congressistas manifestaram sua
preocupação com a "torrente imigratória", com a "vaga
nipônica" que, pela mistura das raças, poderia provocar o desaparecimento
do "brasileiro vigoroso, rijo e capaz, consciente e culto" e convocou
a saúde pública, pela ação de "enfermeiras visitadoras", para
promover a educação nacional em tríplice aspecto físico, intelectual e moral,
que promoveriam a "higienização das
massas".
A saúde infantil, que emergia com as
demais práticas sanitárias no bojo do processo de expansão capItalista, apesar
de já se articular em termos de serviços de saúde e de utilizar algumas
"armas" terapêuticas científicas, como vacinas, assistência pré-natal
e puericultura, mantinha seu caráter ideológico quanto à constituição de uma
visão de mundo adequada às elites dirigentes e assumia um papel cada vez mais
importante nessa estratégia de controle, conforme relata Costa[15]:
Durante os Congressos Brasileiros de
Higiene, a questão da saúde infantil despertaria grande atenção. [No entanto]... o objeto da reflexão não foi
a condição de vida e o trabalho da infância operária,
como apareceu em alguns pontos da legislação sanitária. A reflexão... tendeu a
privilegiar as disposições da educação moralizadora e domesticadora.
Ou seja, os sanitaristas elegeram a criança como alvo de intervenção pedagógica
objetivando hábitos e atitudes da população frente à doença... A criança...
seria o primeiro estágio da prática educacional em saúde cuja finalidade última
seria atingir os padrões sanitários familiares.
Não obstante o caráter ideológico, as
políticas públicas que diziam respeito às crianças, representavam um avanço
sobre as anteriores condições de vida e atenderam, de um lado, às exigências de
preservar a força de trabalho e de regular as relações capital-trabalho e, de
outro, às exigências do próprio movimento operário, conforme colocações de
Costa[16].
Essas diretrizes não foram alteradas ao
longo de todo o período histórico compreendido pelo Estado Novo (1937) e o
Golpe de Estado de 1964, mesmo durante o breve período de democracia formal,
populista, entre o pós-guerra e 1964. A
criança foi tematizada ao longo desse período como
uma peça na estratégia de poder por parte dos setores dominantes que, de um
lado, precisavam criar um tipo de população afinada com os objetivos da
sociedade e, de outro, necessitam garantir a reprodução da força de trabalho
sem desviar recursos do projeto de industrialização. Engendrou-se, assim, uma
política social de caráter restrito que se traduziu, em termos de saúde, pela
baixa cobertura e atuação normativa e discursiva.
Em
nível do discurso, o Estado assumiu desde 1937 a responsabilidade pela saúde
infantil. A saúde, por sua vez, era entendida a partir de características
positivas e não como simples ausência de doenças. No entanto, segundo Novaes[17], não se
registrou nenhum efeito prático:
Ainda era grave a realidade:... a
mortalidade infantil ainda se apresenta em níveis bastante elevados, existe
elevado grau de desorganização administrativa, a medicina, supondo-se que ela
tenha papel a cumprir no controle das doenças, ainda está desarmada, não tem
antibióticos e as vacinas.
As preocupações para com a criança, dentro
do setor saúde, no entanto, independentemente de sua racionalidade interna,
guardavam relações com propostas normativas de épocas anteriores (como as
propostas higienicistas para a família), coma
diferença de que eram voltadas para a criação de padrões adequados de
comportamento junto às classes trabalhadoras, uma vez que a divergência entre
as classes proprietárias rurais e o Estado havia se tomado secundária ou
inexistente diante do desenvolvimento urbano-industrial e o aparecimento de
outras contradições.
Administrar relações conflituosas entre
setores sociais, através do atendimento de demandas e criação/difusão de
ideologia/visões sociais de mundo, que justificassem a ordem reinante, foi um
dos componentes da intervenção do Estado junto ao grupo infantil até o momento
da ruptura do Estado Populista, nos meados da década de 60.
Até 1964 as propostas para os grupos que
se constituíam no interior do setor saúde, além de apresentarem essas
características ideológicas, desenvolviam-se principalmente junto ao subsetor saúde pública que, a partir da década de 50,
passou paulatinamente para um lugar secundário com as preocupações de expansão
do atendimento médico por meio da Previdência Social, expansão essa voltada
para a mão-de-obra urbano-industrial.
A emergência de programas para crianças[18] que se deu
em meados da década de 70 configurava-se dentro de tentativas oficiais de
racionalizar e implementar políticas sociais que legitimas sem o Estado Militar
em case de sustentação política, encarregado de promover um projeto de
desenvolvimento econômico caracterizado pela concentração de riquezas e poder.
