AS “GANGUES DE ADOLESCENTES” E A LEI

 

 

Olympio de Sá Sotto Maior Neto

 Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná.

 

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente, apesar dos nove anos de existência, continua desconhecido da grande maioria da população. A par disso, os meios de comunicação social oferecem freqüentemente informações totalmente distorcidas ou deturpadas acerca das suas normas, determinando, não raras vezes, postura de verdadeira aversão a tal diploma legal. E o que se apresenta ainda mais lamentável é que autoridades públicas, algumas até de alto escalão, também não conhecem referida lei, manifestando assim, por ignorância ou má‑fé, opiniões absolutamente equivocadas sobre seu conteúdo, como se viu recentemente em matérias jornalísticas sobre as denominadas “gangues de adolescentes”. Esclareça‑se então que o Estatuto da Criança e do Adolescente não contempla qualquer regra que possa ser traduzida em “garantir impunidade” aos adolescentes autores de ato infracional ou implique deixar a polícia “de mãos atadas”. Ao contrário, a previsão da lei é no sentido de que nenhum adolescente a que se atribua a prática de conduta estabelecida como crime ou contravenção pode deixar de ser julgado pela Justiça da Infância e Juventude. Caso comprovada a conduta ilegal, será o adolescente responsabilizado pelos seus atos e, como resposta social, receberá a imposição das chamadas medidas sócio‑educativas (art. 112, do ECA), que vão desde a advertência, passando pela obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a inserção em regime de semiliberdade, até a internação, para os casos mais graves e que significa privação de liberdade do infrator. Deste elenco, a que se mostra com as melhores condições de êxito é a da liberdade assistida, porquanto se desenvolve direcionada a interferir na realidade familiar e social do adolescente, tencionando resgatar, mediante apoio técnico, as suas potencialidades. O acompanhamento, auxílio e orientação, a promoção social do adolescente e de sua família, bem como a inserção no sistema educacional e no mercado de trabalho, certamente importarão o estabelecimento de projeto de vida capaz de produzir ruptura com a prática de delitos, reforçados que restarão os vínculos do adolescente, seu grupo de convivência e a comunidade. E, no outro extremo desse mesmo olhar, vislumbra-se que a internação é a medida sócio-educativa com as piores condições para produzir resultados positivos. Com efeito, a partir da segregação, os adolescentes internados acabam ainda mais distanciados da possibilidade de um desenvolvimento sadio. Privados de liberdade, convivendo em ambientes, de regra, promíscuos e aprendendo as normas próprias dos grupos marginais (especialmente no que tange a responder com violência aos conflitos cotidianos), a probabilidade (quase absoluta) é de que os adolescentes acabem absorvendo a chamada “identidade do infrator”, passando a se reconhecerem, sim, como de “má índole, natureza perversa, alta periculosidade”, enfim, como pessoas cuja história de vida, passada e futura, resta indestrutivelmente ligada à delinqüência (os “irrecuperáveis”, como dizem deles). Desta forma, quando do desinternamento, certamente estaremos diante de cidadãos com categoria piorada, ainda mais predisposta a condutas violentas e anti-sociais. Por isso que, embora seja necessário em determinadas situações operar a privação da liberdade do adolescente como forma de interromper o seu ciclo delinqüencial, a internação deve surgir como último recurso e pelo tempo que corresponda ao propósito da formulação de novo projeto de vida, que o afaste da criminalidade. Daí a obrigatória incidência dos princípios constitucionais que dizem respeito à excepcionalidade da medida, sua brevidade e, a todo tempo, o respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Conquanto de maneira mitigada, idênticas observações críticas cabem à medida de inserção em regime de semiliberdade. Já as medidas de advertência, obrigação de reparar o dano e prestação de serviços à comunidade indicam nítida prevalência do caráter educativo ao punitivo. É que as técnicas educativas voltadas à autocrítica e à reparação do dano se mostram muito mais eficazes, vez que produzem no sujeito infrator a possibilidade de reafirmação dos valores ético-sociais, tratando-se-o como alguém que pode se transformar, que é capaz de aprender moralmente e de se modificar (as técnicas de conteúdo punitivo, segundo as teorias da aprendizagem, eliminam o comportamento somente no instante em que a punição ocorre, reaparecendo porém, e com toda força, tão logo os controles aversivos sejam retirados). Em outro aspecto, a polícia não só pode como tem o dever legal de prender os adolescentes encontrados em flagrante de ato infracional (vale dizer, quando o adolescente está cometendo a infração; acaba de cometê‑la; é perseguido, logo após, em situação que se faça presumir ser autor da infração ou é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor da infração; nos molde do que prevê o art. 302, do Código de Processo Penal), não havendo, portanto, regra alguma no Estatuto da Criança e do Adolescente que imponha à polícia ficar de “braços cruzados ou mãos atadas”. Assim, conforme regra constitucional e de igual forma como se dá com os adultos, todo adolescente pode ser preso em situação de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária. O que a lei veda, isso sim, é a prática do denominado “camburão social”, ou seja, quando a polícia sai às ruas prendendo crianças e adolescentes a partir da aparência da condição econômica dos mesmos, realizando “arrastões” como ato de criminalização da pobreza e atingindo os filhos das classes sociais excluídas, afastados da possibilidade de vida digna e, por isso mesmo, carentes de políticas públicas e não de ações policiais ilegais. Aliás, o art. 230, do Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelece como crime, sujeito à pena de seis meses a dois anos de detenção, a conduta de “privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente”, podendo qualquer do povo noticiar ao Ministério Público a ocorrência de tal ilícito penal, de modo a se responsabilizar criminalmente o agente público, do mais subalterno até o Secretário de Estado, que tenha determinado ou realizado as prisões ilegais de crianças e adolescentes. Por outro lado, é de todo recomendável que a polícia, cumprindo com dever funcional, investigue as ações criminosas das mencionadas “gangues de adolescentes”, encaminhando ao Ministério Público os elementos de prova necessários para que possam ser eles processados perante a Justiça da Infância e Juventude, desbaratando‑se inclusive quadrilhas que se dedicam ao tráfico de entorpecentes e a outras atividades delituosas. Embora os atos infracionais praticados por adolescentes correspondam a apenas oito por cento do total dos crimes cometidos por adultos (e, desta forma, não devem servir de "cortina de fumaça" pare encobrir outras atividades delituosas, ou delas desviar a atenção da opinião pública, principalmente aquelas oriundas da chamada criminalidade organizada ou do "colarinho branco"), é certo que interessa à sociedade em geral impedir que desde cedo nossas crianças e adolescentes se vejam entregues a projeto de vida vinculado ao cometimento de atos anti­sociais e, desta sorte, vulneráveis aos infortúnios inerentes à criminalidade. Por fim, vale lembrar que a melhor fórmula pare combater a criminalidade se traduz em propiciar a todos, principalmente às crianças e adolescentes, oportunidade de exercício dos direitos elementares da cidadania e participação nos benefícios produzidos pela sociedade.