Eliane
Elisa de Souza e Azevêdo
Ainda que a preocupação pertinente aos
direitos humanos e genética tenha surgido nos documentos internacionais em
conseqüência dos avanços da biologia molecular e sua tecnologia, a questão dos
direitos humanos e genética é anterior a estes avanços e bem mais abrangente.
Um dos objetivos dos documentos
internacionais sobre direitos humanos e biologia, medicina e genética é o de
proteger o patrimônio genético das pessoas e da espécie diante da possibilidade
de alteração por manipulação técnica. "Pesquisas, tratamentos ou
diagnósticos que afetem o genoma de um indivíduo devem ser empreendidos somente
após a rigorosa avaliação prévia dos potenciais fiscos e benefícios a serem
incorridos e em conformidade com quaisquer outras exigências da legislação
nacional" (Art. 5° - Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos
Humanos). Do ponto de vista clínico e social, ainda que a proteção esteja
direcionada à estrutura molecular do DNA, o que realmente preocupa não é a
alteração da molécula em si, mas a resultante clínica dessas alterações nas
pessoas e seus descendentes. Uma vez promovida a alteração em nível molecular,
deverá resultar, também, em alteração da expressão gênica. Assim, ao protegerem-se
as pessoas de certas intervenções, protegem-se contra expressões gênicas
tecnicamente modificadas. Em síntese, procura-se proteger a humanidade de
intervenções tecnológicas deletérias por saber-se que suas conseqüências
dar-se- ão em nível de expressão gênica. É o poder da tecnologia alterando a
expressão gênica, através de alterações do DNA, que consiste na novidade para a
qual evocam-se os direitos humanos.
Por outro lado, existem situações com as
quais a humanidade convive há milênios e que, também têm o poder de alterar a
expressão do patrimônio genético da pessoa. A fome, a desnutrição, a ingestão protéica
insuficiente, etc., são capazes de inibir a plena expressão do potencial
genético da criança e deixá-la a meio caminho do ser humano que deveria ser.
Ainda que já se tenha declarado em documentos internacionais que o acesso ao
alimento e ao mínimo de bem-estar é um direito de todo cidadão, pouco se tem
dito que a fome também é capaz de retirar o direito à expressão corpórea do
patrimônio genético. Chamamos este direito de "direito de vir a ser após o
nascimento" (Azevêdo, 1994), e voltaremos a discuti-lo no capítulo que
leva esse nome.
Muito antes do desenvolvimento das
biotecnologias, o avanço na identificação de doenças de causa genética fez nascer,
no final da década de cinqüenta, uma nova especialidade médica: a Citogenética
Clínica (Lejeune et al., 1959). Além dos tradicionais ritos médicos da
propedêutica e da terapêutica, a genética clínica trouxe, para a prática
médica, a inovação do aconselhamento genético. Nele, paciente e familiares são
informados sobre o diagnóstico, o tipo de herança da doença e os riscos de
nascimento de outros afetados. Diferentemente da prática médica usual, as
informações prestadas pelo médico-geneticista durante o aconselhamento genético
têm duas peculiaridades, ambas estreitamente relacionadas à questão dos
direitos humanos. A primeira, é que a informação prestada não se refere apenas
ao paciente em si, mas a todos os demais membros da família, presentes e ausentes,
interessados, ou não, em conhecer problemas de doença genética ou de seus
riscos genéticos. A segunda consiste no fato que os resultados de exames para
fins de estudo genético, diferentemente dos demais exames clínicos, não trazem
informações passageiras e passíveis de tratamento, como glicose ou colesterol
elevados, mas trazem informações que fazem parte do próprio ser das pessoas, ou
seja, da constituição genética com a qual a pessoa nasceu e viverá toda a sua
vida. Em genética clínica, os resultados de exames, testes e avaliações
clínicas revelam uma situação definitiva e não um episódio transitório de
"estar" doente.
Essas duas peculiaridades respondem pela
grande diferença entre a genética clínica e as demais especialidades, não
apenas do ponto de vista científico, mas, essencialmente, do ponto de vista
ético. A autonomia do paciente e de seus familiares, o direito de saber, o
direito de não saber, a ponderação entre beneficência e maleficência das
informações, o respeito aos valores morais das pessoas, etc., são aspectos
éticos mais complexos na genética clínica do que em outras especialidades
médicas.
Ainda em relação aos direitos humanos e
genética, fora da modernidade biotecnológica, existem, pelo menos, três outros
aspectos a merecer reflexões por sua importância para preservação e respeito à
dignidade humana.
