BIOÉTICA E
DIREITO
Antonio Carlos Mendes
Jefferson de Vasconcelos Silva
Sueli Gandolfi Dallari
Esta secção destina-se a discutir os vários aspectos que ligam a preocupação ética na área sanitária à formulação jurídica do direito à saúde, seja enquanto disciplinada em lei, seja quando decidida pelos juízes individualmente ou nos tribunais.
Espera-se receber tantos comentários relativos às decisões na matéria, quanto informações que possibilitem o exame ético-sanitário daquelas decisões para a coluna nos Tribunais. Também manifestações semelhantes quanto a projetos de lei, ou mesmo legislação vigente que polemize princípios morais na área da saúde, serão bem-vindas para inclusão na coluna nos Parlamentos.
Na primavera de 1993, a Corte Suprema do Canadá negou provimento à apelação e a decisão sobre a admissibilidade daquele meio de prova deveria ter sido tomada no julgamento do réu, marcado para o outono de 1994.
Essencialmente, o aspecto ético subjacente a essa discussão jurídica envolve a escolha do valor a ser protegido: a privacidade do indivíduo, a confiança do profissional, ou a paz social, no caso representada pela justiça no julgamento.
Supondo que se aplicasse a lei brasileira, todos os valores enumerados encontram-se particularmente protegidos. A primeira e mais importante defesa decorre de seu reconhecimento constitucional. Assim, privacidade é inviolável (C.F. art. 5º, X); a confiança no profissional deve originar-se na liberdade do exercício da profissão, limitada apenas pelo atendimento às qualificações legalmente exigíveis (C.F. art. 5º, XIII); e o julgamento justo é buscado por vários dispositivos, inclusive aquele que obriga à indenização do erro judiciário (C.F. art. 5º, XXV).
Esses direitos fundamentais são reafirmados e especialmente protegidos na legislação penal, revelando mais uma vez a importância que a sociedade lhes atribui. Verifica-se, então, que o Código Penal brasileiro, visando proteger a privacidade dos indivíduos e promover a confiança nos profissionais, define o crime de violação do segredo profissional resultante da revelação, sem justa causa, de segredo que alguém detém em razão da profissão e cuja revelação pode produzir dano (C.P. art. 154); e, em busca da justiça, isenta de pena quem para repelir agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem usa moderadamente os meios necessários (C.P. art. 25).
Nos Tribunais
A quebra do sigilo profissional em decorrência da atuação da imprensa foi objeto de ampla discussão na sociedade canadense, conforme relata Joan Melanson [Can Med Assoc J 1994; 150: 960].
Um psiquiatra da Cidade de Halifax, Canadá, leu no jornal a notícia do julgamento de um caso de agressão sexual e reconheceu a vítima como uma antiga paciente, de quem tratou durante oito anos. O réu era um rapaz de 28 anos de idade que havia sido estudante de direito. Depois de ouvir os depoimentos, o júri condenou o réu a uma pena de 18 meses de prisão.
A vítima declarou que aceitou o convite do réu para ir ao seu apartamento, depois de tê-lo encontrado em um bar do centro da cidade, e que quando resistiu aos avanços sexuais foi amarrada e forçada à prática de sexo oral. O réu disse que, ao se prepararem para o ato sexual, quando ele informou não possuir preservativo, a vítima passou a dar-lhe pontapés, sendo esta a razão pela qual ele a amarrou, o que explica as escoriações que ela exibiu ao júri. O júri foi também informado de que a vítima tinha estado sob tratamento psiquiátrico no passado.
Um mês depois do julgamento, o psiquiatra entregou espontaneamente partes da ficha clínica de sua ex-paciente para serem usadas no tribunal. E, com base nelas, uma seção da Corte de Apelação da Nova Scotia (tribunal de segunda instância) anulou a sentença e ordenou um novo julgamento.
Em seu depoimento então protegido pelo segredo de justiça o psiquiatra declarou que a vítima tinha um problema psiquiátrico que a poderia ter levado a fantasiar a agressão sexual e que ela poderia verdadeiramente acreditar que tal agressão houvesse ocorrido.
O procurador da Justiça apelou da admissibilidade do elemento de prova fornecido pelo psiquiatra para a Corte Suprema do Canadá, invocando a necessidade de estabelecer um balanço entre o direito do acusado ao justo julgamento e o direito da vítima.
Em termos estritamente jurídicos, a estrutura normativa apresentada conduz ao privilegiamento do valor paz social, entendida no caso como promoção do justo julgamento, uma vez que é legítimo o uso dos meios necessários para prevenir agressão injusta a direito de outrem e que tal legitimidade confere o caráter de justiça à causa que determinou a violação do segredo profissional.