Uma vez apontadas as
características político-ideológicas da emergência de programas para as
crianças, agora entendidas como grupo materno-infantil, delineiam-se outras
indagações: as recentes mudanças na conjuntura nacional, caracterizadas por uma
transição negociada entre as camadas dominantes, podem garantir a elaboração de
propostas para o grupo que digam respeito às suas condições concretas de vida?
Os programas de saúde que se apresentaram a partir de meados da década de 80
foram elaborados com a participação dos setores da população para os quais são
dirigidos? Representaram (e representam) uma opção política no sentido de
garantir sua execução, a transparência de suas decisões e o controle desta
execução pelos próprios interessados?
Criança
ou Menor
É importante, portanto, relacionar dois
momentos históricos que apresentam um ponto em comum extremamente dramático.
Se ao longo do período colonial não
existia a criança, mas o filho, fosse o filho primeiro, herdeiro da
propriedade, ou os demais, legítimos e/ou bastardos, que se enquadravam de
maneira mais ou menos eficiente nos amplos limites do latifúndio, inclusive na
sua extensão citadina, qual o destino daqueles que não eram cobertos por esses
limites?
Não se nata de um acaso histórico a
instituição de "roda" como destino de quem não era filho da
propriedade.
Se com o desenvolvimento econômico, com
as mudanças sofridas pela sociedade brasileira o "filho da propriedade foi
transformado em criança, o que aconteceu com o filho da
"roda"?
Incapaz de "domesticar" ou
atender via saúde ou educação os "filhos da roda", não a sociedade
terá criado novamente dois tipos de concepção em relação à criança? De um lado
a criança e de outro lado o menor?
Não será o "menor" o fruto
deste descaso histórico com a criança?
Assim sendo, considera-se que, ao lado de
uma reflexão ou de um conjunto de problemas que possam atribuir-se à
"criança" a partir de uma construção descritiva ou analítica de seu
crescimento e desenvolvimento, através de áreas pedagógicas, pediátrica,
psicológica, outros serão os problemas a serem lançados para o
"menor".
Em primeiro lugar, cabe destacar uma
dimensão política, que diz respeito às formas de manipulação do
"menor". Polícia, abrigo, serviços de saúde, assistência social
referem-se a práticas criadas para socializar o "menor" que escapa ao
controle da família e, sobre essas práticas, teorias são produzidas e políticas
instituídas.
Em segundo lugar, estaria a dimensão sociológica, que deveria focalizar as relações sociais
criadas, a partir da legitimidade que têm os distintos atores, que manipulam o
abrigo/assistência/tutela do menor, e das respostas que este ator,
"a criança menor", tem em relação a elas. Neste caso, atuam outros
atores: a polícia e os grupos de menores já crescidos que, como espaço, têm as
cidades brasileiras para navegar.
Desta forma, se houve em nossa sociedade
um desenvolvimento das práticas e do pensamento sobre a criança com ações que
propugnam a idéia de cuidado e atenção para um processo de desenvolvimento e
crescimento próximo de uma normalidade cientificamente determinada, ou de
práticas que colocam a idéia de liberdade ou de estímulo às potencialidades,
práticas que se manifestam desde o aumento do consumo pediátrico, pedagógico e
psicológico à produção teórica sobre esse processa, o outro lado, o
"menor", não tem sido pensado independente da reflexão sobre
marginalidade/instituição.
Caberia levantar, portanto, que, além das
reflexões sobre a "criança" ou sobre o "menor"
marginal/institucionalizado, uma face oculta e oposta deve suscitar o princípio
para uma investigação mais puramente sociológica. Trata-se da idéia do
desenvolvimento do menor que se constitui através da violação, e das relações opostas ao cuidado/preservação.
Esta face, mais dificilmente digerida,
apontaria para raízes violentas de nossa sociedade, e para a busca de um quadro
que não necessariamente buscaria a positividade, ou ausência de um quadro
"normal" de crescimento/desenvolvimento, mas para a constituição do
adulto através das relações de violência, de privação, de afirmação de uma
autonomia dentro de um terreno de relações sociais de exclusão, extermínio e
resistência. Quadro este que abre perspectiva para novos paradigmas de
investigação sobre o problema menor e a constituição de relações sociais em
torno de sua trajetória.
Notas:
[4] COSTA, J.F. Ordem Médica e Norma
Familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
[5] COSTA, J.F. Ordem Médica e Norma
Familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
[6] COSTA, J.F. Ordem Médica e Norma
Familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
[7] COSTA, J.F. Ordem Médica e Norma
Familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
[8]
COSTA, J.F. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Graal,
1979.
[9]
COSTA, J.F. Op Cit.
[10]
COSTA, J.F. Op Cit.
[13]
ROCHA, S. M. M. Puericultura e Enfermagem
[15] COSTA,
N.R. Lutas Urbanas e Saúde Pública. Petrópolis: Vozes, 1985.
[16] COSTA, N.R. Lutas Urbanas e Saúde
Pública. Petrópolis: Vozes, 1985.