O primeiro diz respeito à necessidade que
a família sente de ouvir do médico-geneticista o veredicto de normalidade ou
não da pessoa em consulta. Isto é, refere-se ao conceito de normal e de anormal
em genética. Em artigo publicado em revista brasileira, o médico-geneticista
americano J. Opitz (1997) afirma que não existe, no discurso biológico ou
cultural, um consenso sobre o conceito de anormalidade. Herdeiros de uma
cultura classificatória, protagonizada por Linneus, profissionais da saúde e
sociedade em geral, põem entre suas inquietações a necessidade de rotular, como
normal ou anormal, o fenótipo das pessoas. Em profundo desconhecimento, tanto
das relações biológicas entre fenótipo e genótipo, como da inexistência de
genótipos individuais livres de mutações deletérias, criou-se a utopia dos
"geneticamente normais". A própria genética clínica demonstra que não
existe relação entre intensidade de variação fenotípica e número de genes variantes:
o portador de um único gene para osteogênese imperfeita pode ter fenótipo mais
distante do usual que o portador de vários genes para estenose hipertrófica do
piloro. O que importa não é o número de genes variantes, mas a força de sua
manifestação revelada pela penetrância e pela expressividade. Conseqüentemente,
a inferência de efeitos genótipo-fenótipo pode levar a erros em dois sentidos:
primeiro, nem sempre um fenótipo desviante tem causa genética (fenocópias);
segundo, um fenótipo usual não exclui a presença de genótipo desviante
(penetrância). Assim, a expressão "geneticamente normal" é falaciosa
quando impropriamente usada nos casos específicos de não-penetrância e
conceitualmente errônea por desconsiderar conhecimentos sobre carga genética. Estudos
de genética de populações humanas demonstram que, em média, cada pessoa é
portadora de quatro a seis genes deletérios, que, se em homozigose, qualquer um
deles causa graves impedimentos físico e/ou mental, ou mesmo a morte (Morton et
al., 1956). Conclui-se, assim, que, na espécie humana, não existem pessoas
geneticamente normais, pois portadores de genes deletérios somos todos nós.
Lamentavelmente, a idéia de existirem pessoas geneticamente normais, além de
cientificamente incorreta, traz consigo enorme carga discriminatória contra
aqueles cujos genes deletérios se manifestam. Qualquer forma de discriminação
com base genética é atentado frontal aos direitos individuais e à dignidade das
pessoas.
O segundo aspecto, relacionado de certa
forma ao primeiro, diz respeito aos malefícios pessoais decorrentes da
não-compreensão de que a espécie humana constitui uma inquestionável unidade
biológica e que todos os seres humanos, sem exceção, compartilham dessa
unidade. Além disso, a Biologia nos ensina que a sobrevida de qualquer espécie
depende essencialmente do seu potencial de variabilidade intra-espécie para
suportar as pressões seletivas naturais. Assim, dentro da unidade da espécie é
indispensável que haja variabilidade genética. Na espécie humana, parte desta
variabilidade é traduzida por características externas ao corpo humano, tais
como sexo, cor da pele, tipo de cabelo, fisionomia, impressões digitais,
altura, peso, etc. Por motivos surgidos ao longo da história da humanidade,
criaram-se, entre alguns, concepções depreciativas e, até mesmo, exclusão de
uns em relação a outros em função desta variabilidade. Diante disto, nada mais
justo que conclamar, ensinar e divulgar que todos os membros da espécie humana,
sem exceção, têm direito à não-exclusão por razões biológicas. Ainda que de
forma tímida, a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos,
afirma em seu Artigo 2o, alínea a: "Todos têm direito ao
respeito por sua dignidade e seus direitos humanos, independentemente de suas
características genéticas"; alínea b) "Essa dignidade faz com que
seja imperativo não reduzir os indivíduos a suas características genéticas e
respeitar sua singularidade e diversidade".
O terceiro aspecto para preservação e
respeito à dignidade humana constitui, também, elemento de nossa preocupação
pessoal, nascido, acreditamos, da experiência, durante décadas, de contatos com
famílias em serviços de genética
clínica, no país e no exterior. Trata-se do aspecto semântico da terminologia
empregada em genética clínica que, segundo nossa avaliação, é maleficente, e,
conseqüentemente, capaz de atingir a dignidade das pessoas. O fato de a
genética ter se tornado uma especialidade clínica após grande desenvolvimento
da genética animal e vegetal, e mesmo da genética humana em si, em especial a
citogenética, termos que haviam sido criados fora do domínio da genética
clínica foram adotados e trazidos para o diálogo com as famílias nos
consultórios. Muitos destes termos, além de infiéis à realidade genética da
espécie humana, são semanticamente depreciativos, senão terroristas. Exemplo:
"Aberração cromossômica", "deformação genética", entre
outros. Ainda que uma revisão da terminologia em genética clínica não seja um
empreendimento fácil, as dificuldades de sua reformulação serão transponíveis
quando se colocar em prioridade o respeito à dignidade das pessoas.
Vimos, assim, que as questões de direitos
humanos e genética não estão restritas a conflitos éticos decorrentes dos
avanços da ciência e da tecnologia, mas abrangem problemas que há muito se
fazem presentes na vida das pessoas.
Entendemos que aspectos da realidade do
dia-a-dia em genética humana e clínica, tanto quanto os problemas éticos
decorrentes dos avanços da biologia molecular, igualmente merecem preocupações
e posicionamentos.