Entretanto, o direito não existe acima da sociedade, independente de seus constrangimentos, mas se realiza na própria sociedade. Assim, devem ser discutidos os argumentos que foram, ou poderiam ter sido, levantados durante o referido julgamento. O direito à privacidade da vítima e do réu não foi respeitado quando ambos foram identificados pela imprensa; o comportamento do psiquiatra foi inusitado (a autora afirma que nenhum outro psiquiatra canadense tinha feito isso anteriormente) e sua motivação deveria ser esclarecida; os grupos de mulheres e de doentes mentais tradicionalmente discriminados se sentiram ameaçados pelo precedente; o diagnóstico formulado pelo psiquiatra baseou-se em informações anteriores ao fato, pois naquele momento a vítima já não era mais sua paciente há onze meses; antes de ser convocado a depor, o psiquiatra conversou com sua ex-paciente que insistiu para que sua ficha clínica fosse mantida em segredo; tratava-se da ficha clínica de cuidados psiquiátricos, onde, segundo o diretor executivo da Associação Canadense de Saúde Mental:
Encontra-se apenas uma série de notas de uma linha dizendo isso ou aquilo a respeito desse indivíduo e o que ela pode ou não pode ter dito durante aquelas sessões.
Sem qualquer dúvida, a polêmica em torno desse julgamento, particularmente por envolver a confidencialidade relacionada ao tratamento de doença mental, levou a Associação Canadense de Psiquiatria a rever sua orientação nesses casos. Limitando-se, porém, a análise aos aspectos discutidos nos tribunais, é oportuno lembrar a decisão do caso Tarasoff V. Regents of the University of California, julgado pela Suprema Corte da Califórnia, em 1976, quando a opinião majoritária sustentou que o dever de confidencialidade na psicoterapia é sobrepujado pelo dever de proteger a provável vítima de um grave perigo de violência. A corte assim decidiu:
Quando um terapeuta diagnostica, ou segundo os padrões profissionais deveriam diagnosticar, que seu paciente representa grave perigo de violência contra terceiros, ele tem obrigação de adotar todos os cuidados razoáveis para proteger a provável vítima desse perigo. Para desincumbir-se dessa obrigação, o terapeuta deve dar um ou mais passos, dependendo da natureza do caso, bem como informar a vítima do perigo; notificar a polícia; ou tomar qualquer outra medida razoavelmente necessária sob tais circunstâncias.
Afirmou, também, a corte que:
O privilégio protetor termina onde o perigo público começa.
Nos parlamentos
As
Leis Francesas Sobre a Bioética
Guy Braibant
Em 1988, o primeiro-ministro solicitou ao Conselho de Estado um estudo e conseqüentemente um relatório sobre o conjunto de problemas jurídicos surgidos por causa dos recentes progressos na área de ciências da vida, particularmente, a biologia, a genética e a medicina.
Esse relatório, que foi redigido por um grupo de trabalho presidido por mim, foi adotado pelo Conselho de Estado e foi encaminhado ao primeiro-ministro no início de 1988. Um ano depois, atendendo solicitação de um outro primeiro-ministro, encaminhei ao Governo um anteprojeto de lei, redigido a partir das propostas do parecer do Conselho de Estado. Após longos debates nos meios políticos, bem como na sociedade civil, esses projetos resultaram em algumas leis promulgadas em 1º, 25 e 29 de julho de 1994. Nesse ínterim, uma primeira lei foi adotada em novembro de 1988, a respeito das experiências sobre o corpo humano.
Esses textos compreendem princípios relativos ao respeito pelo corpo humano e à proteção do ser humano, princípios esses inseridos no Código Civil e sancionados por dispositivos do Código Penal. Tais princípios foram reconhecidos como sendo conformes à Constituição por um aresto do Conselho Constitucional. Eles incluem, com destaque, a primazia da pessoa e o respeito à sua dignidade e à sua existência desde o início de sua vida; a violação do corpo humano que não pode ser objeto de um direito patrimonial, nem de práticas comerciais. Por outro lado, as impressões genéticas são submetidas a regulamentação rígida e nem o corpo humano, nem o conhecimento de um gene humano poderão ser objeto de uma patente. Enfim, as práticas eugênicas e o comércio de tecidos, de células, de produtos ou de órgãos humanos estão formalmente proibidos.
Os textos garantem, também, a proteção aos embriões humanos e regulamentam a reprodução assistida por meio dos dispositivos inseridos no Código Civil, no Código Penal e no Código de Saúde Pública.
É particularmente proibido comercializar embriões, reproduzi-los para fins de pesquisas ou experiências, permitir a identificação das pessoas que usam a reprodução assistida ou recorrer à barriga de aluguel.
As práticas de reprodução assistida, do dignóstico pré-natal e do diagnóstico de pré-implante são submetidas à autorização e controle prévios.
Esses textos são completados por duas leis em particular: uma trata dos arquivos informatizados na área de saúde, visando proteger a vida privada dos doentes e garantir o respeito ao sigilo médico: a outra regulamenta as experiências com o ser humano, submetendo-as a controles administrativos e aplicando-lhes princípios comuns a essa legislação: gratuidade, o consentimento esclarecido dos interessados, finalidade científica ou terapêutica.
Esses dispositivos constituem um verdadeiro estatuto da pessoa física. Alguns têm um caráter permanente e exprimem valores fundamentais da nossa civilização. Outros são ligados ao atual estado da medicina e deverão ser revistos dentro de alguns anos em função da evolução desse estado. Seria desejável que convenções e acordos internacionais, no plano regional ou mundial, consagrassem os princípios inseridos nesta legislação nacional.
Nota:
[1] Texto extraído: http://www.cfm.org.br/revista/bio2v2/biodireito.html